SCINTILLA - Fraternidade Franciscana São Boaventura · Jean Lauand I filosofi nel tempo e le età...

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PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO... 1 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 SCINTILLA SCINTILLA SCINTILLA SCINTILLA SCINTILLA

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PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO...

1Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007

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SCINTILLASCINTILLASCINTILLASCINTILLASCINTILLA REVISTREVISTREVISTREVISTREVISTA DE FILA DE FILA DE FILA DE FILA DE FILOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVALALALALAL

ISSN 1806-6526

Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-214,jul./dez. 2007

Instituto de Filosofia São Boaventura – FFSBSociedade Brasileira de Filosofia Medieval - SBFM

Curitiba PR2007

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Copyright © 2004 by autoresQualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.Centro Universitário Franciscano do ParanáIFSB – Instituto de Filosofia São BoaventuraSBFM – Sociedade Brasileira de Filosofia MedievalNPA – Núcleo de Pesquisa Acadêmica (Área de Filosofia medieval e pensamento franciscano)Instituto mantido pela Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus (AFESBJ) Rua 24 de maio, 135 – 80230-080 Curitiba PR E-mail: [email protected] ou [email protected]: Nelson José HillesheimPró-reitor acadêmico: André Luis Gontijo ResendeDiretor: Vicente KellerEditor: Enio Paulo Giachini

a) Comissão editorialDr. Emanuel Carneiro Leão, UFRJDr. Orlando Bernardi, IFANDr. Luiz Alberto de Boni, PUCRSDr. José Antônio Camargo Rodrigues de Souza, UFGDr. João Eduardo Pinto Basto Lupi, UFSCDr. Carlos Arthur R. do Nascimento (PUC-SP)Dr. Francisco Bertelloni (Univ. Nacional da Argentina)Dr. Gregorio Piaia (Univ. di Padova – Italia)Dr. Marcos Roberto Nunes Costa (UNICAP)Dr. Rafael Ramón Guerrero (Unv. Complutense – España)Dra. Márcia Sá Cavalcante Schuback, Södertörns University College Estocol-mo (Suécia)Dr. Ulrich Steiner, FFSBDr. Jaime Spengler, FFSBDr. João Mannes, FFSB

b) Conselho editorialDr. Vagner Sassi, FFSBDr. Marco Aurélio Fernandes, IFITEGDra. Glória Ferreira Ribeiro, UFSJRDr. Jamil Ibrahim Iskandar, PUC-PRDr. Joel Alves de Souza, UFPRDr. Gilvan Luiz Fogel, UFRJDr. Hermógenes Harada

Revisão e editoração: Enio Paulo GiachiniDiagramação: Sheila RoqueCapa: Luzia Sanches

Catalogação na fonte

Scintilla – revista de filosofia e mística medieval. Curitiba: Instituto de FilosofiaSão Boaventura, Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval, Centro UniversitárioFranciscano, v.1, n.1, 2004-SemestralISSN 1806-65261. Filosofia - Periódicos 2. Medievalística – Periódicos.3. Mística – Periódicos.

CDD (20. ed.) 105 189

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SUMÁRIO

EDITORIAL ......................................................................................7

ARTIGOS .........................................................................................9Pietro di Giovanni Olivi e la sanctorum communio:Riflessione spirituale o modello di economia politica? .....11

Marco Bartoli

Pietro di Giovanni Olivi e la libertà della volontà, trametafisica e filosofia politica ............................................33

Luca Parisoli

A trajetória e a obra de Pedro de João Olivi(c.1248-1298): fundamentos para a elaboração dopensamento franciscano ..................................................75

Profa. Dra. Ana Paula Tavares Magalhães

“Cristo nosso Sal” – a participatio em Tomásde Aquino .....................................................................109

Jean Lauand

I filosofi nel tempo e le età della filosofia – L’apporto delmedioevo alla periodizzazione storico-filosofica .............125

Gregorio Piaia

Hermenêutica cristã da temporalidade e historicidade:polifonia interpretativa – do novo testamento a Pedro deJoão Olivi .....................................................................137

Marcos Aurélio Fernandes

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COMENTÁRIOS ................................................................................175Acerca do livre arbítrio ..................................................177

Fr. Hermógenes Harada

Fazer a vontade de Deus e o Beato frei Egídio de Assis ..189Fr. Hermógenes Harada

TRADUÇÕES ...................................................................................197Acerca da liberdade da vontade .....................................199

Pedro de João Olivi

O Senhor Deus produziu todo tipo de árvores de belaaparência e boas para se comer ......................................207

Mestre Eckhart

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EDITORIAL

Enio Paulo Giachini

Era nossa intenção dedicar um número completo de Scintilla aofranciscano dos primórios da Ordem, Pedro de João Olivi.

Foi com dificuldade que conseguimos reunir alguns preciosostextos a seu respeito. Tomamos como tarefa deixar espaço aberto paranovas contribuições em números subseqüentes.

Olivi foi um pensador dos primórdios do movimento francisca-no (1248-1298), do veio dos espirituais, que tomou o vulto de gran-de liderança espiritual em seu tempo. P. de J. Olivi, Ângelo Clareno(1247-1337) e Ubertino de Casale (1259-c.1328) “reuniram em tor-no de si, na Itália do Norte e Central e na França meridional não sóreligiosos mas uma infinidade de leigos, chamados na Itália de bizochi

e na França de béguins”. Foi um homem que se empenhou de plenocoração na vida de sua época e comunidades. Sua leitura da realidadetambém passava pela ausculta dos tempos. Por isso, também foi gran-de seguidor do pensar de Joaquim de Fiore (1135-1202). No paiFrancisco e na autêntica Ordem franciscana, via o início de uma novaera para a Igreja e para o mundo, a era da graça e do Espírito.

A revista reuniu cinco contribuições sobre o Olivi. Marco Bartoliescreve sobre a Sanctorum communio; Luca Parisoli, sobre a liberdadeda vontade; Ana P.T. Magalhães, sobre a trajetória de seu pensamentonas relações com o início do pensar franciscano; Marcos A. Fernandes,sobre a hermenêutica da temporalidade e Frei Harada sobre, o livrearbítrio.

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ENIO PAULO GIACHINI

A revista traz ainda duas contribuições não diretamente referidasao tema mas provocativas: Jean Lauand apresenta a parábola de Cris-to como Sal, e Gregório Piaia, a contribuição da alta Idade Médiapara a periodização da filosofia.

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PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LASANCTORUM COMMUNIO:

RIFLESSIONE SPIRITUALE OMODELLO DI ECONOMIA

POLITICA?*

Marco Bartoli

(Libera Università “Maria SS. Assunta” di Roma

bartoli@lumsa,it)

“Il ‘tesoro dei meriti’ è l’amore di Dio che ha fondato la comunitàin Cristo, e nient’altro. La dottrina cattolica del thesaurus è unarazionalizzazione, moralizzazione e umanizzazione del dato di fattoirrazionale, cioè che l’uomo non può fare mai più di quello che deve,e che tuttavia nella comunità di Dio ciascuno fa ‘godere’ l’altro; ciòha a sua volta il fondamento nel fatto che Cristo è morto per lacomunità, affinché essa conducesse una sola vita basata sullo scambio

e sulla dedizione reciproci.” 1

Con queste parole Dietrich Bonhoeffer, nella sua tesi di dottoratodedicata alla Sanctorum Communio del 1927, sintetizzava la sua acuta

* Il presente articolo è la riproduzione di una relazione tenuta al Convegno su“Escatologia, aldilà, purgatorio, culto dei morti”, tenutosi a Tolentino, Italia, dal26-28 ottobre 2005.

1. D. BONHOEFFER. Sanctorum Communio. Eine dogmatische Untersuchung zurSoziologie der Kirche, Berlin, 1930, 2 ed. München, 1969, trad. it. Roma-Brescia,1972, pp. 132-133.

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rilettura di una dottrina, che pure non aveva cessato di suscitare polemichetra le diverse confessioni cristiane2 . Per il pastore della chiesa confessantequesto “scambio e dedizione reciproci” assumono valenze assolutamentecentrali per ogni ecclesiologia. E’ infatti a partire dalla Sanctorum

Communio che si comprende, ad esempio, il valore della preghiera diintercessione: « Nel mio rapporto isolato con Dio viene introdotto unterzo elemento –dice Bonhoeffer: nell’intercessione, io mi metto al postodell’altro, ed in tal modo la mia preghiera rimane mia, ma è recitatapartendo dal bisogno e dall’angoscia dell’altro; io entro veramentenell’altro, nella sua colpa e nella sua angoscia, e vengo colpito dai suoipeccati e dalle sue debolezze3 . »

Il cosiddetto “Simbolo degli Apostoli”, ancora oggi proclamato nelcorso delle celebrazioni liturgiche festive della Chiesa cattolica, recita:

“Credo nello Spirito SantoLa santa Chiesa cattolica,la comunione dei santi,la remissione dei peccati,la resurrezione della carnela vita eterna.”

In realtà, come è noto, il Simbolo di Nicea (325) e diCostantinopoli (381), che il concilio di Efeso (431) vietava dimodificare, recitava in modo diverso, dicendo:

“Credo la Chiesa, una santa, cattolica e apostolica,confesso un solo battesimo per la remissione dei peccatie attendo la resurrezione dei morti e la vita del mondo che verrà.”

2. Lo stesso Bonhoeffer si era chiesto: “Solo perché la comunità conduce per cosìdire una sola vita in Cristo, il cristiano può dire che la castità di altri l’aiuta nelletentazioni della concupiscenza, che la preghiera degli altri può essere offerta per luie che egli può trarre vantaggio dal digiuno altrui. Ma a questo punto non ciavviciniamo forse pericolosamente alla dottrina cattolica del thesaurus, che sta alcentro di tutte le recenti concezioni cattoliche attorno alla sanctorum communio?”:Idem, p. 132.

3. Ibid., p. 136.

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Non vi era cioè nessun accenno alla “communio sanctorum”. Certosi può sostenere che i Padri abbiano conosciuto questa dottrina, anchesenza utilizzare necessariamente l’espressione. Si può far riferimentoad esempio alla teologia di Agostino4 o di Girolamo5 , anche se inquesti Padri ancora non compare l’espressione Communio sanctorum.

Il primo documento che attesti la formula comunione dei santi èprobabilmente una Spiegazione del Simbolo, il cui autore sarebbe Niceta,vescovo di Remesiana del V secolo (amico di Paolino di Nola), che dice:

“Dopo aver professato la Beata Trinità, professa adesso la tua fedeverso la santa Chiesa cattolica. Ora, la Chiesa è forse altra cosa che laCongregazione di tutti i santi? In effetti dall’origine del mondo,patriarchi… profeti, apostoli, martiri, tutti gli altri giusti… sono unachiesa sola; perché, santificati dalla fede comune e dalla vita comune,segnati da un solo Spirito, essi sono diventati un solo corpo, e diquesto corpo il capo è Cristo, come attesta la Scrittura.

E dico inoltre che anche gli angeli e anche le virtù dei cieli e lepotenze sono confederate in questa unica chiesa… Dunque, in questaunica chiesa, credi che otterrai la comunione dei santi. Sappi così che

4. D. Bonhoeffer ha sottolineato come «è stata la grande concezione di Agostinoquella di rappresentare la comunione dei santi, il nucleo della chiesa, come lacomunione degli esseri pervasi dall’amore, che, toccati dallo Spirito di Dio, irradianoamore e grazia. Il perdono dei peccati non lo dà la chiesa organizzata, né il ministeroufficiale, ma la comunione dei santi. Chi ha ricevuto i sacramenti, deve solo essereinserito in questa corrente spirituale di vita; tutto ciò che è stato promesso allachiesa è promesso alla comunione dei santi, la quale ha il potere spirituale di apriree di chiudere, di legare e di sciogliere e può rimettere i peccati; è solo per opera suache tutto ciò che intraprende la chiesa ufficiale ha in sé lo Spirito di Dio. Conquesto si ha il modello di tutte le idee sulla sanctorum communio.» D.BONHOEFFER, Sanctorum communio, p. 125-126; che cita AGOSTINO, Debaptismo contra Donatistas, V, 21, 29: «Sacramentum gratiae dat Deus etiam permalos, ipsam vero gratiam non nisi per se ipsum vel per sanctos suos.

5. D. BONHOEFFER, Sanctorum communio, p. 83, n.1.

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questa chiesa cattolica è unica, stabilita su tutta la terra, e di essa tudevi fermamente custodire la comunione”6 .

Quasi contemporaneamente si registra la stessa espressione in unpiccolo trattato De Spiritu Sancto di Fausto di Riez, morto nel 4957 ;ed anche in un altro trattato falsamente attribuito ad Agostino, Sulla

fede del Simbolo e i buoni costumi8 si parla ancora della communio

sanctorum. Per lungo tempo però il tema rimase per così dire sullosfondo ed i teologi alto medievali vi dedicarono scarso interesse.

I primi tentativi di una sistematizzazione della dottrina si ritrovanoin Bernardo da Chiaravalle9 , ma anche Anselmo ne parla inun’omelia10 , mentre Abelardo mostra di avere ancora una concezionefluttuante dell’espressione Communio sanctorum11 ed Ugo di SanVittore si rifà ancora essenzialmente alla lex orandi, che vede nellasanta liturgia il momento più intimo di comunione tra chiesa visibilee chiesa invisibile.12

6. Cfr. PL 52, 871.

7. FAUSTO DI RIEZ, De Spiritu Sancto, l. I, c. II ; in PL 62, 9-40: “Gli articoliche seguono nel Simbolo il nome del Santo Spirito, appartengono alla suaconclusione: che noi crediamo alla santa Chiesa, la comunione dei santi, la remissionedei peccati, la resurrezione della carne, la vita eterna”.

8. PL 39, 2189, nn. 240-244.

9. “Spiritum Sanctum, sanctorum communionem, ut… sanctorum comunione,nostra insufficientia suppleatur. Si enim in sanctis dilexerimus Deum et ipsi prosuorum exigentia meritorum nobis communicabunt beatitudinem apud Deum”BERNARDUS CLARAVALLENSIS, Tractatus de charitate, al c. XXXIII, PL 184,col. 633. Cf. anche Serm. In Cant., serm. 53, PL 183, col. 1037.

10. ANSELMO D’AOSTA, Homiliae et exortationes, hom. I, in PL 108, col. 587-589.

11. P. BERNARD, Communion des saints, in Dictionnaire de théologie catholique, f.XIX, Paris, 1910,col. 444.

12. UGO DI SAN VITTORE, De sacramentis, l. II, part. XVI, c. X, PL 176, col.594: In illo Jesu mysterio angelorum choros adesse, summis ima sociali, terrenacoelestibus jungi, unum quoque ex visibilibus fieri.

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In ogni caso è Pietro Lombardo a fissare per sempre (nellatradizione cattolica) la dottrina dei meriti dei santi; soprattutto è danotare la distinzione 45ma del quarto libro, nella quale il Magisteraffronta il tema dei suffragi dei defunti, arrivando a formularel’espressione merita eorum nobis suffragantur13 . Anche dopo laredazione del Libro delle Sentenze però la dottrina rimase per cosìdire fluttuante. Per Alberto Magno la Communio sanctorum è lacomunicazione dei beni di tutti i santi, operata individualmente dalloSpirito che santifica.14 Alessandro di Hales da un lato interpreta lacommunio sanctorum come partecipazione ai sacramenti, che conferisceil perdono dei peccati, dall’altro come la forza dell’unità di tutti colo-ro che sono membra del corpo di Cristo.15

Tommaso d’Aquino invece preferisce interpretare l’espressionecommunio sanctorum come un sostantivo neutro, per cui, a suo avviso,si tratta della comunione dei beni nella chiesa.16 Affermando però ilprincipio, secondo il quale, poiché tutti i fedeli costituiscono un solocorpo, il bene dell’uno si comunica all’altro.17

13. Sent., lib. IV, dist. 45, c. 6, n. 6, in PL 192, col. 950 [ed. Quaracchi, vol. II, p.529].

14. “non enim potest fieri communio sanctorum in bonis nisi per Spiritum Sanctumtotum corpus mysticum unientem et vivificantem”. ALBERTUS MAGNUS, InIV Sent., l. III, dist. 24, q. 1, Paris, 1894, t. 15, p. 256.

15. “Vel credo quod unitas Ecclesiae tanta est, quod unusquisque qui membrumest, particeps est omnium quae sunt totius corporis… Tanta igitur virtus unitatis,quod quum sit particeps Christi, humiliter dicitur particeps famulorum Christi.”

16. “Unde et inter alia credenda quae tradiderunt apostoli, est quod communiobonorum sit in ecclesia; et hoc est quod dicitur sanctorum communionem”: Thom,Expositio in symbolum apostolorum, a. 10.

17. “Quia omnes fideles unum sunt corpus, bonum unius alteri communicatur”:idem. Vedi anche Summa Theologiae, II-III, 83, a. 11; e Supplementum, s. q. 13,a. 2; ed infine In IV Sent., dist. 20, q. unica, a. 2, quaestiunc. 3.

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In ogni caso è nel corso del XIII secolo che la dottrina sullasanctorum communio si lega strettamente all’idea della speciale relazioneche unisce la chiesa militante, purgante e trionfante. Contribuisce atale evoluzione l’affermarsi della pratica delle indulgenze, che, a partiredalle crociate, conosce una sempre più larga affermazione in diversicontesti, fino ad arrivare alla grande celebrazione del giubileo nell’anno1300; sono gli anni della piena affermazione della dottrina delPurgatorio come luogo intermedio dell’al di là18 .

Il maestro che forse più di ogni altro ha contribuitoall’affermazione della dottrina della sanctorum communio come reci-proca intercessione tra i santi della terra, del cielo e del purgatorio èsecondo il parere di alcuni, Bonaventura. Così il p. Bernard, in unarticolo sul Dictionnaire de théologie catholique del 1910, identificavaotto punti tratti dal Commento al IV libro delle Sentenze, in cuiBonaventura avrebbe trattato della communio sanctorum. Al di là delmodo un po’ artificioso con cui il p. Bernard ha ricostruito la teologiadella communio sanctorum in Bonaventura a partire da passi che inrealtà sono disomogenei, non vi è dubbio che il dottore serafico abbiasottolineato con particolare vigore l’importanza della comunionespirituale nel corpo mistico della Chiesa. E’ questo il caso, ad esempio,della prima questione del suo commento alla ventesima distinzionedel IV libro delle Sentenze, intitolata «Utrum unus pro alio possitsatisfacere». Gli argomenti “quod sic” si aprono con un passo dellalettera ai Galati, che dice: « Alter alterius onera portate» «portate gli

uni i pesi degli altri»; il commento di Bonaventura è che “i pesi daportare sono innanzitutto quelli spirituali, perciò, se a qualcuno èstata imposta una penitenza grave, è evidente che un altro può portareuna parte o anche tutto il peso di tale penitenza. Ed inoltre nella

18. Si fa riferimento, ovviamente, al saggio di J. Le Goff, La nascita del Purgatorio.

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lettera si dice che « il peso della penitenza può essere sollevato con lepreghiere degli amici o l’elargizione di elemosine» e qui si parla dicolui che è gravemente malato.”19 Bonaventura ha una sensibilitàacuta per questa mutua dilezione tra i membri del corpo ecclesiale,come si vede dall’argumentum successivo, che si basa sulla esperienzadiretta: « Inoltre, che ciò sia vero appare dalla ragione, anzituttoattraverso la similitudine con le cose naturali. Vediamo infatti inqualsiasi corpo di animale che un membro si espone per un altro, persopportare un colpo o una ferita al suo posto, e così un braccio si alzain difesa del capo; se dunque nel corpo mistico vi è una connessioneparagonabile a quella del corpo naturale, è evidente che, in manierasimile, un membro può e deve sostenere il peso di un altro»20 .

Ora tutti questi argomenti sono strettamente legati, in Bonaven-tura, alla riflessione sul Purgatorio e sul valore delle indulgenze. Lacomunione dei santi non conosce i limiti imposti dalla morte, ma siestende a coloro che attendono il giudizio, per i quali è possibile in-tercedere e lucrare indulgenze21 . Tutte queste riflessioni sono a loro

19. «Quaeritur igitur primo, utrum possit fieri satisfactionis commutatio, et hocest quaestionis fundamentum, scilicet, utrum unus pro alio satisfaciat. Et quod sic,videtur. Ad Galatas sexto: Alter alterius onera portate; sed onera, quae maxime suntportanda, sunt onera spiritualia, ergo si alicui imposita est ponitentia gravis, videturquod aliquis partem vel totum possit pro eo portare. Item, in littera dicitur:“Amicorum orationibus et eleemosynarum largitionibus pondus poenitentiaesublevandum est”; loquitur de eo qui graviter infirmatur.»

20. «Item, hoc videtur per rationem, primo per simile in rebus naturalibus. Videmusenim in aliquo corpore animalis, quod unum membrum se exponit, ut sustineatlaesionem et gravamen alterius, sicut patet, quod brachium se exponit pro capite;si ergo in corpore mystico est connexio per assimilationem ad corpus naturale,videtur similiter, quod unum membrum onus alterius possit et debeat supportare.»

21. BONAVENTURA DA BAGNOREGIO, In IV Senten., Dist. XX, vol. IV,Quaracchi, 1889, p. 538: “Dico igitur, quod quia bona et thesaurus Ecclesiae estin Summi Pontificis potestate, et illi qui sunt in Purgatorio, ratione caritatis idoneisunt spiritualia beneficia recipere, quod papa potest eis bona Ecclesiaecommunicare”.

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volta intrecciate con un’ecclesiologia centrata sulla figura del papa,perché la dottrina delle indulgenze appare strettamente connessa conquella sulla plenitudo potestatis. Alla domanda «Utrum indulgentiaetantum valeant, quantum predicatur» che risponde evidentemente adubbi correnti circa la possibilità di stabilire il valore da attribuire alleindulgenze, Bonaventura argomenta dicendo che «come ogni vescovopuò concedere qualche indulgenza, ad esempio di 20 o 40 giorni, ilSommo Pontefice, che può più di tutti i vescovi, perché ha la pienezzadel potere (plenitudinem potestatis) su tutti, può dare più di tutti glialtri e perciò può condonare tutto, e se tutto, anche qualsiasi partedel tutto»22 .

Alla fine del XIII secolo la dottrina della sanctorum communio

entra così a far parte della riflessione teologica della Chiesa cattolica;dopo Bonaventura e Tommaso praticamente tutti i grandi maestritorneranno sull’argomento.23 Parallelamente, mentre i teologisviluppavano il tema della communio sanctorum, i giuristi furonoattratti soprattutto dal tema delle indulgenze.24

Tra tutti i maestri che hanno dedicato attenzione a questa dottrinamerita però particolare attenzione un discepolo diretto di Bonaven-tura: Pietro di Giovanni Olivi. E’ merito di Ovidio Capitani l’avermesso in relazione l’elaborazione e la formalizzazione della dottrina

22. «Item, aliquis episcopus potest aliquantam indulgentiam facere, esto quod vigintidierum, vel quadraginta; sed Summus Pontifex plus potest quam omnes episcopi,eo quod plenitudinem habet potestatis super omnes: ergo plus potest dare quamomnes: ergo videtur quod totum possit condonare: ergo si totum, et per consequensquantamlibet partem.», lib. IV, dist. 20, p. 2, a. 1, q. 6.

23. PIETRO DI TARANTASIA, In IV Sent., lib. III, dist. 25, q. 2, a. 2;RICCARDO DI MIDDLETOWN, In IV Sent., lib. III, dist. 25, a. 1, q. 2; DUNSSCOTO, In IV Sent., lib. IV, dist. 45, q. 4, a. 2; EGIDIO ROMANO, In IV Sent.,lib. III, dist. 23, p. 2, q.1.

24. Si può ricordare ad esempio il tema dell’indulgenza legata al pellegrinaggiopresso una chiesa.

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della communio sanctorum con il pensiero teologico del maestroprovenzale. Diceva Capitani: “la crociata, per le indulgenze plenarie,le dediche di chiese e di altri edifici pubblici o di pubblica utilità, inaltri casi, sono nel tempo degli uomini: di tutti gli uomini. Ma “circafinem temporis ecclesiastici”– come ricorda l’Olivi– l’indulgenza as-sume un valore del tutto particolare: è motivata da se stessa“nichilominus valde congrua apparet… L’indulgenza ha un senso nonaritmetico, non procedurale, ma escatologico”.25 E’ chiaro cheCapitani faceva riferimento qui soprattutto alla quaestio de indulgentia

Portiunculae che era stata edita dal p. Péano.

Dopo il 1986 l’interesse verso le opere di Pietro di Giovanni Oliviha prodotto tra l’altro una serie di edizioni critiche, che hannopermesso di valutare appieno l’importanza del maestro provenzalenella storia del pensiero del tardo medioevo.

Lo stesso Capitani, insieme a diversi altri, ha successivamentemesso in rilievo, ad esempio, il ruolo del tutto specifico di Olivinell’elaborazione di una coerente dottrina teologica in materiaeconomica. Il maestro francescano appare essere il più sistematicointerprete della nuova sensibilità minoritica nei confronti del vissutosocio economico delle città italiane e provenzali del suo tempo.

L’edizione relativamente recente delle questiones de quodlibet con-sente di farsi un’idea piuttosto precisa di come il pensatore provenzaleentrasse nelle problematiche anche più concrete della vita associatadel suo tempo. In altra occasione mi sono occupato di alcune di questequestioni relative al tema del giuramento, in questo caso mi sembranointeressanti due quaestiones del IV Quodlibet: la quarta, relativa ad

25. O. CAPITANI, L’indulgenza come espressione teologica della “communio sanctorum”e nella formazione della dottrina canonistica, in Indulgenza nel medioevo e perdonanzadi papa Celestino. Atti del Convegno storico internazionale, l’Aquila 5-6 ottobre1984, L’Aquila, 1987, p. 29.

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una compravendita di luoghi di sepoltura a cui ci si impegna congiuramento (il problema però trattato da Olivi in questa quaestio piùche quello relativo alla comunione tra i santi ed i defunti è quellorelativo al giuramento, che sarebbe inficiato nel caso si trattasse disimonia) e la 22, in cui ci si pone la domanda An missa, a malo sacer-

dote celebrata, tantum prosit animabus quantum celebrata a bono.

Il tema era piuttosto comune presso i teologi del tempo e lo siritrova, ad esempio, affrontato da Raymond de Peñafort nella suaSumma, lib. III, tit. XXXIV, in cui si cita l’opinione di alcuni ereticiche citavano il passo evangelico peccatores non exaudit Deus [Gv 9,31],e si dà la solutio 26 . Il dibattito sul potere di assolvere e sul valore deisacramenti risale, come è noto, alla riforma gregoriana, durante laquale diversi eretici avevano messo in dubbio l’efficacia del suffragiodi una messa celebrata da un sacerdote indegno.

La quaestio di gran lunga più interessante, per il nostro tema, sitrova all’interno di un trattato De novissimis, che, come ha mostratoPietro Maranesi, venne in seguito inserito nel codice Vaticano 4986,per formare l’ultima parte della Summa Quaestionum super IV

Sententiarum.27 La quaestio va datata, secondo Silvain Piron, verso il1293-94, quando Olivi ormai risiedeva a Narbonne ed aveva superatole lunge traversie della sua vita.

Il titolo della quaestio, che è la n. 13 nell’edizione Maranesi, è ilseguente: Queritur an sufragia vivorum vel indulgentie papales prosint

spiritibus defunctorum.

26. RAYMOND DE PEÑAFORT nella sua Summa, lib. III, tit. XXXIV, ed.Vaticana, p. 456.

27. PETRI IOHANNIS OLIVI Quaestiones de novissimis. Ex Summa super IVSententiarum, curavit et edidit Petrus Maranesi, Ad Claras Aquas, Grottaferrata(Roma), 2004.

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E’ chiaro che il tema qui affrontato tocca solo metà del percorsodella communio sanctorum, cioè la forza di intercessione dei vivi per idefunti, senza fare accenno alla forza dei meriti dei santi in favore deiviventi. Ciò nonostante si tratta di una delle più chiare esposizionidella dottrina sulla communio sanctorum alla fine del XIII secolo.

La quaestio presenta anzitutto i 7 argomenti in contrario, secondoi quali le preghiere dei vivi e le indulgenze dei papi non possonoessere di giovamento ai defunti. Questi argomenti sono i seguenti:

“Primo perché, per la stessa ragione per la quale gli spiriti dei defuntinon possono più acquisire meriti per loro stessi, anche altri nonpossono acquisire meriti per loro. O, al contrario, se altri possonoacquisire meriti per loro, appare più ragionevole che essi stessipossano acquistar meriti per loro.Secondo, perché la potestà del prelato non si estende se non aisuoi sudditi, ovvero a quelli che sono sotto la sua gerarchia. Ma glispiriti dei defunti sono al di fuori dello stato di ogni nostra gerarchiaecclesiastica e non sono soggetti alla potestà dei pontefici di questavita, perciò nessuna autorità di questi si estende fino a quelli.Terzo, perché quegli spiriti non sono suscettibili ai nostrisacramenti, la potestà ecclesiastica d’altra parte opera attraverso isacramenti e attraverso il merito di Cristo che si manifesta neglistessi sacramenti.Quarto, perché non si deve porre nulla nell’ordine divino che dis-solva in tutto o in parte l’ordine della giustizia di Dio e degli statisolennemente ordinati da Dio; ma, se attraverso i suffragi dei vivie le indulgenze dei papi possono essere rimesse in tutto o in partele pene soddisfattorie o purgatorie, allora si toglierebbe del tutto oin parte la giustizia della dovuta soddisfazione e lo stato disoddisfazione.Quinto, poiché, se in tal modo si potrà rimettere tutta la pena aquelli, per la stessa ragione si potrà rimettere tutta la pena, con glistessi modi, ai penitenti in questa vita; il ché sarebbe un evidenteincentivo al peccato, e sarebbe gravemente nocivo per la fruttuosadisciplina e penitenza e l’acquisizione dei meriti.Sesto, perché i nostri meriti appena sono sufficienti a noi e tutte lenostre opere buone sono sufficienti e saranno ricompensate a noi

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nella gloria, non sembra possibile che oltre a ciò possano aiutarealtri ed essere date ad altri, e se fosse possibile che al di là dellecose, che sono totalmente mie e totalmente mi sarannoricompensate, esse possano essere comunicate ad un altro, alloraper la stessa ragione potrebbero essere comunicate ad infinitepersone, secondo quel principio per il quale diciamo che se il cor-po potesse essere in due luoghi allora per questa ragione potrebbeessere in infiniti luoghi.Settimo, perché, o i nostri suffragi varranno di più per i miglioritra loro, oppure varranno per quelli per i quali noi lo desideriamo,anche se sono meno buoni: se varranno per i migliori allora saràfrustrata la nostra intenzione e invano noi la applichiamo ad alcunidi loro; se invece varranno per i meno buoni, per i quali più lodesideriamo, allora sarebbe confuso l’ordine della giustizia e dellagrazia di Dio, secondo il quale i benefici maggiori vanno spesi eprocurati per quelli che sono più degni e migliori.”28

28. «Primo, quia qua ratione spiritus defunctorum non possunt sibi ipsis de novomereri, videtur quod nec alii possunt eis mereri. Aut e contra, si alii possunt eismereri, rationabilius videtur quod ipsi debeant posse sibi ipsis mereri. Secundo,quia potestas prelati non se extendit nisi ad suos subditos, nec nisi ad eos qui suntin statu sue ierarchie. Sed spiritus defunctorum sunt extra statum totius nostreecclesiastice ierarchie, nec sunt subditi potestati pontifìcum huius vite, ergo nullapotestas istorum se extendit ad illos. Tertio, quia spiritus illi non sunt susceptibilessacramentorum nostrorum, potestas autem ecclesiastica operatur per intermediasacramenta et per meritum Christi ut eisdem sacramentis assistit. Quarto, quianichil est in ordine divino ponendum quod totaliter vel partialiter dissolvit ordinemiusticie Dei et statuum solempniter ordinatorum a Deo; sed si per vivorum suffragiaet per papales indulgentias possunt pene purgatorie aut satisfactorie in toto vel inparte remitti, tunc iusticia debite satisfactionis et status satisfactorii tollerenturtotaliter vel in parte. Quinto, quia qua ratione posset illis per hos modos tota penaremitti, eadem ratione et multo maiori posset per eosdem modos tota remittipenitentibus huius vite; quod utique esset incentivum peccandi, et fructuose disci-pline et penitentie et meritorum acquisitioni valde nocivum. Sexto, quia cum nostramerita vix nobis suffìciant et omnia nostra bona opera suffìcient et remunerenturnobis in gloria, non videtur quod ultra hoc possint alios adiuvare aut aliis dari; etqua ratione, preter hoc quod sunt totaliter mea in me totaliter remuneranda, possuntalteri communicari, eadem ratione possunt et infìnitis, iuxta quod et dicimus quodqua ratione corpus posset esse in duobus locis eadem ratione et in infìnitis. Septimo,quia aut suffragia nostra plus valebunt melioribus eorum, aut illis pro quibus magis

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Nella risposta Olivi consente di spiegare il legame della dottrina dellacommunio sanctorum con quella relativa al purgatorio. Dice infatti:

[Rispondo] dicendo che la solenne professione [di fede] di tutta lachiesa cattolica ritiene con certezza che le cose predette possonogiovare agli spiriti buoni dei defunti non ancora beati, ma non aglispiriti dei dannati o dei beati.29

E qui riprende la dottrina classica già esposta da Pietro Lombardo:Di certo non quelli dei dannati, sia perché sono separati da ogni vincoloe comunione dei santi e di carità e di grazia eternamente edirrevocabilmente; sia perché per la stessa ragione per la quale i suffragiecclesiastici otterrebbero loro la remissione di una certa pena, per lastessa ragione potrebbe essere rimessa una pena maggiore, dal chederiverebbe che tutta la loro pena potrebbe essere del tutto rimessa, ilché è contro la giustizia e l’immutabile sentenza del giudizio che Dioha dato su di loro. Ma nemmeno quelli dei beati, perché essi nonhanno bisogno del nostro aiuto, anzi siamo noi piuttosto ad averbisogno del loro aiuto, e la loro gerarchia è nei confronti della nostracome una [gerarchia] superiore ad una inferiore e una madre verso lafiglia e una beata verso una misera, e come un’avvocata e una mediatriceper i rei o per i miseri che hanno bisogno di intercessori. E tuttavia, inquanto tutti i meriti degli inferiori ritornano in gloria dei superiori edei beati, si può dire bene che la loro gloria cresca per i meriti deifedeli in questa vita.Agli spiriti dei defunti che si stanno purificando invece [tutte questecose] giovano e possono giovare, sia perché c’è il vincolo e lacomunione di grazia e di carità tra loro e i santi in questa vita; siaperché sono bisognosi d’aiuto e, attraverso la carità che attraverso

intendimus quamvis minus bonis: si plus melioribus, ergo frustratur intentio nostraet frustra eam alicui eorum appropriamus; si vero minus bonis, pro quibus magisintendimus, tunc confunditur ordo iustitie et gratie Dei, secundum quemdignioribus et melioribus sunt malora beneficia impendenda et procurando.»,PETRI IOHANNIS OLIVI, Quaestiones de novissimis ex Summa super IVSententiarum, ed. P. Maranesi, Grottaferrata, 2004, p. 183-184.

29. «[II. Respondeo] Dicendum quod sollempnis professio totius ecclesie catholicecertudinaliter tenet bonos spiritus defunctorum nondum beatos per predicta iuvari,non autem spiritus dampnatorum nec beatorum». Ibid. p. 184.

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i buoni meriti, che ebbero mentre vivevano qui, non solo possonoricevere aiuti superiori e caritatevoli, ma anche sono degni di essereaiutati sia dai santi di questa vita che dai beati.30

E’ proprio perché la dottrina della communio sanctorum si riferisce inparticolare alla speciale relazione di grazia che lega i fedeli viventi ai fedelidefunti non ancora beati31 , che la formalizzazione di tale dottrina nonappare prima del XIII secolo inoltrato quando ormai l’idea del purgatorio

30. «Dampnatorum quidem non: tum quia ab omni nexu et communionesanctorum et caritatis et gratie sunt etemaliter et irrevocabiliter separati; tum quiaqua ratione posset per ecclesiastica suffragia eis tanta pena remitti, eadem rationeposset per ampliora amplior remitti aut saltem tantumdem; ex quo sequereturquod tota eorum pena posset omnino remicti, quod est contra iustitiam etimmobilem sententiam iudicii Dei super eos dati. Beatorum etiam non, quia nostrosubsidio non egent, ymmo potius nos egemus subsidio eomm, eommque ierarchiaomnino se habet ad nostram tamquam supprema ad infìmam et mater ad fìliam etbeata ad miseram et tamquam advocatrix et mediatrix ad reos vel inopesintercessionibus indigentes. Attamen pro quanto merita omnia inferiorumredundant in gloriam superiorum et beatorum, bene potest dici eorum gloriamaccrescere ex meritis fìdelium huius vite. Spiritibus autem defunctorum purgandisprosunt et prodesse possunt, tum quia nexus et communio gratie et caritatis estinter eos et sanctos huius vite; tum quia auxilio egent, et per caritatem et per bonamerita, que dum hic viverent habuerunt, non solum sunt susceptibiles superni etcaritativi subsidii sed etiam sunt digni et promeriti adiuvari tam a sanctis huiusvite quam a beatis.» Ibid.

31. Olivi riprende qui la dottrina classica ed in particolare, quasi alla lettera, leparole di Bonaventura nel Breviloquium, VII, 3: «De suffragiis autem ecclesiasticishoc tenendum est quod suffragia ecclesiae prosunt mortuis suffragia dico quaeecclesia pro mortuis facit sicut sunt sacrificia ieiunia eleemosynae et aliae orationeset poenae voluntarie assumtae pro eorum culpis celerius et facilius expiandis. Prosuntautem mortuis non quibuscumque sed mediocriter bonis utpote illis qui sunt inpurgatorio non valde malis scilicet illis qui sunt in inferno nec valde bonis scilicethis qui sunt in caelo quin potius e converso eorum merita et orationes suffraganturecclesiae militanti cuius membris multa beneficia impetrant beati. Prosunt autemsecundum magis et minus vel pro diversitate meritorum in mortuis vel pro caritatevivorum quae magis sollicitatur pro aliquibus quam pro aliis et hoc vel ad poenarummitigationem vel celeriorem liberationem secundum quod supernae providentiaedispensatio melius eis viderit expedire».

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come luogo separato dell’al di là era ormai consolidata nell’immaginariocollettivo e nella cultura teologica dei maestri32 .

In particolare gli argomenti in contrario proposti nella quaestio

sembrano centrarsi attorno a due ordini di problemi: il primo riguardala giustizia divina perché la pratica delle indulgenze potrebbe indurread un rilassamento della penitenza, nella speranza di poter acquisirela grazia a poco prezzo, il secondo problema riguarda la giustizia umanaperché l’applicazione delle indulgenze per la salvezza di altri potrebbeledere il principio fondamentale della responsabilità personale in baseal quale ognuno deve rispondere davanti a Dio delle azioni e delleomissioni da lui compiute.

Le risposte di Olivi sono quanto mai pertinenti. Egli infatti nonsi nasconde il rischio di un rilassamento e dice:

Al quinto [argomento in contrario, rispondo] dicendo che perottenere le indulgenze papali bisogna osservare soprattutto duecose. La prima è che colui che riceverà o che godrà dell’indulgenzal’accolga con reverenza ed in modo degno, infatti se si accosta adesse [le indulgenze] con un proposito di una vita più rilassata econ disprezzo o rifiuto della penitenza e della disciplina forte emedicinale, allora non solo per ciò stesso è privato dal dono e dalfrutto di esse, ma pecca gravemente e forse in maniera mortale. Equindi accade, se si pensa di averle ad un modico prezzo o conpoca fatica, considerandole quasi cose vili e venali, e si da o ci sisforza per esse poco, così che si sia mossi più dal basso prezzo chedalla grazia di Dio e dalla stima piena di venerazione e devozioneper esse e per essi. [Accade qualcosa di ] simile nel ricevere il corpodi Cristo o gli ordini sacri, per prendere i quali ognuno è tenutoad avere, oltre le prime purificazioni da ogni peccato mortale a sénoto o che si può conoscere in modo conveniente, anche unareverenza nella pratica e una devozione fino ad una certa misuracongrua e degna, proporzionata allo stato che si va a ricevere.

32. Il Riferimento obbligato è al classico J. Le Goff, La naissance du pourgoitoire,Paris, 1981.

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La seconda cosa [da osservare] è che nel dono di esseverosimilmente ci sia e si manifesti un certo onore di Dio e del suoculto; mentre il contrario di ciò è quando verosimilmente dal lorodono sembra derivare nella Chiesa un rilassamento della disciplinacomune e una diminuzione della devozione verso Dio; in cui infatti èda temere grandemente che non solo non si ottenga nessun frutto diindulgenza, ma che anzi tanto chi dà quanto chi prende [taliindulgenze] non incorra(no) in un peccato mortale.33

La conclusione in ogni caso è che la giustizia divina non è messain causa dalle indulgenze, perché

Dove tuttavia la devozione della fede e del culto divino e del meritodi Cristo e l’onore verso le sue misericordie ricompensa potente-mente e sufficientemente la giustizia ed il rigore della nostrapenitenza soddisfattoria, allora non si lede l’ordine della giustizia,né con tale forma di dono si incentiva il peccato (se non forsecasualmente in qualche caso particolare) quando piuttosto si dàmotivo per credere e sperare di più in Dio e per amarlo, adorarlo elodarlo più intimamente e soavemente e per stimare e venerare di

33. «Ad quintum dicendum quod indulgentiis papalibus obtinendis duo suntprecipue attendenda. Primum est, ut susceptor seu obtentor indulgentie reverenteret digne suscipiat eas, nam si ex proposito laxationis seu vite laxioris et cumcontemptu seu neglectu virtualis et medicinalis penitentie et discipline accedat adeas, non solum eo ipso privatur dono et fructu earum, ymmo peccat graviter etforte mortaliter. Et inde contingit, si quasi viles et venales eas pro modico preciovel labore se habere estimans, dat pro eis modicum vel laborat, ita quod potiusmovetur ab hac vilitate precii quam ex gratia Dei et reverenda estimatione etdevotione earum et eorum. Simile est in suscipientibus corpus Christi aut ordinessacros in quorum susceptione preter primas emundationes ab omni peccato mortalisibi noto aut competenter cognoscibili, tenetur quis habere actualem reverentiamet devotionem usque ad aliquam mensuram congruam et condignam statuisuscipientis proportionatam. Secundum est, ut in earum donatione probabiliteradsit et pateat aliqua honorifìcentia Dei et sui cultus; cuius contrarium est quandoex eius donatione probabiliter apparet sequi in ecclesia communis laxatio discipli-ne et remissio devotionis in Deum; in quo enim est valde pertimiscendum, ne nonsolum nullus fructus indulgentie impetretur, ymmo etiam tam dans quam suscipiensreatum mortis eteme incurrant.» Ibid. p. 186.

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più il merito di Cristo e dei suoi santi e per sentire con molta piùumiltà i propri meriti ed avere una percezione molto meno elevatadi essi.34

D’altra parte anche l’applicazione dei suffragi alla salvezza di altrinon lede il principio della responsabilità personale, perché

… le nostre opere buone possono essere considerate in un duplicemodo: uno, rispetto alla loro bontà formale e alla radice interna dicarità dalla quale sgorgano; due, rispetto al debito di talune peneche esse sciolgono e per il quale esse sono fatte e sono offerte.Secondo il primo modo esse non giovano a nessuno, se non acolui che le compie, e perciò nessuno può formalmente divenirebuono o più santo o più degno della vita eterna per i meriti diqualcun altro, se non in ragione di un’abitudine formale o di unformale modo di avere, e si intende un modo giurisdizionale diavere il merito di Cristo, che si ha per una speciale comunicazionedai suoi membri. Ma è proprio in questo modo che [le opere buone]possono giovare ad altri oggettivamente o per via di intercessione,come infatti la luce del sole virtualmente si diffonde negli altri,benché formalmente non sia in nessun altro se non nel sole; così labontà formale dei santi si effonde efficacemente negli altri, benchéformalmente giovi a loro soli. Secondo il secondo modo, non sipuò sciogliere il debito superando il suo prezzo, né sciogliere alcunaltro debito, ma solo quello per il quale [le buone opere] sonofatte. E in questo modo, se un vivente adempie per un defuntoun’opera che doveva adempiere quello, con ciò egli non è per nullaassolto da quella pena che da vivo meritava per se stesso, se nonsoltanto in quanto (secondo il primo modo di vedere [le operebuone]) diviene grazie a tale opera formalmente migliore e a Diopiù accetto.

34. «Ubi tamen devotio fìdei et divini cultus ac meriti Christi et misericordiarumeius honorifìcentia prevalenter ac suffìcienter recompensat nostre satisfactoriepenitentie iustitiam et rigorem, tunc non leditur ordo iustitie, nec ex tali formadandi datur incentivum peccati, nisi forte per accidens et in particulari, quandopotius datur ratio amplius credendi et sperandi in Deum et in ipsum viscerosius acsuavius diligendi ac colendi et collaudandi et Christi ac sanctorum suorum meritumamplius estimandi et venerandi et de propriis meritis humilius sentiendi ac de eislonge minus presumendi». Ibid. p. 187.

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L’argomentazione di Pietro di Giovanni Olivi è tutta centrata sulprimato della carità sulla giustizia e quindi del perdono sulla punizione.La sanctorum communio si presenta quindi come modello della comunitàcristiana ed anzi, in qualche modo, ne rappresenta per così dire l’essenza:i rapporti vicendevoli che legano tra loro i diversi membri della chiesasono tali da superare anche la divisione rappresentata dalla morte.

Cosa può aver spinto il maestro provenzale ad accentuare cosìl’importanza dei suffragi e delle indulgenze? Certamente, come avevaosservato Capitani, la consapevolezza di trovarsi al momento finaledella storia, un momento segnato dalla lotta decisiva tra il bene e ilmale e quindi particolarmente bisognoso di speciali effusioni di graziaquali, appunto, le indulgenze. Ma forse anche un altro ordine diriflessioni può aver portato Olivi ad accentuare questi aspetti. Miriferisco qui alla sua riflessione sulla realtà economica del suo tempo.Tutto il vocabolario delle indulgenze è infatti un vocabolario trattodal linguaggio economico: mereor significa meritare, ma ancheguadagnare e dunque il meritum è il guadagno; e, d’altra partesatisfacere vuol dire soddisfare, pagare un debito, per cui l’espressionechiave meritum satisfactorium può essere interpretata come “unguadagno che salda un debito”.

La teologia delle indulgenze è teologia economica35 . Lo stessoBonaventura aveva ampiamente utilizzato il lessico economico perspiegare la sua teoria della communio sanctorum, non esitando apresentare Dio più avido di un usuraio che rivuole indietro il suodenaro ed il papa come un investitore che, avendo preso in prestitouna somma, è tenuto a restituirla non appena è in grado di farlo.36

35. Vedi anche “Misericorditer relaxamus”. Le indulgenze tra teoria e prassi delDuecento, a cura di L. Pellegrini e R. Paciocco, in “Studi medievali e moderni”, III/1 (1999).

36. «Item, hoc videtur per simile in humanis actibus. Videmus enim, quod sic estin actibus, quos si aliquis est alicui debitor, non refert apud creditorem, utrumipse, vel alius solvat, immo pro eodem utrumque acceptat: si ergo multo benignior

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I lavori di Chiffoleau e di Todeschini, tra gli altri, hanno mostratobene come nel XIII secolo non si avvertisse una netta distinzione dipiani tra economia di mercato ed economia spirituale37 . Beni materialie beni celesti si potevano interscambiare in un mercato di cui i conventidei frati mendicanti erano uno degli snodi più importanti. Tutta lariflessione portata avanti in particolare dai teologi francescani (ed Oliviha qui un ruolo molto rilevante) è segnata dalla riflessione sulla liceitàdel guadagno. La distinzione che viene proposta è quella tra il mer-cante, che utilmente mette la sua arte al servizio della collettività, perfornire beni altrimenti irreperibili e per accrescere il bene comune, el’usuraio che invece interpreta la propria ricchezza soltanto comeaccumulazione improduttiva di beni. In tal senso è lecito solo quelguadagno (meritum) che, una volta soddisfatti i bisogni legati alnecessarium si ridistribuisce a tutti i poveri cui nel piano divino eraequamente attribuito.

Olivi arriva fino al punto di presentare il mercato come il modellodella società cristiana, perché esso, nella sua lettura, diviene il luogodello scambio virtuoso dei beni per il benessere di tutti. Come haaffermato Todeschini: « Il mercato, lo scambio, il commercio sono

est Deus et avidior ad percipiendam solutionem quam homo terrenus; videturquod ipse sit contentus et sibi sufficiat, si alius satisfaciat pro eo.» S.BONAVENTURAE Opera theologica selecta, t. III: Liber IV Sententiarum, dist.20, p. 2, a. 1, q.1; « Item, qui promittit aliquantam summam pecuniae alicuitenetur ei, si est in solvendo; sed Summus Pontifex et alii, qui dant indulgentias,promittunt aliquam partem poenitentiae relaxare: ergo si potest, solvere tenetur.Quod autem possit, videtur per illud quod dicitur secundae ad Conrinthos secun-do: Si quid donavi in persona Christi; Glossa: “Ac si Christus donasset”; sed Christuspotuit totum condonare, ergo, ecc.» lib. IV, dist. 20, p. 2, a. 1, q. 6.

37. JACQUES CHIFFOLEAU, La comptabilité de l’au-delà, les hommes, la mortet la religion dans la ragion d’Avignon à la fin du Moyen Age, Rome, 1980; Id.,Conclusione, in L’economia dei conventi dei frati minori e predicatori fino allametà del Trecento, SISF 31, Spoleto, 2004, pp. 405-448.

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descritti da Olivi come realtà totalmente sociali o, meglio, come ilmodo che i laici hanno a disposizione per contribuire secondo le loropossibilità alla costruzione di una società cristiana”.38 Nel suo trattatoSulle compere e sulle vendite, rispondendo alla domanda Se chi compra

una cosa qualunque per rivenderla a un prezzo maggiorato, senza averla

trasformata né migliorata, come di solito fanno i mercanti, pecchi ciò

facendo mortalmente o almeno venialmente, sostiene al contrario gliindiscutibili vantaggi e cose necessarie che provengono alla comunità

dalle azioni e dal mestiere del mercante e, insieme a ciò, dal peso delle

fatiche, dai rischi, spese, industrie e dalle attenzioni sollecite e insonni

che tale ufficio esige. Si sa infatti che molte cose mancano in una città o

territorio, le quali invece abbondano in un altro. Coloro però che sono

occupati nell’agricoltura e negli altri lavori manuali, oppure nel pubblico

governo del paese o nell’esercito, non possono comodamente e agevolmente

recarsi in regioni lontane per comprare e riportare in patria le cose di cui

hanno bisogno. Pochi possiedono infatti industria e perizia adatte a ciò.

Quindi è conveniente alla comunità che a questo compito vengano

deputati alcuni individui a ciò adatti, e ai quali certamente spetta una

qualche ricompensa poiché, secondo l’Apostolo ‘nessuno mai milita a sue

spese’ (I Cor IX,7) e difficilmente si troverebbe chi senza guadagno volesse

impegnarsi in questa opera”.39

Il legame tra tutto questo e la dottrina della communio sanctorum

appare evidente. L’ipotesi è che i due modelli economici, quello ce-leste (la comunione dei santi) e quello terreno (il mercato della cittàcristiana) siano tra loro speculari. Difficile dire quale dei due modellisia all’origine dell’altro, e cioè se, nel pensiero di Olivi e degli altri

38. G. TODESCHINI, ricchezza francescana, p. 117.

39. Cfr. PIETRO DI GIOVANNI OLIVI, Usure, Compere e Vendite. La scienzaeconomica del XIII secolo, a cura di A. Spicciani, P. Vian e G. Andenna, Milano,1990, p. 90-91.

PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO...

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maestri che lo seguiranno, l’economia celeste preceda o segua quellaterrena.

In questo senso la critica alle indulgenze di Martin Lutero, che,all’inizio del XVI secolo, stigmatizza tra l’altro il legame tra concessionedella indulgenza e offerta pecuniaria da parte del fedele40 , coglieràun aspetto sostanziale della dottrina della communio sanctorum cosìcome si era andata elaborando da alcuni secoli. La riflessione e lapratica economica dei francescani a partire dalla fine del XIII secolosi è sviluppata infatti dai presupposti che si è cercato di enucleare. Inparticolare sarà l’Osservanza, con la riflessione economica diBernardino da Siena, come è noto, a riprendere in profondità le tesidi Pietro di Giovanni Olivi.

Si può infine solo accennare al fatto che, proprio dalla prassipastorale dei frati dell’Osservanza nasceranno i primi Monti di Pietà,che non sono altro che la messa in pratica delle dottrine economicheda tempo messe a punto dai teologi mendicanti. Il “monte” infatti”non è altro che il luogo fisico in cui vengono raccolti i guadagni (imeriti) acquisiti in sovrappiù per essere poi equamente ridistribuitisecondo il bisogno di ciascuno41 . Il parallelo con l’idea del tesoro dei

meriti da cui la chiesa provvidenzialmente trae le grazie da distribuirea ciascuno attraverso le indulgenze, appare suggestivo. Si tratta di unfilone di ricerca che potrebbe dare risultati inaspettati.

40. Cfr. MARTINI LUTHERI Disputatio pro Declaratione Virtutis Indulgentiarum(95 Theses): «XXVII. Hominem predicant, qui statim ut iactus nummus in cistamtinnierit evolare dicunt animam. XXVIII. Certum est, nummo in cistam tinnienteaugeri questum et avariciam posse: suffragium autem ecclesie est in arbitrio Deisolius.» cfr. PAOLO RICCA – Giorgio Tourn, Le 95 tesi di Lutero, Torino, 1998.

41. Cfr. MARIA GIUSEPPINA MUZZARELLI, Il denaro e la salvezza. L’invenzionedel Monte di Pietà, Bologna, 2001.

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PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LALIBERTÀ DELLA VOLONTÀ, TRA

METAFISICA E FILOSOFIA POLITICA

Luca Parisoli

(Università della Calabria, Italia; e-mail [email protected])

La natura empirica non determina la volontà e la nostra personacon una preferenza per questo o quello, e neppure

questa cosa empirica ci determina di più di quell’altra

Unde per naturam non determinatur voluntas nostranec persona nostra plus ad hoc quam ad illud nec ipsa

re de vi naturae plus ad hunc quam ad illum

Olivi, Quaestiones de perfectione evangelica 8,An statu altissime paupertatis sit simpliciter melior

omni statu divitiarum, ed. Schlageter 1989, R. II., 125

Introduzione

Vorrei cercare di mostrare il ruolo assunto da Olivi nel percorsoche porta a fare emergere un concetto cruciale per la storia della cul-tura dell’Occidente latino1 , quel concetto di diritto soggettivo2 chesi dipana grazie ad una difesa strenua della libertà della volontà comeproprietà essenzialissima della persona (e Olivi gioca un ruolo deter-minante su questo punto) sino alle libertà costituzionali, ed a una

1. Il materiale di questo articolo è una rielaborazione di mie ricerche precedentiche ho rivisto e aggiornato per l’occasione. Mentre invio questo testo, mia moglieAntonella attende di partorire la nostra secondogenita, che vogliamo battezzarecome Rita: a loro due, e al piccolo Francesco-Flavio, dedico queste pagine, perchésenza la loro comprensione non avrei potuto mai elaborarlo.

2. Cf. A.S. BRETT. Liberty, Right and Nature. Cambridge, 1997.

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nuova maniera di pensare la presenza di un Ordine religioso, quellofrancescano, all’interno delle regole del mondo, tanto che l’identitàfrancescana modella una nuova concezione del diritto (e su questopunto Olivi rappresenta una corrente minoritaria nell’Ordine per ilsuo nominalismo giuridico, che si esplicita senza esitazioni sulla naturastessa del diritto naturale3 ). Come ho già sostenuto in passato, l’ideadi diritto soggettivo è stata sviluppata all’interno di una filosofiavolontarista e delle dispute sull’identità del frate minore nel mondosociale che lo circonda e in cui si muove4 .

Olivi non ha la posizione normativista di Scoto oppure diOckham, a loro volta divisi da teorie ontologiche assolutamentealternative: mentre questi ultimi due condividono la tesi di un usodelle cose prive di ogni diritto (purché l’utilizzatore, il frate minore,non voglia avere alcun diritto), Olivi vede un che di ipocrita in questoatteggiamento e preferisce elaborare una teoria dell’usus pauper che si

3. Pietro di Giovanni OLIVI, Quaestiones in secundum librum Sententiarum, edite acura di Bernard Jansen, Quaracchi 1922-26, I-III, q. 82, III, pp. 174-178: la leggenaturale non è concreata né all’intelletto, né alla volontà, quindi dipende da essi:Olivi distingue i significati della legge naturale, e in ogni variante indipendentedalla nostra mente ne deduce che la norma non aggiunge nulla a ciò che esiste,“nihil reale addunt super actus et habitus mentis”. Al contrario, in quanto passionenaturale, per esempio, la legge naturale è reale, ma non è una norma. Nel sensoinvece per cui la legge naturale è la volontà di Dio, e la norma recita che siamotenuti a conformarci ad essa, allora la norma è reale, tesi ribadita nel Quid ponatius, vel dominium, che peraltro riafferma la natura nominale del diritto umano.Insomma, rispetto al diritto Olivi non è un nominalista ingenuo, bensì analitico eben preciso nelle sue posizioni.

4. Cf. P. A. FOLGADO. «La controversia sobre la pobreza franciscana bajo el ponti-ficado de Juan XXII y el concepto del derecho subjetivo», La Ciudad de Dios, 172(1959) pp. 73-133; G. TARELLO. Profili giuridici della questione della povertà nelfrancescanesimo prima di Ockham. Milano, 1964; P. GROSSI. “Usus facti” (1972), in:P. Grossi. Il dominio e le cose. Milano, 1992; L. PARISOLI. Volontarismo e dirittosoggettivo. Roma, 1999, con una lunga prefazione di Andrea Padovani estremamentearticolata e puntuale.

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focalizza sulla fenomenologia dell’uso da parte del frate minorepiuttosto che sulla struttura normativa di tale uso5 . E’ chiaro che daun punto di vista spirituale, o meramente psicologico, l’atteggiamentodi Olivi sembra andare all’essenziale, tuttavia la sua posizione mina lacertezza del diritto per un osservatore giuridico della Regola, datoche la violazione della Regola produce un peccato mortale e se lateoria dell’usus pauper è valida, allora non si è certi a priori quando laRegola sarà violata. L’usus pauper, infatti, si accerta completamentesolo a posteriori, trattandosi di una importante variabile psicologica.Ma Olivi non era imbarazzato da questa conseguenza, poiché simuoveva a un livello mistico ben più che giuridico (e del resto, inquanto nominalista giuridico, il diritto e le norme non erano unarealtà indipendente dalle decisioni umane, quindi meramenteconvenzionale): i suoi critici erano invece realisti per quanto riguardale norme (lo stesso Ockham, nominalista logico, è invece realista sullenorme, dato che l’onnipotenza divina è per lui certissima, e quindisono certissime le norme reali che la volontà di Dio pone), e simuovono su un altro livello di discorso. La divergenza, quindi, partedall’atteggiamento stesso sulla realtà o convenzionalità delle norme:per Scoto o Ockham le norme sono una guida per il Cielo, per Olivinon possono esserlo perché non sono reali e invece convenzionali,mentre reali sono gli esiti della volizioni della persona umana, e su diesse sarà giudicata.

La seconda metà del XIV secolo ha conosciuto un autore comeJean Gerson, e dopo di lui Conrad Summenhart, che hanno difeso ildiritto soggettivo, ma non hanno sviluppato una teoria delle libertàpolitiche6 . Questo richiede l’applicazione del diritto soggettivo al

5. D. BURR. Olivi and Franciscan poverty: the origins of the usus pauper controversy.Philadelphia, 1989.

6. A.S. BRETT. Liberty, Right and Nature. pp. 86-87.

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dominio pubblico, un claim che il cittadino rivendica contro il go-verno: occorre disporre, affinché questa idea non sia meramenterivelata da una lotta politica di fatto (come è il caso della Magna

Charta del 1215, che è un fatto politico, non già una teoria), di unateoria che lega la libertà di ciascuno con la fonte della legittimità delpotere. Né Marsilio da Padova7 , né Enrico di Gand8 producono untale manufatto filosofico che resta una primizia della scuolafrancescana9 .

L’indagine non può prescindere dalla teoria oliviana del liberoarbitrio proprio perché lo scopo è una teoria generale del diritto edelle norme dei diritti: i francescani hanno influenzato l’evoluzionedella cultura anche per altre vie più ‘fattuali’, come ho cercato dimostrare nel mio articolo sul trust in Inghilterra10 . Il caso di Olivi èparticolare, dato che è un nominalista giuridico: la ricchezza di analisieconomiche che egli sviluppa, situazioni concrete e reali di personenella loro dimensione sociale, non rinvia alla stessa ricchezza neldominio giuridico, che è in senso ontologico irreale. La nascente teo-ria economica, che deve moltissimo a Olivi, come ha mostrato

7. Ibidem, pp. 63-64, nota 43.

8. Lo sforzo prodotto da R. MACKEN. «Henry of Ghent as Defender of the PersonalRights of Man», Franz. Studien, 73 (1991) pp. 170-181, è una dimostrazione delladebolezza della ricerca di una teoria dei diritti individuali in Enrico di Gand. Restail fatto che i suoi scritti sviluppano una attenzione per le fattispecie della vita socialee politica, che mi pare però più ancorata alla teoria orizzontale del potere che nonalla nuova realtà urbana che pure descrive e alla teoria gerarchica del volontarismofrancescano (cf. la voce di F. LAJARD. Henri de Gand, in: Histoire littéraire de laFrance. Paris, 1895, vol. XX, pp. 197-199).

9. Sul primato della scuola francescana intorno all’idea di libertà, cf. O. LOTTIN.«Le concept de liberté chez les Maîtres franciscains du XIIIe siècle», Lumières d’Assise,3 (1948) pp. 52-65.

10. L. PARISOLI. «Théorie et pratique de la pauvreté: les frères mineurs au RoyaumeUni», in Antonianum, 78 (2003) pp. 627-650.

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Todeschini, diventa una vera e propria economia politica quando siassocia alla sua metafisica, in particolare lo strumento fenomenologicodel l’usus pauper legato alla perfezione evangelica e alle possibilità diun’antropologia umana incontaminata.

Non voglio sostenere che vi sia un legame necessario tra metafisicavolontarista e teoria dei diritti politici individuali11 , tanto più chequest’ultima teoria si è sviluppata in età Moderna indipendentementeda una metafisica volontarista nel senso francescano (anzi, con laModernità la stessa nozione di volontà è radicalmente mutata, daCartesio in poi). Mi pare che Olivi produca una teoria della libertàche fonda la persona stessa e la sua libertà, attraverso una volontà cheè causa a sé stessa12 , e con questo la sua metafisica produce una nuovateoria politica di tipo costituzionale.

I. Precisazioni concettuali, dal diritto soggettivo alle libertàcostituzionali

Posso dire che quando avanzo la tesi che la scuola francescana haintrodotto l’idea di diritto soggettivo voglio affermare che nella scuolafrancescana troviamo:

1) l’idea che esiste un diritto che non fonda il suo titolo legittimograzie all’appello ad un ordine naturale delle cose e che non è quindiinvocabile dalla parte giudice a prescindere da una ben determinatadomanda delle parti (ossia l’idea di un diritto non-oggettivo accanto

11. C. ZUCKERMAN. «The Relationship of Theories of Universals to Theories ofChurch Goverment in the Middle Ages: A Critique of Previous Views», Journal ofthe History of Ideas, 36 (1975) pp. 579-592.

12. Cf. F.X. PUTALLAZ. Figures franciscaines à la fin du XIIIe siècle. Paris, 1997; R.R.EFFLER. John Duns Scotus and the Principle “Omne quod movetur ab alio movetur”.Nova York, 1962.

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a quello oggettivo che fonda tutto il sistema giurdico secondo SanTommaso)13 ;

2) l’idea che questo diritto è costituito (e non più semplicementedichiarato) da una volontà, che può essere sia quella di Dio, sia quelladel legislatore, sia quella di coloro che partecipano al contratto;

3) l’idea che questo diritto, essendo legittimato solo dalla volontàcompetente, è tale per cui di volta in volta l’autorità competente puòrinunciare a far valere il suo diritto: Dio può rinunciare ad applicareuna legge che lui stesso aveva stabilito (una specie di misericordianormativa); il legislatore può porre la deroga ad una legge; la partelesa può rinunciare ad agire in giustizia contro la parte che gli haprocurato un danno.

In questo senso l’elemento teorico che caratterizza gli autori dellascuola francescana è il primato della volontà. E’ questo primato chediventa un vero e proprio postulato metafisico presso Scoto14 e che,associato alla diffidenza verso le nuove posizioni aristoteliche15 , riesce

13. A volte si è cercato di dimostrare che San Tommaso utilizza la nozione didiritto soggettivo (cf. J.M. AUBERT. Le droit romain dans l’oeuvre de Saint Thomas.Paris, 1955, p. 91, con il rinvio a H. HERING. De iure subjective sumpto apud S.Thomas, in: Angelicum 12 (1935) pp. 295-297), ma il fatto che vi siano delleespressioni in San Tommaso che fanno l’equivalenza tra ius e potere (e la cosa nonè per nulla evidente, cf. A. FOLGADO, La controversia sobre la pobreza franciscana)non significa per nulla che esista una teoria del diritto soggettivo tommasiana,come del resto Aubert confessa candidamente: “lorsque S. Thomas parle de ‘ius’,sans aucune spécification, ou de façon officielle, il l’entend alors au sens objectif ”(loc.cit., nota 2, in fine).

14. Cf. John DUNS SCOTUS. Contingency and Freedom. Lectura I 39. Dordrecht1994 (testo latino, traduzione inglese, commentario interlineare a cura del ResearchGroup John Duns Scotus).

15. F. D’AGOSTINO. La tradizione dell’epieikeia nel medioevo latino, Milano 1976;D. BURR, Petrus Ioannis Olivi and the Philosophers, in Franciscan Studies 9 (1971)pp. 41-71.

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a fondare una filosofia volontarista che può così riassumersi: la nor-ma (ovvero il significato d’un enunciato normativo) è un atto divolontà, e null’altro.

Il primo grande protagonista di questo percorso di sviluppo dellanozione di diritto soggettivo, era stato Olivi, anche se sin dalla Summa

fratris Alexandri troviamo elementi utili per ricostruire questo percorso:Michel Villey non si era sbagliato nella sua intuizione fondamentale16 ,anche se la forma del suo paradigma è a ragione criticata17 . L’idea (incui quasi tutti i frati minori si riconoscono) è che il diritto discendeda un atto della volontà individuale (e non formale). Tanto più che èproprio questa volontà ad assumere un ruolo chiave nella costruzionedella libertà18 come Frate Simoncioli ha illustrato molto bene. Inparticolare, egli sostiene, attribuendolo ad Olivi come maestro diGonsalvo, a sua volta maestro di Scoto, che nella tradizione francescana“la volontà è libera” è “una proposizione analitica”19 . Ma sel’affermazione della libertà della volontà è una proposizione analitica,

16. Cf. M. BASTIT, La naissance de la loi. Paris, 1990 (per la contrapposizione tra lascuola tomista e quella francescana, Idem, Les principes des choses en ontologie médiévale(Thomas d’Aquin, Scot, Occam), Bordeaux, 1997).

17. Cf. S.G. SWANSON. The Medieval Foundation of John Locke’s Theory of NaturalRights: Rights of Subsistence and the Principle of Extreme Necessity, in History of PoliticalThought, 18 (1997) pp. 399-459.

18. F. SIMONCIOLI. Il problema della libertà umana in Pietro di Giovanni Olivi ePietro di Trabibus, Milano, 1956.

19. F. SIMONCIOLI. Il problema della libertà umana, p. 53. La questione rinvia allostatuto ontologico del principio di contraddizione, che in ultima analisi non puòessere ridotto all’idea semplificatrice che “Dio non può agire contradittoriamente”,poiché è necessario specificare di quale livello ontologico stiamo predicando questoenunciato. Ho proposto una interpretazione paraconsistente del pensiero di Scotoin L. PARISOLI, La contraddizione vera, Roma 2005, che mi pare abbia mostrato cheanche la filosofia può rinunciare al principio di contraddizione, cercando di offrireun quadro logico razionale alle intuizioni della mistica cristiana, tra cui Olivi.

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allora la libertà non è una qualità contingente della volontà: dire chela volontà è libera significa definire la volontà, quindi la volontà è ildefiniendum e la libertà è il definiens.

Una cosa che si chiama “volontà” e che non è libera, ebbene questacosa non è veramente la volontà: a partire da questa idea, la nozionedi potere del legislatore segue naturalmente. Il legislatore (i.e., il Papa)deve stabilire delle norme e deve quindi avere la competenza e lalegittimità per poterlo fare (la iurisdictio): Olivi ha sempre proclamatola propria fedeltà al Papa e non solo in nome del voto di obbedienzache San Francesco, nei suoi scritti, aveva sempre sottolineato comefondamentale. Il Papa, infatti, era per Olivi il titolare del poterelegislativo e, in quanto titolare, aveva l’autorità per istituire dellenorme20 . Tuttavia, data la sua diffidenza nei confronti di Aristotele,Olivi non poteva credere che la legge fosse un atto dell’intelletto,perché la libertà è altrove, ossia nella volontà. Il Papa dunque, perOlivi, istituiva le norme per mezzo della sua volontà (necessariamen-te libera) e nessuno poteva contestare le sue decisioni quando si trattavadi decisioni prese all’interno della giurisdizione necessaria (laiurisdictio): d’altronde un potere legislativo è libero (la volontà) onon esiste affatto. Tuttavia il discorso cambia radicalmente se il Papanon può stabilire una norma perché gli manca la competenza. In

20. Si veda la Quaestiones de perfectione evangelica 11, An vovere alteri hominioboedientiam in omnibus quae non sunt contraria animae et evangelicae regulae seuperfectioni, sit perfectionis evangelicae, in: D. FLOOD, G. GÁL (a cura di). Peter ofJohn Olivi on the Bible. St. Bonaventure, NY, 1997. Olivi non ha la minimaintenzione di sminuire il valore supremo dell’obbedienza, tanto più che è unvolontarista convinto: tuttavia, esprime qui come altrove il suo spirito per cui unvero superiore non si distingue se non per la qualità della sua azione, discostandosidall’atteggiamento dominante nella Chiesa cattolica sin dall’XI secolo, quando siammise che il sacerdote indegno celebra validamente. Olivi non ammette un criterioprocedurale di determinazione del vicario di Cristo, quindi la più forte obbedienzaè del tutto compatibile con la ribellione al Papa-Anticristo (non già suo Vicario).

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questo caso infatti il problema non è nelle conseguenze delle norme,è piuttosto nel fatto che il Papa non è autorizzato ad assumersi unadecisione di questo tipo.

I nessi tra obbligatorietà della Regola e natura del voto di povertàrappresentano un punto cruciale della letteratura francescana dell’epoca,siano in esame i Commentari alla Regola oppure i testi agiografici in uncomplesso di tematiche che uniscono l’aspirazione alla perfezione spiritualealla concezione dei rapporti tra diritti degli individui. E quando un giuristacome Bartolo da Sassoferrato cerca di comporre nel suo Tractatus

minoricarum21 le aspirazioni dei francescani a “restare fuori”dall’ordinamento con la realtà quotidiana delle donazioni della pietàpopolare, gli interpreti si dividono tra i fautori delle “pie frodi”22 e ipartigiani del diritto come disciplina di qualunque fenomeno sociale23 .E’ in questo senso che si può leggere la contrapposizione di autori comeOlivi, come Scoto e, soprattutto, come Ockham al potere papale chemetteva in dubbio la possibilità stessa di uniformarsi all’ideale di povertàfrancescana. D’altronde, se l’interpretazione papale ha il potere diconvalidare un’interpretazione della Regola (questo è il vincolo), alloraquesta pronuncia papale deve essere necessariamente Vera, ossia aderentealla Rivelazione, perché altrimenti non è stata pronunciata da un Papa(reazione al vincolo). Tutti gli sviluppi da Olivi in poi che cerco di analizzareruotano intorno a questo semplice nucleo originario: di fronte alla

21. L’opera si fa risalire al 1354: la si ritrova in varie edizioni dei Consilia, Quaestioneset Tractatus (p. es., Venezia, 1590, 106), oltre che in diverse raccolte di interpretazionidella Regola francescana (p. es., quella di Giacomo da Grumello, ed. Brixiae, 1502).

22. Così A.C. JEMOLO. Il “Liber Minoritarum” di Bartolo e la povertà minoritica neigiuristi del XIII e XIV secolo, pubblicato nel 1922 e poi raccolto in Scritti vari distoria religiosa e civile. Milano, 1965.

23. D. SEGOLONI. Aspetti del pensiero giuridico e politico di Bartolo da Sassoferrato, inIl diritto comune e la tradizione giuridica europea. Perugia, 1980, pp. 382-394.

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costrizione ad attenersi solo ad una interpretazione della Regola che haricevuto una conferma formale, allora, poiché qualsiasi criterio formalenon è di per sé peruasivo, l’autore di tale conferma formale (il Papa) èveramente il soggetto legittimato a produrre questa conferma se, e solose, ripete le Verità della Rivelazione e della Tradizione. Insomma, solo seè infallibile, dato che la Rivelazione e la Tradizione sono certamente Vere.

Ma parlare dell’incostanza della realtà e della costanza dell’ordinedei valori significa scoprire le carte sul dilemma della filosofiavolontarista. Da un lato, il sovrano deve gestire la società medianteun potere assoluto, dato che se la sua volontà fosse limitata, il suopotere non sarebbe realmente sovrano. Dall’altro, la libertà dellegislatore umano, che assicura la nomopoiesi, coesiste insieme allalibertà dei sottoposti e alla libertà divina (anche se quest’ultima sicolloca al livello normativo superiore).

Nella scuola francescana, la soluzione che avrà meno successonella successiva storia dell’Europa occidentale è quella di Scoto, chesi limita a contenere il legislatore assoluto facendogli carico dellamassima fedeltà ai doveri verso Dio24 . In questo modo, infatti, eglidisegna una teocrazia che non implica un’identità tra il poteretemporale e quello spirituale, ma che fa del rispetto della morale ver-so Dio una caratteristica imprenscindibile del governo temporale.Certo, l’idea che il legislatore debba rispettare i principi della moraleè un’idea che percorre tutta la storia politica, ma alla quale sicontrappone nel Rinascimento la lettura machiavelliana della politica,tutta finalizzata alla comprensione dei modi della conquista del potere.Tuttavia, affermare che il legislatore deve difendere i valori morali, inquella linea detta tacitismo che si contrappone nel XVI secolo al

24. A. SOTO OFM. «The Structure of Society according to Duns Scotus», Franc.Studies, 11 (1951) pp. 194-212, e 12 (1952), pp. 71-90.

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machiavellismo, è una tesi molto più debole di quella scotista, che fariferimento ai ben più determinati doveri verso il Dio della religionerivelata di Santa Romana Chiesa.

L’altra soluzione, che dobbiamo ad Ockham, sviluppa una sferagiuridica che limita il potere del sovrano dall’esterno: al sovrano vienelasciato uno spazio in cui il suo potere è assoluto ma, al di fuori diquesto spazio il suo potere è inesistente. Nel caso di Ockham, tuttavia,questo schema nasce soprattutto dall’orrore di trovarsi di fronte adun Papa ritenuto eretico25 , tanto che alcuni interpreti hanno potutorintracciare nella speculazione politica di Ockham un caratterecostituzionale26 (attitudine costituzionalista che Olivi già può averanticipato, perché l’infallibilità può essere interpretata in tal sensoossia come un vincolo sostanziale alla produzione normativa del Capodella Cristianità27 ).

Il posto di Olivi nella tradizione del pensiero giuridico e politicofrancescano è quello di un precursore di Ockham, piuttosto che nondi Scoto: benché siano tutti e tre volontaristi, Olivi è lontano dalrealismo normativista di Scoto che si associa a posizioni quasi-

25. A.S. MCGRADE. The political thought of William of Ockham. Cambridge, 1974.

26. E.F. JACOB. Essays in the Conciliar Epoch. Manchester, 19632 (19431), pp. 85-105, ch. 5 “Ockham as a Political Thinker”; et P. BOENHER OFM. «Ockham’sPolitical Ideas», Review of Politics, 3 (1943) pp. 462-487, anche nella raccolta E.M.BUYTAERT/P. BOENHER. Collected articles on Ockham, New York, 1958. Per ilcostituzionalismo nel Medioevo, cf. B. TIERNEY. Medieval Canon Law and WesternConstitutionalism (1965), poi nella raccolta Church Law and Constitutional Thoughtin the Middle Ages, London, 1979, saggio XV.

27. Si veda l’edizione critica di Marco Bartoli del De dispensatione votis, in Pietro diGiovanni Olivi, Quaestiones de Romano Pontefice, Grottaferrata, 2002 (il volume faparte del progetto di pubblicazione di tutte le opere di Olivi).

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teocratiche, mentre è assai più vicino al costituzionalismo diOckham28 .

Può apparire strano che da questa assolutizzazione del potere civilesiano nati principi a carattere costituzionale, come può apparire stranoche siano stati autori che hanno messo in gioco la loro vita per unapretesa verità religiosa a prefigurare la tesi della separazione traordinamento giuridico e sistema morale, creando le premessedell’autonomia della produzione normativa umana rispetto alle veritàmorali. In realtà, tutto prende le mosse da una vera e propria metafisicadella libertà, che si traduce nel dominio della teoria politica, per poiconcretizzarsi nell’azione politica stessa. Se si tiene presente che ilRegno del Cielo è infinitamente più importante dei regni umani,allora si può comprendere la logica di questa costruzione.

II. Tripartizione della nozione di libertà

Il punto di partenza per comprendere il ruolo giocato da Oliviper l’evoluzione del costituzionalismo sino a Ockham29 è a mio avvisouna tripartizione della nozione di libertà utilizzata, sebbene nonesplicitata, degli autori francescani, e che qui avanzo come ipotesistoriografica al fine di comprendere pienamente la loro teoria politica

28. Rinvio ai miei: L. PARISOLI. «Guglielmo di Ockham e la fonte dei diritti naturali:una teoria politica tra libertà evangelica e diritti fondamentali ed universali», CollectaneaFranciscana, 68 (1998) pp. 5-62; e «Percorsi della libertà nella Scolastica francescana:dal primato della volontà alla “naturalizzazione” attraverso la teoria politica dei diritti»,Materiali per una storia della cultura giuridica, 28 (1998) pp. 3-48.

29. Cf. G. de LAGARDE. Naissance de l’esprit laïque au déclin du Moyen Âge, Paris,1946, vol. VI (Ockham: la morale et le droit), pp. 71-73 e passim; poi la nuovaedizione Naissance de l’esprit laïque au déclin du Moyen Âge. Louvain/Paris, vol. IV– 1962 (Guillaume d’Ockham: défense de l’Empire) et vol. V – 1963 (Guillaumed’Ockham. Critique des structures ecclésiales).

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e giuridica. Siamo infatti di fronte ad una ontologia e ad una antro-pologia della libertà che la suddivide in tre categorie: 1) la libertàmetafisica; 2) il libero arbitrio; 3) la libertà morale. L-a(-e) libertàpolitic-a(-he), invece, rappresenta una quarta categoria, in quanto“approdo” rispetto alla tripartizione. Si tratta infatti di una nozioneeminentemente priva di significazioni metafisiche ed antropologichee, in quanto tale, derivata rispetto alle prime tre, sebbene sia poi ilnocciolo del pensiero costituzionale di Ockham.

Ho utilizzato largamente l’idea di questa tripartizione nei mieilavori su Scoto30 , e essa si ritrova in forma diversa già nelle analisi diWolter che fa riferimento, con l’epressione native liberty31 , a quellache io chiamo “libertà metafisica”. Già in Sant’Agostino la stessa parolalibertas esprime sia l’adesione al bene sia la possibilità di scelta dellibero arbitrio. In questo senso, la libertà morale di cui parlo è laconformità al bene (in quanto rifiuto costante della schiavitù delpeccato32 ), mentre il libero arbitrio è la facoltà di scegliere tra il beneed il male. E’ per questo che il libero arbitrio confirmato (ovvero inpatria) determina la libertà morale, mentre il libero arbitrio non

confirmato (ossia in via) è la possibilità della lode e del rimprovero33 .La natura dei beati e dei viatores, d’altronde, è così differente che il

30. In particolare, L. PARISOLI. La philosophie normative de Jean Duns Scot. Roma,2001.

31. A.B. WOLTER, Native Freedom of the Will as a Key to the Ethics of Scotus, in Deuset Homo ad mentem I. Duns Scoti. Roma, 1972, poi in Idem, The PhilosophicalTheology of John Duns Scotus. Ithaca, 1990.

32. Guglielmo di OCKHAM. Ordinatio, I, d. 1, q. 6 (Opera theologica, I):“opponitur servituti creaturae rationalis et hoc vel servituti culpae, vel servitutipoenae. Et hoc modo beati sunt liberiores quam viatores, quia magis liberi a servituteculpae et poenae”.

33. J. Duns SCOTO. Reportata parisiensia, II, d. 7, q. 1-3, n. 25 (ed. Vivès XXII);Lectura, II, d. 7, q. unica (ed. Vaticana XIX).

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loro libero arbitrio non si predica nello stesso modo. Tuttavia, sia ibeati che i viatores sono liberi nel senso più generale del termine (nelsenso che entrambi partecipano alla libertà metafisica), in quantoentrambi sono “persone”. E’ infatti la nozione più generale di libertà– nella sua collocazione metafisica ed ontologica – che costituiscel’essenza stessa della persona umana: «nihil sub Deo est nobis itadilectum et carum sicut libertas et dominium voluntatis nostrae»34 .Senza tale libertà noi ci priviamo della nostra natura personale e ciriduciamo ad essere bestie con un intelletto35 : questa libertà è la nostradignità. Essa è quel baluardo invalicabile che, rispetto agli altri uominicon i quali viviamo in società, disegna la libertà politica. In questosenso noi possiamo anche perdere la libertà morale per debolezza oper vanagloria o il libero arbitrio per cause esterne oppure peralterazioni interne; ma la libertà metafisica ci accompagna sempre,sia in via (come spiegherà magistralmente Olivi nella sua quaestio 57In Secundum Sententiarum), sia in patria (tanto che i beati rimangonoliberi di rifiutare la visione di Dio, poiché questa visione non può cheessere un atto d’amore gratuito36 ).

Ma una delle conseguenze più importanti di questa superioritàconcettuale della libertà metafisica (libertas) la si ha soprattutto a livellodi diritti politici. Infatti, se fondiamo i diritti di una società sul modellodella libertà morale, la nostra concezione della politica è legata

34. A. EMMEN OFM, «La dottrina dell’Olivi sul valore religioso dei voti», Studifrancescani, 62 (1966) pp. 88-108, edizione della quaestio an sit melius aliquidfacere ex voto quam sine voto, la quinta delle questioni sulla perfezione evangelica.

35. F. SIMONCIOLI. Il problema della libertà umana, pp. 106-107: “Olivi ripone ladignità dell’uomo nella libertà, costitutivo essenziale della personalità” (nota 4, p.107).

36. J. Duns SCOTO. Opus oxoniense, IV, d. 49, q. 6 (ed. Vivès XXI); Guglielmo diOCKHAM. In IV Sententiarum, q. 16 (Opera theologica VII): “voluntas pro statuisto potest nolle finem ultimum sive ostendatur in generali sive in speciali”.

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strettamente alla verità di un sistema morale, anzi la validità dei dirittidi quella società è condizionata dalla loro conformità alla morale. Alcontrario, se fondiamo i diritti di una società sul modello della libertàmetafisica (che è la dignità della persona), la validità dei diritti di unasocietà di non credenti e di infedeli non può essere messa in questio-ne. Essi possono essere rifiutati e respinti, ma non possono esseredichiarati inesistenti. Questa rete di diritti universali opera tra societàdifferenti, ma pure all’interno di una medesima società. Si tratta alloradi quelle libertates et iura che non possono essere violate da nessunlegislatore umano, per quanto grande sia il fondamento della suaautorità: la dignità umana resta inviolabile (Scoto afferma che lapersona è l’«ultima solitudo»)37 , e contro di essa si ferma qualsiasilegislatore terreno. Possiamo perdre la nostra libertà morale, e divenireschiavi degli altri: possiamo perdere il libero arbitrio, e divenire incapacidi rispondere dei nostri atti; ma non perderemo mai la libertàmetafisica, perché qualunque sia la nostra condizione morale emateriale noi siamo la nostra libertà metafisica. Questa non dipendedalla bontà dei nostri valori, di quei valori che abbiamo scelto:l’infedele non ha libertà morale, ma la sua libertà metafisica èsemplicemente quella della sua persona. Senza questa idea,l’evangelizzazione sarebbe solo un’operazione politica, non giàpersonale. Un sistema giuridico può ammettere leggi pessime da unpunto di vista morale cristiano, tuttavia quelle leggi sono fondate suuna legittimità che può essere solo quella della libertà essenziale diogni singolo individuo: il legislatore ha operato male, ma i diritti deisingoli sono sempre gli stessi, e i singoli sono vincolati da quelle leggi.La dignità della persona va al di là delle scelte morali contingenti:senza un riconoscimento, ogni sistema giuridico è illegittimo, anche

37. Citata classicamente da Lagarde, ripresa da J. Duns SCOTO, Opus oxoniense, III,d. 1, q. 1, n. 17 (ed. Vivès, vol. VIII).

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se una volta riconosciuto si possono fare scelte legislative ulterioricomunque difformi dalla morale oggettiva.

Olivi prefigura rispetto a Scoto e Ockham38 la nozione di potereordinato: «eo ipso quo Deus vult et pro tempore quo hoc vult, habetin se ordinem predicte voluntatis Dei»39 , suggerendo che il legislatoreè costituzionalmente vincolato dalle sue proprie leggi. Propone ladifferenza tra azione de iure e azione de facto, anticipando Scoto, pergiustificare la forma del potere umano sulla base di quello divino40 .Infine, usa la differenza tra il diritto che precede la Caduta e quelloche segue la Caduta: l’ordine immutabile delle leggi, «quod Deusnon potest nec debet oppositum eius velle», è detto «ordo naturalis»,e si oppone al «dominativo imperio», l’altra sfera normativa che vedele sue norme cambiare «seu absolute seu conditionaliter pro libitu»41 ,ossia convenzionalmente.

Il fondamento di queste nuove libertà politiche non è quindi lafacoltà del libero arbitrio, bensì l’idea di libertas, ossia la libertàmetafisica capace di fondare innanzitutto la nozione di persona42 . Illibero arbitrio, infatti, può fondare solo la nozione molto menogenerale di agente morale. Mentre la nozione di agente morale, infatti,si presenta, almeno in prima battuta, come uno strumento tecnico

38. Cf. O. BOULNOIS (a cura di). La puissance et son ombre. De Pierre Lombard àLuther. Paris, 1994.

39. Pietro di Giovanni OLIVI, Quaestiones in secundum librum Sententiarum, q. 57,II, p. 323.

40. Pietro di Giovanni OLIVI, Quaestiones de perfectione evangelica 13, An Papapossit renuntiare papatui, ed. Oliger come De renuntiatione papae Coelestini V. Quaestioet epistola, in Archivum Franciscanum Historicum 11 (1918) p. 363.

41. Pietro di Giovanni OLIVI, In II Sententiarum, q. 57, II, p. 324.

42. Si vedano le osservazioni di G. de Lagarde. La naissance de l’esprit laïque II,“Secteur social de la Scolastique”, Paris, 1958, pp. 227-229, pp. 234-238.

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della riflessione etica teorica (ossia come un concetto che permette dispiegare i fatti morali), la nozione di persona si presenta comeimmediatamente capace di mostrare la complessità valorialedell’esperienza morale. Per questo la nozione di persona può esprimere,a differenza di quella di agente morale, il valore principe della dignitàumana che si fonda sull’associazione tra libertà e unicità di ciascuno.Ma se la nozione di libertà metafisica fonda quella di persona e lanozione di libero arbitrio fonda quella di agente morale, allora sia lalibertas, sia il libero arbitrio sono caratteristiche necessarie della personaumana. Tuttavia, il libero arbitrio è principalmente teso ad evitare ilcupo necessitarismo di un universo meccanico alla Averroé in cui siprefigura un Dio orologiaio (visione questa che tradirebbe la stessatradizione giudaico-cristiana). La libertas, invece, è per lo più tesa afondare il Creato ontologicamente e metafisicamente. Quindi, il li-bero arbitrio appartiene all’insieme di verità di fede del “catechismo”della Chiesa cattolica e, in questo senso, è comune tanto alla scuolateologica naturalistica quanto a quella volontaristica. La libertas, invece,si spinge al di sopra della verità di fede ed è piuttosto coessenziale allanozione stessa di persona umana.

In questo senso, dire che la speculazione francescana valorizza ilconcetto di libertà metafisica significa dire che essa valorizza il concettodi persona. E’ lo stesso statuto ontologico della persona ad essereinconcepibile senza fare riferimento alla sua innata libertà. Di frontea Dio, la persona è concepibile solo perché è libera. E, in questo sen-so, è la persona ad essere la libertà. Per contro, se è vero che la personasarebbe inconcepibile senza libertas, senza libero arbitrio, invece,sarebbe inconcepibile tutt’al più la nozione di agente morale (in questocaso, infatti, si potrebbe solo parlare di “paziente” morale, come direbbeHobbes). Ma nel momento in cui si parla di agente morale, ci simuove necessariamente all’interno della disputa plurisecolare tradeterministi ed indeterministi morali, tra libertarians e necessitarians,

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tra cristiani cattolici e cristiani riformati (e qualunque sia la soluzionescelta, tutto ha l’aria di una disputa di scuola). Fatta salva la veritàfondamentale che l’uomo può scegliere tra il bene ed il male, infatti,ciò che conta veramente è solo la fondazione dell’ordine morale in cuisi muove l’uomo. E nella scuola francescana è proprio la libertà adassolvere questo compito. L’idea di libero arbitrio rimanda allapossibilità della scelta ed alla consapevolezza di distinguere la naturadei poli delle scelte divergenti: la libertà richiede solo la libera adesioneal proprio oggetto e culmina nella scelta d’amore del beato che con-templa Dio, senza alcuna necessità e con la libertà di rifiutare talevisione43 . In questo senso, tre sono le cifre della scuola francescana: lalibertà che pervade la creatura ed il Creatore, l’assolutezza dell’amoreche è tanto gratuito da non sopportare finalità di sorta, il primatodella volontà che in fondo è il dato “meno” importante, in quanto hala funzione dell’esplicazione metafisica, ma non quella di indirizzarcialla beatitudine. Mentre il libero arbitrio è una costruzionerazionalistica, la libertà primigenia, che è la persona stessa, è il datoontologico che ci caratterizza in quanto persone. La libertà si sente,insomma, non si coglie tramite la ragione.

III. La libertà, personale e pubblica, per Olivi

La liberta umana è secondo Olivi “manifestissima veritatis luminaet experimenta” e la sua negazione “exterminat omnia naturae rationalisbona”44 . Tra le prove in favore della libertà della volontà, la quinta èl’”affectus subiectionis et reverentiae et affectus dominationis et

43. Orlando TODISCO. Lo stupore della ragione. Padova, 2003; Il dono dell’essere.Padova, 2006.

44. Pietro di Giovanni OLIVI, Quaestiones in secundum librum Sententiarum, editea cura di Bernard Jansen, Quaracchi 1922-26, I-III, q. 57, II, p. 316.

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libertatis”45 , che stabilisce un reale principio politico. La sola ratio delpotere, la sola legittimità del potere, è la libertà46 : se non c’è libertà,l’uomo non può legittimamente divenire un sovrano e disciplinaregli altri, né può impartire ordini ad altri uomini, né può esercitare ilsuo dominium rispetto ad altre persone. Evidentemente può farlo de

facto, attraverso l’esercizio della forza, ma questo non comporta nessunagiustificazione de iure. Olivi affermava che un uomo senza liberoarbitrio era privo di ogni lode e di ogni biasimo come una pietra e unanimale47 , il suo rapporto con Dio si sarebbe ridotto a quello dellebestie con Lui48 (nessuna differenza tra l’uomo e gli animali), datoche solo la deliberazione volontaria distacca l’uomo dalla necessitàdelle passioni naturali sensuali49 .

Ma queste semplici osservazioni di Olivi sono sufficienti a collocareil volontarismo politico francescano mille miglia lontano dal volontarismohobbesiano. E’ infatti completamente estranea a questo discorso la terribileimmagine della corsa contenuta negli Elements of Natural and Political

Law (1640), che sancisce la supremazia del più forte come un diritto

45. Ibidem, p. 321.

46. La fonte ultima e diretta di ogni potere è Dio, che può privare della sualegittimità, in ogni momento, qualunque sovrano (cf. Pietro di Giovanni OLIVI,De renuntiatione papae Coelestini V, p. 359).

47. Pietro di Giovanni OLIVI, In II Sententiarum, q. 57, II, p. 336: “nullum eritdemeritum plus quam in una bestia vel lapide”.

48. OLIVI, loc. cit., p. 338: “non plus potuerit Deus a nobis offendi aut inhonorariquam a bestiis”.

49. OLIVI, loc. cit., pp. 326-327: Olivi considera la situazione in cui un uomo devescegliere tra beni equivalenti (situazione che diverrà famosa come dilemma dell’asinodi Buridano) e dice che non c’è altra causa di scelta che la libertà stessa, e nulla deveessere aggiunto per spiegare la scelta, qualunque essa sia. Al contrario, per gli animalivale che “bestia super aequalitate eligibilitas illorum non deliberat nec eam plenaaffirmatione diiudicat, sicut homa facit”. Non la ragione, bensì la volontà dominale passioni osensuali.

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naturale: il fondamento naturale del diritto sta invece nella libertà (non-empirica) e nel dominium dell’uomo che esercita verso se stesso. La solalegittimazione dell’autorità politica si fonda sul fatto che i cives reputanodi essere sottoposti alle leggi, ossia che le accettano. Siano essi cittadinioppure schiavi, la loro condotta deve esprimere la consapevolezza d’unpotere “dominativum et imperativum” che li sovrasta. Insomma, unindividuo può esercitare potere sugli altri se e solo se questi esprimonouna “ratio voluntarie subiciendi”. Bisogna rimarcare che l’approccioesperenziale di Olivi al problema del libero arbitrio può essere ingannevole:certo, egli fa spesso appello alla nostra esperienza per avvalorare la sua tesidella libertà come essenza della dignità umana, ma non si deve dedurneche egli si appoggi alla nostra esperienza come uno scienzato empiricoeffettua esperimenti sulla materia inerte al fine di trarne previsioni suglieventi futuri. Al contrario, egli cerca di mostrare che la sua costruzionemetafisica non ha alcuna difficoltà a giustificare il complesso degli eventiumani politici e sociali. La potestas imperativa e quella dominativa, chesono in fondo la stessa identica cosa, non si ricavano solo dall’osservazionedell’agire umano, bensì sono stabilite attraverso l’”intentione et efficaciaobligandi”50 che costituisce la forza vincolante della norma. Una normaè per Olivi vincolante solo se è accettata dagli individui cui è direttaattraverso l’espressione della volontà di una persona dotata della legittimacompetenza a legiferare su quell’insieme di individui. Ci troviamo difronte ad una proposizione di filosofia del diritto, e non dinanzi adun’analisi della psicologia umana: la legge è definita “mandatum velstatutum cum intentione obligandi datum et publice promulgatum abeo qui auctoritatem habuit super istis”51 . Altrove, Olivi ci dice che la ratio

legis è l’intenzione del legislatore, e che la forza cogente delle leggi non èla stessa per ogni tipo di atto normativo, come la Tradizione ci insegna

50. Pietro di Giovanni OLIVI, In II Sententiarum, q. 57, II, p. 336.

51. Loc. cit.

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relativamente al Decalogo52 , e come le innumerevoli riflessioni sulla Regolaavevano sospinto i vari commentatori a classificare e repertoriare.

Tutti gli uomini desiderano “naturalissime libertatem” e“vehementissime horret totalem suae libertatis ablationem”53 : la libertàè quindi l’essenza stessa della natura umana, sino al desiderio dibeatitudine che può compiersi grazie al nostro dominium. Questosacro orrore della privazione completa della libertà è il dato preliminaredelle libertà politiche. Infatti, queste stesse libertà sono proprio i dirittisoggettivi pubblici degli individui contrapposti, se essi lo desiderano,al potere legiferante che si è reso colpevole della negazione dei dirittifondamentali. Ma, soprattutto, sono queste le libertà che saranno poitematizzate e sviluppate da Ockham soprattutto nel suo Breviloquium

e nelle Octo quaestiones. L’uomo non può rinunciare completamentealla sua libertà, poiché la sua dignità scomparirebbe con la scomparsadella sua libertà. Tanto più che esiste un sentimento della forzavincolante della legge: l’idea di “habere aliquid iuris” sarebbe vuota senon possedessimo la libertà, che è “quid nobilissimum”, perché gliiura, questi “voluntaria signa voluntatis interne”54 , richiedono la fa-

cultas dominandi e, senza libertà, non si può avere facultas dominandi.Inoltre, in forza della tesi della questione Quid ponat ius, i diritti nonsono una qualità della natura, essi sono una manifestazione dellavolontà che “nichil reale addant”.

Quindi, è possibile affermare che la libertà e il dominium sono ilfondamento della nozione di diritto e dell’autorità politica: noi siamo

52. Pietro di Giovanni OLIVI, Quaestiones de perfectione evangelica 17, De voto regu-lam aliquam profitentis, ed. Delorme, in Antonianum 16 (1941) p. 153.

53. Pietro di Giovanni OLIVI, In II Sententiarum, q. 57, II, p. 322.

54. Pietro di Giovanni OLIVI, Quid ponat ius vel dominium, ed. Delorme, inAntonianum 20 (1945) p. 318.

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liberi in quanto possediamo il dominium sulle cose e su noi stessi.Pertanto, possiamo tradurre il dominium in relazioni di potere realesolo perché siamo liberi. Un individuo esercita il suo poterefattualmente perché dispone di una facultas dominandi, ma questoesercizio è legittimo solo se gli individui che patiscono i suoi comandihanno accettato (e quindi legittimato) la sua azione. L’autorità politicae i diritti sono allora giustificati ontologicamente dalla libertà, maquesta autorità può essere esercitata solo in seguito ad un consensoiniziale dato che la creatura in naturalibus non dispone affatto di unasimile capacità di interferire nella sfera degli altri individui55 . Sebbenesi respiri qui una certa aria di teoria del contratto sociale, a me pareche fare riferimento al contrattualismo politico sia radicalmentefuorviante: ci sono antiche dispute sul contrattualismo di Scoto56 , enon è il caso di ripeterle a proposito di Olivi. Mi basta osservare cheil contratto politico di Olivi, concesso che vi sia un vero contratto, è

55. Ibidem, p. 319.

56. Le si vedano felicemente rievocate in tempi recenti da Francesco BOTTIN

(Giovanni Duns Scoto sull’origine della proprietà, in Rivista di storia della filosofia,52 (1997) pp. 47-59) che con prudenza soppesa le parole e indica un modelloscotista “consensuale”. Mi pare sia utile evitare di rintracciare improbabili tesipolitiche contrattualistiche in autori che invece non si pongono affatto questoproblema: se impegnati in simili esercizi anacronistici, non è difficile immaginarecome si possano vedere persino in Olivi esercizi di teoria del contratto politico(rende conto di una posizione simile, in cui si esaspera l’elemento relazionale nellaquaestio Quid ponat ius vel dominium, G.L. POTESTÀ, Maestri e dottrine nel XIIIsecolo, in Francesco d’Assisi e il primo secolo di storia francescana, Torino, 1997, p.330). Mi pare una strada azzardata ancora a più forte ragione, poi, se basta l’adozionedi una più semplice (anche se banale) spiegazione in termini nominalistici perrendere conto del testo senza il ricorso ad equivoci mélanges di teorie giuridiche,sacramentali e politiche: la supremazia della volontà nella realizzazione di unfenomeno giuridico (ordine che non può identificato a quello sacramentale dellaconfessione o della eucarestia, anche se il rispettivo discorso teorico può subirereciproche influenze) non implica che esso si realizzi solo tramite un accordonecessario (contrattualismo politico in senso proprio). Il volontarismo politico ècompatibile con la teoria del potere assoluto di un singolo individuo, senza accordo

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un contratto con una cornice e senza tela, privo di contenuto, poichénon parla mai, almeno per quanto ne so, delle deliberazioni relativealle regole che le parti hanno stabilito per la società. Per quanto Olivifaccia allusione a un contratto bilaterale, il potere politico che nediscende è privo di ogni vincolo: io rinuncio ad una porzione dellamia libertà, e te la dò affinché tu possa esercitare il potere (la liberafacultas imperativa), considerato che tu accetti questo ruolonomopoietico57 . Si tratta di una trasmissione di potere che nonammette condizioni: il contratto oliviano non può far sorgere unarepubblica o una monarchia, ma solo il diritto di un individuo adecidere sugli altri, con la stessa libertà che un individuo natural-mente esercita su se stesso. L’esito del contratto è sempre una formadi potere assoluto, i cui vincoli non sono mai determinati dalla volontàdelle parti. Per Olivi, la rinuncia alla propria libertà non è un atto cherichieda una relazione gerarchica, ma solo il possesso della libertàstessa, dato che ognuno può abdicare ai suoi diritti, anche in vista delbene comune: infatti, il solo caso che annulla questa libertà è quellodel superiore che impone l’esercizio di un diritto a un sottoposto invista del bene comune58 .

altrui: per Olivi si veda il Quodlibet, I, q. 18 (sul potere del Papa); per Scoto si vedaE. LONGPRÉ, Le B. Jean Duns Scot pour le Saint Siège et contre le gallicanisme, in LaFrance franciscaine 11 (1928) pp. 137-162, a pp. 156-157, affiancato però alleosservazioni relative di B. TIERNEY. Origins of Papal Infallibility, Leiden, 1988 (2a.edizione), pp. 144-146. Neanche rispetto ad Ockham, che pure non è certo unesaltatore del potere assoluto del Papa, mi pare si possa parlare senza anacronismidi una teoria contrattualistica.

57. Pietro di Giovanni OLIVI, Quid ponat ius vel dominium, p. 319.

58. Pietro di Giovanni OLIVI, De renuntiatione papae Coelestini V, p. 358. A mepare che questa nozione di “bene comune” non è la stessa di San Tommaso, mal’importanza della dignità della persona è la stessa (cf. J.M. Trigeaud. L’ordinationdu bien commun au respect de la personne dans la philosophie politique thomiste, inActes du IXème Congrès Thomiste International, Roma, 1991, IV, poi in J.M. Trigeaud,Éléments d’une philosophie politique, Bordeaux, 1993).

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Il consenso è soltanto necessario, non già sufficiente, ma mi paregià molto per legittimare l’autorità politica. Questo consenso è definitocome un atto unilaterale della volontà che viene necessariamente “anobis, ita quod voluntas tanquam ex se operetur” e questa modalitàdell’operazione della volontà avviene quando “nullius alterius agentisimpulsu, sed solum ex proprio motu agens in actum se accomodat”59 .Si tratta di una tesi connotata nel senso del volontarismo politico, manon di un contrattualismo politico in senso moderno che ci evocauna riflessione filosofica alla maniera di Rousseau. L’esito dellariflessione oliviana, mediante un processo di diritto positivo (expactione), è il potere assoluto del monarca che “potest precipere veldissolvere leges et precepta diversissima et innumera et preceptaspectantia ad bella et alia spectantia ad intrinsecum et pacificum statumcivium” e “omnia etiam hec facit solo imperio, non per modumnaturalis agentis”60 . Si noti per completare la riflessione, che con Olivi,che condivide questa posizione con Scoto e in genere con i pensatoricattolici medievali, abbiamo un rifiuto netto dello gnosticismo politico,ossia quella concezione della politica che si era affacciata in Europacon i Merovingi – re che lasciavano governare i marescialli di palazzo,pur essendo loro i sovrani formali –, che venne combattuta da Pipinocon l’aiuto della Sede apostolica con l’esito della nascita della dinastiacarolingia la notte di Natale dell’anno 800, e che incominciò a imporsilentamente dal XVII secolo in poi con l’affermazione della Modernità.Giorgio Agambem ha descritto molto bene questo percorso storico61 ,in cui il pensiero politico cattolico, prima con l’azione di Carlo Mag-no, poi con i teorici della Scolastica, ha rifiutato l’idea del re fannullone

59. Pietro di Giovanni OLIVI, In II Sententiarum, q. 57, II, p. 329.

60. Pietro di Giovanni OLIVI, Quid ponat ius vel dominium, p. 322.

61. Giorgio AGAMBEN. Il Regno e la Gloria. Per una genealogia teologica dell’economiae del governo, Vicenza, 2007.

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che, inoperoso, regna senza governare, dato che il governo è assicuratosolo e soltanto da una corte amministrativa. La teoria politica di Olivi,con la sua esaltazione non solo della legittimità del sovrano, masoprattutto della sua azione concreta che non deriva dalle situazionidi fatto ma dal suo imperium, è nettamente in contrasto con lognosticismo politico, e lo inserisce nella tradizione dei filosofi politiciche lo hanno combattuto. Il sovrano non è frutto di un contratto, ilsovrano governa e basta.

Una volta attribuito questo potere assoluto, gli individui nonhanno un controllo diretto su questo potere: vi hanno rinunciato,non possono più esercitarlo. Però, se gli individui non possono inter-ferire nell’esercizio corrente del potere politico, dei limiti all’azionedell’autorità legiferante esistono, e sono fondamentali. Il potereassoluto può essere drasticamente limitato grazie a quelle libertàpolitiche che si fondano sulla stessa libertà che legittima il potereassoluto tramite l’atto di consenso. Le accuse che a volte si muovonocontro il volontarismo politico, foriero di assolutismo ed arbitrarietàsono in un certo senso vere: un volontarismo che ignora la sfera divi-na è legittimazione della volontà umana come nomopoiesiincontrollabile. Questa è la teoria politica di Hobbes. Tuttavia, pensareche Hobbes sia la conseguenza del volontarismo della teologiaScolastica è ingiusto ed erroneo. Il potere assoluto del sovranohobbesiano gli è conferito da un patto contratto in uno stato di naturain cui gli uomini hanno il diritto di appropriarsi delle cose. Al contra-rio, il potere assoluto del sovrano del volontarismo medievale gli èconferito dal consenso di uomini in uno stato di natura decaduta, incui Dio permette che come rimedio agli egoismi umani si instaurinoregimi normativi che sono eccezioni al vero stato di natura. Ma allorala differenza è abissale. Per Hobbes, lo stato di natura è uno solo, enon c’è altro da dire; per la Scolastica francescana, ne esistono almenodue, e le norme del primo sono sempre valide, anche se congelate. Il

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risultato è un sovrano assoluto nella sfera della natura corrotta, mavincolato nella sfera della natura incorrotta, un’idea semplicementeinconcepibile per Hobbes. Per lui, la libertà naturale del condannatoa morte di sfuggire all’esecuzione è parte dell’eterna lotta di sopraffazionefra gli individui. Ma la libertà politica francescana non è una modalitàdell’esercizio del potere, essa è un limite invalicabile: non è difficilecomprendere questo concetto se ci rifacciamo al fatto che nella scuolafrancescana, a partire dalla Summa fratris Alexandri62 , si è introdotta latesi che il Peccato Originale abbia determinato una rotturanell’ordinamento. Questa rottura ha la conseguenza di produrre due sferenormative ontologicamente distinte, con insiemi di diritti validi, ma nonomogenei: il dominium naturale sulle cose del Paradiso era l’unico dirittoricollegabile all’idea di uso. Al contrario, dopo la Caduta, è statonecessario rimediare alle cattive inclinazioni degli uomini, ed altridiritti si sono ricollegati all’uso, tra cui per eccellenza la proprietà chesi costituisce intorno al diritto positivo umano.

Così, il diritto naturale non è la forma ispiratrice del dirittomondano. La tesi principe del sistema tommasiano è respinta da subitoperché non esiste una scala delle norme (non dissimile dalla scaladell’essere) che porta dalla legge eterna alla legge umana, ma sologradoni separati l’uno dall’altro. Il diritto umano non è influenzatodal diritto naturale, poiché è un rimedio alla natura peccatrice che lenorme del diritto naturale ignoravano, tanto che la loro applicazionediretta è “congelata”. Ma ciò non toglie che queste ultime sono sem-pre valide, anzi sono l’aspirazione soprannaturale di ogni uomo, lostatus normativo della natura senza macchia. La sfera normativa deldiritto umano positivo gode di una libertà assoluta, ma non può negareil fine soprannaturale dell’uomo. La sua ragion d’essere cessa allora,

62. Alessandro di HALES (e collaboratori, tra cui Giovanni della ROCHELLE). Summafratris Alexandri, l. III, pars 2, inq. 2, q. 4, mem. 3, cc. 2-3 (Ad Claras Aquas 1948,IV, 362-364).

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perché non sarebbe più rimedio, bensì causa di dannazione. In talecaso di violazione flagrante, le norme del diritto naturale ritornanoimmediatamente applicabili, contro ogni potere nomopoietico umano.

Dopo Olivi, la scuola francescana spingerà sempre più in fondola radicalità dell’interpretazione del canone Dilectissimis63 sino aproporre la più dicotomica differenziazione tra il diritto naturale equello positivo. Ma già in Olivi possiamo trovare l’idea che i fratiminori rinunciano al diritto positivo, secondo la prescrizione di SanFrancesco, e si rifanno al solo diritto naturale per usare delle cosesenza avere un diritto a farlo (poiché ogni diritto simile è di dirittopositivo). La libertà di un frate minore è per Olivi quella di preferirela perfezione evangelica già in questa vita terrena; grazie a questa scelta,il diritto positivo perde ogni funzione, perché non è più un rimedio.L’usus pauper delle cose era per lui la realizzazione di quella graziaparadisiaca che rimandava ad una sfera normativa non più umana.

Olivi si era già posto la questione del potere pontificio e aveva giàcercato di limitare la pienezza del suo potere. L’apologia della libertàche si concretizza nella sfera politica ha precisamente questa funzione.Se la libertà politica è la risposta del cittadino contro il governooppressore, è vero che Olivi non ci fornisce una teoria politica dellasocietà civile: fonda la possibilità metafisica di una simile teoria, ma èconvinto che la società più importante sia quella spirituale. Comeogni frate minore, è molto sensibile all’analisi della vita concreta degliuomini, e i suoi lavori economici ne sono la migliore illustrazione64 .Ma bisogna attendere almeno Scoto, se non Ockham, per vedere bendelineata una teoria politica della società. Inoltre, Olivi non ci fornisce

63. Corpus iuris canonici, C. XII, q. 1, c. 2.

64. Cf. l’introduzione di G. TODESCHINI. Un trattato di economia politica francescana.Roma, 1980; Idem, Il prezzo della salvezza, Firenze, 1994.

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neppure una vera e propria teoria generale del diritto: anticipa ilvolontarismo normativo del De perfectione statuum (opera la cuiattribuzione eventuale a Scoto è controversa), di Scoto e di Ockham,ma non è realmente interessato ad una teoria generale di un sistemache ai suoi occhi ha una importanza sussidiaria nello stesso contestodella gerarchia normativa. Tuttavia, se l’attenzione si sposta sul poterespirituale, il problema della limitazione del potere assoluto del Papadiventa ben più vivido per lui, forse anche sotto la pressione dei pericoliincombenti dell’Anticristo. La risposta di Olivi è prima facie

sorprendente: per limitare quel potere pontificale che rappresenta“summa potestas diffiniendi questiones et dubia fidei et omnes maio-res ecclesie causas”65 e può “novam legem condere de quocunque ...et in omni tali et etiam in omni sententiali et autentica expositionedubiorum cristiane legis et fidei est sibi credendum et obediendum,nisi aperte esset contraria fidei Christi et legi”66 , escogita il meccanismodell’infallibilità del Papa, come abbiamo già visto, sviluppando lospazio semantico di questa clausola “nisi aperte”.

IV. L’infallibilità del sovrano come garanzia costituzionale

In un articolo di molti anni fa aveva già cercato di mostrare laposizione di Olivi sull’infallibilità pontificale67 . Vi difendevo la tesi

65. Pietro di Giovanni OLIVI. De renuntiatione papae Coelestini V, p. 347.

66. Ibidem, p. 351. Cf. Pietro di Giovanni OLIVI. Quaestio de indulgentia, ed.Péano, in Archivum Franciscanum Historicum, 74 (1981), pp. 72-73.

67. L. PARISOLI. «La formazione del concetto di infallibilità pontificia, da Pietro diGiovanni Olivi a Guglielmo di Ockham», Collectanea Franciscana, 67 (1997) pp.431-458. Devo alle osservazioni di Fr. Johannes Schlageter la consapevolezza dichiarire semanticamente la mia posizione, corroborate dai dubbi di Marco Bartoli.Dopo le precisazioni semantiche che qui riporto, dopo tanti anni resto convintodella bontà della mia tesi, che devono essere però inserite in un quadro di storia delpensiero politico di lunga durata, pena disperdersi in sottigliezze archeologiche.

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per cui Olivi sostiene l’infallibilità poiché il Papa è la inerrabili dellaChiesa68 : preciso ancora una volta qui che cosa intendo per infallibilità,a scanso di equivoci.

In un primo significato, equivalente al dogma attuale che venneanticipato da Guido Terreni quale consigliere di Giovanni XXII, vi èun individuo che è certamente Papa (in base a regole procedurali): lesue decisioni prese in qualità di decisore infallibile (assistito dalloSpirito Santo) sono necessariamente infallibili. In questo schema,l’infallibilità assicura il potere di determinare la Verità ad una personache ha ricevuto per altre vie la qualifica di Papa. Il Papa è così ilgiudice ultimo in materia di fede, e il suo giudizio insindacabile esupremo (si prenda il caso della Humanae Vitae, apparentementepromulgata da Paolo VI in opposizione al giudizio di molti teologicontemporanei)69 .

In un secondo senso, ci troviamo di fronte ad un individuo che èprima facie il Papa, ma non ci bastano le regole procedurali per asserirecertamente che è il Papa, poiché l’Anticristo potrebbe celarsi nei suoipanni: per essere Papa, deve mostrare di non essere l’Anticristo, quindidi non sbagliarsi. Se per caso le sue decisioni sconfessano la Rivelazionee la Tradizione cattolica, allora non è più un vero Papa: infatti, ledecisioni del vero Papa sono infallibili, e non contraddicono mai laverità. Ma questo Papa, in realtà non è che un individuo che con

68. L’uso lessicale di Olivi (cf. Quaestiones de perfectione evangelica 12, An RomanoPontifici in fide et moribus sit ab omnibus catholici tamquam regulae inerrabiliobediendum, ed. M. MACCARRONE. in Rivista di storia della Chiesa 3 (1949) p. 325)permette il calco dal latino ‘inerrabile’ rispetto alla parola ‘infallibile’: non riesco acapire quale sia la differenza tra la parola ‘inerrabile’ (che non esiste nei dizionaridella lingua italiana) e la parola ‘infallibile’, da non confondere con diverse ealternative teorie dell’infallibilità (i.e., inerrabilità).

69. E. LIO. Humanae vitae e infallibilità. Il concilio Paolo VI e Giovanni Paolo II,Vaticano, 1986.

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l’errore ha cessato di esserlo. In questo schema, l’infallibiltà limita ilpotere del Papa, dato che le sue decisioni sono confrontate da unpotere Terzo alla Tradizione della Chiesa: se il Papa in carica, a giudiziodei teologi, sbaglia, allora si priva della sua qualità di Papa70 .

Olivi ha creduto a questo senso di infallibilità, che si basa sulladivisone dei poteri, non già sulla confusione dei poteri teorizzata daScoto e da tutti i partigiani del potere assoluto del Papa. L’infallibilitàdel Papa è la prima libertà politica che Olivi affida ai membri dellaChiesa per proteggere le verità della tradizione: contro una deviazionedel Papa, l’infallibilità agisce come un richiamo alla Tradizione, barrieracostituzionale che il Papa non può violare. Prima che questo Papaipotetico si presentasse sul serio, Olivi in sua quaestio71 teorizzò cheun Papa non può cadere nell’eresia e permanere nel suo statopontificale. Il Papa che pronunciava un’eresia era ipso facto decadutodalla sua funzione: diventato l’ultimo dei cattolici, il giudizio nei suoi

70. Il rinvio a Quaestiones de perfectione evangelica 13, ed. L. OLIGER, De renuntiationepapae Coelestini V, p. 353, mostra che i cardinali hanno un potere eccezionale diprocedere contro il Papa, ma non divengono per questo suoi giudici.

71. Pubblicata da M. MACCARRONE. Una questione inedita dell’Olivi sull’infallibilitàdel papa, in Rivista di storia della Chiesa in Italia, 3 (1949) p. 309, poi ripubblicatonella raccolta di scritti dello stesso autore Romana ecclesia cathedra Petri, Roma,1991. Per una prospettiva diversa da quella che adotto si veda R. MANSELLI, Il casodel papa eretico nelle correnti spirituali del XIV secolo, in L’infallibilità. L’aspetto filosoficoe teologico, a cura di E. CASTELLI, in cui Manselli giudica la posizione di Olivi come“una delle più precise e limpide difese dell’infallibilità del papa” (p. 115); in genere,per un approccio storico in senso tradizionale, si veda la rassegna bibliografica diM. BARTOLI, Pietro di Giovanni Olivi nella recente storiografia sul tema dell’infallibilitàpontificia, in Bullettino dell’Istituto storico italiano per il medioevo e archiviomuratoriano, 99 (1994) p. 149 (con il limite, a mio parere, di diluire l’originalitàdelle tesi di Olivi sull’infallibilità papale per una incomprensione della canonisticadell’epoca – cf. p. 151, in cui il fatto che il papa eretico cessi di essere papa èpresentato come una banalità per i canonisti, mentre la questione, che pure esiste,è terribilmente complessa).

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confronti non era più un problema di giurisdizione e competenza, unproblema da canonisti. Il Papa non poteva così mai sbagliarsi in temadi fede e di morale; se lo avesse fatto, non sarebbe più stato un Papa,quindi la sua pronuncia del tutto indifferente. Quindi, il Papa eravincolato dalle pronunce dei suoi predecessori, purché questi fosseroveri papi e la materia fosse quella della morale e della fede. Per laprima volta, la Verità era opposta all’autorità: il riconoscimentoinfallibile della verità limitava la pienezza del potere papale. Già, poichéla Verità era ricevuta dalla Rivelazione e dalla Tradizione, ed era infinegarantita da una sfera del diritto divino che rappresentava un limiteal potere papale, che doveva ripetere questa sfera, ma non poteva innessun modo derogarvi.

Il dogma attuale dell’infallibilità, invece, esalta il potere del Papa,e la vicenda dell’Humanae Vitae ci può mostrare l’importanza deldogma attuale nella vita della Chiesa, come ultimo bastione dellacontinuità della Tradizione, esattamente come Maria fu l’unica aconservare la fede ai piedi della Croce nel momento più buio (perocchi umani) della Passione. Altra cosa dalla riflessione francescanadi Olivi: la nozione di infallibilità papale si sviluppò all’interno dellediscussioni sulla povertà francescana come reazione al vincoloargomentativo rappresentato dall’autorità papale. Si badi, non intendodire che si tratti di una reazione dettata solo dalle contingenze, da uncalcolo egoistico o altro, è vero invece il contrario: come habrillantemente sostenuto Capitani72 , almeno la posizione di Olivi (malo stesso si potrebbe dire di Ockham73 ) sull’infallibilità si inserisce

72. O. CAPITANI. Il francescanesimo ed il papato da Bonaventura a Pietro di GiovanniOlivi: una riconsiderazione, in Ricerche storiche, 13 (1983) p. 595.

73. Occorre sempre dire che non tutti concordano sul fatto che Ockham abbia sostenutouna teoria dell’infallibilità: così, p. es., J. KILCULLEN. Ockham and Infallibility, inJournal of Religious History, 16 (1991) p. 387. Lo stato della questione mi parechiaramente riassunto sulle pagine di Franciscan Studies – 24 (1986) – nell’opposizionetra John J. RYAN (Evasion and Ambiguity: Ockham and Tierney’s Ockham, p. 285) e B.TIERNEY (Ockham’s Infallibility and Ryan’s Infallibility, p. 295).

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con salda coerenza all’interno della sua filosofia globale, in cui spiccanouna nozione nominalistica del concetto di diritto, una ecclesiologiaprofondamente escatologica, il ruolo centrale ed irrinunciabile della libertàumana74 . L’infallibilità è un contro-argomento da opporre all’affermazionedella plenitudo potestatis, un picchetto posto non tanto contro la possibilitàdel Papa in carica di derogare ad una decisione del suo predecessore,quanto al fine di costringerlo a riconoscere lui stesso che esiste una specificacategoria di decisioni che non sono mai derogabili. Infatti, l’idea nuovadell’infallibilità è che certe pronunce papali, che riguardano la materiadella Rivelazione, devono essere l’opinione della Chiesa universale, nonperché il Papa abbia deciso così e così, ma perché il Papa deve necessaria-mente adeguarsi alla Rivelazione, altrimenti non sarebbe il Papa. Insomma,non una opportunistica furbizia per esaltare un Papa amico, bensì unavera e propria classificazione delle decisioni papali: alcune costitutive,altre, quelle che concernono la Rivelazione e la Tradizione, mera-mente dichiarative.

Vediamo l’affermazione dell’infallibilità pontificia75 , o dellainerranza del Papa come preferiscono dire altri per evitare ogni ana-cronismo con il dogma proclamato nel 1870 dal Concilio VaticanoI76 . Quello che è certo è che, sebbene l’apologetica cattolica abbia

74. La letteratura è concorde su queste considerazioni: mi limito a rinviare ad unlavoro recente in cui la centralità della libertà in Olivi, in opposizione ad ognirazionalismo filosofico, è resa brillantemente, F.X. PUTALLAZ. Insolente liberté.Fribourg, 1995, pp. 127-162.

75. Il testo di riferimento è B. TIERNEY. Origins of Papal Infallibility. 1150-1350.Leiden, 1988 (19721).

76. Questa proclamazione ha sollevato uno spirito di fronda verso la gerarchiacattolica che non ha nulla a che fare con la teologia. Ne è una dimostrazione unvolume di A.B. HASLER, disponibile in tr. it. Come il Papa divenne infallibile, Torino,1982: sebbene l’autore noti, sulla scorta di Tierney, che l’argomento dell’infallibilitàdel Papa fosse stato avanzato da Olivi contro la Sede apostolica, non si interrogaminimamente su quali fossero gli argomenti di Olivi (per una critica pacata si vedala recensione di D. MENOZZI in Rivista storica italiana, 92 (1985) p. 381).

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cercato di reperire testimonianze della tesi dell’infallibilità nei maggioriDottori della Chiesa77 , l’idea che un Papa potesse errare era diffusatra i canonisti del XIII secolo78 . Tutt’altra cosa era l’idea che la Chiesafosse indefettibile, ossia che non potesse perseverare nell’errore, ideadi cui la Rivelazione fornisce un’esplicita garanzia (Luca, 22, 32; siveda pure C. XXIV, q. 1). Mi interessa qui richiamare alcuni luoghidel Corpus iuris canonici, che formano i riferimenti positivi della ques-tione: la dist. XIX, c. 9, su Papa Anastasio che cade nell’errore ed è“nutu divino percussus”; la dist. XL, c. 6, “dampnatur Apostolicus,qui suae et fraternae salutis est negligens” con la regola di nongiudicabilità del Pontefice e l’eccezione della clausola “nisi a fide”79 ;la dist. XXI, c. 6 e 8, “maiores a minoribus iudicari non possunt”; ladist. XV, c. 2, sull’autorità dei primi quattro concili, “sicut sanctievangelii quatuor libros, sic quatuor concilia suscipere et venerari mefateor” (da integrare con dist. XVI, c. 8, e con C. XXV, q. 1., post c.16); la C. XXV, q. 1, c. 6, sull’impossibilità per il Papa di derogarealle definizioni solenni di Cristo, degli Apostoli e dei Padri; la dist.

77. Uno dei casi più eclatanti per sincronismo è quello del peraltro benemeritofrate Fedele da FANNA (poi curatore dell’Opera Omnia di San Bonaventura), SeraphiciDoctoris D. Bonaventurae doctrina de Romani pontificis primatu et infallibilitate,Torino, 1870, oppure Renato BIANCHI, De constitutione monarchica ecclesiae et deinfallibilitate Romani pontificis iuxta S. Thomas, Roma, 1870. Si veda pure U.BETTI, L’assenza dell’autorità di San Tommaso nel decreto vaticano sull’infallibilitàpontificia, in Divinitas, 6 (1962) p. 407.

78. Si veda B. TIERNEY. Origins. cap. 1. Anche la letteratura di parte cattolicariconosce questa situazione: così il Dictionnaire de Théologie Catholique (Paris, 1909-50) al termine della lunga voce “Infaillibité du Pape” (VII), oppure la voce “Papauté:Infaillibilité pontificale” del Dictionnaire Apologétique de la Foi Catholique III, Pa-ris, 1916.

79. Per alcune osservazioni sull’origine di questo canone, ma pure in genere sulpapa eretico, segnalo J.M. MOYNIHAN. Papal Immunity and Liability in the Writingsof the Medieval Canonists. Roma, 1961, pp. 27 e segg.

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XIX, c. 6, che riproduce un passo di Sant’Agostino, “inter canonicasscripturas decretales epistolae connumerantur”; la dist. XXI, c. 3, sulprimato di Roma che “non aliqua sinodus, sed Christus instituit”.

Senza entrare nel grande mare delle glosse al Decretum diGraziano80 , alcuni dati emergono chiaramente: il Papa può sbagliarenell’esercizio delle sue prerogative; non può essere giudicato daqualcuno a lui inferiore, a meno che non devi dalla retta fede (e lamorale è materia equivalente); il suo ruolo è determinato dallaRivelazione, non dagli uomini; la Tradizione della Santa Chiesacattolica ha lo stesso valore della Rivelazione; il Papa è parte integran-te della Tradizione81 . L’insieme di questi dati pone un problema: chigiudicherà il Papa che devia dalla fede, e per quali capi di accusaquesto processo è legittimo? Le risposte dei canonisti sono varie, macertamente un punto è incontestabile: si tratta di un problema diprocedura contro un Papa che ha sbagliato. Si noti che a questo puntosi possono applicare al Papa stesso i canoni che riguardano gli eretici:p. es., C. XXIV, q. 3, c. 31, che individua il crimine di eresia solo inchi persevera nell’errore dopo essere stato corretto (e al Papa siriconoscerà il privilegio di avere diritto a più richiami successivi alrispetto della retta fede); C. XXIV, q. 1, ante c. 1, 2-3, in cui l’eretico

80. Non posso che rimandare a B. TIERNEY. Foundations of the Conciliar Theory.Cambridge, 1955, oppure alla raccolta di suoi testi Church Law and ConstitutionalThought in the Middle Ages. London, 1979.

81. Non va dimenticato che lo stesso Ockham, pur sviluppando una nuovaecclesiologia, riconosce ancora al papa (non certo quegli “eretici” contro cui riverseràla sua libellistica) un potere determinante nella costruzione della Tradizione, comericorda Léon BAUDRY in epigrafe alla sua opera (Guillaume d’Occam: sa vie, sesoeuvres, ses idées sociales et politiques, Paris, 1949): “patet igitur quod cum controversisest inter theologos de aliquo articulo an sit consonus vel dissonus fidei christianae,ad Summum Pontificem est recurrendum” (Tractatus de corpore Christi, c. 37, inOpera Theologica X, New York, 1986, linee 69-71).

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può incorrere nella scomunica latae sententiae; C. VI, q. 1, post c. 21,in cui i prelati possono essere accusati di eresia solo se il loro crimineè notorio, ossia se la fattispecie è già stata giudicata come credenzaeretica; C. II, q. 7, post c. 22 e post c. 26, in cui l’eretico è l’ultimo deiCattolici, quindi può essere giudicato anche da chi precedentementegli era inferiore.

Mi sembra che questa situazione possa rendere conto delle tesi diOlivi sulla inerranza del Papa. Da un lato, abbiamo una storiatormentata intorno all’interpretazione del voto di povertà contenutonella Regola francescana, in cui l’intervento di Niccolò III èinnanzitutto diretto a placare le divisioni interne ad un Ordine conneppure settant’anni di vita; dall’altro, abbiamo una dottrinacanonistica che affronta il problema del Papa eretico e ne discuteestesamente le implicazioni. Insomma, quando Olivi affronta il pro-blema dell’autorità del Papa in fatto di Verità, egli si chiede se ilPontefice debba essere obbedito “tamquam regule inerrabili” da ognicattolico: in altri termini, si chiede se le interpretazioni pontificalidelle regole di un Ordine religioso siano sempre valide e inderogabili,oppure no. In quest’ottica, non è poi decisivo stabilire se la sua quaestio

sia precedente alla Exiit qui seminat oppure posteriore82 : l’analisi diOlivi è comunque diretta a stabilire i rapporti tra l’autorità della Sedeapostolica e le Verità rivelate (la fede e la morale). La sua escatologiache, gioachimita o meno, fissa degli stadi nell’evoluzione dellacristianità ed utilizza largamente la figura dell’Anticristo (Lectura Super

Apocalipsim)83 , non gli ostacolava certo di raffigurarsi l’ipotesi di unPapa eretico: gli stessi canonisti, che gioachimiti certo non erano,non avevano nessuna difficoltà a raffigurarselo.

82. B. TIERNEY. Origins, pp. 122-125.

83. R. MANSELLI. La “Lectura super Apocalipsim” di Pietro di Giovanni Olivi. Ricerchesull’escatologismo medievale. Roma, 1955.

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Olivi, a differenza di San Bonaventura84 , trasforma il problemainiziale dell’obbedienza al Pontefice nel problema della reale identitàdel Pontefice: in questo passaggio sta la frattura che porta dalla credenzanella indefettibilità della Santa Chiesa all’infallibilità del Papa85 .L’indefettibilità della Santa Chiesa è una tesi che si accordaperfettamente con le tesi degli stadi dell’evoluzione della cristianità,in cui fasi di smarrimento della vera dottrina convergono verso iltrionfo finale della cristianità (la letteratura Spirituale sul modellodella Historia septem tribulationum di Angelo Clareno dimostra lafortuna di questo schema all’interno del movimento francescano)86 :la garanzia ultima che assicura il trionfo finale è il corpus dellaRivelazione e della Tradizione. Nel XIII secolo era correntementeammesso che il Papa non potesse mai derogare alla dottrina di Cristoe degli Apostoli: tuttavia, era pure correntemente ammesso che unPapa potesse sbagliarsi. E se si fosse sbagliato a proposito della dottrinadi Cristo e degli Apostoli?

84. San BONAVENTURA. Quaestiones disputatae de perfectione evangelica, IV, 3 “Deobedentia summo Pontifice debita”, in Opera omnia V, ed. Quaracchi, p. 189. Siveda pure In IV, dist. XX, p. II, q. 3, in Opera omnia IV, p. 535, a proposito della“potestas clavium”.

85. Si vedano però le osservazioni, che limitano la portata delle tesi di Olivi alla“regula inerrabilis”, di Johannes Schlageter, Zur Genese der Unfehlbarkeitsdoktrin.Stellungnahamen zur Päpstlichen Lehrautorität von Bonaventura bis Ockham, inBonaventura. Studien zu seiner Wirkungsgeschichte, Werl, 1976, pp. 121-222.

86. Si veda il forse troppo simpatetico testo di L. von AUW, Angelo Clareno et lesSpirituels italiens. Roma, 1979; inoltre, con riferimento ad un momentoimportantissimo nella storia degli Ordini mendicanti, A. FRANCHI, Il Concilio diLione II (1274) e la contestazione dei francescani delle Marche, in Picenum Seraphicum,11 (1974) p. 53. Si noti che il Commento alla regola di Angelo Clareno, rimastoinedito e sconosciuto negli anni in cui divampava la lotta tra le varie animedell’Ordine prima delle decisioni di Giovanni XXII, è quello in cui sono pratica-mente assenti considerazioni di tipo giuridico e politico, e sono invece presentidegli influssi della Cristianità orientale ortodossa: il testo è edito da L. OLIGER

come Expositio Regulae fratrum minorum, Quaracchi, 1921.

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Olivi riteneva che la Regola e il Vangelo coincidesserosostanzialmente, quindi una relazione ben più forte di quella di meraconformità: la visione di San Francesco come alter Christus era per luipiù che un’iperbole, era una nuova Rivelazione87 . L’idea che unaChiesa legittimata da processi formali di formazione dell’autoritàpotesse anche solo avere la possibilità di modificare, pur sbagliandosi,la Rivelazione appariva ai suoi occhi come intollerabile ed assurdo.La Chiesa universale non poteva che essere l’organo di trasmissionedelle Verità eterne, come del resto suggerisce lo stesso Corpus iuris

canonici quando equipara il Vangelo e i pronunciamenti dei Conciliecumenici. Ad Olivi non interessa discutere il rapporto tra il Papa edil collegio dei cardinali: riceve dalla tradizione francescana il massimorispetto per il primato di Roma, e non lo discute88 . Del resto, il suonominalismo che lo porta ad indicare come meramente verbali lenozioni di ius e di dominium89 , lo rende poco sensibile ad unapprofondimento di una scienza giuridica, relegata in secondo pianorispetto allo spessore della realtà teologica: in questo senso l’usus pauper

87. In questo senso soprattutto la Declaratio super Regulam fratrum minorum, inFirmamentum trium ordinum, Venezia, 1513, p. III, f. 106 recto, a, e segg. (specief. 107 recto, b), a cui si deve però affiancare la già citata Quaestio de voto regulamaliquam profitentis, pubblicata da F. Delorme in Antonianum, 16 (1941) p. 143.Inoltre David FLOOD ha curato l’edizione della Expositio super Regulam FratumMinorum (Peter Olivi’s Rule Commentary, Wiesbaden, 1972). Sul tema dei rapportinormativi tra Regola e Vangelo rinvio a F. ELIZONDO. De evangelii et regulaefranciscanae obligatione usque ad bullam “Exivi de Paradiso” Clementis V (6 mai1312), in Laurentianum, 2 (1961) p. 226.

88. Si veda per esempio il passaggio in cui la concessione dell’indulgenza dellaPorziuncola non è concepita come una deroga a delle regole, bensì una pienaespressione dell’autorità pontificia (P. PÉANO, La «Quaestio fr. Petri Iohannis Olivi»sur l’indulgence de la Portioncule, in Archivum Franciscanum Historicum, 74 (1981)p. 33 – si tratta del punto ottavo delle risposte alle obiezioni, a pp. 72-73).

89. F. DELORME. Question de P.J. Olivi “Quid ponat ius vel dominium” ou encore “Designis voluntariis”, in Antonianum, 20 (1945) p. 309.

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è per lui la vera cifra della povertà francescana rispetto all’espressionemeramente nominale del simplex usus facti, ma questo implica unasvalutazione della realtà giuridica che è incompatibile con altremetafisiche cristiane, come il contemporaneo tomismo (ma non solo).Il tema del peccato originale come elemento essenziale nella nascitanon solo della proprietà privata, ma pure della rottura radicale tradiritto divino e diritto mondano, è stato ampiamente tematizzato daTarello90 rispetto al Tractatus de Christi et Apostolorum paupertate diBonagrazia da Bergamo91 , il futuro procuratore generale dell’Ordineche sarà la testa di ponte nella lotta contro Giovanni XXII. Ma sebbeneil tema della proprietà privata come frutto “per iniquitatem” (C. XII,q. 1, c. 2) sia una costante nei pensatori dell’Ordine minoritico, nonvoglio qui generalizzare delle considerazioni relative ad Olivi alla scuolafrancescana in genere: la Summa fratris Alexandri92 dedica nel lib. IIIampi spazi a problemi non solo di teoria giuridica93 , bensì pure diprocedura. Tuttavia, Olivi sceglie un’altra via: per lui il problema delPapa eretico si risolve brillantemente, ossia dissolvendo il concettostesso, con uno stile che precorre i virtuosismi di Scoto e di Ockham.La nozione di “papa eretico” è così inconsistente: dopo avere distintotra il Papa come individuo privato e come individuo con una specifica

90. G. TARELLO. Profili giuridici della povertà nel francescanesimo prima di Occam.Milano, 1964.

91. Per uno studio recente di questo personaggio, E. L. WITTNEBEN. Bonagratiavon Bergamo. Franziskanerjurist und Wortführer seines Ordens im Streit mit PapstJohannes XXII. Leiden, 2003.

92. Alessandro di HALES. Summa fratris Alexandri. Quaracchi, 1924-48 (il lib. IIIcorrisponde al vol. IV dell’edizione).

93. Cf. O. LOTTIN. Psychologie et morale aux XII et XIII siècles II/1. Gembloux,1948.

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funzione94 , Olivi dichiara che un Papa non (può) sbaglia(re) mai, e seapparentemente sbaglia, in realtà non è più Papa. Il Papa infallibilediventa la guida della Chiesa indefettibile, in cui la Rivelazione siprolunga nella storia attraverso la serie di pronunciamenti papaliinfallibili in materia di fede e di morale.

Quindi, la qualifica di infallibilità che Olivi attribuisce al Ponteficeha il risultato pratico di vincolare il Pontefice in carica alle pronuncein materia di fede e di morale dei suoi predecessori, che a loro voltanelle loro pronunce non avevano mai creato nessuna nuova Verità,ma avevano ripetuto e dichiarato il corpus della Rivelazione e dellaTradizione. Rispetto alla bolla Exiit qui seminat, questa teoria sortiscel’effetto di consacrare la Regola francescana tra le Verità dellaTradizione, a condizione di credere che la Regola e il Vangelocoincidano almeno per quanto riguarda l’eguaglianza {altissima

paupertas = povertà di Cristo e degli Apostoli} – in caso contrario,senza questo nesso con il Vangelo, la decisione di Niccolò III sarebbesvincolata dalla materia della fede e della morale, quindi derogabile.Ma questa è “solo” una contingenza, per quanto rappresenti un veroe proprio vincolo alle ragioni delle parti: in realtà, Olivi ha costruitouna genuina teoria dello stare decisis, del precedente vincolante, neipronunciamenti fondamentali della Chiesa cattolica. E’ sorprendenteconstatare la coerenza di questa costruzione: essa si appoggia sui datiprincipali del Corpus iuris canonici, che abbiamo già visto sopra, lacertezza della Verità dei pronunciamenti dei Concili ecumenici, laRivelazione come limite alla plenitudo potestatis del Pontefice, chepuò anche cambiare nella pienezza del suo potere l’insegnamento degli

94. Si veda in particolare L. Oliger. Petri Iohannes Olivi de renuntiatione papaeCoelestini V quaestio et epistola, in Archivum Franciscanum Historicum, 11 (1918) p.309. Questa distinzione, essenziale nello schema oliviano, era del tutto inusualenella discussione canonistica.

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Apostoli95 , ma non può che ripetere le Verità di fede e morale.Insomma, la indefettibilità della Chiesa unita all’insegnamentobonaventuriano del primato del Pontefice romano sortiscono in Olivila tesi dell’infallibilità papale: chi, se non il capo della Chiesa, deve

essere infallibile? Deve, si noti: semplicemente perché se non lo fosse,allora sarebbe eretico, il che è già intollerabile per qualunque cristiano,e lo è a fortiori per la guida della Chiesa cattolica.

E se si riscontra che fallisce, alla luce della Rivelazione e dellaTradizione, allora non è più vero Papa. Condizione necessaria, seppurenon sufficiente, per essere Papa, è ripetere tutta la dottrina in materiadi fede e morale della Santa Chiesa. Non è neppure necessario supporreche il Papa sia assistito in modo particolare dallo Spirito Santo: laRivelazione stessa assicura l’indefettibilità della Chiesa, e il Papa nonne è che lo strumento della proclamazione solenne. Se come sempliceviator sbaglia, questo non ha nessuna conseguenza: ciò che proclamain materia di fede e di morale non è vero perché lui lo proclama,piuttosto lui lo proclama perché lo assicurano la Rivelazione e laTradizione. Infine, potere e Verità collassano nella figura papale, chediviene l’ultima istanza nelle divergenze teologiche, ma che è infineposto fuori dal tempo nello stesso (limitato) senso in cui la Rivelazioneesprime verità fuori dal tempo.

Olivi appartiene così ad una corrente minoritaria della culturacattolica, almeno a partire dal trionfo della rivoluzione gregorianache impose non solo nella Chiesa, ma nella stessa cultura occidentalelatina il concetto di gerarchia politica. Tuttavia, le coordinate culturalidi Olivi rappresentano una parte importante del patrimonio dellacultura cattolica, e sono per molti versi assai vicine alla cultura cristiana

95. S. KUTTNER. Pope Lucius III and the Bigamous Archbishop of Palermo, in Medi-eval Studies presented to Aubrey Gwynn S.J., a cura di J.A. WATT, J.B. MORRAL, F.X.MARTIN, Dublin, 1961.

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PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ

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orientale, pur restando schiettamente latine: non solo la cifra del suopensiero mistico, ma le stesse coordinate della sua struttura di pensieropossono permetterci di comprendere, in un’epoca in cui il ConcilioVaticano II ha posto nell’agenda geopolitica della Chiesal’ecumenismo, la precisa posta in gioco nell’affermazione dell’unitàdella Chiesa, che lo stesso Olivi, in assenza di dubbi sulla non-identitàtra Papa e Anticristo, concepiva come strettamente ordinata dal prin-cipio di obbedienza, quindi in ultima analisi gerarchica. Quali sonoinfatti i limiti dell’obbedienza, che è comunque considerata da Olivila madre di tutte le virtù, in continuità con la tradizione delvolontarismo di sant’Anselmo magistralmente espresso nel De casu

diaboli96 ? Nel De oboedentia evangelica97 Olivi, dopo avere esaltatol’obbedienza sia in sé stessa – per esempio come principio del poteremonocratico, sia nelle sue conseguenze benefiche – per esempio,l’unificazione di tante volontà in una sola ponendo fine a liti e dissensi,ne indica i limiti: il peccato manifesto, il manifesto pericolo di peccatomortale, l’imperfezione e l’impurità evidenti tali da intaccare laperfezione evangelica (e questa terza e ultima condizione si indirizzaa chi ha fatto voto di perfezione evangelica)98 . Non c’è peccato venialenell’obbedire agli ordini di un superiore autorizzato a ciò: “falsum estigitur quidam simplices aliquando dixerunt, quod scilicet omnepeccatum veniale erat a subditis, quando eis imperabatur, propterbonum oboedientiae agendum”, ed è falso perché obbedire è un bene,

96. Ricordo che in quest’opera il peccato di Lucifero non è un’azione essenzialmentemalvagia, ma è il fatto che Lucifero ha voluto in un momento dato quello che Dionon voleva che Lucifero volesse in quel momento dato. Questo è puro volontarismonormativo (De casu diaboli, cap. 4).

97. La Quaestiones de perfectione evangelica 11, come già visto, è edita in D. FLOOD,G. GÁL (a cura di), Peter of John Olivi on the Bible, pp. 373-406.

98. D. FLOOD, G. GÁL (a cura di). Peter of John Olivi on the Bible. pp. 380-388.

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LUCA PARISOLI

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e se tale tesi fosse vera obbedire sarebbe un male, da cui lacontraddizione99 . Tuttavia, è più grave disprezzare la legge divina chenon quella di un prelato superiore, e sostenere il contrario è idolatriadelle norma umana rispetto a quella divina, insomma quasi un’eresia.L’obbedienza è un bene supremo, ma l’uomo non è un legislatoresupremo, e solo a Dio si deve obbedienza cieca: e Olivi lega la suaanalisi alle parole stesse di san Francesco, volendo proporle non comeinterpretazione personale, bensì come spirito autentico dell’identitàfrancescana100 . Tanto grande è la virtù dell’obbedienza, tantointangibili sono i suoi limiti come appello diretto al Cielo: “tres limi-tes praedictos nullus limes alius potest dari quin aliquid diminuat deperfectione huius consilii seu voti”101 .

Olivi resta insomma pienamente cattolico senza esprimere tuttaviauna cultura della pienezza dei poteri della Sede apostolica comemanifestazione della successione di Cristo: il dialogo ecumenicopotrebbe trarre grande vantaggio dall’analisi di queste differenze trapensatori medievali (Olivi e Scoto, per esempio) che pure siriconoscono senza esitazioni nell’identità della Chiesa RomanaCattolica, più semplicemente la Sede apostolica.

99. D. FLOOD, G. GÁL (a cura di). Peter of John Olivi on the Bible. p. 382.

100. D. FLOOD, G. GÁL (a cura di). Peter of John Olivi on the Bible. p. 385.

101. D. FLOOD, G. GÁL (a cura di). Peter of John Olivi on the Bible. p. 387.

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A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRODE JOÃO OLIVI (C.1248-1298):

FUNDAMENTOS PARA A ELABORAÇÃODO PENSAMENTO FRANCISCANO

Profa. Dra. Ana Paula Tavares Magalhães(DH – FFLCH – USP)

De acordo com a tradição historiográfica da Ordem Francisca-na1 , o ministro-geral Elias de Cortona (1221-1239), ao introduziruma série de inovações no interior daquela instituição, passou a seracusado de contrariar os ideais de seu fundador, desviando-a de seuprimitivo projeto. Em conseqüência disso, por volta de 1236, umgrupo de frades liderados por Cesário de Spira manifestou-se rebel-de, opondo-se àquilo a que chamavam de extravagâncias no interiorda Ordem. Os rebeldes foram denominados Cesarenos. Acusando-osperante o papa Gregório IX de desertores da disciplina da Ordem ede provocadores de discussões internas, Elias conseguiu deste umaautorização apostólica para castigá-los. Apesar da morte de Cesário,no cárcere, no ano de 1239, seus discípulos dispersaram-se pelas pro-

1. Destacamos, a título de referência historiográfica, os seguintes autores e obras:FALBEL, N. Os espirituais franciscanos. São Paulo: EDUSP/FAPESP/Perspectiva,1995 (col. Estudos, 146); LEFF, Gordon. Heresy in the Later Middle Ages: TheRelation of Heterodoxy to Dissent c.1250 – c.1450. Machester/Nova York:Manchester University Press/Barnes & Nobles, 1967 (2 vols.); MANSELLI, Raoul.“L’Anticristo mistico: Pietro di Giovanni Olivi, Ubertino da Casale e i papi delloro tempo”, in: Collectanea Franciscana, vol. 47, fasc. 1-2; Idem. “L’idéal du Spirituelselon Pierre Jean-Olivi”, in: Cahiers de Fanjeaux, 10 – Franciscains d’Oc – LesSpirituels – ca. 1280-1324. Privat Editeur, 1975; Idem. “Pietro di Giovanni Olivied Ubertino da Casale”, in: Studi Medievali, n° 6, 1965, pp. 95-122; Idem. Spiritualie beghini in Provenza. Roma: Istituto Palazzo Borromini, 1959.

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víncias, alguns desterrados, outros aprisionados. Outros ainda refugi-aram-se e passaram a viver em lugares ermos, associados a uma tradi-ção mais que secular no cristianismo, ansiando em sua solidão pelareforma da Ordem. Juntamente com eles, viriam a difundir-se tam-bém seus ideais de pobreza absoluta e sua indignação contra aquiloque consideravam atentados ao rigor disciplinar imposto por São Fran-cisco de Assis.

Falbel nos assinala que os primeiros representantes desse movi-mento – que haveria de precipitar-se no interior da Ordem originan-do o grupo rebelde dos Espirituais Franciscanos – encontram-se en-tre aqueles que formaram com o próprio São Francisco um círculoíntimo2 . Esse autor faz menção nominal a eles como: Bernardo deQuintavalle, o primeiro discípulo; Giles, que após a morte de Fran-cisco passou a dedicar-se à contemplação mística; Leão, cognominadopecorella di Dio, confidente do mestre fundador e seu herdeiro nofervor e nos ideais; Ângelo e Rufino, que compuseram, juntamentecom Leão, a Legenda Trium Sociorum3 . Desprovidos de qualquerambição secular ou eclesiástica, esses primeiros companheiros de SãoFrancisco de Assis tenderam a criticar as modificações que se começa-vam a delinear no seio da Ordem, e que tendiam a privilegiar os“relaxados” – os quais desejavam privilégios e segurança – e os litterati

– defensores da posse de livros e de contatos íntimos com a inteligentsia

da época. A chamada fuga mundi, atitude de refugiar-se em monta-nhas, cavernas e lugares ermos de uma forma geral – favorecendouma postura eminentemente contemplativa, mas, ao mesmo tempo,marcando uma identificação com as ordens monásticas tardo-antigas

2. A esse respeito, destacamos a expressão de intimidade, utilizada nas narrativas arespeito dos primeiros tempos da Ordem, para designar as relações de seus primi-tivos membros com o santo fundador: “Nos qui cum eo fuimus” (Nós que estivemoscom ele). Cf. FALBEL, Nachman. Os Espirituais...., p. 106.

3. Cf. IDEM, Ibidem.

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e com o eremitismo romano-cristão – marcou o comportamento des-ses fratres de Francisco4 . Esse modo de vida, entretanto, passados al-guns anos, não mais se encontrava em conformidade, quer com anormatização e a sistematização pretendidas pela Sé Romana – deacordo com uma disciplina organizada em moldes administrativos edesempenhando funções diversas em vista dos interesses e necessida-des da Igreja Católica –, quer com o crescimento da Ordem – a partirda afluência de novos membros, o que a impossibilitava de permane-cer como uma fraternitas de tipo eremítico. Nesse contexto, assumiulugar de destaque a questão da pobreza, sobre a qual se alicerçava aOrdem Franciscana e sobre cuja observância teve lugar a querela en-tre a Comunidade (partidários da observância ampla, e no mais dasvezes com respaldo do clero secular e da Cúria Romana) e o grupoEspiritual (defensor da observância estrita e tido por faccioso peloradicalismo de suas posturas).

Contudo, o grupo que assim se foi delimitando como opositordas mudanças e como defensor da observância estrita àquilo que su-punham e afirmavam ser os ditames de Francisco, e que se iria desig-nar pelo nome de Espirituais Franciscanos (mais tarde, identificadocomo herético), teria como berço enquanto grupo faccioso e perse-

4. A respeito do tema da fuga mundi, do desligamento dos ofícios administrativose das questões de poder envolvendo os clérigos numa vida semi-laica, Falbel jáassinalava um escrito franciscano, expoente do seu ideal de santidade humilde ereclusa. O opúsculo intitula-se Aos que querem habitar nos eremitérios. Aqui encon-tramos citadas as palavras do próprio Frei Leão, confessor e companheiro de Fran-cisco: “Depois disse São Francisco: ‘Como eles se alimentarão e de que maneiraviverão meus filhos, que necessitarem viver nos bosques?’ A isto respondeu Cristo:‘Eu cuidarei de alimentá-los do mesmo modo que se fez com os filhos de Israel:dando-lhes o maná do deserto; porque tais religiosos serão bons e volverão aoprimitivo estado quando foi fundada e começou a Ordem.’ Mas o eremita nãodeixará de ser suspeito, tanto pelo seu modo de vida, isto é, fora da disciplinareligiosa, como pelas suas possíveis convicções.” IDEM, Ibidem, nota 8, p. 106.

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guido a marca de Ancona, na Itália central. É possível identificar talocorrência a partir do ano de 1274, quando, às vésperas do Concíliode Lyon – ocasião em que havia rumores de que o papa Gregório Xpretendia transformar as ordens mendicantes de modo a seguirem oestilo de vida das ordens tradicionais, obrigando-as a que fossem pos-suidoras de bens e de propriedades –, surgiu naquela região uma opo-sição organizada. Essa área da Península Itálica, com sua paisagem devales e montanhas, acabou por revelar-se uma profícua favorecedorado desenvolvimento do movimento, pois houvera favorecido, desdea era pré-cristã, a afluência de toda sorte de eremitas e de místicos5 .

De acordo com o espiritualismo franciscano, o elemento funda-dor de toda a doutrina cristã era o Evangelho (entendido este nas suasquatro variantes canônicas), com o qual os expoentes da facção emquestão passaram a identificar a própria Regra de São Francisco deAssis. O frade espiritual entendia o cristianismo à luz dos Evangelhose da atmosfera de religiosidade que deles emanava, sem a demandada aferição de outras razões para além da própria fé. Paralelamente aesse traço de concepção da fé cristã comum aos membros do grupo,desenvolvia-se – sobretudo entre as comunidades situadas no perí-metro compreendido entre a França meridional e a Itália central –um fenômeno marcado pela sobreposição de idéias estranhas ao fran-ciscanismo das origens e às idéias e práticas encetadas pela facção re-belde. Trata-se do chamado “Franciscanismo Joaquimita” que, segundoGordon Leff, foi apenas uma das várias formas que tomaram as dou-trinas do abade calabrês Joaquim de Fiore nas mãos de seus discípu-los6 . Assim, um mentor proeminente de alguns dos chamados Espi-

5. A esse respeito, v. PACAUT, M. Les ordres monastiques et religieux au Moyen Âge.Paris: Nathan, 1993.

6. Cf. LEFF, Gordon. Op. cit., p. 176.

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rituais Franciscanos nesse terreno foi, sem dúvida, o abade calabrêsJoaquim de Fiore (1135-1202), com sua concepção trinitária da his-tória da Igreja. Ocorreu aqui, portanto, uma simbiose entre elemen-tos franciscanos e não franciscanos. Os resultados foram, dentre ou-tros, a preconização de mudanças próximas, prenúncio do fim dostempos; a difusão de idéias que tendiam a identificar Jesus Cristo eSão Francisco de Assis; o anúncio de uma futura renovação eclesiásti-ca operada por poucos (no caso o próprio grupo dos Espirituais Fran-ciscanos, auto-intitulados viri spirituales, seguidores de São Francis-co, porta-vozes da verdade de Cristo7 ). Muito embora a aparênciaapontasse na direção do questionamento à Igreja Romana e de suahierarquia, o movimento refletia antes – e acima de tudo – o desejode reforma, tomando, por vezes, o aspecto de uma reelaboração docristianismo primitivo. Não deveria perecer, portanto, a instituiçãoeclesiástica, mas antes regenerar-se para dar lugar a uma nova Igreja,isenta do fausto, da glória e do poder. Buscava-se não uma destruiçãoda Igreja, mas sim uma alternativa para a vida de seus pastores. A basedesse projeto era, portanto, não a desobediência, mas sim a obediên-cia rigorosa ao ensinamento evangélico, fundamento de toda doutri-na. Para tanto, faziam apelo ao modelo de vida dos apóstolos de JesusCristo – a chamada vita apostolica, marcada pela pobreza, pela hu-mildade e pela mendicância, características de que se preencheu ocristianismo em sua fase mais primitiva, e que agora eles forcejavampor resgatar –, aos quais os próprios Espirituais Franciscanos acaba-vam por comparar-se. A inserção do movimento espiritual fazia-se,portanto, como luta no interior da Igreja e sob fidelidade à fé ortodo-

7. Conforme referências recorrentes presentes na Arbor vitae crucifixae Iesu, deUbertino de Casale, e na Historia septem tribulationum ordinis minorum, de ÂngeloClareno.

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xa, e jamais sob pena de exclusão de tal fé – caso da criação de novareligião – ou de cisão em relação a tal Igreja – caso da evolução parauma seita. Nos dizeres de Manselli, “a sua preocupação fundamental(...) não era uma expectativa escatológica aflita ou uma vontade detomar partido de si, distinguindo-se através de alguma coisa do corpo daIgreja, mas apenas o desejo de uma vida espiritual mais fervorosa e maissincera no âmbito da Igreja e sem qualquer veleidade de cisma”8 .

A partir de fins do século XIII, com a intensificação das querelasem torno dos ideais de pobreza professados pelos membros da Or-dem, três personalidades muito importantes para a evolução das ques-tões relativas ao tema viriam reforçar, muito embora de formas diver-sas, o partido dos Espirituais. São elas: Pedro de João Olivi (1248-1298); Ângelo Clareno (1247-1337); e Ubertino de Casale (1259-c.1328). A par disso, alguns de seus confrades lograram influênciaímpar, como Arnaldo de Vilanova. Alavancando as discussões acercada pobreza por meio de escritos e de atitudes, esses homens reuniramem torno de si, sobretudo na Itália do norte e central e na Françameridional, não somente religiosos – entre pertencentes e não per-tencentes à Ordem – mas também laicos, sendo que estes últimosforam chamados de Bizochi na Itália, e de Béguins na França.

Com relação a esses últimos, a considerar suas formas de organi-zação e suas relações com o movimento franciscano, pode-se dizerque Pedro de João Olivi desempenharia um papel fundamental paraa elaboração do movimento e para a consolidação de suas práticas. Asérie de processos inquisitoriais contra os Beguinos – que teriam lu-gar nos primeiros decênios século XIV, com ênfase para o períodocompreendido entre 1321 e 1325 – foi sistematizada por Limborch;

8 Cf. MANSELLI, Raoul. Op. cit., p. 75.

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dispomos de uma edição de fins do século XIX9 . Os processos foramconduzidos, em sua maior parte, pelo dominicano Bernardo Gui10 .

Além disso, o mesmo Olivi com seus escritos rigoristas e suasprincipais obras exegéticas – com destaque para o Comentário sobreo Apocalipse – figuraram como eixos para aquilo que se consolidou,na nomenclatura curial, como Espiritualismo Franciscano, acepçãoderivada da terminologia – viri spirituales –, recorrente nas obras eopúsculos produzidos pelos mesmos no contexto da contenda que osopôs, ao longo das três primeiras décadas do século XIV, aos Conven-tuais, por um lado, e à Cúria Romana-Avinhonense, por outro.

Pedro de João Olivi teria nascido entre 1248 e 1249, em Sérignan,no distrito de Hérault, no Languedoc. É provável que tenha ingressa-do na Ordem Franciscana entre 1260 e 1261, no convento de Béziers,com a idade de doze anos. Mais tarde, enviado a Paris, teria recebidoseu bacharelado em Teologia. Os últimos anos de sua vida, ele teria

9. LIMBORCH (ed.). Liber Sententiarum Inquisitionis Tholosanae, ab anno ChristiMCCCVII ad annum MCCCXXIII.

10. Uma aguda admiração pelo mestre pode ser depreendida do depoimento dePetrus Moresii, que teria declarado a Bernardo Gui10: “Item quod non fuit aliquosdoctor, excepto sancto Paulo et predicto fratre Petro Iohannis, cuius aliqua dictanon fuerint per ecclesiam refutata, set scriptura et doctrina sancti Pauli et predictifratris Petri Iohannis est tenenda totaliter per ecclesiam, nec est una litteradimittenda.” Col Doat, vol. XXVIII, fl. 229v.-230r., apud MANSELLI, Raoul.Spirituali..., nota 1, p. 182. No depoimento de Petrus Gaufridi, encontramos juízoscontundentes a esse respeito: “& ipsum [Olivi] apellant sanctum patrem & magnumdoctorem, & ipse ita credebat quod non fuisset major doctor eo ab apostolis citra,& audivit dicti seu legi inter beguinos ipsum fuisse & esse spiritualiter illum angelumde quo scribitur in apocalipsi quos facies ejus erat sicut sol, & habebat librumapertum in manu sua, quia singulariter inter omnes alios doctores fuerat ei apertaverita Christi & intelligencia libri apocalipsis, de quo libro in postilla ejusdemfratris P. Iohannis plura legerat scripta & posita in vulgari” (LIMBORCH, Ph. Op.cit.– “Depoimento de Petrus Gaufridi”, fl. 163v. p. 325).

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vivido no convento de Narbona, mantendo boas relações com o cleroe com os notáveis. Veio a falecer aos 14 de março de 1298, tendolegado uma profissão de fé na qual afirmava as doutrinas que susten-tara em vida. Sua presença, por vezes tida por heterodoxa – o que serevela, sob um outro ponto de vista, um equívoco –, acabou muitasvezes por causar reservas, chegando mesmo a ser censurado e removi-do de sua cátedra. Em 1287, após ter sido reabilitado, tornou-se lector

em Florença, estada ao longo da qual cimentou relações entre italia-nos e franceses do sul: era o início de um frutífero relacionamentocom a ala italiana dos reformadores da Ordem, dentre os quais lo-grou destaque Ubertino de Casale e, possivelmente – mas não prova-velmente –, Ângelo Clareno. De volta à sua terra natal, em 1289,tornou-se lector nas casas franciscanas em Montpellier e Narbona. Aomorrer, seu culto espalhou-se, dando origem a peregrinações. Passoua ser considerado um santo não-canonizado.

Ele seria identificado aos doutores da Igreja, em especial a SãoPaulo, ao qual a Revelação da Santa Escritura também houvera sidoprodigada11 . A devoção em torno da figura de Olivi remetia a refe-rências milagrosas, como se pode depreender dos depoimentos maiscorrentes12 .

11. “cuius aliqua dicta non fuerint per ecclesia refutata, set scriptura & doctrinasancti Pauli & praedicti P. Iohannis est tenenda totaliter per ecclesia, nec est unalittera dimittenda” (LIMBORCH, Ph. (ed.). Op. cit., “Processo de Petrus Moresii”,fl. 154b, p. 306).

12. “Item scripturam fratris Petri Ioannis credidit esse bonam et catholicam etdictum fratrem Petrum Ioannis [m. Ioannem] esse sanctum et quandam filiamsuam, quae patiebatur infirmitatem in gutture, scilicet scroellas ad sepulcrum suumduxit et curata fuit et credidit quod per orationem dicti fratris Petri curata fuerit,quem fratrem Petrum adhuc credit esse in Paradiso, licet dicat se audivisse quod inscriptura sua continentur errores, sed audivit insuper quod in fine supponit eamcorrectioni sancte Ecclesie...” (Col. Doat, XXVII, fl. 18r – Depoimento de SibillaCazelle di Gignac, nov. 1325, apud MANSELLI. Spirituali..., nota 2, p. 37).

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Dentre seus escritos, destacam-se, além dos dois tratados De

Paupere usu e De Perfectione evangelica – escritos de base rigorista,defensores da prática estrita do usus pauper no interior da Regra, edi-tados por David Burr13 e uma das razões para que sua memória fosselevada além por uma série de movimentos identificados à Ordem,fossem de base laica ou não –, comentários sobre o Gênese, os Salmos,os Provérbios, o Cântico dos Cânticos, os Evangelhos e o Apocalipse, umtratado sobre a autoridade do papa – o De renuntiatione papae14 – edo concílio e uma exposição sobre a Regra de São Francisco – trata-seda Declaratio in regulam, na qual ele elabora uma teoria da vida cristãem pleno acordo com os evangelhos. Ele compreende a Regra deFrancisco como o documento formalmente adequado a um projetode vida plenamente evangélico15 .

Ao tratar, ainda, da Regra Franciscana, Olivi considera a questãodo poder papal de dispensar de um voto e, em particular, de votosevangélicos. O frade faz referência ao fato de o papa poder comutar amatéria de um voto em uma ação melhor. Entretanto, tal possibilida-de encontra-se excluída no caso dos votos evangélicos. Dessa forma,o papa não pode dispensá-los. Essa postura de Olivi coaduna-se per-feitamente com sua concepção do desenvolvimento da história. Avida evangélica pertence ao último tempo da viagem do homem emdireção à ordem eterna. A Regra de São Francisco manifesta o engaja-

13. BURR, David (ed.). De usu paupere – The Quaestio and the Tractatus. Firenze/Perth, 1992, pp. 92-93.

14. Escrito que alimentaria, em princípios do século XIV, no ambiente francisca-no, a célebre controvérsia a respeito da renúncia de Celestino V e da ascensão deBonifácio VIII ao trono pontifício.

15. Apud FLOOD, David. “Pierre Jean-Olivi et la Règle Franciscaine”, in: Cahiersde Fanjeaux, 10 – Franciscains d’Oc – Les Spirituels – ca. 1280-1324, Privat Editeur,p. 143.

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mento dos homens à vida segundo o Evangelho. Por essa razão, éimpossível dispensá-los16 .

Ao fim de sua resposta à questão sobre o poder papal de dispensardos votos, Olivi explica que Francisco compreendera bem isto, e, poressa razão, decretou que ninguém poderia retirar-se da Ordem umavez introduzido nela. O frade prossegue nesse aspecto por intermé-dio de uma interpretação do Testamento de São Francisco de Assis.Ele explica que Francisco deixara sua última mensagem a seus irmãosa fim de impedir que alguém se dirigisse a Roma no desejo de fazerrelevar os rigores da Regra. Assim, seu Testamento não impusera ne-nhuma nova lei aos frades. Antes, explica ele, Francisco não possuíaautoridade para fazê-lo17 .

Ainda em seu comentário sobre a Regra, Olivi discorre a respeitode três pontos, que definem, a saber, a teoria, a localização social e osentido histórico desse documento. Quanto ao primeiro aspecto, afir-ma a identidade entre a Regra Franciscana e o Evangelho. O modode vida seguido por Francisco e por seus irmãos é a vida vivida porCristo e imposta por ele a seus apóstolos18 .

Quanto ao segundo aspecto, em contrapartida, ao mesmo tempoem que confere à prática da Regra uma validade evangélica, Olivi assegu-ra que este corpus de homens que vivem de acordo com o Evangelho o fazdentro da Igreja, submisso ao papa. Quanto mais um grupo procurarealizar o Evangelho em sua vida, mais ele é obrigado a enraizar-se pro-fundamente na Igreja, unificada sob a autoridade do papa19 .

Quanto ao terceiro aspecto, o frade considera a vida propostapela Regra como a continuação da história de São Francisco de Assis.

16. Apud IDEM, Ibidem, p. 147.

17. Apud IDEM, Ibidem.

18. Apud FLOOD, David. “Art. cit.”, p. 140.

19. Apud IDEM, Ibidem, p. 141.

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Assim, a Regra fazia mais do que prescrever o gênero de vida condu-zido por São Francisco de Assis. Ela, com efeito, unia os frades meno-res àquele homem como forma de continuação do projeto misteriosoque o Santo Espírito havia iniciado com ele. Ele precisa, nesse caso,que qualquer outra instituição consagrada ao mesmo programa evan-gélico não desempenharia o mesmo papel histórico decretado pelostatus e pela ordo da sucessão franciscana. Olivi não considera, pois, aOrdem, que existe pela Regra e vive segundo a Regra, como distintada história vivida por Francisco20 .

É de se supor a grande repercussão atingida por sua obra, dadoque seu comentário sobre o Apocalipse – a Lectura super Apocalypsim–, seu escrito de maior destaque, foi lido tanto em latim quanto emvulgar. Afirmava-se-lhe um poder de captação de verdades reveladase, portanto, a autenticidade de sua doutrina, enquanto inspirada pelaluz divina e, naturalmente, católica21 .

Seus pontos de vista foram sintetizados por Ângelo Clareno em seuHistoria Septem Tribulationum Ordinis Minorum. Pregava-se a frugalida-de, condensada em preceitos de retorno ao Cristianismo primitivo e de

20. Apud IDEM, Ibidem, p. 142.

21. “Item, dicunt et asseverant quod tota doctrina et scriptura fratris Petri IohannisOlivi de ordine fratrum Minorum est vera et catholica et eamdem credunt etdicunt fuisse ei a Domino revelatam et dicunt dictum fratrem Petrum Iohannishoc ipsum, dum vivebat, suis familiaribus revelasse. Item, eumdem fratrem PetrumIohannis communiter vocant sanctum patrem non canonizatum.”GUI, Bernard. Manuel de l’Inquisiteur. Ed. e trad. por G. Mollat, colab. De G.Drioux, sob o título Manuel de l’Inquisiteur. Paris: Les Belles Lettres, 1964, p. 138.Assim, o depoimento de Raymundus Stephani de Cruce: “Item dixit & asseruit secredere & tenere de doctrina fratris Petri Johannis Olivi, tam in postilla superapocalipsim quam in tractatu de paupertate, de quibus audivit aliquociens sibilegi, quam in aliis libris suis, quod sit bone & catolica. Item quod sit dominus papaper se ipsum auctoritate propria absque concilio prelatorum universalitercongregatorum condempnaret dictam doctrinam in parte vel in toto ipse nonreputaret eam condempnatam etiam si hoc faceret de concilio cardinalem.”LIMBORCH, Ph. (ed.). Op. cit. – “Processo de Raymundus Stephani de Cruce”,fl. 162b., pp. 322-3.

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apologia a São Francisco de Assis, o que acabou por se tornar um topos

dos movimentos espiritual e beguino: “não concedia a seus irmãos maisque o consumo de alimentos necessários para a vida de cada dia e o usode objetos, breviários ou vestimentas sagradas que servem para o ofíciodivino. Proibia-os de receber donativos pelas sepulturas outorgadas emigrejas de frades menores ou qualquer outra doação”22 .

A condenação dos escritos de Olivi estaria relacionada com as dispu-tas intraclericais verificadas nessa época de fermentos no meio eclesiásti-co. Trata-se das contendas inerentes à gênese e à atuação da Inquisição.Elas demonstram a tendência, por parte dos seculares, à tentativa de res-tringir o campo de atuação dos regulares, em especial no interior dasUniversidades. O conhecimento monástico – em especial no interior daUniversidade – projetava sombras sobre o clero episcopal e das paróquiase sobre a hierarquia. Assim, na Universidade de Paris, uma disputa, deri-vada do ressentimento do clero secular – pela virtual perda de prestígiopara o clero regular graças ao ingresso de seus magistri naquela instituição– grassava e arrastava consigo os escritos que sobressaíam por conter afir-mações que pudessem suscitar o debate23 .

22. FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 83.

23. Com efeito, em meados do século XIII, a Universidade de Paris encontrava-seenvolvida em agitada luta contra as Ordens Mendicantes – Franciscanos e Domi-nicanos. O início da contenda situa-se na figura de Guilherme de Saint Amour,cônego de Beauvais e, desde 1247, professor de filosofia e teologia na Universidadede Paris. Este voltou-se contra as Ordens Mendicantes num momento em que elasconheciam um período de significativa ascensão no interior da Universidade, umavez que passaram, pouco a pouco, a apoderar-se das cátedras universitárias, queantes constituíam patrimônio exclusivo do clero secular. Por escrito, no púlpito ena cátedra, começou Guilherme de Saint Amour a atacar os Mendicantes, come-çando pelos Dominicanos, e passando, em seguida, aos Franciscanos. Manifestou-se contra seus direitos e privilégios de predicar e de confessar, bem como de enter-rar em suas igrejas; o ideal da pobreza em comum, assim como sua existênciapropriamente dita como instituições religiosas, ridicularizando-os. Em sua conten-da, Guilherme logrou angariar a seu favor grande parte do clero secular, destacan-do-se aqueles membros que, em função da presença das Ordens Mendicantes,

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De acordo com alguns autores24 , Pedro de João Olivi, francisca-no da Provença, teria recebido estímulos dos escritos apocalípticos do

criam ameaçados os seus privilégios econômicos diante das atividades conventuais.Em seu empenho em detratar as Ordens Mendicantes, Guilherme acabou porpublicar o livro De Antichristo (1254) e o tratado De periculis novissimorum temporum(1256). Com isso, a hostilidade, que se havia iniciado no terreno jurídico, passouao terreno dogmático, uma vez que o catedrático, em seus dois escritos, conflitavacom a doutrina evangélica referente à pobreza. Os Franciscanos e Dominicanosnão deixaram, contudo, de reagir. Assim, São Tomás, Santo Alberto Magno e oFranciscano Tomás de York assumiram a defesa de suas ordens. São Tomás redigiua obra Contra impugnantes Dei cultum; Santo Alberto Magno, sua Philosophiapauperum, e Tomás de York, o livro intitulado Manus quae contra Omnipotentemtenditur. Boaventura, por seu turno, também não deixaria de tomar a si a defesa dapobreza evangélica, identificada com a perfeição. Ele encontrava-se, por essa épo-ca, na Universidade de Paris, na função de mestre. Interveio, portanto, no debate,compondo as chamadas Quaestiones disputatae de perfectione evangelica. Nelas, tra-ta-se das virtudes evangélicas, a saber, humildade, pobreza, castidade e obediência,as quais formariam o núcleo do estado religioso. Uma ocasião semelhante motivououtra magnífica obra de São Boaventura, a Apologia pauperum contra calumniatorem.A luta, num primeiro momento, havia-se dissipado. Com efeito, o papa AlexandreIV condenou, em Agnani, após o exame de uma comissão de cardeais, em 5 deoutubro de 1256, o Tractatus brevis de periculis novissimorum temporum, publicadopor Guilherme naquele mesmo ano23. Pela sua sentença, foi privado, juntamentecom seus colegas, de suas dignidades e benefícios eclesiásticos e da cátedra, saindodesterrado de Paris e da França por ordem do rei Luís IX. Em seu desterro, entre-tanto, não se assinalou um fim à campanha contra o estado religioso. Nova luta,com efeito, iniciou-se, da qual veio a ser pivô Geraldo de Abbéville, cônego deAmiens, amigo de Guilherme e, como ele, mestre na Universidade de Paris. Estenovo adversário do Mendicantes escreveu o livro Contra adversarium perfectionischristianae, obra na qual combatia furiosamente o franciscano Tomás de York. Aluta desenvolvia-se nos terrenos doutrinal e prático a um tempo: “O inimigo dosMendicantes intentava primeiramente abater o cume da perfeição evangélica, emseguida derrubar seus muros, depois destruir seus fundamentos e, por último,difamada já caluniosamente a profissão dos Pobres de Cristo, torná-la abominávelaos olhos do mundo.” (Apud SÃO BOAVENTURA. Quaestiones disputatae deperfectione evangelica, in: Obras de San Buenaventura. Eds. Fr. Bernardo Aperribay,O.F.M.; Fr. Miguel Oromi, O.F.M.; Fr. Miguel Oltra, O.F.M. Madrid: BAC,1949, p. 7). O momento era, portanto, de desvio ascético, e São Boaventura redi-giu, então, sua Apologia pauperum contra calumniatorem. Trata-se de uma obra quesempre fora considerada, pelos eruditos, como autêntica de Boaventura. Ele teria

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abade calabrês Joaquim de Fiore (1136-1202). Assim, de acordo comtoda uma literatura que tende a perdurar até os dias de hoje e a coe-xistir, com alguns escritos revisionistas recentes25 , um componenteimportante das correntes místico-espirituais franciscanas pode serencontrado na obra do abade calabrês Joaquim de Fiore (1136-1202).Nascido em Celico, na Calábria, Joaquim de Fiore é considerado umafonte inesgotável de inspiração para movimentos de tal porte, tendoem vista sua proposta e seu método, consignados em sua chamada

escrito esse opúsculo sendo já ministro geral e, provavelmente, antes de 1269. Aocasião era, portanto, aquela da defesa das ordens Mendicantes contra as acusaçõeslançadas pelos mestres de Paris. Concretamente, na verdade, contra Geraldo deAbbéville e seus seguidores. Consiste em obra realizada com extrema diligência,abundante doutrina e grande sensibilidade, na qual abundam os textos da SagradaEscritura e dos santos padres da igreja. O santo desfaz os sofismas e falsos princípi-os de seu adversário, expõe de forma sólida a doutrina evangélica e declara o senti-do exato da regra dos Frades Menores. Mostra-se, nessa ocasião, mais duro do quehavia estado com relação a Guilherme de Saint Amour, a quem Alexandre IVcondenara no ano de 1256. Em sua crítica a Geraldo de Abbéville, fixa o conceitoda perfeição, celebra a sublimidade da vida religiosa e exalta a pobreza de Cristo,modelo da pobreza dos Mendicantes. Trata-se da obra culminante escrita porBoaventura acerca da perfeição evangélica. Boaventura afirma que Geraldo, “aocolocar a abundância dos bens temporais no cume da perfeição evangélica, e calu-niando como imperfeita e supersticiosa a voluntária carência dos mesmos, confes-sa-se discípulo daquele [Guilherme de Saint Amour] que compôs um opúsculocontra as Ordens dos evangelizadores e pobres Mendicantes, condenada pela SéApostólica.” (SÃO BOAVENTURA. Apologia pauperum contra calumniatorem, in:Obras de San Buenaventura. Eds. Fr. Bernardo Aperribay, O.F.M.; Fr. Miguel Oromi,O.F.M.; Fr. Miguel Oltra, O.F.M. Madrid: BAC, 1949, p. 542.) Tais homens,arrogantes no entender de São Boaventura, alimentavam-se com a vaidade destemundo, crendo conquistar grande glória ao chamar de simulação dolosa a verda-deira santidade dos santos e ao reprovar sua prudência de espírito como insensatez(Ibidem, p. 636).

24. Destacam-se LEFF, G. Op. cit. e FALBEL, N. Os Espirituais....

25. A esse respeito, v. POTESTÀ, G.L. Storia ed escatologia in Ubertino da Casale.Milano: Università Cattolica del Sacro Cuore, 1980 (Vita e Pensiero); “Un secolodi studi sull’ ‘Arbor vitae’: Chiesa ed escatologia in Ubertino da Casale”, in:Collectanea Franciscana, vol. 47, 1977, pp. 217-267.

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doutrina trinitária. Trata-se da trindade manifesta na história da hu-manidade, determinando uma série de etapas no curso de sua exis-tência. Nos dizeres de Falbel, “Mais do que isso, a Trindade serve deesquema para reconhecer uma escala de valores éticos no comporta-mento da humanidade, no roteiro de sua salvação”26 .

Sua Lectura super Apocalypsim teria, dessa forma, reproduzido edesenvolvido uma série de preocupações e matrizes teóricas postula-das por Joaquim em suas obras. No entanto, conforme dito acima, opróprio alcance de tal influxo sobre a obra de Olivi é controverso.

É comum encontrar, no pensamento de Pedro de João Olivi, umatentativa de identificação entre os stigmata de Cristo e a degradaçãomoral da Igreja, bem como as atribulações que dela resultavam. As-sim, a primeira atribulação – a opressão clerical – representava as cha-gas nos pés de Cristo. A rapinagem e a fraudulência clericais, as cha-gas de suas mãos. Por fim, a luxúria clerical identificava-se às feridasabertas em seu lado e em seu coração27 .

Olivi procedeu à identificação de cada era da história eclesiásticaa uma figura do bestiário. A preeminência pertencia à quinta Era, ouseja, a então atual. A figura representativa, nesse caso, era o dragão desete cabeças, que evocava a extrema virulência em função das evidên-cias observadas com respeito ao comportamento dos membros doclero. O mundo seria então governado pelo instinto, e não pela razão.No entender dos Beguinos, emergiria a besta com sete cabeças, àsquais se acrescentariam dez chifres, e a figura seria reportada à exis-

26. FALBEL, Nachman. “São Bento e a ordo monachorum de Joaquim de Fiore(1136-1202)”, in: Revista USP, São Paulo, Jun-Jul-Ago, 1996, p. 273.

27. “In prima autem tribulatione clericales conculcant plebeios quasi pedes perfastum arrogantie et per contemptum contumelie seu parvificentie per rapinemolestiam et per calumnie fraudulentiam sunt eorum manus aliorum. Per lateralemautem sive visceralem aperturam luxurie cruciant eorum corda et viscera” (ApudLEFF, Gordon. Op. cit., p. 128).

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tência da Igreja atual enquanto grande prostituta da Babilônia, cor-rompida pelos vícios mundanos28 .

A besta ascenderia à superfície da Terra por meio da multidão depessoas bestiais caídas em erro ou infidelidade. Os principais demô-nios, conduzindo os fiéis à tentação, eram as sete cabeças do dragão.As duas últimas eram o Anticristo místico – ou o primeiro –, queapareceria no final da quinta idade, e o Anticristo aberto, cuja vindapressagiaria o fim do mundo. Todas as perseguições seriam doAnticristo. Tudo aquilo que concerneria ao Anticristo real incluiria oAnticristo místico, como seu precursor. A besta ascendendo do marrepresentaria a Cristandade carnal e secular, e suas muitas cabeças ospríncipes e prelados carnais; um deles fora morto pela vinda de SãoFrancisco, pelo forte impacto da pobreza e perfeição evangélicas. Masisso só levara a lassidão a reviver mais fortemente.

É sintomático, portanto, no entanto, que Olivi escrevesse no in-terior de uma ortodoxia e, malgrado seu rigorismo, em obediência efidelidade a ela. Para ele, os inimigos de Cristo eram os discípulos deAristóteles e de Alexandre Magno, bem como os sarracenos, judeus eheréticos. Aquilo, portanto, que pudesse solapar as bases do Cristia-nismo, seja pela via intelectual, política ou doutrinária, era combati-do. Nas menções que faz à Regra Franciscana no conjunto de seusescritos, ele buscou sensibilizar a consciência franciscana quanto a seupapel histórico e às implicações de tal destino.

Assim, pode-se afirmar que Olivi lançou argumentos combativosespecialmente em três frentes, no sentido de caracterizar as atribulações

28. “legitime constat judicio recognouit quod ipse audivit legi in postilla fratrisPetri Johannis Olivi super apocalipsim de muliere vestita auro habente poculumaureum in manu sua sedente super bestiam habente capita VII. & cornua X. &habebat super se scriptum misterium, Babilon meretrix magna fornicacionum”(LIMBORCH, Ph. Op. Cit., “Processo de Raymundus de Buxo”, fl. 151, p. 298).

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pelas quais passava a Igreja às vésperas do fim dos tempos. Em pri-meiro lugar, pode-se dizer que o declínio da Igreja seria oriundo dasenormes cupidez e ambição de seus prelados e abades. Em segundolugar, invocava os heréticos em grande número de situações, tal qualjá o fizera Joaquim de Fiore; as heresias que consistiam no eixo daspreocupações eclesiásticas da época eram em especial o Valdeísmo e oCatarismo. Por fim, censurava os teólogos e escolásticos, em especialde Paris, que abraçaram o aristotelismo e o averroísmo29 .

Deve-se assinalar que o exame das idades conforme Olivi nãopermitia ainda a identificação da Igreja Carnal à Igreja existente. Suabase teórica estava, na verdade, presente em São Paulo, na II Epístolaaos Tessalonicenses, na qual se faz revelar o homem do pecado comoaquele que repudiou o evangelho da pobreza. A Igreja, então, passaraa tornar-se obstáculo à sua massa de seguidores. É comparada ao rioEufrates, que impede a continuidade da jornada; assim, também aIgreja estaria obliterando o caminho daqueles que desejavam seguir ovoto de pobreza evangélica30 . Ressalte-se ainda que não temos aquiuma identificação direta entre um dado pseudo-papa e o Anticristo;no entanto, a ligação podia estar implícita, já que seria este a conde-nar o franciscanismo.

29. “Ad cujus evidentiam nota quod communia malia omnibus temporibus ecclesieet humano genere communia... erant tria gravissima circa finem quinte temporisventura quorum a prima fuit effrenata laxatio clericorum, monachorum et laicorumseu vulgarium plebium fraudibus; secunda sumens a predicta occasionemhereticorum Manicheorum et Valdensium eis in multis consimilium et multa etpestifera inundatio. Tertium aliorum ypocritalium religiosorum cum primismultiplicatio et spiritus Christi, et vite ejus ab omnibus impugnatio, quamvis diversismodis et prandibus, ut fiat perplexior temptatio fere inducens in errorem electos”(Apud IDEM, Ibidem, p. 132).

30. “Potestas enim papae et multitudo plebium sibi obediens et favor ejus est quasimagnus fluvius Euphrates impediens transitum et insultum emulorum evangelicistatus in ipsum” (Apud IDEM, Ibidem, p. 134).

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Não se trata de um movimento de contestação à hierarquia ecle-siástica. Com efeito, Olivi, no conjunto de seu pensamento, jamaisprocurou negar a validade da hierarquia eclesiástica. Neste ponto, aexperiência cultural e humana de Olivi revela uma densidade e umvalor intensos e fecundos. Assim, Olivi, muito embora aceitando ple-namente a realidade da hierarquia eclesiástica, não desconhece, porsua vez, até que ponto esta realidade encontra-se representada porindivíduos muito distanciados do ideal de santidade e de perfeiçãooferecido por Cristo.

Com efeito, em seu tratado sobre a obediência, Olivi menciona aRegra Franciscana como condição, também, de obediência. Ele des-taca a importância da obediência como parte substancial da perfectio

evangelica. Ele assegura que a obediência vivida pela Regra persegue arealização da verdade evangélica.

A posição de Olivi a respeito da Regra de sua Ordem obriga-nos,portanto, a situá-lo claramente no interior das estruturas institucio-nais de seu tempo, a descartar, portanto, não somente a suspeita deheresia, mas também todo desprezo formal em relação à autoridade.

Com efeito, encontram-se em Pedro de João Olivi enunciadosaparentemente opostos. Por um lado, de acordo com alguns autores,ele seria até mesmo o mentor da tese da infalibilidade do magistériopontifical. De outro, em contrapartida, ele teria visto na Igreja Ro-mana a Babilônia do Apocalipse, perseguidora dos santos, e, no papa,o Anticristo. Esse aparente paradoxo é, contudo, resolvido após umexame das linhas gerais do pensamento do frade. Raoul Manselli de-monstra que a Igreja carnal é, para ele, uma realidade concreta, masque não pode ser identificada com uma realidade determinada dotempo e do espaço. Tal qual a Cidade do mal de Santo Agostinho,Roma poderia ser a Babilônia, um papa poderia ser o instrumento doAnticristo do qual São Francisco teria tido a revelação. Mas este seria,então, um pseudo-papa. Olivi certamente previu o advento de tem-

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pos mais difíceis e até mesmo de um papa que contradiria a regraevangélica. No entanto, embora tendo denunciado a existência deum reino crescente da Besta no quinto estado da Igreja, ele não desig-nou ninguém como sendo já o Anticristo ou esse falso papa. Ao con-trário, ele acabou por justificar a legitimidade de Bonifácio VIII apósa renúncia de Celestino V, o qual, entretanto, perfazia, a seus olhos,uma simpática figura de homem espiritual e de asceta31 .

Olivi participa da corrente de idéias de inspiração dionisiana queapoiava, nos teólogos franciscanos do século XIII, a concepção deuma eclesiologia romana e papalista, conforme consta da Declaratio

in Regulam32 .

O frade atribui uma imensa autoridade e muito grandes poderesao papa. Não deixa, entretanto, de fazer uma reserva: o poder pontificalnão se deve voltar contra a lei do Cristo. Ao fazer tal afirmação, eletem em vista um caso preciso: a forma de vida evangélica revelada porSão Francisco, caracterizada pala ausência de propriedade e pelo usus

pauper. O papa que recusasse esse ponto de fé e de lei seria um pseudo-papa. Não seria, portanto, um papa, devendo, supostamente, ser o

31. Apud CONGAR, Yves. “Les positions de Pierre Jean-Olivi d’après les publicatiosrécentes”, in: Cahiers de Fanjeaux, 10..., pp. 155-156.

32. “Quia constat quod colligantia totius corporis ad suum universalissimum caputest eius universale stabilimentum. Ex hac enim accipit suam unitatem et totalitatem.Rursus si summus pontifex est sic caput totius ecclesiae quod ei non subesse estextra ecclesiam esse ac per consequens et extra fidei catholicae unitatem, quidmirum si regula evangelica, in supererogativo zelo fidei Christi plantata, debuit sicin principali sede Christi suum statum infigere ut nullus stipes vel surculus siveramus rectius aut profundius vel firmius staret in illa? Et hinc est quod Franciscoinstitutori seu renovatori huius regulae datus fuit singularis et superfervidus zelusad obedientiam et reverentiam vicarii Christi et ecclesiae romanae..”(...) “Sicutigitur papa est omnium christianorum ordinarius et immediatus propter quod totaecclesia est plene et intime una, sic generalis est omnium minorum ordinarius etimmediatus. Et ideo totus hic ordo est sic unus sicut unus singularis conventus”(Apud IDEM, Ibidem, pp. 156-157).

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Anticristo. Nesse caso, poder-se-ia e até mesmo dever-se-ia desobedecê-lo. É aqui que se situam os textos suposta e aparentemente antipapaisde Olivi, em particular sua Lectura super Apocalypsim, na qual Olivimenciona um tal instrumento da Besta como se já estivesse iminente.

Olivi certamente contestou a qualidade da vida daqueles que seencontravam engajados nos votos da vida evangélica e daqueles quedavam continuidade à vida apostólica. Ele acreditava na eficácia daação humana. De acordo com Olivi, se os homens no interior daOrdem e na liderança da Igreja permanecessem fiéis às idéias queprofessavam, dariam início a uma nova idade histórica. Ele enfatizavaantes o homem que a instituição. Era necessário que os homens fos-sem fiéis, e não que as instituições fossem aperfeiçoadas. Em conse-qüência desse pensamento, as idéias de Olivi tomaram forma nosconflitos no interior da Ordem e da Igreja.

Por essa razão, alguns estudiosos vêm afirmando que não seria neces-sário e nem tampouco adequado atribuir a Olivi a qualificação de Espiri-tual. No entender de alguns, tal palavra encontra um sentido preciso nahistória do século XIV, mas não teria aplicação precisa aos personagensdo século XIII33 . De qualquer forma, resta que as idéias em voga noschamados meios espirituais do século XIV têm seu germe nas formas depensamento dos frades rigoristas do século anterior.

Apesar das influências posteriores, pode-se afirmar que Olivi apre-sentou uma visão extremamente equilibrada acerca da Regra da Ordem,e, em conseqüência, acerca das instituições. David Flood afirma que, poressa razão, encontraram-se, em sua obra, poucos elementos que se pres-tassem à crítica por ocasião do Concílio de Viena (1312), a despeito,naturalmente, de uma busca intensa por falhas doutrinais34 .

33. Cf., por exemplo, FLOOD, David. “Art. cit.”, p. 150.

34. Cf. IDEM, Ibidem, p. 151.

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Em sua Lectura super Apocalypsim, ao tratar da abertura do sextosigilo35 , Olivi afirma que tal evento encontrava-se prestes a aconte-cer. Ele lembra que o sexto e o sétimo estados da Igreja conheceriamuma manifestação particularmente clara da vida do Cristo. Tal far-se-ia presente por intermédio da Regra dos frades menores, que consistena própria vida evangélica do Cristo. Olivi passa em revista quatroopiniões acerca do momento da abertura do sexto sigilo: uma coloca-a ao início da Ordem; uma outra no momento da revelação feita aJoaquim de Fiore sobre o sexto e o sétimo estados; uma terceira quan-do da destruição da Babilônia, ou seja, a Igreja carnal; uma quartaopinião afirma que o sigilo seria aberto quando homens surgiriam noespírito de Cristo e de Francisco no momento em que a vida evangé-lica seria atacada. Olivi propõe a fusão de tais diversas opiniões. As-sim, tal como os quatro evangelhos começam em momentos diferen-tes, o mesmo aconteceria à abertura do sexto sigilo36 .

Ao compreender a Regra como programa evangélico, Olivi fazcom que ela consista em elemento importante no momento da aber-tura do sexto sigilo. Ela encontra-se, dessa forma, intimamente ligadaaos dramas profundos da história. Devido ao fato de interpretar ahistória como a luta do Cristo para transformar o mundo, para trazera justiça e a paz, Olivi encontra-se convencido de que aqueles quevivem segundo a verdade do Cristo, proposta pela Regra, encontram-se no centro das grandes batalhas históricas.

Francisco de Assis havia aportado uma revelação nova no queconcerne à forma da vida evangélica como consistindo na pobreza,na ausência de propriedade e no usus pauper. Da mesma forma, aocabo do quinto estado do Antigo Testamento, Cristo e os Apóstoloshaviam substituído o judaísmo pelo Evangelho. Ele apoiava-se, tam-

35. Cf. Ap. 4,12ss.

36. Apud FLOOD, David. “Art. cit.”, p. 144.

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bém na bula Exiit qui seminat, publicada por Nicolau III em agostode 1279, que consagrava a interpretação rigorosa da pobreza e queapresentava São Francisco como um momento novo e solene na his-tória da salvação37 .

Para Pedro de João Olivi, assim como para Boaventura de Bagnoregio,a canonização de São Francisco e a aprovação da Regra pelo papa possu-íam uma importância decisiva. Ele apoiava-se na bula Exiit para estabele-cer que nenhum outro papa poderia tornar sobre aquela determinação afim de modificá-la, conferindo dessa forma razão aos Conventuais e con-tradizendo o ensinamento do documento papal, conforme consta de suasquestões De perfectione evangélica38 .

Esta posição teológica de Olivi vem confirmar suas concepçõeseclesiológicas a respeito da infalibilidade pontifical. Assim, a luta pelapobreza absoluta apoiava-se numa bula papal da qual Olivi afirmavao caráter intangível. É por isso que, aos olhos de Olivi, um papa quepregasse outra coisa que não a verdade revelada a Francisco e emFrancisco, e canonizada pela bula Exiit, seria um pseudo-papa. As-sim, se Olivi recusava ao papa o poder de dispensar de um voto evan-gélico contido na Regra Franciscana, não era devido à autoridade deSão Francisco sobre sua Regra inspirada, mas sobretudo porque aIgreja era obrigada a reconhecer a Ordem Franciscana como modelode perfeição cristã.

Uma leitura mística de Olivi, nos moldes da oposição entre aIgreja carnal e a Igreja espiritual – bem como do ideal da espera de

37. “Haec est apud Deum et Patrem munda et immaculata religio, quae, descendensa Patre luminum, per eius Filium exemplariter et verbaliter Apostolis tradita, etdeinde per Spiritum Sanctum beato Francisco et eo sequentibus inspirata, totius inse quasi continet testimonium Trinitatis.”Apud CONGAR, Yves. “Art. cit.”, p. 159.

38. “An Romano Pontifici in fide et moribus sit ab omnibus catholicis tamquamregule inerrabili obediendum?” (Apud IDEM, Ibidem, p. 159).

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uma Igreja futura, redimida de suas mazelas pela ação dos chamadosviri spirituales – acabava por conduzir a determinadas conclusões,condizentes e identificadas com o pensamento espiritual. Assim, apobreza franciscana tornava-se, por sua vez, o ideal e a característicada futura Igreja. Dessa forma, pobreza e final dos tempos identifica-vam-se e aproximavam-se. Os frades eram pobres porque já pertenci-am à nova idade. Esta, por sua vez, significaria o triunfo da pobreza, umavez que seria a idade da plenitude de Cristo39 . Não se encontra em Olivium pleno desenvolvimento da relação entre pobreza e final dos tempos.Contudo, não deixa de ser significativo que o frade iniciasse seu Tractatus

de usu paupere afirmando que nos últimos tempos a antiga serpente vol-tava-se contra a pobreza evangélica40 , e o concluísse mediante a afirma-ção de que a negação do usus pauper representa a preparação do caminhopara a seita do Anticristo, pois nada prepara melhor o caminho parasua seita do que a blasfêmia à altíssima pobreza41 .

Desenvolveu-se na Provença e na Itália do norte e central todauma tradição de culto a Olivi, ligada especialmente à presença histó-rica da luta dos Espirituais Franciscanos. Com efeito, o postulado deprincípios relacionados à observância estrita da Regra, as discussõesem torno do ideal da pobreza absoluta, acabaram por criar na regiãouma ambiência receptiva à crítica de clérigos e de fiéis não só à Or-

39. Cf. DE Boni, Luís Alberto. “O debate sobre a pobreza como problema políticonos séculos XIII e XIV”, in: Patristica et Medievalia, XIX, 1998, pp. 23-50, p. 35.

40. “Quoniam contra paupertatem evangelicam per seraphicum Christi confessoremFranciscum in novissimis temporibus plenius et clarius renovatam et revelatamantiqui hostis serpentina astucia quibusdam tortuosis anfractibus varios suscitavitet suscitare non cessat.”BURR, David (ed.). De usu..., p. 89.

41. “Septimum est preparatio vie ad infernalem sectam antichristi. Sicut enimalibi plenius est probatum et adhuc suo loco clarius ostendetur, nihil ita viampreparat sue secte sicut blasphemia altissime paupertatis” (IDEM, Ibidem, p. 148).

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dem Franciscana – e aos rumos que esta passara a tomar na medidaem que declinava da observância recomendada por seu fundador –como também à própria instituição eclesiástica – em cuja estrutura,acreditava-se, extremamente burocratizada e com injunções de cará-ter político, já não mais havia lugar para o usus pauper em sua acepçãomais primitiva. É assim que assistimos ao desenvolvimento da crítica,que cedo foi incorporada à Igreja como heresia e, dentro desta cate-goria, condenada como “erro”, “equívoco”. Os estímulos fizeram-sesentir mais fortemente ali, onde a discussão já fora colocada na or-dem do dia. Observou-se então a emergência do grupo beguino, for-mado em sua maioria por laicos, segmentos ligados à Ordem Terceirade São Francisco de Assis, que assenhorearam-se dos elementos maissubstanciais do debate e imprimiram nova dinâmica à crítica dos Es-pirituais. Os Beguinos surgiram, portanto, em estreita articulação comuma crítica pré-existente, constituída por opiniões rigoristas a com-bater a lassidão que imperava no seio da Igreja e da Ordem. Detecta-mos a presença das idéias de Olivi já entre aqueles Espirituais quepretendiam fundamentar sua inflexão com relação à pobreza em al-guns ensinamentos do frade, os quais primavam pela presença de umadisciplina extremamente normativa (muito embora não chegasse afigurar como pretensão de solapar as bases hierárquicas existentes).

Entretanto, configura-se controversa a classificação de Olivi en-tre os chamados Espirituais Franciscanos. Com efeito, Raoul Manselli,em artigo que trata dos ideais do frade – sobretudo aqueles expressosem uma carta endereçada por ele aos filhos de Carlos d’Anjou – de-fende a tese da limitação do espiritualismo franciscano ao início doséculo XIV, ao mesmo tempo em que questiona a figura de Pedro deJoão Olivi como integrante do grupo dos Espirituais Franciscanos.Assim, o estudioso italiano pergunta-se se e em que medida Olivipoderia ser não propriamente o chefe dos chamados Espirituais –como se acreditou durante muito tempo –, mas, sobretudo se confi-

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guraria ele um membro de tal movimento. Em favor dessa tese, colo-ca-se em evidência o fato de Pedro de João Olivi ter permanecido, aolongo de toda sua vida, estreitamente ligado, tanto por sua doutrinafilosófica e teológica quanto no que concerne à sua disciplina religio-sa, a São Boaventura, ao qual jamais deixara de lembrar e render res-peitosa homenagem em cada uma de suas obras42 .

Assim, no conjunto do movimento franciscano, aflorou uma ten-dência que pode ser chamada de Espiritual. Tal tendência não signi-ficava uma teoria aceita por um homem ou por um grupo, mas quepersistia como um fermento no interior da Ordem. Tal fermento podeser considerado como fermento de vida, mas também configura umfermento de divergências, que se manifestaram, inclusive, no interiordaquilo que se pretende chamar de grupo dos Espirituais. Dessa for-ma, o próprio movimento espiritual – assim classificado como formade reunir todas essas divergências em um único grupo – apresenta-secomo uma pluralidade, e não como uma unidade no interior do fran-ciscanismo. Quanto a Olivi, é possível dizer que, pela extensão de suacultura, pela profundidade de seu pensamento e pelo nível de suainteligência foi, não o líder dos Espirituais – não se pode, inclusive,afirmar consensualmente tal qualificativo para ele –, mas antes aqueleque melhor soube captar o valor e o sentido religioso, histórico ehumano do espiritualismo; tais valores e sentidos precederiam a pró-pria contenda, tal como ela viria a configurar-se ao longo das trêsprimeiras décadas do século XIV.

Muitos dos preceitos de Pedro de João Olivi fundamentaram-se,portanto, nas idéias enunciadas por São Boaventura, em sua Apologia

pauperum contra calumniatorem. Eles demonstram acentuadas afini-

42. MANSELLI, Raul. “L’idéal du Spirituel selon Pierre Jean-Olivi”, in: Cahiers deFanjeaux, 10..., p. 99.

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dades de perspectiva. Para ambos, a pobreza não se diferencia ou des-taca; ela configura, antes, apenas um entre vários outros problemas.Na realidade, a ênfase é ora colocada sobre a pobreza, ora sobre aobediência. As repercussões imediatas e posteriores de seus trabalhos,bem como o peso enfático conferido a determinadas idéias, contudo,fizeram com que trilhassem caminhos opostos em suas carreiras e naposteridade. São Boaventura atingiu seu topo em Paris, possuindouma cátedra franciscana na Universidade, e depois, tendo ocupado ogeneralato daquela Ordem por dezesseis anos; Olivi tornou-se objetode suspeição e condenação como escolástico e frade. São Boaventurapassou para a posteridade como o segundo fundador da Ordem eseus escritos foram exaltados; Olivi, por sua vez, seria tido como osanto não-canonizado dos Beguinos do sul da França, identificadocomo responsável pela emergência de uma nova heresia, e suas pala-vras acabaram por ser condenadas. As asserções de Olivi em relação àpobreza já haviam, com efeito, sido esboçadas por São Boaventura ePecham43 . Olivi seria responsável por tornar formal aquilo que os

43. Em seu Tractatus de usu paupere, Olivi, procede, com efeito, a uma enumera-ção de autores que deveriam sustentar suas teses a respeito da pobreza evangélica esobretudo do usus pauper. Os dois primeiros dessa série são Pecham e São Boaventura.Dentre as afirmações do primeiro encontram-se a interdição à propriedade, querem particular, quer em comum, e a restrição ao uso dos bens mundanos, de formaque não ultrapasse os limites da pobreza. Assim, “‘nec in speciali nec in communidebent proprietatem habere sed illarum rerum quas licet habere ordo usum habeat’,exponit illud quod ibi premissum est, scilicet, ‘quas licet habere’, subdens, ‘idest,que modum paupertatis non excedunt’. Ex quo patet quod ibi vult illum usumesse ordini illicitum quod modum paupertatis excedit.” Quanto ao segundo, Olivicita uma passagem de sua Apologia pauperum contra calumniatorem, na qual seestabelece também a condenação da propriedade, bem como o uso apenas comocondição para a satisfação das mais estritas necessidades: “‘Cum autem circatemporalium bonorum possessionem duo considerare contingat, dominum videlicetet usum, sitque usus necessario annexus vite presenti, evangelice paupertatis est,possessiones terrenas quantum ad dominium et proprietatem relinquere, usumvero non omnino reiicere, sed artare, iuxta quod dicit apostolus, Habentes alimen-ta et quibus tegamus hiis contenti sumus’” (BURR, David (ed.). De usu paupere –The Quaestio and the Tractatus. Firenze/Perth, 1992, pp. 92-93).

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dois apenas haviam sugerido. Ele tentaria estabelecer o usus pauperenquanto conceito em si, e inseparável do voto de pobreza. Trata-sede uma perspectiva que buscava coadunar ideal e prática, e para tan-to, fazia-se necessária uma delimitação precisa desse ideal. De exorta-ção geral, tornou-se uma série de requerimentos específicos. Daí oadvir das oposições. A diferença de ênfase entre São Boaventura eOlivi em relação à questão da pobreza consiste em que São Boaventuraconsiderou a pobreza como um aspecto virtual e externo, não com-parável em grandeza com as virtudes teologais. Olivi, por sua vez,considerou a pobreza como fator inerente à perfeição interior, muni-do de valor equivalente e paralelo ao das virtudes teologais. Resgata-ria a vita apostolica, numa forma de apelo à vida do Cristo comoconfirmação final da santidade44 .

Muito embora se possa estabelecer um radicalismo efetivo a par-tir dos elementos místicos presentes na Lectura de Olivi (referência àconcepção de ecclesia carnalis versus ecclesia spiritualis), não se podeafirmar que se tratava de um extremista quando se observa o conjun-to de seu pensamento. Com efeito, o frade sabia que o usus pauper

admitia muitas variantes. Sua peculiaridade consistia em defender aatinência indeterminada do usus pauper sobre a Regra, não estandosujeito a ações pontuais, como queriam seus opositores: “O problemade o uso pobre não delimitar juridicamente quando se pode comerum capão acompanhado com vinho branco, ou quando se pode an-dar a cavalo, só existe para quem reduz a pobreza a um fato mera-mente jurídico – mas para Olivi a questão situava-se em outro regis-tro: na disponibilidade interna da pessoa, manifestada por aquela for-ma de prática que não se pergunta pelo minimalismo legal”45 .

44. Cf. LEFF, Gordon. Op. Cit., pp. 101-15.

45. DE BONI, Luís Alberto. “Art. Cit.”, p. 34.

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Assim, de acordo com Raoul Manselli, a defesa do chamado usus

pauper, com o seu rigorismo em relação à pobreza, não configuravaum elemento diferenciador do pensamento daquele frade. Deve-seprocurar essa diferenciação, antes, em qualquer coisa de mais profun-do, nos valores mais essenciais, ou seja, numa mentalidade e numamaneira de viver que a maioria dos frades, aqueles que se chamariamde Comunidade, deveria reprovar como diferentes das suas e até mes-mo como potencialmente hostis e estranhas46 . Assim, a observânciada Regra não consistia simplesmente na obediência a uma mera nor-ma jurídica, mas sim o ponto de partida de um laço de amor com oCristo crucificado, bem como o sacrifício de si mesmo no amor dapobreza e dos confrades.

A concepção específica do usus pauper como inerente à Regra – enão enquanto mera característica supererogatória presente em algunsindivíduos dotados de vontade sublime – representa a própria ban-deira de luta espiritual, seu diferencial por excelência no interior dogrupo. Característica mais marcante da obra de Olivi – para além desua mística apocalíptica, e sendo que esta mesma decorre dela –, adefesa do usus pauper seria retomada por Ubertino de Casale em suaobra maior, a Arbor vitae crucifixae Iesu (1305), o qual, para melhorfundamentá-la, deveria recorrer até mesmo às fontes mais ortodoxasda tradição franciscana, haja vista o uso que faz da Apologia pauperum

do ministro-geral São Boaventura.

Após a morte de Olivi, assistiu-se à afirmação e à perpetuação deseus ideais de vida por parte de seus seguidores de Narbona e daszonas circunvizinhas. No seio da Ordem Franciscana, continuavamos esforços daqueles que se haviam oposto em vida a Olivi e queagora desejavam condenar, para além de sua obra e memória, tam-

46. MANSELLI, Raoul. “L’idéal...”, p. 101.

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bém seus seguidores e discípulos. De um lado, tinham seqüência aspolêmicas teológicas – de resto, situadas no interior das controvérsiasnormais para a época; de outro, ajuntavam-se-lhes os problemas rela-tivos à interpretação da Santa Escritura – e, nesse sentido, uma pre-disposição nomeadamente hostil fazia emanarem animosidades antescontra o indivíduo que contra as teses que sustentava. As nesgas maisviolentas incidiam sobre a questão da pobreza, no interior da qualOlivi sempre afirmava sua posição de preciso, claro e inequívocorigorismo, em seus comentários acerca da Regra Franciscana ou acer-ca das questões da vida espiritual.

A tradição manuscrita da obra maior de Pedro de João Olivi,qual seja, a chamada Lectura super Apocalypsim, atesta a difusão dessetexto nos ambientes Espirituais e da Comunidade, bem como entreos primeiros Observantes, a partir da segunda metade do século XIV.No momento em que Ubertino de Casale escreve a Arbor vitae (1305),é necessário notar que a Lectura ou Postilla de Olivi representava umaobra suspeita. Dessa forma, no primeiro prólogo de sua obra, Ubertinofaz menção a Olivi, definindo-o como: “doutor especulativo e precípuode defensor da vida de Cristo. Iluminado por Deus”47 . Ubertino,com efeito, reconhece, na Arbor vitae, sua medida de dependênciaem relação a Pedro de João Olivi, ao afirmar seus contatos com omestre na província da Toscana, ao mesmo tempo em que seu ensina-mento teria sido o ponto de partida para sua renovação espiritual48 .

47. UBERTINO DE CASALE. Arbor vitae crucifixae Jesu, a cura di C. T. Davis,Torino, 1961,Pról. I, fl.4b.

48. “ad provinciam Tuscie veniens sub titulo studii”, tendo encontrado “in multisviris virtutis spiritum Iesu fortiter ebulire”. A seguir “cum predictis magistris frater[Petrus] Iohannis Olivi (...) me modico tempore, (...) ex tunc in novum hominemmente transiverim” (Ibidem).

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Em contrapartida, e provavelmente em função do peso da suspeitaque pesava sobre a obra daquele frade, busca, armando-se de prudên-cia, distinguir sua posição daquela de Olivi, atenuando sua admira-ção em relação ao mestre, ao afirmar que tão perfeito doutor nãopossuíra, contudo, a razão em tudo aquilo que dissera49 .

Ubertino exprimir-se-ia ainda com semelhante cautela em coló-quio com Clemente V, no ano de 1310, no curso do debate prepara-tório para o Concílio de Viena, a chamada magna disceptatio (1309-1312), opondo Espirituais e Comunidade. Naquela ocasião, mani-festou-se ainda com análoga prudência, ao precisar que não lera todaa obra de Olivi, o que o impossibilitava de tornar suas todas as tesesdo mestre. Assim, após haver feito sua defesa à pessoa e à doutrina dofrade francês contra aqueles que pretendiam condenar sua Lectura e,para além dela, sua memória, declarou que “não o seguia em todas assuas opiniões, embora acreditasse que naquilo (teses que foram obje-to de sua defesa) não acreditava que o mesmo tivesse errado”50 .

Ubertino de Casale conhecera Pedro de João Olivi em Florença,onde este ensinara durante o biênio de 1287-1289, no convento de

49. “Non tamen hunc perfectum doctorem quem rationabiliter tantum commendoin aliquibus dictis suis sequor, quia aliquando bonus dormitat Homerus, nec omniaomnibus data sunt” (Ibidem).

50. “Non tamen in omnibus eius opinionem sequor, licet ipsum propter hoc noncredam errare.”Sanctitas vestra, p. 88, apud POTESTÀ, Gian Luca. Op. cit., p.59. Na defesa queUbertino procedeu em relação a Olivi, encontra-se a afirmação do convívio entreos dois em convento, sendo que o mestre seria, dentre aqueles frades mais observantesda Ordem, aquele de maior santidade de vida, de profunda ciência e de grande zelopela fé e pelos costumes. Em seguida, indica ao papa os motivos da desconfiança daComunidade em relação à pessoa e às doutrinas de Olivi, afirmando que seusescritos exprimiam a transgressão na observância da pobreza. Aqueles, portanto,que se esforçavam por condenar as obras de Olivi temiam a opinião pública, de vezque aparentemente não possuíam ânimo para corrigir-se. (Cf. EHRLE, F. ZurVorgeschichte des Concils von Vienne. 4. Vorarbeiten zur Constitution Exivi de paradisoin ALKG III (1887), p. 88, apud MANSELLI, Raoul. Spirituali..., pp. 102-103).

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Santa Cruz. Tornaram-se amigos, e sua relação próxima evidencia-setambém pelo fato de que, muitos anos após a morte de Olivi, que sedera no ano de 1298, Ubertino passasse a defender sua memória esuas doutrinas por ocasião do debate precedente ao Concílio de Vie-na, a referida magna disceptatio. A defesa mais intensa deu-se no opús-culo de Ubertino intitulado Sanctitate apostolice, de junho de 1311,também conhecido como Apologia Olivi. As primeiras condenaçõesde obras de Olivi ter-se-iam verificado por volta de 127851 . No quetange à Lectura super Apocalypsim, composta entre 1296 e 1297, amesma, após a morte de seu autor, deveria tornar-se motivo de polê-mica e de ataques, os quais acabaram por culminar em condenaçãodefinitiva no ano de 1326, sob o papa João XXII.

A pessoa e a doutrina de Olivi tenderam a permanecer e foramperpetuadas mormente na medida em que se desencadeavam os pro-cessos de busca inquisitorial que visavam a reprimir a religiosidadebeguina e a perseguir seus praticantes como heréticos. O compêndiotraduzido para o vulgar acerca do Apocalipse apareceu, com efeito,em 1318, ano-chave para o movimento. João XXII contrariava oschamados Espirituais Franciscanos – elementos radicais no interiorda ordem que pretendiam restaurar aquilo que consideravam a intentio

de São Francisco de Assis, apregoando o extremo rigor no cumpri-mento da regra –, bem como parte dos moderados, ao condenar, pormeio de três constituições52 , a doutrina segundo a qual as Escrituras

51. Trata-se das questões De Domina, queimadas por ordem do ministro-geralJerônimo de Ascoli (1274-1279).

52. Trata-se das seguintes bulas: Ad conditorem canonum (8 de dezembro de 1322),em que afirmava que Nicolau III, ao estabelecer a Igreja Romana como proprietá-ria dos bens usados pelos franciscanos, embora movido por ideais piedosos, incor-rera numa impossibilidade racional e jurídica, tendo em vista o uso daquelas coisasque se consomem pelo próprio uso, tais como roupas e alimentos; Cum internonnullos (12 de novembro de 1323), em que declarava consistir em heresia aafirmação de que Cristo e os Apóstolos nada haviam possuído; Quia quorundammentes (10 de novembro de 1324), em que afirmava que suas duas bulas anterioreseram condizentes com a Exiit qui seminat, de Nicolau III, ao mesmo tempo emque sua autoridade bastava para definir a questão.

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provavam que Cristo e os apóstolos nada haviam possuído, quer emcaráter comum, quer em particular. Repudiou, ainda, o acordo se-gundo o qual os papas eram os proprietários nominais dos bens daOrdem Franciscana53 , dispondo esta somente do seu usufruto. E noano de 1318, na cidade de Marselha, determinara a queima de qua-tro Espirituais Franciscanos, com base na referida afirmação – osmesmos foram condenados pelo inquisidor Miguel Lemoine –, ocor-rência que consistiria num dos suportes essenciais do fenômenobeguino: a partir de então, as referências alegóricas apocalípticas pas-sariam a assumir colorações cada vez mais realísticas, o que tornava afonte em questão – a Postilla super Apocalypsim de Pedro de JoãoOlivi – um documento cujo significado intrínseco podia ser associa-do a uma profecia. Data da mesma data uma série de interrogatóriosconduzidos em Lodève, o que denota a força que o movimento jávinha adquirindo antes mesmo que se lhe abrissem margens para umarica martirologia. A obra em vulgar é anônima; mas fornece a medidaexata do estado de ânimos ocasionado pela onda de perseguições epelas ocasionais condenações. Particularmente característico desse novoestado de ânimo é o acuro com que vêm enunciados e precisadosmomentos, personagens e conceitos, os quais, sob a pena de Olivi,haviam sido deixados, com deliberado propósito, desprovidos de de-terminações ulteriores.

Referências1. Fontes

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53. Conforme a bula Exiit qui seminat, de Nicolau III, emanada em 1279.

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2. Bibliografia secundária

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“CRISTO NOSSO SAL” –A PARTICIPATIO EM TOMÁS DE

AQUINO

Jean Lauand

(Prof. Titular FEUSP, e-mail: [email protected])

Metáforas para Cristo

A tradição cristã vale-se de diversas formas, metafóricas ou não,

para designar Cristo, algumas extraídas das próprias falas de Jesus e

das Escrituras. Fórmulas mais ou menos consagradas pelo uso, cada

uma acentuando este ou aquele aspecto de seu ser ou de sua missão

redentora.

Com alguma surpresa, deparei com a expressão “Cristo é o

sal”, recolhida na Catena Aurea in Marcum (cp 9, lc 6) de Tomás

de Aquino. Muito mais familiares, para ficarmos só no Evangelho

de João, são “o pão” (6,35); “a luz” (8,12); “a porta” (10,9); “a

ressurreição” (11,25); “a vide” (14,6); “o caminho”, “a verdade”,

“a vida” (14,6) etc.

Algumas dessas formas remetem a um conceito-chave para a com-

preensão da relação entre Cristo e os cristãos: o de participatio; parti-

cipação, evidente, por exemplo, na metáfora “Cristo Vide”.

A participação é importante porque é o conceito diferencial do

cristianismo: ser cristão, mais do que aderir a uma doutrina, é partici-

par da filiação divina de Cristo: um conceito impensável, digamos,

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para o islamismo ou para o judaísmo. Para os cristãos, nós temos a

filiação no Filho; a luz na Luz; a verdade na Verdade etc. Se o fatoessencial do cristianismo é a ligação com Cristo, é natural que o Evan-

gelho apresente comparações que permitam falar da dinâmica de es-

tar ligados/desligados nEle.

É nessa clave que se inserirá também a distinção que o cristianis-

mo – como todas as religiões – faz entre bons e maus, justos e injus-

tos, inclusive no seio da própria Igreja. Nas Jornadas Mundiais da

Juventude de 2005, o Papa declarou:

“Pode-se criticar muito a Igreja. Sabemos, e o Senhor mesmo nos

disse: é uma rede com peixes bons e maus, um campo com trigo e

joio” (Bento XVI – Vigília das Jornadas Mundiais da Juventude;

Marienfeld, 20-08-05).

Para além das comparações de bem / mal: bom pastor / mau

pastor (Jo 10,11ss); joio e trigo (Mt 13,25ss); peixes bons e peixes

maus (Mt 13,46ss) etc., as metáforas da participação permitem acen-

tuar o elemento de desvirtuamento, de corrupção das pessoas ou ins-

tituições (“Vós sois o sal...”) da Igreja: “Se a luz que há em ti são

trevas...” (Mt 6,23); “se o sal se desvirtua...” (Mt 5,13; Mc 9,50; Lc

14,34). Pois, como no caso da seita dos fariseus, muitas vezes, os mais

“religiosos”, os mais praticantes é que são o sal desvirtuado. E é inte-

ressante notar que o próprio Tomás (que vai falar de sais que não são

sal), lembra o provérbio que diz que para se conhecer uma pessoa (ou

instituição) verdadeiramente é necessário antes comer um saco de sal

com ela:

“Non contingit quod aliqui seinvicem cognoscant antequam simul

comedunt mensuram salis” (Sent. Libri Ethic. lb 8, lc 3, 21).

JEAN LAUAND

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Os cristãos, hoje, certamente continuam a considerar a passagemdo Evangelho em que Cristo fala do sal, mas é muito raro dizer queCristo é o Sal1 .

Embora o Evangelho não diga expressamente que Cristo é o Sal,alguns autores antigos recolheram essa idéia, também na clave daparticipatio.

Mas, antes, vejamos, brevemente, esse conceito em Tomás.

A participatio no pensamento de Tomás

Ao contemplar a grande e grandiosa obra de Tomás de Aquino,James Weisheipl faz sugestiva observação: “Tomás, como todo mun-do, teve uma evolução intelectual e espiritual. O fato assombroso,porém, é que, desde muito jovem, Tomás apreendeu certos princípi-os filosóficos fundamentais que nunca abandonou” (WEISHEIPL, 1994,p. 16).

1. E quando se diz que Cristo é sal, é no plano figurado, como na sugestiva obser-vação do poeta Bruno Tolentino. Numa entrevista, referindo-se à conversão, elediz: “Mas voltando à sua pergunta inicial sobre a conversão, é como a parábola dosal. Cristo é o sal. O sal realça o gosto da comida, não muda o gosto da comida,torna o peixe mais peixe, a carne mais carne. Assim como o encontro com Cristonão muda o que você é, mas agora você se torna você na dosagem perfeita: aquilopara que você era destinado ser. Eu estou neste processo em que sou cada vez maiseu mesmo. Eu parei de ser uma caricatura de mim mesmo. Como dizia Píndaro:‘Torna-te o que tu és’. Você se torna o que você é. Há um nível supra-real dapessoa. É isso o que só Deus sabe. Nesta perspectiva o ato poético é um ante-gosto,um antepasto desta plenitude”. http://www.catolicanet.com.br/sitepassos/paginarv.asp?cod=71&tipo=0 “Passos”, n. 40, junho 2003.

Uma exceção, bem no sentido clássico da participatio, é a homilia do Cardeal Fran-cisco Javier Errázuriz (n. III), nas Jornadas Mundiais da Juventude (Toronto, 2002):“Porque Cristo es la verdadera sal, comprendemos que el llamado de Jesús a ser salde la tierra expresa nuestra vocación más plena y verdadera, la de ser como él, esdecir, otros “cristos” en medio del mundo... Etc.”

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Um desses princípios é o da participação2 , que é a base tanto desua concepção do ser como – no plano já estritamente teológico – dagraça.

Para podermos analisar a metáfora do sal na clave da participatio,recolho algumas considerações de base, nos parágrafos seguintes, to-madas de um estudo que publiquei alhures (LAUAND, 1999, indrod.)sobre a doutrina tomasiana da participação.

Freqüentemente as grandes teses de Tomás se elucidam a partirdo uso comum da linguagem. Comecemos reparando no fato de quena linguagem comum, “participar” significa – deriva de – “tomar par-te” (partem capere). Ora, há diversos sentidos e modos desse “tomarparte” (OCÁRIZ, 1972, p 42s). Um primeiro é o de “participar” demodo quantitativo, caso em que o todo “participado” é materialmen-te subdividido e deixa de existir: se quatro pessoas participam de umapizza, ela se desfaz no momento em que cada um toma a sua parte.

Num segundo sentido, “participar” indica “ter em comum” algoimaterial, uma realidade que não se desfaz nem se altera quando par-ticipada; é assim que se “participa” a mudança de endereço “a amigose clientes”, ou ainda que se “dá parte à polícia”.

O terceiro sentido, mais profundo e decisivo, é o que vem expres-so pela palavra grega metékhein, que indica um “ter com”, um “co-ter”, ou simplesmente um “ter” em oposição a “ser”; um “ter” peladependência (participação) com outro que “é”. Como veremos emmais detalhe, Ao tratar da criação, Tomás utiliza esse conceito: a cria-tura tem o ser, por participar do ser de Deus, que é ser. E a graça nadamais é do que ter – por participação na filiação divina que é em Cris-to – a vida divina que é na Santíssima Trindade.

2. Doutrina essencialíssima e que não é aristotélica: daí a problematicidade dereduzir Tomás a um aristotélico...

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Há – como indica Weisheipl (1994, p. 240-1) – três argumentossubjacentes à doutrina da participação: 1) Sempre que há algo co-mum a duas ou mais coisas, deve haver uma causa comum. 2) Sem-pre que algum atributo é compartilhado por muitas coisas segundodiferentes graus de participação, ele pertence propriamente àquelaque o tem de modo mais perfeito. 3) Tudo que é compartilhado “pro-cedente de outro” reduz-se causalmente àquele que é “per se”.

Nesse sentido, adiantemos desde já as principais metáforas de queTomás se vale para exemplificar: ele compara o ato de ser – conferido emparticipação às criaturas – à luz e ao fogo: um ferro em brasa tem calorporque participa do fogo, que “é calor”3 ; um objeto iluminado “tem luz”por participar da luz que é na fonte luminosa. Tendo em conta essa dou-trina, já entendemos melhor a sentença de Guimarães Rosa:

“O sol não é os raios dele, é o fogo da bola” (1979, p. 71).

No plano natural, todas as criaturas, quer materiais, quer racio-nais, participam do ser e, portanto, da natureza divina; toda a cria-ção, e o homem especialmente, por sua perfeição própria, reflete noseu ser a bondade, a verdade, a beleza de Deus. No plano sobrenatu-ral, porém, ocorre uma participação da natureza divina como divin-dade, uma participação de Deus enquanto Deus, um tornar-nos Deus;passamos a ser divinae naturae consortes, como diz São Pedro (2Pe1,4), participantes da própria vida íntima de Deus. E isto, diz Tomás,é a graça.

A participação sobrenatural atinge por inteiro o ser humano, detal forma que se pode falar de uma “nova geração” ou “re-criação” (S.Teol. I-II,110,4); torna o cristão “filho de Deus” de uma maneiratotalmente nova: o cristão participa da Filiação do Verbo – Cristo éFilho de Deus, e o cristão, que participa de Cristo, tem a filiação

3. Evidentemente, não no sentido da Física atual, mas o exemplo é compreensível.

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divina. Esta filiação divina distingue-se absolutamente daquela pelaqual todos os homens são filhos de Deus, porque participam, ao exis-tirem, do ser de Deus.

Tomás insiste nesse participar de Deus: “A graça é uma certa se-melhança com Deus de que o homem participa” (S. Teol. III,2,10 ad1); “O primeiro efeito da graça é conferir um ser de alguma formadivino” (In sent. III,2,d.26,155); “Pela graça santificante, toda a Trin-dade passa a habitar na alma” (S. Teol. I,43,5).

Participação envolve, pois, graus e procedência. Tomás parte dofenômeno evidente de que há realidades que admitem graus (comodiz a antiga canção de Chico Buarque: “tem mais samba no encontroque na espera...; tem mais samba o perdão que na despedida”). Epode acontecer que a partir de um (in)certo ponto, a palavra já nãosuporte o esticamento semântico: se chamamos vinho a um excelenteBordeaux, hesitamos em aplicar este nome ao equívoco “Chateau deCarapicuíba” ou “Baron de Quitaúna”.

As coisas se complicam – e é o caso contemplado por Tomás –quando uma das realidades designadas pela palavra é fonte e raiz daoutra: em sua concepção de participação, a rigor, não poderíamospredicar “quente” do sol, se a cada momento aplicamos a palavra“quente” para coisas esquentadas pelo sol, dizendo que a casa ou o diaestão quentes (se o dia ou a casa têm calor é porque o sol é quente).Assim, deixa de ser incompreensível para o leitor contemporâneo que,no artigo 6 da Questão disputada sobre o verbo, Tomás afirme que nãose possa dizer que o sol é quente (sol non potest dici calidus)! Ele mes-mo o explica, anos depois, na Summa Contra Gentiles (I, 29, 2), que,a rigor, não poderíamos dizer que o sol é quente, mas também hárazões para acabarmos dizendo quente (calidus) tanto para o sol comopara as coisas que recebem seu calor:

“Como os efeitos não têm a plenitude de suas causas, não lhescompete (quando se trata da ‘verdade da coisa’) o mesmo nome e

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definição delas. No entanto (quando se trata da ‘verdade dapredicação’), é necessário encontrar entre uns e outros alguma seme-lhança, pois é da própria natureza da ação, que o agente produza algo

semelhante a si (Aristóteles), já que todo agente age segundo o ato queé. Daí que a forma (deficiente) do efeito encontra-se a outro título esegundo outro modo (plenamente) na causa. Daí que não seja unívo-ca a aplicação do mesmo nome para designar a mesma ratio na causae no efeito. Assim, o sol causa o calor nos corpos inferiores agindosegundo o calor que ele é em ato: então é necessário que se afirmealguma semelhança entre o calor gerado pelo sol nas coisas e a virtudeativa do próprio sol, pela qual o calor é causado nelas: daí que seacabe dizendo que o sol é quente, se bem que não segundo o mesmotítulo pelo qual se afirma que as coisas são quentes. Desse modo, diz-se que o sol – de algum modo – é semelhante a todas as coisas sobreas quais exerce eficazmente seu influxo; mas, por outro lado, é-lhesdessemelhante porque o modo como as coisas possuem o calor é dife-rente do modo como ele se encontra no sol. Assim também, Deus,que distribui todas suas perfeições entre as coisas é-lhes semelhante e,ao mesmo tempo, dessemelhante”.

Todas essas considerações parecem extremamente naturais quan-do nos damos conta de que ocorrem em instâncias familiares e quoti-dianas de nossa própria língua: um grupo de amigos vai fazer umpiquenique em lugar ermo e compra alguns pacotes de gelo (dessesque se vendem em postos de gasolina nas estradas) para a cerveja erefrigerantes. As bebidas foram dispostas em diversos graus de conta-to com o gelo: algumas garrafas são circundadas por muito gelo; ou-tras, por menos. De tal modo que cada um pode escolher: desde acerveja “estupidamente gelada” até o refrigerante só “um pouquinhogelado”... Ora, é evidente que o grau de “gelado” é uma qualidadetida, que depende do contato, da participação da fonte: o gelo, que,ele mesmo, não pode ser qualificado de “gelado”...

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Estes fatos de participação são-nos, no fundo, evidentes, pois comtoda a naturalidade dizemos que “gelado”, gramaticalmente, é umparticípio...

Participar é receber de outrem algo; mas o que é recebido é rece-bido não totalmente. Assim, participar implica um receber parcial dealgo (aliquid) de outro (ab alio). Um axioma de que Tomás se valediz: “Tudo que é recebido é recebido segundo a capacidade dorecepiente” (per modum recipientis recipitur). E assim “Omne quod est

participatum in aliquo, est in eo per modum participantis: quia nihil

potest recipere ultra mensuram suam” (I Sent. d. 8, q.1 a.2 sc2), algoque é participado é recebido segundo a capacidade do participante,pois não se pode receber algo que ultrapasse a sua medida (mensura).

A participatio como sal

Além das comparações com o fogo e a luz, há a comparação como sal, que apresenta aspectos peculiares, a partir de seu significado naBíblia.

Quando tomado simbolicamente, o sal – como todos os símbo-los – poderá ser interpretado de muitas maneiras: mais ou menosdiretamente ligadas à própria realidade em si do sal.

É a partir da base bíblica e do conhecimento “científico” que sedarão as interpretações do sal. Tenha-se em conta que a leitura antigae medieval da Bíblia é complexa: Tomás explica que há, na SagradaEscritura quatro sentidos distintos: histórico, alegórico, místico eanagógico. No significado histórico (ou literal) as palavras têm suasignificação, digamos, normal (estritamente literal ou metafórica: “ohomem ri” ou “o campo ri”); no místico (ou espiritual), as palavrastêm um outro significado, superior. O sentido místico, por sua vez,subdivide-se em três: o alegórico, pelo qual a velha lei é figura da

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nova; o anagógico, pelo qual a nova lei é figura da glória futura; e omoral, pelo qual tomamos exemplo para nossa conduta. O “faça-se aluz” de Gn 1,3 – o exemplo é de Tomás –, na leitura literal, é enten-dido como a luz mesmo, a luz física, criada por Deus. Já se a luz do“fiat lux” for entendida como Cristo para a Igreja, então a leitura é nosentido alegórico; a leitura será anagógica se entendermos “fiat lux”como sendo nosso ingresso na Glória por Cristo; e, finalmente, seessa luz é iluminação para nosso intelecto e calor para nossa vontade,então estamos na leitura moral4 .

4. Mysterium autem exponit, cum dicit quae sunt per allegoriam dicta. Et primoponit modum mysterii; secundo exemplificat, ibi haec enim duo sunt testamenta, etcetera. Dicit ergo: haec quae sunt scripta de duobus filiis, etc., sunt per allegoriamdicta, id est per alium intellectum. Allegoria enim est tropus seu modus loquendi,quo aliquid dicitur et aliud intelligitur. Unde allegoria dicitur ab allos, quod estalienum, et goge, ductio, quasi in alienum intellectum ducens. Sed attendendumest, quod allegoria sumitur aliquando pro quolibet mystico intellectu, aliquandopro uno tantum ex quatuor qui sunt historicus, allegoricus, mysticus et anagogicus,qui sunt quatuor sensus sacrae Scripturae, et tamen differunt quantum adsignificationem. Est enim duplex significatio. Una est per voces; alia est per resquas voces significant. Et hoc specialiter est in sacra Scriptura et non in aliis; cumenim eius auctor sit Deus, in cuius potestate est, quod non solum voces addesignandum accommodet (quod etiam homo facere potest), sed etiam res ipsas.Et ideo in aliis scientiis ab hominibus traditis, quae non possunt accommodari adsignificandum nisi tantum verba, voces solum significant. Sed hoc est proprium inista scientia, ut voces et ipsae res significatae per eas aliquid significent, et ideohaec scientia potest habere plures sensus. Nam illa significatio qua voces significantaliquid, pertinet ad sensum litteralem seu historicum; illa vero significatio qua ressignificatae per voces iterum res alias significant, pertinet ad sensum mysticum.Per litteralem autem sensum potest aliquid significari dupliciter, scilicet secundumproprietatem locutionis, sicut cum dico homo ridet; vel secundum similitudinemseu metaphoram, sicut cum dico pratum ridet. Et utroque modo utimur in sacraScriptura, sicut cum dicimus, quantum ad primum, quod Iesus ascendit, et cumdicimus quod sedet a dextris Dei, quantum ad secundum. Et ideo sub sensu litteraliincluditur parabolicus seu metaphoricus. Mysticus autem sensus seu spiritualisdividitur in tres. Primo namque, sicut dicit apostolus, lex vetus est figura novaelegis. Et ideo secundum quod ea quae sunt veteris legis, significant ea quae suntnovae, est sensus allegoricus. Item, secundum Dionysium in libro de caelestihierarchia, nova lex est figura futurae gloriae. Et ideo secundum quod ea quae sunt

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Se descartarmos os nomes geográficos, a Bíblia refere-se apenas25 vezes ao sal: 21 vezes no Antigo Testamento; 3 no Evangelho e 1em Colossenses.

Há, na Bíblia, uma dimensão religiosa para o sal. Javé ordena aMoisés que prepare um incenso santo, temperado com sal (Ex 30,35);todos os sacrifícios oferecidos a Javé devem estar temperados com sal,nunca pode faltar o sal da aliança com Deus (Lv 2,13); aliança de salé aliança para sempre (Nm 18,19). Essa associação do sal ao sacrifícioterá sua importância, como veremos, nas considerações de Tomás.

Já em outro contexto, o sal causa esterilidade na terra (Dt 29,22), eespalha-se sal no solo quando se quer destruir para sempre uma cidadedevastada (Jz 9,45). Por outro lado, quando Eliseu quer eliminar “a mor-te e a esterilidade” das águas, joga sal na nascente (2Re 2,21). E quandouma criança nasce deve ser esfregada com sal (Ez 16,4).

O sal é uma realidade valiosa: o Eclesiástico (39,26) enumera osal entre os bens de primeira necessidade. Não só como o temperopor excelência, mas como conservador de alimentos (o nosso tempo,que tem tantas facilidades – como a comum geladeira – mal podeavaliar essa qualidade). O sal é um bem precioso, a ponto de o di-nheiro do salário receber este nome precisamente pela estreita relaçãoentre dinheiro e sal.

in nova lege et in Christo, significant ea quae sunt in patria, est sensus anagogicus.Item, in nova lege ea quae in capite sunt gesta, sunt exempla eorum quae nosfacere debemus, quia quaecumque scripta sunt, ad nostram doctrinam scripta sunt; etideo secundum quod ea quae in nova lege facta sunt in Christo et in his quaeChristum significant, sunt signa eorum quae nos facere debemus: est sensus moralis.Et omnium horum patet exemplum. Per hoc enim quod dico fiat lux, ad litteram,de luce corporali, pertinet ad sensum litteralem. Si intelligatur fiat lux id est nascaturChristus in Ecclesia, pertinet ad sensum allegoricum. Si vero dicatur fiat lux id estut per Christum introducamur ad gloriam, pertinet ad sensum anagogicum. Siautem dicatur fiat lux id est per Christum illuminemur in intellectu et inflammemurin affectu, pertinet ad sensum moralem (Super Gal., cap. 4 l. 7) .

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No Evangelho a palavra sal aparece em uma única fala de Cristo.Em Mateus, Cristo acaba de proclamar as bem-aventuranças e, atocontínuo, diz:

“Vós sois o sal da terra. Mas, se o sal se desvirtua, como ele vai sesalgar? Já não serve para mais nada a não ser para ser jogado fora e serpisado pelos homens” (Mt 5,13).

Em Marcos (9,50), uma sugestiva variante:

“Bom é o sal, mas se o sal se torna insípido, com que o salgareis?Tende sal em vós e tende paz uns com os outros”.

Em Lucas (14,34), a mesma passagem tem a forma:

“Bom é o sal, mas se o sal se desvirtua, com que o salgareis? Nãoé útil para a terra nem como esterco e é jogado fora. Quem tiverouvidos para ouvir, que ouça”.

É interessante notar essa relação com o transcendental bonum: aoafirmar que o sal é bom, Cristo está afirmando que o sal é sal: salbom, sal de verdade, é sal “salgado”. O sal que se torna insosso – dizo Aquinate – aquele que está em si mesmo privado daquela qualida-de própria pela qual ele se diz bom. Mas lemos em Tomás (Catena

Aurea in Marcum cp 9 lc 6) que há sais que têm sal e sais que não têmsal (o que permite continuar com o paralelo ser/graça), embora nocaso do sal que não tem sal, a rigor, poderíamos perguntar se cabeainda falar em sal? Ou se não poderíamos aqui invocar um paralelis-mo com o exemplo do gelo, no qual não cabe falar em “gelo gelado”?Curiosamente, dentre os mais de 20.000 provérbios recolhidos noDictionnaire des Proverbes et Dictons da Robert, encontra-se um datribo Abé (Costa do Marfim), que diz precisamente isto:

“O próprio sal não se diz salgado” (Paris, 1989, p. 659).

Seja como for, o texto da Catena Aurea in Marcum vai trabalharcom o sal como se o sal recebesse sua salinidade de um Sal, que o é

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por excelência. O Sal é Cristo e, pela graça, nós podemos ser sal, porparticipação em Cristo Sal. Aproxima-se, portanto, da análise que jáum Agostinho faz da luz.

Cristo Luz em Agostinho

A partir de Cristo Luz, Agostinho estabelece uma importante dis-tinção: a luz que é Cristo; a luz dos cristãos por participação.

Alguém acende uma tocha e, no caso dessa tocha – no que dizrespeito à chama que está nela a luzir –, o fogo tem a luz em simesmo. Já teus olhos, que sem a luz da tocha eram inúteis poisnão podiam ver, agora eles têm luz, mas não em si mesmos. Emais, se da tocha se afastam, caem nas trevas; se a ela se voltam,são iluminados. Mas, certamente, este fogo está a luzir enquantoexiste; se quiseres suprimir a luz, extinguirás no mesmo ato o fogo,pois não se pode dar o fogo sem luz. Ora, Cristo, luz inextinguívele coeterno ao Pai, sempre brilha, sempre está a luzir, sempre quei-ma. Pois se Ele não estivesse sempre queimando, acaso diria o sal-mo [18 (19),7)]: “Nem há quem possa se esconder de seu calor”?Tu, porém, eras frio em teu pecado; converte-te para que te aque-ças: se te afastas, te tornas frio. Em teu pecado eras trevas; conver-te-te para que te ilumines; se te afastas, serás escuridão. Portanto,como em ti mesmo eras trevas, ao ser iluminado não és luz, embo-ra estejas na luz. Pois diz o Apóstolo (Ef 5,8): “Fostes, em outrotempo, trevas, mas, agora, luz no Senhor”. Ao dizer “agora luz”,ajunta: “no Senhor”. Em ti, pois, trevas; no Senhor, luz. Por queluz? Porque a participação da Sua luz é luz. Mas se te afastas da luzpela qual tens luz, voltas para as trevas. Mas não se dá o mesmocom Cristo, não com o Verbo de Deus. Como não? “Assim comoo Pai tem a vida em Si mesmo, assim também deu ao Filho ter avida em Si mesmo”: para que Ele viva não em participação, mas demodo imutável, e para que Ele seja em tudo a vida. “Assim, deu aoFilho ter vida”. Assim como Ele tem, assim Ele deu. Qual é adiferença? Porque o que Aquele deu, Este recebeu. Acaso Ele nãoexistia quando recebeu? Podemos conceber um Cristo, em algumtempo, sem luz, sendo Ele a Sabedoria do Pai, da qual se disse: “É

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o fulgor da luz eterna” (Sb 7,8)? Assim, dizer “deu ao Filho” écomo se dissesse: “gerou o Filho e gerando-o deu-lhe que fosse eque fosse vida e assim deu-lhe ser vida em si mesmo” Que é servida em si mesmo? Não precisar de vida de outro, mas ser Elemesmo a plenitude da vida, da qual outros, crendo, têm vida en-quanto vivem. Deu, pois, a Ele ter vida em si mesmo. Deu-lheenquanto o quê? Deu-lhe, enquanto seu Verbo, àquele que “noprincípio era o Verbo e o Verbo estava junto de Deus” (InEvangelium Ioannis Tractatus Centum Viginti Quatuor, XXII, 10) .

Nesta clave é claríssima a sentença de Cristo: “Vós sois a luz domundo”: pela graça, participamos da Luz que Ele é. Nós, que semEle seríamos trevas, estamos na luz em Cristo.

Mas e o sal? Acaso Cristo seria o Sal e os cristãos teriam sal, porparticipação no Sal Cristo? Parece que sim, pois Cristo dirige-se aos após-

tolos: “Vós sois o sal...”, dizendo que são sal por serem seus apóstolos.

O sal na tradição patrística

Como se sabe, os Padres da Igreja têm facilidade para elásticasinterpretações da Bíblia: não nos deteremos nelas. Indiquemos, bre-vemente, a título de exemplo, algumas interpretações do sal, de quefala o Evangelho, que apontam para a participatio.

Para Cipriano, Cristo já não diz que o homem é lodo da Terra,como Adão, mas sal, isto é, deve ser semelhante ao Pai do Céu (De

dominica oratione CCL 43, cp 17). Paulino de Nola, sentindo-se in-sosso, pede a S. Nicetas que o tempere com um pouco de seu sal(CCL 203, Carmen 27); para Cromácio de Aquiléia, o sal é a Sabe-doria de Deus, recebida pelo corpo humano (CCL 218, Tractatus in

Mathaeum, 18); o tempero da graça do espírito (ibidem); por Jerônimonos vem a fórmula “sal celeste” (e não só terreno) (Commentarii in

Ezechielem, 4). Para Cesário de Arles, o sal é a sabedoria (Col 4, 6),mas a Sabedoria é Cristo (CCL 1008, Sermo 126, cap. 2); como em

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Beda o sal designa a sabedoria do Verbo (CCL 1355 In Marci Ev.

Expositio, l 3, cp 9).

O texto mais claro, porém, é mesmo o da Catena, que Tomásremete a Crisóstomo.

Diga-se de passagem, que não é por acaso que o Aquinate se refe-re a Crisóstomo naquele conhecido episódio de sua vida. Um dia,mestre Tomás, acompanhado de alguns alunos, foi visitar as relíquiasde São Dionísio e, ao voltar, comovidos ante a beleza e a imponênciade Paris – os muros, as torres de Notre-Dame –, um dos estudantesperguntou: “Mestre, que bela é Paris! Não gostaria de ser o senhordesta cidade?” Tomás respondeu: “Mas, que faria eu com ela?” Que-rendo dar uma resposta religiosamente correta, o estudante respon-deu: “O senhor poderia vendê-la ao rei da França e com o dinheiroconstruir todas as casas dos frades dominicanos”. E Tomás responde:“Eu prefiriria as homilias de Crisóstomo sobre Mateus”.

O texto da Catena é sobre a fala de Cristo de que todos – Mc9,49 – hão de ser salgados com fogo. Tenha-se em conta que Tomás –em In II Sent. d14 q1 a5 ra 5 – aceita a interpretação de que o sal daágua do mar se forma pela mistura de vapor da terra com a combus-tão causada pelos raios solares etc. E Cristo ajunta imediatamente:“Bom é o sal, mas se o sal se torna insípido, com que o salgareis?Tende sal em vós e tende paz uns com os outros”.

Somos salgados pelo fogo divino, do qual Cristo disse: “Eu vimtrazer fogo à terra”. E em seguida fala do sal bom, isto é, o fogo doamor. Se o sal for insosso, isto é, privado de si mesmo, sem a própriaqualidade pela qual se diz bom, como temperareis? Há sais que têmsal, isto é, têm a plenitude da graça e há sais sem sal... (Catena Aurea

in Marcum cp 9 lc 6).

E pouco adiante, a partir do (inesperado) versículo de Colossenses,identifica, com clareza total, o sal, os sais, com a participação emCristo Sal: cada um tem de sal tanto quanto é capaz de receber graças

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de Deus. Daí que o Apóstolo junte a graça ao sal, dizendo: “Quevossa conversa seja na graça, temperada com sal” (Col 4,6). O sal étambém o Senhor Jesus Cristo, que foi suficiente para conservar todaa terra e fez de muitos na terra sais.

Unusquisque nostrum habeat tantum salis quantum capax est deigratiarum; unde et apostolus coniungit gratiam sali, dicens: “ser-mo vester sit in gratia sale conditus”. Sal etiam est dominus IesusChristus, qui fuit sufficiens totam terram conservare, et multos interra fecit sales.

O sal como discretio

Se a consideração de Cristo Sal é para nós, hoje, surpreendente,não menos inesperada é a interpretação que Tomás privilegia paraessa salinidade: ele a remete ao âmbito da tomada de decisão, dodiscernimento, do conselho, da prudência, da sabedoria.

Certamente a moderna supressão prática da virtude cardeal daprudência, como virtude pessoal da maturidade cristã (supressão quedá lugar a um cristianismo de regras e proibições, de “manual deescoteiro moral”), guarda relação com nossa estranheza ao vermos,em outras passagens, que Tomás insiste em que esse sal (a que serefere São Paulo) é o discernimento da sabedoria:

Sal autem discretionem sapientiae significat (Super Ep. ad Rom.c. 12 l. 1).Per salem intelligitur discretio: quia per ipsum omnis cibus conditusest sapidus; ita omnis actio indiscreta est insipida et inordinata(Super ad Coloss. c. 4 l. 1).In sale significatur discretio sapientiae (I-II, 102, 3 ad 14).

Entre outras possíveis interpretações5 , Tomás privilegia a do dis-cernimento da sabedoria: que o cristão guie suas ações pela união

5. As associações desfilam nas Catenae: a sabedoria divina, pregada pelos apóstolos,como o sal, seca os humores das obras carnais etc. e conserva para a eternidade. O sal,que provém do fogo da caridade; do vento do Espírito e da água do Batismo etc.

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com Cristo – Sabedoria e Sal – e, assim, seja capaz de sacrifícios (atémesmo, se for o caso, o sacrifício supremo do martírio) e da realiza-ção de toda obra de justiça (Super Ep. ad Rom. c 12, l 1).

A prudência – prudentia nihil sit aliud quam quaedam rectitudodiscretionis (I-II, 61, 4, c) – iluminada pela união com Cristo é hojevirtude tão esquecida como a própria imagem de Cristo Sal.

Referências

GUIMARÃES ROSA, J. Noites do sertão. Rio de Janeiro: José Olympio,6a. ed., 1979.

LAUAND, J. Tomás de Aquino: Verdade e Conhecimento. São Paulo:Martins Fontes, 1999.

OCÁRIZ, F. Hijos de Dios en Cristo. Pamplona: Eunsa, 1972.

WEISHEIPL, J.A. Tomás de Aquino – Vida, obras y doctrina. Pamplona:Eunsa, 1994.

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I FILOSOFI NEL TEMPO E LE ETÀDELLA FILOSOFIA – L’APPORTO DELMEDIOEVO ALLA PERIODIZZAZIONE

STORICO-FILOSOFICAGregorio Piaia

(Professore ordinario di Storia della filosofia, Università di Padova –

Italia – [email protected])

«Quid est enim tempus? Quis hoc facile breviterque explicaverit?»:così si chiede s. Agostino nelle Confessiones (11, 14, 17) di fronte a un“qualcosa” che ci sembra di conoscere bene ma che in realtà, se cichiedono cosa sia, ci è assai difficile spiegare («Si nemo ex me quaerat,scio; si quaerenti explicare velim, nescio»). Il filosofo, dunque, comesoggetto attivo che, pur vivendo nel tempo ed essendo anzi sottopostoalla sua legge implacabile (anche i filosofi invecchiano, e così avvieneper i loro libri) tenta tuttavia di formulare una definizione di ciò cheè “il tempo”: una definizione che, in quanto universale, vuol esserevalida “in ogni tempo”, come se fosse fuori o al di là del tempo, nelregno etereo della verità senza tempo…

Verità e tempo, verità e storia, verità che si fa nella storia, nelsenso che, a seconda dell’orizzonte filosofico entro cui ci si muove,essa si manifesta oppure si crea oppure si coglie nella storia. Questopercorso temporale della verità costituisce la storia (intesa come resgestae) della filosofia. La ricostruzione di tale percorso è la storiografiafilosofica, ovvero la storia della filosofia intesa come historia rerum

gestarum. In quest’azione ricostruttiva assume un ruolo di primo pia-no la divisione in età o periodi o fasi, entro cui i diversi filosofi e leloro teorie trovano un’adeguata collocazione. Non si tratta solo di

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grandi contenitori cronologici, giacché l’àmbito temporale puòcaricarsi di aspetti che riguardano il senso e la direzione (o le direzioni)che i pensieri dei filosofi assumono in ogni fase del loro procedere neltempo. È questo un tratto specifico della storiografia filosofica mo-derna, che si contraddistingue per il suo carattere generale, ossia per ilsuo intento di abbracciare (e spiegare) l’intero cammino dell’umanopensiero; basti pensare, ad es., alla celebre opera di Johann JacobBrucker, Historia critica philosophiae a mundi incunabulis ad nostram

usque aetatem deducta (Lipsia 1742-1744), la cui ampia Dissertatio

praeliminaris si chiude con una sezione dedicata espressamente all’Ordo

et divisio historiae philosophicae. Riprendendo in forma sistematicauna distinzione che era ormai comune da circa un secolo, il Bruckerdistingue tre grandi «epoche» della filosofia: la prima comprende lacosiddetta «filosofia antidiluviana» (da cui però egli prende le distanze)e quella «postdiluviana», divisa a sua volta in «barbarica» e «greca»; laseconda va dagli inizi dell’impero di Roma sino alla fine del medioevo,ossia alla Scolastica, che viene anch’essa ripartita in tre periodi; laterza va dalla «restaurazione delle lettere» (il Rinascimento) fino all’etàcontemporanea («ad nostram usque aetatem»).1

È noto che questa attenzione per la periodizzazione del corsostorico della filosofia non trova riscontro nel mondo antico, benchél’interesse per le filosofie del passato sia assai remoto. Tale interessetrovò una prima, organica ed esemplare espressione in Aristotele, inparticolare nel libro I della Metafisica, in cui le posizioni deipredecessori in ordine alla definizione delle cause ultime e dei principiprimi vengono passate in rassegna e classificate – nonché criticamen-te valutate – alla luce della dottrina aristotelica delle quattro cause:una “classificazione”, per l’appunto, di ordine logico-teorico e dialettico

1. Cfr. M. Longo, Historia philosophiae philosophica. Teorie e metodi della storiadella filosofia tra Seicento e Settecento, Milano, IPL, 1986, pp. 195-203.

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(nel senso aristotelico, naturalmente)2 ; una “dossografia” più cheuna “periodizzazione”, anche se l’accenno alla tesi, secondo cui «gliantichissimi che, assai prima della generazione attuale, per primi hannotrattato degli dèi» avrebbero avuto una concezione del mondo analogaa quella di Talete, rivela una chiara coscienza del distacco fra l’etàdella Grecia arcaica e l’età in cui viveva lo Stagirita e che per noi èl’età “classica”.3 D’altronde, se guardiamo all’altro grande modellodella storiografia filosofica antica, le Vite dei filosofi di Diogene Laerzio,si nota come dopo l’iniziale distinzione etnico-geografica tra «barbari»e «greci» l’autore proceda secondo lo schema della divisione in duegrandi scuole, la Jonica e l’Italica, a loro volta suddivise in sètte,all’interno delle quali è applicato il criterio della diadochè, ovverodella «successione» cronologica degli scolarchi o capiscuola, con uncontinuo “va e vieni” che abbraccia circa quattro secoli.

Rispetto a queste ripartizioni l’affermarsi di una forte dimensionestorica e di una conseguente periodizzazione richiedeva alcune pre-messe: per un verso il riconoscimento della piena legittimità filosofica(affermata a suo tempo da Sozione di Alessandria, negata invece daDiogene Laerzio) alla sapienza dei cosiddetti «barbari», che sipresentava più antica di quella greca, con la conseguente retrocessionedegli inizi storici del filosofare; per un altro verso il prolungamento apieno titolo del “far filosofia” ai secoli successivi all’età greca edellenistico-romana, «usque ad nostram aetatem», superando così laconcezione della filosofia come prodotto esclusivamente greco, e ciòsino al punto da progettare un altro modo di “far filosofia”, alternati-vo ai modelli greci, come avvenne nel corso del Seicento. Tali pre-

2. Cfr. E. Berti, Sul carattere “dialettico” della storiografia filosofica di Aristotele, inStoriografia e dossografia nella filosofia antica, a cura di G. Cambiano, Torino, Tirrenia,1986, pp. 101-125.

3. Aristot. Metaph., A, 3, 983b 28-30.

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messe, secondo l’opinione più corrente, si verificarono solo all’iniziodell’età moderna, ove il termine “moderna”, non a caso, assume unsignificato pregnante, in quanto rivendica una netta distinzione – neicontenuti dottrinali e nei metodi d’indagine – riguardo all’etàmedievale (l’aborrita Scolastica) e alla stessa antichità greco-romana.Di qui l’idea, pure diffusa, che la periodizzazione sia un elementocaratterizzante della moderna historia philosophica, a partire dal sec.XVII, quando anche in questo campo l’imitazione dei modelli antichi(dossografico, biografico, diadochistico) cedette il campo aimpostazioni più nuove o quanto meno più estese e comprensive.L’intento della mia relazione è invece di mostrare come già in etàmedievale le due premesse sopra ricordate abbiano trovato pienaattuazione, dando così luogo a periodizzazioni che denotano un sen-so rilevante della storicità dell’umano filosofare e che fungono da“ponte” tra la storiografia filosofica antica e quella moderna.

Mi limiterò in questa sede a tre esempi particolarmentesignificativi, che si riferiscono al sec. XIII, il “secolo d’oro” dellaScolastica. Il primo esempio riguarda il più grande enciclopedistamedievale, il domenicano Vincenzo di Beauvais (morto intorno al1264), precettore alla corte di Luigi IX di Francia e autore delmonumentale Speculum maius, diviso in Speculum historiale, doctrinale

e naturale.4 Ai fini della nostra indagine lo Speculum historiale è, percosì dire, borderline: si tratta infatti di una grande storia universaledistribuita in più libri, ove ad ogni libro corrisponde un periodo diampiezza assai variabile. All’interno di questa trattazione sono però

4. Cfr. A.L. Gabriel, Vinzenz von Beauvais, ein mittelalterlicher Erzieher, Frankfurta.M., Josef Knecht, 1967. Lo Speculum historiale è stato consultato nell’incunabolostrasburghese (Argentinae, Johannes, Mentelin, 1473, to. I). Per unapprofondimento dell’opera storiografica di Vincenzo e degli altri autori quiesaminati rinvio al mio volume A “Historia dos Filósofos” no Universo Cultural doMedievo, a cura di L.A. De Boni e M.R. Nunes Costa, in corso di stampa pressol’EDIPUCRS (Porto Alegre).

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individuabili singoli capitoli o blocchi interi di capitoli che riguardanola storia dei filosofi, costruita attraverso un collage di notizie biografichee di flores dottrinali; espunte dal contesto della cronaca universale eraggruppate all’interno dei rispettivi periodi, queste sezioni dannoluogo alla seguente periodizzazione storico-filosofica:

I. Da Mosè al profeta Daniele (libro III): vi rientrano i sette sapienti,a partire da Talete.

II. Da Ciro il Grande ad Alessandro Magno: questo periodocorrisponde al libro IV, ove ben 33 capitoli su un totale di 103 sonodedicati ai «gesta et dicta philosophorum» (Pitagora, Archita,Democrito, Eraclito, Empedocle, Ippocrate, Anassagora, Parmenide,Protagora, Gorgia, Socrate, Alcibiade, Senofonte, Diogene il Cinico,Platone, Speusippo, Aristotele).

III. Il periodo di Alessandro Magno (libro V: 15 su 71 capitoli riguardanoi filosofi); è un periodo molto breve (28 anni), in cui però sono inseriti –accanto a Senocrate, Epicuro, Callistene, Lisimaco – anche MercurioTrismegisto e i tardi platonici Apuleio e Plotino (in quanto ricollegabili aPlatone) nonché i «Bragmani», ossia i sapienti indiani, sulla base delle«mutuae epistolae» di Alessandro e del re Didimo.

IV. Dalla morte di Alessandro a Giulio Cesare (libro VI: 22 capitolisu un totale di 117); troviamo qui Teofrasto, Polemone, Arcesilao,Cratete, Stilpone, Zenone di Cizio, Crisippo, Diodoro, Carneade,Archimede, Diogene di Babilonia, Ecatone di Rodi, Panezio, i dueScipioni, Catone di Utica…

V. Da Cesare alla morte di Augusto (libro VII: 37 capitoli su 129,dedicati in gran parte a Cicerone e alle sue opere; ma sono presentianche Varrone, Sesto Pitagorico e Valerio Massimo).

VI. Il regno di Tiberio e Caligola (libro VIII: un capitolo è riservatoa Filone di Alessandria).

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VII. Il regno di Claudio (libro IX: vi è fatto grande spazio alleopere di Seneca, che è di gran lunga il filosofo più trattato nelloSpeculum historiale).

VIII. Da Nerone a Vitellio (libro X: comprende un ulteriorecapitolo su Seneca).

IX. Da Vespasiano a Settimio Severo (libro XI): accanto a Plutarco,Secondo, Panteno, Tauro di Berìto, Galeno, sono presenti anche dueautori cristiani, Giustino e Clemente Alessandrino, entrambi definiticon l’epiteto «philosophus», che in seguito non viene più usato; se nededuce che per Vincenzo di Beauvais l’età dei “filosofi” (che iniziacon Talete e i sette sapienti) si chiude con questi due autori, alla cuigiovanile educazione filosofica in ambiente pagano seguì la conversioneal cristianesimo (dopo di che si ha la “successione” dei Padri e dottoridella Chiesa).

Non v’è dubbio che questa periodizzazione della storia dei filosofirisulti piuttosto artificiosa, in quanto frutto della estrapolazione dauna cronaca universale. Essa costituisce comunque un efficace termi-ne di raffronto con il secondo testo su cui intendo qui richiamarel’attenzione, ossia il breve trattato introduttivo alla Summa philosophiae

dello pseudo Grossatesta.5 Qui il contesto letterario è mutato: non sitratta più di una storia universale, bensì di una esposizione sistematicadella philosophia, dalla metafisica fino alla mineralogia (una summa,per l’appunto), che viene però preceduta e introdotta da un sinteticoexcursus storico-filosofico, come sarebbe poi avvenuto in molti manualidi filosofia dei secoli XVII-XVIII. Un excursus, a dire il vero, assaischeletrico, dato che si riduce a poco più di semplici elenchi di nomi,

5. Summa philosophiae Roberto Grosseteste ascripta, in L. Baur, Die philosophischenWerke des Robert Grosseteste, Bischofs von Lincoln. Münster, Aschendorff, 1912(BGPhM. 9), pp. 275-280.

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inquadrati però – è questo l’aspetto interessante – entro uno schemadi periodizzazione che è certamente mutuato dalla storia universale,ma che comincia anche ad avere dei tratti autonomi, che preludonoalle periodizzazioni adottate in età moderna. L’anonimo autore dellaSumma philosophiae distingue infatti nettamente quattro periodi, entroi quali sono distribuiti tutti i philosophi e che corrispondono adaltrettanti brevi capitoli:

I. Dai tempi di Noè fino a Ciro il Grande. Questo periodo comprendei «primi philosophantes», ossia i Caldei, che trassero origine dai tre figli diNoè ed ebbero come massimo esponente Abramo, esperto nell’astrologiae nell’aritmetica oltre che conoscitore del vero Dio. Dopo Abramofiorirono, in successione temporale, l’astrologo Atlante, il primo e ilsecondo Mercurio Trismegisto, il biblico Giobbe, Iside inventrice dellascrittura, Cecrope fondatore di Atene, il fenicio Cadmo, il greco Omero,il re Salomone e infine Talete e l’astrologo Ipparco.

II. Da Ciro ad Alessandro Magno. È questa l’età dei «Graeciphilosophantes», divisi nei «duo famosissima genera», ossia la scuolaJonica e l’Italica (è evidente l’analogia con la periodizzazione in usonelle cronache universali e legata allo schema della translatio imperii).

III. I filosofi romani, sia di lingua greca sia di lingua latina, fino ai

filosofi arabi («De philosophis Romanis sive Graeco stilo, sive Latinophilosophiam suam digesserint – et hoc usque ad tempora Arabumphilosophantium»).6 Sono qui menzionati Varrone, Cicerone, Seneca,Plinio il Vecchio, Aulo Gellio, Apuleio, Plotino, Tolomeo, Galeno,Dioscoride, Macrobio, Alessandro di Afrodisia, Temistio, MarzianoCapella. Boezio, Solino, il grammatico Prisciano e Mario Vittorino,insieme con i maggiori poeti latini.

6. Ibi, p. 279.

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IV. La delimitazione di questo periodo è la più innovativa, perchéesso va dal tempo dell’imperatore Eraclio († 641), ossia dall’iniziodella grande espansione dell’Islam, fino al tempo dell’autore dellaSumma philosophiae («De philosophis magis famosis Arabicis velHispanis et aliis eis vel contemporaneis vel succedentibus etiamLatinis»).7 In questo capitoletto i philosophi sono ripartiti in base allaloro religione: dapprima i musulmani (al-Kindi, al-Farabi, Avicenna,Avempace [ibn Bajja], Averroè…, ma anche matematici e medici),poi i cristiani e infine gli ebrei (i due «Rabbi Moyses», ossia il grandeMosè Maimonide e un altro Mosè, pure spagnolo, che nel 1106 si eraconvertito ed aveva assunto il nome di Pietro Alfonso; ma a costoroandrebbe aggiunto Avicebron, ovvero Salomon ibn Gebirol, che fi-gura qui nella lista dei filosofi arabi).

L’elenco più interessante è senz’altro quello dei «philosophi»cristiani: è un elenco a prima vista sorprendente, perché non vitroviamo i pensatori solitamente trattati nelle nostre storie della filo-sofia medievale, bensì una serie di traduttori dall’arabo in latino oppuredi autori di opere scientifiche: Costa ben Luca (l’arabo Qusta ibnLuqa, vissuto nel IX sec., che si era convertito al cristianesimo, autoredel De differentia animae et spiritus, volto dall’arabo in latino nel sec.XII); Costantino Africano († 1087), che aveva promosso all’abbaziadi Montecassino la traduzione di opere scientifiche arabe; DomenicoGundissalvi, il celebre traduttore della scuola di Toledo; Platone daTivoli, pure lui traduttore, attivo a Barcellona nella prima metà delsec. XII; e poi il medico bizantino Teofilo Protospatario (vissuto nelsec. VII e autore del De pulsibus e del De urinis, ben conosciutinell’Occidente latino) e Macer Floridus, pseudonimo dell’autore delpoema De viribus seu de virtutibus herbarum. Quanto ai più notipensatori del medioevo latino, da Alcuino ad Anselmo d’Aosta, Ugo

7. Ibi, pp. 279-280.

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e Riccardo di San Vittore, Gilberto Porretano, Pietro Lombardo,Guglielmo d’Auxerre, essi sono menzionati fra i «theologi» nelsuccessivo capitolo XI (spicca nell’elenco l’assenza di Giovanni ScotoEriugena).8

Agli occhi dello pseudo Grossatesta parrebbe dunque che la qua-lifica di philosophus – riferita ai secoli più recenti – fosse da attribuiresoltanto ai traduttori dall’arabo e agli autori di opere medico-scientifiche. Sennonché questa immagine decisamente riduttiva delphilosophus risulta corretta ed ampliata dalle considerazioni poste aconclusione del IV periodo, con le quali l’anonimo autore della Summa

philosophiae si spinge fino all’età a lui contemporanea, evidentementesotto l’influsso della giovane e vivace cultura universitaria, segnataormai dal “ritorno” di Aristotele nell’Occidente latino. Egli dichiarainfatti che vi sono anche altri filosofi di buon livello, dei quali hastudiato le dottrine, ma non conosce i loro nomi oppure ritieneopportuno non menzionarli, probabilmente per gli esiti eterodossidel loro pensiero (l’allusione è forse ad autori come Amalrico di Bèneo Davide di Dinant). Alcuni nomi escono comunque dalla sua penna;si tratta di Giovanni il Peripatetico, di Alfredo di Sareshel e soprattuttodi due «moderniores», ossia contemporanei: il francescano Alessandrodi Hales († 1245) e il domenicano Alberto Magno († 1280). Nelcontempo egli fa però presente che tali philosophi non si possono por-re sullo stesso piano delle auctoritates riconosciute.9

Qual è il significato complessivo di questo schema periodizzante?Anzitutto per lo pseudo Grossatesta l’esercizio della «filosofia» non è

8. Ibi, pp. 284-285.

9. Ibi, p. 280: «Sunt et alii quam plures eximiae philosophiae viri, quorum etsiphilosophiam inspexerimus, nomina tamen vel ignoramus vel non sine causareticemus, quamquam et Iohannem peripateticum et Alfredum modernioresqueAlexandrum minorem atque Albertum Coloniensem praedicatorem philosophoseximios censendos reputemus, nec tamen pro auctoritatibus habendos».

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esclusivo del mondo greco-romano con le sue propaggini cristiane(Giustino e Clemente di Alessandria), ma risale ai tempi più remoti,successivi al diluvio universale, e comprende quindi i «barbari». Questaprospettiva, che possiamo definire platonico-cristiana e che avrebbegoduto di larga fortuna nel Rinascimento e nel Seicento, si riallacciaalla tradizione “alessandrina” di Sozione, Filone l’Ebreo, Clemente,Agostino, in contrasto con l’ellenocentrismo di Diogene Laerzio edello stesso Aristotele. Inoltre, ed è questo l’aspetto più nuovo, laphilosophia è vista prolungarsi sino all’età contemporanea,abbracciando insieme musulmani, ebrei e cristiani: per quanto menoautorevoli rispetto agli autori del passato (il pensiero va al celebredetto di Bernardo di Chartres, «Nani gigantum humeris insidentes»),Alessandro di Hales e Alberto Magno sono tuttavia definiti «philosophieximii», e va riconosciuto che la scelta di questi due personaggi,rappresentativi dei due ordini mendicanti che si disputavano il primatonell’Università di Parigi, non appare affatto fuori luogo. In definitiva,la sintetica periodizzazione della Summa philosophiae risulta assai piùmoderna e innovativa di molte ed ampie trattazioni storico-filosoficheche sarebbero apparse nel Cinquecento e nel primo Seicento, limitateperò – in ossequio allo schema laerziano – al periodo greco o almassimo greco-romano.

E veniamo al terzo testo qui proposto, il Compendiloquium (oFlorilegium) de vita et dictis illustrium philosophorum del francescanoGiovanni di Galles (Johannes Guallensis).10 Si tratta in questo caso di unavera e propria storia dei filosofi, intesa come un genere indipendente siadalle cronache universali sia dalle trattazioni filosofico-teoriche. L’opera,divisa in dieci partes, comprende fra l’altro un’ampia serie di biografie dei

10. Cfr. W.A. Pantin, John of Wales and Medieval Humanism, in Medieval StudiesPresented to Aubrey Gwynn, ed. by J. Watt et al., Dublin, Lochlainn, 1961, pp.297-319.

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filosofi greci, divisi nelle due tradizionali «scuole», la Jonica e l’Italica, madà spazio anche ad alcuni pensatori latini (Cicerone, Seneca, Boezio).Dal punto di vista della periodizzazione la pars più interessante è la decima(«De locis, in quibus floruerunt studia philosophorum»), dove il Guallenseabbandona gli schemi ereditati dal mondo antico e sviluppa con tonoconvinto la categoria della translatio studii, la cui prima elaborazione risaleall’età carolingia.11

Modellata sull’analoga e ben più antica categoria storica dellatranslatio imperii, la translatio studii si fondava sull’idea che il saperesi fosse trasferito da un popolo all’altro secondo una direzione che vada Oriente ad Occidente, seguendo il cammino naturale del sole.Attingendo in più riprese al De naturis rerum di Alessandro Neckam,il Guallense inizia il suo percorso geografico-culturale da Abramo,che avrebbe introdotto le arti del quadrivio in Egitto, dove poi leappresero Pitagora, Platone ed altri filosofi greci. Grande rilievo èquindi dato ad Atene, città in cui la filosofia e le arti liberali ebbero ilmassimo sviluppo. Da lì esse si trasferirono a Roma e in altri luoghid’Italia. Con la prima «fondazione» dello Studio parigino ad opera diCarlo Magno avvenne il passaggio della cultura da Roma a Parigi.Ma non è finita: da buon britannico, il Guallense si rifà alla profeziadel mitico mago Merlino sul trasferimento degli studi al di là dellaManica, ad Oxford e più in là ancora, in Irlanda.12 Qui il camminodella sapienza sembra giunto a compimento, dato che il Guallensenon poteva certo prevedere il sorgere, sull’altra sponda dell’Atlantico,

11. Cfr. U. Krämer, Translatio imperii et studii: zum Geschichts– und Kulturverständnisin der französischen Literatur des Mittelalters und der frühen Neuzeit, Bonn,Romanistischer Verlag, 1996.

12. Florilegium de vita et dictis illustrium philosophorum et Breviloquium de sapientiasanctorum, authore Ioanne Guallensi Ordinis Minorum. Recensuit, et nunc primumedidit Fr. Lucas Wadding ejusdem Instituti, Romae, apud Nicolaum AngelumTinassium, 1655, 10, 1-9, pp. 409-424.

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delle Università di Harvard, Yale, Princeton e, ancora più ad ovest,sulle rive di un altro oceano, di Los Angeles e di Berkeley… Né ilcammino della scienza appare oggi concluso, se si tiene presente losviluppo assunto dalla ricerca scientifica in Estremo Oriente, nelGiappone e nella stessa Cina: il che, se crediamo alla teoria dei corsi ericorsi storici, potrebbe in futuro dar luogo ad un ulteriore “passaggio”da est ad ovest; un passaggio ai nostri occhi non privo di timori, datoche per il Guallense lo sviluppo degli studi filosofici procedeva – perlo meno nella felice età antica – di pari passo con le grandi vittoriemilitari di un Alessandro o di un Cesare.

In Giovanni di Galles la rottura e il superamento dello schemaellenocentrico avvengono dunque su un duplice piano, geografico einsieme storico: la “filosofia”, intesa nella sua accezione più ampia,esce dai confini del mondo greco e, più in generale, del Mediterraneo,e trova i suoi centri di sviluppo anche nell’Europa nordica ed atlantica,sicché il tradizionale rapporto dialettico Gerusalemme-Atene e Atene-Roma si arricchisce con la più recente “coppia” Parigi-Oxford. Il “farfilosofia” è ormai riconosciuto come attività pienamente inserita nelmondo contemporaneo: il Guallense aveva studiato ad Oxford edaveva lì conseguito i gradi di magister artium e di baccelliere in teolo-gia; questa sua esperienza di studio lo porta a valorizzare e ad esaltareil ruolo di quella cultura oxoniense che avrebbe in seguito contribuitonotevolmente – basi pensare ai calculatores – agli sviluppi modernidel pensiero filosofico-scientifico. D’altra parte il tema apparentementeingenuo della translatio studii, lungi dal tramontare insieme con l’etàmedievale, sarebbe a lungo sopravvissuto, assumendo vesti piùraffinate: anni luce sembrano distanziare il grande Hegel dal modes-to compilatore Giovanni di Galles, ma quando Hegel vede nella filo-sofia tedesca la vera erede della filosofia greca e pone il proprio pensieroal culmine di un percorso bimillenario, in fondo egli non fa cherazionalizzare un’intuizione che aveva animato numerosi (anche seoggi oscuri) autori medievali.

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HERMENÊUTICA CRISTÃ DATEMPORALIDADE E HISTORICIDA-DE: POLIFONIA INTERPRETATIVA –DO NOVO TESTAMENTO A PEDRO

DE JOÃO OLIVI

Marcos Aurélio Fernandes

(Instituto franciscano de teologia de Goiás – IFITEG,

[email protected])

O que se propõe neste artigo é fazer uma investigação a respeito

do modo como o cristianismo antigo e medieval perfaz a sua herme-

nêutica da temporalidade e da historicidade. Percorrendo diversas

fases da tradição cristã, que vai do Novo Testamento até o movimen-

to franciscano dos séculos XIII e XIV, procuramos evidenciar diver-

sas tonalidades e vozes interpretativas da experiência cristã do tempo

e da história. O que emerge é, por assim dizer, uma polifonia inter-

pretativa, onde cada voz ressoa no seu caráter todo próprio e no seu

direito inalienável. Polifonia que é, por assim dizer, diferentes entoa-

ções do mesmo: o mistério de Cristo, que se revelou na história como

sendo a plenitude dos tempos. Através de incursões teológicas, vamos

ressaltando, no entanto, as diferentes concepções ontológicas da

temporalidade e da historicidade humana, elaboradas no horizonte

dos diversos cristianismos antigos e medievais.

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MARCOS AURÉLIO FERNANDES

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1. A hermenêutica da temporalidade-historicidade naexperiência proto-cristã da vida

Nós partimos do factum cristão e de sua facticidade1 . Acristianidade2 do cristianismo é determinada por este factum, que, naverdade, é um evento3 . O advir e sobrevir deste evento acontece no

1. A palavra latina “factum” é o particípio passado de facio – eu faço (o infinitivo éfacere), e significa “feito”. Todo o fato é um feito, ou seja, todo o fato é a formaterminal de uma gênese temporal/histórica. A palavra “facticidade” (na hermenêu-tica existencial de “Ser e Tempo”: Faktizität) diz a dinâmica de ser que inaugura,institui, funda, constitui e perfaz a gênese temporal/histórica de todo o “factum”que pertence à existência humana, ou melhor, antes de tudo, a gênese do “factum”que somos nós mesmos, a cada vez, em nosso ter que ser o que somos. A facticidadeé o princípio de toda a hermenêutica da existência humana. Ou seja, toda herme-nêutica precisa partir da experiência fáctica da vida. “A vida só se deixa esclarecer(“erklären”), se for vivida de ponta a ponta (durchgelebt), do mesmo modo comoCristo só começou a esclarecer e a mostrar as Escrituras, como elas ensinavam apartir dele (von ihm) – quando ele havia ressuscitado” (KIERKEGAARD, Tagebuch(Diário), 15 de abril de 1838 – apud HEIDEGGER, GA Band 63, Ontologie(Hermeneutik der Faktizität), Frankfurt a.M.: Vittorio Klostermann, 1995, p. 16s.

2. “Cristianidade” (Christlichkeit) é uma palavra de essência: diz o vigor essencial,originário e mais próprio do cristianismo (Christentum): o sentido de ser da vidacristã, enquanto existência renascida, vivida e consumada na fé, existência referidaa Cristo, à participação na gratuidade e graciosidade do mistério de sua cruz, aodiscipulado todo próprio do Crucificado, que é seguimento, ou seja, existênciacrística e cristiforme. A cunhagem desta palavra deve-se, ao que parece, aKierkegaard, e fora usada pelo teólogo, amigo de Nietzsche, Franz Overbeck; porfim, foi retomada por Heidegger em Phänomenologie und Theologie, Frankfurt a.M.:Vittorio Klostermann, 1970, p. 8. Evitamos a palavra “cristandade” por esta, nouso corrente, designar o modo de ser do cristianismo enquanto fenômeno cultural,social e político, especialmente, o regime de união entre Igreja e Estado.

3. “Evento” vem do latim eventus, que, por sua vez, remete ao verbo evenio (evenire):vir de, sair de; pro-vir de; chegar-se, ir ter; acabar; acontecer. “Evento” traduz,aqui, o alemão Ereignis e se deixa compreender a partir do verbo ereignen: deixar efazer provir, advir, sobrevir. Ereignen diz, pois, pro-vocar alguma coisa a vir a ser elamesma, no seu mais próprio (eigen), deixá-la e fazê-la advir a si mesma, chegar aoseu mais próprio; permitir e determinar o seu sobre-vir e o seu acontecer.

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modo da revelação de um mistério4 : o mistério do reino de Deus(basileia tou Theou – cf. Mc 4,11), que se revela como o mistério deCristo, à medida que irrompe em sua vida – através de suas obras epalavras – e em sua morte de cruz – mediante a sua paixão e ressurrei-ção. Isso se dá de tal maneira que se evidencia uma identidade entrequem proclama a mensagem e a mensagem proclamada mesma. Cristonão somente aparece como alguém que traz uma mensagem, masque é a mensagem mesma. Com outras palavras, Cristo não somenteé o hermeneus5 , ou seja, aquele que anuncia a mensagem, proclama oanúncio e revela o mistério (do reino de Deus), mas ele é o própriomysterion (do reino de Deus) tornado presente e manifesto, comomysterion, porém. Isso quer dizer que a revelação é re-velação, ouseja, é o aparecimento do velado como velado, o desvelamento dovelamento como velamento.

O aparecimento do mistério de Cristo, sua parousia6 e epiphaneia7 ,inaugura o fim dos tempos ou os tempos do fim. Raia o Dia. Aconteceo Hoje. Vem a Hora. Plenitude dos tempos.

4. “Mistério” não é uma falha, falta ou deficiência do conhecimento. Mas é, antes,dinâmica e modo da auto-apresentação da própria realidade do real. Na raiz de seuadvir, tudo é mistério. “Mistério” vem do grego Mysterion, que, por sua vez, remeteao verbo Myo, “fechar (a boca ou os olhos)”. Fala, pois, do invisível de todo ovisível, do indizível de todo o dizível, do que se retrai em todo o aparecimento, doque se retira em todo o advento. No sentido bíblico, a palavra se reveste de caráterhistórico-escatológico. Mysterion é evento escatológico: re-velação de uma decisãodivina, seu propósito e seu cumprimento definitivo.

5. Hermeneus é aquele que exerce o hermeneuein, ou seja, aquele que exerce oencargo de trazer a mensagem do destino, de dar notícia dela. O Cristo, comohermeneus, é o enviado, que traz os anúncios do Pai e revela suas decisões. É oanunciador do inesperado e do imperscrutável. (Neste sentido, há um parentescoou analogia entre a figura de Cristo no cristianismo e a figura de Hermes nagrecidade).

6. O nome parousia significa presença, aparecimento, vinda (latim: adventus) eremete ao verbo pareimi, estar presente, ter vindo. No mundo grego e helenístico,

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Isso constitui o lance de abertura de toda uma hermenêutica datemporalidade e da historicidade no(s) protocristianismo(s) e no(s)cristianismo(s) de todos os tempos. Isso determina o modo como ocristão, em todo e qualquer tempo, vive a temporalidade. Dizemos:“vive a temporalidade” e não “vive na temporalidade”, porque, para ocristão, a temporalidade não é nenhuma abstração, algo assim comouma moldura indiferente e neutra, em que se desenrolam os aconte-cimentos do mundo, antes, a temporalidade é a dinâmica do tempomesmo, enquanto tempo vivido, e vivido na iminência do fim. Estaiminência, no entanto, não se deixa constatar ou comprovar a partirde um cálculo, realizado no âmbito e no horizonte de uma concep-ção matemática e neutra do tempo, antes, ela é de cunho existencial.

parousia nomeava também a vinda ou visita de um rei ou imperador. Paulo empre-ga o verbo pareimi e o nome parousia no sentido usual e no sentido escatológico(1Ts 4,15: eis ten parousia tou kyriou – ...“até a vinda do Senhor; 1Cr 15,23: en teparousia autou – ... “na sua vinda”; 2Ts 2,8: kai katargesei te epiphaneia tes parousiasautou – ... “e aniquilará com o esplendor de sua vinda”). A parousia de Cristo ora serefere ao seu já ter vindo, ora ao seu estar vindo, ora ao seu por-vir. Trata-se,sempre, de um ad-vento, de um e-vento, de um sobre-vento. A parousia oscila,portanto, entre aparecimento (já acontecido) e reaparecimento (ainda porvindouro)do Cristo.

7. Epiphaneia significa aparecimento, revelação. O nome remete ao verbo“epiphaino”: mostrar, aparecer, fazer brilhar. Epiphaneia designava o aparecimentode um deus na história, por meio de eventos ou acontecimentos extraordinários. ASeptuaginta escolhe aquele nome e aquele verbo para se referir às intervençõesgloriosas e terríveis de Ihwh/Adonai. Daí, no horizonte da apocalíptica judaica,epiphaneia passa a designar o aparecimento de Deus como evento escatológico. Noquadro do culto grego, a epifania de um deus é celebrada no ritual como a festa doseu nascimento, da sua ascensão ao trono, de um milagre específico operado porele, daí, a liturgia cristã compõe a festa da epifania com a memória do nascimentode Cristo, de seu batismo e da sua primeira manifestação no sinal das bodas deCaná. No Novo Testamento, entretanto, epiphaneia é um nome escatológico, istoé, remete para o aparecimento definitivo de Cristo, ou seja, não mais o seu apare-cimento humilde e frágil “na carne”, mas o seu aparecimento glorioso no Diaúltimo (Cf. 2Ts 2,8).

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O cristão vive o tempo, diante da iminência da impossibilidade dopróprio tempo (chronos), que, por sua vez, é a possibilidade de todasas possibilidades, a dimensão de todas as dimensões de possibilida-des, pois tudo o que vem a ser, tudo o que advém, precisa do tempo(chronos) para tal8 . O Fim é a possibilidade da impossibilidade dotempo. Enquanto possibilidade da impossibilidade, é a iminência doincontornável, insuperável e irremissível, que, por sua vez, agrava otempo presente, tornando-o tempo de crise, isto é, de risco e de chan-ce, de perdição e salvação, de julgamento e de graça. O fim iminente,porém, não é só fim do tempo, mas também fim dos tempos – isto é,dos séculos, das eras do mundo9 . O advento do Cristo inaugura o fim

8. Chronos é o tempo tomado como o tempo com o qual se conta. Remete, porisso, ao lapso de tempo (de quando a quando, de então a então). Implica, pois,duração e sucessão. O homem mensura, isto é, mede e conta o tempo por precisarcontar com o tempo. E precisa contar com o tempo porque o seu tempo é sempreum tempo contado e medido: um tempo finito e definido. O homem tende acaptar o tempo como infinito e interminável, e se sente autorizado a isso quandoconsidera o tempo “do mundo”, da “natureza”, dos céus e dos astros. No entanto,este tempo interminável só aparece quando o homem abstrai do tempo de suavida, que é sempre, um tempo finito e definido. O cristianismo reverte esta rela-ção. O tempo da vida do homem, em sua transiência e finitude, se projeta tambémsobre o tempo da vida do mundo. Os poderes cósmicos já não aparecem maiscomo definitivos e inabaláveis, mas como transientes e abaláveis. Por isso, a lingua-gem apocalíptica esta falando sempre de catástrofes cósmicas, que antecedem eacompanham a irrupção do Dia último.

9. Aion é a palavra grega para dizer uma “era do mundo”. Em Homero, aion corres-ponde a psyche (vida). A vida humana (bíos), tal como ela é vivida e experimentadadesde ela mesma, em sua facticidade, é tempo. A vida, por sua vez, cada vida emsua singularidade, está sempre se estruturando em mundo, que é também sempreum mundo compartilhado com outras vidas. Neste sentido, numa visão que partede dentro da própria vida, o mundo está começando e acabando, sempre de novo,a cada novo nascimento e a cada nova morte. Hesíodo empregou a palavra aioncomo duração de uma vida. “La vida es tiempo – como ya nos hizo ver Dilthey y hoynos reitera Heidegger, y no tiempo cósmico imaginario y porque imaginario infinito,sino tiempo limitado, tiempo que se acaba, que es el verdadero tiempo, el tiempoirreparable. Por eso el hombre tiene edad. La edad es estar el hombre siempre en um

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das eras – das eras da espera. Começa o tempo do cumprimento, darealização, da consumação, soa a plenitude do tempo (to pleroma tou

chronou – Cf Gl 4,4-5). Com o inaugurar do fim dos tempos, come-çam, então, os tempos (as eras) do fim. Da morte de Cristo na cruz atésua definitiva parousia, as eras do mundo serão sempre, de algumamaneira, eras do fim do mundo, as épocas da história serão, por con-seguinte, épocas do fim.

A proclamação do Evangelho se dá em meio a esta experiência datemporalidade. A plenitude do tempo (chronos) é o soar do tempooportuno, o dia “D”, a hora “H”, o kairos10 : “cumpriu-se o tempo(peplerotai ho kairos), e o Reinado de Deus aproximou-se” (Mc 1,15).É tempo de retorno e transformação da mente (metanoia). É hora dafé (pistis). Com Jesus e a partir de Jesus, o protocristianismo podeproclamar: “Eis agora o momento inteiramente favorável (idou nyn

cierto trozo de su escaso tiempo...” ORTEGA Y GASSET. En torno a Galileo – esque-ma de las crisis. Madrid: Revista de occidente, 1956, p. 38s. Já Ésquilo fala de aionno sentido de geração. A história acontece “de geração em geração”, num movimentocheio de rupturas e continuidades, mais precisamente, num movimento de passa-gem, que constitui uma tradição (paradosis). De novo, podemos remeter, aqui, auma palavra de Ortega y Gasset: “El hecho más elemental de la vida humana es queunos hombres mueren y otros nacen – que las vidas se suceden. Toda vida humana, porsu essencia misma, está encajada entre otras vidas anteriores y otras posteriores – vienede una vida y va a outra subsecuente. Pues bien, en eso hecho, el más elemental, fundola necesidad ineludibile de los câmbios em la estrutura del mundo” (Idem, p. 38). Amudança das gerações e de suas estruturas de mundo, suas rupturas e continuida-des, constituem as eras, os séculos (mundos), as épocas.

10. O nome kairos aparece pela primeira vez em Hesíodo, denotando “medidacerta”, “o que é conveniente, apropriado e decisivo”. Kairos é tempo-espaço favorá-vel, propício, apropriado, que está, a cada vez, em jogo. É a situação de uma deci-são, que implica, ao mesmo tempo, oportunidade e perigo. A experiência da histó-ria, para Israel, estava marcada pela irrupção da ação salvífica de Ihwh/Adonai emtais situações. O protocristianismo proclama que, com Jesus, raiou um kairos novo:“por isso, se alguém está em Cristo, é uma nova criatura (kaine ktisis). O mundoantigo passou (ta archaia parelthen), eis que aí está uma realidade nova (idou gegonenkaina)” (2Cor 5,17).

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kairos euprosdektos). Eis agora o dia da salvação (idou nyn hemera

soterias)” (2Cor 6,2).

O tempo inaugurado por Cristo não é apenas qualitativamentediverso dos outros tempos. Ele é o tempo radicalmente novo: o tem-po do surgimento de uma nova criação, de um novo céu e uma novaterra, de uma nova existência. Trata-se, portanto, de um radicalmen-te novo nascimento do mundo, no seu sentido ôntico-ontológico,como o Kyrios proclama no livro do Apocalipse (21,5): “Eis que eufaço novas todas as coisas (idou kaina poio panta)”. Este novo aion,esta nova criação, esta nova realidade já começou no Cristo Crucifi-cado e Ressuscitado. Pela fé (pistis), o cristão renasce para dentro delae nela se incorpora. Ele é alguém que “está em Cristo” (2Cor 5,17).Sua existência é uma existência renascida em Cristo, na fé. Em Cristoele vive. Como Paulo, ele pode dizer: “Vivo (zo), mas não sou maiseu (ouketi ego), é Cristo que vive em mim (ze de en emoi Christos)”(Gl 2,20). É na fé (en pistei) que o cristão vive a nova realidade, quelhe foi doada gratuitamente, como num novo nascimento. Fé é exis-tir a partir de Cristo. É ter nele o fundamento da própria existência, ocentro e o sentido da própria vida. Cristo se torna, para o cristão, vidade sua vida. Esta vida, que lhe é comunicada na graça da fé, e que é opróprio Cristo em sua autodoação, é algo de último (eschaton), querdizer, de definitivo. Entretanto, este definitivo ainda não se manifes-tou inteiramente. O cristão vive na espera do inesperado de tal reve-lação plena. Com efeito, o cristão vive ainda a vida presente na carne,isto é, na caducidade e transiência da velha criação, do velho aion. Ocristão é, pois, um cidadão de dois reinos: o reino deste mundo e oreino do mundo vindouro, que, em Cristo, já está presente. Ele vivena ambivalência: entre o último e o penúltimo. Nem é preciso dizerque o último não é aquilo que vem depois do penúltimo. O último éo que já aconteceu de maneira definitiva e que, assim, já determinoutudo o mais como o penúltimo. O último é o cerne do penúltimo: é

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o porvir que já se fez presente e se tornou o passado definitivo dopenúltimo. O último não destrói o penúltimo. Subsumindo-o, dá-lhe um novo sentido: o sentido do penúltimo é “preparar as vias” parao último, como João Batista preparou as vias para o Cristo (cf. Is40,3; Mc 1,1-8). Todo o penúltimo é conservado e, ao mesmo tem-po, superado. Conservado, como chance e oportunidade de “prepa-rar as vias” para a vinda do Kyrios, de ser ocasião da metanoia e dapistis. Superado, à medida que o penúltimo perde o seu caráter deabsolutidade, tornando-se totalmente relativo. A absolutidade, ou seja,o caráter de ser ab-soluto, vale dizer, solto em si mesmo, na plenaliberdade e positividade de ser, isto se atribui somente ao último, aodefinitivo. Daí, a proclamação e exortação de Paulo aos coríntios:

Eis o que digo, irmãos: o tempo se abreviou (ho kairos synestalmenosestin). Doravante, aqueles que têm mulher sejam como se não ativessem, os que choram como se não chorassem, os que se ale-gram como se não se alegrassem, os que compram como se nãopossuíssem, os que tiram proveito deste mundo, como se não apro-veitassem realmente. Pois a figura deste mundo passa (paragei garto schema tou kosmou toutou) (1Cor 7,29-31).

Uma vez que o tempo se encurta e se abrevia e que se evidencia atransiência do “esquema”, isto é, da configuração e estruturação “des-te mundo” (da realidade penúltima), o cristão não pode se conformarao “mundo presente”, mas deve se transformar em sua mente (Cf.Rom 12,2). De fato, o cristão não pode se conformar com este mun-do e com sua sabedoria (sophia), porque, para ela, a palavra da cruz(logos tou staurou) é loucura (Cf. 1Cor 1,26-31): “aquilo que não é (tame onta), Deus o escolheu para conduzir a nada o que é (ta onta)”(1Cor 1,28). Com o evento da cruz, pois, subverte-se a ordem destemundo e evertem-se radicalmente os seus valores: o não-ser aniquilao ser. Tudo isto, porém, para se deixar criar um novo ser, que é ser emCristo Jesus, o Crucificado. Este ser em Cristo, no entanto, aparecepública e abertamente revestido de fraqueza e idiotice. Por isso, oApóstolo do Crucificado não se apresenta “com o prestígio da palavra

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e da sabedoria” para anunciar o “mistério de Deus” (cf. 1Cor 2,1).Antes, ele se apresenta em fraqueza (en astheneia), em temor e tremor(en phobo kai en tromo), a fim de que se torne manifesto que a fé nãose fundamenta na sabedoria dos homens (sophia anthropon). De fato,pois a fé é um renascer e, enquanto tal, é gratuidade de Deus e nãoconquista do homem. Por tudo, isso, a única sabedoria do cristão é oCristo Crucificado: “Pois resolvi nada saber (eidenai) entre vós a nãoser Jesus Cristo e Jesus Cristo crucificado” (1Cor 2,2): “escândalopara os judeus, loucura para os pagãos, mas para os que são chamados(tois kletois), tanto judeus como gregos, ele é o Cristo, poder de Deus(Theou dynamin) e sabedoria de Deus (Theou sophian). (1Cor 1,23s).Por ser em Cristo, loucura e fraqueza de Deus, o cristão não se orgu-lha de suas conquistas éticas, nem de suas pretensas experiências mís-ticas (visões e revelações) e do conhecimento (gnosis) que esta expe-riência traria consigo, antes, ele se orgulha de suas fraquezas: “quan-do sou fraco, então é que sou forte (hotan gar astheno, tote dynatos

eimi)” (2Cor 12,10). A única glória que lhe interessa é a da cruz.Pois, tudo quanto se dá no mundo é, em si mesmo, insignificante: oque unicamente importa é a “nova criação” (kaine ktisis).

O cristão vive a temporalidade, por conseguinte, na fraqueza doCrucificado, uma fraqueza que, no entanto, é “ternura” (1Ts 2,7).Sua existência “na carne” é revestida de indigência, necessidade, pobre-

za: é cheia de “penas e fadigas” (1Ts 2,9), “angústias e provações”(1Ts 3,7). Aqui aparece uma palavra primordial para se entender estemodo de viver a temporalidade, típico do protocristianismo: “thlipsis”– opressão, aflição, tribulação, provação, perseguição, por causa doseguimento de Cristo. Trata-se da participação do cristão nos sofri-mentos de Cristo, que são também as dores de parto da nova criação.Tudo isso exige do cristão uma virtude sobremodo importante: ahypomone: paciência, constância, perseverança. “É na vossa paciênciaque ganhareis as vossas vidas” (en te hypomone hymon ktesesthe tas

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psychas hymon) (Lc 21,19). Assim, o cristão carrega o tesouro do co-nhecimento do rosto de Cristo “em vaso de argila” (2Cor 4,7a) epode dizer:

Premidos de todos os lados, nós não somos esmagados; emimpasses, mas conseguimos passar; perseguidos, mas não alcança-dos; prostrados por terra, mas não liquidados; sem cessar trazemosem nosso corpo a agonia de Jesus, a fim de que a vida de Jesustambém seja manifestada em nosso corpo (2Cor 4,9s).

A agonia de Jesus, da qual participam os cristãos, seu corpo mís-tico, é também a agonia da velha criação, que espera pela revelação daglória da nova criação, que já está sendo gestada desde a morte eressurreição do Crucificado. “Entregue ao poder do nada... ela guar-da a esperança’ (cf. Rm 8,20), a esperança de participar da liberdadee da glória dos filhos de Deus. Seus gemidos e dores, são os gemidose as dores de parto do novo céu e da nova terra.

Por ter que esperar, isto é, guardar a esperança (elpis), que não énenhuma expectativa calculada disso ou daquilo, mas é a abertura naplena disponibilidade para o advento do inesperado da parousia defi-nitiva, o cristão necessita se manter sempre de novo na vigilância. Naatitude de vigilância, com efeito, o cristão vive uma “fé ativa”, um“amor sacrificado”, uma “esperança perseverante” (cf. 1Ts 1,3), “aco-lhendo a palavra em meio a muitas tribulações, com a alegria do Es-pírito Santo” (1Ts 1,6). Ele “abandona os ídolos” e se volta para “oDeus vivo e verdadeiro” colocando-se ao seu serviço, a fim de “espe-rar dos céus o seu Filho a quem ele ressuscitou dos mortos, Jesus quenos livra da ira que está vindo” (1Ts 1,9s). Os que servem os ídolossão aqueles “que não têm esperança” (1Ts 4,13). Os que servem oDeus vivo, são os que têm um porvir e, por isso, permanecem naesperança (elpis). A esperança, porém, consiste na vigilância, pois “oDia do Senhor vem como um ladrão, de noite” (cf. 1Ts 5,2-4). Operigo que ameaça o cristão é de se contentar com o tempo presentee com o seu mundo. A paz e a segurança do tempo presente lhe são,

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portanto, mais perigosas que as tribulações e apertos, sofridos no se-guimento de Cristo. A paz e a segurança podem mergulhar o cristãona noite do esquecimento de Cristo. Quem adormece nesta noite,acaba sendo surpreendido pela parousia. E ela se lhe acontece, repen-tinamente, como “Dia de ira”, isto é, kairos do julgamento e da con-denação definitivos. Caso, porém, o cristão se mantiver em vigilân-cia, na fé, esperança e na caridade, então ele se torna “filho do dia”(Cf. 1Ts 5,5). E a paurosia lhe advém como o inesperado já sempreesperado, acontecendo-lhe, porém, como kairos de perdão e salvaçãodefinitivos (Cf. 1Ts 5,9s). A dinâmica da temporalidade, por conse-guinte, se mostra ambivalente: para quem se mantém desperto napaciência e esperança, ela culmina no kairos da salvação definitiva,para quem se mantém adormecido na “paz e segurança” do mundo,ela culmina no kairos da condenação definitiva.

Algo da tensão desta ambivalência escatológica, em que atemporalidade aparece no(s) e para o(s) protocristianismo(s), se fazver no livro do Apocalipse de João. O nome apokalypsis – revelação –remete ao verbo apokalypto: revelar, descobrir, desvendar. Trata-se,em verdade, da revelação de Jesus Cristo, que Deus concede aos seusservos, para mostrar (deicsai) aquelas coisas que devem acontecer notempo que foi abreviado (ha dei genesthai em tachei) (cf. Ap 1,1). Éque o fim já se realizou, mas de maneira ainda encoberta, na morte eressurreição de Cristo (que se manifestou apenas a alguns: os discípu-los que deveriam se tornar suas testemunhas qualificadas). Este mes-mo fim necessita se manifestar abertamente a todos os homens. Elevai se manifestando paulatinamente, até se revelar definitiva e total-mente: consuma-se, assim, o mistério de Deus, antes anunciado aosprofetas (cf. Ap 10,7). Nessa perspectiva, há uma coincidência parcialentre o tempo presente e a era novíssima, definitiva. Tudo caminhapara a coincidência total dessas duas dimensões do tempo, que apare-cem justapostas na experiência protocristã da historicidade. Como sepode ver, o tempo aparece, na perspectiva do Apocalipse, a partir daurgência da parousia, e da iminência dos sinais, que a precedem ou a

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acompanham. O momento presente é vivido como tempo do fim.Cada instante se investe da gravidade e se reveste da seriedade de umadecisão que passa a valer para a eternidade. O hoje torna-se tempo dekrisis: tempo de uma de-cisão, que determina, já agora, a cisão (sepa-ração, julgamento) definitiva entre os dois reinos espirituais, simboli-zados nas duas cidades: Babilônia (confusão) e Jerusalém (visão depaz). O Apocalipse é a afirmação da esperança da vitória de Jerusalémsobre Babilônia; é a afirmação da convicção de que o “reino do mun-do” é provisório e destinado à ruína, enquanto o reino de Cristo édefinitivo e eterno (cf. Ap 11,15). Neste sentido, o Apocalipse deJoão não é somente um livro apocalíptico, mas é também e talvez,antes de tudo, um livro profético.

Profeta é aquele a quem o Espírito sobre-vem. Ele é alguém to-mado, raptado, arrebatado pelo Espírito. Posto por este mesmo Espí-rito na roda viva da história, ele se contorce. Hesita, mas não podefugir ao seu destino: anunciar julgamento e salvação. Seu anúncionão provém de si mesmo, mas do Espírito que o domina. Ele fala,não ele, mas o Espírito fala nele e por meio dele. E fala com pathos,isto é, fala inflamada e apaixonadamente. Suas palavras são agudas econtundentes. Convocam rupturas com a velha era e anunciamirrupções de uma nova era. Subvertem, evertem, transvertem. Elasdão voz ao clamor do porvir11 .

O profeta é a “sentinela da iminência” (Ricoeur)12 . Ele anunciajulgamento e salvação. A anunciação é o coração vivo da profecia.Esta não é, propriamente, uma previsão do futuro. É, antes, uma falaantecipada do que será. Tal fala, por sua vez, embora se refira a umfuturo apodítico, diz o que ela tem a dizer, contudo, de maneira her-

11. Cf. ROMBACH, Heinrich. Leben des Geistes – Ein Buch der Bilder zurFundamentalgeschichte der Menschheit. Freiburg/Basel/Wien: Herder, 1977, p. 25s.

12. LACOCQUE, André; RICOEUR, Paul. Pensando biblicamente. Bauru: Edusc,2001, p. 187-205.

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mética, ficando a meio caminho entre o indicativo e o imperativo.Como oráculos, os enunciados desta fala, não afirmam nem negamqualquer coisa, apenas acenam e assinalam o retraimento do mistério(semainein) porvindouro (Cf. Heráclito de Éfeso – Frag. 93)13 . Daí,a forma obscura destes enunciados, os quais, na apocalíptica, se reves-tem de imagens e figuras parabólicas e enigmáticas. Para a profecia,porém, aquele futuro anunciado não será bem um factum do ho-mem, mas muito mais de Deus. Daí a apoditicidade do anúncio e aconvicção de quem anuncia. O profeta conta a história do futuro. E asua narração do futuro não é tranqüila, é, antes, angustiosa edesestabilizadora. Ela se põe diante da terrificante alternativa que selhe instala: entre ruína completa e salvação plena, entre a catástrofe ea recapitulação consumadora de todas as coisas. Sua narração é, porisso, traumática. A “loucura” visionária, extática e entusiástica, doprofeta, porém, traz consigo a lucidez de uma vigilância: a história dofuturo, que ele conta, o faz situar-se de modo todo próprio no aqui eagora, em que ele e seus ouvintes se encontram. O discurso profético,com efeito, assim como o apocalíptico, seu herdeiro, visam o hoje, oagora, querendo suscitar um despertar para a gravidade e a seriedade dohoje, do aqui e agora. Há, porém, uma diferença entre o discurso sim-plesmente profético e o profético-apocalíptico, como o do Apocalipse deJoão: aquele narra um futuro intra-histórico, este, um futuro trans-histó-rico, escatológico, definitivo. Na apocalíptica, o profeta se torna não só asentinela de uma iminência intra-histórica, intramundana, mas tambémde uma iminência trans-histórica, escatológica: o futuro definitivo,irrevogável de Deus, “aquele que é, que era e que virá”, “o alpha e oomega” de todo o tempo e de toda a história.

13. ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO. Os pensadores originári-os. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 82s.

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2. A hermenêutica da temporalidade-historicidade na expe-riência cristã-medieval da vida

A hermenêutica cristã da temporalidade e da historicidade, aolongo dos séculos, se viu marcada pela perspectiva escatológica do(s)proto-cristianismo(s), em especial pelo livro do Apocalipse de João. Acomeçar de Agostinho.

Agostinho viveu um tempo de de-cadência: para todos, pagãos ecristãos, patenteava-se o fim de uma era, a saber, a era do impérioromano. Mas, na agonia do império romano, se pressentia a agoniado mundo como tal.

Assim, da parte dos cristãos, entoam-se, desde o fim da Antigüi-dade, vozes que vão ressoar por toda a alta idade média, pelo medievoromânico e pelo medievo gótico afora, cantando o envelhecimento emesmo o fim do mundo14 : São Cipriano15 , São Jerônimo16 , SantoOriêncio de Aquitânia17 , São Gregório Magno18 , Marculfo19 , Pascásio

14. As referências seguintes, com as citações em latim, são dadas apud: DE LUBAC,Henri. Opera Omnia (Secção V, Vol. 19) – Esegesi Medievale – Volume Terzo. Milano:Jaca Book, 1996, p. 711-713.

15. “Mundus ecce nutat et labitur, et ruinam sui non jam senectute rerum sed finetestatur – Eis que todo o mundo vacila e cai e atesta a sua ruína não já com avelhice das coisas, mas com o fim” (Cipriano (c. 210-258).

16. “Cadit mundus – o mundo cai” (Jerônimo, c. 347-419/420).

17. “Lassa senescentem despectant omnia finem / Et jam postremo volvitur hora die/ Respice quam raptim totum mors presserit orbem – todas as coisas desfalecidas,olham com despeito para o fim que está se extinguindo, e já agora a hora se volta parao dia último. Olha quanto rapidamente a morte oprime todo o mundo” (Oriêncio deAquitânia: bispo poeta do século V). Palavras que poderiam servir de mote ao filme“O sétimo selo”, do recém-falecido Ingmar Bergmann, filme este que trata, justamen-te, do “outono da idade média” (expressão do historiador Huizinga).

18. “In interitum rerum omnium, pensare debemus, nihil fuisse quod amavimus –diante da destruição de todas as coisas, devemos considerar que era um nada aquiloque amávamos” (Gregório Magno, c. 540-604).

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Radberto20 , Santo Euquério21 . A palavra de São Gregório Magno,por exemplo, declara: “ecce enim quia divini judicii dies imminet – defato, eis porque é iminente o dia do divino juízo”22 . E Santo AmbrósioAutperto (?-784), comenta:

Mas o Filho de Deus diz que verá velozmente, porque todo otempo da vida presente, por mais que seja prolongado por longosperíodos de intervalos, todavia, porque não está parado, mas passa(quia non stat, sed transit), com o seu próprio transcorrer demons-tra que há de terminar velozmente. Por causa deste cursovelocíssimo, João define a sua quantidade com a duração de umasó hora, quando ele diz: “Filho, chegou a última hora”23 .

Agostinho (354-430) pressente e ressente a queda do Império Ro-mano na invasão de Roma por Alarico, rei dos visigodos, em 410. Ospagãos acusam o Deus dos cristãos, pela ruína do império. Desde que oCrucificado fora se tornando preponderante no panteão romano, oumelhor, desde que ele fora se tornando exclusivo, o império só foi decain-do. A cruz foi implodindo a cidade. E seus muros foram se tornandovulneráveis. Esta situação constituiu a ocasião para Agostinho – africanode origem, romano de cultura e cristão de fé – pensar as relações entre fécristã e temporalidade-historicidade e expor o sentido destas relações numahermenêutica cristã da história em sua obra De Civitate Dei – Da cidade

19. “Mundus senescit!... Mundus terminus appropinquat – o mundo envelhece!...O fim do mundo se aproxima” (Marculfo, Séc. VII).

20. “In proximo est ut veniat hoc pejus ultimum malum... sem nondum statim –está muito iminente o último mal, pior do que este... mas não (se dará) logo”(Pascásio Radberto, fim do século VIII a 860/865).

21. “Omnis fucatus splendor intercidit. Vix jam hoc habet mundus, ut fallat...Dirigenda est omnis animi intentio in spem futuri – cai todo artificioso esplendor.Já agora o mundo a duras penas o tem para enganar... todo o esforço da alma deveestar direcionado à esperança do futuro”.

22. Apud: DE LUBAC, Henri. Idem, p. 713.

23. Apud: DE LUBAC, Henri. Idem, ibidem.

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de Deus (413-426). A exposição de Agostinho pode ser dividida em uma“pars destruens”, em que faz uma crítica da crítica pagã e uma apologia dafé cristã, e em uma “pars construens”, em que recapitula a inteira história –que, na perspectiva da fé, é sempre história de salvação – à luz da revela-ção bíblica. Nesta segunda parte, ele expõe a origem, o desenvolvimentoe o fim das duas cidades, cujas vicissitudes e peripécias constituem toda ahistória do ser humano. Em outras obras também aparece essa idéia dasduas cidades:

Dois amores fizeram duas cidades: o amor de Deus faz Jerusalém,o amor do século Babilônia.Estes dois amores, dos quais um é santo, o outro imundo; um ésocial, o outro privado; um se preocupa com a vantagem de todos,o outro mesmo as coisas comuns reduz ao próprio poder, por ar-rogância de poder; um é súdito, o outro rival de Deus; um tran-qüilo, o outro turbulento; um pacífico, o outro sedicioso; um pre-fere a verdade aos louvores dos errantes, o outro vai à caça delouvores, em todos os sentidos; um move à amizade, o outro gerainveja; um deseja ao próximo aquilo que deseja para si mesmo, ooutro quer sujeitar o próximo a si mesmo; um governa o próximopara vantagem do próximo, o outro para a própria vantagem. Es-tes dois amores tiveram seu precedente nos anjos, um nos anjosbons, o outro naqueles maus, e distinguiram duas cidades no gê-nero humano sob a admirável e inefável providência de Deus, quegoverna e ordena tudo aquilo que foi criado: uma é a cidade dosjustos, a outra a dos perversos. Estas duas cidades correm unidasno tempo, mesclando as próprias vicissitudes, até que sejam sepa-radas no juízo final, e uma, unida aos anjos bons, obtenha a vidaeterna, a outra, unida aos anjos maus, seja mandada com o seu reipara o fogo eterno. Destas duas cidades falaremos, se Deus quiser,em outra ocasião.Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor pró-prio, levado ao desprezo a Deus, a terrena: o amor a Deus, levadoao desprezo de si próprio, a celestial. Gloria-se a primeira em simesma e a segunda em Deus... Naquela, seus príncipes e naçõesavassaladas vêem-se sob o jugo da concupiscência de domínio;nesta, servem em mútua caridade, os governantes, aconselhando,e os súditos, obedecendo...

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As duas cidades, portanto, são dois tipos de constituição do mun-do da convivência humana, duas formas de organização da vida so-cial, cada uma fundada por uma espécie de amor e seu ethos. Estasduas cidades têm origem eviterna24 : na cisão entre anjos bons e anjosmaus. No curso temporal da história, porém, estas duas cidades estãomisturadas e ambas participam das mesmas vicissitudes: comparti-lham os mesmos bens e os mesmos males temporais. A separaçãodestas duas cidades, na verdade, só acontece no juízo final. Uma serádestinada ao bem definitivo, que é a vida eterna, a outra à ruína defi-nitiva, que é a morte eterna. As duas cidades, portanto, são arquéti-pos das possibilidades de constituição do convívio humano, arquéti-pos do ser-uns-com-os-outros no mundo comum e compartilhadoda convivência, arquétipos extremos da vida social. O homem é oque é, a partir do modo de ser do seu amor. E é de acordo com estemodo de ser do seu amor que ele pertence a uma outra sociedade: ouà cidade de Deus, cidade celeste, ou à cidade dos homens, cidadeterrena. De acordo com o seu modo de viver é que o homem migraou não de uma cidade para a outra, enquanto houver tempo. Contu-do, quando não há mais tempo, no último dia e na última hora, é que

24. Eviterno não é o mesmo que eterno. O medieval distinguia entre “aeternitas”,que pertence a Deus, e que não inclui nem sucessão nem duração, e “aevum”, queseria como que a temporalidade própria dos puros espíritos e que inclui uma dura-ção indefinida e uma sucessão, mas uma sucessão de caráter todo próprio. Talsucessão se mostra no fato de que o espírito puro é um ente criado, que passa dapotência (poder-ser) ao ato (ser-efetivamente), do nada à existência. O espíritopuro é, neste sentido, marcado pela contingência e pelo devir, contudo, não estásubmetido nem à inovação nem à decrepitude. Vive num modo de ser estável,permanente. Enquanto espíritos, os anjos são seres de liberdade. No entanto, adecisão pelo bem ou pelo mal, entre eles, comporta algo de definitivo: é umadecisão tomada de uma vez para sempre. Somente um ser temporal pode retomarsuas decisões, reafirmá-las e até mesmo negá-las, tomando posicionamentos con-trários aos que já foram tomados anteriormente. Somente enquanto há tempo, hápossibilidade de arrependimento e de conversão, por exemplo. Tempo e liberdade,neste sentido, estão intimamente conexos.

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se revelam os segredos dos corações e que se separam definitivamenteos justos dos injustos. As duas cidades, por conseguinte, não coinci-dem com a Igreja e o mundo. A Cidade de Deus tem habitantesmesmo entre os que estão fora dos limites da Igreja visível, como acidade terrena também tem habitantes mesmo entre aqueles que es-tão contados como cristãos. A Igreja militante é ainda uma realidademista, híbrida: traz em si justos e injustos, habitantes da Cidade deDeus e da cidade terrena. Somente a Igreja triunfante, na eternidade,é que será uma realidade pura e sem mancha de pecado, em quehabitarão somente os justos25 .

A história é um processo teleológico. A consumação deste proces-so consiste na revelação e constituição definitiva do Reino de Deus: otriunfo da Jerusalém Celeste. No Apocalipse de João, depois da que-da de Babilônia – cidade da prostituição, isto é, da idolatria (Cf. Ap18), desce do céu a cidade de Deus, a Jerusalém Celeste. Desce docéu, de junto de Deus, “preparada como uma esposa que se enfeitoupara seu esposo” (Ap 21,2), inaugurando o novo céu e a nova terra.São as núpcias do cordeiro. Núpcias, pois o aparecimento da Jerusa-lém Celeste é evento de união no amor:

Na Cidade de Deus acontece a unificação viva de Deus com ahumanidade e com toda a criação. A cidade de Deus, porém, nãose deu desde o início, mas deve ser esculpida e edificada a partir domaterial bruto da natureza rebelde. Isto acontece no curso da his-tória da humanidade, que se engaja sete vezes para o bem, mas quefracassa seis vezes. Somente a última gênese (a sétima época, osétimo dia da criação) deixa que tudo se torne bom e que tudodesabroche na absoluta unidade da sinfonia. No fim da história domundo Deus se unirá com a humanidade de modo imediato as-sim como a Cabeça de um homem com seu corpo. Segundo umapalavra da Bíblia, Cristo haverá de pôr, para a perfeição da huma-

25. Cf. AGOSTINHO. A cidade de Deus (contra os pagãos) – parte I. Petrópolis:Vozes, 1990, Livro I, cap. XXXV, p. 64.

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nidade amadurecida, a sua cabeça (“… até que todos nós cheguemosà unidade da fé e ao estado do homem perfeito… no qual nós, consu-mando a verdade no amor, cresçamos em tudo na direção daquele queé a Cabeça, Cristo” – Ef. 4, 10-16). O fim é, portanto, um estado,no qual a até então subsistente super-ordem e infra-ordem cedamlugar a uma unidade e igualdade vivas26 .

Jerusalém e Babilônia são arquétipos da ordem e da paz, de umlado, e da confusão, desordem e tempestuosidade, de outro lado. Atemporalidade histórica é caracterizada pela tempestuosidade doscombates entre os humanos que se agitam na diversidade e mesmono conflito de seus interesses. A paz permanece sendo, sempre ainda,uma aspiração e uma meta jamais encontrada definitiva e totalmente.O fim da temporalidade histórica, no entanto, é a tranqüilidade, aserenidade e a paz perpétua, que se condensam na Jerusalém celeste.Aliás, a paz da cidade terrena e a paz da cidade celeste são diversas:

Assim, a cidade terrena, que não vive da fé, apetece também a pazterrena; porém, firma a concórdia entre os cidadãos que mandame os que obedecem, para haver, quanto aos interesses da vida mor-tal, certo concerto das vontades humanas. Mas a cidade celeste, oumelhor, a parte que peregrina neste vale e vive da fé usa dessa pazpor necessidade, até passar a mortalidade, que precisa de tal paz...Em sua viagem a cidade celeste usa também da paz terrena e dascoisas necessariamente relacionadas com a condição atual dos ho-mens. Protege e deseja o acordo de vontades entre os homens,quanto possível, deixando a salvo a piedade e a religião, e ministraa paz terrena à paz celeste, verdadeira paz, única digna de ser e dedizer-se paz da criatura racional, a saber, a ordenatíssima econcordíssima união para gozar de Deus e, ao mesmo tempo, emDeus. Em chegando a esta meta, a vida já não será mortal, masplenamente vital. E o corpo já não será animal, que, enquanto secorrompe, oprime a alma, mas espiritual, sem necessidade algu-ma, plenamente submetido à alma. Possui essa paz aqui pela fé, deque vive justamente, quando refere à consecução da verdadeira

26. ROMBACH, H. op. cit., p. 155.

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paz todas as boas obras que faz para com Deus e com o próximo,porque a vida da cidade é vida social27 .

A paz perpétua é a meta da história. Mas, o que é a paz? A paz é atranqüilidade da ordem:

Assim, a paz do corpo é a ordenada complexão de suas partes; a daalma irracional, a ordenada calma de suas apetências. A paz daalma racional é a ordenada harmonia entre o conhecimento e aação, a paz do corpo e da alma, a vida bem ordenada e a saúde doanimal. A paz entre o homem mortal e Deus é a obediência orde-nada pela fé sob a lei eterna. A paz dos homens entre si, sua orde-nada concórdia. A paz da casa é a ordenada concórdia entre os quemandam e os que obedecem nela; a paz da cidade, a ordenadaconcórdia entre governantes e governados. A paz da cidade celesteé a ordenatíssima e concordíssima união para gozar de Deus e, aomesmo tempo, em Deus. A paz de todas as coisas, a tranqüilidadeda ordem. A ordem é a disposição que às coisas diferentes e àsiguais determina o lugar que lhes corresponde28 .

O triunfo de Jerusalém sobre Babilônia é, portanto, a vitória dapaz – que é a tranqüilidade da ordem, que, por sua vez, é a disposiçãojusta de todas as coisas na sua diversidade e igualdade –, sobre o caos,a confusão, a desordem, a injustiça. O triunfo não se dá, no entanto,sem o combate decisivo. A idade média vislumbrou a gravidade de talcombate escatológico na figura do Anticristo.

O cristão deve poder reconhecer o Anticristo como tal. Esta éuma convocação a estar alerta, vigilante, desperto, em meio às vicissi-tudes da história. Estas vicissitudes não são aleatórias, mas seguem aoikonomia tou mysteriou: obedecem às disposições e aos desígnios,com os quais Deus governa a história (cf. Ef 3,9). Trata-se, em últimainstância, do desígnio benevolente, predeterminado por Deus, de le-

27. AGOSTINHO, A cidade de Deus (contra os pagãos) – parte II. Petrópolis:Vozes, 1990– Livro XIX, cap. XVII, p. 408s.

28. AGOSTINHO, Idem, Livro XIX, cap. XIII, p. 402s.

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var os tempos à plenitude (cf. Ef 1,10a – eis oikonomian tou pleromatos

ton kairon). A plenitude dos tempos, porém, consiste nisso: “recapi-tular todas as coisas no Cristo” (Ef 1,10b – anakephalaiosasthai ta

panta en to Christo). Cristo é o mistério escondido às eras e às gera-ções (to mysterion to apokekrymenon apo ton aionon kai apo ton geneon

cf. Cl 1,26). Ele é o mistério de Deus (mysterion tou Theou), pois neleestão escondidos todos os tesouros da sabedoria (sophia) e do conhe-cimento (gnosis) (cf. Cl 2,2). Assim o Cristo é a revelação escatológicado mistério da piedade (to tes eusebeias mysterion):

Ele foi manifestado na carne (ephanerote en sarki), justificado peloEspírito (edikaiote en pneumati), contemplado pelos anjos (ofteaggelois), proclamado pelos pagãos (ekerychte en ethnesin), acredi-tado no mundo (episteuthe en kosmo), exaltado na glória(anelemphthe en docse) (1Tm 3,16).

Em contraposição ao mistério da piedade está o mistério da ini-

qüidade (mysterion tes anomias), que “já está em ação”, embora aindaretido (cf. 2Ts 2,7s). Tal mistério se adensa numa pessoa e passa areceber o título de “o homem da iniqüidade” (ho anthropos tes anomias),“o filho da perdição” (ho hyios tes apoleias) (cf. 2Ts 2,3), “o ímpio” (ho

anomos) (cf. 2Ts 2,8) . Ele se arroga a ser deus e se põe contra Deus econtra o seu Cristo (anti-cristo): “ele se ergue e se insurge contra tudoo que se chama deus ou se adora, a ponto de se assentar em pessoa notemplo de Deus e proclamar-se Deus” (2Ts 2,4). A ele também éatribuída uma parousia, que acontece “segundo a atuação de Satanás”(2Ts 2,9), o adversário, o inimigo, o “deus deste mundo” (ho theos tou

aionos) (cf. 2Cor 4,4)29 . Ele virá de maneira enganosa e sedutora.Criará a ilusão de ser Deus e de ser Cristo. Seduzirá, no entanto,somente aqueles que se perdem (tois apollymenois), ou seja, aquelesque não acolhem o amor à verdade (ten agapen tes aletheias). Ele cum-

29. No Apocalipse de João esta mesma imagem aparece numa outra figura: a dodragão e seu comparsa, a besta (cf. Ap 13,1s).

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pre, assim, uma função discriminadora na história: ele está a serviçoda história da salvação, à medida que ele favorece a decisão do julga-mento, evidenciando os que amam a verdade e os que se deixamenganar pela aparência da verdade30 . Uma vez cumprido o seu encar-go, no entanto, sua parousia está destinada a ser destruída pela parousia

do Cristo, com sua epiphaneia, ou seja, com seu esplendor (2Ts 2,8)31 .

30. Para a teologia cristã, o mal está sempre a serviço do reino de Deus, mesmo selhe opondo. Afirmar isso, porém, não elimina o seu mistério, antes, o agrava. Deusmesmo permite o mal, dentro do quadro da oikonomia da salvação. O mal que,ontologicamente, é uma privação do bem, deve, no entanto, poder atuar comoforça nulificante na criação e na história. Tal força nulificante atinge em cheio oCristo e o faz aparecer como o Crucificado. É verdade que, enquanto o Ressuscita-do, ele se declara vitorioso sobre este poder nulificante. Desde a vitória da Cruz, oInimigo se tornou servidor. No entanto, mesmo no discurso ou na narraçãoescatológica, persiste a presença do mal como o opus alienum de Deus, como a sua“mão esquerda” (Barth), da qual Ele é também Senhor. Permanece enigmática acólera de Deus, a ira divina, que atua, como expressão de sua justiça, na condena-ção eterna “dos que se perdem”, mesmo que recordemos, como insistia Agostinho,que o justo juízo de Deus não pode nunca não ser misericordioso, mesmo quandocondena “os que se perdem” à morte eterna. Cf. BARTH, Karl. Dio e il Niente.Brescia: Morcelliana, 2000, passim. Cf também: RICOEUR, Paul. Il male – umasfida alla filosofia e alla teologia. Brescia: Morcelliana, 1993, p. 41-46.

31. Da perspectiva filosófica, toda esta “grande narração” escatológica, que soa aosouvidos hodiernos como uma “mitologia” do futuro, apresenta uma decisiva rele-vância: toca na questão da presença e atuação do mal na história. Tal narraçãoescatológica parece pré-dizer o que o poeta Hölderlin, nas vicissitudes de nossaépoca vespertina, cantou: “Onde mora o perigo / é lá que também cresce / o quesalva” (Apud HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2001,p. 31). Salvar não é apenas retirar, a tempo, da destruição. Salvar é fazer e deixarchegar algo à sua essência, permitindo-o aparecer em seu próprio brilho e esplen-dor. O que ameaça e o que salva andam juntos. Somente uma atenção vigorosa edesperta pode colher, no que ameaça, a generosidade do que salva. O mal não éposto pelo homem. O homem já sempre encontrou-se com o mistério do mal nasua experiência fáctica da vida. E encontra-o como uma certa fúria de desrealiza-ção, atuando contrariamente a tudo quanto se empenha por realizar-se. Esta fúriapõe o mal, enquanto vigor nulificante, que vai atuando em toda a história, deponta a ponta, do começo ao fim. Este vigor nulificante não é nenhum algo, não énada de positivamente real, mas atua em toda a realidade, como princípio de des-

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A obscuridade desta figura, o Anticristo, permanece um desafioao cristão, no sentido, de que ele deve permanecer alerta e atento,para não se deixar seduzir pelo divino e pelo crístico apenas aparente.A primeira epístola de João, em outras palavras, faz o mesmo apelo:

É chegada a última hora (eschate hora estin), ouvistes anunciar quevem um anticristo; pois, agora, muitos anticristos estão aí (1Jo2,18)... Eis o anticristo: o que nega o Pai e o Filho” (1Jo 2,22b)...“Todo o espírito que confessa Jesus Cristo vindo na carne é deDeus; e todo espírito que divide Jesus não é de Deus; é o espíritodo anticristo, do qual ouvistes dizer que virá, e agora já está nomundo (1Jo 4,2b-3)... Porque muitos sedutores espalharam-se nomundo: eles não professam a fé na vinda de Jesus Cristo na carne.Eis o sedutor, o anticristo (2Jo 7).

Aqui, o anticristo se identifica com as heresias gnósticas, presen-tes no interior da própria Igreja, que negavam o mistério da encarnação,separando o celeste e o terrestre, o divino e o humano.

realização (cf. Heidegger, Martin. Sobre o Humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Bra-sileiro, 1967, p. 91-95). Entificar o mal e hipostatizá-lo é sempre uma tentativa euma tentação da religião. Ela ressalta o poder anônimo do mal como algo de pesso-al, sim, como até mesmo sendo um ser, uma pessoa, só que anônima, despersona-lizada e despersonalizante. O homem experimenta o mal como algo que lhe advéme sobre-vém. Não, simplesmente, como algo que nasce de si mesmo, embora reco-nheça que também em si mesmo o mal pode se instalar. Por isso, a religião nãoatribui o mal somente ao homem, mas o põe numa dimensão anterior e mesmosuperior: na dimensão do espírito. É que só o espiritual pode ser mal. Onde não háespírito, isto é, liberdade e pessoalidade, não há também, propriamente, o mal. Noentanto, “hipostatizar sem mais o ‘mal’ ou mesmo considerar como já demonstrado odiabo seria uma simplificação barata. Mas seria igualmente um achatamento despre-zar a peculiar autonomia e realidade revelada pelo anônimo na experiência do crime,como se fosse uma impressão meramente subjetiva ou uma auto-ilusão. É verdade quena dimensão da pura experiência “o mal” não é “objetivo”, mas nem por isso é menosreal. Para esta realidade não temos nenhum conceito, sim, nem mesmo um nome.Caso nós, de modo hesitante, o chamemos de real inefável, então o compreendemoscomo o reflexo negativo da dimensão de Deus, na medida em que esta é a dimensãoda salvação (Heilsdimension) que remete para a experiência da des-graça (Unheil)”(ROMBACH, Heinrich. A fé em Deus e o pensar científico. In: Scintilla – Revistade Filosofia e Mística Medieval, n. 2, 2004, p. 156.

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Agostinho, na Cidade de Deus32 , após passar em revista diversasinterpretações acerca da figura do Anticristo, confessa, com franque-za, não compreender o que quer dizer tudo isso. Ressalta que todas asinterpretações permanecem apenas “conjecturas humanas”. Uma coi-sa, no entanto, diz ele, “é indubitável e certa: São Paulo diz que Cris-to não virá julgar os vivos e os mortos, se antes o anticristo, seu inimi-go, não vier seduzir os mortos na alma, apesar de essa sedução perten-cer ao oculto juízo de Deus”.

Assim, a figura do Anticristo permanece um princípio heurístico,que será retomado diversas vezes, em circunstâncias diferentes, cada vezque será exercida uma hermenêutica da história no cristianismo. A partirdo ano mil, na era românica, sobretudo entre os séculos XI e XIII, afigura do anticristo acompanhará continuamente, como um sinal de ad-vertência, a vida dos cristãos33 . Ela aparecerá na poesia de Bernardo deCluny34 , na pregação de São Bernardo de Claraval35 , na música sacra enos escritos místicos de Santa Hildegarda de Bingen36 etc.

32. AGOSTINHO, Idem– Livro XX, cap. XIX, p. 454-457.

33. As citações seguintes são dadas, novamente, apud: DE LUBAC, Henri. OperaOmnia (Secção V, Vol. 19) – Esegesi Medievale – Volume Terzo. Milano: Jaca Book,1996, p. 710-713.

34. BERNARDO DE CLUNY (Século XI): “hora novíssima, tempora pessimasunt, vigilemus... / Quid modo detinet? En ferus imminet Antichristus... / Hocprope praedicat esse vel indicat Antichristum – É a última hora, péssimos são ostempos, vigiemos... / O que agora a retém? Eis, é iminente o cruel Anticristo... /Isto prega ou indica que o Anticristo está próximo”.

35. BERNARDO DE CLARAVAL (1090-1153): “Angelus Satanae jam mysteriainiquitatis operatur – O mensageiro de Satanás já opera os mistérios da iniqüidade”(Parabola 2)... “Superest jam ut reveletur homo peccati, filius perditionis – Agora sófalta que seja revelado o homem do pecado, o filho da perdição” (no comentário aosalmo Qui habitat)... “En tempora ista plane faeda... Intestina et insanabilis est plagaEcclesiae... Superest ut jam de medio fiat daemonium meridianum... Ipse enim estAntichristus – Eis estes tempos propriamente vergonhosos... Interna e insanável é achaga da Igreja... Só falta agora que surja o demônio do meio-dia... Ele é, de fato,o Anticristo).

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A partir de sua própria autocompreensão, a Europa cristã se tor-na, assim, o lugar do ocaso, do ocidente, como atesta Hugo de São

Vítor (c. 1096-1141) :Parece que assim tenha sido disposto pela providência divina, queas coisas que aconteciam no princípio do mundo, e depois no fim,com o passar do tempo, o conjunto destas coisas descesse até noOcidente, a fim de que a partir deste fato reconheçamos que seaproxima o fim do tempo, porque o curso das coisas já toca o fimdo mundo... O primeiro homo estava no Oriente... Assim, depoisdo dilúvio, o princípio dos reinos e a capital do mundo esteve naAssíria e entre os Caldeus e os Medos, nas partes do Oriente. De-pois passou aos Gregos. Enfim, perto do fim do tempo, para oOcidente, aos Romanos, os quais habitam quase à extremidade domundo. Depois, o conjunto declina37 .

Tal experiência vespertina, ocidental, da temporalidade-histori-cidade, ecoa nas vozes medievais através dos comentários ao Apoca-lipse de João38 . É Agostinho quem, mais uma vez, abre a possibilidade

36. HILDEGARDA DE BINGEN (1098-1179): “Filius perditionis in brevissimotempore veniet, cum jam dies abscedit, sole in occasum latente, vid. cum novissimumtempus jam cadit et mundus tenorem suum deserit – o filho da perdição virá embrevíssimo tempo, quando o dia já desaparece e o sol se esconde no ocaso, ou seja,quando acaba o último tempo e o mundo abandona o seu modo constante de ser”(Scivias, livro 3, visão 11).

37. De arca Noe morali, l. 4, c. 9.

38. O livro do Apocalipse de João encontra-se no cânon bíblico muratoriano (Sé-culo II) e foi legitimado pelo papa Inocêncio I (que morre cerca de 417), pelosconcílios africanos de Cartago, pelos decretos damasianos/gelasianos, pela tradiçãopatrística latina (sobretudo Agostinho e Jerônimo) e pelo IV concílio de Toledo,presidido por Isidoro de Sevilha (século VI). Já os padres gregos, em grande parte,haviam rejeitado o texto como sagrado e tinham também duvidado de sua atribui-ção ao Apóstolo João. O mais tenaz contestador da canonicidade e autenticidadefoi Eusébio de Cesaréia (263-339). Inocêncio I aceitou somente este Apocalipse (ode João), rejeitando, no entanto, como apócrifos, os Apocalipses de Paulo, de Esdrase de Tomé.

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de uma hermenêutica, que ressalta o sensus spiritualis do texto39 . NoDe Doctrina Christiana ele expõe os princípios de uma tal hermenêu-tica, os quais, ao menos em parte, recorrem às sete regras que odonatista Ticônio elaborara para a interpretação das Escrituras40 . Afir-ma-se, cada vez mais, uma exegese alegórica do Apocalipse de João.As imagens e os números apocalípticos são figuras que se há de inter-

39. A canonicidade do Apocalipse de João só se tornou viável, à medida que seimpôs uma interpretação espiritual do texto. De fato, uma interpretação literal,que sugere, por exemplo, o milenarismo (cf. Ap, 20), já foi rejeitada pela Igreja,desde a condenação dos montanistas, no século III. A interpretação espiritual daEscritura começa já no judaísmo com o judeu helenista Filo, aparece nas interpre-tações escriturísticas de Paulo, se afirma nos Padres alexandrinos, e se corrobora emIrineu e Orígenes.

40. Agostinho se apropria com cautela das regras de Ticônio: é preciso recusaraquelas passagens em que ele fala como herético donatista; há que se rejeitar tam-bém a pretensão de que estas regras possam explicar todos os mistérios das Escritu-ras; carece de não pretender delas mais do que elas possam dar. Dito isso, há que sereconhecer, no entanto, que elas são muito úteis. São como que sete chaves quepodem abrir o sentido dos textos escriturísticos. Passamos em revista, brevemente,estas regras: 1) Do Senhor e do seu corpo – a Escritura fala sempre do Senhor, quercomo Cabeça (Cristo), quer como seu Corpo místico (a Igreja); 2) “Do duploCorpo do Senhor”, que Agostinho prefere chamar de “Do Corpo do Senhor ver-dadeiro e misto, ou verdadeiro e simulado” – a Escritura fala da Igreja militantecomo de um corpo misto: de justos e injustos, enquanto que a separação dos mes-mos só se dará no juízo final; 3) “Das promessas e da Lei”, que Agostinho preferechamar de “Do espírito e da letra” ou “Da graça e do preceito” – é a questão dajustificação pela graça ou pelas obras, que Agostinho considerava uma grande questãoe que não teria sido resolvida nem pelos donatistas, nem pelos pelagianos; 4) “Daespécie e do gênero” – A Escritura costuma falar do gênero contraído na espécie,ou, se quisermos, falar do todo, referindo-se à parte: assim, quando se fala deSalomão, se intenciona falar de Cristo e da Igreja etc.; 5) “Dos tempos” – a Escri-tura recorre à sinedoque e a números simbólicos, que precisam ser lidos como tais;6) “A recapitulação” – às vezes, a narração segue como se os eventos se desenrolas-sem sucessiva e linearmente, enquanto, a uma observação mais atenta, ela segueretomando ou recapitulando narrações anteriores, como que numa espiral; 7) “Dodiabo e do seu corpo” – A Escritura ora fala do diabo, enquanto cabeça (Lúcifer),ora do diabo enquanto corpo, isto é, os anjos maus e os homens ímpios.

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pretar tipologicamente, como referências a situações típicas da expe-riência cristã da vida.

Na linha de Vittorino de Petau (morto mártir em 304), que foi oprimeiro comentador do Apocalipse de João, e de São Jerônimo, aexegese medieval também ressaltou a contínua “recapitulação” pre-sente naquele livro. Segundo esta exegese, as sucessivas revelações doApocalipse – expressas nos septenários (sete cartas, sete selos, sete trom-betas, sete sinais, sete taças, sete visões do céu...) – deviam se enten-der como sucessivas recapitulações, em diversas formas, da mesmarevelação do mistério do Cristo.

Na perspectiva aberta pela leitura do Apocalipse, toda a históriado gênero humano se torna, fundamentalmente, história da salvação,que se contrai na história da Igreja. E o tempo da Igreja, que começacom o Pentecostes, não é outra coisa que uma longa espera, em que aIgreja, qual esposa abandonada, e o Espírito, clamam: “vem, SenhorJesus!” (cf. Ap 22,17.20). A essa luz, a história da salvação se torna,primordialmente, uma história de amor entre Cristo e a Igreja. Daíficou fácil para os medievais acostar a leitura espiritual do Apocalipseà leitura espiritual do Cântico dos Cânticos. A leitura monástica elitúrgica do Apocalipse de João se dará nesta tonalidade fundamen-tal, sobretudo no século XII41 . Assim, Hildegarda de Bingen (1098-1179), na sua obra prima, Scivias, une o tema do Apocalipse ao doCântico dos Cânticos: a história se torna, então, não mais somente asucessão dos tempos que caminha para um fim glorioso, mas muitomais os percalços, as peripécias e as vicissitudes do encontro, dodesencontro e do reencontro apaixonados entre o Deus da aliança,que é o Deus de amor, e o Homem da aliança, a humanidade, sua

41. Comentadores como Ruperto de Deutz (morto em 1131) e Ricardo de SãoVítor (morto em 1173) são exemplos de tal exegese monástica do Apocalipse deJoão.

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namorada, noiva e esposa. O mysterium tremendum da história es-conde, no seu bojo, o mysterium fascinans de um Deus que busca ahumanidade como a sua amada e que aspira unir-se a ela, em amor,ternura e fidelidade. O mistério da história só se deixa vislumbrar,portanto, no segredo do Amor, que sela a aliança eterna com o huma-no e com toda a criação, no evento da encarnação. Este amor é arealidade última, que lança um raio de luz tênue e jovial sobre e atra-vés das escuras nuvens dos tempos da história humana.

Em meio a um longo outono e inverno da história, no século XII,o medieval pressente o sabor da primavera. A aterrorizante imagemdo Juiz que está às portas e que vem para fazer a separação dos justose injustos deixa entrever, no seu íntimo, a revigoradora imagem doEsposo que diz:

Levanta-te, minha companheira, / bela minha, vem embora. / Poiseis que o inverno passa, / a chuva cessa e se vai. / Já se vêem floresna terra; / vem o tempo da canção; / já se ouve em nossa terra / ocanto da pomba-rola (Ct 2,11s).

Atingido por este chamado, o medievo dos séculos XII e XIII étomado de uma ebriedade, que o faz sonhar com novos tempos depaz. As cidades renascem e, com o seu renascimento, fluem novasrelações econômicas e políticas, o feudalismo cede lugar à atmosferadas comunas e das cidades-repúblicas; os cristãos, até então ameaça-dos pelas pressões dos sarracenos, retomam a esperança da conquistada Jerusalém terrena, por meio das cruzadas. As escolas monásticas eepiscopais se transformam em universidades, que vêem florescer asartes liberais, a filosofia aristotélica e a teologia escolástica. A arte ro-mânica, sóbria, grave e terrena, se transforma na arte gótica, ébria deluz, aguda e elevada aos céus. Um novo pentecostes parece soprar naIgreja. É nesta atmosfera que se dá a reforma monástica do séculoXII, em que sobressaem os cistercienses, e é neste clima que emergemos evangelismos do século XIII, os quais provocam uma renovaçãodo laicato e o surgimento das ordens mendicantes. Neste mesmoímpeto, movimentos pauperistas se insurgem e postulam reformaseclesiais e sociais, que anteciparão as revoluções modernas. Aliás, um

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ar de modernidade já se faz presente por toda parte, em meio aovelho mundo da tradição.

No século XII, tudo isso converge para uma figura peculiar edecisiva na hermenêutica cristã da temporalidade-historicidade: Joa-

quim de Fiore (c. 1132-1202). No profetismo e na mística apocalípticadeste monge calabrês há algo de tosco, de áspero, de solitário, dequase selvagem. Ele mesmo qualificava o seu falar de “rusticus etimpolitus”42 . No entanto, tinha se tornado um visionário: ele queperegrinara à Jerusalém terrestre, acreditava ver, ao menos em parte,a Jerusalém do alto, que está iminente. Mais do que o medo, elequeria suscitar a esperança. Mais do que a uma reforma moral daIgreja, ele aspirava a uma regeneração no Espírito, a um novoPentescostes, uma verdadeira e própria renovação carismática de todaa Igreja, em que todo o peso e opacidade maciça da instituição desselugar à leveza e transparência do carisma43 . A sua mensagem proféti-ca, no entanto, ele queria anunciar corroborado por uma exegese ci-entífica! Assim, Joaquim abandona o terreno tradicional dos quatrosentidos da Escritura (literal, alegórico, moral e anagógico) e desco-bre o paisagem de um novo terreno: o da concordia44 . O método da

42. No prólogo do Comentário ao Apocalipse.

43. Em vida, Joaquim de Fiore contou com o apoio dos papas. Tendo abandonadoa Ordem Cisterciense, ele fundou uma congregação, que contou com a aprovaçãopontifícia: Celestino III a aprovou. Clemente III aprovou os seus escritos e reco-mendou que continuasse a trabalhar em sua obra exegética. Somente Inocêncio IIIo tornou questionável perante a cúria romana. Joaquim, no entanto, reafirmou suafidelidade e submissão ao pontífice e à Igreja romana. É no tempo de InocêncioIII, cujo pontificado começa em 1198, que começam as contestações curiais aalgumas opiniões de sua teologia trinitária. Tais opiniões foram condenadas noConcílio Lateranense IV, quando Joaquim já estava morto (morreu em 1202).

44. Joaquim escreveu, nos anos de 1182 e 1183, o Liber concordiae Novi et VeterisTestamenti (Livro da concordância entre o Novo e o Velho Testamento), bem como,calcado no mesmo método, a Expositio in Apocalipsim – Comentário ao Apocalipse.

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concordia pretende-se calcar sobre o sentido literal do texto da Escri-tura. Quer ser uma interpretação “científica”, isto é, exata, sistemáti-ca, quase que se poderia dizer “matemática”, feita “more geometrico”dos textos bíblicos45 . Tal método exegético, no entanto, parte de umaposição e concepção prévia: assim como o Novo Testamento está la-tente no Antigo e o Antigo está patente no Novo, tal como acontecena hermenêutica de Paulo e de Agostinho, assim também os eventosda história da Igreja estão latentes nos eventos da história de Cristo. Ahistória da Cabeça deve se repetir no seu Corpo. Assim, o livro doApocalipse se torna a exposição em linguagem cifrada da história daIgreja. Joaquim procura, assim, desentranhar o nexo de uma concor-dância entre os três tempos: o tempo do Antigo Testamento, o tempodo Novo Testamento e o tempo da Igreja.

Um novo princípio se torna fecundo nesta hermenêutica da his-tória: Joaquim vê nos três tempos mencionados, um reflexo, umaimagem e uma semelhança da dinâmica da Trindade. A visão cristo-cêntrica da história, presente em toda a tradição, se desloca para avisão trinitária. A história humana não é mais que a teofania da Trin-dade. E a culminância desta revelação trinitária se dá na era do Espí-rito. É na era do Espírito que todo o movimento da história se consu-ma. Só no tempo do Espírito é que Deus pode ser tudo em todas ascoisas46 . Esta era do Espírito, Joaquim pensa entrever já como imi-

45. DE LUBAC (op. cit. p. 585-751) procura mostrar que a exegese de Joaquim éum abandono do “sensus spiritualis” e o surgimento da pretensão de uma exegeseliteral, exata, “científica”. Para Joaquim, a exegese tinha se tornado uma questão deconjecturas. O que tal método induziu de fantástico e visionário não vinha, pois,do recurso ao “sensus spiritualis’, vale dizer, ao simbolismo alegórico e à interpreta-ção moral e mística. A fantasia das interpretações de Joaquim vinham, paradoxal-mente, do racionalismo de seu método, que se pretendia científico.

46. Cornélio Fabro ressalta, neste sentido, o vínculo entre esta concepção da histó-ria de Joaquim de Fiore e a concepção da história no idealismo transcendental de

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nente ao tempo da Igreja. Neste sentido, a Igreja deverá passar poruma transformação que a levará à perfeita espiritualização: deverásurgir uma Igreja de todo evangélica, pobre, carismática. Joaquim,no entanto, não deixa claro, até que ponto haverá lugar, nesta Igrejado Espírito, para a instituição em geral e o papado em particular. Éfato, porém, que ele prevê esta era do Espírito como realidade intra-histórica, a se concretizar ainda no tempo que antecede a parousía.Assim, a profecia de Joaquim roça o milenarismo, que, outrora, con-

Schelling e Hegel. Hegel, como transparece dos seus escritos da juventude, haure ométodo dialético das leituras teológicas e místico-teosóficas, sobretudo a leitura deJakob Böhme, cujas raízes medievais são notórias. Já naqueles escritos da juventu-de, Hegel mostra um preferência pelos escritos de João: enquanto Pedro represen-tava o Antigo Testamento (o reino do Pai) e Paulo, em antítese, o Novo Testamento(o reino do Filho), João Evangelista representava a síntese: o reino do Espírito. Aconcepção cristã segundo a qual a história não é outra coisa do que o desenvolvi-mento do reino de Deus, transforma-se na concepção idealista segundo a qual ahistória não é que o desenvolvimento do reino do Espírito. A história é, na verda-de, fenomenologia do Espírito: o processo pelo qual, deixando e fazendo aparecerdiferentes configurações provisórias e parciais de si mesmo, o Espírito vai, de grauem grau, chegando ao conhecimento (conceito) de si mesmo. Assim, o Reino doPai é a Idéia ainda indeterminada, o Reino do Filho é a Idéia estranhada na finitudeda criação; o Reino do Espírito é a Idéia que retorna a si mesma. Hegel não citaexpressamente Joaquim de Fiore. Schelling, no entanto, sim. Na Philosophie derOffenbarung (Filosofia da Revelação), Schelling toma o tríptico Pedro-Paulo-Joãocomo imagem da Trindade na história. O Pai corresponde ao reino do passado; oFilho ao reino do presente; o Espírito ao reino do futuro. Assim como o AntigoTestamento foi dominado pelas figuras de Moisés-Elias-João Batista, assim tam-bém o Novo Testamento é dominado pelas figuras de Pedro-Paulo-João Evangelista.Moisés e Pedro são figuras da Lei e da estabilidade da tradição, Elias e Paulo,figuras da liberdade e do dinamismo do presente, João Batista e João Evangelistasão figuras da consumação. Schelling remete a Angelus Silesius: “Der Vater warzuvor, der Sohn ist noch zur Zeit. Der Geist wird endlich seyn am Tag derHerrlichkeit – O Pai era antes de tudo, o Filho é ainda voltado para o tempo. OEspírito será, finalmente, no Dia da Glória” (Cf. FABRO, Cornélio. La Storiografianel Pensiero Cristiano, in: PADOVANI, Umberto Antonio; MOSCHETTI, AndreaMario (org.). Grande Antologia Filosofica, Vol. V: Il Pensiero Cristiano. Milano:Marzorati, 1954, p. 359-360).

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tara com insignes representantes, como Irineu, Justino e Lactâncio.

Dentro desta atmosfera emerge, no século XIII, a figura de Fran-

cisco de Assis. Para os franciscanos das primeiras gerações, o emergirdesta figura histórica caracterizou-se como um verdadeiro evento, derepercussões universais. Francisco fora identificado, por muitos, coma figura de João Batista47 (João era o seu nome de Batismo) e com afigura de Elias, o profeta ardente. Assim, no Prólogo da sua Legenda

Maior, São Boaventura saúda o aparecimento de Francisco com tonsescatológicos48 :

Nestes últimos dias, a graça de Deus nosso Salvador apareceu emseu servo, Francisco, para todos os verdadeiros humildes e amigosda santa Pobreza... Qual estrela d’alva a brilhar entre as nuvens,guiou para a luz, com o clarão de sua vida e doutrina, os quejaziam nas trevas e à sombra da morte. Como o arco-íris refulgepor entre as nuvens da glória, apresentando em si o sinal da alian-ça do Senhor, anunciou aos homens a paz e a salvação. Sendoigualmente ele anjo de verdadeira paz, foi destinado por Deus,segundo também à imagem e semelhança do Precursor, a prepararno deserto o caminho da mais alta Pobreza e a pregar a penitência,tanto pelo exemplo como pela palavra...49

Boaventura vê Francisco dotado pelo Céu de um “ministérioangélico”. Repleto do espírito da profecia, ele foi, como Elias, umhomem arrebatado pelo “carro de fogo” seráfico. Francisco apareceuna história, vindo “no espírito e no poder de Elias”. Nele, pode-seentrever, assim, aquele “anjo que sobe do nascente, carregando o selodo Deus vivo”, aquele anjo que João vê, no Apocalipse, abrir o “sexto

47. Cf. CELANO, T. de. Segunda Vida (de São Francisco), Primeiro Livro, capítu-lo I – cf. FASSINI, Dorvalino F. (org.). Fontes Franciscanas. Santo André-SP: Ed.“O Mensageiro de Santo Antônio”, 2004, p. 289-290.

48. Dante Alighieri coloca, lado a lado, no Paraíso da Divina Comédia, Joaquim deFiore e São Boaventura.

49. FASSINI, Dorvalino F. (org.). Fontes Franciscanas. p. 439-440.

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selo” (Cf. Ap 6,12; 7,2). Boaventura faz uma síntese entre a herme-nêutica de Agostinho e a de Joaquim de Fiore, nas suas conferênciasparisienses a respeito dos seis dias da criação (Collationes in

Hexaemeron). Uma teoria dos tempos ou eras do mundo e da Igrejaaparece sobretudo nas Conferências XV e XVI. O tempo da Igrejatambém segue seis idades. A sexta idade é a época do anjo que abre osexto selo. Este mesmo anjo que ele identificara, na Legenda Maior,com Francisco de Assis.

Uma outra interpretação da história peculiar do espírito francis-cano aparece no opúsculo intitulado Sacrum Commercium Sancti

Francisci cum Domina Paupertate (Sagrado Comércio de São Francis-co com a Senhora Pobreza). Ali, a Pobreza se mostra como uma reve-lação que o homem perdera no paraíso, e que ele esquecera ao longode toda a história do Antigo Testamento. Tal revelação só se mostrounovamente em Cristo Jesus. Os Apóstolos e os Mártires ainda conser-varam viva a memória desta revelação. Mas, depois de algum tempo,fez-se uma paz, uma paz que era mais grave do que a guerra. Trata-sedaquela paz em que os cristãos mesmos esquecem-se da Pobreza. Fran-cisco aparece, então, na história, como aquele que re-desperta os cris-tãos para a singularidade deste mistério, que se mostra cheio de ter-nura na Encarnação e na Cruz de Jesus Cristo.

Pedro de João Olivi, por sua vez, na esteira da hermenêutica deJoaquim de Fiori, da tradição agostiniano-boaventuriana, e da espiri-tualidade dos frades zelantes das primeiras gerações franciscanas, co-menta o Apocalipse de modo a interpretar os sinais dos tempos emque ele vivia. Assim, no seu Comentário ao Apocalipse, o Anjo dosexto selo é, também para ele, como era para Boaventura, Franciscode Assis:

Vi depois um outro anjo...: Este anjo é Francisco, renovador e máxi-mo seguidor (depois de Cristo e sua Mãe) da vida e da regra evan-gélica que no sexto e no sétimo estado deve ser propagada eengrandecida. Que subia do oriente: isto é, daquela vida que Cristo

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nos trouxe, ele, sol do mundo, no seu nascimento, isto é, no seuprimeiro advento... Sobe do oriente, isto é, ao início do dia solarda sexta e da sétima abertura e do terceiro estado geral do mun-do... Ouvi de um homem espiritual, fidedigno, muito próximo afrei Leão, confessor e companheiro do bem-aventurado Francisco,algo de consoante a esta escritura que, no entanto, não afirmo,nem sei, nem creio que deva ser afirmado; a saber, que ele, sejaatravés de palavras de frei Leão, seja através de uma revelação quelhe foi feita, tinha sabido que Francisco, naquela pressão da tenta-ção babilônica, na qual o seu estado e a sua Regra, como Cristo,serão crucificados, ressuscitará glorioso, de tal modo que, comona vida e nos estigmas da cruz ele foi singularmente assemelhado aCristo, assim o seja também na ressurreição... E tinha o selo doDeus vivo: seja nos estigmas impressos a ele por Cristo, seja emtoda a vida interior e exterior, no estado da profissão, na concórdiado tempo e do ofício singularmente assemelhado a Cristo...50

Francisco é o mensageiro de Cristo, que foi assinalado pelas marcasda Cruz, trazendo no seu corpo o selo do Deus vivo. Ele é alter Christus,isto é, discípulo que, no seguimento e na imitação de Cristo, asseme-lhou-se ao máximo ao Mestre Crucificado. Sua semelhança também apa-rece no fato de ter tido doze seguidores ao princípio. Ao analisar o núme-ro dos eleitos, que foram assinalados entre as tribos de Israel (cento equarenta e quatro mil), Olivi segue comentando:

Assim, o número é indicado com um número que deriva da mul-tiplicação de doze mil por doze. Primeiro: para sugerir que a elei-ção daqueles que devem ser assinalados é proporcionada aos dozeapóstolos e às suas igrejas, aos doze patriarcas e às suas tribos. Se-gundo Joaquim, como a Sinagoga foi propagada pelos doze patri-arcas e a Igreja dos gentios pelos doze apóstolos, assim a Igrejafinal dos remanescentes judeus e pagãos deve ser propagada pordoze homens evangélicos. Também Francisco teve doze filhos ecompanheiros, com os quais e nos quais fundou e iniciou a ordemevangélica. Assim também São Bento, ao início, instituiu dozeabades dos doze mosteiros da sua ordem. Segundo: como os doze

50. OLIVI, Pietro di Giovanni. Scritti Scelti. Roma: Città Nuova, 1989, p. 123s.

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pais daqueles que foram assinalados são como os doze ramos doúnico tronco de Cristo, assim, proporcionalmente, cada um des-tes doze ramos tem doze raminhos, que deles partem; isso signifi-ca que, como o número dos pais é de maneira côngrua proporcio-nal ao seu tronco, assim também o número dos assinalados é pro-porcional a cada um destes. Terceiro: para indicar a redondeza daperfeição apostólica presente no colégio dos assinalados. A dúzia,de fato, é o número apostólico e, segundo a aritmética, é númeroredondo... A multiplicação da dúzia por uma dúzia indica a re-dondeza mais copiosa e a quadratura mais sólida. Ademais, o nú-mero que deriva tem em si a perfeição do quaternário e domilenário. No quaternário está indicada a perfeita quadratura dasvirtudes cardeais na unidade da fé... No milenário está indicada asingular conjunção e a final consumação dos três preditos. Omilenário é, de fato, para nós, o extremo limite numérico paraalém do qual não contamos nada se não com uma sua repetição51 .

Também ao comentar o capítulo X do Apocalipse, Pedro de JoãoOlivi identifica no anjo que tem na mão um pequeno livro aberto aFrancisco de Assis:

Alguns dizem que este anjo deve ser Cristo, porque só a ele competeabrir o livro... Não negamos que seja ele o principal revelador dolivro, em particular enquanto é Deus e ilumina interiormente asmentes; mas, todavia, dispôs sob si alguns espíritos e homensangélicos, para iluminar, como seus ministros, os seres inferiores;por isso, os sete homens que soam a trombeta devem ser interpre-tados como os homens angélicos e os doutores e também como osespíritos angélicos que os regem, ainda que seja Cristo principal-mente quem ensina com o som da sua trombeta; do mesmo mododevemos entender a propósito do anjo com a face solar... É precisosaber que o nosso santíssimo pai Francisco é, depois de Cristo esob Cristo, o primeiro, principal fundador, iniciador, modelo exem-plar do sexto estado e da sua regra evangélica; assim, justamenteele, depois de Cristo, é designado por primeiro com este anjo... Oseu rosto era como o sol porque na singular contemplação de Cristo

51. OLIVI, Pietro di Giovanni. Scritti Scelti. Roma: Città Nuova, 1989, p. 117s.

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e da sua vida evangélica não foi como a lua que desfalece, ou comouma pequena estrela ou como a luz noturna, mas como o sol,inflamado, iluminado pela luz do dia, e, portanto, iluminante einflamante... Teve nas mãos, isto é, em plena obra, possesso, po-der, o livro do Evangelho de Cristo aberto, como mostra a regraque observou e escreveu e o estado evangélico que instituiu...52

Olivi interpretou a Regra da Ordem dos Frades Menores à luz dahermenêutica escatológica possibilitada por Agostinho e Boaventura,por um lado, e por Joaquim de Fiore, por outro. Assim, no seu Co-mentário à Regra, ele escreve:

Os doze capítulos (da Regra) estão de acordo também com as seisidades deste mundo e aos seis tempos da Igreja. Como no primei-ro tempo a luz evangélica começou a ser difundida para sê-lo, de-pois, até o fim, assim também no primeiro capítulo da Regra. Comono segundo tempo os mártires rejeitam a vida da carne pela vidaeterna, assim, no segundo capítulo a vida secular é rejeitada poraquela regular. Como no terceiro tempo, sob Constantino, flores-ceu o culto eclesiástico, assim também no terceiro capítulo. Comono quarto tempo os anacoretas abandonam todos, assim no quar-to capítulo é totalmente abandonado o dinheiro, maldito peloapóstolo Pedro por causa de Simão Mago. Como no quinto tem-po surgem monges dedicados ao trabalho manual, assim no quin-to capítulo. No sexto tempo com Francisco entra a mendicânciade Cristo53 .

O livro da Regra franciscana assim, nos seis primeiros capítulosrecapitula e resume em si mesmo toda a história da Igreja. A vidaevangélica, descoberta por Francisco, subsume todos os aspectos prin-cipais das eras da história da Igreja e acrescenta algo de novo: a men-dicância. Nos seis capítulos restantes, Olivi vê as disposições a respei-to do governo da Igreja:

Nos últimos seis capítulos podes observar misticamente o governoda Igreja de Deus. Como no início a Igreja foi purificada dos seus

52. OLIVI, Pietro di Giovanni. Scritti Scelti. Roma: Città Nuova, 1989, p. 135s.

53. OLIVI, Pietro di Giovanni. Scritti Scelti. Roma: Città Nuova, 1989, p. 86.

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pecados pela paixão de Cristo e pela sua sacramental aplicação anós, acrescentada, porém, a satisfação penitencial dos mártires atéo tempo do papa Silvestre; e desde então na Igreja de Cristo foramcelebrados solenemente concílios gerais e depois provinciais, comprogressivo esclarecimento do sumo primado do pontífice roma-no e da sua sé apostólica; e depois começou a brilhar sempre maisa casta clausura dos enclausurados; e, por fim, à plena abertura dosexto selo, esperamos a conversão das nações infiéis e também dosjudeus, com o repetir-se de solenes martírios; e então as doze tri-bos de Israel serão assinaladas com o tau do anjo do sexto selo euma turba inumerável de nações será conduzida junto ao trono doCordeiro, que é, pois, a sua eclesiástica e apostólica sé: assim, or-denadamente, se sucederão os últimos capítulos da Regra, comopodes facilmente entender54 .

Pedro de João Olivi, no entanto, no seu Comentário ao Apoca-lipse, prevê tribulações e aflições para aqueles que seguem a regraevangélica de Francisco:

... É preciso saber que no momento da solene contestação e con-denação da vida evangélica e da Regra, que será feita no tempo doAnticristo místico e será mais amplamente consumada no tempodo Anticristo próprio, descerão espiritualmente Cristo, o seu ser-vo Francisco, o angélico grupo dos seus discípulos, contra todosos erros e as malícias do mundo, contra todo o exército dos demô-nios e dos homens malvados, constante, forte, impávido como oleão, seja para atacar seja para defender-se...55

Acontecerá, então, o tempo da inteligência plena das Escrituras:Ele será envolvido como por uma nuvem pela ciência das Escritu-ras... Ele terá a inteligência do livro das Escrituras não só para si,mas também com o pleno poder de transmiti-la aos outros e deensiná-la. De fato, nos primeiros cinco estados da Igreja não foiconcedido aos santos, por mais iluminados que fossem, de abriraqueles segredos deste livro que só no sexto e no sétimo estadohão de ser revelados mais abertamente, como nem mesmo nas

54. OLIVI, Pietro di Giovanni. Scritti Scelti. Roma: Città Nuova, 1989, p. 87.

55. OLIVI, Pietro di Giovanni. Scritti Scelti. Roma: Città Nuova, 1989, p. 137.

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cinco primeiras idades do Antigo Testamento foi concedido aosprofetas de abrir claramente os segredos de Cristo e do Novo Tes-tamento revelados e por revelar na sexta idade do mundo56 .

Assim, as idades do mundo se tornam idades da revelação domistério de Cristo e dos segredos do Reino de Deus. O franciscanis-mo dos séculos XIII e XIV leu o evento Francisco aos olhos destaperspectiva escatológica-apocalíptica. Nesta leitura e hermenêutica dahistória, Olivi e os espirituais (Ubertino de Casale, Ângelo Clareno)sonharam com a renovação da Igreja e com a evangelização de todo omundo, com o reino do Espírito e a era da paz, com o retorno aoEvangelho eterno, com a vitória sobre as tribulações e as aflições dahistória, mais precisamente, da história eclesiástica e da Ordem fran-ciscana, e, enfim, com o triunfo sobre o Anticristo. Eles desejaram“ter o Espírito do Senhor e seu santo modo de operar” e, assim, napaciência e na perseverança, ganhar as suas vidas para o reino eternode Deus.

56. OLIVI, Pietro di Giovanni. Scritti Scelti. Roma: Città Nuova, 1989, p. 137s.

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COMENTÁRIOSCOMENTÁRIOSCOMENTÁRIOSCOMENTÁRIOSCOMENTÁRIOS

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ACERCA DO LIVRE ARBÍTRIO

Fr. Hermógenes Harada

([email protected])

A seguir, tentemos tecer algumas considerações acerca do livre

arbítrio. Para isso usemos os textos de João Pedro Olivi, acima tradu-zidos. Os textos de Olivi só servem como pretexto, para amontoararrazoados fantasiosos que no fundo têm uma pequena expectativa,de algum modo, por mais provisória e imperfeita que a tentativa seja,de “cercar” a questão da compreensão medieval da liberdade.

O termo acerca de do título, diz junto de, na proximidade, nacercania de. Quem quer se aproximar assim, acerca de, não está den-tro, nem por dentro, nem vem a partir de dentro, mas está ou vem defora. De fora, se trazem muitas coisas que se não afinam com a coisaela mesma acerca da qual a gente gostaria de se aproximar. O livre

arbítrio, aqui no texto de Olivi, é tratado teologicamente. Tem, por-tanto, como o tom fundamental, a Fé cristã. No “positivismo” dafacticidade, cujo vigor é o sopro vital da Fé, aproximar-se já pode seruma abordagem errônea e errante. Talvez na coisa da Fé, ou se estádentro, de uma vez, de todo, para sempre, ou toda e qualquer aproxi-mação, sempre guarda a distância fatal que nenhuma aproximaçãoassíntota infinitesimal consegue percorrer. Aqui o termo infinitesimalcamufla um abismo.

O que significa então a tentativa e tentação de aproximação deum texto que nasceu e cresceu e se consumou da e na Fé e que usual-mente recebe a etiqueta de cristão, dentro e a partir de arrazoados,aqui pretensamente provenientes da Filosofia? Talvez o único sentidoque os seguintes arrazoados filosóficos podem ter é o de os arrazoados

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se espatifarem de encontro ao paredão irredutível da coisa ela mesmada Fé, e se esvairem na possível impossibilidade de um não saber,cujo conteúdo, se é que há ali um conteúdo, é apenas carência neces-sitada, quem sabe, de outro hálito.

Consideração I

Em resumo simplificado, o que diz Olivi no seu texto menciona-do seria mais ou menos o seguinte: O livre arbítrio pertence à parte

superior da nossa alma, e é do homem hábito essencial. Como hábito

essencial não é acidental e por isso não é separável da alma; alma e o

livre arbítrio não são duas coisas, mas é um ente só, é co-participação, co-

pertença essencial, e como tal domina como faculdade livre sobre toda a

alma. Assim, o livre arbítrio, dito numa “palavra” é vontade racional.

Enquanto racional implica substancialmente inteligência, memória e

vontade: é a liberdade do ânimo racional, a plena soltura do animal

racional.

Para nós, hodiernos, essa explicação de Olivi está enquadradanuma cerca fixada mais ou menos na seguinte padronização: O ho-mem é um dos entes criados por um ente supremo, chamado Deus, oCriador; o homem é um ente criado, todo típico entre outros entescriados, de diferentes tipos. O ente homem se caracteriza, na suatipicidade, como animal racional. Além do homem, há o animal (obruto) que se caracteriza como ente, cuja entidade é do tipo vivente

sensível. Outro tipo de criatura é o vegetal, cuja entidade é do tiposubstância viva. E por fim, no degrau o mais baixo dessa escala des-cendente da entidade do ente temos a coisa física, o corpo, cuja enti-dade é matéria. Na escala ascendente, se admitirmos “acima” do ho-mem entes criados, cuja entidade é do tipo invisível, digamos, espiri-tual, temos os espíritos ou anjos e o próprio Criador, Deus, o Espíritopor excelência, o mais perfeito de todos os entes, o Ente Supremo.

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Temos assim a tabela dos entes na classificação: corpo material; vege-

tal; animal; homem; anjo ou espírito; Deus.

O homem é um dos entes criados, todo típico entre todos osoutros entes criados, de diferentes tipos. Por quê? Porque na acimamencionada tabela de escalação dos entes, ele está no meio, partici-pando, para cima da entidade dos entes invisíveis espirituais (anjos,Deus) e para baixo dos entes visíveis materiais (animal, vegetal, cor-po-material). Assim, na sua parte superior a entidade do homem éespírito; na sua parte inferior a entidade do homem é matéria. O ho-mem na sua entidade é um ente que participa do espírito e do corpo,é “com-posto” de corpo e alma e espírito. Ou, dito de outro modo, ohomem, i.é, a alma na sua parte superior é espírito, na sua parte infe-rior é corpo, mas é unidade acorde.

Diante desse esquema, ficamos hodiernos des-confiados. Que hajahomem, animal, vegetal, corpo-físico-material pode ser admitido. Masdonde vêm os dados Criador, criação, criaturas, anjos, espíritos, EnteSupremo, Deus? E a “com-posição” do homem corpo-alma-espírito?Todos esses dados não empíricos, não visíveis, meta-físicos, são real-mente dados, ocorrências? Ou não se trata aqui de uma crença, deconjunto de “dados” subjetivos da mundividência cristã, e quiçá,medieval? E de imediato, como que em funcionando, nos“conscientizamos” que ao lermos os textos medievais, identificando-os como produtos de uma crença ou mundividência do passado, ope-ramos, na hodierna pré-compreensão da compreensão do que seja sere compreender dentro do esquema da Teoria do Conhecimento.

Teoria do conhecimento pode ser entendida como matéria disci-plinar do ensino escolar da Filosofia. Como tal é uma matéria orde-nada didaticamente ao lado de outras matérias como ontologia,metafísica I, Metafísica II, História da Filosofia etc. Mas pode tam-bém ser compreendida como “metafísica geral”, ou melhor, “ontologia”

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da “metafísica moderna da subjetividade. Aqui o homem se nomeiaSujeito contraposto ao mundo, que então se chama Objeto. Mas o deci-sivo na compreensão da Teoria do Conhecimento como “ontologia da

metafísica moderna da subjetividade” é não confundir o termo sujeito

com substância homem e o termo objeto com substância coisa, man-tendo na compreensão do que seja a subjetividade (sujeito, objeto)um resto da “substancialidade-coisa”. E isso, na acepção do termosubstância próprio da ontologia medieval já num nível de compreen-são bastante defasada e decadente, que não faz jus à limpidez e aorigor da especulação medieval p. ex. dos textos teológicos e místicosdos medievais. Se, porém, limparmos da compreensão do Sujeito,Objeto, Subjetividade e Objetividade o resquício dessa pré-compre-ensão coisal da ontologia da substância, nos livramos da perspectivaôntico-empírica na impostação da questão e percebemos que aqui,nos termos Sujeito, subjetivo, Objeto, objetivo, não se trata de termosônticos ou empíricos, mas sim de termos ontológicos, ou melhor, trans-

cendentais. Não se trata do problema do realismo e/ou idealismo, massim da ontologia da subjetividade ou da objetividade e se refere não aosentes intra-mundanos do tipo substância-coisa homem nem aos en-tes intramundanos do tipo substância-coisa, sem o característico da“humanidade” (vivente sensível, corpo vivente, corpo físico-material),mas à colocação do novo “fundamento” da totalidade do ente no seutodo, atingindo o que a antiga metafísica denominou de regiõestripartidas do ente, Deus, Homem e Universo, e o sentido universal doser que está na raiz de todas essas regiões.

Se assim nos “postamos” na situação própria da mudança epocaldo lugar ontológico da impostação da questão, possamos talvez des-confiar que a nossa colocação moderna nos faz ver a possibilidade deconsiderar a assim chamada “ontologia” da substância (a metafísicamedieval) como uma das modalidades concretas de impostação trans-cendental, i.é, “entendendo” todos os entes na sua totalidade, no pontode enraizamento e de salto do sentido da entidade de seus entes.

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Consideração II

Examinemos na perspectiva transcendental como que destacan-do alguns pontos das afirmações e dos argumentos de Olivi acerca dolivre arbítrio.

1. O livre arbítrio se chama faculdade livre e também hábito essen-

cial. É também chamado de potência e também de ato.

Todos esses termos, faculdade, hábito, potência, ato devem serentendidos essencialmente, i.é, como ser do homem, como sua nature-

za, i.é, como seu estado nascivo, como caracterizando o próprio dohomem. Dito com outras palavras, aqui devemos nos livrar da repre-sentação do homem como se ele fosse um algo, uma coisa em si,como este ou aquele “sujeito” “individual” que tem um algo chama-do faculdade, hábito, potência ou ato. É, pois, necessário suspender oefeito objetivante da “substancialização” do ser do homem como coi-

sa, como algo, e o deixar ser na sua dinâmica. Por isso faculdade não éaqui uma propriedade, uma qualidade, um acessório do homem, masessência. O hábito1 nesse sentido essencial não é uma qualidade ad-quirida ou inata acrescentada ao homem, mas sim o próprio homem.Próprio, entendido não como “substância-coisa”, mas como a dinâ-mica do ser, como presença, vigência, como potência, ato, como aforça, o poder do perfazer-se de si mesmo em sendo e se firmando em si.

Essa dinâmica é o sentido mais próprio do termo substância que nãoconota primeiramente um algo, um quê fixo em si, uma coisa, masantes o movimento e a dinâmica bem assentada a partir de si e em si,como uma vigência, vigor pleno da estância de si.

1. Por isso, para indicar essa compreensão des-substancializada dos termos comohábito, faculdade, potência, ato, poder-se-ia traduzir hábito (habere) como atinência(de tenere).

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2. O livre arbítrio, no que toca ao que diz respeito a ele ser faculdade

livre e ter domínio sobre toda a alma, é essencialmente vontade racional.

Encurtando essa “definição” podemos definir a essência do ho-mem como animal2 racional. Em si aqui não significa insistência naestática e fixação no algo-quê, mas sim a densidade da plenitude dadinâmica, da potência da auto-identidade (a se).

Livre significa que ela é movida a partir de e por si,3 e somente ela

não pode ser compelida, e somente ela tem domínio sobre outras forças, e

daí quando quero entendo, quando quero, ando, embora não tão perfei-

tamente como o seria no estado da inocência; e somente na vontade ra-

cional há o poder para os opostos seguindo a si, a saber, para o não querer

e para o querer no e para o mesmo instante; nas outras potencias, porém,

a não ser somente através dela, i.é, as outras potencias podem ser movidas

para os opostos somente por ela.

Mas como se atem, como se tem a vontade a si mesma em refe-rência ao racional, à razão?

3. Diz Olivi: Mas, a ordem natural da vontade para com o intelecto é

assim que pressupõe sempre em todo o seu ato o ato do intelecto, e isso de tal

modo que ela não pode querer a não ser o conhecido; por isso, o livre arbítrio,

em sendo ele essencialmente vontade, inclui nas suas operações a ordenação

para o intelecto, para o intelecto enquanto torna o ente presente, mas tam-

bém de quando em vez até mesmo enquanto confere e discerne e julga, cujos

2. Animal aqui não significa bruto, bicho, o vivente sensível, mas ânimo, vigência deser, coragem de ser ou melhor vontade, “ganas” de ser.

3. Poder-se-ia talvez recordar que os medievais caracterizavam o modo de ser deDeus como ens a se. E o modo de ser das criaturas como ens ab alio. Aqui navontade racional surge um modo de ser (movido a partir de si e por si), designado deliberdade do livre arbítrio que é “a imagem e semelhança de Deus” (Nenhuma criaturapode fazê-la declinar. Nem Deus a pode coagir enquanto ela permanece vontade. Dissotudo se torna manifesto que ela transcende todo o criado.)

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atos, também os particulares, a vontade domina, já que esses atos são feitos

livremente e porque depois da coleta e do juízo, a liberdade de consentir ou

não consentir permanece na vontade. E assim, a liberdade do arbítrio é,

quanto à sua raiz e consistência, de todo, a própria vontade. A sua operação

atual, porém, como foi dito, tem ordenação para o intelecto e de quando em

vez o inclui a modo concomitante e isto enquanto o ato é livre com delibera-

ção, animadversão e juízo da razão.

a) Razão aqui pouco tem a ver com razão do racionalismo, nadaa ver com razão na acepção padronizada usual das assim chamadastrês faculdades da alma: vontade, razão e sentimento. Mas tem muitoa ver com a definição grega do homem como tò zwon lógon échon: ovivente, ou melhor, o ânimo atinente ao logos.

Na concepção medieval da essência do homem como animal

rationale, temos os termos ratio, intellectus, spiritus, mens.4 Esses ter-mos indicam o mesmo em diferentes nuances, indicam a intensidadede ser. Como no caso dos termos acima mencionados faculdade, há-

bito, potência, ato dizem a essência, o ser do homem, o seu estado nascivo

essencial.

O homem no seu ser é razão, intelecto, espírito, mente. Não éque o homem tem razão, intelecto, espírito, mente. Ele é razão, inte-lecto, espírito, mente. A densidade de ser que constitui o homem, onível em que o ente-homem está na escalação da densidade de ser sechama razão, intelecto, espírito, mente que dizem o mesmo em dife-rentes nuances.

Assim, como já foi dito, razão, racional, intelecto, intelectual,mente, mental indicam grau de intensidade e excelência do ser en-quanto homem, enquanto o homem, imagem e semelhança de Deus,

4. Cf. Mestre ECKHART, Sermões alemães. vol. I, 2006, Glossário 11, 12, pp.339-343.

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participa da sua “aseidade”, participação essa que aparece na vontadelivre, no livre arbítrio, vontade essa, racional.

b) Mas por que então Olivi diz: a ordem natural da vontade para

com o intelecto é assim que pressupõe sempre em todo o seu ato o ato do

intelecto, e isso de tal modo que ela não pode querer a não ser o conheci-

do? Não há aqui uma diferença? Sim uma dependência da vontade dointelecto?

Usualmente distinguimos no homem corpo, alma e espírito. Nocorpo distinguimos a parte físico-material e parte anímico-sensitiva.Muitos chamam essa parte anímico-sensitiva, de alma. No espíritodistinguimos intelecto, vontade e memória (ou em modo varianteintelecto, vontade e sentimento etc.). Distinguimos diversos modosde distinguir: real (res), formal (forma) e mental (mens = ens rationis).Distinção real é entre coisa e coisa. Formal é entre forma e forma(entre conceito e conceito, imagem e imagem, entre idéia e idéia,representação e representação, sempre de alguma forma com funda-mento na coisa). E mental é puramente distinção fabricada pela men-te, sem fundamento na coisa. Em vez de falar da composição do ho-mem em corpo, alma e espírito, Olivi fala da parte superior da nossa

alma, constituída de inteligência, memória e vontade. É a parte que nonosso dizer usual denominamos espírito. A outra parte é a parte infe-

rior da nossa alma e se refere ao que no nosso dizer usual denomina-mos de corpo (parte físico-material e anímico-sensitiva). Olivi nãofala propriamente de composição de três coisas, nem de encaixe deuma coisa dentro da outra, mas do todo ou da totalidade com suas

partes. E em vez de todo ou de totalidade diz alma. Assim a totalida-de homem é denominada aqui de alma (anima e animus), cujo modode ser é vitalidade cordial, o ânimo. Em vez de parte superior e parte

inferior diz também razão superior e razão inferior. E diz então: Deve-

se dizer que a razão inferior e a razão superior não se distinguem real-

mente e formalmente, já que num homem não há senão uma razão. São

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apenas diversas atinências5 ou ofícios6 da mesma razão. A nossa mente,

pois, se chama razão superior, na medida em que, se volta às coisas eter-

nas e superiores, chama-se, porém, inferior enquanto se volta às coisas

inferiores e temporais. Ou por termo razão superior se designa a parte

suprema de toda a nossa mente que possui o domínio pleno e perfeito

sobre outras forças; por termo razão inferior se designa o ínfimo da razão,

pelo qual olho de vez em quando sem pleno consenso as coisas inferiores e

o que é tocado a partir da sensualidade imediata.

Aqui, entre as partes ou razões superior e inferior da alma (leia-se:do todo do ser próprio do homem), não há distinção nem real, nemformal. Não se trata, pois, de composição de coisa e coisa, nem dereferência de conceito e conceito, de imagem e imagem, de represen-tação e representação, mas sim de que distinção? Mental? De ensrationis (do ente da razão), distinção subjetiva sem nenhum apoio efundamento na realidade objetiva? Aqui, de imediato, percebemosque nos desviamos do “assunto”, escorregamos para dentro da pres-suposição do que seja real, formal e mental de um sistema de explica-ção que não é afim à maneira de ver e ser do pensamento medieval.Pois a afirmação de Olivi que aqui não há nem distinção real nemformal nos leva, não ao vazio de não diferenciação, de puro achata-mento abstrato-lógico mas pelo contrário justamente à estruturaçãode uma precisa e rica diferenciação numa bem ordenada paisagem deuma totalidade sui generis. Nessa paisagem, em diferentes estruturaçõessempre de novo e sempre de modo novo se dá a percussão e repercus-são do mesmo a modo de uma toada syn-fônica solta, livre e gratuita.

c) Como é, pois, a dinâmica dessa estruturação? A percussão do to-que principal é a liberdade da vontade. Aqui reina o apriori da absoluta

5. Habitudines. Cf. Nota 3.

6. Officium, officina, opifex se referem ao opus facere, a saber, um modo de trabalhartodo próprio que é fazer uma obra. É o modo de ser da existência artesanal eartífice.

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soltura da gratuidade, da liberdade, de tal modo que tudo aqui é a partirde si, por e para si: participação na jovialidade e cordialidade da aseidadede Deus (somente ela é movida a partir de e por si, e somente ela não pode ser

compelida, e somente ela tem domínio sobre outras forças). Esse “ser movida

a partir de e por si” da vontade não necessita de nada a não ser de simesmo, não necessita de nenhuma outra causa fora de si, não é outracoisa do que fonte, princípio de si. Assim, a vontade é simultaneamentetoda ela absoluta ação e absoluta recepção da doação de si. Nessa liberda-de de doação ela segue continuamente, sempre de novo a si mesma. Masentão o que significa essa ordenação da vontade ao intelecto enquantoeste torna o ente presente, enquanto lhe apresenta o objeto, pois segundoOlivi a vontade não pode querer a não ser o conhecido? Significa a recep-ção da vontade da sua própria ação doadora, o concomitante se acolherna ab-soluta ação de se dar; significa a realização da possibilidade de ser,cada vez nova e de novo como grata, i. é, gratuita e humilde acolhida desi. O que se denomina intelecto não é outra coisa do que o momentoacolhedor da liberdade da vontade da doação livre de si: é o ente, o emsendo da possibilidade de ser que denominamos de bem. Nesse sentido avontade não pode querer a não ser co-nascendo a si, conhecendo a si, seco-nascendo. O ser do homem segundo o pensamento medieval é essarecepção ab-soluta da gratuidade, i.é, da liberdade da vontade que é de-signada pelos termos ratio, intellectus, spiritus e mens, no alemão se dizVernunft (de vernhemen), portanto o concomitante da vontade, a vonta-de racional. Esse momento receptivo, o intelecto enquanto apresenta oente, é o que os medievais denominavam de simples apreensão. E é nasimples apreensão que se recebe a espécie. Espécie se “compõe” de gêneroe diferença específica e determina a definição de um ente. O que é defini-do pela definição de um ente se chama essência.7 Aqui gênero (genus) se

7 Aqui espécie e gênero não se referem à classificação dos entes usual nas ciências eno nosso saber cotidiano, mas ao que constitui a estruturação essencial do ente,explicitada no que denominamos de árvore porfiriana.

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refere à geração, ao nascimento, ao gênesis; espécie (species), à beleza, aoencanto do brilho do rosto, ao esplendor. Gênero é a luz como gênesis,como o primeiro ato, espécie é iluminação como esplendor, como segun-do ato8 . O racional da vontade racional, i.é, o ânimo próprio do ser do

homem dito em suas variações do mesmo com os termos razão, intelecto,

espírito e mente, é a aberta, a clareira de acolhida. É a recepção grata precisa

e fiel do encanto, da beleza da face que se desvela como ente na doação de si

a partir e no médium do abismo insondável e abissal da possibilidade de ser,

como a gênese da luz que ilumina. Assim o que é na sua essência intelecto(Vernunft), a saber, homem e anjos, é pura recepção da espécie. Masassim como iluminação é concomitante à luz, o intelecto é concomitanteà vontade na dinâmica da vontade racional.

De tudo isso que até agora dissemos, podemos talvez concluirque o próprio do intelecto é recepção (vernehmen, Vernunft), ou me-lhor, o intelecto como o ser do homem, como sua essência age comorecepção, que talvez possa ser circunscrita como: deixar ser o ser do

ente, o ser no ente e o ente no ser. Assim o próprio do intelecto (razão,intelecto, espírito, mente), a simples apreensão, o “perceber ou intuirsimples e imediato” não é outra coisa do que deixar ser o ser do ente, oser no ente e o ente no ser. Como tal o intelecto é afim ao mesmomodo de ser da vontade, e por isso é vontade racional.

8. Quanto ao segundo item <a saber, a eficácia da quiddidade> o que ela pode, saben-do-se que toda forma é ato puro e primeiro, que é faculdade para agir, como p. ex.,dizemos que a luz é o primeiro ato, a iluminação, segundo?

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FAZER A VONTADE DE DEUS EO BEATO FREI EGÍDIO DE ASSIS

Fr. Hermógenes Harada

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Frei Egídio de Assis é um irmão menor muito agraciado. Por issotudo que ele é, faz e diz é engraçado. A sua graça está no tom em que fazsoar o real do que seja espiritual numa toada toda própria a recordar ocheiro e o sabor da terra dos homens. E tem gente dizendo que o realis-mo aristotélico na Filosofia é engraçado como a graça dos Ditos de freiEgídio1 ...Especulemos à mão de alguns ditos de Frei Egídio como soaengraçado o slogan do cristianismo que atormenta a muitos fieis, segui-dores de Cristo, a saber, os cristãos: Fazer em tudo a vontade de Deus.

Fazer:

Uma vez, numa praça de Perúgia, ensinou um pregador a dizer:

“Blá, blá, blá, muito falo, pouco faço!”(...)

1.Dicta beati Aegidii Assisiensis, sec. Códices mss. emendata et denuo edita a PP.Collegii S. Bonaventrurae, editio secunda, Ad Claras Aquas, Quaracchi-Firenze, extypographia Collegii S.Bonaventurae, 1939. Os pensamentos de frei Egídio deAssis foram nos transmitidos através de anotações dos seus discípulos sob o títuloOs Ditos do Beato Egídio de Assis. Os ditos utilizados nesse “comentário” foramtirados da edição latina de Quaracchi-Firenze e traduzidos de modo literariamentepouco “adequado”, apenas para o nosso uso.

Os Ditos em tradução portuguesa melhor se encontram em: São Francisco de Assis,Escritos e bioografias de São Francisco de Assis. Crônicas e outros testamentos doprimeiro século franciscano. nona edição, Petrópolis: Editora Vozes e FFB, 2000;em: Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Editora Vozes e FFB, 2004; e em:

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Egídio, ao ouvir de um patrão, dono de uma vinha, junto da qual

morava, o grito contra os operários da vinha: “Façam <o trabalho>!”

saiu clamando da cela no fervor do espírito:”Irmãos, ouçam a palavra, a

palavra que deve ser: façam, façam, não falem!” 2

Fazer aqui significa operar, i.é, fazer obra. O fruto do trabalhodesse modo típico de fazer é obra (opus, -eris); quem assim trabalha éoperário (opifex, -icis); o lugar e o modo de assim trabalhar se cha-mam oficina (officina, -ae); e o encargo, o dever: ofício (officium, -i).O horizonte, a partir e dentro do qual se zela (studere, studium) ofazer, o trabalho, os afazeres, as preocupações, as responsabilidades,êxito e fracasso, alegria e dor, realizações e frustrações, em suma oempenho e desempenho da vida, devotada à perfazer-se no sentido doser no seguimento de Cristo em suas inúmeras manifestações é o modode ser do fazer e se perfazer da existência caracterizada como a existênciaartesanal. A existência artesanal do homem medieval estava por sua vezinserida no ser e modo de ser do Ente Supremo por excelência, a cujooficio se nomeava com o termo Criador, a cuja ação com o termo criar do

nada, e cuja obra com o termo Criação. A essência desse Ente Supremopor excelência que era tout court a plenitude do ser se chamava Deus, Pai,Criador, Senhor do Céu e Terra. Senhoria desse Senhor (dominus, -i)nada tinha a ver com dominação e domínio do “patrão”, do “caudilho”,

2. Cf. pp. 91-92; podemos cair na tentação de entender nesse Dito o não falarcomo proibição de falar ou negação do falar. Se assim entendermos o Dito, enten-demos o fazer como uma possibilidade de ser ao lado de outra possibilidade de serchamada falar. O engraçado do Dito é de nos mostrar que o fazer nessa acepçãomedieval deve ser entendido de modo “transcendental”, de tal modo que atingetanto o falar como não falar. Tanto o falar como o não falar devem ser feitos. Nessesentido o emudecer é diferente totalmente do silenciar. Assim, diz frei Egídio: Eunão considero o saber silenciar bem menor virtude do que saber falar bem; e vejo que ohomem deveria ter o pescoço da cegonha, para que a palavra atravesse muitos nós, antesde sair da boca (Cf. 59).

FR. HERMÓGENES HARADA

Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 189-195, jul./dez. 2007

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mas tudo a ver com vigência e presença de quem cuida da casa (domus,-us = domicílio, habitação, casa, lar): o ser do pai (e da mãe) de família.Criação, criatura, criar não era produzir, produto de uma causação, massim gerar a obra elaborada com ternura e vigor, com cuidado e desvelo deprogenitor (a), portanto cria, fruto, filho (a): Criação era, pois, Filiação,ser criatura, ser filho (a). Fazer nesse sentido era participar do modo deser e trabalhar do Deus, e colaborar na grande obra da Criação (leia-se Filiação).

Desse horizonte, provinham varias dicas de como se deve fazer otrabalho artesanal da existência cristã, i.é, ser filho (a) de Deus no sere no agir, em mim e nos outros, ser operário (a) de um novo céu euma nova terra, a partir de e no médium da vontade de Deus.

Embora haja inúmeras dicas de como fazer esse fazer a obra a mododa existência artesanal criativa em quase todos os capítulos dos Ditos

de frei Egídio, o capítulo VII, intitulado De santa solicitude e vigilân-

cia do coração nos mostra e tematiza em variegadas dicas a estrutura-ção desse modo de ser do fazer, chamado operar.

Um dos momentos mais interessantes desse fazer é o fato de essefazer ser um perfazer a obra, e ao mesmo tempo isso de perfazer aobra equivale a se perfazer de quem faz. Com outras palavras, aquitodo o fazer não se perde e se esvai no objeto ou no objetivo, masredunda, retorna a quem faz enriquecendo-o, vitalizando-o, realizan-do-o no seu ser. Esse modo de agir reduplicativo que retorna ao autor,fazendo-o crescer, aumentar-se, se consumar se chama hábito (do verbohabere, ter) que talvez se possa traduzir como atinência. Essa atinência,esse se ter, se perfazer, esse tornar-se responsável, ou melhor, ter que

ser, se chamava virtude (virtus de vir, -i = varão, o modo de ser dovaronil, da coragem de ser, em se assumir, de se ter). Por isso, Os

Ditos é tratado de virtudes.

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Esse modo de ser do ter-que-ser, da responsabilidade de ser apare-ce no seguinte dito: Se todo o mundo fosse cheio de homens até às nu-

vens e somente um devesse ser salvo, cada qual, no enquanto, deveria

seguir a sua graça, para que possa ser aquele um.3

Esse modo de ser e agir chamado fazer se denominava em gregoscholé que foi reproduzido em latim por schola, donde vem a palavraportuguesa escola. Scholé se dizia em latim otium, -i que aqui origina-riamente não significava o ócio no sentido de dolce far niente mas ummodo de trabalho de quem era cidadão livre, não escravo, contráriode negotium, -i, o negócio, o nec– ou non-otium, o não-ócio que eratrabalho escravo, mais tarde trabalho assalariado, trabalho não gra-tuito. Esse modo de ser do trabalho livre, assumido por ele mesmo,sem pagamento, mas cordial e criativamente feito livremente com grandezelo e aplicação é a dinâmica da criatividade do que mais tarde se cha-

mou de profissão livre dos profissionais livres. Com outras palavras fazerno sentido do pensamento de Frei Egídio é ação de um labutar cheio

de diligência e solicitude feita, per-feita no inciar, crescer e consumar-sede um perfazer-se do homem na sua obra. Frei Egídio chama tal fazerde bem fazer, de bem gerir. Assim, disse frei Egídio: Não é realizado(beatus)4 o homem, embora tenha vontade boa, se ele não se empenha em

segui-la com obras boas (em exercitando-se a modo de obras bem fei-tas). Pois, Deus dá a sua graça ao homem, para que ele a siga. (...). Uma

vez alguém que parecia vagabundo disse a frei Egídio:”Frei Egídio faz

me consolação”. Respondeu frei Egídio: “Empenha-te em bem fazer (ge-rir) e terás a consolação”5 (...) Então disse-lhe um certo frade: “Talvez

3. Cf. p. 117.

4. Beatus, bem-aventurado se traduz como feliz. Trata-se de alguém que se aventu-rou na vida, atravessou as vicissitudes da viagem, e chegou, mesmo que seja estro-piado, à sua meta final, e recebeu o selo de qualidade, foi sancionado (santo) comorealizado.

5. Cf. p. 27.

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morramos antes de conhecer o nosso bem e experimentar algum bem”.

Respondeu frei Egídio: “Os curtidores de couro conhecem o couro; os sa-

pateiros o calçado; os ferreiros o ferro e é assim com outros artesões; como

pode, porém, um homem saber de uma profissão, na qual jamais se em-

penhou? Crês tu que os grandes senhores dão grandes dons aos homens

tolos e insanos? Não dão” 6.

Vontade:

A essência da vontade no pensamento medieval se chama livrearbítrio ou liberdade da vontade. Vontade se refere ao homem enquanto

espírito; é o que se chama parte superior da alma. Essa colocação estáexpressa na expressão: vontade racional. Alma em latim é anima e estána palavra animal que não significa bicho, bruto irracional, mas âni-mo, sopro, i.é, respiração, espírito. Aqui vontade não é uma veleida-de, um desejo, um ímpeto irracional, cobiça, “ganas” no sentido deganância, eflúvio, vivência, explosão de sentimento, nem acribia cegade um intenso “zelo” a modo de fanatismo fundamentalista, não é aviolência opaca de uma idéia fixa, a tenacidade voluntarista do“bitolamento”. Pois, vontade é pura liberdade, soltura total do ser livre

e clarividente, onde tudo nela é a partir de si, por e para si, plena coinci-

dência de identidade do ser consigo mesma, é a aberta pré-sente. A lin-guagem medieval designava a liberdade, assim ab-soluta na sua dinâ-mica, com a expressão a se (a partir de si, por e para si) e a contrapu-nha às criaturas com a expressão ab alio, que significava do outro,dependente e vindo do outro. Propriamente o a se só se atribuía a Deus,mas a vontade humana enquanto imagem e semelhança do DeusCriador, portanto enquanto livre participava dessa “aseidade”. Por

6. Cf. p. 28.

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isso quando lemos nos Ditos em latim a dica: Non est homo beatus, si

bonam habeat voluntatem, nisi bonis operibus studeat eam sequi (Nãoé realizado (beatus) o homem, embora tenha vontade boa, se ele nãose empenha em segui-la com obras boas), se nos descuidamos, enten-demos o dito erroneamente, como se ele estivesse dizendo: boa vonta-

de não basta, é necessário ação, a vontade deve seguir a ação ou deve dela

seguir uma ação.

Frei Egídio, no entanto, não diz que a boa vontade não basta.Pelo contrário, a boa vontade como imagem e semelhança de Deus étudo, de modo que o homem deve segui-la. Segui-la de que modo?Pelas obras boas, i.é, a modo do bem fazer, no exercício de boas obras.Bom, boa aqui significa perfeito (a), o que se perfez, se consumou echegou ao ponto de plenitude. Trata-se, pois, de fazer a vontade, fa-zer da vontade obra perfeita, trabalhar a liberdade do ser, elaborarbem de modo acabado a vontade, a ponto de ela ser do mesmo mododa vontade de Deus. Isto é: em tudo fazer a vontade de Deus.

Por conseguinte: fazer a vontade de Deus não quer dizer em primei-ro lugar propriamente executar a ordem que expressa a determinação davontade de Deus. Antes significa: ter ou ser o mesmo modo de ser da liber-

dade de Deus. E pertence a essa liberdade: compreender, querer e fazer. Eesses momentos de uma única realidade da plenitude de ser na sua supre-ma excelência se chama amar. Por isso em tudo fazer a vontade de Deus

não é outra coisa do que exercitar-se intensa, contínua e a cada momento

no chamado, no apelo do Deus-humanado, cujo mandato diz: “Amai-

vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 13,15).

A boa vontade de fazer a boa vontade

A vontade do Filho é per-feita, plena, i.é, boa, se faz, trabalha comoo Pai trabalha, continuamente, sem cessar, sem descansar, cordial, livre esempre de novo no frescor nascivo do início criativo. Para Egídio, esse

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cintilar, esse eclodir da vontade boa é ser-como-Deus. Por isso para ele,tudo está no vigor, na vigência da aseidade de Deus. Para ele os superlati-vos dos atributos de Deus “meta-físicos” como oni-potência, oni-ciência,oni-presença, imortalidade, eternidade não possuem em absoluto nenhu-ma conotação do superlativo da excelência de poder e força de um super-man, mas são todos eles ternura e vigor da singeleza, da transparência elimpidez, da cordialidade e perfeita alegria de uma “Rosa sem o por quê”(Ângelus Silesius), na ab-soluta solutura, na liberdade finita do simples

in-stante do hic et nunc, concreto, cotidiano: a boa-vontade, a vontadeboa de um operário, na labuta do fazer sempre de novo a sua vida, livredo espírito de vingança, de ressentimento, proveniente da carência deum infinito ruim.

Terminemos essas especulações fantasiosas de um texto medievalda espiritualidade franciscana simplesmente citando mais um Dito

engraçado do Beato Egídio de Assis:

A gloriosa Virgem Maria, Mãe de Deus, nasceu de pecadores e peca-

doras, nem esteve numa ordem religiosa e, no entanto, ela é o que é.7

7. Cf. p. 63.

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TRADUÇÕESTRADUÇÕESTRADUÇÕESTRADUÇÕESTRADUÇÕES

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199

ACERCA DA LIBERDADE DAVONTADE1

Pedro de João Olivi

A – Texto em latim

I

Quaeritur utrum liberum arbitrium sit uma potentia vel plures, etc.

Omissis argumentis etc.....(...)

B – Tradução

I

Coloca-se a pergunta: o livre arbítrio é uma ou muitas potências etc.?

(Cód. 637, Fol. 156c-d, Bibl. Univ., Padova)2

Conforme o que dizem os santos, na parte superior da nossa almanão há, a não ser somente, inteligência, memória e vontade. Assim,

1. Os textos aqui apresentados foram tirados da monografia de P. FelicianhoSimoncioli, ofm, Il problema della libertà umana in Pietro di Giovanni Olivi e Pietrode Trabibus, Società editrice VITA E PENSIERO, 1956, onde no apêndice trazdois códigos do texto de Olivi: (Cód. 637, fol. 156c-d, Bibl. Univ., Padova)Commentarius Ordinarius in II librum Sententiarum. Distinctio XXIV, articulus II,Quaeritur utrum liberum arbitrium sit uma potentia vel plures; articulus III, quaestioI et II, Utrum ratio inferior et superior sint realiter diversae et idem quaeritur devoluntate naturali et deliberativa; e (Cód. 106, fol. 16r, Bibl. Vat., Fondo Borgh.)Quaestiones in II Sententiarum. Quaeritur utrum potentia voluntatis sit per suamessentiam activa na indigeat habitu aliquo accidentali, quo mediante exceat in actum.

2. Cf. Nota 1.

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omitindo argumentos, respondo dizendo ser oportuno que o livrearbítrio, delas seja ou uma, ou duas ou todas elas. O livre arbítrio,pois, não pode ser um hábito3 acidental. Todo o hábito acidentalpode ser removido da alma, não, porém, o livre arbítrio segundo asua essência. Se o for, então o homem enquanto homem não serialivre por sua essência nem racional etc., como é dito mais abaixo.Portanto, deve-se dizer que o livre arbítrio, no que toca ao que dizrespeito a ele ser faculdade livre e ter domínio sobre toda a alma, éessencialmente vontade racional. É o que se pode ver: pois, somenteela, a vontade racional é movida a partir de e por si, e somente ela nãopode ser compelida, e somente ela tem domínio sobre outras forças, edaí quando quero entendo, quando quero, ando, embora não tãoperfeitamente como o seria no estado da inocência; e somente navontade racional há o poder para os opostos seguindo a si, a saber,para o não querer e para o querer no e para o mesmo instante; nasoutras potencias, porém, a não ser somente através dela, i.é, as outraspotencias podem ser movidas para os opostos somente por ela.

Mas, a ordem natural da vontade para com o intelecto é assimque pressupõe sempre em todo o seu ato o ato do intelecto, e isso detal modo que ela não pode querer a não ser o conhecido; por isso, olivre arbítrio, em sendo ele essencialmente vontade, inclui nas suasoperações a ordenação para o intelecto, para o intelecto enquantotorna o ente presente, mas também de quando em vez até mesmoenquanto confere e discerne e julga, cujos atos, também os particula-res, a vontade domina, já que esses atos são feitos livremente e porquedepois da coleta e do juízo, a liberdade de consentir ou não consentirpermanece na vontade. E assim, a liberdade do arbítrio é, quanto à

3. Habitus se refere ao habere. Talvez pudéssemos traduzi-lo como habilidade, fa-culdade ou atinência (tenere), entendido não como qualidade ou propriedade dohomem, mas sim como dinâmica, essência, vigência.

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sua raiz e consistência, de todo, a própria vontade. A sua operaçãoatual, porém, como foi dito, tem ordenação para o intelecto e dequando em vez o inclui a modo concomitante e isto enquanto o ato élivre com deliberação, animadversão e juízo da razão.

Respondo ao segundo artigo.

Omitindo outros argumentos, deve-se dizer que, no ato livre,enquanto é com deliberação e discurso e juízo, estes vêm da parte dointelecto. E por tanto o ato livre exige algo do intelecto. Contudo,porém, a liberdade é essencialmente vontade, e consentir livrementeé o seu ato, imediato e total, ao que nada faz o intelecto a não ser poracidente, a saber, apresentar o objeto; e não é necessário que para oato livre concorra sempre a deliberação e o juízo e o discurso, emboraisso ocorra de vez em quando. Poder-se-ia dizer que o ato livre épropriamente aquilo que é somente da vontade; o que, porém, é nointelecto, não. A liberdade da vontade, no entanto, às vezes quer in-quirir e deliberar e então faz preceder a investigação do intelecto an-tes que consinta livremente.

II

Coloca-se a pergunta: a razão inferior e superior são diversas

realmente?E pergunta-se a mesma coisa a respeito da vontade natural e

deliberativa.

<A primeira pergunta>. Deve-se dizer que a razão inferior e arazão superior não se distinguem realmente e formalmente, já quenum homem não há senão uma razão. São apenas diversas atinências4

ou ofícios da mesma razão. A nossa mente, pois, se chama razão supe-rior, na medida em que, se volta às coisas eternas e superiores, chama-

4. Habitudines. Cf. Nota 3.

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se, porém, inferior enquanto se volta às coisas inferiores e temporais.Ou então pelo termo razão superior se designa a parte suprema detoda a nossa mente que possui o domínio pleno e perfeito sobre ou-tras forças; pelo termo razão inferior se designa o ínfimo da razão,pelo qual olho de vez em quando sem pleno consenso as coisas infe-riores e o que é tocado a partir da sensualidade imediata. E isso foitirado de Agostinho XII, De Trinitate5 .

A segunda pergunta. A vontade natural e deliberativa, porém, é amesma simplesmente segundo a essência. Chama-se, ora desta, ora da-quela maneira, a respeito de diversos objetos. Diz-se, pois, natural, a res-peito de objetos que por si e imediatamente têm referência ao bem e dosquais a bondade se manifesta de per si, ou para os quais, através do con-trário, a vontade é conduzida naturalmente, como bem-aventurança ousimilares. A deliberativa, porém, diz respeito aos objetos, cuja bondadeou utilidade não se manifesta logo com firmeza, a não ser depois deinquisição e deliberação; e então a vontade é levada assim como querpara dentro dos próprios objetos depois da deliberação.

III

Coloca-se a pergunta: a potência da vontade é pela sua essência ativa?

Ou necessita de algum hábito acidental, mediante o qual parte para

o ato?

(Cód. 106, fol. 16r, Bibl. Vat., Fondo Borgh.)6

E parece que dele carece necessariamente, pois, o que se atém a mui-tos a modo indiferenciado, ao se aplicar a um deles, parece precisar neces-

5. Cf. Cap. 3, . 3 c. 12. nn. 17-18; c; 14, n. 22; c. 15, 25 (PL 42, 999, 1007-1008,1009-1010, 1012).

6. Cf. Nota 1.

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sariamente de um algo determinante. Mas a vontade não é diferenciada aquerer isso ou aquilo, ou a querer ou a não querer: por conseguinte, elanecessita etc.; e isso parece não ser outra coisa do que a espécie recebida.A maior se torna manifesta em Anselmo, que no livro Da queda <do

diabo>7 prova que o anjo não pode por si ter a primeira vontade. – Solu-cionava-se <o nó da questão>, dizendo-se que a potência da vontade nãonecessita de outro determinante, porque ela mesma por sua própria forçase determina. – E aquela colocação de Anselmo, que Anselmo ele mesmodela dê conta de si a si mesmo!

Ou numa outra colocação: a vontade quer somente se for dispos-ta. Disposição é qualidade. Deve-se dizer que a menor é falsa, pois,aqui a disposição não difere da essência. – Ademais, a vontade quer,em querendo. Logo, através de outro ato ou hábito. Mas não é atra-vés de outro ato, pois, se assim o for, vai-se ao infinito. Solução: aqui,portanto, deve-se dizer que o em querendo ao querer não é quereratravés de outro ato, mas sim ser vontade ela mesma. De outro modo,se daria aqui um processo ao infinito.

A vontade nada ama a não ser que lhe preceda complacência ha-bitual. – Solução: se se entende por complacência a complacência ha-bitual, a afirmação é falsa. Se, porém, se entende a complacência atu-al, a complacência é sempre concomitante ao ato do querer.

A afeição da comodidade é a raiz do ato da vontade. O ser afeta-do é algo acidental. Solução: logo é falsa a afirmação.

A vontade poderia querer que todo o objeto fosse p. ex. Deus. –A resposta se manifesta na solução principal.

Nas crianças está toda a essência da vontade; portanto, pareceque nelas o defeito é apenas pela carência de disposição. Solução:

7. Cf. Cap. 12, n. 67-68 (PL 158, 341-344).

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veja-se o que foi dito acima da disposição. O livro IX da Metafísica8

diz: a potência que se comporta a modo da não diferenciação deve sernecessariamente determinada aos opostos pelo desejo ou pela esco-lha. – Dissolvia-se o nó da questão, dizendo-se que a vontade aqui éenganada.

Dissolvia-se, respondendo que se devem considerar quatro itenspara se ter evidência em tal questão, a saber, a quiddidade da vontade,a sua eficácia, o seu modo de agir e no quarto item o que se manifestacomo o oposto.

Quanto ao primeiro item deve-se saber que a vontade é essencialà criatura racional. O que é manifesto. Pois, de outro modo, o livrearbítrio seria separável da criatura; nem a alma, enquanto ela mesma,não seria criada à imagem de Deus; e o livre arbítrio tem na criaturaa primazia. O que é manifesto. Pois, nela ele é a raiz da liberdade edomina e impera sobre outras forças e é a aparição mais excelente doque alguma outra forma criada, porque a outra forma age pela neces-sidade o seu ato, a vontade, porém, age com autonomia: domina poiso seu ato a modo disjuntivo. Nenhuma criatura pode fazê-la declinar.Nem Deus a pode coagir enquanto ela permanece vontade. Dissotudo se torna manifesto que ela transcende todo o criado.

Quanto ao segundo item <a saber, a eficácia da quiddidade> oque ela pode, sabendo-se que toda forma é ato puro e primeiro, queé faculdade para agir, como p. ex., dizemos que a luz é o primeiro ato,a iluminação, segundo? Por isso mesmo pelo que é o ato primeiro,tem de si eficácia para o ato e pode partir para alguma operação sua.Tem também domínio sobre seus atos, o que se evidencia, porque deoutro modo não seria livre; a qual liberdade, no entanto, não lhe édada pela disposição; e isso se manifesta pelo fato de, se assim não

8. Aristóteles, Methaph., lib. VIII (IX), c. 5 (Bekker II, 1047b 35ss.; Didot, II,567, 17-30).

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fora, não seria livre, e isso por sua vez se manifesta pelo fato de adisposição só se dispor para um <dos contrários>.

Quanto ao terceiro item deve-se dizer: é necessário saber que omodo em que a vontade pode agir é querer livremente, o que nãoconvém a nenhuma outra potência. Aliás, para os atos que simples-mente transcendem a ordem de sua natureza, a vontade necessita dehábito que a eleve, atos esses que são atos da graça e da virtude, por-que a ordem da graça transcende a ordem da natureza.

Embora, aqui, a vontade necessite também do hábito que a elevepara exercer alguns atos, é ela movida por si, por ela mesma, podendoos efeitos pelo hábito. Quanto aos atos naturais, porém, a vontade ésuficientemente potente por si como querer ler, querer andar, passe-ar, amar pessoa ou odiá-la.

Se bem que a vontade, porém, possa esses atos, porque, no entan-to, está anexa a partes inferiores pelo modo da coligação, entra nelaimpedimento da parte sensitiva.

Mas, que ela seja ativa pela sua essência, é evidente, porque pelopróprio fato de ser forma, é ativa, como também pelo fato de sermatéria, convém à matéria ser passiva.

Também se atribuiria a ação mais à disposição do que à vontade.

Posto que também a ignição deve-se mais ao fogo do que ao ferroem ignição.

Não é menos atual do que a luz.

A força de agir livremente não seria essencial ao homem e poderiaser separada do homem.

Adão não poderia querer o mal, a não ser que não tivesse antesum mal habitual. Essa afirmação é herética.

Note-se que a vontade age, atua só terminativamente o objeto.

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Daí, quando se argumenta que a quadrangulação no raio pareceser causada pelo quadrado, deve-se dizer que a quadrangulação é doraio efetivamente e somente é do quadrado terminativamente.

– Quando se argumenta que a quantidade difere da luz: a solu-ção: não é verdadeira a afirmação.

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O SENHOR DEUS PRODUZIU TODOTIPO DE ÁRVORES DE BELA

APARÊNCIA E BOAS PARA SE COMER*

Mestre Eckhart

Note-se primeiramente... e boas para se comer.

Saiba-se porém que a explicação dessa autoridade e da que prece-de imediatamente a esta é tomada, sem modificações, da primeiraedição,

No meio do paraíso havia também a árvore da vida e a árvore daciência do bem e do mal.

Note-se que na região racional ou intelectual há duas potências, asaber, o intelecto e a vontade, mas o intelecto é mais excelente. Sobreisso, veja na interpretação da quarta autoridade, perto do fim; por orafica demonstrado por cinco razões.

1. Porque recebe, por sua própria natureza, a idéia (ratione) dascoisas, o que é ou a quididade nua; mas a vontade recebe a coisa jáfora na matéria, obscurecida pelo e misturada com o alheio, sem serplena nem perfeita.

2. Porque, de acordo com seu próprio nome, o intelecto recebe acoisa ela mesma, interiormente, nos princípios essenciais e causais.

3. Porque a vontade formal recebe seu objeto, pelo qual é aquiloque é, do intelecto.

* Extraído de Prologi in opus tripartitum et expositio libri genesis. Stuttgart: W.Kohlhammer Verlag, 1964.

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4. Porque a vontade é apetite ou inclinação que se segue do “bemconhecido”, “que aparece” ao intelecto e segue a ele, como a inclina-ção para baixo é o apetite natural que segue à forma do que é grave, eassim dos outros apetites naturais.

O argumento para tudo isso é o que disse o filósofo, que a vonta-de pertence à razão. Pois o apetite racional não é racional se não apartir da razão e pela razão. Mas a razão pertence ao conhecimento, oqual compreende a ratio e a causa das coisas.

Do que se disse acima, fica evidente primeiramente por que sediz que a árvore da vida e a árvore da ciência do bem e do mal foiproduzida no meio do paraíso; ou seja, [na] região intelectual há duascoisas, intelecto e vontade.

Fica evidente, em segundo lugar, porque coloca-se antes árvore

da vida, que representa o intelecto, o qual é [a raiz] da vida da almaracional, conforme a palavra: “o que foi feito, estava nele”, a saber, noverbo, que no intelecto paterno “era vida” (Jo 1,3). Mas acrescentadepois: árvore do bem e do mal, que na verdade pertence à vontade eà coisa extra, conforme se disse acima no capítulo 1: “Deus viu tudoque fizera e era muito bom”.

5. Disso fica clara também a quinta razão por que o intelectoprecede em excelência a vontade. Todo ser vivo é mais excelente quetodo não vivo. O intelecto porém, segundo sua essência, é vivo, masa vontade não. Portanto etc. (o intelecto é mais excelente que a von-tade). A premissa maior é evidente, e vem testemunhada por Agosti-nho. A menor demonstra-se assim: o vivo – que se distingue do nãovivo – é aquilo que tem movimento a partir de si mesmo, em si mes-mo e de dentro, e não a partir de outro e de fora. De acordo com[seu] nome, o intelecto lê a coisa por dentro, em si mesmo. Inteligir,pois, é isso, ler por dentro (intus legere). E de novo lê a coisa ela mes-ma por dentro, em seus princípios. Mas da vontade não vale nem

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uma coisa nem outra. Pois sua inclinação e tendência volta-se parafora de si para a própria coisa fora da alma, e novamente para fora deseus princípios internos, os quais fundamenta seu ser a partir de den-tro, consistindo num (modo de ser) externo e estranho.

Daqui fica claro também que a bem-aventurança, visto ser a vidaeterna, consiste propriamente no intelecto ou no conhecimento deDeus em sua essência, conforme à palavra: “Esta é a vida eterna, quete conheçam somente a ti, Deus verdadeiro”.

[...]

Por último, note-se que nas palavras não comei da árvore da ciên-

cia do bem e do mal, devem-se notar ainda dois outros pontosexplicitados parabolicamente.

O primeiro diz respeito às coisas naturais. Sabe-se que geralmen-te as coisas inferiores são tornadas mais perfeitas e mais nobres pelaadesão, inerência e coesão com as superiores; e ao contrário as coisassão prejudicadas, degeneram e sofrem deficiências de sua coesão eadesão às inferiores, segundo a palavra: “Todo dom ótimo e tododom perfeito vem de cima” (Tg 1,17); “pois no alto está o Senhor”,como se disse no Salmo (92,4). Agostinho disse que todo metal queadere a um metal inferior degenera em cor e vigor. Por isso que aprata, quando batida em um vaso menor é de pouco valor por causade seu contato freqüente com as marteladas do ferro. Mas, em rela-ção ao verdadeiro, o bem é inferior, está abaixo dele, como aparecerálogo abaixo. E é isso que aqui se diz e se ordena: não comei da árvore

da ciência do bem e do mal.

O segundo diz respeito ao aspecto espiritual. Somos ensinados aquerer e buscar saber “as coisas que estão no alto e não as que estão naterra” (Cl 3,2). “Ninguém que mete mão ao arado e olha para trás éapto para o reino de Deus” (Lc 9,62). Porquanto, a esposa de Lot,tendo olhado para trás, “foi transformada numa estátua de sal”, como

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se escreve abaixo no capítulo 19. Pois, no geral, a perfeição de umacoisa consiste em estender sua expectativa para o que está à frente,inclinar-se e tender para o alto e esquecer as “coisas que ficaram paratrás” (Fl 3,13). Mas, entre os transcendentais, conversíveis com o ente,o bem é o que fica para trás, está abaixo e é o último. É o que vemordenado aqui: não comei da árvore do bem e do mal, isto é, não devesmisturar-te com o que é inferior e com aquilo “que ficou para trás”;pois o bem é algo que ficou para trás, como se disse.

Ademais, em segundo, o bem fica para trás porque é objeto davontade; mas a vontade está mais abaixo com relação ao intelecto,como se demonstrou acima, e também em terceiro lugar, porque nãoama nem sequer amar o que não é conhecido. E depois, em quartolugar, o “bem só move a vontade”, porque já foi “compreendido” deantemão.

E de novo, em quinto lugar, o bem e a vontade dizem respeito aotodo, pois o bem, a totalidade e o fim são idênticos. Mas o intelectonão se encontra nem repousa fora na totalidade, mas, por sua nature-za e segundo seu nome, o intelecto permanece dentro no princípiodas próprias coisas. Os princípios sempre são anteriores, mas os prin-cipiados são posteriores. Por isso que no Livro do Êxodo se disse aMoisés: “Eu te mosto todo bem” e a seguir: “Não poderás ver minhaface”, e abaixo: “Tu me verás pelas costas, mas minha face não pode-rás ver” (Ex 33,19s.23). Veja que o que se chama por primeiro de“todo bem”, diz depois ser “as costas” de Deus. O bem, portanto, éposterior, está atrás e abaixo.

E, ademais, o objeto do intelecto é o ente, mas o objeto da vonta-de é o bem. A partir daqui, em sexto, assim: o bem e o fim são idên-ticos, mas de acordo com seu nome o fim é o último, mais afastado, eassim fica para trás e é o posterior.

MESTRE ECKHART

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Depois em sétimo lugar, assim: nos entes, o bem não só é o fim eo último, como já se disse na premissa sexta, mas pertence ao quedetermina as coisas por último, como os acidentes, e não por primei-ro, como as formas substanciais. Por exemplo: o homem bom ou ohomem probo não é todo o que tem a forma de homem, mas o quetem a sabedoria, a virtude e outros acidentes, acrescentados poste-riormente ao ser do homem. Portanto, como já se disse, o bem fica defora, externamente à substância e ao ser.

Depois, em oitavo, como diz a Metafísica VI, a vontade e o amordizem respeito ao exterior, às coisas em si mesmas, ao contrário doverdadeiro e do intelecto. A vontade portanto está fora, atrás e abaixocom relação ao intelecto.

Mas não resta qualquer duvida de que o mal é posterior e infe-rior, visto ter decaído e ser uma privação do próprio bem.

Pode-se também dizer que aqui não se proíbe ao homem de co-mer da árvore da ciência do bem, por si, mas da árvore da ciência do

bem e do mal, isto é, do bem que aparece conjugado com o mal,refiro-me ao bem particular e imperfeito. Pois o mal é privação dobem. “Mas a privação e o hábito referem-se ao mesmo” (objeto). Épor isso que ao bem em absoluto, ou seja, a Deus, nada é contrário.Nessas palavras proíbe portanto ao homem de comer, refazer-se, de-leitar-se e descansar no bem criado abaixo de Deus.

E novamente o bem e o mal são propriamente objeto do apetitesensorial; pois no intelecto não existe, propriamente falando, o malnem o contrário. “Nele, as razões dos contrários não são contraditóri-as”, mas ao contrário a razão de ser do mal é boa e a própria razão deser do bem é a mesma que a do mal. Por isso que, como disse Boécio,a ciência dos males é boa, ou melhor, é una. Nas palavras preceden-tes, vem proibido em forma parabólica ao homem de se deixar afeiço-ar pelo deleite das coisas sensíveis, mas antes alimentar o apetite pelas

ACERCA DA LIBERDADE DA VONTADE

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coisas boas intelectuais, nem viver segundo os sentidos e irracional-mente, mas segundo a razão e o intelecto. E isso é o que disse Dionísioque o bem para o homem é viver segundo a razão, e o mal viveraquém ou além da razão. Ele quer dizer, portanto, que em si mesmoo homem não deve aquiescer em nada de sensual e em geral em nadade criado, a não ser quando ordenados a Deus. Por causa disso que,acima, no primeiro capítulo, em todas as obras dos seis dias descre-vem-se “a tarde” e a “manhã” mas não a noite; pois a noite é a quietu-de da alma nas próprias coisas, por causa dela mesma. No capítulo 55do De vera religione, Agostinho diz: “Não busquemos o supremo noínfimo, nem façamos adesão ao próprio ínfimo”, “a fim de que, sebuscarmos o que é primeiro nos últimos, não sejamos enumeradoscomo os primeiros entre os últimos”.

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