O FLUIR-RICORSO E OS TEMPOS DE FINNEGANS WAKE...O fluir-ricorso e os tempos de Finnegans wake....

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Universidade de Brasília Departamento de Teoria Literária e Literaturas Programa de Pós-Graduação em Literatura Luísa Leite S. de Freitas O FLUIR-RICORSO E OS TEMPOS DE FINNEGANS WAKE Brasília DF 2014

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Page 1: O FLUIR-RICORSO E OS TEMPOS DE FINNEGANS WAKE...O fluir-ricorso e os tempos de Finnegans wake. Dissertação de Mestrado. Orientador Piero Luis Zanetti Eyben. Brasília: Universidade

Universidade de Brasiacutelia

Departamento de Teoria Literaacuteria e Literaturas

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Literatura

Luiacutesa Leite S de Freitas

O FLUIR-RICORSO E OS TEMPOS DE

FINNEGANS WAKE

Brasiacutelia ndash DF

2014

Universidade de Brasiacutelia

Departamento de Teoria Literaacuteria e Literaturas

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Literatura

Luiacutesa Leite S de Freitas

O FLUIR-RICORSO E OS TEMPOS DE

FINNEGANS WAKE

Dissertaccedilatildeo apresentada ao curso de Mestrado em

Literatura do Departamento de Teoria Literaacuteria e

Literaturas da Universidade de Brasiacutelia como parte

dos requisitos para obtenccedilatildeo do grau de Mestre

elaborada sob orientaccedilatildeo do Professor Dr Piero Luis

Zanetti Eyben

Brasiacutelia ndash DF

2014

LUIacuteSA LEITE S DE FREITAS

O FLUIR-RICORSO E OS TEMPOS DE FINNEGANS WAKE

Dissertaccedilatildeo apresentada ao curso de Mestrado em Literatura do Departamento de Teoria

Literaacuteria e Literaturas da Universidade de Brasiacutelia aprovada pela banca examinadora

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2014

____________________________________________________________________

Dr Piero Luis Zanetti Eyben

Universidade de Brasiacutelia mdash Presidente

____________________________________________________________________

Dr Caetano Waldrigues Galindo

Universidade Federal do Paranaacute mdash Membro Externo

____________________________________________________________________

Dr Henryk Siewierski

Universidade de Brasiacutelia mdash Membro Interno

____________________________________________________________________

Dra Cristina Maria Teixeira Stevens

Universidade de Brasiacutelia mdash Membro Interno ndash Suplente

aos meus pais

AGRADECIMENTOS

Satildeo 23 anos de agradecimentos diversos Vamos laacute paciecircncia aos meus pais que haacute tanto tempo reforccedilam os valores que sempre me passaram minha matildee linda fonte de amor na sua forma mais pura mulher que mais admiro no mundo e que sintetiza comprometimento devoccedilatildeo e moral meu pai minha referecircncia maacutexima cuja paixatildeo e eacutetica tanto admiro e que sempre me influenciaram aleacutem de ser certamente a mais incriacutevel combinaccedilatildeo de compositor escritor e professor que possa existir aos meus queridos avoacutes que descansam em paz em algum lugar e agrave minha avoacute wanda por quem meu amor eacute absolutamente infinito aos meus dois irmatildeos e agraves minhas duas irmatildes camila irmatilde mais velha para quem ainda olho com olhar de crianccedila tamanha eacute minha admiraccedilatildeo por seu talento sensibilidade e forccedila felipe maninho mais velho em quem por toda a infacircncia me espelhei mdash e de quem tanto peguei discos e bonecos do power rangers sem permissatildeo miguel que desde que veio ao mundo se mostra cada vez mais como um grande ser humano julinha que tornou nossas vidas mais doces e mais risonhas mdash e do jeito que o tempo passa em breve vai estar lendo ela mesma esta frase estendo isto aqui ainda aos meus irmatildeos de consideraccedilatildeo (nada de meios irmatildeos mdash tenho somente irmatildeos inteiros) tia sandra e e meus tantos familiares todos que provam que amor natildeo se divide mas se multiplica agravequele que estaacute sempre laacute para mim haacute sete anos e a quem tanto amo marcos oliveira agrave isabella carrazza que desempenha o papel primordial de amiga inseparaacutevel desde 2001 ao igor versiani e ao henrique barbosa os melhores amigos que os uacuteltimos anos me deram e que espero ter sempre por perto natildeo importa em que lugar do mundo estejam porque temos natildeo um cantinho mas verdadeiros latifuacutendios no coraccedilatildeo uns dos outros agrave joana melo que me ofereceu sua amizade tatildeo especial por toda a graduaccedilatildeoampaleacutem e a quem soacute posso agradecer por isso e fazer jus a essa troca agrave stephanie winkler pela sua amizade tatildeo profunda e inigualaacutevel ao pedro couto meu grande amigo com quem tenho a sintonia sagitta em tantos niacuteveis ao lucas lyra que agraves vezes me entende como poucos e a quem quero tatildeo bem agrave raquel campos amiga-irmatilde de companheirismo tatildeo vasto fez desse tempo de mestrado algo muito melhor agrave ludimila menezes amiga-em-forma-bruta enche meus dias de beleza com sua enorme sinceridade de alma que me enche de forccedila e alegria

ao rafael machado que se desdobra em mil e eu tanto admiro por seu apoio incomensuraacutevel e pelo conviacutevio agrave sarah jeanne cujo companheirismo fez toda a diferenccedila e por quem nutro o maior carinho possiacutevel e tambeacutem ao victor fialho e agrave sayuri hirako queridos que coloriram esse tempo junto conosco agraves feministas-realmente-amigas-queer-poacutes-modernxs-pan-normativxs grupo no qual a mariana ferreira me incluiu e cujo nome jaacute define a genialidade amanda quadrado ana paula jacob liacuteria nogueira lorena figueiredo luciana torres marcella fernandes thauana tavares cada uma de vocecircs tem um espaccedilo de carinho e amor dentro de mim ao joyce e agrave sua filha que o inspirou lucia mas tambeacutem ao proust ao dante agrave emily dickinson ao truffaut e agrave sofia coppola agrave fiona apple agrave brody dalle e ao rufus wainwright ao georges bizet e ao giacomo puccini agraves cidades brasiacutelia com sua vastidatildeo e belo horizonte com seu acolhimento agrave muacutesica a arte que tanto quanto literatura e filosofia me manteacutem viva e manteacutem em mim o interesse por me manter viva ao prof piero eyben mais do que orientador desta dissertaccedilatildeo modificou para sempre minha relaccedilatildeo com a graduaccedilatildeo em Letras e com a academia e cujas aulas nunca mais quis parar de frequentar desde 2011 pelos tantos ensinamentos pelo acolhimento e pela capacidade de redefinir esse meu percurso obrigada minha gratidatildeo natildeo tem limites e este trabalho natildeo existiria sem tudo isso agrave Capes pelo apoio financeiro agrave Universidade de Brasiacutelia pela importacircncia que ganha mais espaccedilo em mim desde 2009 a todos que passaram pela minha vida deixando alguma marca e que natildeo nomeei aqui certamente me tornei outra depois de vocecircs digo seus nomes em silecircncio obrigada

First we feel Then we fall

(FW 62711)

Now follow we out by Starloe

(FW 38230)

Resumo

FREITAS Luiacutesa O fluir-ricorso e os tempos de Finnegans wake Dissertaccedilatildeo de Mestrado

Orientador Piero Luis Zanetti Eyben Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 2014 151 p

Esta dissertaccedilatildeo percorre investigaccedilotildees acerca do tempo tanto como instacircncia narrativa tanto

como conceito de teorias filosoacuteficas a partir da obra uacuteltima do escritor irlandecircs James Joyce

(1882-1941) Finnegans wake (1939) O aporte teoacuterico perpassa a fenomenologia e em especial

a filosofia de Jacques Derrida (1930-2004) O ricorso termo que proveacutem da obra do filoacutesofo

Giambattista Vico (1668-1744) eacute aqui relido como fluir-ricorso em uma ampliaccedilatildeo das

investigaccedilotildees sobre o tempo no Finnegans wake para aleacutem da Scienza nuova (1725) seu

paradigma central O tempo como tambeacutem formador de memoacuteria diacronia coletiva

compartilhada traz agrave tona o questionamento da inserccedilatildeo ou exclusatildeo de certos textos no cacircnone

da histoacuteria da literatura e como esse sistema pocircde lidar com as peculiaridades do texto de

Finnegans wake desde a recepccedilatildeo de seus contemporacircneos modernistas Sobre o tempo do

proacuteprio texto suas relaccedilotildees com muacutesica e outras artes outro importante filoacutesofo para o trabalho

eacute Emmanuel Levinas (1906-1995) Lidando com sincronia diacronia e anacronismo traccedilamos

as possibilidades de entender o tempo do texto do Wake com o apoio desses termos como

abordados pelo filoacutesofo Ainda nesse acircmbito eacute tambeacutem discutido em parte deste trabalho o

tempo da traduccedilatildeo mdash ou seus tempos mdash e apontadas as traduccedilotildees brasileiras para o texto de

James Joyce A leitura das traduccedilotildees eacute feita sempre no esteio das discussotildees do tempo bem

como o questionamento sobre o cacircnone literaacuterio e a histoacuteria da literatura que partem igualmente

dessas noccedilotildees passando tambeacutem por Agostinho Martin Heidegger e Paul Ricoeur

Palavras-chave James Joyce Finnegans wake Tempo Jacques Derrida Fenomenologia

Abstract

FREITAS Luiacutesa The flowing-ricorso and the times of Finnegans wake Masterrsquos dissertation

Supervised by Piero Luis Zanetti Eyben Brasiacutelia University of Brasiacutelia 2014 151 p

This dissertation investigates different notions of time considered as a narrative concept as well

as a philosophical concept and center of philosophical theories from the last work by the Irish

author James Joyce (1882-1941) Finnegans wake (1939) The theoretical framework goes

through phenomenology and especially the philosophy of Jacques Derrida (1930-2004) The

ricorso term we take from the works of the Italian philosopher Giambattista Vico (1668-1744) is

reinterpreted here as a flowing-ricorso invoking the movement of a river broadening the

investigations on time concerning Finnegans wake beyond what we can see with Scienza nuova

(1725) its central paradigm The notion of time also as a memory a shared collective diachronic

vision elicits the questioning of the insertion or exclusion of some texts among the canonical ones

in the history of literature and how this system can deal with the peculiarities of Finnegans wake

ever since its first reception by the contemporary modernists About the time within the text itself

its relations with music and other forms of art another important philosopher here is Emmanuel

Levinas (1906-1995) Dealing with synchronic diachronic and anachronism we find the

possibilities of understanding the time of the text in the case of Finnegans Wake with the support

of Levinasrsquo approach of these terms Still concerning those themes the time of a translation is

also brought to this analysis mdash or its sundry times mdash and the different Brazilian translations for

James Joycersquos text are indicated The approach of this analysis of translations is based on the

investigation of the concept of time and the questions concerning the literary canon and the history

of literature all of these being connected notions also reading the works of Agostinho Martin

Heidegger and Paul Ricoeur

Keywords James Joyce Finnegans wake Time Jacques Derrida Phenomenology

Sumaacuterio

INTRODUCcedilAtildeO ndash Wake e environs11

CAPIacuteTULO I ndash Wake em pauta30

1 Algo parecido com nada 31

2 Sui generis38

3 Fluidez vida-morte46

4 Paralelos psicanaacutelise teoria da relatividade muacutesica51

CAPIacuteTULO II ndash Finnegans wake e o tempo da traduccedilatildeo64

CAPIacuteTULO III ndash Leitura luto elipse82

CAPIacuteTULO IV ndash Fluir e retorno108

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS138

BIBLIOGRAFIA145

INTRODUCcedilAtildeO WAKE E ENVIRONS

Hightime is ups be it down into outs according

Premente eacute o tempo que seja feito do teu jeito1

(FW 23916)

1 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2002) O mesmo valeraacute para as proacuteximas citaccedilotildees de Finnegans wake em portuguecircs exceto quando indicado de resto citaccedilotildees diversas desacompanhadas da indicaccedilatildeo de autoria satildeo traduccedilotildees livres feitas por mim

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Decidir ler Finnegans wake eacute decidir por lanccedilar-se ao texto

Ainda que sua escrita tenha sido iniciada pouco tempo apoacutes a publicaccedilatildeo

de Ulysses (1922) que jaacute despertara uma recepccedilatildeo que ia de manifestaccedilotildees de

repuacutedio a grandes elogios passando por problemas com censura e acusaccedilotildees

de obscenidade Finnegans wake (1939) foi publicado mais de dezesseis anos

depois de o dublinense James Augustine Aloysius Joyce (1882-1941) comeccedilaacute-

lo e por volta de dois anos antes de seu falecimento em Zurique no dia 13 de

janeiro de 1941 Nesse iacutenterim acabou por ficar ofuscada a publicaccedilatildeo de

Pomes Penyeach (1927) livro que tambeacutem foi escrito em um longo intervalo de

tempo de 1904 a 1924 apesar de mdash bem ao contraacuterio das duas obras entre as

quais estaacute intercalado mdash consistir em treze curtos poemas

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O contexto em que Finnegans wake foi produzido eacute permeado por

algumas peculiaridades aleacutem do longo tempo de escrita e reescrita a publicaccedilatildeo

de fragmentos do que ateacute entatildeo se chamava Work in progress possibilitou que

Joyce jaacute tivesse enquanto ainda escrevia concreta noccedilatildeo do impacto que sua

produccedilatildeo final poderia causar mdash fosse entre quem a lesse fosse entre quem

natildeo leu mas ouviu falar fosse entre quem comeccedilou a ler e desistiu ateacute os que

leram mas tiveram a sensaccedilatildeo de natildeo terem lido (talvez a mais comum no

primeiro contato com o Wake)

Soma-se a isso o problema de visatildeo de Joyce decorrente de um quadro

de glaucoma que se agravava cada vez mais obrigando-o a passar por mais de

dez cirurgias e a buscar consultas com meacutedicos de diferentes lugares em busca

de alguma melhora Chegou ao ponto de natildeo conseguir mais ler nada impresso

passando a ter de escrever em uma caligrafia enorme para conseguir enxergar

melhor usar um tapa-olho que ficou famoso em algumas de suas fotografias e

ditar alguns trechos de fragmentos do Finnegans wake O entatildeo jovem escritor

Samuel Beckett chegou a fazer esse trabalho algumas vezes ouvindo a citaccedilatildeo

de Joyce com apreccedilo pela tarefa especial que executava Aleacutem de ser uma das

figuras mais proacuteximas do jaacute ceacutelebre conterracircneo de quem recebeu alguns

elogios especiais e chegou a ser tratado com rara intimidade foi um de seus

mais sinceros admiradores e mais ativos defensores Os dois ficaram afastados

por um periacuteodo de cerca de um ano apoacutes um mal entendido que envolvia a filha

de Joyce Lucia Anna Joyce que parecia ter se apaixonado pelo jovem irlandecircs

que visitava seu pai mas a relaccedilatildeo dos dois escritores acabou por sobreviver ao

ocorrido

Joyce teve em vida numerosos admiradores que como Beckett

apoiaram ativamente sua produccedilatildeo Entre os nomes mais importantes daqueles

que estiverem em alguma medida presentes na fase final de sua vida estaacute o de

sua mecenas a inglesa Harriet Shaw Weaver (1876-1961) que se tornaria

editora da revista The Egoist (anteriormente chamada de The Freewoman e The

New Freewoman) Weaver estudou na London School of Economics e participou

ativamente do maior movimento pelos direitos das mulheres no Reino Unido

Womenrsquos social and political union que reivindicou o sufraacutegio universal direito

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concedido somente em 1928 (deacutecadas depois da fundaccedilatildeo do grupo em 1903

e mais de um seacuteculo depois das primeiras reivindicaccedilotildees na Inglaterra desde o

iniacutecio endossadas publicamente por alguns homens ceacutelebres) A revista The

Egoist contava com Ezra Pound na seccedilatildeo literaacuteria e nela foram publicados

Pheacutenomenologie de la perceptiontrechos de Ulysses Pound por um tempo

teceu diversos elogios aos trabalhos de Joyce e tambeacutem o apoiou antes que

comeccedilasse a mudar suas opiniotildees a respeito das empreitadas literaacuterias do

irlandecircs exilado especificamente na fase final de suas obras em especial diante

de Finnegans wake que lhe pareceu um material por demais indigesto

Outro importante nome eacute o de Sylvia Beach (1887-1962) proprietaacuteria da

Shakespeare and Company mdash fundada em 1919 e apelidada por Joyce de

Stratford-on-Odeacuteon em referecircncia a Stratford-upon-Avon cidade natal de

Shakespeare e agrave rue de l`Odeacuteon onde ficava a livraria mdash que publicou a

primeira ediccedilatildeo de Ulysses em 1922 e Pomes Penyeach em 1927 aleacutem da

coletacircnea de ensaios sobre o Wake que ainda estava em construccedilatildeo em 1929

Our exagmination round his factification for incamination of Work in progress

Beach apoiou e acompanhou boa parte da carreira de Joyce ainda que algumas

das empreitadas tenham lhe acarretado problemas ldquoI understood from the first

that working with or for Mr Joyce the pleasure was mine mdash an infinite pleasure

the profits were for himrdquo2 (FLANNER 1972 apud HALFORD 2010) Os anos

1930 marcaram dificuldades econocircmicas apesar da ajuda de amigos e

simpatizantes da livraria que formaram um grupo para ajudar a reerguecirc-la o Les

amis de Shakespeare and company Em 1941 poreacutem com a invasatildeo da Franccedila

pelo Terceiro Reich agravando a Segunda Guerra Mundial os problemas se

somaram e levaram-na agrave falecircncia Apesar de a relaccedilatildeo entre Joyce e Beach ter

se tornado ceacutelebre e a livraria ter sido centro de muitos encontros conta-se que

ironicamente o fechamento da livraria aconteceu pouco depois de Sylvia Beach

se recusar a vender a uacuteltima coacutepia de Finnegans wake a um oficial do

totalitarismo nazista

2 ldquoCompreendi desde o iniacutecio que trabalhar com ou para o Sr Joyce o prazer era todo meu ndash um infinito prazer os lucros eram delerdquo

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In late 1941 Shakespeare and company was forced to close shortly after Beach refused to sell her last personal copy of Finnegans wake to a Nazi officer It was symbolically ldquoliberatedrdquo in 1944 by Ernest Hemingway but in fact the bookstore never reopened though in the 1950s Beach gave an American named Whitman permission to open a bookstore under that name (FARGNOLI 2006 p 352)3

Foram figuras importantes na fase final vida de Joyce o casal Eugene

Jolas (1894-1952) e Maria McDonald (1893-1987) americanos residentes em

Paris que editavam a revista literaacuteria experimental Transition fundada por eles

em 1927 em que foram publicados excertos de Finnegans wake ainda sob seu

tiacutetulo provisoacuterio anterior Work in progress aleacutem de artigos sobre a obra de

James Joyce Conheceram-se por Sylvia Beach A revista de ares inovadores e

artisticamente progressistas se estabeleceu como referecircncia na capital francesa

especialmente entre os angloacutefonos desterrados A seguinte descriccedilatildeo de Eugene

Jolas encontra-se na premiada biografia James Joyce (1959 1989)4 escrita pelo

norte-americano Richard Ellmann

Homem sensiacutevel procurava uma teoria da arte que tambeacutem fosse uma filosofia de vid pensava tecirc-la encontrado numa ldquoreligiatildeo da palavrardquo cujo ritual ele saturava com termos como ldquofantaacutesticordquo ldquomacircnticordquo e seu neologismo ldquoparamitordquo Soacute na arte se podia confiar e confiar apenas se se abjurasse do externo em nome da imaginaccedilatildeo (p 725)

Eugene Jolas foi um daqueles que mais apoiaram e defenderam a obra

de James Joyce em sua eacutepoca tendo visto em Finnegans wake uma obra que

seria forte e consistente acircncora para o manifesto que publicou em 1929 na

proacutepria revista Transition denominado ldquoRevolution of the wordrdquo no qual discorria

sobre novas formas de linguagem literaacuteria Durante a deacutecada de 1960 jaacute viuacuteva

Maria se tornaria ceacutelebre ainda como presidenta do Comitecirc Americano de Paris

3 ldquoNo fim de 1941 Shakespeare and company foi obrigatoriamente fechada pouco tempo depois de Beach ter se recusado a vender sua uacuteltima coacutepia pessoa de Finnegans wake a um oficial nazista Foi simbolicamente ldquoliberadardquo em 1944 por Ernest Hemingway mas a livraria nunca foi reaberta de fato apesar de nos anos 1950 Beach ter permitido que um americano chamado Whitman abrisse uma livraria usando o mesmo nomerdquo 4 Em 1982 Richard Ellmann recebeu o James Tait Black Memorial Prize na categoria biografia um dos mais tradicionais precircmios literaacuterios britacircnicos

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contra a Guerra do Vietnatilde que foi censurado pelo governo francecircs poucos anos

depois de sua fundaccedilatildeo em 1968

Adrienne Monnier (1892-1955) foi mais uma das maiores apoiadoras de

James Joyce em Paris Abriu a livraria La maison des amis des livres em 1915

que ficava proacutexima de um dos endereccedilos da Shakespeare and company (o da

rue de lrsquoOdeacuteon que originou o jaacute citado apelido de Joyce de ldquoStratford-on-

Odeacuteonrdquo) Adrienne Monnier difundiu na Franccedila a obra literaacuteria do escritor norte-

americano Ernest Hemingway em traduccedilotildees para liacutengua francesa e publicou por

um tempo o perioacutedico literaacuterio Le navire drsquoargent que contava com Jean Preacutevost

em sua equipe editorial Uma das primeiras mulheres a ser dona de uma livraria

especialmente fundada por ela mesma isto eacute sem que tivesse sido herdada de

famiacutelia ou de um falecido marido Monnier foi referecircncia para Sylvia Beach que

abriu seu negoacutecio quatro anos depois construindo-se entre elas uma vasta

parceria

Ford Madox Ford (1873-1939) literato inglecircs proacuteximo de Ezra Pound que

tambeacutem residiu em Paris e que inspirou um capiacutetulo do autobiograacutefico A

moveable feast de Ernest Hemingway foi outra fonte de apoio com que Joyce

contou Ford editava a revista literaacuteria The transatlantic review em Paris e a

publicava em Londres pela editora independente Gerald Duckworth Overlook

(hoje tatildeo somente Duckworth Overlook cujo slogan eacute ldquoindependente desde

1898rdquo) Inicialmente os financiadores da Transatlantic exigiram que nada escrito

por Joyce fosse publicado na revista mas acabaram abrindo matildeo da proibiccedilatildeo

quando Ford ameaccedilou recusar o cargo de editor Com doze ediccedilotildees mensais

durante o ano de 1924 foi a primeira publicaccedilatildeo a conter excertos do entatildeo Work

in progress mdash tiacutetulo virtualmente sugerido por Ford em seu suplemento literaacuterio

depois adotado por Joyce mdash que soacute mais tarde apareceriam tambeacutem na

Transition do casal Jolas Ford que tambeacutem publicou Hemingway e Tristan

Tzara chegou a temer que sua revista fosse prejudicada se houvesse alguma

acusaccedilatildeo de obscenidade do que Joyce escreveu Por outro lado a princiacutepio o

proacuteprio Joyce se recusou publicar assim trechos de sua obra em andamento por

acreditar que natildeo seria bom tecirc-la fragmentada (apesar de Ulysses ter sido

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publicado dessa maneira em outra revista a Little review) tendo negado outros

convites anteriores mas acabou cedendo

Tanto as vaacuterias publicaccedilotildees dos excertos em progresso quanto

posteriormente a publicaccedilatildeo de Finnegans wake poreacutem fizeram com que ateacute

alguns de seus admiradores mais contundentes se manifestassem

negativamente Ateacute mesmo Nora a esposa de Joyce criticou o texto do Wake

pejorativamente um ldquochop sueyrdquo questionando a qualidade a partir da

ininteligibilidade Reiterava assim a opiniatildeo expressa por Harriet Shaw Weaver

que tambeacutem se posicionou desfavoraacutevel ao que Joyce estava produzindo no fim

de sua vida distanciando-se consideravelmente dele na fase em que estava

escrevendo o Wake Em uma carta a Joyce disse abertamente natildeo se interessar

pela ldquoproduccedilatildeo de seu Atacado de Trocadilhos de Seguranccedila nem pelas

escuridotildees e ininteligibilidades do seu sistema de linguagem deliberadamente

emaranhado Parece-me que vocecirc desperdiccedila seu gecircniordquo (ELLMANN 1989 p

728) Ainda que natildeo tenha havido grande rancor entre os dois na ocasiatildeo da

morte de Joyce em Zurique ela teria arcado com as despesas de seu funeral mdash

que natildeo teve refinamentos e nem qualquer homenagem ou contribuiccedilatildeo vinda

da Irlanda

Ezra Pound (1885-1972) foi quem possivelmente fez o comentaacuterio mais

aacutecido O escritor norte-americano comeccedilou a tecer criacuteticas desde os capiacutetulos

finais de Ulysses e quanto a Finnegans wake ao receber de Joyce o manuscrito

do livro de Shaun para que lesse e comentasse respondeu a ele que soacute lhe

restava desejar sucesso mas natildeo sabia o que pensar Na mesma carta chegou

a dizer que aquele texto soacute valeria a pena se apresentasse uma visatildeo divina ou

a cura para a gonorreia (ldquothe claprdquo) ldquoNothing short of divine vision or a new cure

for the clapp [sic] can possibly be worth all that circumambient peripherisationrdquo5

(READ 1970 p 228) Vale lembrar que anteriormente na ocasiatildeo de uma

tentativa de angariar fundos para Joyce a partir do Royal Literary Fund Pound

se referiu a Joyce escrevendo a Yeats e George Moore de maneira muito

5 A traduccedilatildeo feita por Lya Luft da biografia de Joyce escrita por Richard Ellmann traz a seguinte versatildeo do trecho ldquoNada ateacute onde eu possa ver nada sem visatildeo divina ou uma nova cura da gonorreia valeraacute possivelmente a peripatetizaccedilatildeo circunambienterdquo (1989 p 721)

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elogiosa tendo expressado esses elogios tambeacutem ao proacuteprio Joyce em outras

ocasiotildees ldquostill it gives me a certain satisfaction to state that I consider Joyce a

good poet and without exception the best of the younger prose writers His style

has the hard clarity of a Stendhal or a Flaubert He has also the richness of

erudition which differentiates him from certain able and vigorous but rather

overloaded impressionist writersrdquo6 (ELLMANN apud DENNING 1997 p 10)

A primeira publicaccedilatildeo sobre Finnegans wake surgiu antes mesmo que a

obra fosse concluiacuteda Alguns apoiadores de Joyce se reuniram em torno da obra

coletiva Our exagmination round his factification for incamination of Work in

progress7 (1929) quando ainda havia apenas os fragmentos denominados Work

in progress com o intuito de atenuar a recepccedilatildeo que ateacute entatildeo oscilava

nebulosamente O tiacutetulo circular sugestivo e bem-humorado foi sugerido por

Joyce A coletacircnea foi publicada pela Faber and Faber a mesma editora que

publicou a primeira ediccedilatildeo de Finnegans wake quase dez anos mais tarde em 4

de maio de 1939 Reunia ensaios criacuteticos de doze autores Samuel Beckett

Stuart Gilbert Eugene Jolas Marcel Brion Frank Budgen Victor Llona Elliot

Paul Robert McAlmon Thomas MacGreevy John Rodker Robert Sage e

William Carlos Williams O proacuteprio Joyce desejava que essa publicaccedilatildeo natildeo

contivesse apenas textos elogiosos mas tambeacutem que se expressasse algo de

negativo a respeito de seus escritos Aleacutem dos doze artigos houve dois textos

extras denominados ldquocartas de protestordquo (letters of protest) e ambos trouxeram

criacuteticas o de uma jornalista que assinou sob o pseudocircnimo de G V L Slingsby

e outro assinado por um poeta russo chamado Vladimir Dixon O texto de Dixon

ldquoA litter do James Joycerdquo denomina seu destinataacuterio ora de senhor Germs

Choice ora de senhor Shamersquos Voice trocadilhos que fizeram Stuart Gilbert e

Sylvia Beach cogitarem que essa criacutetica negativa tivesse sido escrita pelo proacuteprio

Joyce A hipoacutetese poreacutem permanece natildeo confirmada

6 Traduccedilatildeo livre ldquoainda assim me daacute certa satisfaccedilatildeo afirmar que considero Joyce um bom poeta e sem exceccedilatildeo o melhor dos jovens prosadores Seu estilo tem claridade dura de um Stendhal ou de um Flaubert Ele tem ainda a riqueza da erudiccedilatildeo que o diferencia de alguns haacutebeis e vigorosos poreacutem excessivos escritores impressionistasrdquo 7 A mesma traduccedilatildeo supracitada propotildee o tiacutetulo traduzido Nosso Exagme em torno da sua factificaccedilatildeo da incaminaccedilatildeo de Obra em realizaccedilatildeo (Ibid p 755)

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O tradutor inglecircs Stuart Gilbert (1883-1969) um dos nomes envolvidos na

publicaccedilatildeo era um dos assiacuteduos e atentos leitores contemporacircneos de Joyce

Foi quem publicou James Joyces Ulysses A Study (1930) livro ainda hoje uacutetil

para consulta na leitura da obra que precedeu Finnegans wake elucidando

numerosas referecircncias um tanto obscuras por todos os capiacutetulos e incluindo

ainda a famigerada tabela comparativa entre Ulysses e a Odisseia de Homero

Stuart Gilbert foi apresentado a Joyce por Sylvia Beach assim como Maria e

Eugene Jolas

Apesar de conterracircneos Samuel Beckett (1906-1989) e James Joyce se

conheceram somente em Paris no exiacutelio da terra-matildee compartilhada e logo se

estabeleceu a rotina de que Beckett o visitasse sempre que estivesse na cidade

Por ter acompanhado boa parte do processo de criaccedilatildeo de Finnegans wake

especialmente na ajuda que deu a Joyce por seus problemas de visatildeo podemos

imaginar que Samuel Beckett era grande candidato a uma espeacutecie de leitor ideal

o mais proacuteximo do texto aleacutem do proacuteprio autor Suas observaccedilotildees sobre o livro

de Joyce satildeo brilhantes Eacute sabido que foi Beckett o primeiro (ou ao menos

certamente um dos primeiros) a notar verdadeiramente que a incompreensatildeo

mais comum se traduz antes mesmo de a leitura ser iniciada isto eacute ainda ali

nas expectativas perante o livro mdash como poderiacuteamos ldquoentenderrdquo o Finnegans

wake esperando uma leitura tradicional

You cannot complain that this stuff is not written in English It is not written at all It is not to be read It is to be looked at and listened to () Here form is content content is form () His writing is not about something it is that something itself When the sense is sleep the words go to sleephellip When the sense is dancing the words dance (BECKETT 1964 p14)8

8 ldquoNatildeo se pode reclamar que esse material natildeo esteja escrito em inglecircs Simplesmente natildeo eacute um material escrito Natildeo existe para ser lido Existe para ser olhado e ouvido () Aqui forma eacute conteuacutedo conteuacutedo eacute forma () Sua escrita [de Joyce] natildeo eacute sobre alguma coisa eacute a proacutepria coisa Quando o sentido eacute adormecido as palavras vatildeo dormir Quando o sentido eacute danccedilar as palavras danccedilamrdquo

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O que Beckett muito cedo percebeu e acaba por nos confirmar eacute que a

linguagem em Finnegans wake natildeo se presta a meramente servir ao

remetimento agrave descriccedilatildeo nem a contar um ocorrido prefere trazer nela em vez

de apresentar por meio dela intenta tecirc-la como ambiente proacuteprio do

acontecimento natildeo como ferramenta siacutegnica para dizecirc-lo representativamente

ou dizecirc-lo a distacircncia Levando essa tentativa em consideraccedilatildeo nada mais

coerente do que dispensar a escolha de um idioma para produzir o texto tecendo

sua literariedade de maneira anaacuterquica em relaccedilatildeo a regras de formaccedilatildeo de

palavras ou quaisquer outras normatividades de um idioma e suas limitaccedilotildees a

ponto de se poder dizer que o Finnegans wake natildeo estaacute escrito em inglecircs nem

em irlandecircs mas sim em uma liacutengua proacutepria babeacutelica mdash ainda que se possa

argumentar que a base dessa subversatildeo eacute a liacutengua inglesa de maneira que

Joyce tanto escreve no inglecircs quanto contra ele como jaacute foi dito nas palavras do

estudioso Seamus Deane

Joyce involves himself and us in an extremely complex series of translations that are endless because there is no original and no target language () the original language is the target language The book is written in the English language and also against the English language it converts itself into English and perverts itself from English (DEANE 2000 p viii)9

Lendo uma obra que natildeo pode oferecer certezas ou linearidades

estamos em uacuteltima instacircncia simplesmente nos entregando a ela sem indiacutecios

que possibilitem saber ou prever minimamente no que tudo aquilo vai dar O

leitor soacute pode continuar sua empreitada se estiver ciente dessa ausecircncia de

sentidos pontuais e de sequecircncias narrativas agraves quais normalmente buscaria se

prender Natildeo haacute uma sequecircncia de cenas causando a sensaccedilatildeo de suspense

ou de fluidez narrativa que nos faz virar as paacuteginas em prosa comum Ao inveacutes

disso o livro todo eacute espeacutecie de puro e constante suspense (uma descriccedilatildeo em

si impossiacutevel para o significado de ldquosuspenserdquo) como se o caminho de seu texto

9 ldquoJoyce se envolve e nos envolve em uma complexa seacuterie de traduccedilotildees que satildeo infinitas porque natildeo haacute liacutengua de origem e liacutengua-alvo () a liacutengua de origem eacute a liacutengua-alvo O livro eacute escrito em liacutengua inglesa e tambeacutem contra a liacutengua inglesa ele se converte em inglecircs e se perverte do inglecircsrdquo

21

virasse esquinas que os leitores nem mesmo tinham visto que existiam Cada

termo cada linha do Wake conteacutem diversas camadas semacircnticas que podem

ser absorvidas em diferentes niacuteveis e assim a leitura se realiza de uma forma

uacutenica de acordo com as referecircncias que o leitor captou Essa configuraccedilatildeo

textual potencializa mdash ou polemiza mdash as diferenccedilas que existiratildeo entre leituras

por pessoas diferentes ou entre as releituras de um mesmo indiviacuteduo

Por isso decidir ler Finnegans wake eacute decidir por lanccedilar-se ao texto Lecirc-

lo eacute uma experiecircncia fenomecircnica per se

Mesmo para alguns leitores que dedicaram parte de suas vidas a lecirc-lo e

relecirc-lo o texto natildeo se ausenta de dificuldades Uma das primeiras publicaccedilotildees

oferecendo uma leitura ampla e aprofundada da totalidade do Wake que se

propusesse a ter alguma didaacutetica em sua abordagem foi A Skeleton key to

Finnegans wake dos pioneiros Joseph Campbell e Henry Morton Robinson em

1944 O inglecircs Anthony Burgess lembrado por sua famigerada ficccedilatildeo distoacutepica

A Clockwork Orange (1962) e o acadecircmico americano William York Tindall

tambeacutem foram alguns dos primeiros a publicarem guias completos para a leitura

do Wake aleacutem de Robinson e Campbell Burgess publicou Here Comes

Everybody an introduction to James Joyce for the ordinary reader (1965) pela

proacutepria Faber and Faber A shorter Finnegans wake (1967) que traz o texto de

Joyce consideravelmente reduzido por Burgess e Joysprick na introduction to

the language of James Joyce (1973) Tindall publicou A readerrsquos guide to

Finnegans wake (1969) que sucedeu seu outro estudo didaacutetico de escopo mais

amplo A readerrsquos guide to James Joyce (1955)

William York Tindall tenta tornar o processo de leitura o mais didaacutetico e

facilitado possiacutevel indicando as referecircncias em cada capiacutetulo do Wake Ao final

de sua introduccedilatildeo em A readerrsquos guide to Finnegans wake Tindall afirma que

seu guia natildeo visa a uma apreensatildeo completa nem a ultimatos sobre a obra mas

sim a ser um suplemento de estudos preacutevios e acompanhar a leitura de uma

maneira relativamente independente isto eacute livremente ldquoAfter all what authority

on the Wake knows half of it Which half is the critical questionrdquo (TINDALL 1969

22

pp 25-26)10 Ironizar a possibilidade de que se saiba afirmar algo sobre

Finnegans wake talvez se aplique em verdade a qualquer texto literaacuterio mas

William York Tindall se resguarda claro especificamente em sua condiccedilatildeo de

joyciano e de redator de um guia para o Finnegans wake Diz ainda nessa

mesma introduccedilatildeo

Surely the Wake abounds in farcical materials () But farce is a category of drama and except from dream maybe the Wake evades categories Therersquos lsquolots of fun at Finneganrsquos wakersquo says the poet in his ballad of Tim Finnegan Taking my clue from this distrusting categories as I distrust earnestness I content myself with calling the Wake a very funny book (Ibid p 20)11

De fato o humor eacute uma das caracteriacutesticas sobressalentes em Finnegans

wake Os puns frequentemente carregam uma ironia inevitavelmente risiacutevel

Entre absurdos e alfinetadas a coletacircnea de trocadilhos ruma ao riso Uma das

comparaccedilotildees mais acertadas mdash ainda que comparaccedilotildees sejam sempre

perigosas mdash foi feita pelo escritor francecircs Valery Larbaud falando de Ulysses

ldquoeacute tatildeo grande e abrangente e humano quanto Rabelaisrdquo (ELLMANN 1989 p

617) Esse algo de rabelaisiano povoa ainda mais o sucedente Finnegans wake

que pretende tudo abarcar trabalha sobre o aparente exagero mdash que perde a

caracteriacutestica de excesso ao se fazer produtivo O exagero leva ao humor o

inacreditaacutevel e inverossiacutemil levam agrave quebra imediata e incontornaacutevel da

seriedade O que Wake tem de excessivo pode ser para nos fazer rir mais do

que para impressionar presunccedilosamente ou para meramente dificultar o texto ou

adornaacute-lo mais que isso o que o texto faz eacute lotar a si proacuteprio isto eacute se estufar

de conteuacutedo com um barroquismo que se autoironiza

10 ldquoAfinal de contas qual autoridade no Wake conhece sequer metade dele Qual metade eacute a questatildeo criacuteticardquo 11 ldquoCertamente o Wake se aproxima de materiais farsescos () Mas a farsa eacute uma categoria do drama e exceto por sonho talvez o Wake se esquiva de categorias Haacute lsquomuita diversatildeo no funeral do Finneganrsquo diz o poeta em sua balada sobre Tim Finnegan Tirando daiacute uma pista desconfiando de categorias como desconfio de seriedade eu me contento com chamar o Wake de um livro muito engraccediladordquo

23

Em artigo de 1955 ldquoA obra de arte abertardquo posteriormente publicado em

Teoria da poesia concreta (1965) Haroldo de Campos buscou compreender as

direccedilotildees para as quais apontavam as obras de arte modernas e para percorrer

esse caminho partiu de Finnegans wake e de obras de diversos autores mdash

Mallarmeacute Ezra Pound Cummings Pierre Boulez Deacutecio Pignatari e outros Em

Opera aperta (1962) Umberto Eco aborda o tema de maneira similar tambeacutem

fundamentou seu paradigma de obra de arte aberta a partir de Finnegans wake

e outras obras12 Havia uma seccedilatildeo toda dedicada a Joyce na primeira ediccedilatildeo

que depois passou a ser editada separadamente e consistia em uma

primeira tentativa pessoal de acompanhar o desenvolvimento de um artista no qual o projeto de uma obra aberta manifesta em transparecircncia ao niacutevel da pesquisa das estruturas operacionais toda uma aventura cultural a soluccedilatildeo de um problema ideoloacutegico a morte e o nascimento de dois universos morais e filosoacuteficos (ECO 1988 p 22)

Haroldo de Campos e Umberto Eco falando da ldquoobra de arte abertardquo natildeo

foram os uacutenicos a derivar do Finnegans wake de Joyce compreensotildees e

premissas de um grande paradigma teoacuterico Joseph Campbell (1904-1987)

teoacuterico estadunidense elaborou o ceacutelebre conceito de monomito segundo o qual

a jornada de um heroacutei eacute ciacuteclica e essa caracteriacutestica poderia ser notada em todas

as mitologias em diferentes graus tomando como exemplos mitos que

compotildeem a mitologia hindu egiacutepcia grega e cristatilde Joseph Campbell parte da

tese de que todos esses mitos satildeo variaccedilotildees de uma mesma narrativa una Um

dos padrotildees que Campbell estudou nessas variaccedilotildees foi a jornada do heroacutei

descrito em The hero of a thousand faces (1949) A primeira publicaccedilatildeo de

impacto de Joseph Campbell foi justamente jaacute citado estudo pioneiro entre as

12 Natildeo satildeo necessariamente abordagens idecircnticas apesar da grande coincidecircncia entre ambas inclusive terminoloacutegicas O proacuteprio Umberto Eco em introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo brasileira diz ldquoEacute mesmo curioso que alguns anos antes de eu escrever Obra Aberta Haroldo de Campos num pequeno artigo lhe antecipasse os temas de modo assombroso como se ele tivesse resenhado o livro que eu ainda natildeo tinha escrito e que iria escrever sem ter lido seu artigo Mas isso significa que certos problemas se manifestam de maneira imperiosa num dado momento histoacuterico deduzem-se quase que automaticamente do estado das pesquisas em cursordquo (ECO 1988 p 17)

24

publicaccedilotildees sobre o Wake A skeleton key to Finnegans wake (1944) escrito por

ele em parceria com Henry Morton Robinson e publicado pela editora Harcourt

entatildeo Harcourt Brace Foi certamente o primeiro estudo completo e que se

propunha a servir como guia de leitura mais de duas deacutecadas antes de Tindall

publicar o seu famoso A readerrsquos guide A obra de James Joyce gerou inspiraccedilatildeo

para Campbell ateacute mesmo na escolha do termo ldquoAnd his monomyth Ah hordquo

(FW 58124) As ideias desenvolvidas no conceito satildeo bastante caras ao

Finnegans wake muitas variaccedilotildees temaacuteticas reunidas formando uma unidade

um caleidoscoacutepio dos grandes mitos em que as narrativas histoacuterias se

entrelaccedilam ao inveacutes de somente se diferenciarem entre si Apagam-se as linhas

que delimitam a identidade cultural o idioma a liacutengua nacional ou regional o

momento histoacuterico ou qualquer porccedilatildeo isolada de tempo e espaccedilo tudo age em

prol da compreensatildeo do todo e do que nos une atraveacutes dos seacuteculos e das

fronteiras

No Brasil a recepccedilatildeo de Finnegans wake e sua influecircncia no trabalho de

grandes intelectuais tambeacutem natildeo tardou a se explicitar mdash e com grandes

leitoresleituras alguns fragmentos foram traduzidos por Augusto de Campos e

Haroldo de Campos em Panaroma do Finnegans wake (1962) Essa publicaccedilatildeo

foi de enorme importacircncia na difusatildeo do texto no Brasil em uma via de matildeo

dupla tanto Joyce influenciou intelectuais ligados agrave poesia concreta quanto os

irmatildeos Campos contribuiacuteram para difundir ainda mais a sua obra Felizmente

natildeo houve grande impacto negativo que afastasse leitores e parecesse invalidar

a qualidade do Wake ao contraacuterio a recepccedilatildeo foi natildeo soacute positiva como

especialmente produtiva em especial graccedilas agrave publicaccedilatildeo do Panaroma do

Finnegans wake que encorajou certa inspiraccedilatildeo e aproximaccedilatildeo da obra com o

que se fazia no Brasil em termos de poesia traduccedilatildeo e ateacute mesmo muacutesica13 jaacute

nos anos 1960

13 Eacute relativamente desconhecido o fato de que Peacutericles Cavalcanti musicou um trecho do Panaroma do Finnegans wake traduzido por Augusto de Campos ldquoNuvoletardquo mas essa bela versatildeo pode ser conhecida online numa performance com Regina Caseacute de 1983 no Sesc Pompeia para o programa Faacutebrica de Som

25

Haacute ainda poucas (ou talvez seja um nuacutemero surpreendentemente alto)

traduccedilotildees extensas de Finnegans wake publicadas mundo afora mdash francecircs

alematildeo mandarim polonecircs japonecircs (haacute duas) coreano italiano galego

contam-se nos dedos mdash e o portuguecircs haacute poucos anos foi incluiacutedo entre os

poucos idiomas que possuem traduccedilatildeo integral graccedilas a Donaldo Schuumller que

traduziu o texto do Wake para o portuguecircs brasileiro (se eacute que seria coerente

dizer dessa maneira enquadrando em um idioma) no decorrer de quatro anos

A traduccedilatildeo cujo primeiro volume data de 2001 foi publicada aos poucos e trouxe

consigo o tiacutetulo cunhado pelos irmatildeos Campos Finniacutecius reveacutem Com notas de

leitura a cada capiacutetulo que comentam aspectos gerais do texto Schuumller realizou

essa tarefa hercuacutelea com vasto meacuterito e deixou sua contribuiccedilatildeo criacutetica unida ao

seu trabalho de traduccedilatildeo

Houve em especial nos anos 2000 uma revisitaccedilatildeo de toda a tradiccedilatildeo

de Joyce e uma espeacutecie de nova recepccedilatildeo sua no Brasil com muitas traduccedilotildees

e trabalhos diversos sendo publicados Uma terceira via de traduccedilatildeo foi

executada com Ulysses (2012) por Caetano W Galindo que tambeacutem traduziu

Finnrsquos Hotel (2014) Este uacuteltimo se trata de textos que antecederam a finalizaccedilatildeo

do Work in progress que se tornaria o Finnegans wake Permaneceu em

suspenso se o Finnrsquos hotel de Joyce deveria ser um livro independente e ele

acabou por descartaacute-lo ou se eram rascunhos ensaios tentativas ou algo

semelhante do que planejava fazer em sua obra final jaacute que o livro abarca muitos

elementos do Wake Recentemente tambeacutem alguns dos escritos esparsos de

James Joyce foram editados em De santos e saacutebios escritos esteacuteticos e poliacuteticos

(2012) organizado a partir de The critical writings por Dirce Waltrick do Amarante

e Seacutergio Medeiros ambos fizeram tambeacutem a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo de Cartas

a Nora (2012) que possuem traduccedilatildeo portuguesa editada no mesmo ano feita

por Joseacute Miguel Silva ainda no mesmo ano foram publicadas tambeacutem as

Epifanias (2012) de Joyce traduzidas por Piero Eyben anteriores ainda satildeo o

livro-guia Para ler o Finnegans wake de James Joyce (2009) de Dirce Waltrick

do Amarante que traz tambeacutem uma traduccedilatildeo do fragmento Anna Livia

Plurabelle e O efeito da letra Lacan leitor de Joyce (2003) de Ram Mandil

26

Expusemos entatildeo de maneira breviacutessima a recepccedilatildeo de Finnegans

wake da maneira como se deu inicialmente em especial no seu impacto entre

as figuras centrais da vida de James Joyce como escritor mdash que contrasta como

pontuamos com a maneira como o Wake chegou ao Brasil se estabelecendo

natildeo muito tardiamente como referecircncia e influecircncia tanto para alguns de nossos

maiores intelectuais quanto para um puacuteblico geral e de diversas aacutereas A

intenccedilatildeo de uma maneira ou de outra natildeo eacute sublinhe-se a de reiterar as

dificuldades de acesso ao texto jaacute que muitas das objeccedilotildees citadas por

contemporacircneos de Joyce partem do argumento de uma suposta profunda e

contraproducente inteligibilidade bem como da noccedilatildeo de que sua obra final seria

um jogo louco ou inuacutetil de palavras e sons

Ao contraacuterio pode ser relevante conhecermos ao menos alguns dados

sobre a recepccedilatildeo turbulenta para sabermos enfrentar esses argumentos jaacute

velhos enferrujados que intentam justificar por que natildeo ler Finnegans wake e

ainda surgem com espantosa frequecircncia Como respondecirc-los hoje Ainda se

acredita que Finnegans wake eacute uma piada um sarro um jogo intelectual banal

e mais pretensioso do que primoroso Ainda eacute visto como um texto

impenetraacutevel Por quecirc Ateacute quando Quais as consequecircncias de uma obra

como essas ser considerada ldquoum livro que ningueacutem leulecircrdquo considerando ainda

os avisos ou receios dos que dizem que em geral lecirc-se cada vez menos

literatura Como Finnegans wake eacute considerado claacutessico (se o for) se eacute ilegiacutevel

e impenetraacutevel eou uma peccedila de chacota intelectual O que seria um claacutessico

e de que vale essa classificaccedilatildeo valorativa

Eacute claro que natildeo faria sentido negar as peculiaridades inerentes ao texto e

agrave sua construccedilatildeo e nem pretendemos fazecirc-lo pretendemos o exato oposto

desse reducionismo que eacute enxergaacute-las e enfrentaacute-las da maneira mais

destemida possiacutevel mdash destemida no sentido de natildeo criar diferenciaccedilotildees entre

literatura ldquofaacutecilrdquo e ldquodifiacutecilrdquo leia-se sem criar uma categoria especial para a leitura

do Finnegans wake Natildeo se trata de afirmarmos que seja um texto ldquofaacutecilrdquo nem

que seja um texto impenetraacutevel Ideal eacute que o encaremos como o que ele eacute mdash

um texto literaacuterio um texto escritural como quisermos chamaacute-lo eacute um texto

Demanda-nos a leitura De noacutes leitores quaisquer que sejamos Se olhamos

27

para o Wake e questionamos o que conteacutem jaacute somos grandes candidatos a

percorrer seus caminhos Natildeo satildeo muitos os dispostos Natildeo porque devam ser

selecionados mas porque os preconceitos talvez afastem os desinteressados

Ulysses jaacute carrega tambeacutem certo estigma mas parece figurar como uma obra

um tanto mais simpaacutetica ou atraente quiccedilaacute mais receptiva ainda que

considerada tambeacutem difiacutecil extensa complexa Ulysses tem trecircs traduccedilotildees

brasileiras14 de trecircs intelectuais de diferentes eacutepocas de meacuterito e de peso de

fundos distintos e consequentemente trabalhos tradutoacuterios tambeacutem (felizmente)

diferentes entre si o que tambeacutem colabora para multiplicar nossas possibilidades

de fontes e referecircncias durante a leitura Sua dificuldade parece ser menos alvo

de piadas do tipo ldquomas ningueacutem lecircrdquo ainda que curiosamente natildeo haja guias

elaborados e nem mesmo traduccedilotildees brasileiras de guias de leitura

especificamente voltados para Ulysses ainda enquanto jaacute temos Para ler o

Finnegans wake de James Joyce (2009)

Apontar problemas ou tecer criacuteticas diversas agrave construccedilatildeo textual de

Finnegans wake como foi mostrado natildeo foi exclusividade dos absolutamente

conservadores ao menos artisticamente falando Diante da radicalidade do texto

e da aparente incompreensibilidade era como se um estranhamento

imediatamente tomasse o possiacutevel leitor mesmo que este fosse algueacutem

relativamente (ou mesmo bastante) aberto Como vimos os exemplos satildeo

muitos de artistas como Ezra Pound (ldquoA receptividade de Pound agrave inovaccedilatildeo

tinha seus limites como Joyce agora sabiardquo ELLMANN 1989 p 722) de sua

parceira proacutexima Sylvia Beach ateacute mesmo de alguns parentes como sua

esposa Nora sempre fonte de apoio e companheirismo e seu irmatildeo que

tambeacutem era escritor Foram variadas as reaccedilotildees mas especialmente numerosas

as reaccedilotildees negativas chegando a atingir emocionalmente Joyce em alguns

momentos

14 A saber a de Antocircnio Houaiss (1966) a de Bernardina da Silveira Pinheiro (2005) e a mais recente de Caetano Galindo (2012) premiada pela Academia Brasileira de Letras e pela Associaccedilatildeo Paulista de Criacuteticos de Arte aleacutem de ter recebido o Precircmio Jabuti de melhor traduccedilatildeo do mesmo ano

28

A fama de Finnegans wake que se espalhou pelo mundo (e permanece

ateacute os dias de hoje contaminando a visatildeo que normalmente se tem do livro de

preconceitos uma vez que quase sempre precedem a sua leitura) de que eacute um

livro impenetraacutevel eou uma grande piada de James Joyce ou de que eacute nada

aleacutem de um livro propositalmente dificiacutelimo e insano natildeo acabaraacute de repente O

que preocupa eacute o ldquonada aleacutemrdquo Que se tome Wake como paradigma de livro

complexo eacute aceitaacutevel e ateacute pertinente que se deixe de lecirc-lo tendo em conta esse

tipo de estigma poreacutem passa a ser uma subestimaccedilatildeo e pode ser de alguma

maneira uma perda real Felizmente no Brasil como vimos existe cada vez

mais um nuacutemero de publicaccedilotildees sobre Joyce que vem crescendo e se ampliando

tanto quanto vem se aprofundando com diferentes leituras A recepccedilatildeo

atribulada de que fizemos um panorama no entanto desde as primeiras reaccedilotildees

agrave obra final de James Joyce mesmo entre aqueles que o admiravam e

acompanhavam seu trabalho aponta para algo que estaacute no cerne das

consideraccedilotildees desta pesquisa o que o Wake tem de tatildeo deslocado tatildeo

marginal sendo ao mesmo tempo tatildeo ceacutelebre O objetivo eacute fazer dessa

compreensatildeo algo produtivo

Pois bem se eacute um livro ilegiacutevel natildeo se poderia escrever um trabalho

acadecircmico sobre ele (ou em algumas visotildees do que eacute um trabalho sobre

literatura justamente por isso fazecirc-lo seria necessaacuterio e sugerido

ironicamente) A concepccedilatildeo de legiacutevel eacute a que deve ser posta em xeque aiacute em

primeiro lugar ou ao menos antes de se questionar se Finnegans wake o eacute ou

natildeo Isso se faz especialmente necessaacuterio se falamos de legiacutevel referindo-nos agrave

literatura como se houvesse um processo de alfabetizaccedilatildeo especiacutefico No

entanto mesmo que se pare de olhar para o Wake apenas observando esse seu

caraacuteter superficial arriscamo-nos a dizer que sua impenetrabilidade por si soacute

diz alguma coisa A maneira como se encara a conceituaccedilatildeo de obra literaacuteria mdash

desde a assunccedilatildeo dessa possibilidade ateacute o processo de efetivamente

conceituaacute-la mdash certamente tem implicaccedilotildees no processo de aceitaccedilatildeo ou de

recusa diante de uma obra especiacutefica bem como na accedilatildeo criacutetica de valorar e de

julgar

29

Ora se uma coisa natildeo se encaixa no que se espera dela algo natildeo estaacute

nas medidas esperadas ou a coisa ou o molde isto eacute a focircrma com suas

medidas limitadas e exigecircncias de enquadramento Se a obra eacute algo que se deva

encaixar em uma concepccedilatildeo de literatura que a antecede e normatiza as

produccedilotildees literaacuterias em uma hierarquia duvidosa que cria uma governanccedila de

cima para baixo do molde para a coisa eacute compreensiacutevel toda a resistecircncia que

foi criada frente ao Finnegans wake

O que essa maacute recepccedilatildeo que ecoa ateacute hoje em estigmas diversos

normalmente aponta portanto eacute que o problema ou o defeito estaacute na obra de

Joyce levando em conta esse procedimento normativo de interpretaccedilatildeo e de

julgamento e critica da literatura O que propomos eacute que o problema esteja

talvez no molde

CAPIacuteTULO I

WAKE EM PAUTA

31

1 Algo parecido com nada

A recepccedilatildeo negativa ou perplexa diante de Finnegans wake como vimos

foi ampla a ponto de certa maacute reputaccedilatildeo ultrapassar o teste do tempo permitindo

que sobrevivessem estigmas relacionados agrave obra ateacute os dias de hoje causando

ranccedilo mesmo entre literatos e afastando possiacuteveis leitores por entre as deacutecadas

Ulysses foi um (anti)romance aclamado ainda que tambeacutem tenha tido uma

recepccedilatildeo controversa e resultado poucos anos depois de sua publicaccedilatildeo em

uma seacuterie de processos contra Joyce e na proibiccedilatildeo de sua circulaccedilatildeo nos

Estados Unidos e no Reino Unido sob a acusaccedilatildeo (hoje risiacutevel) de conter

pornografia Tambeacutem significou uma reviravolta naquilo a partir de que se definia

mesmo um ldquoromancerdquo suscitando hesitaccedilatildeo impaciecircncia e reprovaccedilatildeo mas

acabou por selar a fama de Joyce em vida traduzida inclusive em alguma

seguranccedila financeira mesmo que temporaacuteria

32

No caso de Finnegans wake no entanto a sua fama paradoxalmente foi

o motivo de seu relativo ostracismo Quando jaacute estava viuacuteva Nora Barnacle que

natildeo se interessava tanto por literatura e natildeo se sentia exatamente atraiacuteda pela

convivecircncia com artistas tampouco por conversas literaacuterias aleacutem de

eventualmente deixar Joyce magoado por natildeo ler o que ele escrevia chegou a

perguntar a Maria Jolas ldquoPor que falam tanto no Ulysses O Finnegans wake eacute

o livro importante Quando eacute que vocecirc e Eugene vatildeo escrever sobre elerdquo

(ELLMANN 1989 p 912) Como eacute sabido ateacute mesmo contemporacircneos

entusiastas da obra joyciana que natildeo lhe poupavam elogios tiveram opiniotildees

controversas a respeito da obra de maacutexima radicalidade na qual Joyce teria

conseguido engendrar uma inovaccedilatildeo tanto formal quanto de conteuacutedo ainda

maiores do que em suas produccedilotildees anteriores

Seu irmatildeo mais novo Stanislaus Joyce (1884-1955) com quem mantinha

contato e se correspondia mesmo com as constantes mudanccedilas de residecircncia

entre paiacuteses escreveu-lhe em 1924 dizendo que havia lido ldquoseu romance ainda

sem nome na transatlantic reviewrdquo (Ibid p 712) Reitera que em geral gosta

muito do predecessor Ulysses ainda que natildeo tenha paciecircncia nem humor para

alguns trechos mas aponta que haacute uma ou outra parte ldquoinesperadamente ternardquo

e comovente Sobre o Finnegans wake no entanto a impressatildeo eacute outra e lhe

parece que muitos agora o elogiam por bajulaccedilatildeo deixando Joyce mimado

demais Cita um artigo de Ford Madox Ford cuja leitura foi indicada a ele pelo

irmatildeo em que Ford sugere que se encare o Work in progress ldquocomo um ritmo

nonsense e que o leitor deveria abandonar-se ao seu balanccedilordquo No entanto

Stanislaus natildeo parece se convencer ldquoTenho certeza embora o artigo pareccedila ter

a sua aprovaccedilatildeo de que ele fala sem saber o que dizrdquo (Ibid p 713) Por sua

vez afirma que natildeo entendeu muito do que leu tampouco se interessou

verdadeiramente Citando a publicaccedilatildeo de Herbert Gorman James Joyce The

first forty years (1924) que atribui a Joyce ldquoa uacuteltima palavra em literatura

modernardquo elucubra que isso talvez signifique algo mais literal e escatoloacutegico

para a literatura

33

Pode ser a uacuteltima palavra noutro sentido a insensata erracircncia da literatura antes de sua extinccedilatildeo final Natildeo que eu imagine que a literatura vaacute morrer algum dia enquanto os homens falarem e escreverem Mas podem cessar de ler ou pelo menos de ler tais coisas Eu de minha parte natildeo leria mais que um paraacutegrafo daquilo se natildeo conhecesse vocecirc () Por que vocecirc continua inteligiacutevel e sincero nos versos Se a literatura deve se desenvolver ao longo das linhas de sua obra mais recente ela certamente se tornaraacute como Shakespeare aludiu haacute seacuteculos passados algo parecido com nada (Ibid pp 712-713)

Aleacutem da jaacute exposta incompreensatildeo eou desinteresse que os excertos de

Finnegans wake causaram nos leitores mesmo naqueles que eram proacuteximos de

James Joyce e que jaacute nutriam admiraccedilatildeo por seu trabalho o que nos chama a

atenccedilatildeo eacute a reflexatildeo direta de Stanislaus mdash que era assim como o irmatildeo mais

velho um literato mantinha anotaccedilotildees sobre literatura e arte e escreveu trecircs

livros sobre Joyce Dublin e literatura dois deles publicados postumamente mdash

ao deparar-se com a existecircncia daquele texto sobre o proacuteprio destino da

literatura A maneira como ele enxerga a radicalidade de Finnegans wake lhe diz

que se ela passasse a ser constituiacuteda cada vez mais por obras como essa

poderia ter a sua existecircncia ameaccedilada ou ao menos os seus pilares fortemente

balanccedilados Levantando a hipoacutetese de que o nuacutemero de leitores diminuiria cada

vez mais atribui a culpa da ldquotendecircncia ao nadardquo ao proacuteprio texto afastando as

pessoas por sua aridez Natildeo se trata simplesmente de uma mudanccedila no

entendimento de gecircnero nem de inovaccedilotildees estruturais e formais (que

demonstrariam uma contribuiccedilatildeo ou uma destruiccedilatildeo parcial ainda dentro da

literatura) de alguma maneira Finnegans wake ou acabaria com a literatura ou

ficaria agrave margem dela

Joyce poreacutem tinha a consciecircncia de que seu projeto inevitavelmente

envolvia um caraacuteter em algum niacutevel obscuro ou embaccedilado certamente de difiacutecil

compreensatildeo imediata mas confiava com algum otimismo na possibilidade de

que os leitores atravessariam as dificuldades do texto e admirariam o que ele

sistematizou Dizia claramente que ldquoo mundo da noite natildeo pode ser representado

na linguagem diurnardquo e ldquoPara Claud Sykes insistiu ldquoEacute tudo tatildeo simples Se

algueacutem natildeo entende uma passagem tudo o que precisa eacute ler em voz altardquo (Ibid

p 729)

34

Natildeo parecia concordar portanto com a preocupaccedilatildeo que alguns lhe

expressavam a respeito do caraacuteter ou mais ou menos literaacuterio de sua obra Ao

contraacuterio parecia entender que sim era uma obra muitiacutessimo distinta mas que

trazia consigo algo de grandioso por si e em si natildeo necessariamente grandioso

pela razatildeo de quebrar paradigmas muito menos o iniacutecio de uma ldquonovardquo literatura

toda pautada em seu estilo Augusto de Campos em ldquoOutras palavras sobre

Finnegans wakerdquo aponta a reaccedilatildeo do escritor irlandecircs a essas provavelmente

inesperadas criacuteticas de seu digamos ex-admirador (termo um tanto forte poreacutem

relativamente fiel ao que aconteceu) Ezra Pound bem como sua defesa diante

das acusaccedilotildees de ininteligibilidade

Mas Joyce natildeo se deixou desencorajar pelas objeccedilotildees de Pound (ao qual replicou obliquamente com trocadilhos e alusotildees no proacuteprio Finnegans wake) ldquoEacute possiacutevel que Pound tenha razatildeordquo escreveu a Harriet Shaw Weaver em 1927 ldquomas eu natildeo posso voltar atraacutesrdquo Como esclarece Forrest Read o escritor se defendia das acusaccedilotildees de obscuridade que lhe faziam agrave eacutepoca argumentando ldquoUma grande parte da existecircncia dos seres humanos se passa em um estado que natildeo pode ser tornado sensiacutevel pelo uso da linguagem lsquode olhos abertosrdquo uma gramaacutetica preacute-fabricada um enredo linear (CAMPOS 2001 p 195)

Por mais complexo que seja o texto de Joyce e por mais controversa que

tenha sido a sua recepccedilatildeo o supracitado guia A skeleton key de Joseph

Campbell e Henry Morton Robinson foi publicado apenas cinco anos depois da

publicaccedilatildeo integral de Finnegans wake demonstrando leitura de consideraacutevel

aprofundamento vertical e a percepccedilatildeo de inuacutemeras referecircncias presentes na

obra em um periacuteodo relativamente curto de tempo Na introduccedilatildeo denominada

ldquoIntroduccedilatildeo a um assunto estranhordquo (que foi traduzida para o portuguecircs por

Augusto de Campos e publicada na ediccedilatildeo mais recente do Panaroma do

Finnegans wake de 2001) os autores de A skeleton key alertam o leitor ingecircnuo

ou temeroso a respeito do que se encontraraacute na obra magna de Joyce sem

negar a existecircncia de algumas dificuldades nesse percurso Apontam

explicitamente para o terreno aacuterido com que se defrontaraacute o leitor conseguem

fazecirc-lo poreacutem de forma que apesar da honestidade ao dizer e ao pesar os

35

obstaacuteculos prevaleccedila um tom positivo e mesmo uma espeacutecie de convite direto

a essa jornada literaacuteria incomparaacutevel sobre a qual escolheram desenvolver um

estudo de alguma maneira democratizador

O vasto desiacutegnio e a intrincada estrutura de Finnegans wake datildeo ao livro um aspecto proibitivo de impenetrabiidade Agrave primeira vista parecemo-nos defrontar com uma selva densa e enganosa iacutenvia e recoberta por luxuriantes perversidades de forma e linguagem () Empreita a imaginaccedilatildeo exige disciplina e tenacidade dos que querem segui-lo na aventura Contudo algumas das dificuldades desaparecem desde que um leitor bem disposto encontre alguns pontos cardeais e acerte o rumo Entatildeo o imenso mapa de Finnegans wake comeccedila lentamente a desdobrar-se emergem as figuras e os motivos os temas tornam-se reconheciacuteveis e o ouvido vai-se familiarizando cada vez mais com o vocabulaacuterio de Joyce Natildeo se espere alcanccedilar um entendimento completo num primeiro e aacutevido embate na verdade pode-se natildeo lograacute-lo nunca (CAMPBELL ROBINSON 2001 p 152)

Joyce ouviu mais de uma vez que sua obra final natildeo era ou natildeo fazia parte

da literatura Pelo menos duas dessas ocorrecircncias estatildeo documentadas em sua

biografia como duas ocasiotildees em que o parecer foi quase idecircntico A primeira

foi na leitura de um fragmento frente a um grupo pequeno de amigos em que

tendo sua opiniatildeo requisitada por Joyce a irlandesa Mary Colum respondeu

ldquoJoyce eu acho que isso estaacute fora da literaturardquo (ELLMANN 1989 p 782) Na

outra ocasiatildeo figura uma inglesa que nos permanece anocircnima Ela ouviu Joyce

lendo um trecho e supostamente disse apenas ldquoIsso natildeo eacute literaturardquo Segundo

registra o bioacutegrafo Richard Ellmann Joyce respondeu ldquoFoirdquo ldquoquerendo dizer que

fora enquanto ela escutavardquo (Ibid p 865)

O problema natildeo estaacute no texto de James Joyce mas no que se espera de

um texto literaacuterio Propor uma nova focircrma no entanto parece-nos inuacutetil porque

natildeo estamos pensando somente no que abarcaria Finnegans wake afinal que

formatos abarcam a literatura Se inventaacutessemos os moldes sob medida apoacutes

uma extensa pesquisa e numerosas releituras natildeo teriacuteamos nada aleacutem de um

molde natildeo para ldquoliteraturardquo mas para o Wake Quando nos propuseacutessemos a ler

qualquer outra obra literaacuteria eacute certo que nos deparariacuteamos com outras

36

dificuldades e entatildeo o molde jaacute estaria inutilizado novamente Tentaremos

entatildeo operar a leitura que natildeo busca generalidades ou padrotildees nem constroacutei

guias idealmente universais Eacute claro que produzindo uma dissertaccedilatildeo e

investigando a relaccedilatildeo entre o que a teoria espera do livro e o que o livro entrega

agrave teoria esse intercacircmbio seraacute em alguma medida necessaacuterio no entanto o

ponto central natildeo eacute ler o Wake a partir de alguma teoria ou a partir de algueacutem O

meacutetodo aqui parte do lanccedilar-se ao texto ler Finnegans wake Ponto Meacutetodo

antimetoacutedico

Conta-se que James Joyce disse ldquocom um sorriso cacircndidordquo para o poeta

e ativista americano Max Eastman (1883-1969) ldquoA exigecircncia que faccedilo para o

meu leitor eacute que ele devote sua vida inteira a ler meus livrosrdquo (ELLMANN 1989

p 865) Relevando-se o possiacutevel exagero da expressatildeo ldquodevote sua vida inteirardquo

ainda que se referisse certamente agrave crescente complexidade que suas obras

apresentavam Joyce gostava mais de saber que era lido do que de

necessariamente ser elogiado ainda que a incompreensatildeo o desanimasse (e

que ser lido por mais pessoas significasse um risco maior de ser

incompreendido) Outra frase ainda mais hiperboacutelica eacute a famosa definiccedilatildeo de

leitor ideal que seja aquele que ldquosofra de uma insocircnia idealrdquo (Id)

Um possiacutevel pedantismo por traacutes do tom jocoso eacute anulado por diversas

outras declaraccedilotildees como as que se referem a Finnegans wake como tatildeo

somente um livro divertido mdash o oposto do que a famosa declaraccedilatildeo de que foi

escrito ldquopara manter os criacuteticos ocupados por trezentos anosrdquo (Id) ldquoEu sou

apenas um palhaccedilo irlandecircs um grande piadista do universordquo disse certa vez

ao escritor francecircs Jacques Mercanton (1910-1996) e respondendo a uma

pergunta de Terence White Gervais (1913-1968) sobre o Wake ter niacuteveis de

significado disse ldquoNatildeo natildeo Eacute feito para fazer vocecirc rirrdquo (Id) Qualquer que seja

a funccedilatildeo proeminente no Wake seja a de divertir seja a de ocupar criacuteticos mdash ou

ambas mdash parece-nos absolutamente incogitaacutevel que qualquer autor que

trabalhe por anos a fio em uma obra prefira natildeo ser lido e eacute acima de tudo o

compromisso de lermos Finnegans wake aquilo com que nos comprometemos

aqui

37

O ponto central dessa tentativa se desenlaccedila em torno da questatildeo do

tempo tomando-o natildeo apenas como instacircncia literaacuteria mas tambeacutem filosoacutefica

perpassando discussotildees da metafiacutesica de diversas eacutepocas tambeacutem sem a

concentraccedilatildeo no conceito de tempo para algum filoacutesofo especiacutefico A escolha

desse tema se justifica facilmente para aqueles que sabem um pouco sobre

como Joyce concebeu sua uacuteltima obra sabendo da relevacircncia da filosofia do

italiano Giambattista Vico em sua construccedilatildeo com a ideia de temporalidade

constituiacuteda pela divisatildeo de trecircs Idades mais o ricorso bem como sobre a

problemaacutetica de se entender a cronologia da narrativa (ainda veremos se eacute

possiacutevel falar em ldquocronologiardquo e mesmo em ldquonarrativardquo) Ainda assim

pretendemos investigar para aleacutem do paradigma de Vico talvez vislumbrando o

que impede afinal que Finnegans wake seja encarado como qualquer outra

obra literaacuteria ou apenas como mais uma obra literaacuteria difiacutecil como outras

tambeacutem o satildeo Note-se aqui a diferenccedila entre um livro qualquer e um livro como

qualquer outro natildeo eacute que o desejado seja considerar Finnegans wake como um

livro qualquer eacute claro Mas que seja considerado pelo menos legiacutevel e divertido

como Joyce o considerou e tantos leitores tambeacutem o consideram ao inveacutes de se

perpetuar como um mito de livro que nunca eacute lido e pior como um livro

defeituoso jaacute que natildeo facilmente compreendido segundo os moldes da teoria

literaacuteria O que percebemos eacute que talvez ele seja considerado de difiacutecil

compreensatildeo especialmente nos casos em que o leitor o encara tendo uma seacuterie

de expectativas relacionadas a uma visatildeo tradicional de literatura assim como

acontece tambeacutem de uma outra maneira com Ulysses

Se confirmamos a hipoacutetese de que seja possiacutevel e ateacute mesmo desejaacutevel

uma ruptura dessas expectativas ou ao menos uma maior libertaccedilatildeo delas pode

ser que se torne finalmente possiacutevel que mais leitores ganhem um novo desafio

de leitura que poderatildeo constatar como efetivamente repleto de fruiccedilatildeo natildeo

apenas de operaccedilatildeo cognitiva casmurra e tediosa A isso se combina a ideia de

literatura concebida por Maurice Blanchot evocada em Escritura do retorno

Mallarmeacute Joyce e o meta-signo a respeito dela como experiecircncia-limite ldquoLer

no espaccedilo literaacuterio blanchotiano eacute compreender as variaccedilotildees de um devir mdash

sempre futuro do leitor mdash como uma vicissitude do tempo que eacute a proacutepria obrardquo

38

(EYBEN 2012 p 242) Nessa concepccedilatildeo a leitura eacute ldquouma escritura

interminaacutevel vertigem da noccedilatildeo de espaccedilordquo (Ibid p 243) A leitura com a qual

afirmamos assumir um compromisso eacute inscrita nesse entendimento escritural

em que ler natildeo eacute simplesmente decodificar evidentemente mas tambeacutem natildeo eacute

realizar uma hermenecircutica uma busca por verdade do texto e nem uma

facilitaccedilatildeo do desbravamento do texto joyciano que se apresenta de uma forma

especiacutefica a cada leitora mdash e inclusive a cada leitura no sentido de fazer-se

sempre novo

2 Sui generis

O questionamento sobre o gecircnero que muito recorrentemente se impotildee

constitui uma problemaacutetica jaacute levantada desde Ulysses e seu tal caraacuteter de

antirromance15 A dificuldade de inserir Finnegans wake em uma definiccedilatildeo desse

tipo eacute absolutamente clara e redundantemente lembrada O ponto mais perigoso

das investigaccedilotildees dessa natureza eacute o fato de que esse alhures inominado em

que se insere a obra final joyciana pode induzir o candidato a leitor agrave armadilha

de rejeitaacute-la ou diminui-la pelo que ela tem de avesso agraves possibilidades de

categorizaccedilatildeo mdash assumindo absurdamente a teoria como a entidade regente

superior agrave mateacuteria sobre a qual se teoriza Com esse entendimento natildeo raro

consideram-se as obras meros objetos que se natildeo se sujeitam a alguma focircrma

e nem satildeo capazes de gerar novas categorias devem por essa loacutegica ter algo

de mal estruturado ou tecircm melhor destino sendo ignoradas Isso

ocasionalmente se daacute entre teoacutericos da literatura de forma relativamente

anaacuteloga ao que acontece quando gramaacuteticos consideram o conjunto de regras

da gramaacutetica normativa de um idioma como aquilo que rege e direciona o que

deve ser levado em conta na liacutengua ignorando que esse conjunto de regras eacute

na verdade obviamente restrito e derivado em percurso convencional da mateacuteria

15 O termo que aqui usamos pela segunda vez (a primeira com o prefixo entre parecircnteses) parece ser posterior a Joyce Deriva de anti-roman (francecircs)anti-novel (inglecircs) De qualquer maneira soacute sintetiza o que jaacute se dizia sobre o romance ter acabado com Ulysses Joyce natildeo deve ter sido o primeiro autor a suscitar esse tipo de comentaacuterio o mesmo se disse de outras maneiras de Gustave Flaubert e Henry James

39

que o precede Sendo uma liacutengua algo mais amplo variado e mutaacutevel do que a

gramaacutetica normativa jamais conseguiraacute abarcar mesmo em seus mais

longamente descritivos iacutempetos eacute uma insanidade sobrepor a ela a

normatizaccedilatildeo assim como tambeacutem eacute insensato desconsiderar Finnegans wake

pelo que tem de inclassificaacutevel mdash ou dir-se-ia de indomaacutevel incompreensiacutevel

inacessiacutevel mdash algo que muito frequentemente se deu desde o iniacutecio da

publicaccedilatildeo de seus fragmentos como Work in progress

Enquanto Ulysses eacute o livro do dia Finnegans wake eacute o livro da noite com

sua linguagem oniacuterica permeada de ambiguidades e incertezas e seus

caminhos tortuosos Como Joyce dizia ldquoEacute natural que as coisas natildeo sejam tatildeo

claras agrave noite natildeo eacuterdquo (CAMPOS 2001 p 196) Como uma consequecircncia

inevitaacutevel classificar o Wake em um gecircnero literaacuterio mostra-se um desafio mdash ou

talvez um esforccedilo dispensaacutevel que nada acrescentaria agrave compreensatildeo da obra

Haroldo de Campos lanccedila possibilidades criativas de referecircncia classificatoacuteria

com os termos ldquoprosapoesiardquo (CAMPOS 2001 p 29) e ldquoromance-riordquo (Id p 27)

tambeacutem usado por Donaldo Schuumller ldquoPor flores e por floras por faunos e por

faunas por vidas e por vias flui Finnegans wake o romance e o rio o romance-

riordquo (SCHUumlLER 2004 p 15) (Eacute curioso notar uma outra possibilidade de grafia

para esse uacuteltimo termo inventado considerando que a opccedilatildeo pela duplicaccedilatildeo da

letra ldquorrdquo poderia remeter mais imediatamente agrave bela palavra que abre o fragmento

nuacutemero 1 de Finnegans wake optando por como Joyce fazia quase sempre

dispensar o uso de hifens mdash riverrun ou riocorrente na traduccedilatildeo feita por

Augusto de Campos e rolarriuanna na de Schuumller)

Respostas a essa problemaacutetica satildeo dadas no proacuteprio texto de James

Joyce mdash e devem ser entendidas sempre nesse mesmo lugar Uma possiacutevel

afirmaccedilatildeo concisa a respeito de tantos questionamentos entre eles o de gecircnero

o de literatura e o de cacircnone estaacute em uma frase relativamente curta ldquothis is nat

language at any sinse of the worldrdquo (FW 8312)16 Joyce condensou aiacute tanto a

afirmaccedilatildeo de que ldquoistordquo natildeo eacute linguagem em nenhum sentido do termo quanto a

de que natildeo eacute linguagem em parte nenhuma do mundo e ainda de que eacute

16 ldquoIsso eacute linguagem-noite em qualquer sentido do univerbordquo

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linguagem noturna com ldquonatrdquo lembrando ldquonoiterdquo night (inglecircs) nacht (alematildeo)

ldquoworldrdquo entre palavra e mundo foi genialmente traduzido por Donaldo Schuumller

como ldquouniverbordquo Confirma-se assim tanto o estatuto noturno que acompanha

uma incerteza da escuridatildeo mdash vemos significantes como vemos silhuetas e

sombras que nos situam gerando incerteza mdash quanto a temporalidade da noite

que se resvala em madrugada indefinida que eacute a vastidatildeo do breu em que tanto

espaccedilo quanto tempo satildeo dotados dessa qualidade vasta e ao mesmo tempo

fosca confirma-se ainda a linguagem que natildeo eacute a linguagem que se espera em

nenhum sentido do univerbo o proacuteprio livro se afirma como uma suposta natildeo-

linguagem que eacute simplesmente uma linguagem de caraacuteter proacuteprio afirmado

como algo noturno que se contamina e se faz pelas possibilidades de labirintos

oniacutericos

De forma geral esse desprezo do cacircnone ou espeacutecie de pouco caso com

Finnegans wake eacute carregado de conclusotildees precipitadas e diga-se desistecircncias

raacutepidas Os leitores minguam como se o texto natildeo merecesse atenccedilatildeo natildeo

merecesse leitura Hipoacuteteses de que seja uma grande piada ainda se mantecircm

Como afirmaram em 1944 os pioneiros Joseph Campbell e Henry Morton

Robinson quando Finnegans wake foi publicado integralmente isto eacute cinco

anos antes

lsquoWhat does it all meanrsquo rsquoWhy should we bother about a book so hard to readrsquo were questions quite generally asked Even normally responsive readers dismissed the book as a perverse triumph of the unintelligible17 (CAMPBELL ROBINSON 2005 p xxi)

No entanto ainda que somente mais de vinte anos depois o estudioso norte-

americano tambeacutem pioneiro na incursatildeo profunda ao Finnegans wake William

York Tindall afirma ldquoEverything in the Wake has meaning definite limited by a

frame or immediate context and discoverable Our danger (hellip) Is too much

17 ldquolsquoO que isso tudo significarsquo lsquoPor que deveriacuteamos nos ocupar com um livro tatildeo difiacutecil de ser lidorsquo eram perguntas feitas frequentemente Ateacute mesmo os leitores normalmente interessados desprezaram o livro como um triunfo perverso do ininteligiacutevelrdquo (CAMPBELL ROBINSON 2005 p xxi)

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ingenuityrdquo18 (TINDALL 1969 p 22) James Joyce engendra uma obra calcada

em racionalidade e enquadramento meticuloso de cada detalhe em uma

estrutura com criatividade ininterrupta e esse controle eacute visiacutevel ainda que resulte

em uma obra inclassificaacutevel e ainda que o resultado gere comentaacuterios que a

relacionem ao completo caos e a uma ideia de puro nonsense O que Tindall

aponta como o risco maior natildeo eacute note-se que o leitor talvez natildeo entenda o livro

ou natildeo veja alguma referecircncia mas sim que seja ingecircnuo diante da existecircncia

de possibilidades no texto e o tome por puro fingimento de quebra-cabeccedila

As dificuldades satildeo evidentes o susto ou a antipatia causada pelo Wake

ultrapassou o passar dos anos Mesmo os leitores mais proacuteximos de entendecirc-lo

tiveram suas dificuldades resistecircncias e uma infinidade de criacuteticas diante dele

Como ler entatildeo hoje uma obra como Finnegans wake Estaacute aiacute para ser lida ou

para ser rejeitada tida como uma piada para manter criacuteticos ocupados ou como

exemplo do funcionamento da linguagem em uma mente esquizoide Exige-nos

uma postura diferenciada Estaacute dentro ou fora da literatura mdash ou eacute na verdade

sua ameaccedila

Haacute talvez um grande conjunto de duas maneiras grosso modo de se

encarar o texto literaacuterio ou uma obra de arte qualquer primeiro sentindo que

conseguimos extrair uma finalizaccedilatildeo de nossa leitura ou ao contraacuterio na

segunda maneira sentimo-nos grave e verdadeiramente impotentes ao sequer

cogitar essa possibilidade De forma geral haveria assim uma bifurcaccedilatildeo de

duas distintas e abrangentes escolas ou caminhos sendo aquela que daacute uma

interpretaccedilatildeo fixa considerada correta ou superior a vertente mais obsoleta Os

perigos da segunda no entanto satildeo tambeacutem apontados com frequecircncia natildeo se

pode dizer tudo e qualquer coisa dizem O receio de uma espeacutecie de perigosa

autotelia que desestabiliza o mais tradicional corpus hermenecircutico se instala

entre as duas extremidades bifurcadas pontas de diferentes abordagens que

natildeo somente lidam com o texto de maneiras antagocircnicas mas ainda e por isso

mesmo partem de noccedilotildees igualmente opostas da proacutepria ontologia de uma obra

18 Traduccedilatildeo livre do trecho de Tindall ldquoTudo no Wake tem um significado definido limitado por uma moldura ou contexto imediato e passiacutevel de ser descoberto Nosso risco eacute o excesso de ingenuidaderdquo

42

de arte Sendo a primeira vertente bastante autoexplicativa esgotando-se

facilmente qualquer tentativa de discorrer sobre ela poderiacuteamos abordar direto

o problema indicado na segunda de que tudo poderia ser dito na abertura

absoluta e desgovernada que descentraliza as interpretaccedilotildees da obra em uma

descentralizaccedilatildeo e horizontalidade total (e vejamos se eacute isso mesmo o que

ocorre) considerando no caso o texto literaacuterio e especificamente o Wake

aquele que poderia ser acusado de ser um dos textos mais anaacuterquicos e

ameaccediladores do seacuteculo XX

Em primeiro lugar dir-se-ia que o texto natildeo se termina

O texto que natildeo se termina significa tanto um texto que natildeo acaba quanto

um texto que noacutes natildeo terminamos de ler e ainda um texto que natildeo finalizamos

sendo impossiacutevel dar-lhe qualquer ultimato interpretativo Isso natildeo se reduz a

um caraacuteter interminaacutevel condicionado pela leitura uacutenica que cada leitor com seu

aparato psicoloacutegico e experiecircncia que lhe satildeo inerentes executa ao se deparar

com o texto Tampouco diz respeito somente a uma seacuterie de releituras feitas em

diferentes momentos histoacutericos de modo que Machado de Assis tenha sido

reinterpretado com o passar do tempo etc A infinitude de que se trata aqui natildeo

se refere a esse tipo de desdobramento ainda que natildeo os anule nem os negue

como processos naturais da presenccedila do texto em diferentes eacutepocas e sob

diferentes olhos

Se natildeo eacute entatildeo um desses fatores externos o que insere o texto no tempo

da infinitude poderiacuteamos inferir que seja assim alguma caracteriacutestica interna

No entanto faltam-nos dados mdash ou pior evidecircncias mdash de que seja possiacutevel a

separaccedilatildeo como se faria digamos entre textos primaacuterios e secundaacuterios ou

qualquer procedimento semelhante Soacute que isso potencialmente nos colocaria

sob o constrangimento de admitir que natildeo haacute obras de arte pois elas estariam

por toda a parte potencialmente tudo conteria a infinitude Tudo seria arte como

lidar com essa possibilidade que parece destruir as fronteiras de definiccedilatildeo entre

aquilo que eacute e o que natildeo eacute um objeto de apreciaccedilatildeo ou de estudo

43

Desfaccedilamos alguns passos Se natildeo considerarmos o texto em sua

projeccedilatildeo ao infinito isto eacute se admitirmos entatildeo que ele desemboca em uma

interpretaccedilatildeo e assim deteacutem atinente uma exegese fechada somos obrigados

a exploraacute-lo em busca de sua verdade Cada leitura investigativa seria como um

caminho para fora da caverna platocircnica estariacuteamos cada vez mais proacuteximos das

ideias Da mesma maneira que o caminho de acesso agrave episteacuteme natildeo rejeita o

mundo do familiar e da doacutexa mas em verdade confronta-se com as sombras

para nelas alcanccedilar a luz o contato com o texto de uma maneira insistente e

atenta desvelaria eventualmente sua verdade a despeito de qualquer aparato

teoacuterico-criacutetico com que qualquer leitor pudesse contar nessa varredura Nesse

sentido uma experiecircncia com o texto seria suficiente

Sabemos no entanto que interpretaccedilotildees unas natildeo nascem assim De

forma geral vecircm de fora para dentro de cima para baixo de maneira imposta e

consagrada por convenccedilotildees ou argumentos de autoridade A experiecircncia com o

texto traz agrave tona em geral alguns poucos consensos uma dose de subjetividade

e havendo consonacircncia teoacuterico-critica eventuais conclusotildees convergentes

quanto aos aspectos mais superficiais do texto em especial aqueles

relacionados agraves categorias mais estanques da forma Ainda assim nem sempre

haacute consenso mesmo nesse campo Gecircneros textuais podem parecer categorias

fortemente imisciacuteveis mas frequentemente natildeo satildeo facilmente definidas

Finnegans wake eacute justamente uma obra cujo gecircnero jamais foi definido mdash

ou (in)definido como sui generis mdash que sequer traz consigo roacutetulo evidente de

prosa ou de poesia Augusto de Campos expressa esse dilema de maneira

sinteacutetica com os neologismos ldquoprosoemardquo ldquoromance-riordquo ldquoromancepoemardquo

Esse noacute se alastra considerando que Wake natildeo se encaixa em um gecircnero uma

seacuterie de assunccedilotildees a seu respeito natildeo pode ser feita tatildeo facilmente e

possivelmente caem por terra A fuga de um conceito fechado assim em efeito

dominoacute acaba por impossibilitar uma seacuterie de inferecircncias que dele naturalmente

decorreriam assim como o contraacuterio tambeacutem se daacute com a fixaccedilatildeo de uma

categoria que consequentemente baliza tantas outras de imediato seja a

respeito da extensatildeo da forma da qualidade das potencialidades sonoras e

semacircnticas etc Se um texto eacute composto de versos eacute certamente um poema

44

tem estrofes possivelmente um esquema de rimas controlado se for um soneto

temos ainda mais inferecircncias prontas para serem testadas inclusive a respeito

do conteuacutedo se eacute conto eacute menor do que se for romance e assim por diante

Um texto inclassificaacutevel se apresenta dessa maneira jaacute de partida como

um problema em si uma fonte de inquietaccedilatildeo interminaacutevel ou que natildeo cessa

tatildeo rapidamente Mateacuteria para manter criacuteticos ocupados por anos como

profetizou o proacuteprio Joyce Corre o risco certamente de ser condenado para

fora da literatura mdash por natildeo caber nela natildeo ser contemplado em suas barreiras

Se o esquema existente natildeo o conteacutem comumente se supotildee a existecircncia de

defeito no texto natildeo uma possiacutevel limitaccedilatildeo das categorias que se consolidaram

para sua interpretaccedilatildeo O conservadorismo expulsa o que ameaccedila a tradiccedilatildeo por

preferir deixar de lado uma obra a implodir um sistema que abarca tantas outras

com seguranccedila e conforto Eacute instaurada uma problemaacutetica mesmo a partir do

ponto de confronto que eacute uma leitura na medida em que o leitor se espanta

diante do texto literaacuterio como discorre Piero Eyben em Escritura do retorno

Antes o texto joyceano torna-se pela falta repulsivo em sua intransitividade Natildeo haacute leitor que se veja nele identificado como completude Sua estrutura inacabada faz da verdade identitaacuteria uma falaacutecia De modo que o desvio o reveacutes de sua leitura nos leva a uma significacircncia zeroloacutegica na qual todo sujeito se anula e torna-se apenas membro da obra que este interpreta como significantes () A linguagem do inacabamento seria uma linguagem da falta pois coloca no caput o sem-cabeccedila (EYBEN 2012 p 610)

Rejeita-se o texto por saber que lhe impor uma interpretaccedilatildeo qualquer

seria gritantemente descabido Uma leitura de Finnegans wake que busque e

defina sua trama por exemplo encaixando no tempo no espaccedilo nos

personagens (protagonistas antagonistas) nos narradores e em todas as

categorias da narrativa uma seacuterie de respostas imutaacuteveis necessariamente

berraria sua artificialidade Para que se leia o texto como eacute sem distorcecirc-lo com

planificaccedilotildees simplificaccedilotildees e cerceamentos deve-se despi-lo das forccedilas que o

comprimem Somente assim se pode ler o texto como ele se apresenta

45

respeitando sua integridade Deve-se entatildeo ir agrave leitura esperando nada menos

que o infinito

Lembramos aqui o que diz Jacques Derrida em ldquoDuas palavras por Joycerdquo

Eacute com este sentimento poderia dizer com este ressentimento que devo estar lendo Joyce haacute muito tempo () Mas natildeo sei se podemos dizer ldquoeu leio Joycerdquo como acabei de fazer Naturalmente soacute podemos ler Joyce quer saibamos disto ou natildeo Eacute a sua forccedila Mas os enunciados do tipo ldquoleio Joycerdquo ldquoleiam Joycerdquo ldquovocecirc jaacute leu Joycerdquo sempre me pareceram cocircmicos irresistivelmente (DERRIDA 1992 p 21)

Nessa mesma palestra de 1982 Derrida tambeacutem faz uma ldquosimplificaccedilatildeo

descabidardquo em duas grandezas Refere-se agraves maneiras de o autor deixar-se nos

arquivos de sua obra apagando-se quanto mais ela se faccedila presente Apesar de

ter sido proposto aqui o exame da outra ponta dessa relaccedilatildeo mdash a do leitor mdash a

primeira atitude de autor descrita por Derrida pode ser vista como anaacuteloga agrave

maneira de leitura que expusemos ligada a certezas e fincada em uma ideia de

verdade textual consiste naquele que ldquoescreve para darrdquo de maneira que a obra

se decirc a ponto de poder ser valorada ldquogostaacutevelrdquo ldquoamaacutevelrdquo (Ibid pp 19-20) e

diriacuteamos ainda acessiacutevel e possiacutevel A segunda atitude que Jacques Derrida

considera semelhante agrave de Joyce eacute a de hipermneacutesia em vez de acessarmos

uma materialidade pura de texto no esquecimento do autor vivemos em funccedilatildeo

de sua memoacuteria em meio a sua presenccedila

Se o texto se nos apresenta dessa maneira precisamos estar dispostos

a entender que ele nos escapa Fugidio se transforma em espectro Sair da

caverna natildeo eacute ir aleacutem dela nem deixaacute-la para traacutes no percurso o caminho

platocircnico eacute um modo de estar que adentra mais como o movimento que

pretende mergulhar no texto literaacuterio natildeo se trata de ultrapassaacute-lo mas de estar

cada vez mais inteiramente nele Nesse sentido confessa-nos Derrida ldquoSim a

cada vez que escrevo e mesmo nas coisas da academia um fantasma de Joyce

estaacute presente em minha abordagemrdquo (Ibid p 23) O entendimento de Jacques

Derrida de um caraacuteter espectral que ronde o texto atraveacutes da escritura eacute profiacutecuo

46

em uma seacuterie de anaacutelises aqui podemos ensaiar aproximaacute-lo de uma ideia de

temporalidade que pode ser retirada do proacuteprio Finnegans wake

3 Fluidez vida-morte

A mitologia egiacutepcia estaacute presente em quase todos os capiacutetulos de

Finnegans wake agraves vezes escondida entre nomes que assinalam muacuteltiplas

assinaturas mdash desfazendo portanto a proacutepria ideia de nome mdash- e engendrando

numerosas rasgaduras temporais No capiacutetulo 4 do livro I o ldquolivro dos paisrdquo

denominado por Campbell e Robinson ldquoHis demise and resurrectionrdquo o

desmantelamento dos nomes eacute especialmente profiacutecuo Em meio a isso

segundo Donaldo Schuumller ldquoO tempo cronoloacutegico se anula em favor de um tempo

natildeo medido por aparelhos tempo feito soacute de fluxos () Em julgamento estaacute

nossa cultura nossas certezas nosso vocabulaacuterio nossa maneira de dizer e de

narrarrdquo (2003 p 169) HCE eacute preso e logo o rio Nilo eacute evocado aproximando-o

de Osiacuteris logo torna-se personagem morto ldquoonce and for all out of plotty

existencerdquo (FW 7618) fora da ldquoexistecircncia narradardquo como aponta Schuumller

Podemos apontar aiacute uma espeacutecie de resumo de toda a literariedade de

Finnegans wake HCE eacute capturado e morre de certa forma para sempre se

morrer significa estar fora de uma certa narrativa natildeo estaraacute ausente poreacutem

por toda a eternidade O lugar onde jaz eacute construiacutedo por um arquiteto com nome

de cemiteacuterio parisiense Peurelachasse (Pegravere Lachaise) que condensa la peur

(medo em francecircs) e la chasse (a caccedila) pois natildeo eacute um natildeo-lugar dos mortos

ao contraacuterio a morte aqui eacute acontecimento que desemboca em diluacutevio que

retoma a forccedila vital O que seria um par de oposiccedilatildeo se (con)funde e tem sua

ambivalecircncia transformada (ou transtornada) vida e morte dia e noite paimatildee

e filho(a)(s) os irmatildeos Shem e Shaun (ao contraacuterio de oposiccedilotildees riacutegidas como

Caim e Abel Rocircmulo e Remo)

Como dissemos o capiacutetulo eacute rico em temporalidade despedaccedilada o

tempo eacute indicado de maneira antirrepresentativa sem que se possa calcular ou

mapear um momento a partir de suas referecircncias ldquoBest This wastohavebeen

47

underground heavenrdquo (FW 7633)19 Diferentes tempos verbais intercalados natildeo

somente plantam uma duacutevida mas efetivamente explicitam a impossibilidade de

definiccedilatildeo a fluidez entre os periacuteodos A morte mdash especialmente aquela que seraacute

seguida de ressureiccedilatildeo mdash perambula por presente passado e futuro ldquoBut abide

Zeitrsquos sumonserving rise afterfallrdquo (FW 787)20 Nesse excerto o tempo parece

ser espeacutecie de entidade burocraacutetica que controla o universo de Finnegans wake

garantindo que um ciclo seja cumprido A morte de Humphrey Chimpden

Earwicker bem como todos os seus corolaacuterios natildeo satildeo controlaacuteveis por seres

que controlem seu tempo e a sucessatildeo de acontecimentos de suas vidas o ciclo

mdash como nas disposiccedilotildees de Giambattista Vico mdash eacute inelutaacutevel e forccedila sua

continuidade a despeito das vontades Elucubraccedilotildees natildeo mudam as

necessidades do Zeit A fluidez eacute como a correnteza do rio que natildeo escolhe seu

direcionamento

Se frente ao texto um periacuteodo sequer puder ser lido de apenas duas

maneiras diferentes jaacute teriacuteamos aiacute dois textos inteiros tambeacutem completamente

distintos A semacircntica natildeo pode se encerrar a cada frase nem a cada termo

nem a cada trecho ou capiacutetulo ou seja o que for lemos o todo considerando que

todos os trechos estejam incessantemente interligados e interdependentes de

maneira que a totalidade do texto seja um organismo indissoluacutevel Quais as

chances assim de que um texto qualquer seja absolutamente riacutegido com

significados puramente literais que alcanccedilam seus alvos pontualmente sem

nenhuma borda nem fenda de significaccedilatildeo seja ele concebido como texto

literaacuterio desde o berccedilo ou natildeo

Em vez de concluir que haacute certos textos que rebeldes fogem das reacutedeas

do sistema literaacuterio e suas classificaccedilotildees determinantes tendemos muito mais a

enxergar que todo texto tem uma faiacutesca disseminativa dentro de si que

frequentemente eacute ignorada em leituras que o planificam em uma sequecircncia

palpaacutevel para as classificaccedilotildees agraves quais estamos acostumados que nos

aparecem como urgecircncias quando na verdade a urgecircncia eacute o proacuteprio texto Ele

demanda nossa leitura urge que nos deparemos com os textos como satildeo e que

19 ldquoBem Este subterracircneo foi-para-haver-de-ser-ceacuteu ()rdquo 20 ldquoMas aguardemos o requerimento do tempo despertar apoacutes-quedardquo

48

rejeitemos distorccedilotildees que parecem visotildees transluacutecidas e por isso nos mantecircm

confortaacuteveis O que o texto faz eacute nos tirar do conforto de nossa liacutengua e nos

lanccedilar a uma outra proacutepria dele mesmo se nos lanccedilamos agrave leitura sem buscar

categorias estanques podemos finalmente conseguir sair do que julgamos

concreto em direccedilatildeo ao que nos vem de espectral prismaacutetico ndash aquilo que natildeo

pode existir num tempo que natildeo seja o do porvir Qualquer presentificaccedilatildeo

estanque negaria essa situaccedilatildeo de promessa do futuro promessa que

permanece messianismo sem previsatildeo pois caso se concretize o porvir se

desmantela no cumprimento da promessa que eacute seu desaparecimento

Apaga-se por inteiro o suposto perigo de que no infinito qualquer coisa

que nada tem a ver com o texto possa ser dita ou acusaccedilatildeo da leviandade de

que assim tudo seja arte indiscriminadamente receios fraacutegeis e superficiais que

nos limitam a concepccedilotildees especiacuteficas de arte e nos afastam normativamente de

leituras que sejam um modo de estar no texto mdash e portanto efetivamente o

contraacuterio de sair dele ou de excedecirc-lo O problema na verdade reside em

subestimar as possibilidades de um texto muito mais do que em superestimar

qualquer rastro ou sombra do espectro escritural esvaindo-se aiacute a proacutepria

essecircncia do texto em troca de uma carapuccedila que o defina

Um porvir desfigurado e desfigurante faz do texto uma mateacuteria de

instabilidade nas matildeos do leitor O caraacuteter fantasmagoacuterico latente povoa a escrita

de escritura O caraacuteter espaccedilo-temporal do Wake nos leva para o caminho do

intertexto do subtexto de tudo que estaacute contido e condensado no uacutenico texto

que chamamos de Finnegans wake O que desmantela as certezas estaacute

anunciado desde o tiacutetulo haacute um veloacuterio um luto e um tempo da eternidade da

morte mas haacute o movimento de despertar acordar o reiniacutecio o ciclo se faz

novamente no sim que responde pela continuaccedilatildeo eterna natildeo pela finalizaccedilatildeo

Desde o tiacutetulo portanto temos a postura de leitura definida ler e reler Finnegans

wake sem cronograma sob o espectro de Joyce e da babelizaccedilatildeo das liacutenguas

sem delimitaccedilatildeo espaccedilo-temporal

O espectro tem relaccedilatildeo ainda com o que natildeo se materializa e por isso

natildeo pode ser visto com clareza Entre tantos temas e motivos recorrentes

49

recirculando por todo o Finnegans wake a visatildeo eacute um dos sentidos amplamente

explorados como tema e fonte de trocadilhos A elaboraccedilatildeo altamente

perfeccionista do aspecto foneacutetico de Wake eacute atribuiacuteda tambeacutem agrave apuraccedilatildeo da

audiccedilatildeo inevitaacutevel consequecircncia da cegueira causada pelo glaucoma e nos faz

recordar a recomendaccedilatildeo de Joyce de que se lessem os fragmentos em voz

alta para uma experiecircncia outra de leitura (ou para a experiecircncia) A gravaccedilatildeo

da reacutecita feita pelo proacuteprio autor do episoacutedio ldquoAnna Livia Plurabellerdquo ou ldquoALPrdquo

como ele chamava eacute uma reliacutequia de grandioso valor para estudiosos de sua

exiacutemia obra Em texto composto por tantos neologismos e em meio agrave

simultaneidade de idiomas de diversos troncos linguiacutesticos haacute diversos

caminhos e muacuteltiplas escolhas para a entonaccedilatildeo o ritmo e a pronuacutencia do texto

de Finnegans wake e essas satildeo decisotildees que devem ser feitas pelo leitor capaz

de vislumbrar a polissemia de cada sintagma por meio da leitura em voz alta

A necessidade de envolvimento do leitor ouvinte instrumentista ou

espectador na arte caracterizada como moderna eacute sempre decorrente de uma

autonomia que lhe eacute conferida propositalmente ou natildeo em certa medida frente

agrave obra que se mostra maleaacutevel e porosa a esse envolvimento O fato de que

Finnegans wake eacute uma obra que deliberadamente proporciona autonomia ao

leitor transparece em sua estrutura inclusive se considerarmos a decisatildeo

primeira de por onde comeccedilar pois o livro pode ser acessado a partir de qualquer

um de seus fragmentos a despeito da numeraccedilatildeo neles embutida Esta facilita

certamente a citaccedilatildeo o compartilhamento etc mas a ordem de leitura eacute lanccedilada

ao leitor mdash um engendramento crsquoest agrave vous de sobreposiccedilatildeo de estados natildeo

comunicaacuteveis de simultaneidade de possibilidades no engendrar de um

multiverso em detrimento de um universo

Em Obra aberta o teoacuterico italiano Umberto Eco estabelece fronteiras

fundamentais entre obras tradicionais e obras modernas referindo-se

propriamente a suas formas e concepccedilotildees fugindo de definiccedilotildees de cunho

meramente histoacuterico-diacrocircnico O ponto de partida basilar para essa divisatildeo eacute

o fator da ambiguidade como ausente no caso das obras claacutessicas ou moldadas

tradicionalmente ou presente no caso das obras de arte modernas Citando

Finnegans wake obra uacuteltima de James Joyce como paradigma de obra moderna

50

caracterizada como aberta segundo seus preceitos isso fica mais claro se for

colocada a seguinte pergunta relativamente simples de que trata o referido livro

ou dir-se-ia ldquosobre o querdquo eacute Finnegans wake

No caso de obras jaacute haacute muito tempo consideradas claacutessicas a resposta

pontual a essa pergunta eacute possiacutevel ao menos segundo Umberto Eco sem

acarretar muitos questionamentos estruturais No caso de uma opera aperta

como Finnegans wake no entanto a resposta pontual eacute impossiacutevel mdash ou melhor

eacute possiacutevel poreacutem sempre parcial e funcionando como gatilho para outros pontos-

problema que devem ser alinhados com a resposta escolhida Podemos ensaiar

possibilidades sobre o Wake afirmando por exemplo que o livro trata de luto ou

que eacute sobre julgamento ou sobre uma famiacutelia dublinense ou a respeito de sonho

e inconsciente ou que eacute um sonho do protagonista haacute diversas respostas e

nenhuma parece vir como satisfatoacuteria Cada uma delas deve implicar uma seacuterie

de definiccedilotildees estruturais mdash se a narrativa eacute um sonho deve haver algueacutem que

sonha se eacute o (possiacutevel) protagonista HCE quem sonha temos entatildeo um foco

narrativo definido Estabelecer poreacutem um foco narrativo cuja fonte se

estabelece no plano mental inconsciente tem implicaccedilotildees outras a respeito de

como defini-lo em seu estatuto de narrador e de personagem Assim eacute

necessaacuterio atentar-se ao fato de que cada afirmaccedilatildeo acarreta uma seacuterie de

outras consequecircncias

A indefiniccedilatildeo de elementos estruturantes da narrativa no entanto natildeo eacute

vaacutelida somente para uma obra extrema como Finnegans wake mas para

qualquer obra que se aplique ao paradigma estabelecido por Umberto Eco

Ademais destaca-se o papel do leitor na projeccedilatildeo semacircntica da obra natildeo do

ponto de vista do senso comum de que a subjetividade confere certo empirismo

interpretativo aberto a uma relatividade sem horizonte definido mas em sentido

um tanto mais fleumaacutetico de que a manipulaccedilatildeo do objeto interfere no resultado

do mesmo mdash quase como um experimento de Erwin Schroumldinger Satildeo por

conseguinte cabiacuteveis as analogias com o Livre de Steacutephane Mallarmeacute

(poe)moacutebiles a muacutesica aleatoacuteria de Luciano Berio (que produziu muacutesica

inspirada no livro Chamber music ou Muacutesica de cacircmara de Joyce) e de

Karlheinz Stockhausen A diferenccedila do envolvimento necessaacuterio do puacuteblico

51

apareceria para Eco portanto em um grau consideravelmente maior na obra de

arte moderna

Lembrando o que diz Samuel Beckett sobre o texto de Joyce o que

podemos destacar a respeito da maneira como se apresentaria um

acontecimento ao leitor em Finnegans wake eacute que isso na verdade

simplesmente natildeo ocorre ou ao menos natildeo em termos de uma cena contada

narrada como conhecemos A narrativa como a conhecemos em que uma cena

eacute mostrada contada ao leitor eacute substituiacuteda aqui pela proacutepria experiecircncia da cena

ou da coisa que seria descrita Ao inveacutes de contar uma cena daacute-se a mesma ao

leitor Natildeo se trata apenas de se desapegar do tipo de descriccedilatildeo realista

objetiva que presume distanciamento pois tambeacutem natildeo se trata do relato em

primeira pessoa subjetivo e por isso duacutebio na tentativa de explorar a psique

de uma personagem especiacutefica em suas contradiccedilotildees internas tentando acessar

a complexidade de sua consciecircncia Nenhuma dessas abordagens opostas seria

possiacutevel no Wake pois nele nem sempre se pode diferenciar as vozes do texto

mdash e nem sempre eacute preciso uma vez que natildeo haacute enredo que dependa desse

acompanhamento

4 Paralelos psicanaacutelise teoria da relatividade muacutesica

A disposiccedilatildeo estrutural de Finnegans wake em circularidade eacute o que

permite o acesso a partir de qualquer paacutegina e o leitor por sua vez tem

autonomia explicitamente garantida impelido a tomar uma decisatildeo no primeiro

acesso ao livro A circularidade no entanto e a numeraccedilatildeo dos fragmentos

sugerem uma ordem taacutecita mdash que natildeo pode ser simplesmente ignorada mas

natildeo deve ser vista tambeacutem como a uacutenica forma de leitura assim se engendra

o niacutevel de ambiguidade da obra Como em Ulysses a presenccedila da Odisseia na

concepccedilatildeo de cada um dos capiacutetulos eacute uma possiacutevel referecircncia de leitura mas

natildeo a linha central isto eacute natildeo eacute um necessaacuterio paralelismo agrave incursatildeo ao livro

de Joyce Ler literatura eacute dispor-se a um caminho que natildeo busca certezas ao

contraacuterio do que o apego a anaacutelises literaacuterias demasiado pragmaacuteticas ainda que

52

o neguem possa sugerir Mesmo em um livro de cunho bastante tradicionalista

como A Anaacutelise literaacuteria de Massaud Moiseacutes o lembrete eacute claro

A leitura com profundidade pressupotildee sempre que o texto literaacuterio sendo composto de metaacuteforas eacute ambiacuteguo por natureza ou seja guarda uma multiplicidade de sentidos Ler mal significa natildeo perceber a extensatildeo dessa ambiguidade ou apenas percebecirc-la sem poder compreendecirc-la ou justificaacute-la (MOISEacuteS 1969 p 24)

Exigir uma explicaccedilatildeo para cada noacute morfoloacutegico ou sintaacutetico que se

vislumbra no texto ou acusa-lo de impor dificuldades ao acompanhamento do

enredo satildeo acusaccedilotildees a Finnegans wake que partem de uma concepccedilatildeo

possivelmente questionaacutevel de literatura eou lidam com uma ideia redutora e

limitante de exegese ignorando a alta voltagem do cociente conotativo que o

texto oferece e a riqueza de leituras e possibilidades mdash que estatildeo longe de

formar um todo incoerente ou um texto composto de nonsense ao contraacuterio

Finnegans wake foi concebido de forma comprovadamente calculada e o humor

do texto estaacute distante de ser tatildeo hermeacutetico quanto se pensa Campbell e

Robinson utilizam um galicismo bastante peculiar para caracterizar Finnegans

wake cauchemar Derivado de cauquemaire termo registrado a partir do seacuteculo

XV pode definir simplesmente uma espeacutecie de sonho incocircmodo no limiar do

que seria um pesadelo No dicionaacuterio Larousse21 eacute precisamente uma

ldquomanifestaccedilatildeo oniacuterica que pode causar uma forte resposta emocional negativa

na mente de medo ou de horrorrdquo Sua formaccedilatildeo se deu a partir do termo picardo

cauchier que significa ldquopressionarrdquo ou ldquoempurrarrdquo e do termo germacircnico

proveniente do holandecircs mare que significa ldquoespectrordquo ldquofantasmardquo O campo

semacircntico em que se enquadra o termo envolve da anguacutestia ao desespero O

leitor portanto estaraacute avisado natildeo se trata de um sonho planificado e agradaacutevel

mas de um percurso sinuoso de que se deve duvidar e ao qual nos entregamos

sem reservas O leitor deve se dispor ao obscuro em vez de exigir clareza como

em um sonho caracterizado por Freud em que objetos satildeo siacutembolos e o que

21 Larousse 2013 ldquoCauchemar nom masculin Recircve peacutenible avec sensation doppression dangoisse Ideacutee chose ou personne qui importune ou cause du tourment Ce professeur est mon cauchemar Synonymes Hantise obsession tourmentrdquo

53

aparenta ser apenas um fato que se explica por si pode natildeo secirc-lo A isso se

acrescenta o que diz Freud sobre o reflexo (como ato involuntaacuterio automaacutetico

natildeo uma decisatildeo consciente) da negaccedilatildeo e a pulsatildeo de destruiccedilatildeo ldquoO texto [da

negativa] pode negar-se agrave interpretaccedilatildeo como meio de reagir agraves palavras de um

outro significante da proacutepria enunciaccedilatildeordquo (EYBEN 2012 p 283) A negaccedilatildeo

que vem do estranhamento produz afirmaccedilatildeo soacute se enxerga em Finnegans

wake o estranho a partir de noccedilotildees como narrativa e tempo linear negando-se

o estabelecido em direccedilatildeo a uma (nova) resposta

A referecircncia a Sigmund Freud natildeo vem apenas dos dados biograacuteficos em

afirmaccedilotildees do proacuteprio autor de que o livro eacute configurado como um sonho Joyce

dizia natildeo ser nada simpatizante da psicanaacutelise Apesar disso Lucia sua filha

tinha distuacuterbios mentais que ficaram mais graves com o passar do tempo e

chegou a se consultar com Carl Jung colega de Freud nos primeiros estudos

psicanaliacuteticos com quem ela se deu inicialmente muito bem Em Finnegans

wake Joyce cita tanto Freud quanto Jung maiores referecircncias no nascimento

da psicanaacutelise um tanto sardonicamente No fragmento 115 como destaca

Lenita Esteves em sua tese lecirc-se ldquoold Sykos who have done our unsmiling bit

on rsquoalices when they were yung and easily freudenedrdquo (FW 11521-23) Como

muito do que aparece no Wake (e muito do que aparece em nossos sonhos) a

citaccedilatildeo natildeo eacute clara e direta estando escondida poreacutem possiacutevel de ser

encontrada (ldquoyung and freudenedrdquo) com o termo ldquosykos on lsquoalicesrdquo separado em

duas partes como uma ldquocadeia truncadardquo (ESTEVES 1999 p 86) formando

ldquopsychoanalysisrdquo e a referecircncia agrave Alice de Lewis Carroll mdash autor cuja obra

sabemos ter influenciado Joyce e que aparece no trecho aqui referido como ldquoold

sykordquo (ldquoold psychordquo um ldquovelho loucordquo) O poeta e criacutetico dinamarquecircs Kristensen

certa vez perguntou se Joyce acreditava na Ciecircncia nova de Giambattista Vico

ao receber a sugestatildeo de Joyce que a lesse para ler Finnegans wake Joyce

respondeu ldquoNatildeo creio em nenhuma ciecircncia mas minha imaginaccedilatildeo cresce

quando leio Vico como natildeo aconteceu quando li Freud ou Jungrdquo (ELLMANN

1989 p 853)

Carl Jung chegou a ler Joyce e tambeacutem natildeo abrira caminhos para uma

simpatia maior entre eles ldquoJung garantiu que algumas de suas palavras

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ldquoportmanteaurdquo e neologismos eram notaacuteveis mas disse que eram acasos ela

[Lucia] e seu pai comentaria ele mais tarde eram como duas pessoas descendo

ao fundo de um rio uma caindo outra mergulhandordquo (Ibid p 837) A metaacutefora

do rio para a linguagem esquizofrecircnica pelo menos certamente teria agradado

Joyce se natildeo viesse nessa ocasiatildeo Especialmente vindo de algueacutem que havia

percebido em sua produccedilatildeo literaacuteria (e na de Lucia ao ler alguns de seus

poemas e apontar que havia ali indicaccedilotildees de problemas mentais) uma

exemplificaccedilatildeo de insanidade

Uma possiacutevel analogia entre uma obra como Finnegans wake e a

Interpretaccedilatildeo de Muitos Mundos (IMM) formulaccedilatildeo de estados relativos

elaborada pelo fiacutesico quacircntico Hugh Everett encontra-se no esteio da afirmaccedilatildeo

de Umberto Eco a respeito dessa mesma obra fazendo um paralelo entre a

relatividade de Einstein e as possibilidades diversas de tempos e espaccedilos

distintos e simultacircneos na obra de Joyce

Em Finnegans wake encontramo-nos enfim verdadeiramente na presenccedila de um cosmo einsteiniano curvado sobre si mesmo mdash a palavra inicial une-se agrave palavra final mdash e portanto acabado mas por isso mesmo ilimitado Todo acontecimento toda palavra encontra-se numa relaccedilatildeo possiacutevel com todos os outros e eacute da escolha semacircntica efetuada em presenccedila de um termo que depende o modo de entender todos os demais Isso natildeo significa que a obra natildeo tenha um sentido se Joyce introduz nela certas chaves eacute justamente por desejar que a obra seja lida num sentido determinado Mas esse ldquosentidordquo tem a riqueza do cosmo e o autor quer ambiciosamente que ele implique a totalidade do espaccedilo e do tempo mdash dos espaccedilos e dos tempos possiacuteveis O instrumento-mor dessa ambiguidade integral eacute o pun o calembour (ECO 1989 p 48)

Jaacute no iniacutecio de seu livro ao citar a obra de James Joyce como ldquoexemplo

maacuteximo de obra lsquoabertarsquordquo (Ibid p 47) Umberto Eco traccedila uma referecircncia com

Albert Einstein por meio de Edmund Wilson a respeito tambeacutem da obra anterior

Ulysses

Sua forccedila ao inveacutes de acompanhar uma linha expande-se a si mesma em todas as dimensotildees (inclusive a do Tempo) (hellip) Joyce desenvolveu consideraacutevel maestria teacutecnica para apresentar-nos os elementos de sua histoacutera numa ordem tal que nos torne capazes de encontrar sozinhos os nossos caminhos (Ibid p 48)

55

Como sabemos a dita circularidade do Wake eacute construiacuteda de tal forma

que daacute margem a diferentes formas de acesso e leitura Isso gera diversas

possibilidades paralelas e igualmente aceitaacuteveis dentro da estrutura se

entendermos que de fato qualquer paacutegina pode ser a primeira e qualquer

paacutegina pode ser a uacuteltima Essas possibilidades diferem natildeo apenas em suas

caracteriacutesticas mas tambeacutem em suas implicaccedilotildees Assim coexistem

paralelamente essas possibilidades a partir das ordens de leitura efetivamente

disponiacuteveis e a obra permanece una Ateacute mesmo dentro de um capiacutetulo pode

ser que pouco importe a ordem de onde se comeccedila a ler De um paraacutegrafo para

outro o assunto pode mudar drasticamente Tomemos como exemplo o capiacutetulo

III do terceiro livro em que a primeira paacutegina fala dos Four Old Men a segunda

inicia uma ode a Isobel a filha discorrendo sobre toda a sua beleza e

ingenuidade e o paraacutegrafo seguinte salta nada menos para Humphrey

Chimpden Earwicker becircbado no chatildeo de seu pub

Em artigo intitulado ldquoThe Finnecies of music wed poetry A muacutesica e o

Finnegans Wakerdquo Caetano Galindo tradutor da mais recente versatildeo em

portuguecircs de Ulysses (2012) e da uacutenica de Finnrsquos hotel (2014) parte da ideia

desenvolvida por Walter Pater de que ldquoToda a arte constantemente aspira agrave

condiccedilatildeo da muacutesicardquo (PATER apud GALINDO 2010 p 286 traduccedilatildeo do trecho

feita por Caetano Galindo) Frequentemente se afirma percorrendo a fortuna

criacutetica de Finnegans wake que essa obra eacute o resultado de suposto projeto

formalista de extrema acuidade em que a semacircntica eacute absolutamente preterida

em relaccedilatildeo agrave forma agrave esteacutetica focada na materialidade do significante No

entanto natildeo haacute possibilidade de falar de significante sem significado sendo esse

um par indissoluacutevel e acusar Joyce de se apoiar na pura materialidade do signo

para construir um texto de conteuacutedo calcado no nonsense e portanto

ldquoincompreensiacutevelrdquo mdash ou mais especificamente um texto que efetivamente nada

tenha a dizer mdash e puramente sonoro se mostra descabida a qualquer leitor atento

do Wake

A aproximaccedilatildeo entre a literatura joyciana e a arte musical eacute contudo

bastante profiacutecua Aleacutem de a sonoridade como dissemos ser aspecto de suma

importacircncia nos textos de Joyce segundo ele proacuteprio essa proeminecircncia eacute

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expliacutecita na leitura observando-se os jogos linguiacutesticos riacutetmicos e o papel do

aspecto foneacutetico na compreensatildeo de muitos dos trocadilhos (puns) Ainda que

os fatores biograacuteficos nada determinem a respeito da produccedilatildeo literaacuteria cabe

apontar tambeacutem a tiacutetulo de curiosidade para a relaccedilatildeo estreita de Joyce com a

muacutesica queria ser cantor e sua matildee foi cantora e integrou coros de igrejas A

aproximaccedilatildeo entre experiecircncias literaacuterias e muacutesica natildeo seria algo novo para o

autor irlandecircs que demonstrava esse interesse desde os poemas de Chamber

Music mdash admirados por Ezra Pound mdash passando por trechos eminentemente

meloacutedicos de A Portrait of the artist as a young man ateacute o episoacutedio das Sereias

(como eacute conhecido) de Ulysses

Richard Ellmann afirma que diante de algumas das criacuteticas frequentes a

respeito do caraacuteter literaacuterio de Finnegans wake ldquoo aspecto musical do livro era

uma de suas justificativasrdquo (ELLMANN 1989 p 865) Questionado por Terence

White Gervais ldquose o livro era uma mistura de muacutesica e literaturardquo ldquoJoyce

respondeu laconicamente lsquoNatildeo eacute pura muacutesicarsquordquo (Id) A variedade de formas de

entonaccedilatildeo e pronuacutencia aproximam o Finnegans wake do que seria uma

composiccedilatildeo musical que precisa ser executada lida como se lecirc a partirura em

muacutesica mdash conferindo vida agraves indicaccedilotildees que o papel traz O leitor se vecirc dessa

forma no exato centro dessa demanda sendo-lhe exigidas seguidas decisotildees

persecutoacuterias Nem Ulysses nem Finnegans wake satildeo obras para serem lidas

de forma passiva apenas acompanhando a narrativa que se desenha sozinha

recostando-se acomodando-se em leitura plaacutecida eacute preciso lecirc-los de maneira

executiva

O capiacutetulo 11 (considerado na divisatildeo de Campbell e Robinson o capiacutetulo

3 do livro II mdash que chamam de ldquolivro dos filhosrdquo mdash denominado ldquoTavernry in

feastrdquo) reuacutene sensaccedilotildees diversas com destaque ao sentido da audiccedilatildeo em

cenas de festejo e bebedeira no pub da famiacutelia dublinense As cenas (ou

sensaccedilotildees) se assemelham ao que seria um sonho de HCE tendo contudo

tambeacutem a sua participaccedilatildeo Na nota preliminar de Donaldo Schuumller ldquoA

identificaccedilatildeo chega a extremos HCE sonha e eacute sonhado () Recolhem-se

fragmentos espalhados no tempo e no espaccedilordquo (2003 p 215) Em meio a

57

transformaccedilotildees de HCE em Raacute deus egiacutepcio do Sol histoacuterias ouvidas pelo raacutedio

que envolvem visitas de um norueguecircs a Dublin em busca de um alfaiate

casamento quedas e um seacutetimo trovatildeo faz-se musicalidade no ambiente

barulhento

Snip snap snoody Noo err historyend goody Of a lil trip trap and a big treesnooker (hellip) (FW 3321-2)22

For hanigen with hunugen still haunt ahunt to find their hinnigen where Pappappapparrassannuaragheallachnatullaghmonganmacmacmacwhackfalltherdebblenonthedubblandaddydoodled and anruly person creeked a jest (FW 3324-7)23

Such was the act of goth stepping the tolk of Doolin drain and plantage wattle and daub with yoursquoll peel as Irsquoll pale and wersquoll pull the boath toground togutter testies touchwood and shenstone unto pop and puma calf and condor under all the gaauspices (incorporated) the chal and his chi their roammerin over gribgrobgrab reining trippetytrappty (so fore shault thou flow else thy cavern hair) to whom she (anit likenand please-thee) Till sealump becamedump to bumpslump a lifflebed (altolagrave allamarsch O gueacute O gueacute) (FW 33214-18)24

Joyce controla o ritmo do texto de forma que pulsem frases com tocircnicas

bem definidas formando o que ambienta o burburinho da noite no bar cheio e de

pessoas em festa Aleacutem das evidentes e numerosas aliteraccedilotildees ao unir

palavras como em ldquobecamedump to bumpslumprdquo eacute criado todo um novo ritmo

do iniacutecio ao fim das enunciaccedilotildees Aleacutem do forte impacto sonoro a semacircntica eacute

consequentemente modificada deslocando-se o que seria um significado

22 ldquoPirlimpimpim Da estorieta este eacute o fim De uma pequerrucha hip e de um grande triscunardquo (na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller 2003) 23 ldquoPois essazim e essezim ainda andam por aiacute a procura de Finn onde Pappappapparrassannuaragheallachnatullaghmonganmacmacmacwhackfalltherdebblenonthedubblandaddydoodled e uma personalidade ilegal largou um gracejordquo (idem) 24 ldquoTal foi o ato deusassombrado pra deter a fala do palanquim drenagem e plantaccedilatildeo vime e barro tua eacute a repulsa meu eacute o pulso nosso eacute o impulso do barco agrave terra dos aterrados testemunhas de madeira sapiencial e de pedra filosofal ateacute pupa e puma o bov hino e o condor sob todos os gaauspiacutecios (incorporados) o cujo e seu ela perroeirando caraagoraagarra reinando o trotedatropa (ateacute aqui fluiraacutes ou te arrastaratildeo pelos cabelos como na caverna) a quem ela (natildeo se assemelha praza-te) Ateacute que marulho se converta em entulho o brusco baque no liacuteffido leito (altolaacute allamarcha O quecirc o quecirc)rdquo (idem)

58

previsiacutevel para um neologismo que natildeo se fixa como neologismo uma vez que

continua podendo ser reinventado Do trovatildeo que possivelmente eacute o mais

musical de todos passamos ateacute mesmo por Shakespeare (ldquoshenstonerdquo) aqui

unido a Shem

Retornando ao texto de Caetano Galindo a aproximaccedilatildeo entre Finnegans

wake e muacutesica daacute-se entatildeo pela possibilidade de pensar essa obra literaacuteria

como uma partitura lembrando ainda a sugestatildeo do proacuteprio Joyce de que a

leitura de sua obra era diferenciada se fosse feita em voz alta mdash executada como

muacutesica escrita sobre as pautas de uma obra musical Isso se relaciona

diretamente a um certo papel atribuiacutedo ao leitor nessa interaccedilatildeo menos passiva

e mais ativamente investigativa ou analiacutetica em um sentido que eacute certamente

mais inventivo do que interpretativo Em vez de linhas pautas Sobre essa

comparaccedilatildeo diz Caetano Galindo

Uma partitura por outro lado jamais seraacute vista como a ldquoinauguraccedilatildeordquo de uma obra privileacutegio que cabe a sua primeira execuccedilatildeo puacuteblica A partitura afinal eacute muito menos ldquoa obrardquo que um detalhado conjunto de instruccedilotildees para a realizaccedilatildeo da obra que passa a existir apenas quando executada que tem a capacidade de existir como tal e de afetar mesmo pessoas ldquoanalfabetasrdquo no sistema de signos em que se escreve que manteacutem com aquele autoacutegrafo uma relaccedilatildeo portanto necessariamente de maior independecircncia Hierarquicamente superior E jaacute naqueles primeiros poucos exemplos de ldquobrincadeirasrdquo sonoras do Wake junto da constataccedilatildeo de que se trata de uma obra em que a leitura e a leitura em voz alta tem um papel completamente diferente na atribuiccedilatildeo na criaccedilatildeo de seu sentido fazem com que de diversas maneiras se possa sim pensar no livro como mais proacuteximo de uma partitura (GALINDO 2010 p 298)

A multiplicidade proporcionada por essa abertura natildeo prejudica portanto

a unidade da obra nem significa abertura a qualquer interpretaccedilatildeo a abertura

em questatildeo eacute efetivamente de autonomia e participaccedilatildeo do leitor tomando

decisotildees que efetivamente afetam sua experiecircncia com a obra natildeo por sua

evidente subjetividade como pessoa mas em seu papel como destinataacuterio mdash e

natildeo mero receptor de uma obra fechada cuja significaccedilatildeo estaacute dada inerte A

essa abertura poderiacuteamos entatildeo comparar a da muacutesica e seu efeito que parte

59

de um ldquodesdeacutem com o sentidordquo para usar expressatildeo de Caetano Galindo Mais

do que relaccedilotildees de sonoridade com o uso de aliteraccedilotildees assonacircncias rimas

que comumente relacionamos a uma certa qualidade musical (mas que satildeo

aspectos em geral inerentes a quaisquer textos literaacuterios) o texto tem um

princiacutepio estruturante diferenciado que assim o assemelha agrave muacutesica

Essa aproximaccedilatildeo diz respeito agrave maneira de interaccedilatildeo que existe entre a

obra e um inteacuterprete de uma composiccedilatildeo musical mais do que entre a obra e o

seu ouvinte Assim nos remetemos agrave aproximaccedilatildeo feita por Eco entre o texto

joyciano e a muacutesica moderna que se justifica em diversos aspectos entre os

quais destacamos aqui o da necessaacuteria execuccedilatildeo em uma certa sequecircncia

temporal como fundamento inerente agraves duas artes muacutesica e literatura Ambas

satildeo elaboradas a partir de uma ordenaccedilatildeo que se alterada modifica-se ao

contraacuterio de obras de arte com entrada livre O componente temporal tem

destaque de maneira evidente tambeacutem no cinema tem possibilidades diversas

de entendimento na fotografia e nas artes plaacutesticas a partitura no entanto assim

como o texto teatral de outra maneira tambeacutem o eacute faz parte do rol de peccedilas

executaacuteveis Eacute das obras de arte que se escrevem e inscritas permanecem na

promessa de que se deem em um novo tempo em um acontecimento fora do

papel

Natildeo falamos portanto tatildeo somente de um texto literaacuterio musical mas dos

fundamentos compartilhados entre as duas artes em termos fundamentais de

elaboraccedilatildeo e de acessoexecuccedilatildeorecepccedilatildeo dentro da plasticidade de cada uma

delas A problemaacutetica inescapaacutevel que concerne agrave sucessatildeo temporal como fator

inato da obra natildeo se refere no texto literaacuterio simplesmente agrave sequecircncia de sons

mas a toda a mateacuteria da obra Como em certas obras musicais o compositor

deixa a possibilidade de o(s) instrumentista(s) ou mesmo o(s) ouvinte(s)

intercambiarem partes do todo de forma entatildeo prevista e deliberada pelo autor

em todas as suas consequecircncias temos em Finnegans wake a possibilidade de

entrada por qualquer trecho No entanto assim como na obra musical as

consequecircncias satildeo medidas tambeacutem no Wake existe eacute claro uma ordem

subjacente ainda que se possa ignoraacute-la no processo de leitura e iniciar de

60

qualquer paacutegina A leitura ainda que executiva eacute feita em cima de indicaccedilotildees

preacute-existentes

O leitor ideal do Wake por conseguinte deve ser aquele indiviacuteduo aberto

a uma renovaccedilatildeo inesgotaacutevel de processos cognitivos aquele que natildeo executa

sua leitura preso a seus horizontes mas estaacute disposto a expandi-los a cada linha

A fluidez em Finnegans wake se deve ao natildeo estabelecimento de uma voz que

tenha lugar proacuteprio Como diz Derrida em ldquoDuas palavras por Joycerdquo haacute livros

que terminamos de ler assim que iniciamos a leitura enquanto James Joyce nos

faz encarar a leitura que nunca parece ter fim Muito frequentemente Finnegans

wake eacute lembrado por ser um livro circular sendo essa uma das mais evidentes

caracteriacutesticas da estrutura elaborada por Joyce Podemos lembrar ainda a

figura eliacuteptica como Derrida a concebe para atestarmos que a circularidade

wakiana natildeo se engendra em reiteraccedilatildeo ciacuteclica em regressos a pontos

iniciaacuteticos nem em repeticcedilotildees de processos idecircnticos Ao contraacuterio a

circularidade do Wake efetivamente se aproxima da viconiana que inspirou

Joyce temos um processo de retorno que soacute eacute previsiacutevel ateacute certo ponto pois

engendra acima de tudo a renovaccedilatildeo de seus elementos Assim ateacute nas

repeticcedilotildees de um mesmo termo pela obra podemos perceber como o que

acontece natildeo eacute a retomada pura e simples mas a operaccedilatildeo de uma diffeacuterance

com ldquoardquo uma vez que o termo eacute aparentemente duplicado mas natildeo ocorre da

mesma forma e portanto jaacute natildeo eacute idecircntico em significado

A relaccedilatildeo com muacutesica novamente se faz proveitosa por uma outra via de

relaccedilatildeo Em um paralelismo bastante coerente a respeito de como eacute possiacutevel a

operaccedilatildeo de leitura de uma obra como Finnegans wake Umberto Eco tece

comparaccedilotildees citando o compositor belga Henri Pousseur um dos nomes da

nouvelle musique junto tambeacutem de Luciano Berio Pierre Boulez e Karlheinz

Stockhausen

Para definirmos a situaccedilatildeo do leitor de Finnegans wake parece-nos servir perfeitamente a descriccedilatildeo dada por Pousseur da situaccedilatildeo do indiviacuteduo que ouve uma composiccedilatildeo serial poacutes-dodecafocircnica ldquoJaacute que os fenocircmenos natildeo mais estatildeo concatenados uns aos outros segundo um determinismo consequente cabe ao ouvinte colocar-se

61

voluntariamente no centro de uma rede de relaccedilotildees inexauriacuteveis escolhendo por assim dizer ele proacuteprio (embora ciente de que sua escolha eacute condicionada pelo objeto visado) seus graus de aproximaccedilatildeo seus pontos de encontro sua escala de referecircncias eacute ele agora que se dispotildee a utilizar simultaneamente a maior quantidade de graduaccedilotildees e de dimensotildees possiacuteveis a dinamizar a multiplicar a estender ao maacuteximo seus instrumentos de assimilaccedilatildeordquo E com essa citaccedilatildeo fica sublinhada como se disto houvesse necessidade a convergecircncia de todo o nosso discurso para um ponto uacutenico de interesse e a unidade da problemaacutetica da obra ldquoabertardquo no mundo contemporacircneo (ECO 1989 p 49)

Assim a postura ativa se faz natildeo somente numa via extra de interaccedilatildeo

obra-receptor mas eacute efetivamente uma demanda necessaacuteria para que essa

interaccedilatildeo possa se viabilizar Ainda que ambiguidade e polissemia sejam

evidentemente traccedilos inerentes a quaisquer textos literaacuterios em geral haacute uma

oferta disseminativa especiacutefica onde se engendra diffeacuterance A interaccedilatildeo

receptor-obra na qual a participaccedilatildeo e as escolhas do leitor eacute uma necessidade

tem uma dinacircmica operacionalizante que natildeo somente ressuscita o texto morto

na leitura mas o faz quase podendo daacute-lo agrave luz Em consonacircncia com o que eacute

dito por Haroldo de Campos em A arte no horizonte do provaacutevel voltamos agrave

Escritura do retorno ldquoA arte joycena circular e em aberto natildeo possui como

operador a figura autoral mandataacuteria Antes a informaccedilatildeo esteacutetica mdash como

transmissatildeo de sensaccedilatildeo da forma mdash eacute gerada pelo interpretante que assume a

posiccedilatildeo de operadorrdquo (EYBEN 2012 p 616)

Isso natildeo implica no entanto eacute bom que lembremos uma abertura

semacircntica total e desgovernada que nos leve a aquiescer para as suposiccedilotildees

de que Finnegans wake seja uma grande piada sem qualquer indiacutecio de que sua

leitura valha a pena Aleacutem de rascunhos e arquivos de Joyce apontarem

fortemente para o contraacuterio com esquematizaccedilotildees da estrutura e registros das

formulaccedilotildees de trechos reescritos e reeditados com precisatildeo vimos que natildeo

foram poucos os leitores que se dedicaram agrave incursatildeo por essa obra ainda que

seja tatildeo mal falada quanto se diz que eacute incompreensiacutevel Natildeo se trata apenas de

frases compostas de um puro trava-liacutengua sucedendo o outro que natildeo remetem

a nada e tecircm seus significados encerrados em si mesmos de forma que somente

o significante seja manipulado em brincadeiras linguiacutesticas mdash ainda que a

62

comparaccedilatildeo inicial seja relativamente cabiacutevel no que diz respeito aos jogos

foneacuteticos e trocadilhos que compotildeem a obra joyciana O recurso natildeo resulta em

uma anulaccedilatildeo da unidade significativa ao contraacuterio temos sua expansatildeo Haacute

criacuteticos que traccedilam a sequecircncia da intriga na obra e a analisam sob essa oacuteptica

ainda assim sabemos natildeo haver linearidade narrativa na concepccedilatildeo tradicional

de enredo uma vez que o Wake traz o que se caracteriza pelo adjetivo plotless25

Como lembra o proacuteprio Eco mais agrave frente poreacutem ldquoEssa pluralidade

semacircntica natildeo determina ainda o valor esteacuteticordquo (ECO 1989 p 91) Fosse essa

a mateacuteria-prima de Finnegans wake natildeo seria composto entatildeo por mais que

jogos intelectuais e tantos criacuteticos assim o julgaram Se pluralidade semacircntica

implica uma seacuterie definida de possibilidades a b ou c para uma frase expressatildeo

capiacutetulo ou para a obra toda estaacute mais longe de Finnegans wake do que supotildee

Eco Polissemia subentende a possibilidade de visualizar nas palavras as

possibilidades para as quais elas se abrem como na ambiguidade em geral

tambeacutem se tem a consciecircncia dos sentidos que povoam o mesmo territoacuterio Por

mais contraditoacuterio que possa soar isso ainda pode integrar poreacutem uma leitura

hermenecircutica substitui-se a noccedilatildeo de verdade contida em uma unidade pela de

um espectro de verdades simultacircneas ainda controladas detidas nos limites do

horizonte que nossa visatildeo alcanccedila com nitidez

Em vez disso poderiacuteamos mdash podemos mdash ler Finnegans wake sem

necessariamente buscar conter em diagramas mentais os pontos semacircnticos

oferecidos em cada expressatildeo natildeo somente porque esse seria um trabalho

cansativo mas tambeacutem porque natildeo nos ofereceria garantias de ser esta a

melhor maneira de intimidade com o texto Da mesma maneira ler com fluidez

ainda que uma ou outra referecircncia possa nos escapar pelos dedos natildeo eacute

necessariamente uma forma menos integrada de se deparar com a obra em

questatildeo Fluidez aqui sublinhe-se natildeo se refere agrave suposiccedilatildeo de que se tenha

diante das paacuteginas do livro um leitor passando por elas uma a uma de maneira

25 O termo vem do inglecircs plot que se refere especificamente a enredo ou trama O Wake natildeo possui um enredo que mova a leitura e seja separaacutevel em situaccedilatildeo inicial cliacutemax e desfecho e mesmo os elementos baacutesicos da narrativa ndash personagens narradores tempo e espaccedilo ndash se modificam todo o tempo

63

homogecircnea sem que se detenha em nada de especiacutefico avanccedilando

ininterruptamente pelo texto em um ritmo padronizado meramente

decodificando palavras lendo o texto somente no sentido mais simploacuterio de

assunccedilatildeo da existecircncia e de certa compreensibilidade de um dado coacutedigo

Referimo-nos ao contraacuterio ao caso de um leitor qualquer se se lance agrave leitura

do livro mdash de modo que detenha um tempo singular de sua proacutepria leitura que

flui em seu ritmo proacuteprio individual variaacutevel e incalculaacutevel

Pelo fato de que o texto como eacute tecido exige do leitor a tomada de

algumas decisotildees jaacute haacute demanda suficiente de uma postura ativa que natildeo

precisa ser a tradicional postura de identificar todos os componentes e assim

destrinchar todos os elementos do texto por mais que isso eventualmente possa

ser de grande ajuda Talvez a noccedilatildeo do todo seja mais importante e mais difiacutecil

de ser alcanccedilada fora dessa anaacutelise a que estamos acostumados Muito do

texto por mais hercuacuteleo que o trabalho possa parecer pode ser forccedilosamente

colocado em diagramas e planilhas mentais com divisotildees e classificaccedilotildees

criadas a partir de moldes teoacutericos preacute-existentes mas lidar com o texto em sua

complexidade eacute respeitaacute-lo na sua porccedilatildeo de problemaacutetica indecifraacutevel

CAPIacuteTULO II

FINNEGANS WAKE E O TEMPO DA TRADUCcedilAtildeO

65

No prefaacutecio agrave traduccedilatildeo dos poemas de Charles Baudelaire reunidos na

seccedilatildeo Tableaux parisiens publicada em 1923 denominado ldquoDie Aufgabe des

Uumlbersetzersrdquo Walter Benjamin apresenta nas palavras de Haroldo de Campos

a sua ldquometafiacutesica antes do que uma fiacutesica da traduccedilatildeordquo (CAMPOS 2008 p

179) Ao encetar sua exposiccedilatildeo a respeito da ldquotarefa-renuacutencia do tradutorrdquo como

traduziu Susana Kampff Lages Benjamin questiona qual o destino do texto

traduzido apoacutes afirmar o que aqui se traz como epiacutegrafe a compreensatildeo mdash ou

a tentativa de engendrar alguma mdash das obras de arte natildeo deve se pautar pelo

receptor Enseja lembrar que se costuma entender a traduccedilatildeo limitando-se agrave

visatildeo corriqueira de que teria o objetivo preciacutepuo ou mesmo uacutenico de facilitadora

do acesso ao texto o que recairia justamente no problema de ter no destinataacuterio

sua justificativa focando na recepccedilatildeo do texto toda a necessidade de sua

existecircncia mdash ou mais gravemente a sua utilidade mdash e portanto tirar dessa

relaccedilatildeo suas premissas e direcionamentos

66

A existecircncia de um problema em considerar a traduccedilatildeo como algo

produzido tatildeo somente para atender agravequeles privados da compreensatildeo do

idioma do texto de partida antecede contudo qualquer afirmativa contra a

exegese que se paute pela recepccedilatildeo ou a favor de qualquer fantasiologia em

detrimento de uma investigaccedilatildeo do pateacutetico schlegeliano ou do empiacuterico em

literatura Eacute possiacutevel perceber esse problema no apontamento do fato um tanto

expliacutecito de que o leitor da traduccedilatildeo que visa substituir o texto de partida

inevitavelmente a leraacute como texto original (no sentido de primeiro

evidentemente) As relaccedilotildees entre o texto de partida e suas traduccedilotildees eacute

perigosamente apagada no caso do leitor cujo contato com a obra se daacute somente

por uma traduccedilatildeo especialmente entre aquelas que natildeo contecircm comentaacuterios

notas ou recursos similares por meio dos quais o tradutor aponte seus dilemas

e exprima as dificuldades pelas quais passou remetendo ao texto de partida

bem como que criteacuterios utilizou em suas escolhas e renuacutencias lexicais ou

sintaacuteticas

Aleacutem das peculiaridades inescapaacuteveis da leitura de uma obra de traduccedilatildeo

sem o concomitante acesso ao texto traduzido existem ainda os problemas

inerentes ao texto Tradutores que se incumbem da tarefa de transmitir algum

ato comunicativo a ser detectado no texto de partida transportando uma

mensagem mdash por vezes artificialmente construiacuteda ou forccedilosamente encontrada

em uma leitura enviesada ou mesmo forjada mdash a outro idioma por meio do labor

tradutoacuterio estariam prestes a falhar de certa maneira ao menos segundo o que

assevera Benjamin ao recaiacuterem na ldquotraduccedilatildeo inexata de um conteuacutedo

inessencialrdquo (BENJAMIN 2008 p 66) A falha tem eacute claro nesse caso um

sentido especiacutefico que parte da concepccedilatildeo que Benjamin traz de traduccedilatildeo Seria

demasiadamente penoso declarar ou apontar fracassos tradutoacuterios completos a

qualquer que seja a tentativa ao menos em literatura de traduzir algum texto

Como a Benjamin poreacutem a compreensatildeo do que significa ou qual a intenccedilatildeo do

ato de traduzir literatura parece-nos primordial ao labor tradutoacuterio e tambeacutem agrave

leitura de traduccedilotildees pois esclarecer o ponto de que partimos ao olhar o texto

se eacute o mesmo ou se jaacute eacute outro que medidas haacute de ldquomesmordquo e de ldquooutrordquo ou de

67

ldquoinovaccedilatildeordquo algo que compreendemos por processos de diferenciaccedilatildeo e

similaridade

ldquoDie Aufgabe des Uumlbersetzersrdquo eacute um texto frequentemente referido como

ensaio a despeito de ser mais loacutegico e afirmativo do que essa classificaccedilatildeo

poderia implicar (isso talvez ocorra pela obsessatildeo proacutepria do seacuteculo XX de

enxergar Essayismus em variadas formas textuais e em alguns autores

Moumlglichkeitsmenschen ou ldquopossibilitaacuteriosrdquo nos termos do escritor modernista

austriacuteaco Robert Musil contemporacircneo de Joyce) Benjamin transparece certo

idealismo em seu conceito de liacutengua pura e transita entre a construccedilatildeo desse

conceito eteacutereo agrave medida que o texto avanccedila e nuances de uma tradiccedilatildeo

platocircnica um tanto menos hesitante mais soacutelida Ainda assim eacute clara a

ratificaccedilatildeo buscada pelo autor de afirmar a traduccedilatildeo da arte tatildeo dignificante

quanto a criaccedilatildeo artiacutestica per se

Considerando-se um texto classificado como ldquoliteraacuteriordquo o dilema de como

traduzir se torna especificamente (poreacutem natildeo necessariamente mais) complexo

Poder-se-ia considerar que a abertura do texto facilita a tarefa tradutoacuteria uma

vez que expande as possibilidades de escolhas em vez de reduzir a

correspondecircncia de uma palavra a uma entrada dicionarizada ou opccedilatildeo lexical

mais imediata Traduzir literatura demanda meditar sobre um termo mas

tambeacutem sobre a frase a estrutura e o todo da obra A expansatildeo lexical

engendrada em arte eacute contudo sinteacutetica natildeo haacute possibilidades quaisquer de

consequecircncias equivalentes mas ao contraacuterio as consequecircncias de uma

escolha ou outra devem ser drasticamente distintas A necessidade do mot juste

do labor artiacutestico literaacuterio permanece sendo uma demanda da tarefa tradutoacuteria e

nesse sentido o tradutor em um entendimento radical de sua praacutetica de alguma

forma reescreve o texto de partida tomando emprestadas a estrutura e as ideias

do que traduz

Esse eacute o princiacutepio levado agrave risca com o termo transcriaccedilatildeo ainda que natildeo

se restrinja agrave modalidade concebida pelos irmatildeos Campos que envolve ainda

outros argumentos A despeito da conaccedilatildeo ou vocaccedilatildeo artiacutestica putativa do

tradutor ou seu esforccedilo em ser tambeacutem poeta a traduccedilatildeo de literatura lida com

68

o fenocircmeno potencializado de cada termo ter alto impacto seja o mot juste

procurado pelo tradutor criativamente seja buscado em metodologia que

percorra caminho teacutecnico-investigativo Haroldo de Campos afirma a respeito

das traduccedilotildees do Panaroma do Finnegans wake (2001) ldquo() o que interessa

natildeo eacute a literalidade do texto mas sobretudo a fidelidade ao espiacuterito ao lsquoclimarsquo

joyciano frente ao diverso feixe de possibilidades do material verbal manipuladordquo

(CAMPOS 2001 pp 27-28) Essa fidelidade pode ser entendida como anaacuteloga

agrave que Benjamin defende que se engendra sendo fiel agrave forma do texto

destituindo-o da fidelidade ipsis litteris isto eacute daquela realizada de maneira

literal de vocaacutebulo em vocaacutebulo apoiada na suposta funccedilatildeo tradutoacuteria de

transpor a mensagem comunicativa considerada ldquoinessencialrdquo Em seu texto

ldquoTransluciferaccedilatildeo mefistofaacuteusticardquo Haroldo afirma que ldquoNatildeo seria descabido

ultimar a teoria benjaminiana da traduccedilatildeo como portadora da mensagem lsquointerrsquo

(ou lsquotransrsquo) semioacutetica da liacutengua pura orientada pelo lema rebelionaacuterio do non

serviamrdquo (CAMPOS 2008 p 180)

Natildeo haacute nem deve haver por conseguinte expectativa de transposiccedilatildeo

entre planos em resultado tradutoacuterio calculaacutevel desde que se admita que a

traduccedilatildeo como o texto de partida natildeo significa o mesmo que ele mas eacute mdash deve

ser em sua tautologia como propotildee Albercht Fabri Se vemos o tangenciamento

de Benjamin devemos vislumbrar no processo tradutoacuterio cerebral o ponto a ser

tocado entre a infinidade de pontos natildeo obstante isso soacute pode permitir a

deduccedilatildeo do horizonte da liacutengua pura se for mantido o espaccedilamento da ldquopulsatildeo

dionisiacuteaca que eacute capaz de dissolver a diamantizaccedilatildeo apoliacutenea do original preacute-

formado em nova festa siacutegnicardquo pondo a ldquocristalografia em ebuliccedilatildeo de lavardquo

(CAMPOS 2008 p 180) Revela-se prejudicial o uso de termos similares a

ldquomensagemrdquo ldquomensageirordquo pois afirma um binarismo de espaccedilos em que dois

planos coexistem e entre eles ocorre o intercacircmbio Falar em ldquoportadora de

mensagemrdquo soacute eacute cabiacutevel nesse contexto se referindo agrave ldquointer (ou trans)

semioacutetica da liacutengua purardquo da fala de Haroldo mas natildeo ao que remete de forma

mais imediata o conteuacutedo inessencial mdash ao inveacutes da categoria da forma que

caracteriza a traduccedilatildeo na teoria benjaminiana

69

Admitiriacuteamos assim a possibilidade de o receptor da traduccedilatildeo ser um

leitor capaz de acessar o original de forma que a traduccedilatildeo seja um texto

adicional ao inveacutes de atuar como um usurpador do estatuto de texto primeiro

Mais do que uma possibilidade o leitor ideal da traduccedilatildeo seria esse que pode

vecirc-la como fonte de variantes interpretativas provenientes de leitura singular do

texto feita pelo tradutor (um leitor ideal sob essa oacuteptica) A palavra para

ldquotraduccedilatildeordquo na liacutengua alematilde eacute Uumlbersetzung junccedilatildeo do prefixo (do tipo que tem

valor semacircntico tambeacutem por si soacute) uumlber com a palavra setzung significando uma

sobreposiccedilatildeo sobreaplicaccedilatildeo Indica uma sobre-escrit(ur)a uma sobrevivecircncia

O leitor da traduccedilatildeo que tem acesso ao original mdash o que definimos como o leitor

ideal da traduccedilatildeo mdash e sua leitura do texto de partida e do que lhe foi sobre-escrito

eacute outro argumento a favor da traduccedilatildeo criativa e ratifica a possibilidade de o labor

tradutoacuterio poder e dever ser executado como arte conferindo ao tradutor natildeo

somente status mas responsabilidade Natildeo soacute pode se dedicar agrave busca do mot

juste como se incumbe desse dever ao se prestar agrave traduccedilatildeo

Walter Benjamin afirma o estatuto da traduccedilatildeo como forma que natildeo se

rende ao papel de transpor significados de um idioma a outro libertando-a de

qualquer caraacuteter submisso ao texto traduzido No entanto isso natildeo significa

forccedilar uma desvinculaccedilatildeo Ao contraacuterio afirma que ldquoeacute preciso retornar ao

originalrdquo (BENJAMIN 2008 p 67) Os quatro tradutores do texto de Benjamin mdash

Fernando Camacho Karlheinz Barck (e equipe natildeo nomeada) Susana Kampff

Lages e Joatildeo Barrento mdash optam pelos termos ldquoretornarrdquo ou ldquoregressarrdquo ldquoo

regressordquo No entanto pensar em voltar-se ao que eacute o texto original explicitaria

como isso significa o ato literal de como leitor do texto de partida debruccedilar-se

considerando como o tradutor deve eacute oacutebvio ir a ele natildeo somente em um

regresso simboacutelico mas tambeacutem como parte efetiva do processo de traduccedilatildeo A

concisa expressatildeo do movimento de voltar-se aponta tambeacutem para a

necessidade de evocaacute-lo no texto resultante da traduccedilatildeo ainda que natildeo seja

servil a ele e por uacuteltimo aponta para o retorno agrave liacutengua pura una babeacutelica

aquela em que natildeo haacute a categoria do enunciado e que ultrapassa as liacutenguas

nacionais

70

A traduccedilatildeo para Walter Benjamin eacute intraduziacutevel Esse fato confirma sua

autotelia O tradutor eacute fiel na medida em que produz devir em seu idioma de

forma fiel agrave que o escritor do texto de partida o fez em sua liacutengua Se pensarmos

que uma obra literaacuteria pode ter como qualidade inerente a ela segundo

Benjamin sua traduzibilidade a observaccedilatildeo tatildeo comum a respeito de Finnegans

wake vem agrave tona essa obra considerada atraveacutes dos tempos de ilegiacutevel a

intraduziacutevel teria que niacutevel de traduzibilidade Como questiona Lenita Esteves

no terceiro capiacutetulo de sua tese ldquoMas da mesma forma que Derrida aponta para

um certo aspecto risiacutevel da pergunta lsquoVocecirc jaacute leu Joycersquo podemos achar

engraccedilada a pergunta lsquoAlgueacutem jaacute traduziu Finnegans Wakersquordquo (ESTEVES

1999 p 83) Frequentemente se afirma que o idioma dessa obra de James

Joyce natildeo eacute o inglecircs mas um outro limitado ao livro e nele desenvolvido

elaborado pelo autor a partir de idiomas diversos Consideremos entatildeo que

Finnegans wake (1939) possui mdash ou melhor produz engendra uma liacutengua da

proacutepria obra Isso significaria natildeo apenas que a traduccedilatildeo deve fazer o mesmo

mas tambeacutem que esse idioma proacuteprio tem no texto as definiccedilotildees de suas

especificidades as diretrizes de seus paracircmetros e a que princiacutepios estaacute

submetido

Natildeo poderiacuteamos afirmar o mesmo no entanto a respeito de todo e

qualquer texto literaacuterio Finnegans wake apresenta de forma radicalmente

expliacutecita e elaborada com extrema acuidade o que toda a Literatura todo e

qualquer texto-arte traz intacto em sua essecircncia uma liacutengua proacutepria um dizer

que natildeo se repete no linguajar cotidiano tampouco em outros autores ainda

menos em textos teacutecnicos dissertativos cientiacuteficos Podemos entender

destarte a essecircncia antiteacutetica da tarefa de traduzir literatura cujos alicerces satildeo

os dois fatos concorrentes de que o texto literaacuterio recusa-se a uma transposiccedilatildeo

de seus significados a uma traduccedilatildeo entendida como produtora de alguma

equivalecircncia e o de que tambeacutem demanda que seja traduzido em tendo

traduzibilidade inerente de maneira diferente ou em outro grau que natildeo pertence

a uma traduzibilidade de sentido de mensagem de comunicaccedilatildeo A traduccedilatildeo de

literatura portanto de texto que produza em sua tessitura uma linguagem

proacutepria enquadrada em sua focircrma exige efetivamente a criaccedilatildeo de mais uma

71

liacutengua proacutepria tecida textualmente jaacute que existiraacute outro texto ou nova versatildeo do

texto que se intenta traduzir Esse fator inescapaacutevel por conseguinte faz

necessaacuterio que inspirando-se no ldquoidioma proacuteprio do textordquo de partida o tradutor

se lance a realizar alguma espeacutecie de criaccedilatildeo no idioma para o qual traduz ainda

que natildeo seja um seguidor dos caminhos de liberdade apontados pela

transcriaccedilatildeo

A traduccedilatildeo de literatura difere-se ainda por outro fator que natildeo diz respeito

a sua feitura mas reside no que excede sua elaboraccedilatildeo o acometimento de

certa direccedilatildeo na recepccedilatildeo e na criacutetica do texto em distintas heranccedilas escolhidas

Eacute niacutetido em Finnegans wake o quanto seus principais tradutores brasileiros mdash

Augusto de Campos Haroldo de Campos e o professor Donaldo Schuumller mdash

encaram a obra como radical aleacutem de efetivamente concordarem com o fato de

que sua complexidade torna a traduccedilatildeo tanto mais difiacutecil quanto profiacutecua

ldquoFinnegans wake eacute 100 de inovaccedilatildeo linguiacutestica Nenhuma concessatildeo Nenhum

recuordquo (CAMPOS 2001 p 21) Na introduccedilatildeo do primeiro volume de sua

traduccedilatildeo Donaldo Schuumller ldquoDistanciamo-nos com frequecircncia da literalidade

para captar efeitos que ultrapassam significados () Num discurso

deliberadamente oniacuterico luminosidade intensa natildeo se atingiraacute nuncardquo

(SCHUumlLER 2004 p 25) Em texto publicado no Panaroma e tambeacutem na

coletacircnea Teoria da poesia concreta Haroldo de Campos afirma ldquoTraduzir

James Joyce especialmente fragmentos de Finnegans wake eacute uma ginaacutestica

com a palavra um trabalho de perfeccionismo Algo que nunca assume o

aparato estaacutetico do definitivordquo (CAMPOS 2001 p 27)

Apesar das semelhanccedilas ambas as traduccedilotildees tanto a de Panaroma do

Finnegans wake cuja primeira ediccedilatildeo data de 1962 quanto a de Finnegans

wakeFinnicius reveacutem (2004) implicam recepccedilotildees (preacute e poacutes-traduccedilatildeo) distintas

e empregam diferentes instrumentos para lidar com as possibilidades do texto

de partida Os irmatildeos Campos optam pela traduccedilatildeo que chamam de intensiva

(ao inveacutes de extensiva) colhendo trechos que demonstrem o potencial radical

do texto como um todo ldquoO nosso objetivo sempre foi o de trabalhar e lapidar

alguns dos momentos maacutegicos do livro e somente dar a puacuteblico aqueles que

em nosso entender oferecessem em portuguecircs um estatuto equivalente agrave alta

72

voltagem de invenccedilatildeo e criatividade do original Trabalho de concentraccedilatildeordquo

(CAMPOS 2001 p 21)

Schuumller por outro lado algumas deacutecadas depois opta pela traduccedilatildeo

integral e portanto por aquela que tenderia ao que Augusto de Campos e

Haroldo de Campos entatildeo denominaram extensiva ainda que o labor de

Donaldo Schuumller natildeo deixe de ser tambeacutem de intensidade sobre o texto

debruccedilou-se sobre cada fragmento dedicando-se a cada um separadamente

gradualmente como uma obra por si Alerta ldquoPara se fazer entendido o texto

oferece muitas versotildees do mesmo coacutedigo cifradordquo (SCHUumlLER 2008 p 24)

Como Joyce nas palavras dos irmatildeos Campos natildeo faz concessotildees o tradutor

afirma seguir o mesmo caminho de natildeo simplificar e recomenda leitura que se

submeta aos mesmos riscos ldquoVencida a vertigem ante frequentes abismos

somos estimulados a criar roteiros proacuteprios () Natildeo se espere assim

inteligibilidade completa do textordquo (Ibid p 25)

Se a traduccedilatildeo intensiva portanto daacute a entender a potenciaccedilatildeo de um

esforccedilo vertical de imersatildeo aplica-se tambeacutem agrave metodologia de Donaldo que

percorre fragmento a fragmento traduzindo criativamente Cumpre a missatildeo

predita por Lenita Esteves em sua tese anos antes da publicaccedilatildeo completa da

traduccedilatildeo de Schuumller ldquoMas da mesma forma que Derrida aponta para um certo

aspecto risiacutevel da pergunta lsquoVocecirc jaacute leu Joycersquo podemos achar engraccedilada a

pergunta ldquoAlgueacutem jaacute traduziu Finnegans wakerdquo Traduziu de que liacutengua para

que outra Se como afirmam alguns autores Joyce fragmentou quebrou

desmantelou a liacutengua inglesa o tradutor teraacute tambeacutem que compor um texto

desmantelando sua liacutenguardquo (ESTEVES 1999 p 83) A liacutengua portuguesa eacute

entatildeo invadida mdash natildeo invalidada mas povoada mdash- por um texto wakiano em

vez de prestar-se ao trabalho de verter de caacute para laacute eacute tambeacutem como o inglecircs

o foi alterada habitada pela literatura que a torce e a desorienta Uma enxurrada

invade com correnteza violenta a liacutengua para a qual se verte enquanto a

linguagem segue o fluxo que natildeo eacute margeado por delimitaccedilotildees gramaticais mas

ao contraacuterio gera a erosatildeo dessas fronteiras

73

Comparando as duas traduccedilotildees do primeiro fragmento de Finnegans

wake das ediccedilotildees supracitadas podemos perceber como versotildees de um texto

tatildeo radical que optam por soluccedilotildees tradutoacuterias distintas resultam em dois textos

consideravelmente diferentes entre si ainda que ambas partam do princiacutepio de

serem traduccedilotildees para a liacutengua portuguesa e que tenham sido feitas por

brasileiros Na primeira linha por exemplo

riverrun past Eve and Adamrsquos (FW 31)

Observa-se que ldquopast _____rdquo (o termo past seguido de um complemento

direto portanto) pode significar algo como ldquoapoacutesrdquo em portuguecircs poreacutem tanto

temporalmente referindo-se a uma sequecircncia cronoloacutegica quanto

espacialmente indicando uma passagem no caso pela igreja Adam and Eve

em Dublin A inversatildeo no nome do local indica uma subversatildeo e portanto uma

impossibilidade de se decidir entre o sentido de passar pela igreja ou de passar

o tempo de Adatildeo e Eva indicado tambeacutem pelo termo ldquopastrdquo que carrega traccedilos

semacircnticos relacionados a tempo A demanda da coexistecircncia dessas duas

possibilidades portanto eacute um desafio tradutoacuterio que se impotildee jaacute no primeiro

periacuteodo da obra A traduccedilatildeo de Augusto de Campos opta por direcionar o olhar

agrave ideia temporal

riocorrente depois de Eva e Adatildeo (CAMPOS 2001 p 41)

Aleacutem do uso do termo ldquodepoisrdquo tambeacutem relacionado a tempo

prioritariamente como o ldquopastrdquo do texto de partida mas tambeacutem possiacutevel de se

referir ao deslocamento no espaccedilo a ausecircncia de artigo antes de ldquoEva e Adatildeordquo

esconderia a possibilidade de pensar no local na construccedilatildeo mdash na igreja

especiacutefica (algo que em inglecircs jaacute que natildeo admitiria artigo eacute indicado pelo uso

de apoacutestrofe + ldquosrdquo do possessivo) Assim poderia ser talvez mais imediato

74

pensar em ldquoEva e Adatildeordquo como algo que seja mais que somente os dois

personagens biacuteblicos se estivesse escrito digamos ldquodepois da Eva e Adatildeordquo de

forma que o artigo indicasse haver uma elipse (funccedilatildeo que eacute cumprida no texto

de Joyce pelo possessivo marcado com lsquos)

Quanto agrave opccedilatildeo posterior de Donaldo Schuumller (2002) perlustrando uma

outra via tradutoacuteria pode-se dizer que visa explicitar essa possibilidade de leitura

mais difiacutecil de ser captada mdash especialmente pelo leitor natildeo irlandecircs que natildeo teraacute

a referecircncia do nome dessa igreja em mente e tirando a viacutergula

rolarriuanna e passa por Nossenhora drsquoOhmemrsquos

Manteve-se entatildeo na traduccedilatildeo de Schuumller a referecircncia ao catolicismo

ainda que agora seja agrave Nossa Senhora do Oacute A opccedilatildeo aqui trazendo agrave sentenccedila

uma imagem relacionada agrave praacutetica religiosa na Peniacutensula Ibeacuterica e no Brasil foi

a de ser fiel ao ldquoespiacuteritordquo joyciano mdash no termo dos irmatildeos Campos herdado da

ideia de Ezra Pound mdash no que se refere agrave proposta de universalidade a despeito

das referecircncias a uma cidade especiacutefica Finnegans wake faz do mapa de Dublin

uma referecircncia a tudo aquilo que ultrapassa quaisquer limites geograacuteficos Haacute

em Salvador no bairro de Paripe uma Igreja de Nossa Senhora do Oacute uma das

primeiras paroacutequias fundadas na colocircnia portuguesa data do seacuteculo XVI O

marco iniciaacutetico de Adatildeo e Eva isto eacute a semacircntica do ab initio se reverbera

nessa marcaccedilatildeo histoacuterica em territoacuterio brasileiro Deve-se lembrar que a

traduccedilatildeo por ldquoNossenhora d`Ohmemrsquosrdquo natildeo se amarra a esse ponto geograacutefico

uma vez que existem diversas paroacutequias dedicadas a essa mesma Santa por

todo o Brasil em Portugal e na Espanha Podemos perceber ademais nessa

mesma expressatildeo que traduziria a princiacutepio um mero nome de igreja mdash em

Joyce nada eacute meramente um nome mdash a presenccedila do personagem HCE todos

os homens Here Comes Everybody (entre tantos outros arrolamentos) mostra-

se na aglutinaccedilatildeo de Oacute com Homem = Ohmem que reverbera ainda um

possiacutevel ldquoameacutemrdquo A viacutergula apoacutes riverrun foi trocada pela conjunccedilatildeo aditiva mas

75

a viacutergula apoacutes Adamrsquos manteve-se a mesma apoacutes Ohmemrsquos que foi grafado com

ldquomrdquo no final e apoacutestrofe + s assim como eacute o nome masculino o de Adatildeo em

inglecircs

A respeito das referecircncias presentes na obra do escritor irlandecircs Donaldo

Schuumller diz ldquoNatildeo haacute paacutegina em FW sem evocaccedilotildees literaacuterias mdash as biacuteblicas

superam todas mdash como se Joyce quisesse abarcar tudo o que se escreveu

fazendo de todos os textos um livro soacuterdquo (SCHUumlLER 2004 p 20) Esse ideal

extremo de condensaccedilatildeo traz uma possibilidade ou um anseio de superaccedilatildeo do

tempo reunindo todas as obras jaacute escritas em uma soacute supera-se o que o tempo

apaga o que a distacircncia cronoloacutegica segrega A literatura pode ser pensada

entatildeo em seu caraacuteter trans-histoacuterico como afirma o fenomenoacutelogo francecircs Paul

Ricoeur em Tempo e narrativa na medida em que se eleva sobre as divisotildees do

tempo histoacuterico e cronoloacutegico de modo que se faz de toda a histoacuteria da literatura

um acontecimento contemporacircneo discorrendo sobre o tempo do calendaacuterio

ldquoentre o tempo vivido e o tempo universalrdquo com Benveniste a partir das noccedilotildees

de tempo linguiacutestico

Contudo embora a contagem do tempo do calendaacuterio esteja apoiada nos fenocircmenos astronocircmicos que datildeo sentido agrave noccedilatildeo de tempo fiacutesico o princiacutepio da divisatildeo do tempo do calendaacuterio escapa agrave fiacutesica e agrave astronomia () A originalidade que o tempo axial confere ao tempo do calendaacuterio autoriza a declarar este uacuteltimo ldquoexteriorrdquo tanto ao tempo fiacutesico como ao tempo vivido Por um lado todos os instantes satildeo candidatos legiacutetimos ao papel de momento axial Por outro natildeo haacute nada que diga que determinado dia do calendaacuterio tomado em si mesmo eacute passado presente ou futuro () Para ter presente como tambeacutem aprendemos com Benveniste eacute preciso que algueacutem fale o presente eacute o discurso que o enuncia para chegar ao tempo vivido a partir do tempo crocircnico eacute portanto preciso passar pelo tempo linguiacutestico referido ao discurso eacute por isso que determinada data completa e expliacutecita natildeo pode ser dita nem futura nem passada se ignorarmos a data da enunciaccedilatildeo que a pronuncia (RICOEUR 2012 pp182-184)

De alguma maneira a Odisseia de Homero eacute passiacutevel de ser entendida

contiguamente ao Ulysses de Joyce assim como ocorreria entatildeo com as

referecircncias contidas em Finnegans wake desde as biacuteblicas passando por

Tristatildeo e Isolda lendas irlandesas e tantas outras referecircncias histoacuterico-culturais

76

Um eterno retorno na literatura em vez de uma histoacuteria literaacuteria linear ou

perioacutedica os efeitos de uma obra natildeo tecircm iniacutecio ou fim mas engendram um

impacto que se espirala alastra-se atraveacutes do tempo sem uma chegada

O texto lanccedilado agrave traduccedilatildeo atinge em concretude a possibilidade de seu

desdobramento multiplicado agrave medida que vaacuterias traduccedilotildees coexistam Haver

mais de uma traduccedilatildeo para um mesmo fragmento de Finnegans wake ou para

qualquer outro texto literaacuterio soacute adiciona em vez de se anularem ou se

contradizerem muito mais provavelmente se complementam Seratildeo distintas por

mais parecidas que sejam transformando o texto de partida em variados outros

que natildeo lhe satildeo alheios tampouco lhe equivalem Traduzir eacute frequentemente

entendida em senso comum como uma atividade verbal geradora de equidade

como o transportar das letras de um idioma a outro Intercambiar idiomas no

entanto implica a mudanccedila de paradigmas mdash natildeo apenas pela existecircncia de

fenocircmenos linguiacutesticos relacionados a certa constituiccedilatildeo social e cultural que

existem e variam mesmo em um soacute idioma mas tambeacutem de acordo com os

diferentes paracircmetros (no sentido chomskyano) isto eacute possibilidades efetivas

de expressatildeo que a organizaccedilatildeo de determinado sistema verbal proporciona

Paralelamente ao ipsis litteris portanto compreendemos a traduccedilatildeo como uma

(tentativa de) equivalecircncia imperfeita a priori mdash ou em vez de equidade como

uma renovaccedilatildeo ou um desdobramento em tese infinito Isso sem que perda de

vista que haacute como diz Benjamin uma tangecircncia na qual a relaccedilatildeo entre o texto

de partida e a sua traduccedilatildeo se relacionam sem que haja uma transparecircncia ou

um espelhamento entre os dois um sobre o outro ou um frente ao outro mas

sim uma uniatildeo tangencial de dois textos distintos

Tendo em mente esses procedimentos e o exemplo dos brilhantes

resultados do trabalho dos irmatildeos Campos e do de Schuumller ensejaria a

pergunta uma boa traduccedilatildeo deve entender o ato tradutoacuterio dessa forma

disseminadora para produzir algo tatildeo rico quanto se afirma que uma traduccedilatildeo

pode alcanccedilar devendo ansiar por tal resultado Ou em outras palavras a

traduccedilatildeo eacute tudo isso ou sob certas condiccedilotildees demarcadas concernentes a uma

metodologia e a uma postura diante de sua feitura pode secirc-lo A mesma

pergunta permanece pairando a respeito da arte e da definiccedilatildeo de texto literaacuterio

77

A busca por saber que texto eacute ldquoboardquo literatura e que texto sequer eacute ldquoliteraacuteriordquo

afora a prova do tempo que inclui ou exclui obras de um cacircnone atrai diversas

respostas O que podemos ratificar eacute que as traduccedilotildees que partam da noccedilatildeo de

ato comunicativo de exegese una de uma interpretaccedilatildeo fechada do texto ainda

que natildeo tenham como objetivo transparecer algo de incomunicaacutevel do texto

literaacuterio poderatildeo porventura fazecirc-lo mdash como que carregando algo do texto de

partida sem nem perceber Ou se pensarmos de maneira um tanto mais

pessimista apenas destruiratildeo a relaccedilatildeo ideal eteacuterea e fugitiva com o texto de

partida natildeo sendo fiel a seu espiacuterito e ao que faz dele uma peccedila de arte e

funcionaratildeo como exerciacutecio de traduccedilatildeo intentando sinoniacutemia impossiacutevel e

concretizando mera paraacutefrase que talvez extirpe o caraacuteter literaacuterio artiacutestico que

havia outrora no texto de partida

Em ldquoUntranslatable yourdquo Shireen Patell sintetiza um caraacuteter duplo do

trabalho de traduccedilatildeo ldquoThe task of the translator () is at once an act of mourning

and na ethical practice because it is a task dictated by an absolute alterity that

signals both loss and law without calculusrdquo (PATELL 2005 p 899)26 Patell

lembra ainda Derrida no que diz respeito ao fato de que a traduccedilatildeo natildeo eacute uma

relaccedilatildeo intersubjetiva ou interpessoal mas grafemaacutetica Haacute uma diferenccedila entre

a assinatura e quem assina no caso da traduccedilatildeo essa diferenccedila se explicita na

distacircncia entre o tradutor e aquilo com o que se compromete em nome de algo

o texto e a assinatura tecircm sobrevida Ainda que haja uma dificuldade em

determinar a autoria de um texto traduzido se autor ou tradutor ou se uma

combinaccedilatildeo emerge uma assinatura nova

As mesmas perguntas a respeito da ilegibilidade de Finnegans wake se

fazem quanto agrave sua traduzibilidade ou agraves possibilidades tradutoacuterias que pode

oferecer O fato eacute que o texto possui uma riqueza nesse sentido tendo sido

produzidas excelentes traduccedilotildees e havendo ainda uma proficuidade para novas

tentativas Traduzido por Augusto de Campos Haroldo de Campos Donaldo

Schuumller e tantos outros mais que possam ter se aventurado bem como

tangencialmente por Caetano Galindo que traduziu Finnrsquos Hotel texto de Joyce

26 ldquoA tarefa doa tradutora eacute ao mesmo tempo um ato de luto e uma praacutetica eacutetica porque eacute uma tarefa comandada por uma alteridade absoluta que assinala tanto perda quanto lei sem caacutelculordquo

78

escrito entre Finnegans wake e Ulysses que parece ter sido uma espeacutecie de

rascunho do que seria o Wake ou talvez uma obra independente com algumas

pontes ou treinos ou inspiraccedilotildees de Joyce sobre o trabalho de traduzir Joyce

em Finnrsquos hotel (2014) diz Galindo ldquo[Joyce] Cobra que vocecirc fuce em cantos do

portuguecircs que normalmente ficam ali soacute pegando poacute Eacute em suma um imenso

prazer para quem tem esse tipo de perversatildeordquo (p 11) mdash e aqui lembramos o que

diz Seamus Deane excerto jaacute citado em capiacutetulo anterior ldquo[The book] converts

itself into English and perverts itself from Englishrdquo (DEANE 2000 p viii) Tanto

a escrita de Joyce quanto a traduccedilatildeo de seu texto sendo perversotildees do idioma

(ou de idiomas) natildeo poderiam caber em definiccedilotildees de traduccedilatildeo como

reproduccedilatildeo exata pois exige torccedilotildees para que se exprima ldquoconteuacutedo essencialrdquo

Assim como os exemplos tradutoacuterios aqui citados podem relativizar certas

afirmaccedilotildees se considerarmos em vez deles traduccedilotildees que natildeo tenham sido

executadas com o mesmo esmero o texto literaacuterio de partida aqui referenciado

tem a mesma consequecircncia Finnegans wake se caracteriza como uma literatura

considerada radical mdash por vezes foi considerado texto ilegiacutevel e subestimado

como mera brincadeira intelectual mdash e dessa forma eacute paradigma ideal para

exemplificar o caraacuteter eteacutereo que propomos como o que um texto tem de

intraduziacutevel No entanto como dito anteriormente o que se entende por literaacuterio

em Finnegans wake vale para todo e qualquer texto-arte poesia romancepoema

etc independentemente do gecircnero literaacuterio

A problemaacutetica dos nomes proacuteprios em Finnegans wake pontua uma

dificuldade peculiar em sua traduccedilatildeo Os nomes das personagens mudam a todo

o tempo sem haver qualquer previsibilidade ainda que sempre haja pistas para

que o leitor reconheccedila as relaccedilotildees Poder-se-ia dizer que natildeo somente os nomes

sofrem mutaccedilotildees mas os proacuteprios seres HCE e ALP aparecem em siglas em

frases diversas enquanto Isobel tem sua vogal trocada ou eacute chamada por

variaccedilotildees diversas de seu apelido Issy ou na forma de Nuvoletta Shem e

Shaun mudam para combinaccedilotildees ainda mais distantes como Mutt e Jute Burrus

e Caseous Mercius e Justius Dolph e Kev sempre na reminiscecircncia do duplo

ambivalente Essas mudanccedilas de assinaturas reverberam a condiccedilatildeo mesma

das personagens no que estiver acontecendo a cada momento

79

Traduzir eacute natildeo solidificar mdash natildeo haacute traduccedilatildeo uacuteltima ainda que possa haver

uma melhor que outra(s) mdash mas lanccedilar jogar um jogo de azar aposta-se em

uma possibilidade existente entre infindas outras e se destrinccedila o resultado

Seraacute acertado eacute provaacutevel ainda que natildeo seja Poderia ser 1 mas foi 2 Seria

igual se fosse 3 mdash igual mas diferente Tal entendimento natildeo resolve a traduccedilatildeo

natildeo a define de forma a esquecermos os problemas que acarreta Ao contraacuterio

entendecirc-la como um enredamento problemaacutetico antes de tudo permite fundaacute-la

como texto-fonte de discussatildeo tanto quanto seu texto de partida Os noacutes

tradutoacuterios deixam de secirc-lo exclusivamente para em vez disso enriquecerem

toda a constelaccedilatildeo do texto (o texto de partida e suas traduccedilotildees coexistentes)

especialmente se literaacuterio filosoacutefico ou de forma geral ensaiacutestico adicionando

discussatildeo no proacuteprio corpus do que eacute posto em pauta Pode-se ler a traduccedilatildeo

como criacutetica como ensaio como resenha como resumo como paraacutefrase ela

pode transparecer todas essas formas de expressatildeo de um texto sendo ela

mesma outro texto em vez de gecircnero objetivo Uma (boa) traduccedilatildeo condensa

uma paideuma espremendo uma impressatildeo ao mesmo tempo em que exprime

uma compreensatildeo A eventual dificuldade existente em se valorar uma obra

literaacuteria como boa (ou mesmo como literaacuteria) pode ser a mesma de se valorar a

traduccedilatildeo mas seus valores podem variar de acordo com as pautas que propotildee

com as suas premissas aleacutem de ela mesma transparecer uma certa leitura ou

visatildeo do texto de partida atraveacutes das decisotildees tradutoacuterias e das criaccedilotildees que oa

tradutora possa se permitir ao trabalhar (sobre) o texto

Sem desconsiderar dificuldades especiacuteficas inerentes e inegaacuteveis ao texto

de James Joyce dilemas tradutoacuterios no Wake podem ser dilemas tradutoacuterios

compartilhados em geral por toda e qualquer empreitada de traduccedilatildeo de textos

escriturais A literatura em geral parecendo mais ou menos complexa mais ou

menos legiacutevel e compreensiacutevel demanda o cuidado detalhado e rigoroso e por

isso impotildee dificuldades incontornaacuteveis e em verdade sem soluccedilatildeo que as

extermine por mais que se tente traduzir de diversas maneiras e por mais notas

de rodapeacute que se preencham Referindo-nos especificamente ao proacuteprio

Finnegans wake citamos novamente o texto de Shireen Patell mdash em que ela fala

sobre todo e qualquer texto possivelmente intraduziacutevel

80

What cannot be translated calls for the future translations that perpetually reach toward but can only trace an oblique if missed touch () Absolute untranslatability is the silent articulation of the absent ideality of translation that nonetheless inspires translation figuration writing This absolute translatability is in and of the language itself (PATELL 2005 p 901)27

Ademais mesmo admitindo certa dificuldade especiacutefica inerente ao

Finnegans wake seja entre a traduccedilatildeo de nomes de personagens seja na dos

trovotildees de cem letras que povoam todo o livro mdash e que frequentemente satildeo

mantidos sem traduccedilatildeo mdash defende-se aqui uma postura necessaacuteria diante de

qualquer obra literaacuteria Pode-se evocar aqui um trecho de Jacques Derrida em

seu livro De la grammatologie discorrendo sobre as afirmaccedilotildees a respeito da

linguagem de Jean-Jacques Rousseau no texto ldquoGecircnese e escritura do Essai sur

lrsquooriginerdquo ldquoNatildeo haveraacute nem uma linha histoacuterica nem um quadro imoacutevel das

liacutenguas () As liacutenguas satildeo semeadasrdquo (DERRIDA 2011 p 263) Essa citaccedilatildeo

pode contribuir aqui como uma explicaccedilatildeo do dinamismo babeacutelico do proacuteprio

Wake que lida com liacutenguas sem delimitaccedilatildeo suficientemente inseridas em

fluidez de hibridizaccedilatildeo e fusatildeo sendo semeadas e assim portanto germinando

no feacutertil suporte terreno do texto Estende-se poreacutem a qualquer escritura que

contenha em si uma gagueira para falar com Gilles Deleuze ou qualquer texto

feito a partir de uma liacutengua contendo algum niacutevel de estranhamento diante da

proacutepria liacutengua atuando na sua fronteira Ainda que natildeo haja o trabalho de

confronto ou um fenocircmeno de clash entre diferentes idiomas uma liacutengua jamais

estaacute ausente de relaccedilotildees com outras liacutenguas que vieram antes depois que

ocuparam terras proacuteximas ou distantes Mesmo que natildeo sejam fundidos

explicitamente dezenas de diferentes idiomas como faz Joyce no Wake

nenhum texto eacute isolado em sua liacutengua

27 ldquoO que natildeo pode ser traduzido demanda futuras traduccedilotildees que perpetuamente se direcionam mas soacute podem rastrear um obliacutequo ou mesmo perdido toque () Intraduzibilidade absoluta eacute a articulaccedilatildeo silenciosa que inspira poreacutem traduccedilatildeo figuraccedilatildeo escrita Essa absoluta intraduzibilidade estaacute na e eacute da liacutengua ela mesmardquo

81

Tal postura tradutoacuteria jaacute seria suficiente para nos apartar do labor braccedilal

de buscar definiccedilotildees dicionarizadas como sinocircnimo de traduccedilatildeo Essa maneira

de ida ao texto se relaciona natildeo somente com o resultado que surgiraacute da

traduccedilatildeo mas comeccedila na forma de leitura do texto de partida na maneira como

eacute abordado pela primeira vez mdash natildeo somente pelo leitor que lecirc com intenccedilatildeo e

olhos de tradutor mas por qualquer outro Se o que se busca eacute a univocidade a

definiccedilatildeo a anaacutelise estrutural perfeita com blocos conceituais relacionados a

cada porccedilatildeo do texto e metaacuteforas delineadas a serem circuladas a babelizaccedilatildeo

do texto seraacute entatildeo deixada de lado A traduccedilatildeo pautada por uma simplificaccedilatildeo

ou univocidade semacircntica por reestruturaccedilatildeo deriva de uma leitura

hermenecircutica Se a gagueira do texto de partida eacute ignorada certamente natildeo

apareceraacute nem transpareceraacute qualquer tipo de gagueira no texto derivado

ldquotraduzidordquo a gagueira que habita a traduccedilatildeo eacute resultado da relaccedilatildeo primaacuteria mdash

no sentido de primeira mdash do tradutor com o texto que se propotildee a traduzir recriar

ou transcriar em uma postura de leitor disposto a vivecirc-lo em vez de entendecirc-lo

Disposto a ter uma experiecircncia com sua linguagem muito antes de tencionar

destrinchaacute-lo

CAPIacuteTULO III

LEITURA LUTO ELIPSE

83

Ao pensarmos em Finnegans wake seja tendo um conhecimento distante

fragmentado ou superficial a seu respeito seja apoacutes tentativas de aproximaccedilatildeo

da obra uma seacuterie de questotildees inevitavelmente nos consomem em verdade

continuam a aparecer mesmo durante a entrega a uma leitura profunda desse

texto impossiacutevel de se explorar de forma acelerada ou submetida a prazos

dados os obstaacuteculos que nos prendem por um tempo sempre maior que o

previsto em um paraacutegrafo em uma linha ou em uma soacute enigmaacutetica palavra Uma

leitura ceacutelere ainda que permita terminar de ler o livro integralmente eacute uma

leitura desperdiccedilada Em se tratando de Finnegans wake a concepccedilatildeo do livro

eacute clara quanto a mais valer o deter-se sobre uma linha que se mostre inebriante

do que o impaciente passar de paacuteginas insistentemente evocando uma leitura

fluida em velocidade que provavelmente teraacute sido forccedilada e pouco proveitosa

84

Essa escolha de Joyce aponta como sabemos e logicamente podemos

supor a estrutura circular do livro No entanto essa expressatildeo natildeo pode se

findar em si mesma sendo banalizada significando nada para aleacutem dela

Devemos antes de tudo questionar a esse respeito a fim de investigar o que

algumas anaacutelises afirmam como verdades que se apresentam integrais quando

de fato satildeo geradoras de problemas diversos Pergunta-se entatildeo quais as

implicaccedilotildees de uma estrutura circular Essa estrutura eacute verdadeiramente

possiacutevel em todos os aspectos que seriam forccedilosamente decorrentes de sua

concepccedilatildeo

Eacute oportuno relembrar aqui Umberto Eco citando Henri Pousseur que

indica caber ldquoao ouvinte colocar-se voluntariamente no centro de uma rede de

relaccedilotildees inexauriacuteveisrdquo (ECO 1989 p 49) natildeo havendo amarras que

determinem o caminho da leitura Uma espeacutecie de maior livre-arbiacutetrio se instala

necessariamente diante da falta de um caminho fechado como se em vez de

percorrer um corredor o leitor se encontrasse em um labirinto Esse labirinto eacute

claro foi projetado de modo que suas curvas e becos foram pelo menos ateacute

certo ponto tranquilamente previstos Com a multiplicidade de caminhos

oferecida nessa arquitetura no entanto em oposiccedilatildeo agrave unidade do caminho

linear haacute uma medida de imprevisibilidade por mais meticulosamente planejado

que esse labirinto seja a ordem de cada escolha do indiviacuteduo que vai percorrer

seu terreno

Outras referecircncias feitas por Umberto Eco se fazem necessaacuterias no que

concerne agrave porccedilatildeo fenomenoloacutegica de toda essa problemaacutetica Em uma leitura

desse tipo podemos considerar uma esquemaacutetica que envolva a consciecircncia do

sujeito-leitor diante da obra que aiacute eacute o que percebe como fenocircmeno mdash

consciecircncia que por ser instaacutevel isto eacute no sentido de uma consciecircncia natildeo-ideal

natildeo ser plenamente preacute-delimitada mas sim aberta a mutaccedilotildees imprevisiacuteveis e

que portanto natildeo nos permitiria calcular previamente todas as possibilidades de

interaccedilatildeo com a obra em um quadro finito e fechado Umberto Eco desenvolve

esse ponto com as seguintes observaccedilotildees

85

Assim um objeto natildeo somente apresenta diversas Abschattungen (ou perfis) mas satildeo possiacuteveis diversos pontos de vista sobre uma uacutenica Abschattung O objeto para ser definido deve ser transcendido em direccedilatildeo agrave seacuterie total da qual ele enquanto uma das possiacuteveis apariccedilotildees eacute membro Nesse sentido ao dualismo tradicional ser e parecer substitui-se uma bipolaridade de finito e infinito de tal modo que o infinito se potildee no proacuteprio coraccedilatildeo do finito () O problema da relaccedilatildeo do fenocircmeno com seu fundamento ontoloacutegico dentro de uma perspectiva de abertura perceptiva transforma-se no problema de relaccedilatildeo do fenocircmeno com a plurivalecircncia das percepccedilotildees que dele podemos ter (Ibid pp 58-59)

Dessa maneira no esteio dessas afirmaccedilotildees se noacutes tomarmos em

consideraccedilatildeo as possibilidades de que uma obra como Finnegans wake

demande natildeo somente uma apreciaccedilatildeo passiva decodificando primariamente o

texto mas acima de tudo uma interaccedilatildeo de caraacuteter ateacute mesmo mais executivo

se assim pudeacutessemos dizer seria necessaacuterio no miacutenimo considerar que essa

posiccedilatildeo ativa seraacute ocupada por um leitor que tem sua proacutepria bagagem subjetiva

Natildeo colocamos em questatildeo aqui uma bagagem de conhecimento objetivo

necessaacuterio para um entendimento de leitura nem nada nesse esteio ao

contraacuterio ao inveacutes de uma espeacutecie de elitizaccedilatildeo um acesso democraacutetico permite

que qualquer indiviacuteduo se ponha agrave fruiccedilatildeo da literatura da maneira como puder

acessaacute-la O que levamos em conta eacute o caraacuteter fenomenoloacutegico dessa interaccedilatildeo

observando que essa interaccedilatildeo com a obra teraacute algo de uacutenico para cada

consciecircncia que a perceba e que tome atitudes frente a ela Umberto Eco

continuando seu raciociacutenio a respeito desse fundamento ontoloacutegico na abertura

perceptiva cita excerto de Pheacutenomenologie de la perception de Maurice

Merleau-Ponty

A contradiccedilatildeo que encontramos entre a realidade do mundo e seu inacabamento eacute a proacutepria contradiccedilatildeo entre a ubiquidade da consciecircncia e seu engajar-se num campo de presenccedila () A consciecircncia que passa pelo lugar da clareza eacute ao contraacuterio o proacuteprio lugar do equiacutevoco () Eacute portanto essencial agrave coisa e ao mundo apresentarem-se como ldquoabertosrdquo prometer sempre ldquoalgo mais a verrdquo (MERLEAU-PONTY apud ECO 1989 p 59)

86

Estruturalmente poderiacuteamos entatildeo esquematizar trecircs possibilidades de

leitura do Finnegans wake todas coerentes com a consideraccedilatildeo de uma

estrutura circular A primeira eacute a despeito da assunccedilatildeo da circularidade a que

se pode fazer seguindo a ordem da numeraccedilatildeo dos fragmentos Essa eacute uma

leitura linear tanto quanto uma segunda possibilidade em que se acessaria a

obra de qualquer fragmento ignorando a determinaccedilatildeo do iniacutecio do livro com o

nuacutemero 1 e se seguiria a leitura a partir da paacutegina escolhida na ordem colocada

ndash escolhendo por exemplo o fragmento 429 para ser o primeiro e seguir a leitura

ateacute o de nuacutemero 628 em seguida do nuacutemero 1 ateacute o nuacutemero 428 Essas duas

possibilidades diferem radicalmente de uma terceira que seria a de ler os

fragmentos em qualquer ordem anarquizando completamente a obra e tirando

dela boa parte do sentido Ler Finnegans wake fora de ordem eacute o mesmo que ler

qualquer outro livro de que se tem conhecimento fora de ordem assim como eacute

o mesmo que percorrer um ciacuterculo dando passos adiante voltando seguindo

desviando eacute uma leitura anaacuterquica que extermina o que a obra tem a oferecer

como obra una e total

Excluindo entatildeo a terceira forma de leitura esclarecemos que os

fragmentos natildeo satildeo absolutamente isolados entre si e nem intercambiaacuteveis mdash

ao menos natildeo sem seacuterias consequecircncias para a coerecircncia da obra e para o

acesso a ela como foi concebida em sua integridade Os fragmentos guardam

tanta independecircncia entre si quanto as paacuteginas do romance mais tradicional o

fazem quase nenhuma Eacute possiacutevel ler uma paacutegina do Wake e dar-se por

satisfeito tanto quanto eacute possiacutevel ler uma paacutegina de qualquer livro e saber que

aquilo eacute apenas uma amostra um pedaccedilo uma parte separada do todo que lhe

confere coerecircncia como obra

As duas primeiras formas de leitura portanto parecem-nos similares No

entanto acessar uma obra a partir de uma paacutegina ou a partir de outra paacutegina

ainda que seja uma obra circular isto eacute sem iniacutecio meio e fim definidos resulta

em duas leituras absolutamente diferentes No entanto aqui tem-se a diferenccedila

crucial entre o Wake e qualquer outro livro uma estrutura circular implica

necessariamente na diluiccedilatildeo do segmento temporal fechado isto eacute numa

abertura em que qualquer paacutegina do livro pode ser parte de um iniacutecio de um

87

meio ou de um fim Afinal o livro pode ser livre dessas divisotildees em sua estrutura

mas o tempo da leitura jamais seraacute Sempre temos de ler em alguma ordem e

algum trecho inicia esse processo algum se faz no meio e algum trecho conclui

nosso percurso como leitores Caso pensemos portanto em multiplicar as

possibilidades de acesso ao Finnegans wake ateacute que sejam consideradas todas

as possibilidades de leitura teriacuteamos de lidar com nada menos que seiscentas

e vinte e oito formas de acesso agrave obra no miacutenimo

Mostra-se impossiacutevel eacute evidente experimentar todas essas formas de

acesso Considerando que houvesse o tempo necessaacuterio deveriacuteamos levar em

conta ainda a contaminaccedilatildeo inevitaacutevel no processo isto eacute a certo ponto jaacute se

saberia o que esperar e a mudanccedila na ordem natildeo teria o mesmo efeito que teria

se acessada em uma primeira leitura Uma vez lido em uma certa ordem o livro

jamais seraacute redescoberto atraveacutes de outra ao menos natildeo como se nunca tivesse

sido lindo anteriormente qualquer que seja a nova ordem

O que nos eacute possiacutevel questionar eacute ateacute que ponto essa circularidade existe

de fato tentando expor natildeo apenas a forma como ela eacute concebida e a partir de

que modelos mas tambeacutem as consequecircncias de seu uso e se a circularidade se

daacute apenas idealmente ou se eacute de fato executada isto eacute temos de investigar se

eacute perceptiacutevel e constataacutevel considerando o acesso ao livro por qualquer uma de

suas paacuteginas O que origina a elaboraccedilatildeo dessa estrutura em Finnegans wake

eacute como se sabe ldquoVicorsquos recurrent cycle at once repetitious and various mdash like

the Wake itselfrdquo e Tindall nos chama a atenccedilatildeo ainda para o fato de que ldquoJoycersquos

hieroglyph for the Wake and its title is a square its sides no doubt the quadrants

a little squashed of Vicorsquos wheelrdquo28 (TINDALL 1969 p 10) Mesmo que a forma

geomeacutetrica escolhida por Joyce em seus desenhos na elaboraccedilatildeo do Wake

tenha sido natildeo o ciacuterculo mas o quadrado isso se explica pela escolha por quatro

partes e ainda assim se relaciona agrave circularidade viconiana Nesse caso a forma

geomeacutetrica ter veacutertices ou natildeo eacute irrelevante mdash Joyce chega a preferir um cubo

28 ldquoO ciclo recorrente de Vico concomitantemente repetitivo e variado ndash como o proacuteprio Wakerdquo e ldquoo hieroacuteglifo de Joyce para o Wake e seu tiacutetulo eacute um quadrado ainda que seus lados sem duacutevidas satildeo os quadrantes um pouco distorcidos da da roda de Vicordquo

88

em alguns momentos mdash uma vez que se poderia observar uma espeacutecie de

ldquocircularidaderdquo tambeacutem nessas outras formas ao circundaacute-las especialmente

enfatizando um periacutemetro percorrido em repeticcedilatildeo ciacuteclica que retorna a um

ponto

A ideia desse retorno a um ponto eacute outro problema basilar derivado da

aceitaccedilatildeo do princiacutepio da circularidade de Finnegans wake Deve-se lembrar que

nem o ricorso de Vico nem a circularidade da obra de Joyce resultam no retorno

ao mesmo ponto pois em ambos os casos o ponto original eacute irrecuperaacutevel

Depois de ler todas as sentenccedilas de Finnegans wake a continuaccedilatildeo da uacuteltima

frase (dizendo aqui ldquouacuteltimardquo eacute claro deixando de lado a relativizaccedilatildeo da ordem

que acabamos de engendrar e tomando portanto a ordem linear numeacuterica)

retorna ao mesmo ponto se pensarmos que retorna agrave paacutegina 1 essa paacutegina no

entanto jaacute natildeo eacute mais a mesma que se tinha quando se iniciou a leitura Assim

se daacute tambeacutem com o ciclo das idades proposto por Vico que serviu como

modelo para o Wake apoacutes o fim da Idade dos Deuses dos Heroacuteis e dos Homens

haacute um ricorso agrave Idade dos Deuses mdash no entanto eacute outra Idade dos Deuses que

estaacute se formando com aspectos gerais que a definem mas que natildeo estaacute

retrocedendo a uma mera repeticcedilatildeo Natildeo se tem uma maacutequina do tempo que vai

e vem atravessando as mesmas fases mas uma evoluccedilatildeo que evoca

circularidades heterogecircneas Uma figura recorrente eacute a do eco que remete ao

movimento de repeticcedilatildeo ciacuteclica e eacute executado tanto na sonoridade do proacuteprio

texto com rimas e aliteraccedilotildeesassonacircncias quanto tambeacutem por vezes citado

explicitamente ldquoThe echo is where in the back of the wodes callhim forthrdquo (FW

1263)29 O formato circular que natildeo supotildee repeticcedilatildeo eacute perceptiacutevel em outras

obras de Joyce Em Retrato Stephen frequentemente se apresenta preso em

linhas de raciociacutenio que parecem recair sobre si mesmas ou sobre um ponto

originaacuterio mas que engendram ainda assim deslocamento Mesmo em

Ulysses haacute evidentes formas de circularidade a comeccedilar pela jornada diaacuteria do

protagonista Leopold Bloom mas que natildeo insinua dias sempre iguais ateacute a

estrutura do monoacutelogo de Molly que reitera termos agrave medida que avanccedila

29 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoO eco eacute onde no fundo da florode que venhardquo

89

Apesar de a estruturaccedilatildeo circular ser aceita a priori por William York

Tindall como a base de Finnegans wake o estudioso estadunidense natildeo parece

considerar de fato as implicaccedilotildees desse ciacuterculo tomando apenas as suas

causas ou origens mas natildeo as consequecircncias de afirmaccedilatildeo dessa estrutura

Tindall afirma que o primeiro capiacutetulo eacute visivelmente uma introduccedilatildeo geral e o

uacuteltimo uma conclusatildeo com o diferencial de que abarca ainda a funccedilatildeo de aticcedilar

o leitor para ao retorno agrave primeira paacutegina Vemos entatildeo o problema loacutegico em

sua afirmaccedilatildeo se o trecho ldquofinalrdquo de Wake serve para levar o leitor ao fragmento

de nuacutemero 1 temos um trecho incumbido de algo que se parece com uma

espeacutecie de introduccedilatildeo a esse retorno ou que certamente tem alguma funccedilatildeo

muito distinta da de concluir York Tindall provavelmente entrevendo a

incoerecircncia no que afirma explica ldquoA general conclusion [the last chapter] and

a general introduction [the first one] parallel in function demand parallel

methodsrdquo30 (TINDALL 1969 p 305)

No entanto o que Tindall afirma haver de similar entre o primeiro e o

uacuteltimo capiacutetulos existe por todo o livro Haacute sequecircncias de retornos mdash no capiacutetulo

4 depois no oitavo e assim por diante O mesmo vale para as trecircs idades que

formam com o ricorso os quatro lados desse percurso que natildeo se repetem

mas reaparecem distintos ainda que apareccedilam em ordem sempre esperada isto

eacute estejam alocados em trechos previsiacuteveis devidamente selecionados para eles

dentro da grande ordem de todas as fases O acesso entatildeo a depender de que

fragmento serviraacute como o iniacutecio pode se dar em um fragmento elaborado nos

moldes da Idade dos Deuses dos Heroacuteis ou dos Homens ou ainda do ricorso

mas seraacute sucedido de uma ordem invariaacutevel Que haveraacute diferenccedilas entre uma

leitura que se inicie em um capiacutetulo escrito de uma forma dentro de certa

estrutura basilar e uma que se inicie por outro que tenha outra estrutura natildeo

haacute duacutevidas se a leitura do todo do livro for possiacutevel de todos os fragmentos

poreacutem a circularidade estaraacute comprovada O livro que se lecirc entatildeo tem de ser o

mesmo somente acessado em outra ordem e portanto a partir de uma

30 ldquoUma conclusatildeo geral [o uacuteltimo capiacutetulo] e uma introduccedilatildeo geral [o primeiro] paralelas em funccedilatildeo demandam paralelismo em meacutetodordquo

90

sequecircncia distinta de leitura mas que permita concluir a leitura assim como a

tentativa que comeccedila do fragmento 1 tambeacutem propicia

A figura espectral se mostra deveras pertinente Wake se diferencia

tambeacutem pela formaccedilatildeo de uma polifonia especial que nos confunde natildeo apenas

em termos de natildeo saber que personagem estaacute falando agora mas ainda de

trazer as vozes dos mortos para se misturarem agraves dos vivos sem que se

intercalem mas efetivamente convivam mdash o que tambeacutem exige uma

compreensatildeo temporal absolutamente uacutenica em que em meio ainda a

possibilidades de porvir natildeo haacute separaccedilatildeo espaccedilo-temporal entre um suposto

agora e um suposto antes No livro James Joyce and the difference of language

Laurent Milesi diz

This evolution is thus inseparable from an increasing dissolution or ar leat problematization of neat entities like character and voice as well as the boundaries between them and consequently from the emergence of more polyphonic voices which in the lsquopollyloguersquo (FW 4709) or lsquodrama parapolylogicrsquo (FW 4745) of Finnegans wake will ultimately combine with shifting enunciative poles and a pliable linguistic medium to create erring discursive effects ascribable to a lsquosidersquo or lsquorolersquo ina many-faceted lsquocharacter complexrsquo (MILESI 2003 p 91)31

A estrutura circular e a referecircncia a figuras de diversos momentos

histoacutericos bem como a livros como o Livro dos mortos egiacutepcio ou o Livro de Kells

irlandecircs unem-se na dissoluccedilatildeo de fronteiras temporais Finnegans wake

certamente natildeo tem nem poderia pretender ter um momento (mesmo externo

histoacuterico) definido nem mesmo um tempo psicoloacutegico definido mdash que assumiria

a perspectiva da consciecircncia de uma personagem como sobressalente ditando

voz perspectiva contexto

31 ldquoEssa evoluccedilatildeo eacute entatildeo inseparaacutevel da crescente dissoluccedilatildeo ou ao menos problematizaccedilatildeo de entidades precisas como personagem e voz bem como das fronteiras entre elas e consequentemente da emergecircncia de mais vozes polifocircnicas que no lsquopollyloguersquo (FW 4709 ou lsquodrama parapolylogicrsquo (FW 4745) de Finnegans wake vatildeo por fim combinar com poacutelos enunciativos instaacuteveis e um meio linguiacutestico elaacutestico para criar efeitos discursivos errantes atribuiacuteveis a uma lsquofronteirarsquo ou lsquopapelrsquo em um mil-faces lsquocomplexo de personagemrsquordquo

91

Faz-se espectro ainda o todo da obra literaacuteria na medida em que natildeo se

sabe como ela seraacute executada pelo leitor que se depara com ela Como uma

partitura sem indicaccedilotildees precisas trazendo meras sugestotildees e portanto

inuacutemeras possibilidades de trocas Wake precisa ser executado mas pode secirc-lo

de diversas maneiras em diversas ordens Assim natildeo se tem uma imagem

niacutetida do que eacute o Finnegans wake mas primordialmente sabe-se o que ele pode

vir a ser em mais de uma possibilidade

A isso como jaacute foi exposto estaacute ligada uma temporalidade que poderaacute

operar diferentemente em cada execuccedilatildeo da partitura wakiana Uma oposiccedilatildeo

entre o tempo linear e o tempo ciacuteclico pode mostrar como a estrutura basilar do

Wake que se afasta da linearidade possibilita essa diversidade e o que isso

pode significar na tessitura textual e para uma leitura atenta ao escritural do

texto Explicando a diferenccedila entre tempo ciacuteclico e tempo linear o filoacutesofo Karl

Jaspers (1883-1969) diz

O ciclo do tempo visto como recorrecircncia eacute a imortalidade do que em tal ciclo se produz () A todo instante estaacute ligando o fim ao comeccedilo Vive no ciclo do eterno retorno Pode ocorrer que a distacircncia a separar o fim (morte) do comeccedilo (novo nascimento) seja imensa mas reduz-se a nada se a vida eacute revivida de maneira infinitamente repetitiva fazendo-se em tal sentido imortal () Inteiramente diverso eacute o que se passa com o tempo linear Tudo que eacute temporal eacute levado pelo tempo linear a um fim irremediaacutevel (JASPERS 2011 p 146)

A estrutura circular de Finnegans wake faz mais do que nos prender ao

livro-sem-fim traduz uma possibilidade de existecircncia fora do andamento do

tempo na pura temporalidade isto eacute naquilo que natildeo ultrapassa um presente

mas permanece nele Obriga-nos a estar no presente da leitura sem nos

desviarmos e sem conclusatildeo relendo e relendo e relendo Joyce nos obriga

mantendo-nos na atividade da leitura que nunca termina a cumprir a exigecircncia

que faz ao seu leitor Instalando o texto num eterno retorno transforma-se nessa

afirmaccedilatildeo da vida em que a morte jaacute natildeo ocupa o espaccedilo do esquecimento a

voz dos mortos ecoa entre os vivos sua presenccedila faz-se material a morte de

certa maneira aiacute jaacute natildeo existe

92

O tempo absoluto da concepccedilatildeo ciacuteclica que natildeo pode ser transposto se

opotildee ao tempo linear em que haacute resoluccedilatildeo transposiccedilatildeo um acontecimento

ultrapassa o outro um momento sucede o seguinte O apagamento do que fica

no passado soacute pode ser modificado pela soluccedilatildeo de decidir o que se grava na

histoacuteria Mesmo assim natildeo se recupera nada por inteiro sendo impossiacutevel uma

volta ao passado a memoacuteria evoca as reminiscecircncias que ocupam o tempo

presente apenas como resto incorpoacutereo como espectro O tempo absoluto se

faz de maneira inteiramente distinta Nas palavras de Jaspers nele ldquofaz-se aquilo

que se repete infinitamente mdash e permanece temporal () Tempo linear e tempo

ciacuteclico satildeo enigmas incompatiacuteveis () O tempo ciacuteclico torna possiacutevel a ideia do

lsquouma vez maisrsquo por meio do eterno retornordquo (Ibid p 147)

O tempo ciacuteclico do retorno tambeacutem se faz em espectros o retorno eacute

sempre o ldquouma vez maisrdquo poreacutem sempre singular jamais uma repeticcedilatildeo idecircntica

senatildeo recairia em uma simples hipoteacutetica volta ao passado do tempo

cronoloacutegico como uma espeacutecie de maacutequina do tempo construiacuteda no tempo

linear O retorno do tempo ciacuteclico natildeo se faz dessa maneira eacute um novo

acontecimento mas que se relaciona com algo jaacute ocorrido Se lermos o Wake

circularmente isto eacute repetidamente obedecendo agrave continuaccedilatildeo do uacuteltimo

fragmento no primeiro natildeo estaremos rebobinando nosso tempo mas tatildeo

somente fazendo uma nova leitura de uma mesma coisa um mesmo texto que

natildeo se alterou enquanto natildeo estaacutevamos olhando Haacute assim uma diferenccedila um

assombro do que se leu antes percorrendo o momento da releitura O tempo

ciacuteclico se faz entatildeo no seu retorno eterno de fantasmas

A palavra retorno no portuguecircs talvez natildeo seja tatildeo adequada justamente

por apagar essa diferenccedila ldquoretornarrdquo pressupotildee que se foi a algum lugar ao qual

se estaacute voltando indica entatildeo mais imediatamente o movimento do tempo

linear de maneira que se imagine uma volta na linha do tempo ao tempo

passado estanque em seu lugar No entanto ricorso termo de Giambattista Vico

se relaciona a curso agravequilo que flui parecendo entatildeo mais adequado agrave ideia do

tempo ciacuteclico em que as repeticcedilotildees satildeo novos acontecimentos Justifica-se aqui

a expressatildeo criada para intitular este trabalho que conjuga ldquofluirrdquo e ldquoricorsordquo para

explicitar esse caraacuteter no termo italiano de Vico

93

A maneira como esse engendramento ciacuteclico foi relido na filosofia

moderna com o eterno retorno de Friedrich Nietzsche indica ainda a

positividade dessa estrutura Como o fim de Ulysses eacute o ldquosimrdquo mdash e Joyce queria

que assim ele se mantivesse mesmo traduzido como a correspondecircncia a

respeito da traduccedilatildeo para o francecircs comprova em que Joyce pede para que o

fim seja tatildeo somente a palavra ldquosimrdquo mdash o ciclo coacutesmico reafirma o sim para o

mundo o cada vez novamente o novo deacutejagrave Eacute a accedilatildeo que natildeo se direciona a

uma finalizaccedilatildeo natildeo tende ao teacutermino mas agrave atividade plena contiacutenua ldquoO

mundo afirma-se por si tambeacutem na sua uniformidade que permanece a mesma

no decurso dos anos bendiz-se por si mesmo porque eacute aquilo que deve voltar

eternamente porque eacute o devir que natildeo conhece saciedade teacutedio nem fadigardquo

(Wille zur Macht ed 1901 sect 385)

A entrada na narrativa de Finnegans wake isto eacute o contato inaugural do

leitor com os acontecimentos narrativos eacute anunciada por uma queda ldquoThe fall bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhoun

awnskawntoohoohoordenenthurnukldquo Queda reverberante com repeticcedilotildees

silaacutebicas misturadas e a formaccedilatildeo desse conjunto de fonemas que natildeo eacute verbete

em nenhum idioma mas comporta idiomas diversos natildeo eacute um ponto de partida

da narrativa ndash natildeo haacute um primeiro acontecimento ou accedilatildeo mdash mas a queda na

narrativa que jaacute estaacute em curso como uma queda drsquoaacutegua anunciada no riverrun

a palavra de abertura da obra Assim a narrativa inicia-se jaacute iniciada

Apoacutes o riverrun diz-se ldquopast Eve and Adamrsquosrdquo Pode-se ler tendo em

mente que estamos passando em frente a Eve and Adamrsquos catedral em Dublin

ou que aquilo que seraacute narrado se situa temporalmente apoacutes Adatildeo e Eva ou

mesmo no passado do casal primaacuterio em tempos inefaacuteveis O tempo eacute fluido

talvez aparentemente caoacutetico mas apenas repensado reimaginado mdash

mudanccedilas de paracircmetros que pedem uma revisatildeo radical Isso tambeacutem

podemos dissecar no tiacutetulo que comporta o fim (fin no francecircs e finis no latim)

e a sua repeticcedilatildeo (-egan again mdash o proacuteprio eterno retorno) ou o fim de encontro

ao despertar (fin-egans (la) fin against + (the) Wake relacionando tambeacutem ao

nome do personagem Earwicker que em alematildeo eacute erwecker ldquoaquele que

despertardquo) ou ainda contra outro fim o veloacuterio outra traduccedilatildeo para wake

94

substantivo Como aponta Donaldo Schuumller ldquoA circularidade viconiana gira no

geral e nos detalhesrdquo (SCHUumlLER 2004 p 17)

Para William York Tindall o tempo eacute a mais importante mateacuteria desse

ldquoensaio sobre o homemrdquo de James Joyce ldquoRise and fall and rise again sleeping

and waking death and ressurrection sin and redemption conflict and

appeasement and above all time itself mdash saecula saeculorum mdash are the matter

of Joycersquos essay on manrdquo32 (TINDALL 1969 p 4) Tambeacutem caracteriza a obra

como a comeacutedia humana de Joyce ldquoNot only his essay on man the Wake is his

human comedyrdquo33 (Ibid p 7) Ao final de sua introduccedilatildeo Tindall afirma que seu

livro natildeo visa a uma apreensatildeo completa nem a ultimatos sobre a obra mas sim

a ser um suplemento dos estudos preacutevios ldquoAfter all what authority on the Wake

knows half of it Which half is the critical questionrdquo34 (Ibid pp 25-26)

O tempo em Finnegans wake destacado por Tindall cumpre papel vital

em toda a organizaccedilatildeo da obra aleacutem da estrutura circular em quatro partes que

Joyce emprega livremente das Idades do filoacutesofo Giambattista Vico mdash assim

como a Odisseia de Homero serve de base para Ulysses o Wake tem

correspondente nesse uacuteltimo caso no entanto Joyce parte de fonte filosoacutefica

em vez de literaacuteria Ainda no iniacutecio quando Harriet Weaver pareceu natildeo entender

e natildeo gostar do que leu do Work in progress Joyce ldquoinsistiu com ela para que

lesse a Scienza Nuova de Vico como com o Ulisses insistira em que lesse a

Odisseiardquo (ELLMANN 1989 p 695) Natildeo eacute soacute no cerne estrutural poreacutem que

podemos perceber a especificidade do tempo de um romancepoema plotless mdash

que se natildeo possui enredo natildeo possui portanto linha cronoloacutegica expliacutecita

Tindall pretende e tende a extrair o plot concatenando as cenas sempre com

uma possiacutevel visatildeo de causa e consequecircncia pontuando as personagens

nomeando-as e definindo-as Eventualmente sua tentativa recai contudo na

incontornaacutevel indefiniccedilatildeo

32 ldquoAscender e cair e ascender novamente dormir e despertar morte e ressureiccedilatildeo pecado e redenccedilatildeo conflito e conciliaccedilatildeo e acima de tudo o proacuteprio tempo mdash saecula saeculorum mdash satildeo a mateacuteria do ensaio de Joyce sobre o homemrdquo 33 ldquoNatildeo apenas seu ensaio sobre o ser humano o Wake eacute sua comeacutedia humanardquo 34 ldquoAfinal de contas que autoridade no Wake sabe metade do que se tem a saber sobre ele Qual metade eacute a pergunta fundamentalrdquo

95

Percebemos a dificuldade no exemplo do segundo capiacutetulo que eacute um dos

mais claros em termos de composiccedilatildeo de cena ou ao menos quanto ao

desenrolar das accedilotildees e seus agentes o que Tindall atribui ao fato de ter sido um

dos primeiros que Joyce escreveu ldquoMaybe he did not have time going over it to

complicate it according to his habitrdquo35 (Ibid p 57) Quanto a tempo e espaccedilo

contudo permanecemos na pluralidade mdash ou mais pertinente dizer na

ubiquidade Tomemos um entendimento primaacuterio da cena com o qual

poderiacuteamos depreender o enredo geral temos Earwicker (a essa altura jaacute

tivemos esclarecimentos sobre sua alcunha) no Phoenix Park em Dublin

surpreendido por um jovem que lhe pergunta as horas O garoto portava um

cilindro o que pode justificar que Earwicker (aqui lembramos Wecker alematildeo

para despertador ndash aquilo que daacute as horas) se sentiu ameaccedilado Defende-se

demonstrando culpa e natildeo responde com a precisatildeo que a pergunta

demandaria O deslocamento no tempo e no espaccedilo poreacutem ocorre em diversos

pontos no paralelo de Earwicker com Adatildeo na culpa em comum por terem

cometido algum pecado mdash Adatildeo no Jardim do Eacuteden nosso protagonista no

parque em questatildeo

They tell the story (an amalgam as absorbing as calzium chloereydes and hydrophobe sponges could make it) how one happygogusty Ides-of-April morning (the anniversary as it fell out of his first assumption of his mirthday suit and rights in appurtenance to the confusioning of human races) ages and ages after the alleged misdemeanour when the tried friend of all creation tigerwood roadstaff to his stay was billowing across the wide expanse o four greatest park in his caoutchouc kepi and great belt and hideinsacks and his blaufunx fustian and ironsides jackboots and Bhagafat gaiters and his rubberised inverness he met a cad with a pipe (FW 351-11)36

35 ldquoTalvez ele natildeo tenha tido tempo ao percorrecirc-lo [o texto] de complicaacute-lo como de haacutebitordquo 36 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2000) ldquoContam a estoacuteria (uma amaacutelgama tatildeo absorvente quanto caacutelcio clorado e esponja hidroacutefoba poderiam performaacute-la) como numa letagostosa idos-de-abril manhatilde (o aniversaacuterio como se soube da primeira assunccedilatildeo do nascimento costumes e direitos em pertinecircncia agrave confusatildeo das raccedilas humanas) idades e idades apoacutes a alegada delonga quando o amigo comprovado de toda criaccedilatildeo begala de pau-marfim para seu equiliacutebrio ondulava atraveacutes do vasto territoacuterio do nosso mais esplecircndido parque com seu kepi caucho e imenso cinturatildeo cota de ferro humor faacutesutico botas de cavalaria inglesa espirituralidade hindu e c apa de chuva ele encontrou um cadete com um cilindrordquo

96

Tindall abre a possibilidade de a cena se ampliar e se desdobrar no

espaccedilo e no tempo relacionando a cena ao pecado original ldquoMaybe it is any sin

of every man or every sin of any manrdquo37 (TINDALL 1969 p58) O que Earwicker

fez de errado no entanto permanece em suspenso para o leitor em meio aos

tantos boatos que se reproduzem aparentemente de maneira incessante

Aparecem ainda outros paralelos espaccedilo-temporais como aparece na

expressatildeo ldquoIdes-of-April morningrdquo que lembra os Idos de Marccedilo (o dia 15 desse

mecircs data do assassinato de Juacutelio Ceacutesar) O jovem vai embora e os rumores se

desdobram cada vez mais fazendo de Earwicker desde um homem que se sente

abstratamente culpado ateacute um reacuteu efetivo de um crime indefinido

Chamar essas referecircncias de ldquoparalelosrdquo no entanto como faz Tindall

pode ser uma forma de suprimir a funccedilatildeo delas na amaacutelgama (an amalgam as

absorbing as calzium chloereydes and hydrophobe sponges could make it) do

texto Uma cena simples como a supracitada que parece poder ser posta com

clareza e ter seus elementos narrativos devidamente pontuados desdobra-se

em ambiguidades e referecircncias a outros tempos e espaccedilos que natildeo satildeo externos

e comparados a ela mas que a compotildeem tanto quanto os fatos que

apresentamos como primaacuterios o culpado Earwicker ou HCE estaacute no Phoenix

Park mas ele eacute tambeacutem Adatildeo no Eacuteden (e natildeo estaacute no primeiro parque assim

como Adatildeo esteve um dia no Eacuteden) Estaacute em Roma e eacute tambeacutem viacutetima de

conspiraccedilatildeo assassinado por Brutus Finnegans wake trata como afirma

Tindall da humanidade do universal mas em acontecimentos vividos por

indiviacuteduos em suas realidades microscoacutepicas como um enredo que se desfaz

em meio a numerosas e esparsas superposiccedilotildees assim se forma a amaacutelgama

wakiana

Apoacutes ser julgado Earwicker eacute preso e posteriormente morto Tindall

contrariamente a suas pretensotildees de sumarizar o enredo e determinar a

ordenaccedilatildeo dos acontecimentos novamente natildeo pode evitar alguma hesitaccedilatildeo

ao tentar descrever os ocorridos do capiacutetulo IV ldquoEarwicker dead Anyhow they

took the liberty of burying himrdquo (Ibid p 85) Assim notamos que por mais que

37 Traduccedilatildeo nossa ldquoTalvez seja qualquer pecado de todo homem ou todo pecado de qualquer homemrdquo

97

se tente concatenar as cenas natildeo se pode fazecirc-lo sem interrogaccedilotildees

parecircnteses bifurcaccedilotildees multiplicaccedilotildees A duacutevida quanto agrave morte da

personagem vem pelo motivo de que simplesmente natildeo temos a morte factual

mdash como ocorreu onde se foi homiciacutedio mdash assim como o delito de Earwicker se

apaga ao se multiplicar satildeo tantas as conjecturas que nem se pode mais lidar

com o fato Aleacutem disso Earwicker continua presente na narrativa mesmo finado

Natildeo temos o acontecimento concreto de sua morte seguido pelo relato de como

seguiram as outras personagens em vez disso temos referecircncias aos que

compareceram ou natildeo a seu enterro agrave tumba ao processo de sepultamento no

rio e outras evidecircncias de que ele estaria morto tudo enquanto o morto

permanece ali natildeo como assombraccedilatildeo mas duplicado entre os presentes e os

ausentes

Com essa duacutevida entatildeo a questatildeo do tempo novamente se coloca como

pode haver a vivecircncia da morte tatildeo essencialmente temporal mdash marco

cronoloacutegico do fim vivecircncia humana de uma temporalidade do luto mdash sem sua

determinaccedilatildeo A hesitaccedilatildeo na afirmaccedilatildeo da morte da personagem anula que se

possa viver sua ausecircncia e portanto o luto Isso engendra natildeo somente mais

uma quebra na narrativa mas ainda uma dinacircmica proacutepria do processo de perda

Assim como observamos na cena do Phoenix Park o que ocorre natildeo eacute uma

divisatildeo do enredo em duas realidades paralelas ou dois enredos paralelos em

que um contempla a morte e o outro lida com a vida mas de uma soacute situaccedilatildeo

Se a morte natildeo eacute fato pontual fechado uniacutessono do enredo o trabalho

do luto natildeo teraacute uma origem propriamente estabelecida mdash ou tendo como

origem uma perda que se fez em presenccedila e em ausecircncia simultaneamente teraacute

uma outra formaccedilatildeo e dinacircmica A narrativa entatildeo natildeo teraacute suas implicaccedilotildees

de consequecircncia uma vez que a causa natildeo eacute certa Se tomarmos para pensar

o luto a exposiccedilatildeo de Sigmund Freud em Trauer und Melancholie de 1915 em

que o luto e a melancolia satildeo comparados a partir do ldquoquadro geral desses dois

estadosrdquo (FREUD 2010 p 128) de forma que ambos os quadros se aproximam

em todas as descriccedilotildees cliacutenicas e se diferenciam apenas pela afetaccedilatildeo da

autoestima teremos a seguinte definiccedilatildeo do luto

98

Via de regra luto eacute a reaccedilatildeo agrave perda de uma pessoa amada ou de uma abstraccedilatildeo que ocupa seu lugar como paacutetria liberdade um ideal etc () Confiamos que seraacute superado apoacutes certo tempo e achamos que perturbaacute-lo eacute inapropriado ateacute mesmo prejudicial () O luto profundo a reaccedilatildeo agrave perda de um ente amado comporta o mesmo doloroso abatimento a perda de interesse pelo mundo externo ndash na medida em que natildeo lembra o falecido ndash a perda da capacidade de eleger um novo objeto de amor ndash o que significaria substituir o pranteado ndash o afastamento de toda atividade que natildeo se ligue agrave memoacuteria do falecido (Ibid pp 128-129)

Ora se a personagem eacute enterrada mas natildeo eacute de todo perdida natildeo se vai

por completo do plano onde estatildeo as personagens vivas como estabelecer a

perda que se tem como premissa imprescindiacutevel do luto A perda engendra o

que Freud chama de trabalho do luto toda a libido relacionada ao objeto perdido

precisa ser redirecionada mas a resistecircncia ao abandono dessa libido eacute

desconfortaacutevel podendo gerar ateacute distanciamento da realidade mdash muito dura

para se suportar mdash e psicose de desejo Todo esse processo poreacutem tem um

resultado ldquoMas o fato eacute que apoacutes a consumaccedilatildeo do luto o Eu fica novamente

livre e desimpedidordquo (Ibid p 130)

De toda a explanaccedilatildeo de Freud a respeito do luto natildeo podemos deixar de

concluir que seu tempo mdash e ao que tudo indica tambeacutem o da melancolia mdash eacute

alterado Com a perda desestabilizadora o indiviacuteduo se vecirc imerso na

necessidade de uma mudanccedila de paracircmetros para seu conforto habitual na

busca pela substituiccedilatildeo do ente perdido e no caminho de redirecionamento da

libido cuja origem se perdeu Assim seria seguro dizer que o trabalho do luto

racionalizado por Freud pressupotildee um tempo de luto diferenciado do tempo

normal da vida No Wake o texto ressoa esse trabalho de luto e seu tempo

proacuteprio o remordimento da morte e do morto em meio a descriccedilotildees que abarcam

homenagens seu enterro e seu descanso

Any number of conservative public bodies through a number of select and other committees having power to add to their number before voting themselves and himself town port and garrison by a fit and proper resolution following a koorts order of the groundwet once for all out of plotty existence as a forescut so you maateskippey might to you cuttirunner on a new pack of klerds made him while his body still persisted their present of a protem grave in Moyelta of the best Lough

99

Neagh pattern then as much in demand among misonesans as the Isle of Man today among limniphobes Wacht even It was in a fairly fishy kettlekerry after the Fiannarsquos foreman had taken his handful enriched with ancient woods and dear dutchy deep-linns mid which were na old knoll and a troutbeck vainyvain of her osiery and a chatty sally with any Wilt or Walt who would ongle her as Izaak did to the tickle of his rod and watch her waters of her sillying waters of and there now brown peater arripple (may their guilt lightly over his somnolulutent form) Whoforyou lies his last by the wrath of Bog like the erst curst Hun in the bed of his treubleu Donawhu (FW 7614)38

Poderiacuteamos compreender muito a respeito dessa morte no Wake partindo

apenas do fato de que o trecho do capiacutetulo IV em que se anuncia o enterro

subaquaacutetico da personagem Humphrey Chimpden Earwicker parodia os textos

egiacutepcios que chamamos de forma abrangente de Livro dos Mortos coletivo do

que era registrado sobre as tumbas para auxiliar os defuntos em seus caminhos

poacutes-morte sem distinccedilatildeo de nobreza mas que envolviam julgamentos morais

de merecimento e davam diversas orientaccedilotildees para a superaccedilatildeo de obstaacuteculos

que porventura surgiriam para o morto nessa transiccedilatildeo Esses escritos eram

chamados pelos egiacutepcios de ldquotextos para irvoltar agrave luzrdquo o que jaacute nos indica que

haveria um caminho a ser traccedilado por Humphrey de maneira que a sua morte

experiecircncia mais radical de finalizaccedilatildeo natildeo seria para ele o ponto final do

percurso Em vez de seguir para ldquoo aleacutemrdquo ou para o mundo dos mortos muito ao

contraacuterio o morto submerso segue para a luz que haacute na superfiacutecie em um

caminho de volta agrave vida A passagem natildeo eacute encarada como uma superaccedilatildeo de

barreiras ou uma peripeacutecia narrativa surpreendente ao inveacutes disso tem-se na

verdades quase uma ausecircncia de barreiras entre os dois aspectos da existecircncia

38 Como traduziu Donaldo Schuumller (2000) ldquoQualquer nuacutemero de corpos puacuteblicos conservadores atraveacutes de um nuacutemero de seletos de outros comitecircs com poder de adicionar a seu nuacutemero antes de votar em si mesmos e nele urbe porto e guarniccedilatildeo por adequada e proacutepria resoluccedilatildeo seguindo uma ordem judicial da constituiccedilatildeo uma vez por todas fora de existecircncia narrativa como um pitoco assim podes cortar tudo o que te incomoda num novo baralho de panos quanto a ele enquanto seu corpo ainda persistiu presente deles um sepulcro pro tempore na planiacutecie de Moryelta do melhor modelo dos defuntos sob o Lough Neagh entatildeo tatildeo em demanda entre os misoneacutesios quanto a Ilha de Man agora entre os limnoacutefobos Un momentito Foi em fabulosa caccedila piscosa depois ki Finn proacute-homem tinharrancado um punhado de turfa enriquecido com bosques antigos e bem postos pantanos dos baixos paiacuteses nos quais havia picos e bicos de truta vivamente vaidosos de suas ramadas e dos salgueiros no bleblablaacute de Blaacute a Bleacute que iria fisga-la como fez Izaak para excitar sua raiz e contemplar suas aacuteguas de suas indefesas aacuteguas e agora os brunos arrepios de sua pele pedrosa (queira seu vestido vestir levemente sua sonululante forma) Queporti jaz no seu derradeiro jazigo pela rabia de Dioacutes como o remoto reacuteprobo Huno no leito azul de seu Tunobiasalrdquo

100

No capiacutetulo referente ao enterro e posterior ressurreiccedilatildeo de Humphrey

Chimpden Earwicker as intrusotildees em referecircncias ao tempo e a temporalidade

satildeo numerosas

Best This wastohavebeen underground heaven or molersquos paradise which is probably also an inversion of a phallopharos (FW 7633-34)39

all differing as clocks from keys since nobody appeared to have the same time of beard some saying by their Oorlog it was Sygstryggs to nine more holding with the Ryan vogt it was Dane to pfife (FW 7711-14)40

But abide Zeitrsquos sumonserving rise afterfall (FW 787)41

As tantas alusotildees indicam como formas ou visotildees do tempo permeiam

tudo o que estaacute sendo narrado mas vemos que natildeo haacute indicaccedilotildees precisas fala-

se repetidamente do tempo sem no entanto estabelecer marcos cronoloacutegicos

divisotildees concretas ou definiccedilotildees temporais para a narrativa Se o tempo no Wake

natildeo eacute vetorial e nem busca mediccedilotildees tambeacutem natildeo pode secirc-lo na morte ou no

luto por mais marcados e marcantes que esses eventos fossem em outras

realidades No lugar do sonho tudo muda ateacute mesmo as mais radicais

ocorrecircncias presenccedilas satildeo eteacutereas espectros convivem cenas e marcos se

dissolvem

O tempo dissolvido nas multiplicidades em vez de apreendido e

entendido linearmente corrobora o que dissemos a respeito da impossibilidade

de escolher uma linha enrediacutestica em detrimento de outra ao menos sem que

isso fira a tessitura conjunta que a diversidade espaccedilo-temporal oferece Assim

como estamos em diversos tempos e (em um parque de Dublin na Roma antiga

39 Tambeacutem segundo a traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2000) ldquoBem Este subterracircneo foi-para-haver-de-ser ceacuteu ou o paraiacuteso dos molhes que provavelmente foi tambeacutem uma inversatildeo de um phallofarol ()rdquo 40 Idem ldquodiferindo tudo como sinos diferem de chaves visto que ningueacutem parecia ter o mesmo horaacuterio agrave barba alguns queriam por seu Horloacutegio que era Sixtriques pras nove outros apegados agrave Ira Landa diziam que era Dane-se para as cincordquo 41 Idem ldquoMas aguardemos o requerimento do tempo despertar apoacutes-quedardquo

101

no Eacuteden e assim por diante) tudo ocorre ao mesmo tempo (o pecado de Adatildeo eacute

o de HCE e seu sentimento de conspiraccedilatildeo que culmina em assassinato eacute o

mesmo de Juacutelio Ceacutesar) Temos todo o texto como o tropo Natildeo havendo escolha

de linha cronoloacutegica ou de espaccedilo natildeo haacute accedilatildeo pontual que se possa eleger

Em um niacutevel mais microscoacutepico do texto wakiano o mesmo acontece no

que concerne aos tatildeo numerosos neologismos Natildeo haacute como escolher um

significado ou outro satildeo simultacircneos e quase sempre autorreferenciais

Poderiacuteamos entatildeo compreender a fama de ilegibilidade se a leitura deve

considerar que tudo eacute deslocado e que nada se consolida sem grandes perdas

eacute vaacutelido ver tamanha dificuldade em Finnegans wake Eacute exigido do leitor que

diversos textos em um sejam lidos mdash portanto ler os diversos textos sem separaacute-

los Em Derridabase Geoffrey Bennington discorre com o pensamento de

Jacques Derrida a respeito do entendimento de significante e de significado

partindo da noccedilatildeo de signo estabelecida por Ferdinand de Saussure

No sistema de diferenccedilas que eacute a liacutengua todo significante funciona remetendo a outros significantes sem que se chegue nunca a um significado Procurem no dicionaacuterio o significado de um significante desconhecido vocecircs encontraratildeo outros significantes nunca significados Jaacute foi dito um significado natildeo eacute mais do que um significante posto numa certa posiccedilatildeo por outros significantes natildeo existe significado ou sentido soacute haacute lsquoefeitosrsquo (Positions p 90) Mas este privileacutegio concedido ao significante logo o destroacutei com efeito o significante lsquosignificantersquo soacute significa na sua relaccedilatildeo com (o significante) lsquosignificadorsquo que ele coloca de antematildeo em posiccedilatildeo de prioridade lsquoSignificantersquo e lsquosignificadorsquo se entreimplicam assim como eles implicam lsquosignorsquo e lsquoreferentersquo Eacute impossiacutevel para noacutes estipular (conforme um gesto que eacute agraves vezes o da filosofia analiacutetica) que lsquosignificantersquo daqui pra frente natildeo implicaraacute lsquosignificadorsquo como seu corolaacuterio sob pena como Humpty Dumpty de cair na ilusatildeo do convencionalismo e de esquecer que recebemos a liacutengua e suas sedimentaccedilotildees muito mais do que as criamos (BENNINGTON 1996 p 34)

Assim podemos compreender tambeacutem que em Finnegans wake existam

ldquoefeitos de significadordquo em vez de categorias soacutelidas a que pudeacutessemos recorrer

para a compreensatildeo do signo Talvez fique claro como um dicionaacuterio com

significados estanques dos termos da obra literaacuteria seria tatildeo ou ainda mais

102

parcial do que os dicionaacuterios comuns a que Bennington se refere Os efeitos satildeo

portanto aquilo que operam como fantasmas espectros que rondam a

materialidade do texto Esses espectros natildeo apenas perpassam alguns

momentos mas efetivamente habitam a tessitura textual

O filoacutesofo franco-argelino Jacques Derrida rompendo com uma

concepccedilatildeo de tempo exposta na obra do fenomenoacutelogo alematildeo Edmund

Husserl ultrapassa a noccedilatildeo tanto espacial quanto temporal de um percorrer

regido unidirecionalmente bem como substitui essa dada noccedilatildeo circular ou

ciacuteclica que perigosamente remete ao risco de uma redundacircncia por uma ideia

de elipse em que nunca se alcanccedila verdadeiramente o objeto nem se recupera

as condiccedilotildees preacutevias do caminho percorrido O movimento eliacuteptico pode ser aqui

invocado natildeo para substituir a ideia do ciacuterculo que aparece em James Joyce

uma vez consideradas todas as nuances dessa circularidade aqui expostas mas

para acrescentar uma espeacutecie de nuance eliacuteptica dessa circularidade que natildeo

produz redundacircncia ou repeticcedilatildeo mas singularidade e mesmo inovaccedilatildeo Tendo

seu centro deslocado um trecho percorrido na leitura impede terminantemente

que o passado da leitura seja revisitado da forma como foi lido em seu presente

irrecuperaacutevel

Citado por Joanna Hodge em Derrida on time Jacques Derrida em seu

ensaio ldquoForm and meaning a note on the phenomenology of languagerdquo datado

de 1967 propotildee um pensamento que poderia valer para o Finnegans wake ao

menos dentro da discussatildeo aqui proposta a respeito do formato estrutural da

obra final de James Joyce A respeito do que natildeo poderia ser apreensiacutevel por

uma dialeacutetica per se mdash algo que veremos distancia-se daquilo que conjectura

o escritor irlandecircs em suas obras mdash diz Jacques Derrida

Thus one does not have to choose between two lines of thought Rather one has to meditate upon the circularity which makes them pass into one another indefinitely And also by rigorously repeating this circle in its proper historical possibility perhaps to let some elliptical displacement be produced in the difference of repetition a deficient displacement doubtless but deficient in a way that is not yet --- or is no longer --- absence negativity non-Being lack silence Neither matter

103

nor form nothing that could be recast by some philosopheme that is by some dialectics in whatever sense dialectics may be determined An ellipsis both of meaning and of form neither full speech nor a perfect circle More a less neither more nor less Perhaps an entirely other question (DERRIDA apud HODGE 2007 p 11)42

A descriccedilatildeo do percurso eliacuteptico em Derrida acrescenta aqui ao princiacutepio

de natildeo redundacircncia como supracitado quanto agrave circularidade de Finnegans

wake No entanto uma espeacutecie de dialeacutetica ocupa as preocupaccedilotildees do escritor

irlandecircs Joyce foi influenciado pela ideia de atraccedilatildeo de contraacuterios exposta no

The Marriage of Heaven and Hell do inglecircs William Blake e da antecipaccedilatildeo da

dialeacutetica hegeliana de Giordano Bruno de Nola filoacutesofo italiano em que ldquoall is in

allrdquo como em Finnegans wake

Desde uma de suas primeiras publicaccedilotildees Gramatologia Jacques

Derrida aponta uma espeacutecie de condescendecircncia mdash ou como ele diz

solidariedade mdash entre uma concepccedilatildeo histoacuterico-metafiacutesica calcada no linear

portanto calcada na estruturaccedilatildeo de presente apoacutes presente tempo apoacutes tempo

em que haacute sequecircncias e possiacuteveis iniacutecios meios e fins com um modelo

discursivo tradicional eacutepico Denuncia igualmente que ldquoa lsquolinharsquo representa

apenas um modelo particularrdquo (DERRIDA 2011 p 107) e que esse modelo por

mais que tenha marcado uma norma imperante natildeo prescinde do conceito

mundano da temporalidade ndash o conceito de homogeneidade e continuidade seja

reto seja circular que Heidegger aborda como derivado da ontologia Esse

modelo passa a deixar de imperar pela gradual ineficiecircncia na economia dos

textos cientiacuteficos e na mesma medida problematiza-se contudo Derrida afirma

ldquoO fim da escritura linear eacute efetivamente o fim do livrordquo (Ibid 108) A ressalva

42 ldquoPortanto natildeo eacute necessaacuterio fazer uma escolha entre duas linhas de pensamento Preferencialmente se deve meditar sobre a circularidade que as faz uma passar pela outra indefinidamente Inclusive rigorosamente repetindo esse ciacuterculo em sua proacutepria possibilidade histoacuterica talvez para deixar algum deslocamento eliacuteptico ser produzido na diferenciaccedilatildeo da repeticcedilatildeo um deslocamento deficiente sem duacutevidas mas deficiente de maneira que natildeo eacute ainda mdash ou natildeo mais mdash ausecircncia negatividade natildeo-Ser falta silecircncio Nem mateacuteria nem forma nada que possa ser refeito por um filosofema isto eacute por alguma dialeacutetica em qualquer que seja o sentido que determina a dialeacutetica Uma elipse tanto de sentido quanto de forma nem discurso completo nem um ciacuterculo perfeito Mais um menos nem mais nem menos Talvez uma questatildeo inteiramente outrardquo

104

vem do proacuteprio filoacutesofo quanto ao fato de que nos nossos dias ainda novas

escrituras satildeo desdobradas nas focircrmas dos livros literaacuterias ou teoacutericas A

conclusatildeo desses processos e desvios eacute absolutamente contundente ldquoPorque

comeccedilamos a escrever a escrever de outra maneira devemos reler de outra

maneirardquo (Ibid)

Essas dimensotildees de uma espeacutecie de inadequaccedilatildeo da escritura ao

sistema linear e o lanccedilar-se agraves dimensotildees temporais plurais e natildeo lineares satildeo

fatos natildeo concernentes aos problemas modernos lembra Derrida mas fazem-

se evidentes nos dias atuais Teriacuteamos de dizer a partir disso que Finnegans

wake natildeo eacute um livro ou que o que faz dele um livro eacute o formato numerado e

organizado para uma ediccedilatildeo que lhe impotildee linearidade especiacutefica O que pensar

dessa imposiccedilatildeo de focircrma a um livro circular e efetivamente acessiacutevel de

qualquer ponto mdash portanto avesso a qualquer ordenaccedilatildeo especialmente a uma

numeraccedilatildeo que tanto especifica e prende Talvez isso deva nos levar ao

desprendimento dessa numeraccedilatildeo por mais uacutetil que seja em termos de citaccedilatildeo

e compartilhamento Ou em vez de um desprendimento uma atitude avessa a

certa escravizaccedilatildeo que pode decorrer desse sistema que em vez de pretensioso

arranjo traz desarranjo da estrutura circular que se deve perceber na obra

Em seu Seminaacuterio de nuacutemero 23 denominado O sinthoma ou Le

sinthome mdash ou ainda ldquoo santo homemrdquo mdash dedicado a James Joyce Jacques

Lacan parece atravessar tambeacutem algo proacuteximo agrave questatildeo que aqui trazemos

Antes de citaacute-lo talvez seja interessante remeter ainda especialmente no que

diz respeito ao comeccedilo da citaccedilatildeo do psicanalista agrave ceacutelebre frase de Samuel

Beckett a respeito do Finnegans wake que eacute um livro natildeo sobre alguma coisa

mas eacute a coisa em si Lacan em seu Seminaacuterio diz

Leiam as paacuteginas de Finnegans wake sem procurar compreender Isso se lecirc () Eacute uma sorte que haja uma uacutenica ediccedilatildeo o que permite designar ao fazermos uma citaccedilatildeo a linha na paacutegina certa isto eacute na paacutegina que sempre teraacute o mesmo nuacutemero Se como acontece com os outros livros fosse preciso editar Finnegans wake com diversas paginaccedilotildees como iriacuteamos nos orientar (LACAN 2005 p 161)

105

Finnegans wake entatildeo soacute natildeo eacute o fim do livro porque foi encaixado em

uma estrutura linear a despeito de sua natureza Mas eacute o fim das barreiras

linguiacutesticas como estudadas historicamente mdash e novamente a ponte

supracitada com Derrida em ldquoGecircnese e escritura do Essai sur lrsquooriginerdquo se faz

profiacutecua lembrando o que diz a partir de Jean-Jacques Rousseau ldquoNatildeo haveraacute

nem uma linha histoacuterica nem um quadro imoacutevel das liacutenguas () As liacutenguas satildeo

semeadasrdquo (DERRIDA 2011 p 263) O dinamismo babeacutelico que como foi dito

alguns capiacutetulos atraacutes transpassa para a traduccedilatildeo afeta o leitor de maneiras

distintas e desestabiliza a interaccedilatildeo leitor-obra de uma maneira que tem certa

medida de imprevisibilidade O fim da barreira linguiacutestica se relaciona ao fim de

uma barreira temporal

Ainda sobre Rousseau nesse mesmo texto Derrida aponta a vontade do

iluminista francecircs de esgotar todos os recursos da escritura buscando

univocidade clareza e precisatildeo indicando a pontuaccedilatildeo como ldquoo melhor exemplo

de uma marca natildeo-foneacutetica no interior da escriturardquo (Ibid p 277) Rousseau

chega a dizer que seriam necessaacuterias novas invenccedilotildees em pontuaccedilatildeo para que

se extraiacutesse o melhor da escritura seu maacuteximo como pontos que indicassem

por exemplo ironia e vocativo este uacuteltimo com a intenccedilatildeo de diferenciar na

escrita o homem que se proclama daquele homem que eacute convocado na

linguagem Podemos vislumbrar uma semelhanccedila curiosamente em sentido

diametralmente oposto entre Rousseau e o iacutempeto joyciano ao inveacutes da busca

por univocidade e precisatildeo Joyce parece buscar alcanccedilar ou extrair tambeacutem o

maacuteximo do trabalho que realiza no campo da palavra escrita explorando no

entanto o que se constroacutei em desbravamento de disseminaccedilatildeo a partir do

alcance do plural linguiacutestico isto eacute daquilo que natildeo proiacutebe ambiguidade mas se

farta dela

Em muitos pontos do texto o proacuteprio Finnegans wake praticamente diz ao

leitor ou ao menos lhe indica formas de se debruccedilar sobre ele dando pistas de

suas premissas O excerto que mostraremos aqui traz a sugestatildeo de que fatores

como o tempo mdash plural mdash a inflexatildeopronuacutencia e as maneiras de se comunicar

algo tecircm o poder de afetar diretamente no processo comunicativo que envolveria

idealmente emissor mensagem coacutedigo receptor como postulado pelo

106

estruturalismo de Roman Jakobson O proacuteprio texto se anuncia em apelos a uma

Babel ou mais especificamente a um processo de babelizaccedilatildeo da(s) liacutengua(s)

e de deslocamento da emissatildeo de mensagens em um suposto procedimento de

comunicaccedilatildeo

Because Soferim Bebel if it goes to that (and dormerwindow gossip will cry it from the housetops no surelier than the writing on the wall will hue it to the mod of men that mote in the main street) every person place and thing in the chaosmos of Alle anyway connected with the gobblydumped turkery was moving and changing every part of the time the travelling inkhorn (possibly pot) the hare and turtle pen and paper the continually more and less intermisunderstanding minds of the anticollaborators the as time went on as it will variously inflected differetly pronounced otherwise spelled changeably meaning vocable scriptsigns (FW 11818-28)43

No proacuteprio texto de Finnegans wake portanto admite-se ou ateacute mesmo

assevera-se que a linguagem sob a dinacircmica de um caraacuteter mutaacutevel natildeo tem

um destino certo pontual no espaccedilo e tampouco no tempo seu remetimento

pode lidar com o extravio com a perda de seu destino Em se tratando do texto

literaacuterio em que o destinataacuterio natildeo eacute unitaacuterio essa possibilidade eacute ainda maior

especialmente em um texto como Finnegans wake que remete agrave conexatildeo entre

todas as coisas no caosmos de tudo mdash algo que cria uma possibilidade de cadeia

de remetimentos infinita

Para Jean-Jacques Rousseau o surgimento das liacutenguas se daacute na

passagem do grito natural indomado pela racionalidade ao som articulado Ao

mesmo tempo ele evoca o espectro de uma fala que se daacute puramente em

articulaccedilatildeo que seria uma liacutengua morta aacutelgebra ou escritura ou seja resultaria

na morte da fala Para Jacques Derrida ldquoa morte que natildeo eacute nem um presente

43 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoPorque Escritores de Babell sofridores se chega a isso (e conversas de soacutetatildeo o proclamaratildeo do talhado com mais probabilidade anoite-o que a escrita no muro haacute de calorir a mente dos mentantes moventes na via mestra) cada persona galgo ou algo no caosmo do Todo de alocuma forma conectado com o pingalim em piruetas do pingo movia-se e mundava em cada parte do tempo o estojo movente (possivelmente o tonteiro) o papel a tinta no pipel das fibulosas lebre e tortuga os constantes mal-entendidos dos descolaboradores mais ou menos entrementados enquanto o fluir do tempo seraacute variabilmente infletido diferentemente pronunciado riversamente ortografado grafissignos de vocaacutebulos de sentido cambianterdquo

107

por vir nem um presente passado trabalha o dentro da fala como o seu rastro

sua reserva sua diferecircncia interior e exterior seu suplementordquo (DERRIDA 2011

p 385)

Levando isso em consideraccedilatildeo e tambeacutem o sonho de Rousseau pela

liacutengua que por fim seria inarticulada Jacques Derrida questiona quase

concluindo a sua Gramatologia ldquoE se a cena do sonho for sempre uma cena de

escriturardquo (Ibid 386) Sigmund Freud apontava ser pertencente agrave escritura

talvez o mundo dos sonhos Finnegans wake sendo o proacuteprio livro da noite e

do sonho eacute entatildeo escritura na mais bem sucedida fuga da linearidade

CAPIacuteTULO IV

FLUIR E RETORNO

109

O problema estrutural em Finnegans wake eacute segundo afirmamos um

problema intrinsecamente constituiacutedo na questatildeo da dimensatildeo temporal da

existecircncia a comeccedilar por abranger o tempo da leitura da ficccedilatildeo mdash ateacute alcanccedilar

as explicaccedilotildees do tempo do sonho e outras analogias Para aleacutem do tempo do

sonho podemos pensar contrariamente a certa concepccedilatildeo temporal aristoteacutelica

de momento fugidio de linearidade e homogeneidade a concepccedilatildeo temporal da

tradiccedilatildeo semita que trata de simultaneidade assim como uma concepccedilatildeo vinda

de Bergson ou de Heidegger Nessa tradiccedilatildeo hebraica ao inveacutes da

mensurabilidade que secciona a vivecircncia haacute a concepccedilatildeo cairoloacutegica se

podemos assim colocar relacionando-a ao tempo do καιρός (em vez da

cronoloacutegica isto eacute o tempo na loacutegica de κρόνος)

110

Para considerar essa visatildeo procedente no entanto dificilmente seria

profiacutecuo simplesmente apontar momentos especiacuteficos do livro em que isso

aconteccedila sem considerar tambeacutem o todo em recortes que ilustrem afirmaccedilotildees

O entendimento de aspectos estruturais do Wake relacionados a concepccedilotildees de

temporalidade eacute bastante visiacutevel considerando os paradigmas viquianos de que

Joyce partiu ou simplesmente observando o iniacutecio do livro conter uma frase

cortada indicando uma estrutura in media res especialmente expliacutecita mais do

que se especula em Ulysses por exemplo Os caminhos que o texto segue

poreacutem em termos de tempo ultrapassam os aspectos mais pulsantes e chegam

a ser tortuosos uma vez que mudam a todo tempo desde o tratamento dado a

personagens ateacute a ambientaccedilatildeo passando pelo vocabulaacuterio sempre mutante mdash

que remete tambeacutem linguisticamente a outros tempos com usos anacrocircnicos ou

deslocados na diacronia dos idiomas entremeados ao contraacuterio do que uma

pretensatildeo naturalista teria de reproduzir um tempo e espaccedilo pontuais da

realidade mdash e claro pela narrativa desmantelada Assim ainda que seja difiacutecil

ilustrar certas afirmaccedilotildees sobre Finnegans wake pontualmente podemos

rememorar passagens e buscar e alguns destaques possiacuteveis

No quinto capiacutetulo do livro I que se inicia com um paraacutegrafo

surpreendentemente curto mdash apoacutes uma seacuterie de paraacutegrafos longos desde as

primeiras paacuteginas da obra mdash temos uma espeacutecie de apresentaccedilatildeo mais formal

e direta de uma das personagens principais da obra Anna Livia Plurabelle a

mulherrio O documento envolve diferentes personagens no entanto no que diz

respeito tanto agrave sua redaccedilatildeo quanto ao seu envio Diz o trecho

In the name of Annah the Allmaziful the Everliving the Bringer of Plurabilities haloed be her eve her singtime sung her rill be run unhemmed as it is uneven (FW 1041-3)44

44 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller em que o tradutor evoca a religiosidade da fala de oraccedilatildeo ldquoEm nome de Annah a Allmissassombrosa a Sempreviva a Portadora de Plurabilidades santificada seja sua evigiacutelia venha o reino de seu canto ritmem suas rumas sem peias assim na terra como no ceacuteurdquo

111

O que esse paraacutegrafo apresenta em verdade eacute a vinda de sua voz sua

chegada ao leitor por meio de uma carta-manifesto (ldquomamafestardquo) sem tiacutetulo que

seraacute mostrada em seguida aos leitores nesse mesmo capiacutetulo Desenha seu

lugar de inscriccedilatildeo aquele onde poderaacute se despir em transluacutecida sinceridade e

apelo No entanto ainda que seja introduzida sua carta e portanto sua voz e

sua presenccedila o paraacutegrafo se inicia com ldquoin the name ofrdquo isto eacute ldquoem nome

derdquo A expressatildeo natildeo serve aiacute para transferir a fala a algueacutem que a represente

como se houvesse um outro personagem que falasse em seu nome em seu

lugar forjando sua assinatura serve para sobrepor outras vozes agrave sua na

medida em que Anna Livia natildeo se ausenta para que falem por ela mas haacute uma

comunhatildeo de outras vozes que tomam o lugar da fala concomitantemente Natildeo

haacute uma passagem da voz de uma pessoa para outra mas uma assinalaccedilatildeo de

polifonia isto eacute de multiplicidade em simultaneidade

Primordialmente diversos indiacutecios nos levam agrave leitura de Anna Livia como

uma divindade aiacute evocada As referecircncias nesse trecho satildeo basicamente

islacircmicas Essa evocaccedilatildeo natildeo deixa de lembrar em referecircncia paralela agrave

antiguidade ocidental a forma como todo poema eacutepico deve se abrir evocando

e pedindo auxiacutelio agraves musas para fazer o texto acontecer surgir fluir mas

podemos vislumbrar aquela religiatildeo abraacircmica jaacute ao vermos o nome de Anna

Livia ao lado de um epiacuteteto de tamanha imponecircncia ldquothe Allmazifulrdquo que remete

a ldquoall-mercifulrdquo e por conseguinte tambeacutem agrave maneira consagrada de se referir a

Alaacute ldquoAllah the All-mercifulrdquo

A abertura desse paraacutegrafo ecoa ainda tanto em similaridade foneacutetica

quanto nas relaccedilotildees intertextuais que permite o termo ldquoBismillahrdquo que

reaparece a cada sura (cada capiacutetulo do Coratildeo) geralmente nessa mesma

posiccedilatildeo dando iniacutecio ao texto ali contido O eco aqui eacute efetivamente de

repeticcedilatildeo uma vez que ldquoBismillahrdquo significa exatamente ldquoIn the name of Allah

the All-mercifulrdquo Por maior que possa ser a importacircncia das repeticcedilotildees de

termos temas e referecircncias no Wake devemos ter o cuidado de natildeo acreditar

que elas soacute existem se perceptiacuteveis digamos a olho nu mesmo que sob a oacuteptica

meticulosa de quem procura as reproduccedilotildees explicitamente visiacuteveis

112

Jacques Derrida a respeito de estrutura textual diz na seccedilatildeo intitulada ldquoA

fita de maacutequina de escreverrdquo integrante da coletacircnea Papel-maacutequina que ldquoa

loacutegica do acontecimento textual como inscriccedilatildeo materialrdquo impede uma regulaccedilatildeo

com progressatildeo e regressatildeo isto eacute com ldquoo processo temporal como

habitualmente se pensardquo mas sim regulado pelo proacuteprio acontecimento ou

ocorrecircncia do texto ldquoportanto pela singularidade de uma uacutenica vezrdquo (DERRIDA

2009 p 86) Eacute caracterizada portanto uma forma proacutepria de experiecircncia de

maneira que somente uma visatildeo fenomenoloacutegica respeitaria tamanha

especificidade

No esteio desse raciociacutenio faz-se necessaacuterio reafirmarmos que tal tempo

relacionado ao escritural bem como agraves accedilotildees propriamente de escrita e de

leitura tem peculiaridades proacuteprias e por isso uma dinacircmica de consequecircncias

tanto variaacuteveis quanto incontrolaacuteveis A escrita prevecirc o que seraacute do que jorrou

dela e tambeacutem como chegaraacute ao leitor mas sabendo que deve falhar nessa

previsatildeo O tempo da leitura eacute um presente inescapaacutevel que tem de lidar com o

passado irrecuperaacutevel da leitura da linha anterior ainda que se volte e leia

novamente o que jaacute se leu a experiecircncia eacute outra O deparar-se com o texto

matriz de estranhamento frente agrave liacutengua ocorre sempre na singularidade

Derrida traz ainda afirmaccedilotildees a respeito do acontecimento na literatura

remetendo a certa categoria de materialidade do texto mdash materialidade de um

acircmbito metafiacutesico enquanto conceito filosoacutefico diferente portanto de mateacuteria

mdash que determina o conceito de acontecimento (ou a acontecimentalidade)

textual associado agrave desconstruccedilatildeo Essa conjectura eacute pertinente na medida em

que essa operaccedilatildeo desconstrutiva para Derrida tem sempre como alvo ou

ldquoimplica sempre um processo de desmetaforizaccedilatildeordquo (Ibid 131) em que se

revela a existecircncia de articulaccedilotildees ocultas em totalidades antes aparentemente

monaacutedicas Assim o que repousa sob o texto quase silenciosamente mas eacute

visiacutevel em sua superfiacutecie mdash em sua sintaxe em sua estrutura narrativa em seus

processos metoniacutemicos mais evidentes mdash eacute o que uma leitura desse formato

alcanccedila e eacute a abordagem que se propotildee aqui na leitura de Finnegans wake

considerando as disseminaccedilotildees de sentido pelo texto

113

Retornando ao Wake uma seacuterie de epiacutetetos se segue todos com inicial

maiuacutescula indicando que o paraacutegrafo se refere a uma autoridade amarrando os

adjetivos ao nome proacuteprio como corolaacuterios de um pronome de tratamento

especial ldquothe Everliving the Bringer of Plurabilitiesrdquo O restante do capiacutetulo natildeo

conteacutem mais referecircncias islacircmicas O que apareceu no primeiro paraacutegrafo natildeo

foi uma chave para a leitura do que viria depois mas referencias que se

entrecruzaram dentro do mesmo paraacutegrafo e depois aparentemente natildeo nos

servem para nada podendo imaginar que um leitor natildeo as perceba eou as

ignore e continue sua leitura sem prejuiacutezo Anna Livia natildeo eacute Allah nem lhe eacute

equivalente ou consiste em uma paroacutedia dele mas a figura de Allah surge por

detraacutes da mulher-Liffey

A expressatildeo ldquoin the name ofrdquo aleacutem de engendrar a referecircncia agrave fala

islacircmica (e agrave fala catoacutelica com o ldquoem nome do Pai do Filho e do Espiacuterito

Santordquo) aponta fatos narrativos Eacute notaacutevel no paraacutegrafo que essa expressatildeo

natildeo consiste em uma transmissatildeo naquele momento do poder de enunciaccedilatildeo

da proacutepria Plurabelle a outrem a partir desse ponto Lembra de maneira bem

humorada no entanto um anuacutencio real ou oficial sobre alguma questatildeo decidida

pela instacircncia maior de uma hierarquia Nesse sentido haacute uma intermediaccedilatildeo

nesse anuacutencio Haacute ainda uma interposiccedilatildeo de duas outras personagens da obra

quando a carta-mamafesta nos aparece a de seus filhos Shem e Shaun Shem

the penman escreve a carta cujo conteuacutedo lhe eacute transmitido por Anna Livia e

Shaun the postman encarrega-se de entregaacute-la funcionando como

mensageiro

Com o personagem de Shaun e especialmente quando lhe eacute atribuiacuteda

essa tarefa eacute inevitaacutevel lembrarmo-nos da relaccedilatildeo entre mensageiro e

hermenecircutica vislumbrada etimologicamente Tomamos a explicaccedilatildeo de

Heidegger a respeito do termo neste caso didaacutetica e objetiva Do diaacutelogo com

professor Tezuka da Universidade Real de Toacutequio nasce o texto ldquoDe uma

conversa sobre a linguagem entre um japonecircs e um pensadorrdquo de 19531954

publicado em A caminho da linguagem Questionado por Tezuka a respeito do

uso dos termos ldquohermenecircuticardquo e ldquofenomenologiardquo em Sein und Zeit ambos

114

posteriormente abandonados por Heidegger o filoacutesofo alematildeo responde a seu

interlocutor

A palavra ldquohermenecircuticordquo vem do verbo grego ἑρμηνεύειν Refere-se ao substantivo que se pode articular com o nome do deus Hermes Ἑρμής num jogo de pensamento mais rigoroso do que a exatidatildeo filoloacutegica Hermes eacute o mensageiro dos deuses Traz a mensagem do destino ἑρμηνεύειν eacute a exposiccedilatildeo que daacute notiacutecia agrave medida que consegue escutar uma mensagem Esta proposiccedilatildeo se transforma em interpretaccedilatildeo da mensagem dos poetas que nas palavras de Soacutecrates no diaacutelogo Iacuteon (534e) ldquosatildeo mensageiros dos deusesrdquo ἑρμηνῆς εἰσιν τῶν θεῶν () Assim hermenecircutico natildeo diz interpretar mas trazer mensagem e dar notiacutecia (HEIDEGGER 2011 pp96-97)

Shem the penman cujo epiacuteteto prova o quanto assumidamente eacute a

encarnaccedilatildeo do poeta tem em Shaun assim seu correspondente mensageiro e

essa esquemaacutetica fica ainda mais clara na dinacircmica da carta da matildee Anna Livia

espeacutecie de musa inspiradora evocada para a realizaccedilatildeo da escrita O ldquoin the

name ofrdquo opera na marcaccedilatildeo dessa impureza de voz da personagem matildee

deixando expliacutecito para o leitor que o conteuacutedo expresso ali percorre um caminho

indireto Faz-se necessaacuterio duvidar do acesso que podemos ter agrave voz que nos

remete o conteuacutedo do que lemos ateacute a chegada de seu monoacutelogo fluvialmente

verborraacutegico Poder-se-ia afirmar que a voz de Anna Livia soacute realmente toma seu

lugar e domina o texto tomando suas reacutedeas ao fim do livro IV sem

mensageiros tramitando mensagens em seu lugar ainda que aparentes

intromissotildees eventuais sempre aconteccedilam Certamente poreacutem a duacutevida que

Finnegans wake impotildee segundo traccedilamos a respeito de voz discursiva

possibilita uma teorizaccedilatildeo a respeito da impossibilidade de se destilar a sincronia

de uma voz uma fala uma entidade ou personagem A improbabilidade desse

isolamento ou dessa purificaccedilatildeo de categorias e instacircncias narrativas nos lanccedila

em aporias textuais diversas confirmando a compreensatildeo de que a leitura dos

capiacutetulos natildeo cumpra expectativas de clareza e de unidade mas que sejamos

sempre obrigados a questionar o que mudou e que nova polifonia em aparente

caotizaccedilatildeo estaacute sendo desenvolvida

115

Outros exemplos dessas simultaneidades diversas estatildeo no capiacutetulo 11

em que vimos a mesma indefiniccedilatildeo entre falas tempos e espaccedilos unindo a fala

embolada coletiva das pessoas ocupando o pub agrave do raacutedio e agrave de uma narraccedilatildeo

de histoacuteria aparentemente nem do pub nem do raacutedio entre as elucubraccedilotildees das

lavadeiras no capiacutetulo de ALP com a sonoridade dos ecos e a presentificaccedilatildeo

de uma seacuterie de falas que ouviram e reproduzem de diversas maneiras as

sessotildees de julgamento de HCE permeadas por intromissotildees os diversos

devaneios oniacutericos que colocam HCE em situaccedilotildees insoacutelitas espalhados por

muitos capiacutetulos e passando pelas metamorfoses das personagens em outras

pessoas e elementos da natureza as margens no capiacutetulo 10 que colocam no

mesmo espaccedilo de paacutegina vozes completamente distintas em origem conteuacutedo

e forma em que cada espaccedilo das margens se destina a um dos irmatildeos Isolda

ocupa as notas de rodapeacute e circundando todo o texto Shem e Shaun Mesmo

nessa divisatildeo de espaccedilo as vozes natildeo estatildeo isoladas as margens laterais

eventualmente se trocam e comentando-se intercaladamente misturam

assuntos e referecircncias desestabilizando a verdade ou a unidade do que seria

tradicionalmente a voz narrativa central

A dita correspondecircncia dicotocircmica entre Shem e Shaun se explicita ainda

na relaccedilatildeo de Shaun como o mensageiro com o deus Hermes Como eacute dito na

citaccedilatildeo de Heidegger o miacutetico Hermes tem uma relaccedilatildeo com a origem da

hermenecircutica ainda que por vias etimoloacutegicas indiretas (passando pelo verbo

ἑρμηνεύειν) Por outro lado Shem o poeta se opotildee a Shaun ainda nesse

quesito um irmatildeo estaacute aberto ao ambiacuteguo enquanto outro se concentra na

interpretaccedilatildeo una Sendo um mensageiro assim como Hermes era mensageiro

dos deuses Shaun se preocupa com a emissatildeo da mensagem com fazecirc-la

alcanccedilar o destinataacuterio exatamente como deve chegar sem extravio ou desvio

Shaun busca verdades ironizando a existecircncia do proacuteprio Wake enquanto

Shem se instala no terreno das possibilidades inclusive da possibilidade de que

o proacuteprio livro se faccedila No livro II capiacutetulo 9 mdash capiacutetulo 1 na divisatildeo de Campbell

e Robinson (2013) ldquoA hora das crianccedilasrdquo mdash os irmatildeos se separam entre as

luzes (Shaun) e as trevas (Shem) caoso caminho confuso do perder-se (Shem)

e a redenccedilatildeo e autocontemplaccedilatildeo (Shaun) isso eacute assinalado como uma

116

separaccedilatildeo quase chocante como de Dom Quixote e Sancho Panccedila de

possibilidade remota

A dicotomia entre os irmatildeos no entanto eacute transgredida na medida em

que se completam na divisatildeo de tarefas materializada pela carta de Anna Livia

Plurabelle O que se daria como uma pura oposiccedilatildeo se dissolve em uma espeacutecie

de paralelismo cada um dos irmatildeos tem seus preceitos seus caminhos que natildeo

se tocam mas seguem lado a lado e ainda que tenham nuances proacuteprias satildeo

dotados de caracteriacutesticas que operam por contraste O que os separa e

diferencia eacute muacutetuo em suas respectivas caracterizaccedilotildees havendo uma uniatildeo

maior que a meramente consanguiacutenea ainda que definitivamente natildeo sejam

personagens intercambiaacuteveis Operam na verdade como as relaccedilotildees entre

todos os familiares do nuacutecleo de Finnegans wake por similaridade e

diferenciaccedilatildeo com a caracterizaccedilatildeo de cada um deles sempre interligada e

passando pelas relaccedilotildees de parentesco mdash seja no incesto seja na continuidade

geracional que gera espelhamento e desdobramento seja nos pares

complementares e assim por diante O tempo do parentesco assim pode

caotizar uma linearidade cronoloacutegica eacute um anacronismo de cruzamentos

diversos mais do que uma uniatildeo ou intersecccedilatildeo de sincronias unitaacuterias mdash de

tempos individuais mdash nem a diacronia familiar como seria se interpretaacutessemos

o coletivo como histoacuteria e memoacuteria

A carta-mamafesta de Anna Livia portanto tem o seu caminho

anticircularizado tornado eliacuteptico com um ldquoretorno deslocadordquo da compreensatildeo

de Jacques Derrida e isso ocorre mesmo antes da chegada da mensagem jaacute

havendo a problematizaccedilatildeo de seu remetente atraveacutes de Anna Livia a

mensagem desloca-se por seus filhos em desvios natildeo rastreaacuteveis Eacute

desintegrada a noccedilatildeo de unidade nesse percurso bem como a possiacutevel

centralidade do emissor Estando a noccedilatildeo de presenccedila e a noccedilatildeo de centro

intimamente ligadas ambas se esfarelam simultaneamente Os espaccedilos de voz

em que os remetimentos se interseccionam seriam no Wake repensados

Finnegans wake entatildeo sendo o proacuteprio livro da noite e do sonho eacute escritura em

fuga do linear que natildeo soacute desvia como se estranha e se exila do terreno comum

117

da centralidade e dos eixos estaacuteveis das repeticcedilotildees criadoras de identidade da

mensagem enviada em linha reta mdash em uma potente polifonia

A distacircncia entre diferentes vozes implica que existam diferentes

temporalidades O filoacutesofo franco-lituano Emmanuel Levinas discorre sobre o

tempo partindo de sua investigaccedilatildeo central a dicotomia do mesmo e do Outro

(que em verdade se estabelecem em relaccedilotildees eacuteticas complexas superando um

caraacuteter meramente dicotocircmico) Em Autrement qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence

(1974) diferencia trecircs possibilidades de leitura temporal sendo a primeira delas

o tempo do mesmo a pura sincronia de um eu que vive seu tempo de um ponto

de vista determinado ateacute o ponto em que natildeo afetado por alteridades paralelas

O estabelecimento de uma diacronia soacute se daacute com a intromissatildeo desse outro

intromissatildeo em geral inevitaacutevel de maneira que natildeo haacute mais um soacute passado

nem uma perspectiva unificada do tempo presente A uacuteltima instacircncia seria o

ponto do anacronismo em que a dualidade eu-outro como duas entidades

paralelas ou entrecruzadas se multiplica em uma diversidade de passados

futuros e uma impossibilidade de presente uacutenico e de uma perspectiva solitaacuteria

intocada

Uma obra literaacuteria apresenta em princiacutepio uma sincronia haacute o texto uma

porccedilatildeo de enunciados congelados prontos a serem evocados num presente

qualquer de um leitor que com ele se depare Soacute pode ser lido em um presente

um instante na linearidade de cada letra que sucede outra cada palavra e linha

em ordem inertes Nessa interaccedilatildeo haacute o cruzamento de outro tempo apenas a

partir da abordagem leitor um mesmo um eu que vai com sua sincronia proacutepria

seu tempo presente agrave abordagem do texto No entanto a sincronia que se

apresenta natildeo eacute ativada senatildeo no contato com ele na leitura por algueacutem Ao

inveacutes de um cruzamento entatildeo poder-se-ia pensar na retirada do texto de uma

suspensatildeo temporal A obra ocupa um lugar de nenhum tempo ateacute que eacute

chamada a ocupar um presente de algueacutem cuja temporalidade lhe eacute imposta e

domina a interaccedilatildeo leitor-texto Se pensarmos tempo de maneira contiacutegua a

espaccedilo a obra ocuparia assim um natildeo-lugar A sincronia do texto acompanha

a linha do tempo de quem quer que seja o centro dessa conduccedilatildeo seja um

118

narrador personagem seja um narrador onisciente que nos guia pelo trilho dos

fatos seja fluxo de consciecircncia e o tempo do monoacutelogo interior

Isso nos impotildee o problema que sincronia eacute inerente ao Wake Haacute uma

incompatibilidade ainda entre o tempo presente do leitor e a natildeo-sincronia do

texto com que se depara Havendo uma sincronia na obra o leitor e seu tempo

se relacionam de um para um com o tempo do outro no entanto natildeo se pode

definir com precisatildeo (ou mesmo sem) a linearidade do Wake menos ainda

definir um personagem que detenha essa perspectiva de quem parte a

temporalidade No monoacutelogo poderiacuteamos afirmar que haveria a sincronia de

Anna Livia no entanto as intromissotildees satildeo tantas que vemos claramente um

cruzamento de temporalidades diversas Isso eacute favorecido pela forma do

monoacutelogo por seu proacuteprio modo assim como seria em qualquer tentativa de se

trabalhar a partir de um fluxo de consciecircncia e transformaacute-lo em teacutecnica natildeo eacute

poreacutem justificado por ele uma vez que haacute a possibilidade de que um monoacutelogo

interior narrado tenha uma temporalidade sincrocircnica absolutamente palpaacutevel O

final (se podemos assim dizer) de Finnegans wake no entanto sugere um

continuum que aponta a um futuro agrave substituiccedilatildeo da geraccedilatildeo anterior pela que

a sucede O capiacutetulo se inicia com ldquoSandhyasrdquo que lembra tanto Sunday (o Sol

que estaacute nascendo na manhatilde indica o novo dia jaacute que o sonho de Earwicker

pode ter se passado em uma noite de saacutebado) quanto um saṃdhiacute (सधि) termo

sacircnscrito que significa ldquojunccedilatildeordquo ou ldquoarticulaccedilatildeordquo e remete agrave cosmologia do

Bramanismo em que se denominam os intervalos entre as yugas (as quatro

idades satya treta dwapar e kali yuga) de sandhyā e sandhyānsa Assim o

encaminhamento para o final mdash do sonho do livro de uma idadefase mdash se daacute

de maneira prismaacutetica sem encaminhar pontualmente um fechamento temporal

especiacutefico pois natildeo se limita agrave cronologia hindu nem agrave da narrativa Os tempos

verbais satildeo claramente confusos dizem-se anulando-se ldquoThe child a natural

child thenown by the mnames of (aya aya) wouldbewas kidnapped at na age

of recent probably possibly remoterrdquo (FW 59534-36)45 A incerteza se explicita

45 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoUm menino filho natural entatildeo conhecido pelos mnomes de (aya aya) podequefoi raptado em data recente provavelmente tambeacutem pode que mais remotardquo

119

ldquowould berdquo e ldquowasrdquo se unem no que eacute passado e ao mesmo tempo possibilidade

a hesitaccedilatildeo confirma um ldquoprovavelmenterdquo recente mas tambeacutem possivelmente

ldquoremotordquo Natildeo haacute apenas duacutevida entre um ou outro tempo como garantir que o

passado de fato passou

Se concebermos o Wake todo como um livro de sonho seja do Humphrey

seja de Anna Livia talvez a consciecircncia de quem sonha seja essa figura

centralizadora A temporalidade do sonho poreacutem se instalaria como outro oacutebice

a essa definiccedilatildeo jaacute que natildeo possui um tempo cronometraacutevel e portanto sua

calculabilidade se dissipa de qualquer maneira Sem evocaacute-las

conscientemente memoacuterias compotildeem qualquer sonho mas podem ser

distorcidas constituindo devaneios que satildeo na verdade nada aleacutem de

conjecturas ficcionais Imiscuem-se desejos que vislumbram um certo futuro do

acircmbito do previsiacutevel e ainda o presente do sonhador que dorme em sono leve

ou pesado em algum lugar calmo ou barulhento confortaacutevel ou natildeo apoacutes ter

tido um dia bom ou ruim agitado ou tedioso Se pensaacutessemos no sonho fora da

ficccedilatildeo portanto muito haveria de ser considerado na ficccedilatildeo se eacute concebido um

personagem que sonha a narrativa ou que sonha uma escritura mdash para falarmos

junto com Freud mdash certamente natildeo se partiria do princiacutepio de que haacute uma

sincronia pois o tempo dessa produccedilatildeo oniacuterica natildeo seraacute uno mas antes de

aspecto muacuteltiplo

Citamos sincronia anacronismo termos previsiacuteveis em uma abordagem

sobre o tempo Podemos no entanto empregaacute-los de uma maneira mais

especiacutefica a partir de alguns apontamentos levinasianos que perpassam a

questatildeo da temporalidade pela via eacutetica e ontoloacutegica A eacutetica metafiacutesica de

Emmanuel Levinas eacute pautada em investigaccedilotildees fenomenoloacutegicas cuidadosas e

no olhar sobre as exigecircncias morais a alteridade e a justiccedila mdash que constituem

o ser humano desde o face a face um-Outro ateacute o todo da vida em sociedade

Um desdobramento do tiacutetulo de uma de suas obras Autrement qursquoecirctre ou au-

delagrave de lrsquoessence isto eacute aleacutem do ser outramente que ser outro que (no sentido

negativo) ser indica a intenccedilatildeo de ultrapassar o ser como concebido ateacute entatildeo

nas discussotildees da ontologia remetendo indubitavelmente ao legado daquele

que resgatou a questatildeo-do-ser (Seinsfrage) ateacute entatildeo esquecida Martin

120

Heidegger Em Sein und Zeit (1927 2012) Ser e tempo o filoacutesofo de Meszligkirch

retoma o ser das trevas em que este estava envolto apontando resumidamente

trecircs preconceitos que imperavam como entraves de sua investigaccedilatildeo a saber

sua suposta inerente universalidade o atravanco inevitaacutevel em qualquer

tentativa de definiccedilatildeo e por fim sua totalidade em si autossuficiecircncia

Aquilo que de modo fragmentaacuterio e numa primeira investida foi um dia arrancado dos fenocircmenos pelo supremo esforccedilo do pensamento de haacute muito se trivializou () Sobre a base dos pontos-de-partida gregos da interpretaccedilatildeo do ser construiu-se um dogma que natildeo soacute declara supeacuterflua a pergunta pelo sentido de ser mas aleacutem disso sanciona sua omissatildeo Diz-se ldquoserrdquo eacute o conceito mais universal e o mais vazio e como tal resiste a toda tentativa de definiccedilatildeo (HEIDEGGER 2012 p 33)

Estabelece jaacute na introduccedilatildeo de seu tratado que o objetivo eacute ldquoa elaboraccedilatildeo

concreta da pergunta pelo sentido de lsquoserrsquordquo e que o tempo assim como aparece

em segundo lugar no tiacutetulo constitui no conteuacutedo de toda a obra apenas uma

ldquometa provisoacuteriardquo no que for pertinente para direcionar ldquoo horizonte possiacutevel de

todo entendimento-do-ser em geralrdquo (Ibid p 31) O tempo eacute um caminho

interpretativo para o ser este sim o centro da investigaccedilatildeo de Heidegger Assim

partindo da revisitaccedilatildeo do que a ontologia relegou como terras infeacuterteis

desenvolveu seu Dasein matriz do entendimento-do-ser o ente cuja maior

possibilidade-de-ser eacute a de perguntar (Frager perguntante) Esse retorno agrave

ontologia agrave maacutexima pergunta ontoloacutegica primordial eacute acompanhado entatildeo pela

temporalidade sentido do ser do Dasein na medida em que se constitui como

aquilo a partir de que ele eacute capaz de entender e processar um algo

Assim como a Seinsfrage permaneceu intocada Heidegger destaca que

o conceito de tempo se manteve praticamente inalterado desde Aristoacuteteles

mesmo passando por Henri Bergson (dizendo que o filoacutesofo francecircs eacute mais

aristoteacutelico do que pensa) e reteve tambeacutem o preconceito de um entendimento

vulgar da funccedilatildeo ontoloacutegica autossustentaacutevel Natildeo se pode poreacutem escapar

desse outro resgate Direciona-se assim agrave ldquodestruiccedilatildeo do conteuacutedo transmitido

pela ontologia antiga tarefa a ser levada a cabo pelo fio-condutor da questatildeo-

do-serrdquo (Ibid p 87) mas uma destruiccedilatildeo (Destruktion) que ldquonatildeo quer sepultar o

121

passado no nadardquo pois ldquoela tem um propoacutesito positivo e sua funccedilatildeo negativa

permanece inexpressa e indiretardquo (Ibid p 89) Toda essa necessidade eacute

justificada

Porque o ser soacute pode ser apreendido cada vez na perspectiva do tempo a resposta agrave questatildeo-do-ser natildeo pode residir numa proposiccedilatildeo isolada e cega A resposta natildeo eacute entendida na mera reiteraccedilatildeo do que eacute enunciado em proposiccedilatildeo sobretudo se eacute posta em circulaccedilatildeo como resultado flutuando no ar para mero registro de uma informaccedilatildeo sobre um ldquoponto-de-vistardquo que talvez se afaste do modo de tratamento ateacute agora usual (Ibid p 79)

O tempo como horizonte interpretativo do ser natildeo eacute uma escolha

heideggeriana por assim dizer em termos fundantes A ontologia antiga

interpretando o ser a partir e atraveacutes do mundo isto eacute da natureza acaba por

fazecirc-lo a partir do tempo O sentido de ser asism eacute παρουσία ou ουσία

presenccedila Heidegger cita brevemente que a tese ontoloacutegica de Parmecircnides de

Eleia influenciou diretamente Tomaacutes de Aquino que a absorveu no que diz

respeito agrave alma do ser humano e do νοεῖν o perceber que guiam a questatildeo-do-

ser e colaboram para caracterizar o Dasein em sua precedecircncia ocircntico-

ontoloacutegica No poema fragmentado ldquoSobre a naturezardquo ou ldquoDa naturezardquo de

Parmecircnides uacutenica obra considerada sobrevivente do filoacutesofo preacute-socraacutetico

encontra-se um eixo que se disseminou por toda a praacutetica filosoacutefica do ocidente

pois o mesmo eacute pensar e ser

[] τὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι

(Frag III)

Para Parmecircnides o ser estaacute no que aparece e eacute inuacutetil tentar conceber o

natildeo-ser de maneira que se faz necessaacuterio para a definiccedilatildeo do ser pensando

nos termos do que se daacute agrave apariccedilatildeo e portanto no tempo presente Os dois

termos-chave gregos aqui assinalados παρουσία e νοεῖν respectivamente

presenccedila e perceber levam a um outro intimamente ligado ao modo da

122

discussatildeo de Heidegger bem como a Levinas e outros filoacutesofos preocupados

com questotildees proacuteximas o substantivo φαινόμενον e seu verbo correlacionado

φαίνεσθαι respectivamente ldquoaquilo que aparecerdquo e ldquoaparecerrdquo

O trecho da obra remanescente de Parmecircnides explica poeticamente a

sua ontologia calcada nas relaccedilotildees que apontamos como envolvidas nessa teia

vocabular

Vamos vou dizer-te ndash e tu escuta e fixa o relato que ouviste ndash

quais os uacutenicos caminhos de investigaccedilatildeo que haacute para pensar

um que eacute que natildeo eacute para natildeo ser

eacute caminho de confianccedila (pois acompanha a verdade)

o outro que natildeo eacute que tem de natildeo ser

esse te indico ser caminho em tudo ignoto

pois natildeo poderaacutes conhecer o que natildeo eacute natildeo eacute consumaacutevel

nem mostraacute-lo []

Εἰ δ΄ ἄγ΄ ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας

αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι

ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

Πειθοῦς ἐστι κέλευθος - Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ -

[5] ἡ δ΄ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι

τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν

οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν - οὐ γὰρ ἀνυστόν -

οὔτε φράσαις[]

(Frag II)46

O brilho da aparecircncia natildeo significa aiacute apenas um clarificar das coisas no

momento do mostrar pois de alguma maneira acaba por esconder o ser ainda

assim somente a presenccedila pode definir sua existecircncia Como dissemos essa

necessidade funda uma relaccedilatildeo forccedilosa com o tempo presente que se

estabelece como referecircncia para qualquer ente Justifica-se aiacute que Heidegger

46 A traduccedilatildeo de Joseacute Gabriel Trindade Santos de 2002 eacute pautada no texto original (como tambeacutem citamos aqui) estabelecido pelo filoacutelogo claacutessico escocecircs John Burnet na ocasiatildeo de sua traduccedilatildeo para o inglecircs feita em 1892 Todas as citaccedilotildees de Parmecircnides inclusive a da paacutegina anterior pertencem a essa mesma traduccedilatildeo

123

tenha se dedicado tambeacutem ao tema do tempo era necessaacuterio discorrer sobre

ele para falar do ser especialmente tendo a intenccedilatildeo de desmontar essa

ontologia claacutessica por ldquoserrdquo e ldquotempordquo serem de fato inseparaacuteveis nessa

definiccedilatildeo ontoloacutegica tradicional

Tamanho paradigma resulta em um dito ldquoprivileacutegio do presenterdquo nas

investigaccedilotildees filosoacuteficas a esse respeito sobre o qual discorre Jacques Derrida

em Marges de la philosophie (1972 1991)

O privileacutegio do presente (Gegenwart) teria jaacute marcado o Poema de Parmecircnides O legein e o noein deviam apreender um presente sob a espeacutecie daquilo que permanece e persiste proacuteximo e disponiacutevel exposto diante do olhar ou ao alcance da matildeo um presente na forma da Vorhandenheit Essa presenccedila apresenta-se eacute apreendida no legein ou no noein segundo um processo estrutura temporal eacute de pura apresentaccedilatildeo de pura permanecircncia (reinen ldquoGegenwiirtigensrdquo) (DERRIDA 1991 p 66)

Derrida natildeo aponta e ateacute reitera um certo reducionismo linguiacutestico que

Heidegger comete ao considerar οὐσία exatamente o mesmo que presenccedila que

seria a παρουσία repetindo essa mesma relaccedilatildeo Heidegger afirma diversas

vezes ldquoa determinaccedilatildeo do sentido do ser como παρουσία ou como οὐσία o que

ontoloacutegico-temporalmente significa lsquopresenccedilarsquordquo (HEIDEGGER 2012 p 95) ldquoO

ente que nele [no ser] e para ele se mostra e eacute entendido como o propriamente

ente recebe portanto sua interpretaccedilatildeo em referecircncia ao pre-sente (Gegen-wart)

isto eacute concebido como presenccedila (οὐσία)rdquo (Ibid p 97) A palavra παρουσία

significa de fato presenccedila tanto temporal quanto espacial natildeo sendo mero

sinocircnimo de seu termo formante οὐσία particiacutepio presente do verbo ldquoserrdquo na

forma feminina (o que o aproxima da traduccedilatildeo consagrada para ldquosubstacircnciardquo

que Heidegger critica ou algo que se aproxime de aquilo que vem sendo) que

forma tambeacutem ἀπουσία aquilo que natildeo eacute que natildeo vem sendo (por analogia

ausecircncia)

A rigor esse termo em grego eacute composto por uma dupla maneira de dizer o ser a essecircncia diz o ser no sentido ldquodo que eacute a coisardquo e a existecircncia no sentido ldquode que a coisa eacuterdquo () Mesmo levando em conta

124

que eacute esse segundo sentido [o que excede a referecircncia existencial] que prevalece ele natildeo eacute o uacutenico motivo pelo qual Heidegger traduz ousiacutea por Seiendheit em um claro esforccedilo para imprimir uma adaptaccedilatildeo literal dessa ambiguidade do termo em grego () Ousiacutea fazia parte do vocabulaacuterio corrente entre os gregos e indicava e caracterizava bens imobiliaacuterios propriedades e riquezas () Nesse sentido o ser equivale a um bem que deve sempre ser presente e constante ousiacutea eacute em primeiro lugar o que permance (para) eacute parousiacutea uma presenccedila constante (BOUTOT apud NASSER 2006 pp 117-118)

Essa polissemia entatildeo natildeo pode ser reduzida a uma equivalecircncia pura

entre οὐσία e παρουσία Haacute ainda a possibilidade de que οὐσία seja ainda em

certos contextos filosoacuteficos essecircncia A relaccedilatildeo do tempo com a ontologia tanto

de Platatildeo quanto no que diz Parmecircnides em seu poema fragmentado eacute inegaacutevel

e permanece intacta de maneira que o ser seja um permanecer no presente

permanecer na presenccedila estar no presente

Jacques Derrida traz a aporia de Aristoacuteteles na Fiacutesica IV mostrando que

o paradigma trazido mdash o dito privileacutegio do presente mdash jaacute era conhecido natildeo soacute

por Heidegger mas em toda a histoacuteria das investigaccedilotildees ontoloacutegicas desde a

Antiguidade O presente como tempo padratildeo caracteriza o tempo na metafiacutesica

Todo outro tempo passado ou futuro eacute tomado a partir desse conceito central

No entanto ldquoo tempo eacute o nome da impossiacutevel possibilidaderdquo de maneira que um

agora eacute o mesmo e outronovo ao mesmo tempo

O sentido do tempo eacute pensado a partir do presente como natildeo-tempo E natildeo pode secirc-lo de outro modo nenhum sentido (qualquer que seja o sentido em que o entendamos como essecircncia como significaccedilatildeo do discurso como orientaccedilatildeo do movimento entre uma arquia e um telos) pocircde jamais ser pensado na histoacuteria da metafiacutesica de outro modo senatildeo a partir da presenccedila e como presenccedila (Ibid p 87)

No monoacutelogo de Anna Livia vecirc-se talvez pela uacutenica vez em todo o livro

uma supremacia do tempo presente se instaurando com o despertar mdash ainda

que o sonho precise de uma pessoa dormindo em um dado tempo ldquopresenterdquo o

sonhador se ausenta desse tempo em direccedilatildeo ao tempo do sonho que se

caotiza Com o anuacutencio do fim da noite no entanto vemos uma recuperaccedilatildeo

125

gradual de um tempo como o trecho a seguir em que uma contagem intercalada

entre as frases faz espeacutecie de escansatildeo

Passing One We are passing Two From sleep we are passing Three Into the wikewades warld from sleep we are passing Four Come hours be ours But still Ah diar ah diar And stay (FW 60833-36)47

Como os passos de um baleacute ou de uma danccedila que indica o tempo da

coreografia e finalmente o fim dos movimentos (com ldquostayrdquo) e em meio a suspiros

de Anna Livia (ah dear) encaminhamo-nos para longe do breu das sombras

que natildeo progridem no tempo mas pairam entre fases fluidas Anna Livia natildeo

instaura no entanto com a chegada do dia sincronia ou diacronia puras ldquoYet

no body is presente here which was not there before Only is order othered

Nought is nulled Fuitfiat (FW 61313-14)48 Apesar de estar sendo instaurada

uma espeacutecie de nova etapa externa ao oniacuterico Anna Livia nos afirma que soacute o

que muda eacute a ordem mas nada estaacute sendo efetivamente deixado para traacutes

relegado ao ostracismo de um tempo passado nada eacute nulo ldquoFuitfiatrdquo tem o fuit

que lembra ldquofugirrdquo do francecircs e fiat o latim de fez-se feito estaacute feito indica que

algo foge mas algo tambeacutem se faz aparece (fiat lux)

Haacute passagem sim como ela anuncia reiteradas vezes do sonho para o

despertar da noite para o dia para a claridade no entanto o passado natildeo se

cristaliza como antecedente que nada mais tem de relaccedilatildeo com o que vem uma

vez que as reminiscecircncias natildeo se afastam O que eacute ciacuteclico pode instaurar uma

espeacutecie de privileacutegio do presente na medida em que com o estatuto do ricorso

tudo retornar significa se fazer presente novamente Natildeo haacute rememoraccedilatildeo de

algo que ficou no passado e cuja presenccedila foi substituiacuteda por plena ausecircncia

Ao contraacuterio o que haacute eacute uma eterna (re)presentificaccedilatildeo do que se passou seja

47 ldquoPassagem Um Passamos Dois Do sono estamos passando Trecircs Ao vasto visto mundo do sono passamos Quatro Venham eras a nossas horas Silente Ah dea ah dia E staacuterdquo 48 ldquoPoreacutem aqui natildeo tem ningueacutem que jaacute caacute natildeo esteve antes Soacute que a ordem foi outrada Nada se anulou Fuitfiatrdquo

126

com o caraacuteter espectral do que sempre ronda do que resta em caraacuteter

fantasmaacutetico e fantasmagoacuterico seja do efeitvo retorno de acontecimentos

reiterados O tempo se reinventa de maneira que o conceito de lembranccedila e ideia

de memoacuteria se redefinam diante do fim que se aproxima ao mesmo tempo em

que anuncia uma revinda

What has gone How it ends Begin to forget it It will remember itself from every sides with all gestures in each our word Todayrsquos truth tomorrowrsquos trend Forget remember Have we cherished expectations Are we for liberty of perusiveness Whyafter what forewhere A plainplanned liffeyism assemblements Eblaniarsquos conglomerate horde By dim delty Deva Forget (FW 61419-22)49

No livro XI de suas Confissotildees (398 dC 1987) Agostinho de Hipona

reiterou a supremacia do presente ao afirmar a definiccedilatildeo da (anti)temporalidade

do eterno ldquoNa eternidade nada passa tudo eacute presente ao passo que o tempo

nunca eacute todo presenterdquo (AGOSTINHO 1987 216) Periacuteodos anteriores agrave criaccedilatildeo

divina recaem nessa problemaacutetica ldquoPoreacutem se antes da criaccedilatildeo do ceacuteu e da terra

natildeo havia tempo para que perguntar o que faziacuteeis entatildeo Natildeo podia haver

lsquoentatildeorsquo onde natildeo havia tempordquo (Ibid 1987 217) Agostinho define a

temporalidade a partir do presente pois define o passado e o futuro por contraste

e diferenciaccedilatildeo no entanto Agostinho tambeacutem traz a possibilidade do natildeo-

tempo e desloca o centro ainda do aparecimentopresenccedila para o

desaparecimentoausecircncia

49 ldquoO que se passou Como haacute de terminar Comeccedila a deslembraacute-lo Isso haacute de se remembrar de todos os lados com todos os gestos em cada uma de nossas palavras Verdade hoje verso amanhatilde Desmembra remembra Afagamos expectativa Somos pela liberdade de investigaccedilatildeo Por que apoacutes o que eacute prassempre Plenos planos de liffeyismo nas assembleias da horda conglomerada de Eblacircnia Junto agrave turva dialeacutetica Diva Olovidiarrdquo

127

Quanto ao presente se fosse sempre presente jaacute natildeo seria tempo mas eternidade Mas se o presente para ser tempo tem necessariamente de passar para o preteacuterito como podemos afirmar que ele existe se a causa da sua existecircncia eacute a mesma pela qual deixaraacute de existir Para que digamos que o tempo verdadeiramente existe porque tende a natildeo ser (Ibid p 218)

Sendo uma abordagem natildeo necessariamente do acircmbito da investigaccedilatildeo

ontoloacutegica Agostinho natildeo busca a definiccedilatildeo do tempo em si pois volta-se agrave

percepccedilatildeo Isso se evidencia quando ele faz efetivamente a pergunta

especiacutefica do tempo

O que eacute por conseguinte o tempo Se ningueacutem mo perguntar eu sei se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta jaacute natildeo sei Poreacutem atrevo-me a declarar sem receio de contestaccedilatildeo que se nada sobreviesse natildeo haveria tempo futuro e se agora nada houvesse natildeo existiria o tempo presente (Id)

Sua resposta deixa claro que saber o que eacute o tempo significa aiacute estar na condiccedilatildeo

de um ser que pode vivecirc-lo percebendo suas mudanccedilas Agostinho diz os

termos ldquotempo futurordquo e ldquotempo presenterdquo uma divisatildeo que evidencia o fato de a

sua pergunta pelo ser do tempo natildeo buscar de fato uma investigaccedilatildeo mais que

perceptiva da temporalidade lidando com sua vivecircncia em vez de buscar sua

definiccedilatildeo ou conceituaccedilatildeo Talvez fosse a resposta mais indicada para o tempo

do Finnegans wake sem questionamentos ao nos depararmos sabemos algo

sobre pois vivemos a temporalidade do texto jaacute se tivermos de explicaacute-la eacute que

os problemas se iniciam

A relaccedilatildeo entre uma consciecircncia de temporalidade e a dificuldade de bem

compreender o tempo tambeacutem se mostra textualmente O capiacutetulo 13 que

Campbell e Robinson denominam Shaun before the people (ldquoShaun diante do

povordquo) lembra Agostinho ou um diaacutelogo socraacutetico com a forma de perguntas e

respostas em que Shaun vai respondendo a quatorze perguntas uma a uma

Com uma abertura no capiacutetulo que se preocupa em situar as horas o que abala

o apego ao presente (aleacutem de esse apego existir no proacuteprio meacutetodo de

128

questionamentos e reacuteplicas imediatas) eacute a consciecircncia de uma sombra ou algo

de uma meia-noite que se aproxima ldquoCome not here Black Switch outrdquo (FW

40317)50 A consciecircncia que no caso eacute a consciecircncia de uma outra dimensatildeo

atraveacutes de medo e receio abala o terreno temporal de bases fixas no tempo

presente ainda que o ciclo e o ricorso tambeacutem afirmem essas bases

O tempo do texto caso coincida com o tempo da leitura mdash que o faz

reviver como a execuccedilatildeo da partitura faz com a composiccedilatildeo musical mdash eacute o

presente puro da experiecircncia O tempo narrativo mdash se deixarmos de lado

temporariamente a concepccedilatildeo de Finnegans wake como livro que descarta a

narrativa e desmantela seus elementos mdash poderia ser entendido em uma

primeira tentativa de imediato como tempo circular dada a sua estrutura e a

inspiraccedilatildeo nas Idades da teoria de Giambattista Vico Isso seria adequado para

pensarmos a relaccedilatildeo entre esse tempo presente da leitura e a dada circularidade

textual mdash o que se faz em ciclo sendo um eterno retorno teria necessariamente

de engendrar por conseguinte um eterno presente no esteio do que afirma

Agostinho pois eacute a continuidade que desconhece iniacutecio e fim divisatildeo que

seccione ou corte o que tem por definiccedilatildeo a fluidez Isso leva agrave aporia de que

fala Agostinho entre considerar que o ciclo engendra um presente supremo mas

por outro lado se soacute houvesse presente natildeo haveria tempo e sim eternidade

No entanto se o texto jaacute natildeo eacute em si ciacuteclico e como vimos com Derrida

tem seu centro deslocado e uma caracterizaccedilatildeo possivelmente eliacuteptica mdash ainda

que em verdade o ciclo seja viquiano seja joyciano seja nietzschiano natildeo eacute

simplesmente repeticcedilatildeo pura e simples mas sim retorno com diferenciaccedilatildeo isto

eacute natildeo soacute passiacutevel como obrigatoriamente submetido a mudanccedila e a renovaccedilatildeo

mdash essa relaccedilatildeo de presente se quebraria A isso se relaciona intrinsecamente

o fato de que o texto escritural reinvocando Derrida lida com o porvir diferente

do futuro Essa outra qualidade temporal modifica toda a dinacircmica textual na

medida em que o porvir eacute o tempo do acontecimento daquilo que vem sem

espera que surge do vazio da ausecircncia por outro lado o texto que lida com

futuro calculaacutevel iniacutecio-meio-fim e sequecircncia narrativa eacute o que lida com a

50 ldquoNatildeo te quero nero Sombra sumardquo

129

presenccedila e a previsibilidade Somente o porvir deixa rastros espectrais daquilo

que natildeo se previu mdash e eacute disso que todo a leitura do texto literaacuterio estaacute

inevitavelmente permeada

Emmanuel Levinas filoacutesofo que compreende a histoacuteria como

escatoloacutegica natildeo como progressista e que afirma sua eacutetica metafiacutesica a partir

da existecircncia do Outro tem compreensatildeo temporal que pode nos ajudar a

compreender a dificuldade de se enxergar uma sincronia no texto de Finnegans

wake Para Levinas a tradiccedilatildeo que supotildee a existecircncia do tempo de um eu estaacute

equivocada por desconsiderar o face a face desconsiderar o Outro Assim uma

sincronia isto eacute a assunccedilatildeo de um uacutenico presente natildeo passa como tempo da

subjetividade de um indiviacuteduo de mera presunccedilatildeo por entender o tempo

objetivamente (por mais inicialmente contraditoacuterio que isso possa soar) Isso

poderia ser resolvido pela adiccedilatildeo do tempo diacrocircnico que passa a existir na

relaccedilatildeo com o outro e instaura um tempo que eu subjetividade individual natildeo

vivi Haveria uma disjunccedilatildeo anacrocircnica entre sincronia e diacronia como

princiacutepio da descontinuidade que provaria a impossibilidade de um tempo

objetivo ou de uma compreensatildeo objetiva do tempo reduzindo isso a mera

pretensatildeo A sincronia eacute uma temporalidade insular enquanto a diacronia

expandiria esse isolamento A futuridade do futuro natildeo vem como porvir no meu

horizonte e natildeo posso reduzir o tempo do Outro ao meu o tempo do Outro eacute o

Outro do meu tempo

Eacute a terceira categoria sobre a qual discorre Levinas na supracitada obra

Autrement qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence contudo que mais nos interessa e

que complementa fundamentalmente as noccedilotildees expostas anteriormente Eacute

somente no reconhecimento de que haacute na verdade muitos presentes e de que

nem mesmo o proacuteprio eu sendo um eu ordinaacuterio deteacutem o seu presente mdash

menos ainda seu passado reduzido a lembranccedilas embaccediladas e seu futuro

incerto mdash que se poderia compreender verdadeiramente o tempo Isso porque

somente um eu ideal ou melhor o ser real que dita o que o presente eacute poderia

ser premissa de sua existecircncia e efetivamente deter ou reter o presente O

reconhecimento dessa impossibilidade aliado ao reconhecimento essencial de

que existe o face a face de que existe o Outro cujo tempo me eacute tatildeo inapreensiacutevel

130

quanto ele mesmo o eacute haveria o reconhecimento de que sincronia e diacronia

portanto satildeo maneiras ainda defeituosas de se compreender o tempo para o

humano A terceira categoria fundamental que adveacutem dessas reflexotildees eacute o

tempo do anacronismo Reconhecendo-se a existecircncia de muitos presentes o

anacronismo reconhece ainda que o surgimento de um Outro abre natildeo soacute o meu

tempo para o delea mas tambeacutem haacute tempos de muitos outros de muitos tempos

mortos ou ainda por virem a nascer O tempo consiste em uma relaccedilatildeo com o

que natildeo pode ser assimilado com aponta Levinas natildeo se trata de ter boa

memoacuteria ou natildeo mesmo que suas limitaccedilotildees tenham importacircncia nisso tudo

mas o central eacute a impossibilidade de que toda a dispersatildeo do tempo pudesse se

juntar em um soacute presente Por isso sincronia e diacronia satildeo insuficientes para

essa compreensatildeo enquanto o anacronismo respeita a existecircncia das nuances

variadas dos aspectos temporais da existecircncia

Essa compreensatildeo levinasiana eacute ao que nos parece brilhantemente

adequada para a compreensatildeo do tempo no texto do Wake justamente sendo

uma obra que reuacutene simultaneamente mortos e vivos remorrentes e

ressuscitantes mdash e aqui se faz mister evocarmos o revenant de que fala

tambeacutem Derrida evocando novamente o caraacuteter espectral de presenccedila-

ausecircncia simultacircnea e vinda inesperada isto eacute cuja chegada se faz somente no

porvir como o fantasma de um autor que retorna e se faz presente de alguma

outra forma por meio de sua obra O tempo como concebido por Giambattista

Vico como paradigma natildeo anula a pluralidade do anacronismo sobre o qual

Emmanuel Levinas discorre ao contraacuterio compreende-se que as Idades

viquianas abarquem presentes diversos e natildeo partam de uma consciecircncia

temporal uacutenica Poderiacuteamos falar em caotizaccedilatildeo mas em verdade caotiza-se

na medida em que se foge do linear cronoloacutegico sincrocircnico uno sem que a

caracterizaccedilatildeo necessariamente se reduza de maneira especiacutefica a pura e

simplesmente caos

Na caracterizaccedilatildeo de onde reside Shem o irmatildeo que pode ser o alterego

do artista (e ateacute do proacuteprio Joyce) onde convive com passado morte alteridades

diversas assim como na prisatildeo morte e ressurreiccedilatildeo de Humphrey Chimpden

Earwicker pai de Shaun Shem e Isobel e marido de Anna Livia vemos essa

131

fusatildeo de vida e morte que natildeo controla o tempo em fases imisciacuteveis Shem estaacute

em meio a ldquofresh horrors from Hadesrdquo (FW 18335)51 e por ldquoTumult son of

thunder self exiled in upon his ego a nightlong a shaking betwixtween White or

reddr hawrors noondayterrorised to skin and bone by na ineluctable phantomrdquo

(FW 1846-9)52 trecho em que inevitavelmente nos lembramos da inelutaacutevel

modalidade do visiacutevel de Ulysses que aqui se transformou em fantasma como

visiacutevel

Interessante notar como o capiacutetulo imediatamente posterior ao de Shem

que seraacute o Anna Livia Plurabelle em que lavadeiras confabulam sobre fatos e

fofocas termina com a noite caindo em cada vez mais escuridatildeo e menos

informaccedilatildeo factual menos visatildeo clara como se a cena fosse se apagando e

perdendo a forccedila a cada vez que se repete a palavra ldquonightrdquo Em meio a

paranoias e sensaccedilatildeo de adormecimento ldquonightrdquo daacute o tom de queda gradual mdash

natildeo como a queda monumental de Earwicker no primeiro fragmento que

tambeacutem se repete pelo livro mas uma quebra branda Em vez de pontuar um

momento o efeito principal eacute com ldquonightrdquo prosseguir evocando a escuridatildeo e

ao mesmo tempo mantendo-se progressivamente suspensos os ecos dessas

conversas

Dark hawks hear us Night Night My ho head halls I feel as heavy as yonder stone Tell me of John or Shaun Who were Shem and Shaun the living sons and daughters of Night now Tell me tell me tell me elm Night night Telmetale of stem or stone Beside the rivering waters of hitherandthithering waters of Night (FW 21536-2165)53

Sendo todo um livro da noite como se coloca usualmente e como o

proacuteprio Joyce jaacute pontuou em oposiccedilatildeo a Ulysses as misturas de escuridatildeo noite

quebra de fala e silecircncio seriam naturalmente recorrentes Ainda assim elas

acontecem de maneira especialmente controlada em momentos cruciais e

51 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2003) ldquonovos horrores do Hadesrdquo 52 ldquoTumulto filho do trovatildeo auto-exilado no seu ego tremores da noite inteira entre horrores brancos e rubros aterrorizado ao meio-dia da pele aos ossos por um fantasma inelutaacutevelrdquo (idem) 53 ldquoNoturnos falcotildees nos escutam Noite Noite Tomba a testa Pende pesada qual pedra aquela Que me falas de John ou de Shaun Shem e Shaun viventes filhos ou filhas foram de quem A noite noita Fala-me fala-me fala-me carvelha Noite noite Conta-me contos de Stem ou Stone Junto agraves rio-revantes aacuteguas de correntes-e-recorrentes aacuteguas De Noiterdquo (idem)

132

especiacuteficos no Wake como que desestabilizando a noccedilatildeo temporal de noite mdash

ou de uma noite ou de noite como algo definido temporal e ateacute espacialmente

mdash em vez de partirem para o que seria uma caracterizaccedilatildeo temporal A noite

funciona como algo que subverte a ineacutercia do tempo presente sendo uma noite

sem duraccedilatildeo reverberando ainda em uma seacuterie de evocaccedilotildees de ldquonightrdquo como

se ela natildeo estivesse presente mas invadisse aos poucos agrave medida que o apelo

acontece A palavra ldquoNightrdquo caracteriza o indefinido em vez de definir (seja uma

ou seja qualquer) noite especiacutefica

Aquilo que natildeo eacute definido pontualmente natildeo pode consequentemente

fazer parte de uma evoluccedilatildeo temporal da ordem do linear com cenas

consecutivas que se somam sem se sobreporem progredindo do passado para

o futuro Isso natildeo deve necessariamente acontecer somente na hipoacutetese da

eternidade pura como disse Agostinho a respeito do tempo presente que natildeo

tem passado e futuro como constrastes o que retorna sempre em ciacuterculos pode

tambeacutem ter como corolaacuterios antesagoradepois ao mesmo tempo em que natildeo

teria iniacutecio fundadororiginaacuterio nem fim escatoloacutegico Retornando a Autrement

qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence para caracterizar a oposiccedilatildeo do anacronismo

que reuacutene essas vozes e ausecircncias-presentes em relaccedilatildeo agrave ideia de linearidade

que uma sincronia necessariamente conteacutem Emmanuel Levinas cita a tradiccedilatildeo

fenomenoloacutegica como caracterizadora da unidade de sincronia que natildeo

considera a alteridade e a eacutetica citando Edmund Husserl Com esse gancho

esclarecedor entatildeo Levinas explica

Chez Husserl la conscience interne du temps et la conscience tout court se deacutecrivent dans la temporaliteacute de la sensation ldquosentir crsquoest lagrave ce que nous tenons pour la conscience originaire du tempsrdquo et ldquola conscience nrsquoest rien sans lrsquoimpressionrdquo Temps impression sensible et conscience se conjuguent () Parler conscience crsquoest parler temps (LEVINAS 1978 pp 56-57)54

54 ldquoEm Husserl a consciecircncia interna do tempo e a consciecircncia em si se descrevem na temporalidade da sensaccedilatildeo ldquoeacute no sentir que podemos ter a consciecircncia originaacuteria do tempordquo e ldquoa consciecircncia natildeo eacute nada sem a impressatildeordquo Tempo impressatildeo sensiacutevel e consciecircncia se conjugam () Falar de consciecircncia eacute falar de tempordquo

133

Emmanuel Levinas considera entatildeo uma temporalidade especiacutefica para

a fenomenologia que considera a consciecircncia de um indiviacuteduo como premissa

para qualquer investigaccedilatildeo eacute essa temporalidade o que resulta em uma

sincronia natildeo atravessada pela alteridade Ao contraacuterio dessa concepccedilatildeo

Levinas descreve o ldquoAnachronisme qui ateste une temporaliteacute diffeacuterente de celle

qui scande la consciencerdquo (Ibid p 141)55 A isso podemos contrapor uma outra

ponte com o Ser e tempo de Martin Heidegger quanto ao aspecto do ente como

ldquodentro do tempordquo Heidegger interfere com o apontamento da historicidade

como um modo-de-ser temporal do Dasein Nessa abordagem o tempo ou o

tempo presente tambeacutem deixa de ser isolado pela experiecircncia sincrocircnica

individual

A determinaccedilatildeo da historicidade eacute anterior ao que se chama de histoacuteria (o acontecer de-histoacuteria-universal) Historicidade significa a constituiccedilatildeo-de-ser do ldquogestar-serdquo do Dasein como tal sobre cujo fundamento eacute unicamente possiacutevel algo assim como a ldquohistoacuteria universalrdquo e o histoacuterico a ela pertencente O Dasein em seu ser factual eacute cada vez como jaacute era e ldquoo querdquo jaacute era Expressamente ou natildeo ele eacute seu passado E natildeo soacute no sentido de que seu passado como que desliza ldquoatraacutesrdquo dele possuindo ele o passado como se fosse uma propriedade subsistente que por vezes volta a ter efeito sobre ele (HEIDEGGER 2012 p 81)

Assim o privileacutegio do presente que citamos anteriormente como foi

apontado por Derrida em referecircncia ainda a Aristoacuteteles perde seu aspecto de

vivecircncia possiacutevel como sendo algo puramente nodo instante algo

complementando pelo que acrescenta Heidegger no excerto acima de Ser e

tempo o passado integra o presente (como o revenant) e natildeo se encerra atraacutes

dele ou antes dele intacto e passiacutevel de retorno somente por

rememoraccedilatildeorecordaccedilatildeo (entendida como espeacutecie de movimento de lembranccedila

feito intencionalmente) Uma suposta divisatildeo temporal entre as fases entatildeo que

separe o passado do presente natildeo eacute possiacutevel considerando o passado como

essa historicidade que reveacutem O presente no entanto ainda eacute o tempo central

55 ldquoAnacronismo que atesta uma temporalidade diferente daquela que mede a consciecircnciardquo

134

da leitura Em Escritura do retorno Mallarmeacute Joyce e o meta-signo Piero Eyben

relaciona o que propotildee ser o resultado da empreitada de Joyce mdash ldquodestruiccedilatildeo

do signordquo mdash com uma ldquoagoridade da letrardquo ldquo() a experiecircncia joyceana da

destruiccedilatildeo do signo deve ser compreendida como um limite da experiecircncia do

agora () a significacircncia eacute sua uacutenica respostardquo (EYBEN 2012 pp 650-651) A

marca do presente natildeo eacute pura nem pode ser destilada em uma fase temporal

solitaacuteria

Nessa des-fundaccedilatildeo de toda origem podemos ver a proacutepria cena da presenccedila enquanto elemento presente que se relaciona com outra coisa que natildeo ele mesmo guardando em si a marca do elemento passado e deixando-se jaacute moldar pela marca de sua relaccedilatildeo com o elemento futuro () Todo rastro eacute sem presente e sem arquia uma vez que se constroacutei como a siacutentese de ldquomarcasrdquo que se estabelecem em um espaccedilamento (devir-tempo do espaccedilo) (Ibid p 651)

No capiacutetulo 9 do livro II livro das crianccedilas temos uma espeacutecie de

encenaccedilatildeo teatral Satildeo situados personagens e ainda o tempo ldquoTime the

pressantrdquo (FW 22117)56 O presente mais parece um verbo no geruacutendio ou uma

forma nominal de um verbo indicando uma accedilatildeo que remete ao presente

movimentado em movimento natildeo inerte e recortado Mesmo na ficccedilatildeo dentro

da ficccedilatildeo eacute o tempo dinacircmico que se faz Nas palavras do tradutor do Wake

Donaldo Schuumller ldquoO fixo dissolve-se no que flui Cultura do presente Qual se

tudo se embala em vir-a-serrdquo (2003 p 96) Aqui o presente natildeo se faz em

eternidade pura e ciacuteclica mas no porvir que se instala a expectativa do que pode

vir eacute diferente da futuridade do futuro certo previsto mdash e portanto calcado no

tempo presente que o planeja O porvir ao contraacuterio faz do presente uma pura

expectacircncia naquilo que se tece como limiar de ausente e presente por ser a

expectativa do que natildeo se pode de fato esperar Se o futuro no escapa pelos

dedos e o passado resta o presente soacute pode ser uma contaminaccedilatildeo geral dessa

fludez de ricorso torrencial

56 ldquoTempo o pressanterdquo (traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller 2003)

135

Finnegans wake muito mais questiona do que afirma seu proacuteprio tempo

em vias expliacutecitas Mesmo no fim do livro quando se encaminharia para um

fechamento e portanto para o teacutermino a sutura a closure Anna Livia nos

encaminha para o desembocar do rio mdash no mar no retorno ao seu curso no

ricorso na fluidez que eacute seu destino em repeticcedilatildeo mas repeticcedilatildeo em sempre

inovaccedilatildeo mdash que natildeo se situa com precisatildeo temporal O livro IV se abre com

ldquoSandhyas Sandyas Sandhyasrdquo (FW 5931) Segundo Donaldo Schuumller haacute aiacute

referecircncia a Sanctus Sanctus Sanctus (que aparece tambeacutem em ldquoXanthos

Xanthos Xanthosrdquo mdash FW 2359) e a sandhi palavra do sacircnscrito que significa

paz ou crepuacutesculo Muito mais pode ser dito sobre essa abertura aleacutem da

saudaccedilatildeo latina religiosa o que vem do sacircnscrito pesa sua presenccedila em um

significado riquiacutessimo

O termo do sacircnscrito sandhyā como pode ser transliterado de सनधया

pode significar uniatildeo ao mesmo tempo em que eacute diferenciaccedilatildeo divisatildeo eacute o

crepuacutesculo ou o nascer do sol ao mesmo tempo em que eacute a escuridatildeo da

madrugada ou da manhatilde eacute transiccedilatildeo uniatildeo e impossibilidade de uniatildeo de dois

opostos claro e escuro dia e noite comeccedilo e fim Eacute justamente a articulaccedilatildeo

entre aquele instante do meio que natildeo se pode chamar somente de iniacutecio nem

somente de fim eacute ambos ao mesmo tempo Eacute o momento de reiniacutecio e portanto

de redenccedilatildeo e renovaccedilatildeo assim como de fim de enterrar de sumir de natildeo ver

Tem-se um dia todo pela frente concomitantemente poreacutem natildeo se tem mais

um dia que acaba de findar A palavra eacute absolutamente adequada indica tanto

iniacutecio quanto fim e ainda significa intervalo entremeio fase que antecede uma

e sucede outra As relaccedilotildees possiacuteveis satildeo muitas Lidar com a morte por

exemplo eacute lidar com algo que se inicia povoado por uma ausecircncia Luto se faz

em elipse Natildeo se supera um passado mas se convive com ele ateacute que ele

povoe o presente de maneira cada vez mais transluacutecida e menos materialmente

formada e visiacutevel como o presente pode nos parecer na imediaticidade

fenomecircnica do instante

136

Direcionando-se ao fim no mesmo livro dotado de um soacute capiacutetulo Anna

Livia diz ldquoLike almost now Howrdquo (FW 62629-30)57 Em inglecircs pode-se

compreender ldquolike almost nowrdquo como o mesmo que ldquocomo quase agorardquo de

maneira que eseja sendo indicado ou referenciado um ldquoagorardquo natildeo pontual ou

natildeo pontuado talvez fluido por ser indefiniacutevel o agora o eacute quase agrave medida que

o presente escapa Logo ela anuncia mais contundentemente a substituiccedilatildeo de

geraccedilotildees com a passagem do tempo

And can it be itrsquos nnow fforvell Illas I wisht I had better glances to peer to you through this baylightrsquos growing But yoursquore changing alcoosha yoursquore changing from me I can feel Or is it me is Irsquom getting mixed Brightening up and tightening down Yes yoursquore changing sonhusband and yoursquore turning I can feel you for a daughterwife from the hills again (FW 62633-36 6271-3)58

Anna Livia daacute lugar agrave filha Isobel na ordem natural familoar e aos filhos

Shem e Shaun assim como seu marido seraacute substituiacutedo O espaccedilo das

memoacuterias (ldquoAnd let her rain now if she likes Gently or strongly as she likes

Anyway let her rain now if she likes I done my best when I was letrdquo --- FW 62711-

1359) Isobel Isabel Issy que eacute tambeacutem Nuvoletta a nuvem que chove e

preenche o rio mas eacute formada a partir dele Anna Livia abre espaccedilo ao

protagonismo da filha que a sucede no fluir e o ricorso eacute fechado no ciclo natural

que metaforiza o das relaccedilotildees familiares

O fluir-ricorso eacute mais que o fechamento do ciclo que realiza o movimento

circular e repete o mesmo percurso em cadeia eacute primordialmente a

impossibilidade de diferir o fechamento da (re)abertura em momento-iacutenterim

entre a morte e a vida que unem em Finnegans wake o anacronismo daquilo que

natildeo se unitariza em tempo vivido por uma consciecircncia agrave diferenciaccedilatildeo que se

faz com o ciclo que se modifica com as geraccedilotildees com as reverberaccedilotildees do que

57 ldquoQuase como agora Comordquo na traduccedilatildeo de Schuumller (2003) 58 ldquoSeraacute que eacute agora nnossrsquouacuteltimo adeus Illaacutes Oxalaacute eu tivesse melhores vistas para te contemplar agrave luz alvorecente da Bahia Mas tu jaacute natildeo bates meupulso tu te abates de mim bem o sinto Ou isto eacute eu eacute Estou confusa Illo minando-me estou me dilu indo Sim estaacutes mudando filhemarido posso sentir-te para uma filhesposa dos montes outravezrdquo (idem) 59 ldquoChovela agora se eacute isso que adora Chovisco ou trombada como lhe agrada Chova no entanto visto que vinda eacute minhrsquohora Dei meu recado enquanto me foi dadordquo (idem)

137

se vatildeo ainda ecoando no futuro com as singularidades O desmantelamento

desse presente puro o transforma em algo contaminado de porvir ainda

permeado do rastro do passado e acima de tudo indefiniacutevel como tempo palpaacutevel

a natildeo ser se emoldurado em conjunturas ficcionalizantes

A continuidade eacute assegurada por meio da evocaccedilatildeo de Anna Livia dos

que a seguiratildeo apelo e chamamento que fazem a anunciaccedilatildeo da chuva de

NuvolettaIsobel A matildee de certa maneira dando a sua permissatildeo mas sendo

antes forccedilada pelas circunstacircncias do tempo que natildeo para daacute lugar sem

desaparecer por completo A temporalidade essencial de todo o Wake eacute a da

substituiccedilatildeo que natildeo substitui pois manteacutem o que perpetua mas tambeacutem

aniquila da mesma maneira como o crepuacutesculo pode ser confundido com o

nascer do Sol

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

139

Foi reafirmado o quanto defendemos o afastamento da compreensatildeo una

de literatura seja com Finnegans wake seja com qualquer outra obra escritural

Isso pode ser natildeo uma saiacuteda sagaz que se esquivaria de questionamentos

importantes sobre a estrutura e os desdobramentos semacircnticos do texto

intrincado de Joyce mas sim uma abertura ao perigoso desfrutar dos problemas

Em vez de uma estrateacutegia uma compreensatildeo de que eacute da incompreensatildeo que

podem surgir boas leituras inclusive acadecircmicas Para partir da incompreensatildeo

aiacute sim nada mais adequado desafiador e divertido do que o Finnegans wake

Em vez de resolver os problemas responder os questionamentos e fechar o livro

com a certeza veemente de que se compreendeu e jaacute se pode dizer ldquotermineirdquo

abre-se o livro novamente E novamente E incessantemente

140

Isso natildeo eacute necessariamente preocupante restaria talvez saber se o

problema eacute conosco com o texto ou se consiste na impossiacutevel acomodaccedilatildeo a

uma teoria literaacuteria que demanda explicaccedilotildees que natildeo podemos dar Ou ateacute

possamos talvez mas necessariamente optando por um caminho que reduz a

uma interpretaccedilatildeo mdash um trabalho hermenecircutico que busca o dogma ao inveacutes de

lidar por que natildeo com mais de uma possibilidade simultacircnea Foi instaurada a

heranccedila de lidar com a literatura como lidamos com as escrituras sagradas que

podem oferecer uma poeacutetica que abre para a fruiccedilatildeo mas acima de tudo pautam

ensinamentos que devem ser objetivos pelo bem do funcionamento de um

sistema externo ao texto Literatura poreacutem natildeo eacute o que diremos dela Como os

guias para o Finnegans wake dizem em geral desculpando-se

antecipadamente isto mdash esta dissertaccedilatildeo esta pesquisa mdash natildeo pretende

abarcar uma leitura totalizadora Talvez jaacute fosse a hora de isso natildeo precisar ser

dito apenas para o Wake mas sobre qualquer livro de literatura Eacute claro que haacute

uma dificuldade em abrirmos matildeo do status de ldquoautoridade emrdquo mas a literatura

precisa dessa distacircncia O cuidado cientiacutefico dela eacute esse

Considerando contudo as demandas de ensino baacutesico de literatura nas

escolas por exemplo ou mesmo as demandas acadecircmicas que exigem

porventura uma produtividade que se possa comprovar como acomodar o

Finnegans wake ao que a teoria ou a leitura hermenecircutica teorizada demandam

Aliaacutes como mdash e por que mdash acomodar qualquer obra literaacuteria a uma

sistematizaccedilatildeo que esquematiza seus elementos de maneira engessada O

ponto sequer eacute uma recusa natildeo mais tatildeo inovadora ou a reforma do sistema de

qualquer teoria de qualquer aporte mas o entendimento claro de como isso

afeta uma leitura e da hierarquia entre essas instacircncias se determina o que um

livro pode ter para funcionar e o que seu gecircnero permite que se pressuponha a

seu respeito Nesse sentido o questionamento do tempo tatildeo filosoacutefico e

abstrato tornar-se-ia praacutetico quando pensaacutessemos no impacto das concepccedilotildees

de histoacuteria da literatura cacircnone sistema O tempo feito em uma diacronia das

obras-primas o tempo sobre o qual repousam as obras que importam e o tempo

do ostracismo das relegadas agrave margem Esse tempo nos importa somente para

ser questionado

141

O manual tradicional e didaacutetico Teoria literaacuteria de Hecircnio Tavares traz o

excerto ldquoO objeto da ciecircncia da literaturardquo de Fundamentos da interpretaccedilatildeo e

da anaacutelise literaacuteria (1948) de Wolfgang Kayser que por sua vez cita a

separaccedilatildeo severa entre poesia e literatura feita pelo italiano Benedetto Croce

A poesia estaria fora da literatura Natildeo seria no entanto facilmente classificada

pelos criteacuterios formais de versos e estrofes mas sim um termo valorativo

qualitativo Dessa maneira ateacute mesmo Os Lusiacuteadas ficariam de fora de Poesia

(Dichtung) nessa classificaccedilatildeo e ldquodela separado por um abismordquo (KAYSER in

TAVARES 2002 p 42) Citamos essa curiosa e incisiva classificaccedilatildeo em

tentativa de delimitar o que eacute digno de ser apreciado como Poesia e o que natildeo

eacute para apontar a ironia se essa classificaccedilatildeo aparentemente excessivamente

limitante natildeo pressupotildee que Poesia seja tatildeo somente forma oposta agrave prosa

talvez Finnegans wake entrasse para o rol da Poesia e de fora da literatura

tivesse sua qualidade canonicamente reconhecida

No texto ldquoChe cosrsquoegrave la poesiardquo Jacques Derrida toma outros rumos na

problematizaccedilatildeo do que eacute literatura e do que eacute poesia A figura do ouriccedilo surge

para apontar uma experiecircncia que jamais eacute inofensiva de maneira que uma

relaccedilatildeo com o texto literaacuterio eacute uma relaccedilatildeo da qual nunca se pode sair incoacutelume

Natildeo se lecirc sem apelo e aqui evocamos novamente a carta mamafesta de Anna

Livia como momento condensador desse apelo ou sua posterior anaacutelise no

capiacutetulo 6 em que o meacutetodo de perguntas e respostas lanccedila o questionamento

e a demanda inevitavelmente tambeacutem ao leitor ou mesmo o de Shaun iniciando

o capiacutetulo 13 dizendo ldquoHark () Horkrdquo (FW 40313)60 Em Escritura do retorno

assinala-se que

Derrida inicia sua problemaacutetica () com a renuacutencia com certo desligamento do saber Saber em termos de poemaacutetica eacute saber renunciar o que se sabe Nesse sentido a poesia exige outra forma de conhecer que talvez seria aquela do ditado que se pode ldquover como ditadordquo A poesia natildeo eacute uma aparecircncia mdash ou ainda natildeo eacute uma ldquoparecenccedilardquo sua accedilatildeo eacute daquilo que se vecirc fora do parecido mas dentro de uma representabilidade que eacute sua proacutepria reflexatildeo (EYBEN 2012 p 259)

60 ldquoEscuta () Escuchardquo (2003)

142

Como dissemos uma necessidade de autenticaccedilatildeo do texto por um

sistema literaacuterio que forja sua histoacuteria e seu cacircnone natildeo nos preocupa (o apego

ao sistema que sobrevive e mutila experiecircncias literaacuterias talvez sim) Tambeacutem

citado por Hecircnio Tavares diz Afracircnio Peixoto ldquoO gecircnero das obras-primas em

geral eacute pessoal e privativo delasrdquo (PEIXOTO in TAVARES 2002 p 158)

exemplificando sua afirmaccedilatildeo citando Rabelais Quixote Montesquieu Mesmo

que fosse relativamente possiacutevel de se definirem as classificaccedilotildees ainda assim

permanecem dispensaacuteveis no lanccedilar-se ao texto e lanccedilando-nos deparamo-nos

com o segredo indiziacutevel proacuteprio do escritural

Se indiziacutevel evidentemente tambeacutem inclassificaacutevel sem que isso seja um

defeito e distante de ser uma abertura a qualquer coisa a uma leitura tatildeo frouxa

que fosse vazia ou esvaziada por uma relativizaccedilatildeo desmedida Finnegans wake

eacute aberto e amplo mas cheio e povoado de caminhos sem que tenha reacutedeas

apertadas demais para direcionar uma soacute leitura ou uma rota preferencial como

todo texto escritural tem entradas diversas e a literatura natildeo se faz em

hierarquias atraveacutes das quais nos prestamos a buscar a verdade do texto que

estaraacute no fim do caminho percorrido Se houvesse uma linha reta a ser seguida

ou mesmo um labirinto desse tipo natildeo haveria segredo no texto mdash ou haveria

um segredo que se perderia sendo revelado e nesse caso deixaria de existir o

que desmoronaria o entendimento de segredo do texto literaacuterio como aquilo que

se manteacutem secreto mesmo apoacutes repetidas leituras e mergulhos no texto por

mais profundos que possam ser Em Gecircneses genealogias gecircneros e o gecircnio

em que fala de Heacutelegravene Cixous Jacques Derrida assevera sobre o segredo da

literatura

Laacute se encontra como segredo da literatura o poder infinito de manter indecidiacutevel e portanto irrevelaacutevel o segredo do que ela diz ela a literatura ou ela Cixous () O segredo da literatura eacute pois o proacuteprio segredo Eacute o lugar secreto onde ela se institui como a possibilidade mesma do segredo o lugar de sua gecircnese ou de sua genealogia proacutepria Isto eacute verdade em todos os gecircneros literaacuterios (DERRIDA 2005 p 22)

143

Tambeacutem pertinente eacute o que nesse mesmo lugar Derrida diz a respeito

ainda de Cixous e de uma escrita que desperta do oniacuterico ldquopalavra escrita ao

despertar endereccedilada e destinada ao despertar Como se o despertar ao sair

do sonho em seu wake estivesse ainda na vigiacutelia do sonhordquo (Ibid p 45) e ldquoo

proacuteprio sonho eacute o que interrompe o sono O sonho desperta O sonho vela e ele

vela a endereccedilar injunccedilotildees inflexiacuteveis agrave vigiacuteliardquo (Ibid p 43) Ainda que essas

palavras de Derrida natildeo sejam expliacutecita e diretamente sobre o Wake nelas o

sonho natildeo eacute anestesia e no Wake tambeacutem natildeo ocorre ateacute o oposto o sonho se

mescla ao despertar e agrave ressureiccedilatildeo O sonho para Derrida e para Joyce em

nada inerte e tambeacutem nada linear como a vida real eacute o terreno das maiores e

multiplicadas possibilidades bem como da atividade de certa maneira caoacutetica e

do tempo do anacronismo do entrecruzamento de alteridades e dos ecos

polifocircnicos

Encaminhamos este fim mdash que certamente nos faz retornar retornar ao

texto ao Wake a Joyce agrave literatura mdash lembrando que a temporalidade da leitura

eacute a materialidade do tempo da literatura eacute o tempo efetivamente vivido na

ressureiccedilatildeo do texto mas eacute tambeacutem temporalidade significativamente esquiva

a tentativas de definiccedilatildeo O presente da (de uma e de qualquer) leitura eacute

constantemente desestabilizado (e em Wake isso se faz sem misericoacuterdia) e

nunca se tem uma base fixa na qual se agarrar a natildeo ser o proacuteprio abismo

escritural

Em termos joyceanos natildeo temos um rio de significado mas sim o rio como rasura da chuva que eacute em si uma forma de conduccedilatildeo dos significantes como respostas mdash reacuteplicas mdash ainda textuais O sujeito que lecirc tambeacutem eacute perdido rasurado pois sua referecircncia deve ater-se apenas agrave escritura uacutenica satisfaccedilatildeo exigida O sujeito cavado na aparecircncia eacute soterrado pelo barranco chuvoso dos sintagmas deslocados (EYBEN 2012 pp 258-259)

Em termos de temporalidade textual buscamos entender relaccedilotildees

diversas aleacutem da temporalidade da leitura ou da literatura lidavivida entraram

aqui o tempo do ausente do morto que se faz espectro (aleacutem do que acontece

com HCE o proacuteprio morto ressuscitado como Tim Finnegan o eacute na balada

irlandesa a que Joyce se remete) presenccedila e ausecircncia como dispositivos de

144

uma temporalidade do anacronismo presenccedilas que se fazem tambeacutem no

chamamento no apelo e na demanda A estrutura paradigmaacutetica viquiana

oferece subsiacutedios jaacute trabalhados mas o Wake com seu caraacuteter oniacuterico acoberta

uma seacuterie de cruzamentos e noacutes que se vistos mais de perto enriquecem a

leitura Pode ser que anaacutelises de textos de escritura de literatura em vez do

senso comum de que sejam elucidativas e iluminadoras sejam natildeo somente

dispensaacuteveis mas tambeacutem excessivas produzindo mesmo interferecircncias

tornando a jaacute difiacutecil leitura por si soacute ainda mais barroca e excessivamente pesada

de detalhes a serem enxergados Caminhos mais interessantes por

conseguinte seriam os da teorizaccedilatildeo que interesse por si soacute que possam

acompanhar a leitura do Wake sem causar ruiacutedos nela tampouco pretendendo

clarificaacute-la em objetivaccedilatildeo pretensiosa

Finnegans wake se estabelece no entremeio da verdadeira oposiccedilatildeo entre

circularidade e linearidade em que o ciacuterculo pode ser pensado se percorrido nos

moldes da demeure nomade derridiana e natildeo em ciclos de revisitaccedilatildeo Se

tomarmos o Wake a partir do tempo mensurado que se insere no caraacuteter circular

do sentido homogecircneo e infinito teremos de pensaacute-lo sublinhe-se em seu

caraacuteter precisamente literaacuterio de forma distinta de pensarmos essa mesma obra

a partir do tempo de simultaneidade que considere a estrutura circular sem

redundacircncia sem repeticcedilatildeo e sem divisotildees de linearidade

145

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Page 2: O FLUIR-RICORSO E OS TEMPOS DE FINNEGANS WAKE...O fluir-ricorso e os tempos de Finnegans wake. Dissertação de Mestrado. Orientador Piero Luis Zanetti Eyben. Brasília: Universidade

Universidade de Brasiacutelia

Departamento de Teoria Literaacuteria e Literaturas

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Literatura

Luiacutesa Leite S de Freitas

O FLUIR-RICORSO E OS TEMPOS DE

FINNEGANS WAKE

Dissertaccedilatildeo apresentada ao curso de Mestrado em

Literatura do Departamento de Teoria Literaacuteria e

Literaturas da Universidade de Brasiacutelia como parte

dos requisitos para obtenccedilatildeo do grau de Mestre

elaborada sob orientaccedilatildeo do Professor Dr Piero Luis

Zanetti Eyben

Brasiacutelia ndash DF

2014

LUIacuteSA LEITE S DE FREITAS

O FLUIR-RICORSO E OS TEMPOS DE FINNEGANS WAKE

Dissertaccedilatildeo apresentada ao curso de Mestrado em Literatura do Departamento de Teoria

Literaacuteria e Literaturas da Universidade de Brasiacutelia aprovada pela banca examinadora

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2014

____________________________________________________________________

Dr Piero Luis Zanetti Eyben

Universidade de Brasiacutelia mdash Presidente

____________________________________________________________________

Dr Caetano Waldrigues Galindo

Universidade Federal do Paranaacute mdash Membro Externo

____________________________________________________________________

Dr Henryk Siewierski

Universidade de Brasiacutelia mdash Membro Interno

____________________________________________________________________

Dra Cristina Maria Teixeira Stevens

Universidade de Brasiacutelia mdash Membro Interno ndash Suplente

aos meus pais

AGRADECIMENTOS

Satildeo 23 anos de agradecimentos diversos Vamos laacute paciecircncia aos meus pais que haacute tanto tempo reforccedilam os valores que sempre me passaram minha matildee linda fonte de amor na sua forma mais pura mulher que mais admiro no mundo e que sintetiza comprometimento devoccedilatildeo e moral meu pai minha referecircncia maacutexima cuja paixatildeo e eacutetica tanto admiro e que sempre me influenciaram aleacutem de ser certamente a mais incriacutevel combinaccedilatildeo de compositor escritor e professor que possa existir aos meus queridos avoacutes que descansam em paz em algum lugar e agrave minha avoacute wanda por quem meu amor eacute absolutamente infinito aos meus dois irmatildeos e agraves minhas duas irmatildes camila irmatilde mais velha para quem ainda olho com olhar de crianccedila tamanha eacute minha admiraccedilatildeo por seu talento sensibilidade e forccedila felipe maninho mais velho em quem por toda a infacircncia me espelhei mdash e de quem tanto peguei discos e bonecos do power rangers sem permissatildeo miguel que desde que veio ao mundo se mostra cada vez mais como um grande ser humano julinha que tornou nossas vidas mais doces e mais risonhas mdash e do jeito que o tempo passa em breve vai estar lendo ela mesma esta frase estendo isto aqui ainda aos meus irmatildeos de consideraccedilatildeo (nada de meios irmatildeos mdash tenho somente irmatildeos inteiros) tia sandra e e meus tantos familiares todos que provam que amor natildeo se divide mas se multiplica agravequele que estaacute sempre laacute para mim haacute sete anos e a quem tanto amo marcos oliveira agrave isabella carrazza que desempenha o papel primordial de amiga inseparaacutevel desde 2001 ao igor versiani e ao henrique barbosa os melhores amigos que os uacuteltimos anos me deram e que espero ter sempre por perto natildeo importa em que lugar do mundo estejam porque temos natildeo um cantinho mas verdadeiros latifuacutendios no coraccedilatildeo uns dos outros agrave joana melo que me ofereceu sua amizade tatildeo especial por toda a graduaccedilatildeoampaleacutem e a quem soacute posso agradecer por isso e fazer jus a essa troca agrave stephanie winkler pela sua amizade tatildeo profunda e inigualaacutevel ao pedro couto meu grande amigo com quem tenho a sintonia sagitta em tantos niacuteveis ao lucas lyra que agraves vezes me entende como poucos e a quem quero tatildeo bem agrave raquel campos amiga-irmatilde de companheirismo tatildeo vasto fez desse tempo de mestrado algo muito melhor agrave ludimila menezes amiga-em-forma-bruta enche meus dias de beleza com sua enorme sinceridade de alma que me enche de forccedila e alegria

ao rafael machado que se desdobra em mil e eu tanto admiro por seu apoio incomensuraacutevel e pelo conviacutevio agrave sarah jeanne cujo companheirismo fez toda a diferenccedila e por quem nutro o maior carinho possiacutevel e tambeacutem ao victor fialho e agrave sayuri hirako queridos que coloriram esse tempo junto conosco agraves feministas-realmente-amigas-queer-poacutes-modernxs-pan-normativxs grupo no qual a mariana ferreira me incluiu e cujo nome jaacute define a genialidade amanda quadrado ana paula jacob liacuteria nogueira lorena figueiredo luciana torres marcella fernandes thauana tavares cada uma de vocecircs tem um espaccedilo de carinho e amor dentro de mim ao joyce e agrave sua filha que o inspirou lucia mas tambeacutem ao proust ao dante agrave emily dickinson ao truffaut e agrave sofia coppola agrave fiona apple agrave brody dalle e ao rufus wainwright ao georges bizet e ao giacomo puccini agraves cidades brasiacutelia com sua vastidatildeo e belo horizonte com seu acolhimento agrave muacutesica a arte que tanto quanto literatura e filosofia me manteacutem viva e manteacutem em mim o interesse por me manter viva ao prof piero eyben mais do que orientador desta dissertaccedilatildeo modificou para sempre minha relaccedilatildeo com a graduaccedilatildeo em Letras e com a academia e cujas aulas nunca mais quis parar de frequentar desde 2011 pelos tantos ensinamentos pelo acolhimento e pela capacidade de redefinir esse meu percurso obrigada minha gratidatildeo natildeo tem limites e este trabalho natildeo existiria sem tudo isso agrave Capes pelo apoio financeiro agrave Universidade de Brasiacutelia pela importacircncia que ganha mais espaccedilo em mim desde 2009 a todos que passaram pela minha vida deixando alguma marca e que natildeo nomeei aqui certamente me tornei outra depois de vocecircs digo seus nomes em silecircncio obrigada

First we feel Then we fall

(FW 62711)

Now follow we out by Starloe

(FW 38230)

Resumo

FREITAS Luiacutesa O fluir-ricorso e os tempos de Finnegans wake Dissertaccedilatildeo de Mestrado

Orientador Piero Luis Zanetti Eyben Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 2014 151 p

Esta dissertaccedilatildeo percorre investigaccedilotildees acerca do tempo tanto como instacircncia narrativa tanto

como conceito de teorias filosoacuteficas a partir da obra uacuteltima do escritor irlandecircs James Joyce

(1882-1941) Finnegans wake (1939) O aporte teoacuterico perpassa a fenomenologia e em especial

a filosofia de Jacques Derrida (1930-2004) O ricorso termo que proveacutem da obra do filoacutesofo

Giambattista Vico (1668-1744) eacute aqui relido como fluir-ricorso em uma ampliaccedilatildeo das

investigaccedilotildees sobre o tempo no Finnegans wake para aleacutem da Scienza nuova (1725) seu

paradigma central O tempo como tambeacutem formador de memoacuteria diacronia coletiva

compartilhada traz agrave tona o questionamento da inserccedilatildeo ou exclusatildeo de certos textos no cacircnone

da histoacuteria da literatura e como esse sistema pocircde lidar com as peculiaridades do texto de

Finnegans wake desde a recepccedilatildeo de seus contemporacircneos modernistas Sobre o tempo do

proacuteprio texto suas relaccedilotildees com muacutesica e outras artes outro importante filoacutesofo para o trabalho

eacute Emmanuel Levinas (1906-1995) Lidando com sincronia diacronia e anacronismo traccedilamos

as possibilidades de entender o tempo do texto do Wake com o apoio desses termos como

abordados pelo filoacutesofo Ainda nesse acircmbito eacute tambeacutem discutido em parte deste trabalho o

tempo da traduccedilatildeo mdash ou seus tempos mdash e apontadas as traduccedilotildees brasileiras para o texto de

James Joyce A leitura das traduccedilotildees eacute feita sempre no esteio das discussotildees do tempo bem

como o questionamento sobre o cacircnone literaacuterio e a histoacuteria da literatura que partem igualmente

dessas noccedilotildees passando tambeacutem por Agostinho Martin Heidegger e Paul Ricoeur

Palavras-chave James Joyce Finnegans wake Tempo Jacques Derrida Fenomenologia

Abstract

FREITAS Luiacutesa The flowing-ricorso and the times of Finnegans wake Masterrsquos dissertation

Supervised by Piero Luis Zanetti Eyben Brasiacutelia University of Brasiacutelia 2014 151 p

This dissertation investigates different notions of time considered as a narrative concept as well

as a philosophical concept and center of philosophical theories from the last work by the Irish

author James Joyce (1882-1941) Finnegans wake (1939) The theoretical framework goes

through phenomenology and especially the philosophy of Jacques Derrida (1930-2004) The

ricorso term we take from the works of the Italian philosopher Giambattista Vico (1668-1744) is

reinterpreted here as a flowing-ricorso invoking the movement of a river broadening the

investigations on time concerning Finnegans wake beyond what we can see with Scienza nuova

(1725) its central paradigm The notion of time also as a memory a shared collective diachronic

vision elicits the questioning of the insertion or exclusion of some texts among the canonical ones

in the history of literature and how this system can deal with the peculiarities of Finnegans wake

ever since its first reception by the contemporary modernists About the time within the text itself

its relations with music and other forms of art another important philosopher here is Emmanuel

Levinas (1906-1995) Dealing with synchronic diachronic and anachronism we find the

possibilities of understanding the time of the text in the case of Finnegans Wake with the support

of Levinasrsquo approach of these terms Still concerning those themes the time of a translation is

also brought to this analysis mdash or its sundry times mdash and the different Brazilian translations for

James Joycersquos text are indicated The approach of this analysis of translations is based on the

investigation of the concept of time and the questions concerning the literary canon and the history

of literature all of these being connected notions also reading the works of Agostinho Martin

Heidegger and Paul Ricoeur

Keywords James Joyce Finnegans wake Time Jacques Derrida Phenomenology

Sumaacuterio

INTRODUCcedilAtildeO ndash Wake e environs11

CAPIacuteTULO I ndash Wake em pauta30

1 Algo parecido com nada 31

2 Sui generis38

3 Fluidez vida-morte46

4 Paralelos psicanaacutelise teoria da relatividade muacutesica51

CAPIacuteTULO II ndash Finnegans wake e o tempo da traduccedilatildeo64

CAPIacuteTULO III ndash Leitura luto elipse82

CAPIacuteTULO IV ndash Fluir e retorno108

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS138

BIBLIOGRAFIA145

INTRODUCcedilAtildeO WAKE E ENVIRONS

Hightime is ups be it down into outs according

Premente eacute o tempo que seja feito do teu jeito1

(FW 23916)

1 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2002) O mesmo valeraacute para as proacuteximas citaccedilotildees de Finnegans wake em portuguecircs exceto quando indicado de resto citaccedilotildees diversas desacompanhadas da indicaccedilatildeo de autoria satildeo traduccedilotildees livres feitas por mim

12

Decidir ler Finnegans wake eacute decidir por lanccedilar-se ao texto

Ainda que sua escrita tenha sido iniciada pouco tempo apoacutes a publicaccedilatildeo

de Ulysses (1922) que jaacute despertara uma recepccedilatildeo que ia de manifestaccedilotildees de

repuacutedio a grandes elogios passando por problemas com censura e acusaccedilotildees

de obscenidade Finnegans wake (1939) foi publicado mais de dezesseis anos

depois de o dublinense James Augustine Aloysius Joyce (1882-1941) comeccedilaacute-

lo e por volta de dois anos antes de seu falecimento em Zurique no dia 13 de

janeiro de 1941 Nesse iacutenterim acabou por ficar ofuscada a publicaccedilatildeo de

Pomes Penyeach (1927) livro que tambeacutem foi escrito em um longo intervalo de

tempo de 1904 a 1924 apesar de mdash bem ao contraacuterio das duas obras entre as

quais estaacute intercalado mdash consistir em treze curtos poemas

13

O contexto em que Finnegans wake foi produzido eacute permeado por

algumas peculiaridades aleacutem do longo tempo de escrita e reescrita a publicaccedilatildeo

de fragmentos do que ateacute entatildeo se chamava Work in progress possibilitou que

Joyce jaacute tivesse enquanto ainda escrevia concreta noccedilatildeo do impacto que sua

produccedilatildeo final poderia causar mdash fosse entre quem a lesse fosse entre quem

natildeo leu mas ouviu falar fosse entre quem comeccedilou a ler e desistiu ateacute os que

leram mas tiveram a sensaccedilatildeo de natildeo terem lido (talvez a mais comum no

primeiro contato com o Wake)

Soma-se a isso o problema de visatildeo de Joyce decorrente de um quadro

de glaucoma que se agravava cada vez mais obrigando-o a passar por mais de

dez cirurgias e a buscar consultas com meacutedicos de diferentes lugares em busca

de alguma melhora Chegou ao ponto de natildeo conseguir mais ler nada impresso

passando a ter de escrever em uma caligrafia enorme para conseguir enxergar

melhor usar um tapa-olho que ficou famoso em algumas de suas fotografias e

ditar alguns trechos de fragmentos do Finnegans wake O entatildeo jovem escritor

Samuel Beckett chegou a fazer esse trabalho algumas vezes ouvindo a citaccedilatildeo

de Joyce com apreccedilo pela tarefa especial que executava Aleacutem de ser uma das

figuras mais proacuteximas do jaacute ceacutelebre conterracircneo de quem recebeu alguns

elogios especiais e chegou a ser tratado com rara intimidade foi um de seus

mais sinceros admiradores e mais ativos defensores Os dois ficaram afastados

por um periacuteodo de cerca de um ano apoacutes um mal entendido que envolvia a filha

de Joyce Lucia Anna Joyce que parecia ter se apaixonado pelo jovem irlandecircs

que visitava seu pai mas a relaccedilatildeo dos dois escritores acabou por sobreviver ao

ocorrido

Joyce teve em vida numerosos admiradores que como Beckett

apoiaram ativamente sua produccedilatildeo Entre os nomes mais importantes daqueles

que estiverem em alguma medida presentes na fase final de sua vida estaacute o de

sua mecenas a inglesa Harriet Shaw Weaver (1876-1961) que se tornaria

editora da revista The Egoist (anteriormente chamada de The Freewoman e The

New Freewoman) Weaver estudou na London School of Economics e participou

ativamente do maior movimento pelos direitos das mulheres no Reino Unido

Womenrsquos social and political union que reivindicou o sufraacutegio universal direito

14

concedido somente em 1928 (deacutecadas depois da fundaccedilatildeo do grupo em 1903

e mais de um seacuteculo depois das primeiras reivindicaccedilotildees na Inglaterra desde o

iniacutecio endossadas publicamente por alguns homens ceacutelebres) A revista The

Egoist contava com Ezra Pound na seccedilatildeo literaacuteria e nela foram publicados

Pheacutenomenologie de la perceptiontrechos de Ulysses Pound por um tempo

teceu diversos elogios aos trabalhos de Joyce e tambeacutem o apoiou antes que

comeccedilasse a mudar suas opiniotildees a respeito das empreitadas literaacuterias do

irlandecircs exilado especificamente na fase final de suas obras em especial diante

de Finnegans wake que lhe pareceu um material por demais indigesto

Outro importante nome eacute o de Sylvia Beach (1887-1962) proprietaacuteria da

Shakespeare and Company mdash fundada em 1919 e apelidada por Joyce de

Stratford-on-Odeacuteon em referecircncia a Stratford-upon-Avon cidade natal de

Shakespeare e agrave rue de l`Odeacuteon onde ficava a livraria mdash que publicou a

primeira ediccedilatildeo de Ulysses em 1922 e Pomes Penyeach em 1927 aleacutem da

coletacircnea de ensaios sobre o Wake que ainda estava em construccedilatildeo em 1929

Our exagmination round his factification for incamination of Work in progress

Beach apoiou e acompanhou boa parte da carreira de Joyce ainda que algumas

das empreitadas tenham lhe acarretado problemas ldquoI understood from the first

that working with or for Mr Joyce the pleasure was mine mdash an infinite pleasure

the profits were for himrdquo2 (FLANNER 1972 apud HALFORD 2010) Os anos

1930 marcaram dificuldades econocircmicas apesar da ajuda de amigos e

simpatizantes da livraria que formaram um grupo para ajudar a reerguecirc-la o Les

amis de Shakespeare and company Em 1941 poreacutem com a invasatildeo da Franccedila

pelo Terceiro Reich agravando a Segunda Guerra Mundial os problemas se

somaram e levaram-na agrave falecircncia Apesar de a relaccedilatildeo entre Joyce e Beach ter

se tornado ceacutelebre e a livraria ter sido centro de muitos encontros conta-se que

ironicamente o fechamento da livraria aconteceu pouco depois de Sylvia Beach

se recusar a vender a uacuteltima coacutepia de Finnegans wake a um oficial do

totalitarismo nazista

2 ldquoCompreendi desde o iniacutecio que trabalhar com ou para o Sr Joyce o prazer era todo meu ndash um infinito prazer os lucros eram delerdquo

15

In late 1941 Shakespeare and company was forced to close shortly after Beach refused to sell her last personal copy of Finnegans wake to a Nazi officer It was symbolically ldquoliberatedrdquo in 1944 by Ernest Hemingway but in fact the bookstore never reopened though in the 1950s Beach gave an American named Whitman permission to open a bookstore under that name (FARGNOLI 2006 p 352)3

Foram figuras importantes na fase final vida de Joyce o casal Eugene

Jolas (1894-1952) e Maria McDonald (1893-1987) americanos residentes em

Paris que editavam a revista literaacuteria experimental Transition fundada por eles

em 1927 em que foram publicados excertos de Finnegans wake ainda sob seu

tiacutetulo provisoacuterio anterior Work in progress aleacutem de artigos sobre a obra de

James Joyce Conheceram-se por Sylvia Beach A revista de ares inovadores e

artisticamente progressistas se estabeleceu como referecircncia na capital francesa

especialmente entre os angloacutefonos desterrados A seguinte descriccedilatildeo de Eugene

Jolas encontra-se na premiada biografia James Joyce (1959 1989)4 escrita pelo

norte-americano Richard Ellmann

Homem sensiacutevel procurava uma teoria da arte que tambeacutem fosse uma filosofia de vid pensava tecirc-la encontrado numa ldquoreligiatildeo da palavrardquo cujo ritual ele saturava com termos como ldquofantaacutesticordquo ldquomacircnticordquo e seu neologismo ldquoparamitordquo Soacute na arte se podia confiar e confiar apenas se se abjurasse do externo em nome da imaginaccedilatildeo (p 725)

Eugene Jolas foi um daqueles que mais apoiaram e defenderam a obra

de James Joyce em sua eacutepoca tendo visto em Finnegans wake uma obra que

seria forte e consistente acircncora para o manifesto que publicou em 1929 na

proacutepria revista Transition denominado ldquoRevolution of the wordrdquo no qual discorria

sobre novas formas de linguagem literaacuteria Durante a deacutecada de 1960 jaacute viuacuteva

Maria se tornaria ceacutelebre ainda como presidenta do Comitecirc Americano de Paris

3 ldquoNo fim de 1941 Shakespeare and company foi obrigatoriamente fechada pouco tempo depois de Beach ter se recusado a vender sua uacuteltima coacutepia pessoa de Finnegans wake a um oficial nazista Foi simbolicamente ldquoliberadardquo em 1944 por Ernest Hemingway mas a livraria nunca foi reaberta de fato apesar de nos anos 1950 Beach ter permitido que um americano chamado Whitman abrisse uma livraria usando o mesmo nomerdquo 4 Em 1982 Richard Ellmann recebeu o James Tait Black Memorial Prize na categoria biografia um dos mais tradicionais precircmios literaacuterios britacircnicos

16

contra a Guerra do Vietnatilde que foi censurado pelo governo francecircs poucos anos

depois de sua fundaccedilatildeo em 1968

Adrienne Monnier (1892-1955) foi mais uma das maiores apoiadoras de

James Joyce em Paris Abriu a livraria La maison des amis des livres em 1915

que ficava proacutexima de um dos endereccedilos da Shakespeare and company (o da

rue de lrsquoOdeacuteon que originou o jaacute citado apelido de Joyce de ldquoStratford-on-

Odeacuteonrdquo) Adrienne Monnier difundiu na Franccedila a obra literaacuteria do escritor norte-

americano Ernest Hemingway em traduccedilotildees para liacutengua francesa e publicou por

um tempo o perioacutedico literaacuterio Le navire drsquoargent que contava com Jean Preacutevost

em sua equipe editorial Uma das primeiras mulheres a ser dona de uma livraria

especialmente fundada por ela mesma isto eacute sem que tivesse sido herdada de

famiacutelia ou de um falecido marido Monnier foi referecircncia para Sylvia Beach que

abriu seu negoacutecio quatro anos depois construindo-se entre elas uma vasta

parceria

Ford Madox Ford (1873-1939) literato inglecircs proacuteximo de Ezra Pound que

tambeacutem residiu em Paris e que inspirou um capiacutetulo do autobiograacutefico A

moveable feast de Ernest Hemingway foi outra fonte de apoio com que Joyce

contou Ford editava a revista literaacuteria The transatlantic review em Paris e a

publicava em Londres pela editora independente Gerald Duckworth Overlook

(hoje tatildeo somente Duckworth Overlook cujo slogan eacute ldquoindependente desde

1898rdquo) Inicialmente os financiadores da Transatlantic exigiram que nada escrito

por Joyce fosse publicado na revista mas acabaram abrindo matildeo da proibiccedilatildeo

quando Ford ameaccedilou recusar o cargo de editor Com doze ediccedilotildees mensais

durante o ano de 1924 foi a primeira publicaccedilatildeo a conter excertos do entatildeo Work

in progress mdash tiacutetulo virtualmente sugerido por Ford em seu suplemento literaacuterio

depois adotado por Joyce mdash que soacute mais tarde apareceriam tambeacutem na

Transition do casal Jolas Ford que tambeacutem publicou Hemingway e Tristan

Tzara chegou a temer que sua revista fosse prejudicada se houvesse alguma

acusaccedilatildeo de obscenidade do que Joyce escreveu Por outro lado a princiacutepio o

proacuteprio Joyce se recusou publicar assim trechos de sua obra em andamento por

acreditar que natildeo seria bom tecirc-la fragmentada (apesar de Ulysses ter sido

17

publicado dessa maneira em outra revista a Little review) tendo negado outros

convites anteriores mas acabou cedendo

Tanto as vaacuterias publicaccedilotildees dos excertos em progresso quanto

posteriormente a publicaccedilatildeo de Finnegans wake poreacutem fizeram com que ateacute

alguns de seus admiradores mais contundentes se manifestassem

negativamente Ateacute mesmo Nora a esposa de Joyce criticou o texto do Wake

pejorativamente um ldquochop sueyrdquo questionando a qualidade a partir da

ininteligibilidade Reiterava assim a opiniatildeo expressa por Harriet Shaw Weaver

que tambeacutem se posicionou desfavoraacutevel ao que Joyce estava produzindo no fim

de sua vida distanciando-se consideravelmente dele na fase em que estava

escrevendo o Wake Em uma carta a Joyce disse abertamente natildeo se interessar

pela ldquoproduccedilatildeo de seu Atacado de Trocadilhos de Seguranccedila nem pelas

escuridotildees e ininteligibilidades do seu sistema de linguagem deliberadamente

emaranhado Parece-me que vocecirc desperdiccedila seu gecircniordquo (ELLMANN 1989 p

728) Ainda que natildeo tenha havido grande rancor entre os dois na ocasiatildeo da

morte de Joyce em Zurique ela teria arcado com as despesas de seu funeral mdash

que natildeo teve refinamentos e nem qualquer homenagem ou contribuiccedilatildeo vinda

da Irlanda

Ezra Pound (1885-1972) foi quem possivelmente fez o comentaacuterio mais

aacutecido O escritor norte-americano comeccedilou a tecer criacuteticas desde os capiacutetulos

finais de Ulysses e quanto a Finnegans wake ao receber de Joyce o manuscrito

do livro de Shaun para que lesse e comentasse respondeu a ele que soacute lhe

restava desejar sucesso mas natildeo sabia o que pensar Na mesma carta chegou

a dizer que aquele texto soacute valeria a pena se apresentasse uma visatildeo divina ou

a cura para a gonorreia (ldquothe claprdquo) ldquoNothing short of divine vision or a new cure

for the clapp [sic] can possibly be worth all that circumambient peripherisationrdquo5

(READ 1970 p 228) Vale lembrar que anteriormente na ocasiatildeo de uma

tentativa de angariar fundos para Joyce a partir do Royal Literary Fund Pound

se referiu a Joyce escrevendo a Yeats e George Moore de maneira muito

5 A traduccedilatildeo feita por Lya Luft da biografia de Joyce escrita por Richard Ellmann traz a seguinte versatildeo do trecho ldquoNada ateacute onde eu possa ver nada sem visatildeo divina ou uma nova cura da gonorreia valeraacute possivelmente a peripatetizaccedilatildeo circunambienterdquo (1989 p 721)

18

elogiosa tendo expressado esses elogios tambeacutem ao proacuteprio Joyce em outras

ocasiotildees ldquostill it gives me a certain satisfaction to state that I consider Joyce a

good poet and without exception the best of the younger prose writers His style

has the hard clarity of a Stendhal or a Flaubert He has also the richness of

erudition which differentiates him from certain able and vigorous but rather

overloaded impressionist writersrdquo6 (ELLMANN apud DENNING 1997 p 10)

A primeira publicaccedilatildeo sobre Finnegans wake surgiu antes mesmo que a

obra fosse concluiacuteda Alguns apoiadores de Joyce se reuniram em torno da obra

coletiva Our exagmination round his factification for incamination of Work in

progress7 (1929) quando ainda havia apenas os fragmentos denominados Work

in progress com o intuito de atenuar a recepccedilatildeo que ateacute entatildeo oscilava

nebulosamente O tiacutetulo circular sugestivo e bem-humorado foi sugerido por

Joyce A coletacircnea foi publicada pela Faber and Faber a mesma editora que

publicou a primeira ediccedilatildeo de Finnegans wake quase dez anos mais tarde em 4

de maio de 1939 Reunia ensaios criacuteticos de doze autores Samuel Beckett

Stuart Gilbert Eugene Jolas Marcel Brion Frank Budgen Victor Llona Elliot

Paul Robert McAlmon Thomas MacGreevy John Rodker Robert Sage e

William Carlos Williams O proacuteprio Joyce desejava que essa publicaccedilatildeo natildeo

contivesse apenas textos elogiosos mas tambeacutem que se expressasse algo de

negativo a respeito de seus escritos Aleacutem dos doze artigos houve dois textos

extras denominados ldquocartas de protestordquo (letters of protest) e ambos trouxeram

criacuteticas o de uma jornalista que assinou sob o pseudocircnimo de G V L Slingsby

e outro assinado por um poeta russo chamado Vladimir Dixon O texto de Dixon

ldquoA litter do James Joycerdquo denomina seu destinataacuterio ora de senhor Germs

Choice ora de senhor Shamersquos Voice trocadilhos que fizeram Stuart Gilbert e

Sylvia Beach cogitarem que essa criacutetica negativa tivesse sido escrita pelo proacuteprio

Joyce A hipoacutetese poreacutem permanece natildeo confirmada

6 Traduccedilatildeo livre ldquoainda assim me daacute certa satisfaccedilatildeo afirmar que considero Joyce um bom poeta e sem exceccedilatildeo o melhor dos jovens prosadores Seu estilo tem claridade dura de um Stendhal ou de um Flaubert Ele tem ainda a riqueza da erudiccedilatildeo que o diferencia de alguns haacutebeis e vigorosos poreacutem excessivos escritores impressionistasrdquo 7 A mesma traduccedilatildeo supracitada propotildee o tiacutetulo traduzido Nosso Exagme em torno da sua factificaccedilatildeo da incaminaccedilatildeo de Obra em realizaccedilatildeo (Ibid p 755)

19

O tradutor inglecircs Stuart Gilbert (1883-1969) um dos nomes envolvidos na

publicaccedilatildeo era um dos assiacuteduos e atentos leitores contemporacircneos de Joyce

Foi quem publicou James Joyces Ulysses A Study (1930) livro ainda hoje uacutetil

para consulta na leitura da obra que precedeu Finnegans wake elucidando

numerosas referecircncias um tanto obscuras por todos os capiacutetulos e incluindo

ainda a famigerada tabela comparativa entre Ulysses e a Odisseia de Homero

Stuart Gilbert foi apresentado a Joyce por Sylvia Beach assim como Maria e

Eugene Jolas

Apesar de conterracircneos Samuel Beckett (1906-1989) e James Joyce se

conheceram somente em Paris no exiacutelio da terra-matildee compartilhada e logo se

estabeleceu a rotina de que Beckett o visitasse sempre que estivesse na cidade

Por ter acompanhado boa parte do processo de criaccedilatildeo de Finnegans wake

especialmente na ajuda que deu a Joyce por seus problemas de visatildeo podemos

imaginar que Samuel Beckett era grande candidato a uma espeacutecie de leitor ideal

o mais proacuteximo do texto aleacutem do proacuteprio autor Suas observaccedilotildees sobre o livro

de Joyce satildeo brilhantes Eacute sabido que foi Beckett o primeiro (ou ao menos

certamente um dos primeiros) a notar verdadeiramente que a incompreensatildeo

mais comum se traduz antes mesmo de a leitura ser iniciada isto eacute ainda ali

nas expectativas perante o livro mdash como poderiacuteamos ldquoentenderrdquo o Finnegans

wake esperando uma leitura tradicional

You cannot complain that this stuff is not written in English It is not written at all It is not to be read It is to be looked at and listened to () Here form is content content is form () His writing is not about something it is that something itself When the sense is sleep the words go to sleephellip When the sense is dancing the words dance (BECKETT 1964 p14)8

8 ldquoNatildeo se pode reclamar que esse material natildeo esteja escrito em inglecircs Simplesmente natildeo eacute um material escrito Natildeo existe para ser lido Existe para ser olhado e ouvido () Aqui forma eacute conteuacutedo conteuacutedo eacute forma () Sua escrita [de Joyce] natildeo eacute sobre alguma coisa eacute a proacutepria coisa Quando o sentido eacute adormecido as palavras vatildeo dormir Quando o sentido eacute danccedilar as palavras danccedilamrdquo

20

O que Beckett muito cedo percebeu e acaba por nos confirmar eacute que a

linguagem em Finnegans wake natildeo se presta a meramente servir ao

remetimento agrave descriccedilatildeo nem a contar um ocorrido prefere trazer nela em vez

de apresentar por meio dela intenta tecirc-la como ambiente proacuteprio do

acontecimento natildeo como ferramenta siacutegnica para dizecirc-lo representativamente

ou dizecirc-lo a distacircncia Levando essa tentativa em consideraccedilatildeo nada mais

coerente do que dispensar a escolha de um idioma para produzir o texto tecendo

sua literariedade de maneira anaacuterquica em relaccedilatildeo a regras de formaccedilatildeo de

palavras ou quaisquer outras normatividades de um idioma e suas limitaccedilotildees a

ponto de se poder dizer que o Finnegans wake natildeo estaacute escrito em inglecircs nem

em irlandecircs mas sim em uma liacutengua proacutepria babeacutelica mdash ainda que se possa

argumentar que a base dessa subversatildeo eacute a liacutengua inglesa de maneira que

Joyce tanto escreve no inglecircs quanto contra ele como jaacute foi dito nas palavras do

estudioso Seamus Deane

Joyce involves himself and us in an extremely complex series of translations that are endless because there is no original and no target language () the original language is the target language The book is written in the English language and also against the English language it converts itself into English and perverts itself from English (DEANE 2000 p viii)9

Lendo uma obra que natildeo pode oferecer certezas ou linearidades

estamos em uacuteltima instacircncia simplesmente nos entregando a ela sem indiacutecios

que possibilitem saber ou prever minimamente no que tudo aquilo vai dar O

leitor soacute pode continuar sua empreitada se estiver ciente dessa ausecircncia de

sentidos pontuais e de sequecircncias narrativas agraves quais normalmente buscaria se

prender Natildeo haacute uma sequecircncia de cenas causando a sensaccedilatildeo de suspense

ou de fluidez narrativa que nos faz virar as paacuteginas em prosa comum Ao inveacutes

disso o livro todo eacute espeacutecie de puro e constante suspense (uma descriccedilatildeo em

si impossiacutevel para o significado de ldquosuspenserdquo) como se o caminho de seu texto

9 ldquoJoyce se envolve e nos envolve em uma complexa seacuterie de traduccedilotildees que satildeo infinitas porque natildeo haacute liacutengua de origem e liacutengua-alvo () a liacutengua de origem eacute a liacutengua-alvo O livro eacute escrito em liacutengua inglesa e tambeacutem contra a liacutengua inglesa ele se converte em inglecircs e se perverte do inglecircsrdquo

21

virasse esquinas que os leitores nem mesmo tinham visto que existiam Cada

termo cada linha do Wake conteacutem diversas camadas semacircnticas que podem

ser absorvidas em diferentes niacuteveis e assim a leitura se realiza de uma forma

uacutenica de acordo com as referecircncias que o leitor captou Essa configuraccedilatildeo

textual potencializa mdash ou polemiza mdash as diferenccedilas que existiratildeo entre leituras

por pessoas diferentes ou entre as releituras de um mesmo indiviacuteduo

Por isso decidir ler Finnegans wake eacute decidir por lanccedilar-se ao texto Lecirc-

lo eacute uma experiecircncia fenomecircnica per se

Mesmo para alguns leitores que dedicaram parte de suas vidas a lecirc-lo e

relecirc-lo o texto natildeo se ausenta de dificuldades Uma das primeiras publicaccedilotildees

oferecendo uma leitura ampla e aprofundada da totalidade do Wake que se

propusesse a ter alguma didaacutetica em sua abordagem foi A Skeleton key to

Finnegans wake dos pioneiros Joseph Campbell e Henry Morton Robinson em

1944 O inglecircs Anthony Burgess lembrado por sua famigerada ficccedilatildeo distoacutepica

A Clockwork Orange (1962) e o acadecircmico americano William York Tindall

tambeacutem foram alguns dos primeiros a publicarem guias completos para a leitura

do Wake aleacutem de Robinson e Campbell Burgess publicou Here Comes

Everybody an introduction to James Joyce for the ordinary reader (1965) pela

proacutepria Faber and Faber A shorter Finnegans wake (1967) que traz o texto de

Joyce consideravelmente reduzido por Burgess e Joysprick na introduction to

the language of James Joyce (1973) Tindall publicou A readerrsquos guide to

Finnegans wake (1969) que sucedeu seu outro estudo didaacutetico de escopo mais

amplo A readerrsquos guide to James Joyce (1955)

William York Tindall tenta tornar o processo de leitura o mais didaacutetico e

facilitado possiacutevel indicando as referecircncias em cada capiacutetulo do Wake Ao final

de sua introduccedilatildeo em A readerrsquos guide to Finnegans wake Tindall afirma que

seu guia natildeo visa a uma apreensatildeo completa nem a ultimatos sobre a obra mas

sim a ser um suplemento de estudos preacutevios e acompanhar a leitura de uma

maneira relativamente independente isto eacute livremente ldquoAfter all what authority

on the Wake knows half of it Which half is the critical questionrdquo (TINDALL 1969

22

pp 25-26)10 Ironizar a possibilidade de que se saiba afirmar algo sobre

Finnegans wake talvez se aplique em verdade a qualquer texto literaacuterio mas

William York Tindall se resguarda claro especificamente em sua condiccedilatildeo de

joyciano e de redator de um guia para o Finnegans wake Diz ainda nessa

mesma introduccedilatildeo

Surely the Wake abounds in farcical materials () But farce is a category of drama and except from dream maybe the Wake evades categories Therersquos lsquolots of fun at Finneganrsquos wakersquo says the poet in his ballad of Tim Finnegan Taking my clue from this distrusting categories as I distrust earnestness I content myself with calling the Wake a very funny book (Ibid p 20)11

De fato o humor eacute uma das caracteriacutesticas sobressalentes em Finnegans

wake Os puns frequentemente carregam uma ironia inevitavelmente risiacutevel

Entre absurdos e alfinetadas a coletacircnea de trocadilhos ruma ao riso Uma das

comparaccedilotildees mais acertadas mdash ainda que comparaccedilotildees sejam sempre

perigosas mdash foi feita pelo escritor francecircs Valery Larbaud falando de Ulysses

ldquoeacute tatildeo grande e abrangente e humano quanto Rabelaisrdquo (ELLMANN 1989 p

617) Esse algo de rabelaisiano povoa ainda mais o sucedente Finnegans wake

que pretende tudo abarcar trabalha sobre o aparente exagero mdash que perde a

caracteriacutestica de excesso ao se fazer produtivo O exagero leva ao humor o

inacreditaacutevel e inverossiacutemil levam agrave quebra imediata e incontornaacutevel da

seriedade O que Wake tem de excessivo pode ser para nos fazer rir mais do

que para impressionar presunccedilosamente ou para meramente dificultar o texto ou

adornaacute-lo mais que isso o que o texto faz eacute lotar a si proacuteprio isto eacute se estufar

de conteuacutedo com um barroquismo que se autoironiza

10 ldquoAfinal de contas qual autoridade no Wake conhece sequer metade dele Qual metade eacute a questatildeo criacuteticardquo 11 ldquoCertamente o Wake se aproxima de materiais farsescos () Mas a farsa eacute uma categoria do drama e exceto por sonho talvez o Wake se esquiva de categorias Haacute lsquomuita diversatildeo no funeral do Finneganrsquo diz o poeta em sua balada sobre Tim Finnegan Tirando daiacute uma pista desconfiando de categorias como desconfio de seriedade eu me contento com chamar o Wake de um livro muito engraccediladordquo

23

Em artigo de 1955 ldquoA obra de arte abertardquo posteriormente publicado em

Teoria da poesia concreta (1965) Haroldo de Campos buscou compreender as

direccedilotildees para as quais apontavam as obras de arte modernas e para percorrer

esse caminho partiu de Finnegans wake e de obras de diversos autores mdash

Mallarmeacute Ezra Pound Cummings Pierre Boulez Deacutecio Pignatari e outros Em

Opera aperta (1962) Umberto Eco aborda o tema de maneira similar tambeacutem

fundamentou seu paradigma de obra de arte aberta a partir de Finnegans wake

e outras obras12 Havia uma seccedilatildeo toda dedicada a Joyce na primeira ediccedilatildeo

que depois passou a ser editada separadamente e consistia em uma

primeira tentativa pessoal de acompanhar o desenvolvimento de um artista no qual o projeto de uma obra aberta manifesta em transparecircncia ao niacutevel da pesquisa das estruturas operacionais toda uma aventura cultural a soluccedilatildeo de um problema ideoloacutegico a morte e o nascimento de dois universos morais e filosoacuteficos (ECO 1988 p 22)

Haroldo de Campos e Umberto Eco falando da ldquoobra de arte abertardquo natildeo

foram os uacutenicos a derivar do Finnegans wake de Joyce compreensotildees e

premissas de um grande paradigma teoacuterico Joseph Campbell (1904-1987)

teoacuterico estadunidense elaborou o ceacutelebre conceito de monomito segundo o qual

a jornada de um heroacutei eacute ciacuteclica e essa caracteriacutestica poderia ser notada em todas

as mitologias em diferentes graus tomando como exemplos mitos que

compotildeem a mitologia hindu egiacutepcia grega e cristatilde Joseph Campbell parte da

tese de que todos esses mitos satildeo variaccedilotildees de uma mesma narrativa una Um

dos padrotildees que Campbell estudou nessas variaccedilotildees foi a jornada do heroacutei

descrito em The hero of a thousand faces (1949) A primeira publicaccedilatildeo de

impacto de Joseph Campbell foi justamente jaacute citado estudo pioneiro entre as

12 Natildeo satildeo necessariamente abordagens idecircnticas apesar da grande coincidecircncia entre ambas inclusive terminoloacutegicas O proacuteprio Umberto Eco em introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo brasileira diz ldquoEacute mesmo curioso que alguns anos antes de eu escrever Obra Aberta Haroldo de Campos num pequeno artigo lhe antecipasse os temas de modo assombroso como se ele tivesse resenhado o livro que eu ainda natildeo tinha escrito e que iria escrever sem ter lido seu artigo Mas isso significa que certos problemas se manifestam de maneira imperiosa num dado momento histoacuterico deduzem-se quase que automaticamente do estado das pesquisas em cursordquo (ECO 1988 p 17)

24

publicaccedilotildees sobre o Wake A skeleton key to Finnegans wake (1944) escrito por

ele em parceria com Henry Morton Robinson e publicado pela editora Harcourt

entatildeo Harcourt Brace Foi certamente o primeiro estudo completo e que se

propunha a servir como guia de leitura mais de duas deacutecadas antes de Tindall

publicar o seu famoso A readerrsquos guide A obra de James Joyce gerou inspiraccedilatildeo

para Campbell ateacute mesmo na escolha do termo ldquoAnd his monomyth Ah hordquo

(FW 58124) As ideias desenvolvidas no conceito satildeo bastante caras ao

Finnegans wake muitas variaccedilotildees temaacuteticas reunidas formando uma unidade

um caleidoscoacutepio dos grandes mitos em que as narrativas histoacuterias se

entrelaccedilam ao inveacutes de somente se diferenciarem entre si Apagam-se as linhas

que delimitam a identidade cultural o idioma a liacutengua nacional ou regional o

momento histoacuterico ou qualquer porccedilatildeo isolada de tempo e espaccedilo tudo age em

prol da compreensatildeo do todo e do que nos une atraveacutes dos seacuteculos e das

fronteiras

No Brasil a recepccedilatildeo de Finnegans wake e sua influecircncia no trabalho de

grandes intelectuais tambeacutem natildeo tardou a se explicitar mdash e com grandes

leitoresleituras alguns fragmentos foram traduzidos por Augusto de Campos e

Haroldo de Campos em Panaroma do Finnegans wake (1962) Essa publicaccedilatildeo

foi de enorme importacircncia na difusatildeo do texto no Brasil em uma via de matildeo

dupla tanto Joyce influenciou intelectuais ligados agrave poesia concreta quanto os

irmatildeos Campos contribuiacuteram para difundir ainda mais a sua obra Felizmente

natildeo houve grande impacto negativo que afastasse leitores e parecesse invalidar

a qualidade do Wake ao contraacuterio a recepccedilatildeo foi natildeo soacute positiva como

especialmente produtiva em especial graccedilas agrave publicaccedilatildeo do Panaroma do

Finnegans wake que encorajou certa inspiraccedilatildeo e aproximaccedilatildeo da obra com o

que se fazia no Brasil em termos de poesia traduccedilatildeo e ateacute mesmo muacutesica13 jaacute

nos anos 1960

13 Eacute relativamente desconhecido o fato de que Peacutericles Cavalcanti musicou um trecho do Panaroma do Finnegans wake traduzido por Augusto de Campos ldquoNuvoletardquo mas essa bela versatildeo pode ser conhecida online numa performance com Regina Caseacute de 1983 no Sesc Pompeia para o programa Faacutebrica de Som

25

Haacute ainda poucas (ou talvez seja um nuacutemero surpreendentemente alto)

traduccedilotildees extensas de Finnegans wake publicadas mundo afora mdash francecircs

alematildeo mandarim polonecircs japonecircs (haacute duas) coreano italiano galego

contam-se nos dedos mdash e o portuguecircs haacute poucos anos foi incluiacutedo entre os

poucos idiomas que possuem traduccedilatildeo integral graccedilas a Donaldo Schuumller que

traduziu o texto do Wake para o portuguecircs brasileiro (se eacute que seria coerente

dizer dessa maneira enquadrando em um idioma) no decorrer de quatro anos

A traduccedilatildeo cujo primeiro volume data de 2001 foi publicada aos poucos e trouxe

consigo o tiacutetulo cunhado pelos irmatildeos Campos Finniacutecius reveacutem Com notas de

leitura a cada capiacutetulo que comentam aspectos gerais do texto Schuumller realizou

essa tarefa hercuacutelea com vasto meacuterito e deixou sua contribuiccedilatildeo criacutetica unida ao

seu trabalho de traduccedilatildeo

Houve em especial nos anos 2000 uma revisitaccedilatildeo de toda a tradiccedilatildeo

de Joyce e uma espeacutecie de nova recepccedilatildeo sua no Brasil com muitas traduccedilotildees

e trabalhos diversos sendo publicados Uma terceira via de traduccedilatildeo foi

executada com Ulysses (2012) por Caetano W Galindo que tambeacutem traduziu

Finnrsquos Hotel (2014) Este uacuteltimo se trata de textos que antecederam a finalizaccedilatildeo

do Work in progress que se tornaria o Finnegans wake Permaneceu em

suspenso se o Finnrsquos hotel de Joyce deveria ser um livro independente e ele

acabou por descartaacute-lo ou se eram rascunhos ensaios tentativas ou algo

semelhante do que planejava fazer em sua obra final jaacute que o livro abarca muitos

elementos do Wake Recentemente tambeacutem alguns dos escritos esparsos de

James Joyce foram editados em De santos e saacutebios escritos esteacuteticos e poliacuteticos

(2012) organizado a partir de The critical writings por Dirce Waltrick do Amarante

e Seacutergio Medeiros ambos fizeram tambeacutem a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo de Cartas

a Nora (2012) que possuem traduccedilatildeo portuguesa editada no mesmo ano feita

por Joseacute Miguel Silva ainda no mesmo ano foram publicadas tambeacutem as

Epifanias (2012) de Joyce traduzidas por Piero Eyben anteriores ainda satildeo o

livro-guia Para ler o Finnegans wake de James Joyce (2009) de Dirce Waltrick

do Amarante que traz tambeacutem uma traduccedilatildeo do fragmento Anna Livia

Plurabelle e O efeito da letra Lacan leitor de Joyce (2003) de Ram Mandil

26

Expusemos entatildeo de maneira breviacutessima a recepccedilatildeo de Finnegans

wake da maneira como se deu inicialmente em especial no seu impacto entre

as figuras centrais da vida de James Joyce como escritor mdash que contrasta como

pontuamos com a maneira como o Wake chegou ao Brasil se estabelecendo

natildeo muito tardiamente como referecircncia e influecircncia tanto para alguns de nossos

maiores intelectuais quanto para um puacuteblico geral e de diversas aacutereas A

intenccedilatildeo de uma maneira ou de outra natildeo eacute sublinhe-se a de reiterar as

dificuldades de acesso ao texto jaacute que muitas das objeccedilotildees citadas por

contemporacircneos de Joyce partem do argumento de uma suposta profunda e

contraproducente inteligibilidade bem como da noccedilatildeo de que sua obra final seria

um jogo louco ou inuacutetil de palavras e sons

Ao contraacuterio pode ser relevante conhecermos ao menos alguns dados

sobre a recepccedilatildeo turbulenta para sabermos enfrentar esses argumentos jaacute

velhos enferrujados que intentam justificar por que natildeo ler Finnegans wake e

ainda surgem com espantosa frequecircncia Como respondecirc-los hoje Ainda se

acredita que Finnegans wake eacute uma piada um sarro um jogo intelectual banal

e mais pretensioso do que primoroso Ainda eacute visto como um texto

impenetraacutevel Por quecirc Ateacute quando Quais as consequecircncias de uma obra

como essas ser considerada ldquoum livro que ningueacutem leulecircrdquo considerando ainda

os avisos ou receios dos que dizem que em geral lecirc-se cada vez menos

literatura Como Finnegans wake eacute considerado claacutessico (se o for) se eacute ilegiacutevel

e impenetraacutevel eou uma peccedila de chacota intelectual O que seria um claacutessico

e de que vale essa classificaccedilatildeo valorativa

Eacute claro que natildeo faria sentido negar as peculiaridades inerentes ao texto e

agrave sua construccedilatildeo e nem pretendemos fazecirc-lo pretendemos o exato oposto

desse reducionismo que eacute enxergaacute-las e enfrentaacute-las da maneira mais

destemida possiacutevel mdash destemida no sentido de natildeo criar diferenciaccedilotildees entre

literatura ldquofaacutecilrdquo e ldquodifiacutecilrdquo leia-se sem criar uma categoria especial para a leitura

do Finnegans wake Natildeo se trata de afirmarmos que seja um texto ldquofaacutecilrdquo nem

que seja um texto impenetraacutevel Ideal eacute que o encaremos como o que ele eacute mdash

um texto literaacuterio um texto escritural como quisermos chamaacute-lo eacute um texto

Demanda-nos a leitura De noacutes leitores quaisquer que sejamos Se olhamos

27

para o Wake e questionamos o que conteacutem jaacute somos grandes candidatos a

percorrer seus caminhos Natildeo satildeo muitos os dispostos Natildeo porque devam ser

selecionados mas porque os preconceitos talvez afastem os desinteressados

Ulysses jaacute carrega tambeacutem certo estigma mas parece figurar como uma obra

um tanto mais simpaacutetica ou atraente quiccedilaacute mais receptiva ainda que

considerada tambeacutem difiacutecil extensa complexa Ulysses tem trecircs traduccedilotildees

brasileiras14 de trecircs intelectuais de diferentes eacutepocas de meacuterito e de peso de

fundos distintos e consequentemente trabalhos tradutoacuterios tambeacutem (felizmente)

diferentes entre si o que tambeacutem colabora para multiplicar nossas possibilidades

de fontes e referecircncias durante a leitura Sua dificuldade parece ser menos alvo

de piadas do tipo ldquomas ningueacutem lecircrdquo ainda que curiosamente natildeo haja guias

elaborados e nem mesmo traduccedilotildees brasileiras de guias de leitura

especificamente voltados para Ulysses ainda enquanto jaacute temos Para ler o

Finnegans wake de James Joyce (2009)

Apontar problemas ou tecer criacuteticas diversas agrave construccedilatildeo textual de

Finnegans wake como foi mostrado natildeo foi exclusividade dos absolutamente

conservadores ao menos artisticamente falando Diante da radicalidade do texto

e da aparente incompreensibilidade era como se um estranhamento

imediatamente tomasse o possiacutevel leitor mesmo que este fosse algueacutem

relativamente (ou mesmo bastante) aberto Como vimos os exemplos satildeo

muitos de artistas como Ezra Pound (ldquoA receptividade de Pound agrave inovaccedilatildeo

tinha seus limites como Joyce agora sabiardquo ELLMANN 1989 p 722) de sua

parceira proacutexima Sylvia Beach ateacute mesmo de alguns parentes como sua

esposa Nora sempre fonte de apoio e companheirismo e seu irmatildeo que

tambeacutem era escritor Foram variadas as reaccedilotildees mas especialmente numerosas

as reaccedilotildees negativas chegando a atingir emocionalmente Joyce em alguns

momentos

14 A saber a de Antocircnio Houaiss (1966) a de Bernardina da Silveira Pinheiro (2005) e a mais recente de Caetano Galindo (2012) premiada pela Academia Brasileira de Letras e pela Associaccedilatildeo Paulista de Criacuteticos de Arte aleacutem de ter recebido o Precircmio Jabuti de melhor traduccedilatildeo do mesmo ano

28

A fama de Finnegans wake que se espalhou pelo mundo (e permanece

ateacute os dias de hoje contaminando a visatildeo que normalmente se tem do livro de

preconceitos uma vez que quase sempre precedem a sua leitura) de que eacute um

livro impenetraacutevel eou uma grande piada de James Joyce ou de que eacute nada

aleacutem de um livro propositalmente dificiacutelimo e insano natildeo acabaraacute de repente O

que preocupa eacute o ldquonada aleacutemrdquo Que se tome Wake como paradigma de livro

complexo eacute aceitaacutevel e ateacute pertinente que se deixe de lecirc-lo tendo em conta esse

tipo de estigma poreacutem passa a ser uma subestimaccedilatildeo e pode ser de alguma

maneira uma perda real Felizmente no Brasil como vimos existe cada vez

mais um nuacutemero de publicaccedilotildees sobre Joyce que vem crescendo e se ampliando

tanto quanto vem se aprofundando com diferentes leituras A recepccedilatildeo

atribulada de que fizemos um panorama no entanto desde as primeiras reaccedilotildees

agrave obra final de James Joyce mesmo entre aqueles que o admiravam e

acompanhavam seu trabalho aponta para algo que estaacute no cerne das

consideraccedilotildees desta pesquisa o que o Wake tem de tatildeo deslocado tatildeo

marginal sendo ao mesmo tempo tatildeo ceacutelebre O objetivo eacute fazer dessa

compreensatildeo algo produtivo

Pois bem se eacute um livro ilegiacutevel natildeo se poderia escrever um trabalho

acadecircmico sobre ele (ou em algumas visotildees do que eacute um trabalho sobre

literatura justamente por isso fazecirc-lo seria necessaacuterio e sugerido

ironicamente) A concepccedilatildeo de legiacutevel eacute a que deve ser posta em xeque aiacute em

primeiro lugar ou ao menos antes de se questionar se Finnegans wake o eacute ou

natildeo Isso se faz especialmente necessaacuterio se falamos de legiacutevel referindo-nos agrave

literatura como se houvesse um processo de alfabetizaccedilatildeo especiacutefico No

entanto mesmo que se pare de olhar para o Wake apenas observando esse seu

caraacuteter superficial arriscamo-nos a dizer que sua impenetrabilidade por si soacute

diz alguma coisa A maneira como se encara a conceituaccedilatildeo de obra literaacuteria mdash

desde a assunccedilatildeo dessa possibilidade ateacute o processo de efetivamente

conceituaacute-la mdash certamente tem implicaccedilotildees no processo de aceitaccedilatildeo ou de

recusa diante de uma obra especiacutefica bem como na accedilatildeo criacutetica de valorar e de

julgar

29

Ora se uma coisa natildeo se encaixa no que se espera dela algo natildeo estaacute

nas medidas esperadas ou a coisa ou o molde isto eacute a focircrma com suas

medidas limitadas e exigecircncias de enquadramento Se a obra eacute algo que se deva

encaixar em uma concepccedilatildeo de literatura que a antecede e normatiza as

produccedilotildees literaacuterias em uma hierarquia duvidosa que cria uma governanccedila de

cima para baixo do molde para a coisa eacute compreensiacutevel toda a resistecircncia que

foi criada frente ao Finnegans wake

O que essa maacute recepccedilatildeo que ecoa ateacute hoje em estigmas diversos

normalmente aponta portanto eacute que o problema ou o defeito estaacute na obra de

Joyce levando em conta esse procedimento normativo de interpretaccedilatildeo e de

julgamento e critica da literatura O que propomos eacute que o problema esteja

talvez no molde

CAPIacuteTULO I

WAKE EM PAUTA

31

1 Algo parecido com nada

A recepccedilatildeo negativa ou perplexa diante de Finnegans wake como vimos

foi ampla a ponto de certa maacute reputaccedilatildeo ultrapassar o teste do tempo permitindo

que sobrevivessem estigmas relacionados agrave obra ateacute os dias de hoje causando

ranccedilo mesmo entre literatos e afastando possiacuteveis leitores por entre as deacutecadas

Ulysses foi um (anti)romance aclamado ainda que tambeacutem tenha tido uma

recepccedilatildeo controversa e resultado poucos anos depois de sua publicaccedilatildeo em

uma seacuterie de processos contra Joyce e na proibiccedilatildeo de sua circulaccedilatildeo nos

Estados Unidos e no Reino Unido sob a acusaccedilatildeo (hoje risiacutevel) de conter

pornografia Tambeacutem significou uma reviravolta naquilo a partir de que se definia

mesmo um ldquoromancerdquo suscitando hesitaccedilatildeo impaciecircncia e reprovaccedilatildeo mas

acabou por selar a fama de Joyce em vida traduzida inclusive em alguma

seguranccedila financeira mesmo que temporaacuteria

32

No caso de Finnegans wake no entanto a sua fama paradoxalmente foi

o motivo de seu relativo ostracismo Quando jaacute estava viuacuteva Nora Barnacle que

natildeo se interessava tanto por literatura e natildeo se sentia exatamente atraiacuteda pela

convivecircncia com artistas tampouco por conversas literaacuterias aleacutem de

eventualmente deixar Joyce magoado por natildeo ler o que ele escrevia chegou a

perguntar a Maria Jolas ldquoPor que falam tanto no Ulysses O Finnegans wake eacute

o livro importante Quando eacute que vocecirc e Eugene vatildeo escrever sobre elerdquo

(ELLMANN 1989 p 912) Como eacute sabido ateacute mesmo contemporacircneos

entusiastas da obra joyciana que natildeo lhe poupavam elogios tiveram opiniotildees

controversas a respeito da obra de maacutexima radicalidade na qual Joyce teria

conseguido engendrar uma inovaccedilatildeo tanto formal quanto de conteuacutedo ainda

maiores do que em suas produccedilotildees anteriores

Seu irmatildeo mais novo Stanislaus Joyce (1884-1955) com quem mantinha

contato e se correspondia mesmo com as constantes mudanccedilas de residecircncia

entre paiacuteses escreveu-lhe em 1924 dizendo que havia lido ldquoseu romance ainda

sem nome na transatlantic reviewrdquo (Ibid p 712) Reitera que em geral gosta

muito do predecessor Ulysses ainda que natildeo tenha paciecircncia nem humor para

alguns trechos mas aponta que haacute uma ou outra parte ldquoinesperadamente ternardquo

e comovente Sobre o Finnegans wake no entanto a impressatildeo eacute outra e lhe

parece que muitos agora o elogiam por bajulaccedilatildeo deixando Joyce mimado

demais Cita um artigo de Ford Madox Ford cuja leitura foi indicada a ele pelo

irmatildeo em que Ford sugere que se encare o Work in progress ldquocomo um ritmo

nonsense e que o leitor deveria abandonar-se ao seu balanccedilordquo No entanto

Stanislaus natildeo parece se convencer ldquoTenho certeza embora o artigo pareccedila ter

a sua aprovaccedilatildeo de que ele fala sem saber o que dizrdquo (Ibid p 713) Por sua

vez afirma que natildeo entendeu muito do que leu tampouco se interessou

verdadeiramente Citando a publicaccedilatildeo de Herbert Gorman James Joyce The

first forty years (1924) que atribui a Joyce ldquoa uacuteltima palavra em literatura

modernardquo elucubra que isso talvez signifique algo mais literal e escatoloacutegico

para a literatura

33

Pode ser a uacuteltima palavra noutro sentido a insensata erracircncia da literatura antes de sua extinccedilatildeo final Natildeo que eu imagine que a literatura vaacute morrer algum dia enquanto os homens falarem e escreverem Mas podem cessar de ler ou pelo menos de ler tais coisas Eu de minha parte natildeo leria mais que um paraacutegrafo daquilo se natildeo conhecesse vocecirc () Por que vocecirc continua inteligiacutevel e sincero nos versos Se a literatura deve se desenvolver ao longo das linhas de sua obra mais recente ela certamente se tornaraacute como Shakespeare aludiu haacute seacuteculos passados algo parecido com nada (Ibid pp 712-713)

Aleacutem da jaacute exposta incompreensatildeo eou desinteresse que os excertos de

Finnegans wake causaram nos leitores mesmo naqueles que eram proacuteximos de

James Joyce e que jaacute nutriam admiraccedilatildeo por seu trabalho o que nos chama a

atenccedilatildeo eacute a reflexatildeo direta de Stanislaus mdash que era assim como o irmatildeo mais

velho um literato mantinha anotaccedilotildees sobre literatura e arte e escreveu trecircs

livros sobre Joyce Dublin e literatura dois deles publicados postumamente mdash

ao deparar-se com a existecircncia daquele texto sobre o proacuteprio destino da

literatura A maneira como ele enxerga a radicalidade de Finnegans wake lhe diz

que se ela passasse a ser constituiacuteda cada vez mais por obras como essa

poderia ter a sua existecircncia ameaccedilada ou ao menos os seus pilares fortemente

balanccedilados Levantando a hipoacutetese de que o nuacutemero de leitores diminuiria cada

vez mais atribui a culpa da ldquotendecircncia ao nadardquo ao proacuteprio texto afastando as

pessoas por sua aridez Natildeo se trata simplesmente de uma mudanccedila no

entendimento de gecircnero nem de inovaccedilotildees estruturais e formais (que

demonstrariam uma contribuiccedilatildeo ou uma destruiccedilatildeo parcial ainda dentro da

literatura) de alguma maneira Finnegans wake ou acabaria com a literatura ou

ficaria agrave margem dela

Joyce poreacutem tinha a consciecircncia de que seu projeto inevitavelmente

envolvia um caraacuteter em algum niacutevel obscuro ou embaccedilado certamente de difiacutecil

compreensatildeo imediata mas confiava com algum otimismo na possibilidade de

que os leitores atravessariam as dificuldades do texto e admirariam o que ele

sistematizou Dizia claramente que ldquoo mundo da noite natildeo pode ser representado

na linguagem diurnardquo e ldquoPara Claud Sykes insistiu ldquoEacute tudo tatildeo simples Se

algueacutem natildeo entende uma passagem tudo o que precisa eacute ler em voz altardquo (Ibid

p 729)

34

Natildeo parecia concordar portanto com a preocupaccedilatildeo que alguns lhe

expressavam a respeito do caraacuteter ou mais ou menos literaacuterio de sua obra Ao

contraacuterio parecia entender que sim era uma obra muitiacutessimo distinta mas que

trazia consigo algo de grandioso por si e em si natildeo necessariamente grandioso

pela razatildeo de quebrar paradigmas muito menos o iniacutecio de uma ldquonovardquo literatura

toda pautada em seu estilo Augusto de Campos em ldquoOutras palavras sobre

Finnegans wakerdquo aponta a reaccedilatildeo do escritor irlandecircs a essas provavelmente

inesperadas criacuteticas de seu digamos ex-admirador (termo um tanto forte poreacutem

relativamente fiel ao que aconteceu) Ezra Pound bem como sua defesa diante

das acusaccedilotildees de ininteligibilidade

Mas Joyce natildeo se deixou desencorajar pelas objeccedilotildees de Pound (ao qual replicou obliquamente com trocadilhos e alusotildees no proacuteprio Finnegans wake) ldquoEacute possiacutevel que Pound tenha razatildeordquo escreveu a Harriet Shaw Weaver em 1927 ldquomas eu natildeo posso voltar atraacutesrdquo Como esclarece Forrest Read o escritor se defendia das acusaccedilotildees de obscuridade que lhe faziam agrave eacutepoca argumentando ldquoUma grande parte da existecircncia dos seres humanos se passa em um estado que natildeo pode ser tornado sensiacutevel pelo uso da linguagem lsquode olhos abertosrdquo uma gramaacutetica preacute-fabricada um enredo linear (CAMPOS 2001 p 195)

Por mais complexo que seja o texto de Joyce e por mais controversa que

tenha sido a sua recepccedilatildeo o supracitado guia A skeleton key de Joseph

Campbell e Henry Morton Robinson foi publicado apenas cinco anos depois da

publicaccedilatildeo integral de Finnegans wake demonstrando leitura de consideraacutevel

aprofundamento vertical e a percepccedilatildeo de inuacutemeras referecircncias presentes na

obra em um periacuteodo relativamente curto de tempo Na introduccedilatildeo denominada

ldquoIntroduccedilatildeo a um assunto estranhordquo (que foi traduzida para o portuguecircs por

Augusto de Campos e publicada na ediccedilatildeo mais recente do Panaroma do

Finnegans wake de 2001) os autores de A skeleton key alertam o leitor ingecircnuo

ou temeroso a respeito do que se encontraraacute na obra magna de Joyce sem

negar a existecircncia de algumas dificuldades nesse percurso Apontam

explicitamente para o terreno aacuterido com que se defrontaraacute o leitor conseguem

fazecirc-lo poreacutem de forma que apesar da honestidade ao dizer e ao pesar os

35

obstaacuteculos prevaleccedila um tom positivo e mesmo uma espeacutecie de convite direto

a essa jornada literaacuteria incomparaacutevel sobre a qual escolheram desenvolver um

estudo de alguma maneira democratizador

O vasto desiacutegnio e a intrincada estrutura de Finnegans wake datildeo ao livro um aspecto proibitivo de impenetrabiidade Agrave primeira vista parecemo-nos defrontar com uma selva densa e enganosa iacutenvia e recoberta por luxuriantes perversidades de forma e linguagem () Empreita a imaginaccedilatildeo exige disciplina e tenacidade dos que querem segui-lo na aventura Contudo algumas das dificuldades desaparecem desde que um leitor bem disposto encontre alguns pontos cardeais e acerte o rumo Entatildeo o imenso mapa de Finnegans wake comeccedila lentamente a desdobrar-se emergem as figuras e os motivos os temas tornam-se reconheciacuteveis e o ouvido vai-se familiarizando cada vez mais com o vocabulaacuterio de Joyce Natildeo se espere alcanccedilar um entendimento completo num primeiro e aacutevido embate na verdade pode-se natildeo lograacute-lo nunca (CAMPBELL ROBINSON 2001 p 152)

Joyce ouviu mais de uma vez que sua obra final natildeo era ou natildeo fazia parte

da literatura Pelo menos duas dessas ocorrecircncias estatildeo documentadas em sua

biografia como duas ocasiotildees em que o parecer foi quase idecircntico A primeira

foi na leitura de um fragmento frente a um grupo pequeno de amigos em que

tendo sua opiniatildeo requisitada por Joyce a irlandesa Mary Colum respondeu

ldquoJoyce eu acho que isso estaacute fora da literaturardquo (ELLMANN 1989 p 782) Na

outra ocasiatildeo figura uma inglesa que nos permanece anocircnima Ela ouviu Joyce

lendo um trecho e supostamente disse apenas ldquoIsso natildeo eacute literaturardquo Segundo

registra o bioacutegrafo Richard Ellmann Joyce respondeu ldquoFoirdquo ldquoquerendo dizer que

fora enquanto ela escutavardquo (Ibid p 865)

O problema natildeo estaacute no texto de James Joyce mas no que se espera de

um texto literaacuterio Propor uma nova focircrma no entanto parece-nos inuacutetil porque

natildeo estamos pensando somente no que abarcaria Finnegans wake afinal que

formatos abarcam a literatura Se inventaacutessemos os moldes sob medida apoacutes

uma extensa pesquisa e numerosas releituras natildeo teriacuteamos nada aleacutem de um

molde natildeo para ldquoliteraturardquo mas para o Wake Quando nos propuseacutessemos a ler

qualquer outra obra literaacuteria eacute certo que nos deparariacuteamos com outras

36

dificuldades e entatildeo o molde jaacute estaria inutilizado novamente Tentaremos

entatildeo operar a leitura que natildeo busca generalidades ou padrotildees nem constroacutei

guias idealmente universais Eacute claro que produzindo uma dissertaccedilatildeo e

investigando a relaccedilatildeo entre o que a teoria espera do livro e o que o livro entrega

agrave teoria esse intercacircmbio seraacute em alguma medida necessaacuterio no entanto o

ponto central natildeo eacute ler o Wake a partir de alguma teoria ou a partir de algueacutem O

meacutetodo aqui parte do lanccedilar-se ao texto ler Finnegans wake Ponto Meacutetodo

antimetoacutedico

Conta-se que James Joyce disse ldquocom um sorriso cacircndidordquo para o poeta

e ativista americano Max Eastman (1883-1969) ldquoA exigecircncia que faccedilo para o

meu leitor eacute que ele devote sua vida inteira a ler meus livrosrdquo (ELLMANN 1989

p 865) Relevando-se o possiacutevel exagero da expressatildeo ldquodevote sua vida inteirardquo

ainda que se referisse certamente agrave crescente complexidade que suas obras

apresentavam Joyce gostava mais de saber que era lido do que de

necessariamente ser elogiado ainda que a incompreensatildeo o desanimasse (e

que ser lido por mais pessoas significasse um risco maior de ser

incompreendido) Outra frase ainda mais hiperboacutelica eacute a famosa definiccedilatildeo de

leitor ideal que seja aquele que ldquosofra de uma insocircnia idealrdquo (Id)

Um possiacutevel pedantismo por traacutes do tom jocoso eacute anulado por diversas

outras declaraccedilotildees como as que se referem a Finnegans wake como tatildeo

somente um livro divertido mdash o oposto do que a famosa declaraccedilatildeo de que foi

escrito ldquopara manter os criacuteticos ocupados por trezentos anosrdquo (Id) ldquoEu sou

apenas um palhaccedilo irlandecircs um grande piadista do universordquo disse certa vez

ao escritor francecircs Jacques Mercanton (1910-1996) e respondendo a uma

pergunta de Terence White Gervais (1913-1968) sobre o Wake ter niacuteveis de

significado disse ldquoNatildeo natildeo Eacute feito para fazer vocecirc rirrdquo (Id) Qualquer que seja

a funccedilatildeo proeminente no Wake seja a de divertir seja a de ocupar criacuteticos mdash ou

ambas mdash parece-nos absolutamente incogitaacutevel que qualquer autor que

trabalhe por anos a fio em uma obra prefira natildeo ser lido e eacute acima de tudo o

compromisso de lermos Finnegans wake aquilo com que nos comprometemos

aqui

37

O ponto central dessa tentativa se desenlaccedila em torno da questatildeo do

tempo tomando-o natildeo apenas como instacircncia literaacuteria mas tambeacutem filosoacutefica

perpassando discussotildees da metafiacutesica de diversas eacutepocas tambeacutem sem a

concentraccedilatildeo no conceito de tempo para algum filoacutesofo especiacutefico A escolha

desse tema se justifica facilmente para aqueles que sabem um pouco sobre

como Joyce concebeu sua uacuteltima obra sabendo da relevacircncia da filosofia do

italiano Giambattista Vico em sua construccedilatildeo com a ideia de temporalidade

constituiacuteda pela divisatildeo de trecircs Idades mais o ricorso bem como sobre a

problemaacutetica de se entender a cronologia da narrativa (ainda veremos se eacute

possiacutevel falar em ldquocronologiardquo e mesmo em ldquonarrativardquo) Ainda assim

pretendemos investigar para aleacutem do paradigma de Vico talvez vislumbrando o

que impede afinal que Finnegans wake seja encarado como qualquer outra

obra literaacuteria ou apenas como mais uma obra literaacuteria difiacutecil como outras

tambeacutem o satildeo Note-se aqui a diferenccedila entre um livro qualquer e um livro como

qualquer outro natildeo eacute que o desejado seja considerar Finnegans wake como um

livro qualquer eacute claro Mas que seja considerado pelo menos legiacutevel e divertido

como Joyce o considerou e tantos leitores tambeacutem o consideram ao inveacutes de se

perpetuar como um mito de livro que nunca eacute lido e pior como um livro

defeituoso jaacute que natildeo facilmente compreendido segundo os moldes da teoria

literaacuteria O que percebemos eacute que talvez ele seja considerado de difiacutecil

compreensatildeo especialmente nos casos em que o leitor o encara tendo uma seacuterie

de expectativas relacionadas a uma visatildeo tradicional de literatura assim como

acontece tambeacutem de uma outra maneira com Ulysses

Se confirmamos a hipoacutetese de que seja possiacutevel e ateacute mesmo desejaacutevel

uma ruptura dessas expectativas ou ao menos uma maior libertaccedilatildeo delas pode

ser que se torne finalmente possiacutevel que mais leitores ganhem um novo desafio

de leitura que poderatildeo constatar como efetivamente repleto de fruiccedilatildeo natildeo

apenas de operaccedilatildeo cognitiva casmurra e tediosa A isso se combina a ideia de

literatura concebida por Maurice Blanchot evocada em Escritura do retorno

Mallarmeacute Joyce e o meta-signo a respeito dela como experiecircncia-limite ldquoLer

no espaccedilo literaacuterio blanchotiano eacute compreender as variaccedilotildees de um devir mdash

sempre futuro do leitor mdash como uma vicissitude do tempo que eacute a proacutepria obrardquo

38

(EYBEN 2012 p 242) Nessa concepccedilatildeo a leitura eacute ldquouma escritura

interminaacutevel vertigem da noccedilatildeo de espaccedilordquo (Ibid p 243) A leitura com a qual

afirmamos assumir um compromisso eacute inscrita nesse entendimento escritural

em que ler natildeo eacute simplesmente decodificar evidentemente mas tambeacutem natildeo eacute

realizar uma hermenecircutica uma busca por verdade do texto e nem uma

facilitaccedilatildeo do desbravamento do texto joyciano que se apresenta de uma forma

especiacutefica a cada leitora mdash e inclusive a cada leitura no sentido de fazer-se

sempre novo

2 Sui generis

O questionamento sobre o gecircnero que muito recorrentemente se impotildee

constitui uma problemaacutetica jaacute levantada desde Ulysses e seu tal caraacuteter de

antirromance15 A dificuldade de inserir Finnegans wake em uma definiccedilatildeo desse

tipo eacute absolutamente clara e redundantemente lembrada O ponto mais perigoso

das investigaccedilotildees dessa natureza eacute o fato de que esse alhures inominado em

que se insere a obra final joyciana pode induzir o candidato a leitor agrave armadilha

de rejeitaacute-la ou diminui-la pelo que ela tem de avesso agraves possibilidades de

categorizaccedilatildeo mdash assumindo absurdamente a teoria como a entidade regente

superior agrave mateacuteria sobre a qual se teoriza Com esse entendimento natildeo raro

consideram-se as obras meros objetos que se natildeo se sujeitam a alguma focircrma

e nem satildeo capazes de gerar novas categorias devem por essa loacutegica ter algo

de mal estruturado ou tecircm melhor destino sendo ignoradas Isso

ocasionalmente se daacute entre teoacutericos da literatura de forma relativamente

anaacuteloga ao que acontece quando gramaacuteticos consideram o conjunto de regras

da gramaacutetica normativa de um idioma como aquilo que rege e direciona o que

deve ser levado em conta na liacutengua ignorando que esse conjunto de regras eacute

na verdade obviamente restrito e derivado em percurso convencional da mateacuteria

15 O termo que aqui usamos pela segunda vez (a primeira com o prefixo entre parecircnteses) parece ser posterior a Joyce Deriva de anti-roman (francecircs)anti-novel (inglecircs) De qualquer maneira soacute sintetiza o que jaacute se dizia sobre o romance ter acabado com Ulysses Joyce natildeo deve ter sido o primeiro autor a suscitar esse tipo de comentaacuterio o mesmo se disse de outras maneiras de Gustave Flaubert e Henry James

39

que o precede Sendo uma liacutengua algo mais amplo variado e mutaacutevel do que a

gramaacutetica normativa jamais conseguiraacute abarcar mesmo em seus mais

longamente descritivos iacutempetos eacute uma insanidade sobrepor a ela a

normatizaccedilatildeo assim como tambeacutem eacute insensato desconsiderar Finnegans wake

pelo que tem de inclassificaacutevel mdash ou dir-se-ia de indomaacutevel incompreensiacutevel

inacessiacutevel mdash algo que muito frequentemente se deu desde o iniacutecio da

publicaccedilatildeo de seus fragmentos como Work in progress

Enquanto Ulysses eacute o livro do dia Finnegans wake eacute o livro da noite com

sua linguagem oniacuterica permeada de ambiguidades e incertezas e seus

caminhos tortuosos Como Joyce dizia ldquoEacute natural que as coisas natildeo sejam tatildeo

claras agrave noite natildeo eacuterdquo (CAMPOS 2001 p 196) Como uma consequecircncia

inevitaacutevel classificar o Wake em um gecircnero literaacuterio mostra-se um desafio mdash ou

talvez um esforccedilo dispensaacutevel que nada acrescentaria agrave compreensatildeo da obra

Haroldo de Campos lanccedila possibilidades criativas de referecircncia classificatoacuteria

com os termos ldquoprosapoesiardquo (CAMPOS 2001 p 29) e ldquoromance-riordquo (Id p 27)

tambeacutem usado por Donaldo Schuumller ldquoPor flores e por floras por faunos e por

faunas por vidas e por vias flui Finnegans wake o romance e o rio o romance-

riordquo (SCHUumlLER 2004 p 15) (Eacute curioso notar uma outra possibilidade de grafia

para esse uacuteltimo termo inventado considerando que a opccedilatildeo pela duplicaccedilatildeo da

letra ldquorrdquo poderia remeter mais imediatamente agrave bela palavra que abre o fragmento

nuacutemero 1 de Finnegans wake optando por como Joyce fazia quase sempre

dispensar o uso de hifens mdash riverrun ou riocorrente na traduccedilatildeo feita por

Augusto de Campos e rolarriuanna na de Schuumller)

Respostas a essa problemaacutetica satildeo dadas no proacuteprio texto de James

Joyce mdash e devem ser entendidas sempre nesse mesmo lugar Uma possiacutevel

afirmaccedilatildeo concisa a respeito de tantos questionamentos entre eles o de gecircnero

o de literatura e o de cacircnone estaacute em uma frase relativamente curta ldquothis is nat

language at any sinse of the worldrdquo (FW 8312)16 Joyce condensou aiacute tanto a

afirmaccedilatildeo de que ldquoistordquo natildeo eacute linguagem em nenhum sentido do termo quanto a

de que natildeo eacute linguagem em parte nenhuma do mundo e ainda de que eacute

16 ldquoIsso eacute linguagem-noite em qualquer sentido do univerbordquo

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linguagem noturna com ldquonatrdquo lembrando ldquonoiterdquo night (inglecircs) nacht (alematildeo)

ldquoworldrdquo entre palavra e mundo foi genialmente traduzido por Donaldo Schuumller

como ldquouniverbordquo Confirma-se assim tanto o estatuto noturno que acompanha

uma incerteza da escuridatildeo mdash vemos significantes como vemos silhuetas e

sombras que nos situam gerando incerteza mdash quanto a temporalidade da noite

que se resvala em madrugada indefinida que eacute a vastidatildeo do breu em que tanto

espaccedilo quanto tempo satildeo dotados dessa qualidade vasta e ao mesmo tempo

fosca confirma-se ainda a linguagem que natildeo eacute a linguagem que se espera em

nenhum sentido do univerbo o proacuteprio livro se afirma como uma suposta natildeo-

linguagem que eacute simplesmente uma linguagem de caraacuteter proacuteprio afirmado

como algo noturno que se contamina e se faz pelas possibilidades de labirintos

oniacutericos

De forma geral esse desprezo do cacircnone ou espeacutecie de pouco caso com

Finnegans wake eacute carregado de conclusotildees precipitadas e diga-se desistecircncias

raacutepidas Os leitores minguam como se o texto natildeo merecesse atenccedilatildeo natildeo

merecesse leitura Hipoacuteteses de que seja uma grande piada ainda se mantecircm

Como afirmaram em 1944 os pioneiros Joseph Campbell e Henry Morton

Robinson quando Finnegans wake foi publicado integralmente isto eacute cinco

anos antes

lsquoWhat does it all meanrsquo rsquoWhy should we bother about a book so hard to readrsquo were questions quite generally asked Even normally responsive readers dismissed the book as a perverse triumph of the unintelligible17 (CAMPBELL ROBINSON 2005 p xxi)

No entanto ainda que somente mais de vinte anos depois o estudioso norte-

americano tambeacutem pioneiro na incursatildeo profunda ao Finnegans wake William

York Tindall afirma ldquoEverything in the Wake has meaning definite limited by a

frame or immediate context and discoverable Our danger (hellip) Is too much

17 ldquolsquoO que isso tudo significarsquo lsquoPor que deveriacuteamos nos ocupar com um livro tatildeo difiacutecil de ser lidorsquo eram perguntas feitas frequentemente Ateacute mesmo os leitores normalmente interessados desprezaram o livro como um triunfo perverso do ininteligiacutevelrdquo (CAMPBELL ROBINSON 2005 p xxi)

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ingenuityrdquo18 (TINDALL 1969 p 22) James Joyce engendra uma obra calcada

em racionalidade e enquadramento meticuloso de cada detalhe em uma

estrutura com criatividade ininterrupta e esse controle eacute visiacutevel ainda que resulte

em uma obra inclassificaacutevel e ainda que o resultado gere comentaacuterios que a

relacionem ao completo caos e a uma ideia de puro nonsense O que Tindall

aponta como o risco maior natildeo eacute note-se que o leitor talvez natildeo entenda o livro

ou natildeo veja alguma referecircncia mas sim que seja ingecircnuo diante da existecircncia

de possibilidades no texto e o tome por puro fingimento de quebra-cabeccedila

As dificuldades satildeo evidentes o susto ou a antipatia causada pelo Wake

ultrapassou o passar dos anos Mesmo os leitores mais proacuteximos de entendecirc-lo

tiveram suas dificuldades resistecircncias e uma infinidade de criacuteticas diante dele

Como ler entatildeo hoje uma obra como Finnegans wake Estaacute aiacute para ser lida ou

para ser rejeitada tida como uma piada para manter criacuteticos ocupados ou como

exemplo do funcionamento da linguagem em uma mente esquizoide Exige-nos

uma postura diferenciada Estaacute dentro ou fora da literatura mdash ou eacute na verdade

sua ameaccedila

Haacute talvez um grande conjunto de duas maneiras grosso modo de se

encarar o texto literaacuterio ou uma obra de arte qualquer primeiro sentindo que

conseguimos extrair uma finalizaccedilatildeo de nossa leitura ou ao contraacuterio na

segunda maneira sentimo-nos grave e verdadeiramente impotentes ao sequer

cogitar essa possibilidade De forma geral haveria assim uma bifurcaccedilatildeo de

duas distintas e abrangentes escolas ou caminhos sendo aquela que daacute uma

interpretaccedilatildeo fixa considerada correta ou superior a vertente mais obsoleta Os

perigos da segunda no entanto satildeo tambeacutem apontados com frequecircncia natildeo se

pode dizer tudo e qualquer coisa dizem O receio de uma espeacutecie de perigosa

autotelia que desestabiliza o mais tradicional corpus hermenecircutico se instala

entre as duas extremidades bifurcadas pontas de diferentes abordagens que

natildeo somente lidam com o texto de maneiras antagocircnicas mas ainda e por isso

mesmo partem de noccedilotildees igualmente opostas da proacutepria ontologia de uma obra

18 Traduccedilatildeo livre do trecho de Tindall ldquoTudo no Wake tem um significado definido limitado por uma moldura ou contexto imediato e passiacutevel de ser descoberto Nosso risco eacute o excesso de ingenuidaderdquo

42

de arte Sendo a primeira vertente bastante autoexplicativa esgotando-se

facilmente qualquer tentativa de discorrer sobre ela poderiacuteamos abordar direto

o problema indicado na segunda de que tudo poderia ser dito na abertura

absoluta e desgovernada que descentraliza as interpretaccedilotildees da obra em uma

descentralizaccedilatildeo e horizontalidade total (e vejamos se eacute isso mesmo o que

ocorre) considerando no caso o texto literaacuterio e especificamente o Wake

aquele que poderia ser acusado de ser um dos textos mais anaacuterquicos e

ameaccediladores do seacuteculo XX

Em primeiro lugar dir-se-ia que o texto natildeo se termina

O texto que natildeo se termina significa tanto um texto que natildeo acaba quanto

um texto que noacutes natildeo terminamos de ler e ainda um texto que natildeo finalizamos

sendo impossiacutevel dar-lhe qualquer ultimato interpretativo Isso natildeo se reduz a

um caraacuteter interminaacutevel condicionado pela leitura uacutenica que cada leitor com seu

aparato psicoloacutegico e experiecircncia que lhe satildeo inerentes executa ao se deparar

com o texto Tampouco diz respeito somente a uma seacuterie de releituras feitas em

diferentes momentos histoacutericos de modo que Machado de Assis tenha sido

reinterpretado com o passar do tempo etc A infinitude de que se trata aqui natildeo

se refere a esse tipo de desdobramento ainda que natildeo os anule nem os negue

como processos naturais da presenccedila do texto em diferentes eacutepocas e sob

diferentes olhos

Se natildeo eacute entatildeo um desses fatores externos o que insere o texto no tempo

da infinitude poderiacuteamos inferir que seja assim alguma caracteriacutestica interna

No entanto faltam-nos dados mdash ou pior evidecircncias mdash de que seja possiacutevel a

separaccedilatildeo como se faria digamos entre textos primaacuterios e secundaacuterios ou

qualquer procedimento semelhante Soacute que isso potencialmente nos colocaria

sob o constrangimento de admitir que natildeo haacute obras de arte pois elas estariam

por toda a parte potencialmente tudo conteria a infinitude Tudo seria arte como

lidar com essa possibilidade que parece destruir as fronteiras de definiccedilatildeo entre

aquilo que eacute e o que natildeo eacute um objeto de apreciaccedilatildeo ou de estudo

43

Desfaccedilamos alguns passos Se natildeo considerarmos o texto em sua

projeccedilatildeo ao infinito isto eacute se admitirmos entatildeo que ele desemboca em uma

interpretaccedilatildeo e assim deteacutem atinente uma exegese fechada somos obrigados

a exploraacute-lo em busca de sua verdade Cada leitura investigativa seria como um

caminho para fora da caverna platocircnica estariacuteamos cada vez mais proacuteximos das

ideias Da mesma maneira que o caminho de acesso agrave episteacuteme natildeo rejeita o

mundo do familiar e da doacutexa mas em verdade confronta-se com as sombras

para nelas alcanccedilar a luz o contato com o texto de uma maneira insistente e

atenta desvelaria eventualmente sua verdade a despeito de qualquer aparato

teoacuterico-criacutetico com que qualquer leitor pudesse contar nessa varredura Nesse

sentido uma experiecircncia com o texto seria suficiente

Sabemos no entanto que interpretaccedilotildees unas natildeo nascem assim De

forma geral vecircm de fora para dentro de cima para baixo de maneira imposta e

consagrada por convenccedilotildees ou argumentos de autoridade A experiecircncia com o

texto traz agrave tona em geral alguns poucos consensos uma dose de subjetividade

e havendo consonacircncia teoacuterico-critica eventuais conclusotildees convergentes

quanto aos aspectos mais superficiais do texto em especial aqueles

relacionados agraves categorias mais estanques da forma Ainda assim nem sempre

haacute consenso mesmo nesse campo Gecircneros textuais podem parecer categorias

fortemente imisciacuteveis mas frequentemente natildeo satildeo facilmente definidas

Finnegans wake eacute justamente uma obra cujo gecircnero jamais foi definido mdash

ou (in)definido como sui generis mdash que sequer traz consigo roacutetulo evidente de

prosa ou de poesia Augusto de Campos expressa esse dilema de maneira

sinteacutetica com os neologismos ldquoprosoemardquo ldquoromance-riordquo ldquoromancepoemardquo

Esse noacute se alastra considerando que Wake natildeo se encaixa em um gecircnero uma

seacuterie de assunccedilotildees a seu respeito natildeo pode ser feita tatildeo facilmente e

possivelmente caem por terra A fuga de um conceito fechado assim em efeito

dominoacute acaba por impossibilitar uma seacuterie de inferecircncias que dele naturalmente

decorreriam assim como o contraacuterio tambeacutem se daacute com a fixaccedilatildeo de uma

categoria que consequentemente baliza tantas outras de imediato seja a

respeito da extensatildeo da forma da qualidade das potencialidades sonoras e

semacircnticas etc Se um texto eacute composto de versos eacute certamente um poema

44

tem estrofes possivelmente um esquema de rimas controlado se for um soneto

temos ainda mais inferecircncias prontas para serem testadas inclusive a respeito

do conteuacutedo se eacute conto eacute menor do que se for romance e assim por diante

Um texto inclassificaacutevel se apresenta dessa maneira jaacute de partida como

um problema em si uma fonte de inquietaccedilatildeo interminaacutevel ou que natildeo cessa

tatildeo rapidamente Mateacuteria para manter criacuteticos ocupados por anos como

profetizou o proacuteprio Joyce Corre o risco certamente de ser condenado para

fora da literatura mdash por natildeo caber nela natildeo ser contemplado em suas barreiras

Se o esquema existente natildeo o conteacutem comumente se supotildee a existecircncia de

defeito no texto natildeo uma possiacutevel limitaccedilatildeo das categorias que se consolidaram

para sua interpretaccedilatildeo O conservadorismo expulsa o que ameaccedila a tradiccedilatildeo por

preferir deixar de lado uma obra a implodir um sistema que abarca tantas outras

com seguranccedila e conforto Eacute instaurada uma problemaacutetica mesmo a partir do

ponto de confronto que eacute uma leitura na medida em que o leitor se espanta

diante do texto literaacuterio como discorre Piero Eyben em Escritura do retorno

Antes o texto joyceano torna-se pela falta repulsivo em sua intransitividade Natildeo haacute leitor que se veja nele identificado como completude Sua estrutura inacabada faz da verdade identitaacuteria uma falaacutecia De modo que o desvio o reveacutes de sua leitura nos leva a uma significacircncia zeroloacutegica na qual todo sujeito se anula e torna-se apenas membro da obra que este interpreta como significantes () A linguagem do inacabamento seria uma linguagem da falta pois coloca no caput o sem-cabeccedila (EYBEN 2012 p 610)

Rejeita-se o texto por saber que lhe impor uma interpretaccedilatildeo qualquer

seria gritantemente descabido Uma leitura de Finnegans wake que busque e

defina sua trama por exemplo encaixando no tempo no espaccedilo nos

personagens (protagonistas antagonistas) nos narradores e em todas as

categorias da narrativa uma seacuterie de respostas imutaacuteveis necessariamente

berraria sua artificialidade Para que se leia o texto como eacute sem distorcecirc-lo com

planificaccedilotildees simplificaccedilotildees e cerceamentos deve-se despi-lo das forccedilas que o

comprimem Somente assim se pode ler o texto como ele se apresenta

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respeitando sua integridade Deve-se entatildeo ir agrave leitura esperando nada menos

que o infinito

Lembramos aqui o que diz Jacques Derrida em ldquoDuas palavras por Joycerdquo

Eacute com este sentimento poderia dizer com este ressentimento que devo estar lendo Joyce haacute muito tempo () Mas natildeo sei se podemos dizer ldquoeu leio Joycerdquo como acabei de fazer Naturalmente soacute podemos ler Joyce quer saibamos disto ou natildeo Eacute a sua forccedila Mas os enunciados do tipo ldquoleio Joycerdquo ldquoleiam Joycerdquo ldquovocecirc jaacute leu Joycerdquo sempre me pareceram cocircmicos irresistivelmente (DERRIDA 1992 p 21)

Nessa mesma palestra de 1982 Derrida tambeacutem faz uma ldquosimplificaccedilatildeo

descabidardquo em duas grandezas Refere-se agraves maneiras de o autor deixar-se nos

arquivos de sua obra apagando-se quanto mais ela se faccedila presente Apesar de

ter sido proposto aqui o exame da outra ponta dessa relaccedilatildeo mdash a do leitor mdash a

primeira atitude de autor descrita por Derrida pode ser vista como anaacuteloga agrave

maneira de leitura que expusemos ligada a certezas e fincada em uma ideia de

verdade textual consiste naquele que ldquoescreve para darrdquo de maneira que a obra

se decirc a ponto de poder ser valorada ldquogostaacutevelrdquo ldquoamaacutevelrdquo (Ibid pp 19-20) e

diriacuteamos ainda acessiacutevel e possiacutevel A segunda atitude que Jacques Derrida

considera semelhante agrave de Joyce eacute a de hipermneacutesia em vez de acessarmos

uma materialidade pura de texto no esquecimento do autor vivemos em funccedilatildeo

de sua memoacuteria em meio a sua presenccedila

Se o texto se nos apresenta dessa maneira precisamos estar dispostos

a entender que ele nos escapa Fugidio se transforma em espectro Sair da

caverna natildeo eacute ir aleacutem dela nem deixaacute-la para traacutes no percurso o caminho

platocircnico eacute um modo de estar que adentra mais como o movimento que

pretende mergulhar no texto literaacuterio natildeo se trata de ultrapassaacute-lo mas de estar

cada vez mais inteiramente nele Nesse sentido confessa-nos Derrida ldquoSim a

cada vez que escrevo e mesmo nas coisas da academia um fantasma de Joyce

estaacute presente em minha abordagemrdquo (Ibid p 23) O entendimento de Jacques

Derrida de um caraacuteter espectral que ronde o texto atraveacutes da escritura eacute profiacutecuo

46

em uma seacuterie de anaacutelises aqui podemos ensaiar aproximaacute-lo de uma ideia de

temporalidade que pode ser retirada do proacuteprio Finnegans wake

3 Fluidez vida-morte

A mitologia egiacutepcia estaacute presente em quase todos os capiacutetulos de

Finnegans wake agraves vezes escondida entre nomes que assinalam muacuteltiplas

assinaturas mdash desfazendo portanto a proacutepria ideia de nome mdash- e engendrando

numerosas rasgaduras temporais No capiacutetulo 4 do livro I o ldquolivro dos paisrdquo

denominado por Campbell e Robinson ldquoHis demise and resurrectionrdquo o

desmantelamento dos nomes eacute especialmente profiacutecuo Em meio a isso

segundo Donaldo Schuumller ldquoO tempo cronoloacutegico se anula em favor de um tempo

natildeo medido por aparelhos tempo feito soacute de fluxos () Em julgamento estaacute

nossa cultura nossas certezas nosso vocabulaacuterio nossa maneira de dizer e de

narrarrdquo (2003 p 169) HCE eacute preso e logo o rio Nilo eacute evocado aproximando-o

de Osiacuteris logo torna-se personagem morto ldquoonce and for all out of plotty

existencerdquo (FW 7618) fora da ldquoexistecircncia narradardquo como aponta Schuumller

Podemos apontar aiacute uma espeacutecie de resumo de toda a literariedade de

Finnegans wake HCE eacute capturado e morre de certa forma para sempre se

morrer significa estar fora de uma certa narrativa natildeo estaraacute ausente poreacutem

por toda a eternidade O lugar onde jaz eacute construiacutedo por um arquiteto com nome

de cemiteacuterio parisiense Peurelachasse (Pegravere Lachaise) que condensa la peur

(medo em francecircs) e la chasse (a caccedila) pois natildeo eacute um natildeo-lugar dos mortos

ao contraacuterio a morte aqui eacute acontecimento que desemboca em diluacutevio que

retoma a forccedila vital O que seria um par de oposiccedilatildeo se (con)funde e tem sua

ambivalecircncia transformada (ou transtornada) vida e morte dia e noite paimatildee

e filho(a)(s) os irmatildeos Shem e Shaun (ao contraacuterio de oposiccedilotildees riacutegidas como

Caim e Abel Rocircmulo e Remo)

Como dissemos o capiacutetulo eacute rico em temporalidade despedaccedilada o

tempo eacute indicado de maneira antirrepresentativa sem que se possa calcular ou

mapear um momento a partir de suas referecircncias ldquoBest This wastohavebeen

47

underground heavenrdquo (FW 7633)19 Diferentes tempos verbais intercalados natildeo

somente plantam uma duacutevida mas efetivamente explicitam a impossibilidade de

definiccedilatildeo a fluidez entre os periacuteodos A morte mdash especialmente aquela que seraacute

seguida de ressureiccedilatildeo mdash perambula por presente passado e futuro ldquoBut abide

Zeitrsquos sumonserving rise afterfallrdquo (FW 787)20 Nesse excerto o tempo parece

ser espeacutecie de entidade burocraacutetica que controla o universo de Finnegans wake

garantindo que um ciclo seja cumprido A morte de Humphrey Chimpden

Earwicker bem como todos os seus corolaacuterios natildeo satildeo controlaacuteveis por seres

que controlem seu tempo e a sucessatildeo de acontecimentos de suas vidas o ciclo

mdash como nas disposiccedilotildees de Giambattista Vico mdash eacute inelutaacutevel e forccedila sua

continuidade a despeito das vontades Elucubraccedilotildees natildeo mudam as

necessidades do Zeit A fluidez eacute como a correnteza do rio que natildeo escolhe seu

direcionamento

Se frente ao texto um periacuteodo sequer puder ser lido de apenas duas

maneiras diferentes jaacute teriacuteamos aiacute dois textos inteiros tambeacutem completamente

distintos A semacircntica natildeo pode se encerrar a cada frase nem a cada termo

nem a cada trecho ou capiacutetulo ou seja o que for lemos o todo considerando que

todos os trechos estejam incessantemente interligados e interdependentes de

maneira que a totalidade do texto seja um organismo indissoluacutevel Quais as

chances assim de que um texto qualquer seja absolutamente riacutegido com

significados puramente literais que alcanccedilam seus alvos pontualmente sem

nenhuma borda nem fenda de significaccedilatildeo seja ele concebido como texto

literaacuterio desde o berccedilo ou natildeo

Em vez de concluir que haacute certos textos que rebeldes fogem das reacutedeas

do sistema literaacuterio e suas classificaccedilotildees determinantes tendemos muito mais a

enxergar que todo texto tem uma faiacutesca disseminativa dentro de si que

frequentemente eacute ignorada em leituras que o planificam em uma sequecircncia

palpaacutevel para as classificaccedilotildees agraves quais estamos acostumados que nos

aparecem como urgecircncias quando na verdade a urgecircncia eacute o proacuteprio texto Ele

demanda nossa leitura urge que nos deparemos com os textos como satildeo e que

19 ldquoBem Este subterracircneo foi-para-haver-de-ser-ceacuteu ()rdquo 20 ldquoMas aguardemos o requerimento do tempo despertar apoacutes-quedardquo

48

rejeitemos distorccedilotildees que parecem visotildees transluacutecidas e por isso nos mantecircm

confortaacuteveis O que o texto faz eacute nos tirar do conforto de nossa liacutengua e nos

lanccedilar a uma outra proacutepria dele mesmo se nos lanccedilamos agrave leitura sem buscar

categorias estanques podemos finalmente conseguir sair do que julgamos

concreto em direccedilatildeo ao que nos vem de espectral prismaacutetico ndash aquilo que natildeo

pode existir num tempo que natildeo seja o do porvir Qualquer presentificaccedilatildeo

estanque negaria essa situaccedilatildeo de promessa do futuro promessa que

permanece messianismo sem previsatildeo pois caso se concretize o porvir se

desmantela no cumprimento da promessa que eacute seu desaparecimento

Apaga-se por inteiro o suposto perigo de que no infinito qualquer coisa

que nada tem a ver com o texto possa ser dita ou acusaccedilatildeo da leviandade de

que assim tudo seja arte indiscriminadamente receios fraacutegeis e superficiais que

nos limitam a concepccedilotildees especiacuteficas de arte e nos afastam normativamente de

leituras que sejam um modo de estar no texto mdash e portanto efetivamente o

contraacuterio de sair dele ou de excedecirc-lo O problema na verdade reside em

subestimar as possibilidades de um texto muito mais do que em superestimar

qualquer rastro ou sombra do espectro escritural esvaindo-se aiacute a proacutepria

essecircncia do texto em troca de uma carapuccedila que o defina

Um porvir desfigurado e desfigurante faz do texto uma mateacuteria de

instabilidade nas matildeos do leitor O caraacuteter fantasmagoacuterico latente povoa a escrita

de escritura O caraacuteter espaccedilo-temporal do Wake nos leva para o caminho do

intertexto do subtexto de tudo que estaacute contido e condensado no uacutenico texto

que chamamos de Finnegans wake O que desmantela as certezas estaacute

anunciado desde o tiacutetulo haacute um veloacuterio um luto e um tempo da eternidade da

morte mas haacute o movimento de despertar acordar o reiniacutecio o ciclo se faz

novamente no sim que responde pela continuaccedilatildeo eterna natildeo pela finalizaccedilatildeo

Desde o tiacutetulo portanto temos a postura de leitura definida ler e reler Finnegans

wake sem cronograma sob o espectro de Joyce e da babelizaccedilatildeo das liacutenguas

sem delimitaccedilatildeo espaccedilo-temporal

O espectro tem relaccedilatildeo ainda com o que natildeo se materializa e por isso

natildeo pode ser visto com clareza Entre tantos temas e motivos recorrentes

49

recirculando por todo o Finnegans wake a visatildeo eacute um dos sentidos amplamente

explorados como tema e fonte de trocadilhos A elaboraccedilatildeo altamente

perfeccionista do aspecto foneacutetico de Wake eacute atribuiacuteda tambeacutem agrave apuraccedilatildeo da

audiccedilatildeo inevitaacutevel consequecircncia da cegueira causada pelo glaucoma e nos faz

recordar a recomendaccedilatildeo de Joyce de que se lessem os fragmentos em voz

alta para uma experiecircncia outra de leitura (ou para a experiecircncia) A gravaccedilatildeo

da reacutecita feita pelo proacuteprio autor do episoacutedio ldquoAnna Livia Plurabellerdquo ou ldquoALPrdquo

como ele chamava eacute uma reliacutequia de grandioso valor para estudiosos de sua

exiacutemia obra Em texto composto por tantos neologismos e em meio agrave

simultaneidade de idiomas de diversos troncos linguiacutesticos haacute diversos

caminhos e muacuteltiplas escolhas para a entonaccedilatildeo o ritmo e a pronuacutencia do texto

de Finnegans wake e essas satildeo decisotildees que devem ser feitas pelo leitor capaz

de vislumbrar a polissemia de cada sintagma por meio da leitura em voz alta

A necessidade de envolvimento do leitor ouvinte instrumentista ou

espectador na arte caracterizada como moderna eacute sempre decorrente de uma

autonomia que lhe eacute conferida propositalmente ou natildeo em certa medida frente

agrave obra que se mostra maleaacutevel e porosa a esse envolvimento O fato de que

Finnegans wake eacute uma obra que deliberadamente proporciona autonomia ao

leitor transparece em sua estrutura inclusive se considerarmos a decisatildeo

primeira de por onde comeccedilar pois o livro pode ser acessado a partir de qualquer

um de seus fragmentos a despeito da numeraccedilatildeo neles embutida Esta facilita

certamente a citaccedilatildeo o compartilhamento etc mas a ordem de leitura eacute lanccedilada

ao leitor mdash um engendramento crsquoest agrave vous de sobreposiccedilatildeo de estados natildeo

comunicaacuteveis de simultaneidade de possibilidades no engendrar de um

multiverso em detrimento de um universo

Em Obra aberta o teoacuterico italiano Umberto Eco estabelece fronteiras

fundamentais entre obras tradicionais e obras modernas referindo-se

propriamente a suas formas e concepccedilotildees fugindo de definiccedilotildees de cunho

meramente histoacuterico-diacrocircnico O ponto de partida basilar para essa divisatildeo eacute

o fator da ambiguidade como ausente no caso das obras claacutessicas ou moldadas

tradicionalmente ou presente no caso das obras de arte modernas Citando

Finnegans wake obra uacuteltima de James Joyce como paradigma de obra moderna

50

caracterizada como aberta segundo seus preceitos isso fica mais claro se for

colocada a seguinte pergunta relativamente simples de que trata o referido livro

ou dir-se-ia ldquosobre o querdquo eacute Finnegans wake

No caso de obras jaacute haacute muito tempo consideradas claacutessicas a resposta

pontual a essa pergunta eacute possiacutevel ao menos segundo Umberto Eco sem

acarretar muitos questionamentos estruturais No caso de uma opera aperta

como Finnegans wake no entanto a resposta pontual eacute impossiacutevel mdash ou melhor

eacute possiacutevel poreacutem sempre parcial e funcionando como gatilho para outros pontos-

problema que devem ser alinhados com a resposta escolhida Podemos ensaiar

possibilidades sobre o Wake afirmando por exemplo que o livro trata de luto ou

que eacute sobre julgamento ou sobre uma famiacutelia dublinense ou a respeito de sonho

e inconsciente ou que eacute um sonho do protagonista haacute diversas respostas e

nenhuma parece vir como satisfatoacuteria Cada uma delas deve implicar uma seacuterie

de definiccedilotildees estruturais mdash se a narrativa eacute um sonho deve haver algueacutem que

sonha se eacute o (possiacutevel) protagonista HCE quem sonha temos entatildeo um foco

narrativo definido Estabelecer poreacutem um foco narrativo cuja fonte se

estabelece no plano mental inconsciente tem implicaccedilotildees outras a respeito de

como defini-lo em seu estatuto de narrador e de personagem Assim eacute

necessaacuterio atentar-se ao fato de que cada afirmaccedilatildeo acarreta uma seacuterie de

outras consequecircncias

A indefiniccedilatildeo de elementos estruturantes da narrativa no entanto natildeo eacute

vaacutelida somente para uma obra extrema como Finnegans wake mas para

qualquer obra que se aplique ao paradigma estabelecido por Umberto Eco

Ademais destaca-se o papel do leitor na projeccedilatildeo semacircntica da obra natildeo do

ponto de vista do senso comum de que a subjetividade confere certo empirismo

interpretativo aberto a uma relatividade sem horizonte definido mas em sentido

um tanto mais fleumaacutetico de que a manipulaccedilatildeo do objeto interfere no resultado

do mesmo mdash quase como um experimento de Erwin Schroumldinger Satildeo por

conseguinte cabiacuteveis as analogias com o Livre de Steacutephane Mallarmeacute

(poe)moacutebiles a muacutesica aleatoacuteria de Luciano Berio (que produziu muacutesica

inspirada no livro Chamber music ou Muacutesica de cacircmara de Joyce) e de

Karlheinz Stockhausen A diferenccedila do envolvimento necessaacuterio do puacuteblico

51

apareceria para Eco portanto em um grau consideravelmente maior na obra de

arte moderna

Lembrando o que diz Samuel Beckett sobre o texto de Joyce o que

podemos destacar a respeito da maneira como se apresentaria um

acontecimento ao leitor em Finnegans wake eacute que isso na verdade

simplesmente natildeo ocorre ou ao menos natildeo em termos de uma cena contada

narrada como conhecemos A narrativa como a conhecemos em que uma cena

eacute mostrada contada ao leitor eacute substituiacuteda aqui pela proacutepria experiecircncia da cena

ou da coisa que seria descrita Ao inveacutes de contar uma cena daacute-se a mesma ao

leitor Natildeo se trata apenas de se desapegar do tipo de descriccedilatildeo realista

objetiva que presume distanciamento pois tambeacutem natildeo se trata do relato em

primeira pessoa subjetivo e por isso duacutebio na tentativa de explorar a psique

de uma personagem especiacutefica em suas contradiccedilotildees internas tentando acessar

a complexidade de sua consciecircncia Nenhuma dessas abordagens opostas seria

possiacutevel no Wake pois nele nem sempre se pode diferenciar as vozes do texto

mdash e nem sempre eacute preciso uma vez que natildeo haacute enredo que dependa desse

acompanhamento

4 Paralelos psicanaacutelise teoria da relatividade muacutesica

A disposiccedilatildeo estrutural de Finnegans wake em circularidade eacute o que

permite o acesso a partir de qualquer paacutegina e o leitor por sua vez tem

autonomia explicitamente garantida impelido a tomar uma decisatildeo no primeiro

acesso ao livro A circularidade no entanto e a numeraccedilatildeo dos fragmentos

sugerem uma ordem taacutecita mdash que natildeo pode ser simplesmente ignorada mas

natildeo deve ser vista tambeacutem como a uacutenica forma de leitura assim se engendra

o niacutevel de ambiguidade da obra Como em Ulysses a presenccedila da Odisseia na

concepccedilatildeo de cada um dos capiacutetulos eacute uma possiacutevel referecircncia de leitura mas

natildeo a linha central isto eacute natildeo eacute um necessaacuterio paralelismo agrave incursatildeo ao livro

de Joyce Ler literatura eacute dispor-se a um caminho que natildeo busca certezas ao

contraacuterio do que o apego a anaacutelises literaacuterias demasiado pragmaacuteticas ainda que

52

o neguem possa sugerir Mesmo em um livro de cunho bastante tradicionalista

como A Anaacutelise literaacuteria de Massaud Moiseacutes o lembrete eacute claro

A leitura com profundidade pressupotildee sempre que o texto literaacuterio sendo composto de metaacuteforas eacute ambiacuteguo por natureza ou seja guarda uma multiplicidade de sentidos Ler mal significa natildeo perceber a extensatildeo dessa ambiguidade ou apenas percebecirc-la sem poder compreendecirc-la ou justificaacute-la (MOISEacuteS 1969 p 24)

Exigir uma explicaccedilatildeo para cada noacute morfoloacutegico ou sintaacutetico que se

vislumbra no texto ou acusa-lo de impor dificuldades ao acompanhamento do

enredo satildeo acusaccedilotildees a Finnegans wake que partem de uma concepccedilatildeo

possivelmente questionaacutevel de literatura eou lidam com uma ideia redutora e

limitante de exegese ignorando a alta voltagem do cociente conotativo que o

texto oferece e a riqueza de leituras e possibilidades mdash que estatildeo longe de

formar um todo incoerente ou um texto composto de nonsense ao contraacuterio

Finnegans wake foi concebido de forma comprovadamente calculada e o humor

do texto estaacute distante de ser tatildeo hermeacutetico quanto se pensa Campbell e

Robinson utilizam um galicismo bastante peculiar para caracterizar Finnegans

wake cauchemar Derivado de cauquemaire termo registrado a partir do seacuteculo

XV pode definir simplesmente uma espeacutecie de sonho incocircmodo no limiar do

que seria um pesadelo No dicionaacuterio Larousse21 eacute precisamente uma

ldquomanifestaccedilatildeo oniacuterica que pode causar uma forte resposta emocional negativa

na mente de medo ou de horrorrdquo Sua formaccedilatildeo se deu a partir do termo picardo

cauchier que significa ldquopressionarrdquo ou ldquoempurrarrdquo e do termo germacircnico

proveniente do holandecircs mare que significa ldquoespectrordquo ldquofantasmardquo O campo

semacircntico em que se enquadra o termo envolve da anguacutestia ao desespero O

leitor portanto estaraacute avisado natildeo se trata de um sonho planificado e agradaacutevel

mas de um percurso sinuoso de que se deve duvidar e ao qual nos entregamos

sem reservas O leitor deve se dispor ao obscuro em vez de exigir clareza como

em um sonho caracterizado por Freud em que objetos satildeo siacutembolos e o que

21 Larousse 2013 ldquoCauchemar nom masculin Recircve peacutenible avec sensation doppression dangoisse Ideacutee chose ou personne qui importune ou cause du tourment Ce professeur est mon cauchemar Synonymes Hantise obsession tourmentrdquo

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aparenta ser apenas um fato que se explica por si pode natildeo secirc-lo A isso se

acrescenta o que diz Freud sobre o reflexo (como ato involuntaacuterio automaacutetico

natildeo uma decisatildeo consciente) da negaccedilatildeo e a pulsatildeo de destruiccedilatildeo ldquoO texto [da

negativa] pode negar-se agrave interpretaccedilatildeo como meio de reagir agraves palavras de um

outro significante da proacutepria enunciaccedilatildeordquo (EYBEN 2012 p 283) A negaccedilatildeo

que vem do estranhamento produz afirmaccedilatildeo soacute se enxerga em Finnegans

wake o estranho a partir de noccedilotildees como narrativa e tempo linear negando-se

o estabelecido em direccedilatildeo a uma (nova) resposta

A referecircncia a Sigmund Freud natildeo vem apenas dos dados biograacuteficos em

afirmaccedilotildees do proacuteprio autor de que o livro eacute configurado como um sonho Joyce

dizia natildeo ser nada simpatizante da psicanaacutelise Apesar disso Lucia sua filha

tinha distuacuterbios mentais que ficaram mais graves com o passar do tempo e

chegou a se consultar com Carl Jung colega de Freud nos primeiros estudos

psicanaliacuteticos com quem ela se deu inicialmente muito bem Em Finnegans

wake Joyce cita tanto Freud quanto Jung maiores referecircncias no nascimento

da psicanaacutelise um tanto sardonicamente No fragmento 115 como destaca

Lenita Esteves em sua tese lecirc-se ldquoold Sykos who have done our unsmiling bit

on rsquoalices when they were yung and easily freudenedrdquo (FW 11521-23) Como

muito do que aparece no Wake (e muito do que aparece em nossos sonhos) a

citaccedilatildeo natildeo eacute clara e direta estando escondida poreacutem possiacutevel de ser

encontrada (ldquoyung and freudenedrdquo) com o termo ldquosykos on lsquoalicesrdquo separado em

duas partes como uma ldquocadeia truncadardquo (ESTEVES 1999 p 86) formando

ldquopsychoanalysisrdquo e a referecircncia agrave Alice de Lewis Carroll mdash autor cuja obra

sabemos ter influenciado Joyce e que aparece no trecho aqui referido como ldquoold

sykordquo (ldquoold psychordquo um ldquovelho loucordquo) O poeta e criacutetico dinamarquecircs Kristensen

certa vez perguntou se Joyce acreditava na Ciecircncia nova de Giambattista Vico

ao receber a sugestatildeo de Joyce que a lesse para ler Finnegans wake Joyce

respondeu ldquoNatildeo creio em nenhuma ciecircncia mas minha imaginaccedilatildeo cresce

quando leio Vico como natildeo aconteceu quando li Freud ou Jungrdquo (ELLMANN

1989 p 853)

Carl Jung chegou a ler Joyce e tambeacutem natildeo abrira caminhos para uma

simpatia maior entre eles ldquoJung garantiu que algumas de suas palavras

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ldquoportmanteaurdquo e neologismos eram notaacuteveis mas disse que eram acasos ela

[Lucia] e seu pai comentaria ele mais tarde eram como duas pessoas descendo

ao fundo de um rio uma caindo outra mergulhandordquo (Ibid p 837) A metaacutefora

do rio para a linguagem esquizofrecircnica pelo menos certamente teria agradado

Joyce se natildeo viesse nessa ocasiatildeo Especialmente vindo de algueacutem que havia

percebido em sua produccedilatildeo literaacuteria (e na de Lucia ao ler alguns de seus

poemas e apontar que havia ali indicaccedilotildees de problemas mentais) uma

exemplificaccedilatildeo de insanidade

Uma possiacutevel analogia entre uma obra como Finnegans wake e a

Interpretaccedilatildeo de Muitos Mundos (IMM) formulaccedilatildeo de estados relativos

elaborada pelo fiacutesico quacircntico Hugh Everett encontra-se no esteio da afirmaccedilatildeo

de Umberto Eco a respeito dessa mesma obra fazendo um paralelo entre a

relatividade de Einstein e as possibilidades diversas de tempos e espaccedilos

distintos e simultacircneos na obra de Joyce

Em Finnegans wake encontramo-nos enfim verdadeiramente na presenccedila de um cosmo einsteiniano curvado sobre si mesmo mdash a palavra inicial une-se agrave palavra final mdash e portanto acabado mas por isso mesmo ilimitado Todo acontecimento toda palavra encontra-se numa relaccedilatildeo possiacutevel com todos os outros e eacute da escolha semacircntica efetuada em presenccedila de um termo que depende o modo de entender todos os demais Isso natildeo significa que a obra natildeo tenha um sentido se Joyce introduz nela certas chaves eacute justamente por desejar que a obra seja lida num sentido determinado Mas esse ldquosentidordquo tem a riqueza do cosmo e o autor quer ambiciosamente que ele implique a totalidade do espaccedilo e do tempo mdash dos espaccedilos e dos tempos possiacuteveis O instrumento-mor dessa ambiguidade integral eacute o pun o calembour (ECO 1989 p 48)

Jaacute no iniacutecio de seu livro ao citar a obra de James Joyce como ldquoexemplo

maacuteximo de obra lsquoabertarsquordquo (Ibid p 47) Umberto Eco traccedila uma referecircncia com

Albert Einstein por meio de Edmund Wilson a respeito tambeacutem da obra anterior

Ulysses

Sua forccedila ao inveacutes de acompanhar uma linha expande-se a si mesma em todas as dimensotildees (inclusive a do Tempo) (hellip) Joyce desenvolveu consideraacutevel maestria teacutecnica para apresentar-nos os elementos de sua histoacutera numa ordem tal que nos torne capazes de encontrar sozinhos os nossos caminhos (Ibid p 48)

55

Como sabemos a dita circularidade do Wake eacute construiacuteda de tal forma

que daacute margem a diferentes formas de acesso e leitura Isso gera diversas

possibilidades paralelas e igualmente aceitaacuteveis dentro da estrutura se

entendermos que de fato qualquer paacutegina pode ser a primeira e qualquer

paacutegina pode ser a uacuteltima Essas possibilidades diferem natildeo apenas em suas

caracteriacutesticas mas tambeacutem em suas implicaccedilotildees Assim coexistem

paralelamente essas possibilidades a partir das ordens de leitura efetivamente

disponiacuteveis e a obra permanece una Ateacute mesmo dentro de um capiacutetulo pode

ser que pouco importe a ordem de onde se comeccedila a ler De um paraacutegrafo para

outro o assunto pode mudar drasticamente Tomemos como exemplo o capiacutetulo

III do terceiro livro em que a primeira paacutegina fala dos Four Old Men a segunda

inicia uma ode a Isobel a filha discorrendo sobre toda a sua beleza e

ingenuidade e o paraacutegrafo seguinte salta nada menos para Humphrey

Chimpden Earwicker becircbado no chatildeo de seu pub

Em artigo intitulado ldquoThe Finnecies of music wed poetry A muacutesica e o

Finnegans Wakerdquo Caetano Galindo tradutor da mais recente versatildeo em

portuguecircs de Ulysses (2012) e da uacutenica de Finnrsquos hotel (2014) parte da ideia

desenvolvida por Walter Pater de que ldquoToda a arte constantemente aspira agrave

condiccedilatildeo da muacutesicardquo (PATER apud GALINDO 2010 p 286 traduccedilatildeo do trecho

feita por Caetano Galindo) Frequentemente se afirma percorrendo a fortuna

criacutetica de Finnegans wake que essa obra eacute o resultado de suposto projeto

formalista de extrema acuidade em que a semacircntica eacute absolutamente preterida

em relaccedilatildeo agrave forma agrave esteacutetica focada na materialidade do significante No

entanto natildeo haacute possibilidade de falar de significante sem significado sendo esse

um par indissoluacutevel e acusar Joyce de se apoiar na pura materialidade do signo

para construir um texto de conteuacutedo calcado no nonsense e portanto

ldquoincompreensiacutevelrdquo mdash ou mais especificamente um texto que efetivamente nada

tenha a dizer mdash e puramente sonoro se mostra descabida a qualquer leitor atento

do Wake

A aproximaccedilatildeo entre a literatura joyciana e a arte musical eacute contudo

bastante profiacutecua Aleacutem de a sonoridade como dissemos ser aspecto de suma

importacircncia nos textos de Joyce segundo ele proacuteprio essa proeminecircncia eacute

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expliacutecita na leitura observando-se os jogos linguiacutesticos riacutetmicos e o papel do

aspecto foneacutetico na compreensatildeo de muitos dos trocadilhos (puns) Ainda que

os fatores biograacuteficos nada determinem a respeito da produccedilatildeo literaacuteria cabe

apontar tambeacutem a tiacutetulo de curiosidade para a relaccedilatildeo estreita de Joyce com a

muacutesica queria ser cantor e sua matildee foi cantora e integrou coros de igrejas A

aproximaccedilatildeo entre experiecircncias literaacuterias e muacutesica natildeo seria algo novo para o

autor irlandecircs que demonstrava esse interesse desde os poemas de Chamber

Music mdash admirados por Ezra Pound mdash passando por trechos eminentemente

meloacutedicos de A Portrait of the artist as a young man ateacute o episoacutedio das Sereias

(como eacute conhecido) de Ulysses

Richard Ellmann afirma que diante de algumas das criacuteticas frequentes a

respeito do caraacuteter literaacuterio de Finnegans wake ldquoo aspecto musical do livro era

uma de suas justificativasrdquo (ELLMANN 1989 p 865) Questionado por Terence

White Gervais ldquose o livro era uma mistura de muacutesica e literaturardquo ldquoJoyce

respondeu laconicamente lsquoNatildeo eacute pura muacutesicarsquordquo (Id) A variedade de formas de

entonaccedilatildeo e pronuacutencia aproximam o Finnegans wake do que seria uma

composiccedilatildeo musical que precisa ser executada lida como se lecirc a partirura em

muacutesica mdash conferindo vida agraves indicaccedilotildees que o papel traz O leitor se vecirc dessa

forma no exato centro dessa demanda sendo-lhe exigidas seguidas decisotildees

persecutoacuterias Nem Ulysses nem Finnegans wake satildeo obras para serem lidas

de forma passiva apenas acompanhando a narrativa que se desenha sozinha

recostando-se acomodando-se em leitura plaacutecida eacute preciso lecirc-los de maneira

executiva

O capiacutetulo 11 (considerado na divisatildeo de Campbell e Robinson o capiacutetulo

3 do livro II mdash que chamam de ldquolivro dos filhosrdquo mdash denominado ldquoTavernry in

feastrdquo) reuacutene sensaccedilotildees diversas com destaque ao sentido da audiccedilatildeo em

cenas de festejo e bebedeira no pub da famiacutelia dublinense As cenas (ou

sensaccedilotildees) se assemelham ao que seria um sonho de HCE tendo contudo

tambeacutem a sua participaccedilatildeo Na nota preliminar de Donaldo Schuumller ldquoA

identificaccedilatildeo chega a extremos HCE sonha e eacute sonhado () Recolhem-se

fragmentos espalhados no tempo e no espaccedilordquo (2003 p 215) Em meio a

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transformaccedilotildees de HCE em Raacute deus egiacutepcio do Sol histoacuterias ouvidas pelo raacutedio

que envolvem visitas de um norueguecircs a Dublin em busca de um alfaiate

casamento quedas e um seacutetimo trovatildeo faz-se musicalidade no ambiente

barulhento

Snip snap snoody Noo err historyend goody Of a lil trip trap and a big treesnooker (hellip) (FW 3321-2)22

For hanigen with hunugen still haunt ahunt to find their hinnigen where Pappappapparrassannuaragheallachnatullaghmonganmacmacmacwhackfalltherdebblenonthedubblandaddydoodled and anruly person creeked a jest (FW 3324-7)23

Such was the act of goth stepping the tolk of Doolin drain and plantage wattle and daub with yoursquoll peel as Irsquoll pale and wersquoll pull the boath toground togutter testies touchwood and shenstone unto pop and puma calf and condor under all the gaauspices (incorporated) the chal and his chi their roammerin over gribgrobgrab reining trippetytrappty (so fore shault thou flow else thy cavern hair) to whom she (anit likenand please-thee) Till sealump becamedump to bumpslump a lifflebed (altolagrave allamarsch O gueacute O gueacute) (FW 33214-18)24

Joyce controla o ritmo do texto de forma que pulsem frases com tocircnicas

bem definidas formando o que ambienta o burburinho da noite no bar cheio e de

pessoas em festa Aleacutem das evidentes e numerosas aliteraccedilotildees ao unir

palavras como em ldquobecamedump to bumpslumprdquo eacute criado todo um novo ritmo

do iniacutecio ao fim das enunciaccedilotildees Aleacutem do forte impacto sonoro a semacircntica eacute

consequentemente modificada deslocando-se o que seria um significado

22 ldquoPirlimpimpim Da estorieta este eacute o fim De uma pequerrucha hip e de um grande triscunardquo (na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller 2003) 23 ldquoPois essazim e essezim ainda andam por aiacute a procura de Finn onde Pappappapparrassannuaragheallachnatullaghmonganmacmacmacwhackfalltherdebblenonthedubblandaddydoodled e uma personalidade ilegal largou um gracejordquo (idem) 24 ldquoTal foi o ato deusassombrado pra deter a fala do palanquim drenagem e plantaccedilatildeo vime e barro tua eacute a repulsa meu eacute o pulso nosso eacute o impulso do barco agrave terra dos aterrados testemunhas de madeira sapiencial e de pedra filosofal ateacute pupa e puma o bov hino e o condor sob todos os gaauspiacutecios (incorporados) o cujo e seu ela perroeirando caraagoraagarra reinando o trotedatropa (ateacute aqui fluiraacutes ou te arrastaratildeo pelos cabelos como na caverna) a quem ela (natildeo se assemelha praza-te) Ateacute que marulho se converta em entulho o brusco baque no liacuteffido leito (altolaacute allamarcha O quecirc o quecirc)rdquo (idem)

58

previsiacutevel para um neologismo que natildeo se fixa como neologismo uma vez que

continua podendo ser reinventado Do trovatildeo que possivelmente eacute o mais

musical de todos passamos ateacute mesmo por Shakespeare (ldquoshenstonerdquo) aqui

unido a Shem

Retornando ao texto de Caetano Galindo a aproximaccedilatildeo entre Finnegans

wake e muacutesica daacute-se entatildeo pela possibilidade de pensar essa obra literaacuteria

como uma partitura lembrando ainda a sugestatildeo do proacuteprio Joyce de que a

leitura de sua obra era diferenciada se fosse feita em voz alta mdash executada como

muacutesica escrita sobre as pautas de uma obra musical Isso se relaciona

diretamente a um certo papel atribuiacutedo ao leitor nessa interaccedilatildeo menos passiva

e mais ativamente investigativa ou analiacutetica em um sentido que eacute certamente

mais inventivo do que interpretativo Em vez de linhas pautas Sobre essa

comparaccedilatildeo diz Caetano Galindo

Uma partitura por outro lado jamais seraacute vista como a ldquoinauguraccedilatildeordquo de uma obra privileacutegio que cabe a sua primeira execuccedilatildeo puacuteblica A partitura afinal eacute muito menos ldquoa obrardquo que um detalhado conjunto de instruccedilotildees para a realizaccedilatildeo da obra que passa a existir apenas quando executada que tem a capacidade de existir como tal e de afetar mesmo pessoas ldquoanalfabetasrdquo no sistema de signos em que se escreve que manteacutem com aquele autoacutegrafo uma relaccedilatildeo portanto necessariamente de maior independecircncia Hierarquicamente superior E jaacute naqueles primeiros poucos exemplos de ldquobrincadeirasrdquo sonoras do Wake junto da constataccedilatildeo de que se trata de uma obra em que a leitura e a leitura em voz alta tem um papel completamente diferente na atribuiccedilatildeo na criaccedilatildeo de seu sentido fazem com que de diversas maneiras se possa sim pensar no livro como mais proacuteximo de uma partitura (GALINDO 2010 p 298)

A multiplicidade proporcionada por essa abertura natildeo prejudica portanto

a unidade da obra nem significa abertura a qualquer interpretaccedilatildeo a abertura

em questatildeo eacute efetivamente de autonomia e participaccedilatildeo do leitor tomando

decisotildees que efetivamente afetam sua experiecircncia com a obra natildeo por sua

evidente subjetividade como pessoa mas em seu papel como destinataacuterio mdash e

natildeo mero receptor de uma obra fechada cuja significaccedilatildeo estaacute dada inerte A

essa abertura poderiacuteamos entatildeo comparar a da muacutesica e seu efeito que parte

59

de um ldquodesdeacutem com o sentidordquo para usar expressatildeo de Caetano Galindo Mais

do que relaccedilotildees de sonoridade com o uso de aliteraccedilotildees assonacircncias rimas

que comumente relacionamos a uma certa qualidade musical (mas que satildeo

aspectos em geral inerentes a quaisquer textos literaacuterios) o texto tem um

princiacutepio estruturante diferenciado que assim o assemelha agrave muacutesica

Essa aproximaccedilatildeo diz respeito agrave maneira de interaccedilatildeo que existe entre a

obra e um inteacuterprete de uma composiccedilatildeo musical mais do que entre a obra e o

seu ouvinte Assim nos remetemos agrave aproximaccedilatildeo feita por Eco entre o texto

joyciano e a muacutesica moderna que se justifica em diversos aspectos entre os

quais destacamos aqui o da necessaacuteria execuccedilatildeo em uma certa sequecircncia

temporal como fundamento inerente agraves duas artes muacutesica e literatura Ambas

satildeo elaboradas a partir de uma ordenaccedilatildeo que se alterada modifica-se ao

contraacuterio de obras de arte com entrada livre O componente temporal tem

destaque de maneira evidente tambeacutem no cinema tem possibilidades diversas

de entendimento na fotografia e nas artes plaacutesticas a partitura no entanto assim

como o texto teatral de outra maneira tambeacutem o eacute faz parte do rol de peccedilas

executaacuteveis Eacute das obras de arte que se escrevem e inscritas permanecem na

promessa de que se deem em um novo tempo em um acontecimento fora do

papel

Natildeo falamos portanto tatildeo somente de um texto literaacuterio musical mas dos

fundamentos compartilhados entre as duas artes em termos fundamentais de

elaboraccedilatildeo e de acessoexecuccedilatildeorecepccedilatildeo dentro da plasticidade de cada uma

delas A problemaacutetica inescapaacutevel que concerne agrave sucessatildeo temporal como fator

inato da obra natildeo se refere no texto literaacuterio simplesmente agrave sequecircncia de sons

mas a toda a mateacuteria da obra Como em certas obras musicais o compositor

deixa a possibilidade de o(s) instrumentista(s) ou mesmo o(s) ouvinte(s)

intercambiarem partes do todo de forma entatildeo prevista e deliberada pelo autor

em todas as suas consequecircncias temos em Finnegans wake a possibilidade de

entrada por qualquer trecho No entanto assim como na obra musical as

consequecircncias satildeo medidas tambeacutem no Wake existe eacute claro uma ordem

subjacente ainda que se possa ignoraacute-la no processo de leitura e iniciar de

60

qualquer paacutegina A leitura ainda que executiva eacute feita em cima de indicaccedilotildees

preacute-existentes

O leitor ideal do Wake por conseguinte deve ser aquele indiviacuteduo aberto

a uma renovaccedilatildeo inesgotaacutevel de processos cognitivos aquele que natildeo executa

sua leitura preso a seus horizontes mas estaacute disposto a expandi-los a cada linha

A fluidez em Finnegans wake se deve ao natildeo estabelecimento de uma voz que

tenha lugar proacuteprio Como diz Derrida em ldquoDuas palavras por Joycerdquo haacute livros

que terminamos de ler assim que iniciamos a leitura enquanto James Joyce nos

faz encarar a leitura que nunca parece ter fim Muito frequentemente Finnegans

wake eacute lembrado por ser um livro circular sendo essa uma das mais evidentes

caracteriacutesticas da estrutura elaborada por Joyce Podemos lembrar ainda a

figura eliacuteptica como Derrida a concebe para atestarmos que a circularidade

wakiana natildeo se engendra em reiteraccedilatildeo ciacuteclica em regressos a pontos

iniciaacuteticos nem em repeticcedilotildees de processos idecircnticos Ao contraacuterio a

circularidade do Wake efetivamente se aproxima da viconiana que inspirou

Joyce temos um processo de retorno que soacute eacute previsiacutevel ateacute certo ponto pois

engendra acima de tudo a renovaccedilatildeo de seus elementos Assim ateacute nas

repeticcedilotildees de um mesmo termo pela obra podemos perceber como o que

acontece natildeo eacute a retomada pura e simples mas a operaccedilatildeo de uma diffeacuterance

com ldquoardquo uma vez que o termo eacute aparentemente duplicado mas natildeo ocorre da

mesma forma e portanto jaacute natildeo eacute idecircntico em significado

A relaccedilatildeo com muacutesica novamente se faz proveitosa por uma outra via de

relaccedilatildeo Em um paralelismo bastante coerente a respeito de como eacute possiacutevel a

operaccedilatildeo de leitura de uma obra como Finnegans wake Umberto Eco tece

comparaccedilotildees citando o compositor belga Henri Pousseur um dos nomes da

nouvelle musique junto tambeacutem de Luciano Berio Pierre Boulez e Karlheinz

Stockhausen

Para definirmos a situaccedilatildeo do leitor de Finnegans wake parece-nos servir perfeitamente a descriccedilatildeo dada por Pousseur da situaccedilatildeo do indiviacuteduo que ouve uma composiccedilatildeo serial poacutes-dodecafocircnica ldquoJaacute que os fenocircmenos natildeo mais estatildeo concatenados uns aos outros segundo um determinismo consequente cabe ao ouvinte colocar-se

61

voluntariamente no centro de uma rede de relaccedilotildees inexauriacuteveis escolhendo por assim dizer ele proacuteprio (embora ciente de que sua escolha eacute condicionada pelo objeto visado) seus graus de aproximaccedilatildeo seus pontos de encontro sua escala de referecircncias eacute ele agora que se dispotildee a utilizar simultaneamente a maior quantidade de graduaccedilotildees e de dimensotildees possiacuteveis a dinamizar a multiplicar a estender ao maacuteximo seus instrumentos de assimilaccedilatildeordquo E com essa citaccedilatildeo fica sublinhada como se disto houvesse necessidade a convergecircncia de todo o nosso discurso para um ponto uacutenico de interesse e a unidade da problemaacutetica da obra ldquoabertardquo no mundo contemporacircneo (ECO 1989 p 49)

Assim a postura ativa se faz natildeo somente numa via extra de interaccedilatildeo

obra-receptor mas eacute efetivamente uma demanda necessaacuteria para que essa

interaccedilatildeo possa se viabilizar Ainda que ambiguidade e polissemia sejam

evidentemente traccedilos inerentes a quaisquer textos literaacuterios em geral haacute uma

oferta disseminativa especiacutefica onde se engendra diffeacuterance A interaccedilatildeo

receptor-obra na qual a participaccedilatildeo e as escolhas do leitor eacute uma necessidade

tem uma dinacircmica operacionalizante que natildeo somente ressuscita o texto morto

na leitura mas o faz quase podendo daacute-lo agrave luz Em consonacircncia com o que eacute

dito por Haroldo de Campos em A arte no horizonte do provaacutevel voltamos agrave

Escritura do retorno ldquoA arte joycena circular e em aberto natildeo possui como

operador a figura autoral mandataacuteria Antes a informaccedilatildeo esteacutetica mdash como

transmissatildeo de sensaccedilatildeo da forma mdash eacute gerada pelo interpretante que assume a

posiccedilatildeo de operadorrdquo (EYBEN 2012 p 616)

Isso natildeo implica no entanto eacute bom que lembremos uma abertura

semacircntica total e desgovernada que nos leve a aquiescer para as suposiccedilotildees

de que Finnegans wake seja uma grande piada sem qualquer indiacutecio de que sua

leitura valha a pena Aleacutem de rascunhos e arquivos de Joyce apontarem

fortemente para o contraacuterio com esquematizaccedilotildees da estrutura e registros das

formulaccedilotildees de trechos reescritos e reeditados com precisatildeo vimos que natildeo

foram poucos os leitores que se dedicaram agrave incursatildeo por essa obra ainda que

seja tatildeo mal falada quanto se diz que eacute incompreensiacutevel Natildeo se trata apenas de

frases compostas de um puro trava-liacutengua sucedendo o outro que natildeo remetem

a nada e tecircm seus significados encerrados em si mesmos de forma que somente

o significante seja manipulado em brincadeiras linguiacutesticas mdash ainda que a

62

comparaccedilatildeo inicial seja relativamente cabiacutevel no que diz respeito aos jogos

foneacuteticos e trocadilhos que compotildeem a obra joyciana O recurso natildeo resulta em

uma anulaccedilatildeo da unidade significativa ao contraacuterio temos sua expansatildeo Haacute

criacuteticos que traccedilam a sequecircncia da intriga na obra e a analisam sob essa oacuteptica

ainda assim sabemos natildeo haver linearidade narrativa na concepccedilatildeo tradicional

de enredo uma vez que o Wake traz o que se caracteriza pelo adjetivo plotless25

Como lembra o proacuteprio Eco mais agrave frente poreacutem ldquoEssa pluralidade

semacircntica natildeo determina ainda o valor esteacuteticordquo (ECO 1989 p 91) Fosse essa

a mateacuteria-prima de Finnegans wake natildeo seria composto entatildeo por mais que

jogos intelectuais e tantos criacuteticos assim o julgaram Se pluralidade semacircntica

implica uma seacuterie definida de possibilidades a b ou c para uma frase expressatildeo

capiacutetulo ou para a obra toda estaacute mais longe de Finnegans wake do que supotildee

Eco Polissemia subentende a possibilidade de visualizar nas palavras as

possibilidades para as quais elas se abrem como na ambiguidade em geral

tambeacutem se tem a consciecircncia dos sentidos que povoam o mesmo territoacuterio Por

mais contraditoacuterio que possa soar isso ainda pode integrar poreacutem uma leitura

hermenecircutica substitui-se a noccedilatildeo de verdade contida em uma unidade pela de

um espectro de verdades simultacircneas ainda controladas detidas nos limites do

horizonte que nossa visatildeo alcanccedila com nitidez

Em vez disso poderiacuteamos mdash podemos mdash ler Finnegans wake sem

necessariamente buscar conter em diagramas mentais os pontos semacircnticos

oferecidos em cada expressatildeo natildeo somente porque esse seria um trabalho

cansativo mas tambeacutem porque natildeo nos ofereceria garantias de ser esta a

melhor maneira de intimidade com o texto Da mesma maneira ler com fluidez

ainda que uma ou outra referecircncia possa nos escapar pelos dedos natildeo eacute

necessariamente uma forma menos integrada de se deparar com a obra em

questatildeo Fluidez aqui sublinhe-se natildeo se refere agrave suposiccedilatildeo de que se tenha

diante das paacuteginas do livro um leitor passando por elas uma a uma de maneira

25 O termo vem do inglecircs plot que se refere especificamente a enredo ou trama O Wake natildeo possui um enredo que mova a leitura e seja separaacutevel em situaccedilatildeo inicial cliacutemax e desfecho e mesmo os elementos baacutesicos da narrativa ndash personagens narradores tempo e espaccedilo ndash se modificam todo o tempo

63

homogecircnea sem que se detenha em nada de especiacutefico avanccedilando

ininterruptamente pelo texto em um ritmo padronizado meramente

decodificando palavras lendo o texto somente no sentido mais simploacuterio de

assunccedilatildeo da existecircncia e de certa compreensibilidade de um dado coacutedigo

Referimo-nos ao contraacuterio ao caso de um leitor qualquer se se lance agrave leitura

do livro mdash de modo que detenha um tempo singular de sua proacutepria leitura que

flui em seu ritmo proacuteprio individual variaacutevel e incalculaacutevel

Pelo fato de que o texto como eacute tecido exige do leitor a tomada de

algumas decisotildees jaacute haacute demanda suficiente de uma postura ativa que natildeo

precisa ser a tradicional postura de identificar todos os componentes e assim

destrinchar todos os elementos do texto por mais que isso eventualmente possa

ser de grande ajuda Talvez a noccedilatildeo do todo seja mais importante e mais difiacutecil

de ser alcanccedilada fora dessa anaacutelise a que estamos acostumados Muito do

texto por mais hercuacuteleo que o trabalho possa parecer pode ser forccedilosamente

colocado em diagramas e planilhas mentais com divisotildees e classificaccedilotildees

criadas a partir de moldes teoacutericos preacute-existentes mas lidar com o texto em sua

complexidade eacute respeitaacute-lo na sua porccedilatildeo de problemaacutetica indecifraacutevel

CAPIacuteTULO II

FINNEGANS WAKE E O TEMPO DA TRADUCcedilAtildeO

65

No prefaacutecio agrave traduccedilatildeo dos poemas de Charles Baudelaire reunidos na

seccedilatildeo Tableaux parisiens publicada em 1923 denominado ldquoDie Aufgabe des

Uumlbersetzersrdquo Walter Benjamin apresenta nas palavras de Haroldo de Campos

a sua ldquometafiacutesica antes do que uma fiacutesica da traduccedilatildeordquo (CAMPOS 2008 p

179) Ao encetar sua exposiccedilatildeo a respeito da ldquotarefa-renuacutencia do tradutorrdquo como

traduziu Susana Kampff Lages Benjamin questiona qual o destino do texto

traduzido apoacutes afirmar o que aqui se traz como epiacutegrafe a compreensatildeo mdash ou

a tentativa de engendrar alguma mdash das obras de arte natildeo deve se pautar pelo

receptor Enseja lembrar que se costuma entender a traduccedilatildeo limitando-se agrave

visatildeo corriqueira de que teria o objetivo preciacutepuo ou mesmo uacutenico de facilitadora

do acesso ao texto o que recairia justamente no problema de ter no destinataacuterio

sua justificativa focando na recepccedilatildeo do texto toda a necessidade de sua

existecircncia mdash ou mais gravemente a sua utilidade mdash e portanto tirar dessa

relaccedilatildeo suas premissas e direcionamentos

66

A existecircncia de um problema em considerar a traduccedilatildeo como algo

produzido tatildeo somente para atender agravequeles privados da compreensatildeo do

idioma do texto de partida antecede contudo qualquer afirmativa contra a

exegese que se paute pela recepccedilatildeo ou a favor de qualquer fantasiologia em

detrimento de uma investigaccedilatildeo do pateacutetico schlegeliano ou do empiacuterico em

literatura Eacute possiacutevel perceber esse problema no apontamento do fato um tanto

expliacutecito de que o leitor da traduccedilatildeo que visa substituir o texto de partida

inevitavelmente a leraacute como texto original (no sentido de primeiro

evidentemente) As relaccedilotildees entre o texto de partida e suas traduccedilotildees eacute

perigosamente apagada no caso do leitor cujo contato com a obra se daacute somente

por uma traduccedilatildeo especialmente entre aquelas que natildeo contecircm comentaacuterios

notas ou recursos similares por meio dos quais o tradutor aponte seus dilemas

e exprima as dificuldades pelas quais passou remetendo ao texto de partida

bem como que criteacuterios utilizou em suas escolhas e renuacutencias lexicais ou

sintaacuteticas

Aleacutem das peculiaridades inescapaacuteveis da leitura de uma obra de traduccedilatildeo

sem o concomitante acesso ao texto traduzido existem ainda os problemas

inerentes ao texto Tradutores que se incumbem da tarefa de transmitir algum

ato comunicativo a ser detectado no texto de partida transportando uma

mensagem mdash por vezes artificialmente construiacuteda ou forccedilosamente encontrada

em uma leitura enviesada ou mesmo forjada mdash a outro idioma por meio do labor

tradutoacuterio estariam prestes a falhar de certa maneira ao menos segundo o que

assevera Benjamin ao recaiacuterem na ldquotraduccedilatildeo inexata de um conteuacutedo

inessencialrdquo (BENJAMIN 2008 p 66) A falha tem eacute claro nesse caso um

sentido especiacutefico que parte da concepccedilatildeo que Benjamin traz de traduccedilatildeo Seria

demasiadamente penoso declarar ou apontar fracassos tradutoacuterios completos a

qualquer que seja a tentativa ao menos em literatura de traduzir algum texto

Como a Benjamin poreacutem a compreensatildeo do que significa ou qual a intenccedilatildeo do

ato de traduzir literatura parece-nos primordial ao labor tradutoacuterio e tambeacutem agrave

leitura de traduccedilotildees pois esclarecer o ponto de que partimos ao olhar o texto

se eacute o mesmo ou se jaacute eacute outro que medidas haacute de ldquomesmordquo e de ldquooutrordquo ou de

67

ldquoinovaccedilatildeordquo algo que compreendemos por processos de diferenciaccedilatildeo e

similaridade

ldquoDie Aufgabe des Uumlbersetzersrdquo eacute um texto frequentemente referido como

ensaio a despeito de ser mais loacutegico e afirmativo do que essa classificaccedilatildeo

poderia implicar (isso talvez ocorra pela obsessatildeo proacutepria do seacuteculo XX de

enxergar Essayismus em variadas formas textuais e em alguns autores

Moumlglichkeitsmenschen ou ldquopossibilitaacuteriosrdquo nos termos do escritor modernista

austriacuteaco Robert Musil contemporacircneo de Joyce) Benjamin transparece certo

idealismo em seu conceito de liacutengua pura e transita entre a construccedilatildeo desse

conceito eteacutereo agrave medida que o texto avanccedila e nuances de uma tradiccedilatildeo

platocircnica um tanto menos hesitante mais soacutelida Ainda assim eacute clara a

ratificaccedilatildeo buscada pelo autor de afirmar a traduccedilatildeo da arte tatildeo dignificante

quanto a criaccedilatildeo artiacutestica per se

Considerando-se um texto classificado como ldquoliteraacuteriordquo o dilema de como

traduzir se torna especificamente (poreacutem natildeo necessariamente mais) complexo

Poder-se-ia considerar que a abertura do texto facilita a tarefa tradutoacuteria uma

vez que expande as possibilidades de escolhas em vez de reduzir a

correspondecircncia de uma palavra a uma entrada dicionarizada ou opccedilatildeo lexical

mais imediata Traduzir literatura demanda meditar sobre um termo mas

tambeacutem sobre a frase a estrutura e o todo da obra A expansatildeo lexical

engendrada em arte eacute contudo sinteacutetica natildeo haacute possibilidades quaisquer de

consequecircncias equivalentes mas ao contraacuterio as consequecircncias de uma

escolha ou outra devem ser drasticamente distintas A necessidade do mot juste

do labor artiacutestico literaacuterio permanece sendo uma demanda da tarefa tradutoacuteria e

nesse sentido o tradutor em um entendimento radical de sua praacutetica de alguma

forma reescreve o texto de partida tomando emprestadas a estrutura e as ideias

do que traduz

Esse eacute o princiacutepio levado agrave risca com o termo transcriaccedilatildeo ainda que natildeo

se restrinja agrave modalidade concebida pelos irmatildeos Campos que envolve ainda

outros argumentos A despeito da conaccedilatildeo ou vocaccedilatildeo artiacutestica putativa do

tradutor ou seu esforccedilo em ser tambeacutem poeta a traduccedilatildeo de literatura lida com

68

o fenocircmeno potencializado de cada termo ter alto impacto seja o mot juste

procurado pelo tradutor criativamente seja buscado em metodologia que

percorra caminho teacutecnico-investigativo Haroldo de Campos afirma a respeito

das traduccedilotildees do Panaroma do Finnegans wake (2001) ldquo() o que interessa

natildeo eacute a literalidade do texto mas sobretudo a fidelidade ao espiacuterito ao lsquoclimarsquo

joyciano frente ao diverso feixe de possibilidades do material verbal manipuladordquo

(CAMPOS 2001 pp 27-28) Essa fidelidade pode ser entendida como anaacuteloga

agrave que Benjamin defende que se engendra sendo fiel agrave forma do texto

destituindo-o da fidelidade ipsis litteris isto eacute daquela realizada de maneira

literal de vocaacutebulo em vocaacutebulo apoiada na suposta funccedilatildeo tradutoacuteria de

transpor a mensagem comunicativa considerada ldquoinessencialrdquo Em seu texto

ldquoTransluciferaccedilatildeo mefistofaacuteusticardquo Haroldo afirma que ldquoNatildeo seria descabido

ultimar a teoria benjaminiana da traduccedilatildeo como portadora da mensagem lsquointerrsquo

(ou lsquotransrsquo) semioacutetica da liacutengua pura orientada pelo lema rebelionaacuterio do non

serviamrdquo (CAMPOS 2008 p 180)

Natildeo haacute nem deve haver por conseguinte expectativa de transposiccedilatildeo

entre planos em resultado tradutoacuterio calculaacutevel desde que se admita que a

traduccedilatildeo como o texto de partida natildeo significa o mesmo que ele mas eacute mdash deve

ser em sua tautologia como propotildee Albercht Fabri Se vemos o tangenciamento

de Benjamin devemos vislumbrar no processo tradutoacuterio cerebral o ponto a ser

tocado entre a infinidade de pontos natildeo obstante isso soacute pode permitir a

deduccedilatildeo do horizonte da liacutengua pura se for mantido o espaccedilamento da ldquopulsatildeo

dionisiacuteaca que eacute capaz de dissolver a diamantizaccedilatildeo apoliacutenea do original preacute-

formado em nova festa siacutegnicardquo pondo a ldquocristalografia em ebuliccedilatildeo de lavardquo

(CAMPOS 2008 p 180) Revela-se prejudicial o uso de termos similares a

ldquomensagemrdquo ldquomensageirordquo pois afirma um binarismo de espaccedilos em que dois

planos coexistem e entre eles ocorre o intercacircmbio Falar em ldquoportadora de

mensagemrdquo soacute eacute cabiacutevel nesse contexto se referindo agrave ldquointer (ou trans)

semioacutetica da liacutengua purardquo da fala de Haroldo mas natildeo ao que remete de forma

mais imediata o conteuacutedo inessencial mdash ao inveacutes da categoria da forma que

caracteriza a traduccedilatildeo na teoria benjaminiana

69

Admitiriacuteamos assim a possibilidade de o receptor da traduccedilatildeo ser um

leitor capaz de acessar o original de forma que a traduccedilatildeo seja um texto

adicional ao inveacutes de atuar como um usurpador do estatuto de texto primeiro

Mais do que uma possibilidade o leitor ideal da traduccedilatildeo seria esse que pode

vecirc-la como fonte de variantes interpretativas provenientes de leitura singular do

texto feita pelo tradutor (um leitor ideal sob essa oacuteptica) A palavra para

ldquotraduccedilatildeordquo na liacutengua alematilde eacute Uumlbersetzung junccedilatildeo do prefixo (do tipo que tem

valor semacircntico tambeacutem por si soacute) uumlber com a palavra setzung significando uma

sobreposiccedilatildeo sobreaplicaccedilatildeo Indica uma sobre-escrit(ur)a uma sobrevivecircncia

O leitor da traduccedilatildeo que tem acesso ao original mdash o que definimos como o leitor

ideal da traduccedilatildeo mdash e sua leitura do texto de partida e do que lhe foi sobre-escrito

eacute outro argumento a favor da traduccedilatildeo criativa e ratifica a possibilidade de o labor

tradutoacuterio poder e dever ser executado como arte conferindo ao tradutor natildeo

somente status mas responsabilidade Natildeo soacute pode se dedicar agrave busca do mot

juste como se incumbe desse dever ao se prestar agrave traduccedilatildeo

Walter Benjamin afirma o estatuto da traduccedilatildeo como forma que natildeo se

rende ao papel de transpor significados de um idioma a outro libertando-a de

qualquer caraacuteter submisso ao texto traduzido No entanto isso natildeo significa

forccedilar uma desvinculaccedilatildeo Ao contraacuterio afirma que ldquoeacute preciso retornar ao

originalrdquo (BENJAMIN 2008 p 67) Os quatro tradutores do texto de Benjamin mdash

Fernando Camacho Karlheinz Barck (e equipe natildeo nomeada) Susana Kampff

Lages e Joatildeo Barrento mdash optam pelos termos ldquoretornarrdquo ou ldquoregressarrdquo ldquoo

regressordquo No entanto pensar em voltar-se ao que eacute o texto original explicitaria

como isso significa o ato literal de como leitor do texto de partida debruccedilar-se

considerando como o tradutor deve eacute oacutebvio ir a ele natildeo somente em um

regresso simboacutelico mas tambeacutem como parte efetiva do processo de traduccedilatildeo A

concisa expressatildeo do movimento de voltar-se aponta tambeacutem para a

necessidade de evocaacute-lo no texto resultante da traduccedilatildeo ainda que natildeo seja

servil a ele e por uacuteltimo aponta para o retorno agrave liacutengua pura una babeacutelica

aquela em que natildeo haacute a categoria do enunciado e que ultrapassa as liacutenguas

nacionais

70

A traduccedilatildeo para Walter Benjamin eacute intraduziacutevel Esse fato confirma sua

autotelia O tradutor eacute fiel na medida em que produz devir em seu idioma de

forma fiel agrave que o escritor do texto de partida o fez em sua liacutengua Se pensarmos

que uma obra literaacuteria pode ter como qualidade inerente a ela segundo

Benjamin sua traduzibilidade a observaccedilatildeo tatildeo comum a respeito de Finnegans

wake vem agrave tona essa obra considerada atraveacutes dos tempos de ilegiacutevel a

intraduziacutevel teria que niacutevel de traduzibilidade Como questiona Lenita Esteves

no terceiro capiacutetulo de sua tese ldquoMas da mesma forma que Derrida aponta para

um certo aspecto risiacutevel da pergunta lsquoVocecirc jaacute leu Joycersquo podemos achar

engraccedilada a pergunta lsquoAlgueacutem jaacute traduziu Finnegans Wakersquordquo (ESTEVES

1999 p 83) Frequentemente se afirma que o idioma dessa obra de James

Joyce natildeo eacute o inglecircs mas um outro limitado ao livro e nele desenvolvido

elaborado pelo autor a partir de idiomas diversos Consideremos entatildeo que

Finnegans wake (1939) possui mdash ou melhor produz engendra uma liacutengua da

proacutepria obra Isso significaria natildeo apenas que a traduccedilatildeo deve fazer o mesmo

mas tambeacutem que esse idioma proacuteprio tem no texto as definiccedilotildees de suas

especificidades as diretrizes de seus paracircmetros e a que princiacutepios estaacute

submetido

Natildeo poderiacuteamos afirmar o mesmo no entanto a respeito de todo e

qualquer texto literaacuterio Finnegans wake apresenta de forma radicalmente

expliacutecita e elaborada com extrema acuidade o que toda a Literatura todo e

qualquer texto-arte traz intacto em sua essecircncia uma liacutengua proacutepria um dizer

que natildeo se repete no linguajar cotidiano tampouco em outros autores ainda

menos em textos teacutecnicos dissertativos cientiacuteficos Podemos entender

destarte a essecircncia antiteacutetica da tarefa de traduzir literatura cujos alicerces satildeo

os dois fatos concorrentes de que o texto literaacuterio recusa-se a uma transposiccedilatildeo

de seus significados a uma traduccedilatildeo entendida como produtora de alguma

equivalecircncia e o de que tambeacutem demanda que seja traduzido em tendo

traduzibilidade inerente de maneira diferente ou em outro grau que natildeo pertence

a uma traduzibilidade de sentido de mensagem de comunicaccedilatildeo A traduccedilatildeo de

literatura portanto de texto que produza em sua tessitura uma linguagem

proacutepria enquadrada em sua focircrma exige efetivamente a criaccedilatildeo de mais uma

71

liacutengua proacutepria tecida textualmente jaacute que existiraacute outro texto ou nova versatildeo do

texto que se intenta traduzir Esse fator inescapaacutevel por conseguinte faz

necessaacuterio que inspirando-se no ldquoidioma proacuteprio do textordquo de partida o tradutor

se lance a realizar alguma espeacutecie de criaccedilatildeo no idioma para o qual traduz ainda

que natildeo seja um seguidor dos caminhos de liberdade apontados pela

transcriaccedilatildeo

A traduccedilatildeo de literatura difere-se ainda por outro fator que natildeo diz respeito

a sua feitura mas reside no que excede sua elaboraccedilatildeo o acometimento de

certa direccedilatildeo na recepccedilatildeo e na criacutetica do texto em distintas heranccedilas escolhidas

Eacute niacutetido em Finnegans wake o quanto seus principais tradutores brasileiros mdash

Augusto de Campos Haroldo de Campos e o professor Donaldo Schuumller mdash

encaram a obra como radical aleacutem de efetivamente concordarem com o fato de

que sua complexidade torna a traduccedilatildeo tanto mais difiacutecil quanto profiacutecua

ldquoFinnegans wake eacute 100 de inovaccedilatildeo linguiacutestica Nenhuma concessatildeo Nenhum

recuordquo (CAMPOS 2001 p 21) Na introduccedilatildeo do primeiro volume de sua

traduccedilatildeo Donaldo Schuumller ldquoDistanciamo-nos com frequecircncia da literalidade

para captar efeitos que ultrapassam significados () Num discurso

deliberadamente oniacuterico luminosidade intensa natildeo se atingiraacute nuncardquo

(SCHUumlLER 2004 p 25) Em texto publicado no Panaroma e tambeacutem na

coletacircnea Teoria da poesia concreta Haroldo de Campos afirma ldquoTraduzir

James Joyce especialmente fragmentos de Finnegans wake eacute uma ginaacutestica

com a palavra um trabalho de perfeccionismo Algo que nunca assume o

aparato estaacutetico do definitivordquo (CAMPOS 2001 p 27)

Apesar das semelhanccedilas ambas as traduccedilotildees tanto a de Panaroma do

Finnegans wake cuja primeira ediccedilatildeo data de 1962 quanto a de Finnegans

wakeFinnicius reveacutem (2004) implicam recepccedilotildees (preacute e poacutes-traduccedilatildeo) distintas

e empregam diferentes instrumentos para lidar com as possibilidades do texto

de partida Os irmatildeos Campos optam pela traduccedilatildeo que chamam de intensiva

(ao inveacutes de extensiva) colhendo trechos que demonstrem o potencial radical

do texto como um todo ldquoO nosso objetivo sempre foi o de trabalhar e lapidar

alguns dos momentos maacutegicos do livro e somente dar a puacuteblico aqueles que

em nosso entender oferecessem em portuguecircs um estatuto equivalente agrave alta

72

voltagem de invenccedilatildeo e criatividade do original Trabalho de concentraccedilatildeordquo

(CAMPOS 2001 p 21)

Schuumller por outro lado algumas deacutecadas depois opta pela traduccedilatildeo

integral e portanto por aquela que tenderia ao que Augusto de Campos e

Haroldo de Campos entatildeo denominaram extensiva ainda que o labor de

Donaldo Schuumller natildeo deixe de ser tambeacutem de intensidade sobre o texto

debruccedilou-se sobre cada fragmento dedicando-se a cada um separadamente

gradualmente como uma obra por si Alerta ldquoPara se fazer entendido o texto

oferece muitas versotildees do mesmo coacutedigo cifradordquo (SCHUumlLER 2008 p 24)

Como Joyce nas palavras dos irmatildeos Campos natildeo faz concessotildees o tradutor

afirma seguir o mesmo caminho de natildeo simplificar e recomenda leitura que se

submeta aos mesmos riscos ldquoVencida a vertigem ante frequentes abismos

somos estimulados a criar roteiros proacuteprios () Natildeo se espere assim

inteligibilidade completa do textordquo (Ibid p 25)

Se a traduccedilatildeo intensiva portanto daacute a entender a potenciaccedilatildeo de um

esforccedilo vertical de imersatildeo aplica-se tambeacutem agrave metodologia de Donaldo que

percorre fragmento a fragmento traduzindo criativamente Cumpre a missatildeo

predita por Lenita Esteves em sua tese anos antes da publicaccedilatildeo completa da

traduccedilatildeo de Schuumller ldquoMas da mesma forma que Derrida aponta para um certo

aspecto risiacutevel da pergunta lsquoVocecirc jaacute leu Joycersquo podemos achar engraccedilada a

pergunta ldquoAlgueacutem jaacute traduziu Finnegans wakerdquo Traduziu de que liacutengua para

que outra Se como afirmam alguns autores Joyce fragmentou quebrou

desmantelou a liacutengua inglesa o tradutor teraacute tambeacutem que compor um texto

desmantelando sua liacutenguardquo (ESTEVES 1999 p 83) A liacutengua portuguesa eacute

entatildeo invadida mdash natildeo invalidada mas povoada mdash- por um texto wakiano em

vez de prestar-se ao trabalho de verter de caacute para laacute eacute tambeacutem como o inglecircs

o foi alterada habitada pela literatura que a torce e a desorienta Uma enxurrada

invade com correnteza violenta a liacutengua para a qual se verte enquanto a

linguagem segue o fluxo que natildeo eacute margeado por delimitaccedilotildees gramaticais mas

ao contraacuterio gera a erosatildeo dessas fronteiras

73

Comparando as duas traduccedilotildees do primeiro fragmento de Finnegans

wake das ediccedilotildees supracitadas podemos perceber como versotildees de um texto

tatildeo radical que optam por soluccedilotildees tradutoacuterias distintas resultam em dois textos

consideravelmente diferentes entre si ainda que ambas partam do princiacutepio de

serem traduccedilotildees para a liacutengua portuguesa e que tenham sido feitas por

brasileiros Na primeira linha por exemplo

riverrun past Eve and Adamrsquos (FW 31)

Observa-se que ldquopast _____rdquo (o termo past seguido de um complemento

direto portanto) pode significar algo como ldquoapoacutesrdquo em portuguecircs poreacutem tanto

temporalmente referindo-se a uma sequecircncia cronoloacutegica quanto

espacialmente indicando uma passagem no caso pela igreja Adam and Eve

em Dublin A inversatildeo no nome do local indica uma subversatildeo e portanto uma

impossibilidade de se decidir entre o sentido de passar pela igreja ou de passar

o tempo de Adatildeo e Eva indicado tambeacutem pelo termo ldquopastrdquo que carrega traccedilos

semacircnticos relacionados a tempo A demanda da coexistecircncia dessas duas

possibilidades portanto eacute um desafio tradutoacuterio que se impotildee jaacute no primeiro

periacuteodo da obra A traduccedilatildeo de Augusto de Campos opta por direcionar o olhar

agrave ideia temporal

riocorrente depois de Eva e Adatildeo (CAMPOS 2001 p 41)

Aleacutem do uso do termo ldquodepoisrdquo tambeacutem relacionado a tempo

prioritariamente como o ldquopastrdquo do texto de partida mas tambeacutem possiacutevel de se

referir ao deslocamento no espaccedilo a ausecircncia de artigo antes de ldquoEva e Adatildeordquo

esconderia a possibilidade de pensar no local na construccedilatildeo mdash na igreja

especiacutefica (algo que em inglecircs jaacute que natildeo admitiria artigo eacute indicado pelo uso

de apoacutestrofe + ldquosrdquo do possessivo) Assim poderia ser talvez mais imediato

74

pensar em ldquoEva e Adatildeordquo como algo que seja mais que somente os dois

personagens biacuteblicos se estivesse escrito digamos ldquodepois da Eva e Adatildeordquo de

forma que o artigo indicasse haver uma elipse (funccedilatildeo que eacute cumprida no texto

de Joyce pelo possessivo marcado com lsquos)

Quanto agrave opccedilatildeo posterior de Donaldo Schuumller (2002) perlustrando uma

outra via tradutoacuteria pode-se dizer que visa explicitar essa possibilidade de leitura

mais difiacutecil de ser captada mdash especialmente pelo leitor natildeo irlandecircs que natildeo teraacute

a referecircncia do nome dessa igreja em mente e tirando a viacutergula

rolarriuanna e passa por Nossenhora drsquoOhmemrsquos

Manteve-se entatildeo na traduccedilatildeo de Schuumller a referecircncia ao catolicismo

ainda que agora seja agrave Nossa Senhora do Oacute A opccedilatildeo aqui trazendo agrave sentenccedila

uma imagem relacionada agrave praacutetica religiosa na Peniacutensula Ibeacuterica e no Brasil foi

a de ser fiel ao ldquoespiacuteritordquo joyciano mdash no termo dos irmatildeos Campos herdado da

ideia de Ezra Pound mdash no que se refere agrave proposta de universalidade a despeito

das referecircncias a uma cidade especiacutefica Finnegans wake faz do mapa de Dublin

uma referecircncia a tudo aquilo que ultrapassa quaisquer limites geograacuteficos Haacute

em Salvador no bairro de Paripe uma Igreja de Nossa Senhora do Oacute uma das

primeiras paroacutequias fundadas na colocircnia portuguesa data do seacuteculo XVI O

marco iniciaacutetico de Adatildeo e Eva isto eacute a semacircntica do ab initio se reverbera

nessa marcaccedilatildeo histoacuterica em territoacuterio brasileiro Deve-se lembrar que a

traduccedilatildeo por ldquoNossenhora d`Ohmemrsquosrdquo natildeo se amarra a esse ponto geograacutefico

uma vez que existem diversas paroacutequias dedicadas a essa mesma Santa por

todo o Brasil em Portugal e na Espanha Podemos perceber ademais nessa

mesma expressatildeo que traduziria a princiacutepio um mero nome de igreja mdash em

Joyce nada eacute meramente um nome mdash a presenccedila do personagem HCE todos

os homens Here Comes Everybody (entre tantos outros arrolamentos) mostra-

se na aglutinaccedilatildeo de Oacute com Homem = Ohmem que reverbera ainda um

possiacutevel ldquoameacutemrdquo A viacutergula apoacutes riverrun foi trocada pela conjunccedilatildeo aditiva mas

75

a viacutergula apoacutes Adamrsquos manteve-se a mesma apoacutes Ohmemrsquos que foi grafado com

ldquomrdquo no final e apoacutestrofe + s assim como eacute o nome masculino o de Adatildeo em

inglecircs

A respeito das referecircncias presentes na obra do escritor irlandecircs Donaldo

Schuumller diz ldquoNatildeo haacute paacutegina em FW sem evocaccedilotildees literaacuterias mdash as biacuteblicas

superam todas mdash como se Joyce quisesse abarcar tudo o que se escreveu

fazendo de todos os textos um livro soacuterdquo (SCHUumlLER 2004 p 20) Esse ideal

extremo de condensaccedilatildeo traz uma possibilidade ou um anseio de superaccedilatildeo do

tempo reunindo todas as obras jaacute escritas em uma soacute supera-se o que o tempo

apaga o que a distacircncia cronoloacutegica segrega A literatura pode ser pensada

entatildeo em seu caraacuteter trans-histoacuterico como afirma o fenomenoacutelogo francecircs Paul

Ricoeur em Tempo e narrativa na medida em que se eleva sobre as divisotildees do

tempo histoacuterico e cronoloacutegico de modo que se faz de toda a histoacuteria da literatura

um acontecimento contemporacircneo discorrendo sobre o tempo do calendaacuterio

ldquoentre o tempo vivido e o tempo universalrdquo com Benveniste a partir das noccedilotildees

de tempo linguiacutestico

Contudo embora a contagem do tempo do calendaacuterio esteja apoiada nos fenocircmenos astronocircmicos que datildeo sentido agrave noccedilatildeo de tempo fiacutesico o princiacutepio da divisatildeo do tempo do calendaacuterio escapa agrave fiacutesica e agrave astronomia () A originalidade que o tempo axial confere ao tempo do calendaacuterio autoriza a declarar este uacuteltimo ldquoexteriorrdquo tanto ao tempo fiacutesico como ao tempo vivido Por um lado todos os instantes satildeo candidatos legiacutetimos ao papel de momento axial Por outro natildeo haacute nada que diga que determinado dia do calendaacuterio tomado em si mesmo eacute passado presente ou futuro () Para ter presente como tambeacutem aprendemos com Benveniste eacute preciso que algueacutem fale o presente eacute o discurso que o enuncia para chegar ao tempo vivido a partir do tempo crocircnico eacute portanto preciso passar pelo tempo linguiacutestico referido ao discurso eacute por isso que determinada data completa e expliacutecita natildeo pode ser dita nem futura nem passada se ignorarmos a data da enunciaccedilatildeo que a pronuncia (RICOEUR 2012 pp182-184)

De alguma maneira a Odisseia de Homero eacute passiacutevel de ser entendida

contiguamente ao Ulysses de Joyce assim como ocorreria entatildeo com as

referecircncias contidas em Finnegans wake desde as biacuteblicas passando por

Tristatildeo e Isolda lendas irlandesas e tantas outras referecircncias histoacuterico-culturais

76

Um eterno retorno na literatura em vez de uma histoacuteria literaacuteria linear ou

perioacutedica os efeitos de uma obra natildeo tecircm iniacutecio ou fim mas engendram um

impacto que se espirala alastra-se atraveacutes do tempo sem uma chegada

O texto lanccedilado agrave traduccedilatildeo atinge em concretude a possibilidade de seu

desdobramento multiplicado agrave medida que vaacuterias traduccedilotildees coexistam Haver

mais de uma traduccedilatildeo para um mesmo fragmento de Finnegans wake ou para

qualquer outro texto literaacuterio soacute adiciona em vez de se anularem ou se

contradizerem muito mais provavelmente se complementam Seratildeo distintas por

mais parecidas que sejam transformando o texto de partida em variados outros

que natildeo lhe satildeo alheios tampouco lhe equivalem Traduzir eacute frequentemente

entendida em senso comum como uma atividade verbal geradora de equidade

como o transportar das letras de um idioma a outro Intercambiar idiomas no

entanto implica a mudanccedila de paradigmas mdash natildeo apenas pela existecircncia de

fenocircmenos linguiacutesticos relacionados a certa constituiccedilatildeo social e cultural que

existem e variam mesmo em um soacute idioma mas tambeacutem de acordo com os

diferentes paracircmetros (no sentido chomskyano) isto eacute possibilidades efetivas

de expressatildeo que a organizaccedilatildeo de determinado sistema verbal proporciona

Paralelamente ao ipsis litteris portanto compreendemos a traduccedilatildeo como uma

(tentativa de) equivalecircncia imperfeita a priori mdash ou em vez de equidade como

uma renovaccedilatildeo ou um desdobramento em tese infinito Isso sem que perda de

vista que haacute como diz Benjamin uma tangecircncia na qual a relaccedilatildeo entre o texto

de partida e a sua traduccedilatildeo se relacionam sem que haja uma transparecircncia ou

um espelhamento entre os dois um sobre o outro ou um frente ao outro mas

sim uma uniatildeo tangencial de dois textos distintos

Tendo em mente esses procedimentos e o exemplo dos brilhantes

resultados do trabalho dos irmatildeos Campos e do de Schuumller ensejaria a

pergunta uma boa traduccedilatildeo deve entender o ato tradutoacuterio dessa forma

disseminadora para produzir algo tatildeo rico quanto se afirma que uma traduccedilatildeo

pode alcanccedilar devendo ansiar por tal resultado Ou em outras palavras a

traduccedilatildeo eacute tudo isso ou sob certas condiccedilotildees demarcadas concernentes a uma

metodologia e a uma postura diante de sua feitura pode secirc-lo A mesma

pergunta permanece pairando a respeito da arte e da definiccedilatildeo de texto literaacuterio

77

A busca por saber que texto eacute ldquoboardquo literatura e que texto sequer eacute ldquoliteraacuteriordquo

afora a prova do tempo que inclui ou exclui obras de um cacircnone atrai diversas

respostas O que podemos ratificar eacute que as traduccedilotildees que partam da noccedilatildeo de

ato comunicativo de exegese una de uma interpretaccedilatildeo fechada do texto ainda

que natildeo tenham como objetivo transparecer algo de incomunicaacutevel do texto

literaacuterio poderatildeo porventura fazecirc-lo mdash como que carregando algo do texto de

partida sem nem perceber Ou se pensarmos de maneira um tanto mais

pessimista apenas destruiratildeo a relaccedilatildeo ideal eteacuterea e fugitiva com o texto de

partida natildeo sendo fiel a seu espiacuterito e ao que faz dele uma peccedila de arte e

funcionaratildeo como exerciacutecio de traduccedilatildeo intentando sinoniacutemia impossiacutevel e

concretizando mera paraacutefrase que talvez extirpe o caraacuteter literaacuterio artiacutestico que

havia outrora no texto de partida

Em ldquoUntranslatable yourdquo Shireen Patell sintetiza um caraacuteter duplo do

trabalho de traduccedilatildeo ldquoThe task of the translator () is at once an act of mourning

and na ethical practice because it is a task dictated by an absolute alterity that

signals both loss and law without calculusrdquo (PATELL 2005 p 899)26 Patell

lembra ainda Derrida no que diz respeito ao fato de que a traduccedilatildeo natildeo eacute uma

relaccedilatildeo intersubjetiva ou interpessoal mas grafemaacutetica Haacute uma diferenccedila entre

a assinatura e quem assina no caso da traduccedilatildeo essa diferenccedila se explicita na

distacircncia entre o tradutor e aquilo com o que se compromete em nome de algo

o texto e a assinatura tecircm sobrevida Ainda que haja uma dificuldade em

determinar a autoria de um texto traduzido se autor ou tradutor ou se uma

combinaccedilatildeo emerge uma assinatura nova

As mesmas perguntas a respeito da ilegibilidade de Finnegans wake se

fazem quanto agrave sua traduzibilidade ou agraves possibilidades tradutoacuterias que pode

oferecer O fato eacute que o texto possui uma riqueza nesse sentido tendo sido

produzidas excelentes traduccedilotildees e havendo ainda uma proficuidade para novas

tentativas Traduzido por Augusto de Campos Haroldo de Campos Donaldo

Schuumller e tantos outros mais que possam ter se aventurado bem como

tangencialmente por Caetano Galindo que traduziu Finnrsquos Hotel texto de Joyce

26 ldquoA tarefa doa tradutora eacute ao mesmo tempo um ato de luto e uma praacutetica eacutetica porque eacute uma tarefa comandada por uma alteridade absoluta que assinala tanto perda quanto lei sem caacutelculordquo

78

escrito entre Finnegans wake e Ulysses que parece ter sido uma espeacutecie de

rascunho do que seria o Wake ou talvez uma obra independente com algumas

pontes ou treinos ou inspiraccedilotildees de Joyce sobre o trabalho de traduzir Joyce

em Finnrsquos hotel (2014) diz Galindo ldquo[Joyce] Cobra que vocecirc fuce em cantos do

portuguecircs que normalmente ficam ali soacute pegando poacute Eacute em suma um imenso

prazer para quem tem esse tipo de perversatildeordquo (p 11) mdash e aqui lembramos o que

diz Seamus Deane excerto jaacute citado em capiacutetulo anterior ldquo[The book] converts

itself into English and perverts itself from Englishrdquo (DEANE 2000 p viii) Tanto

a escrita de Joyce quanto a traduccedilatildeo de seu texto sendo perversotildees do idioma

(ou de idiomas) natildeo poderiam caber em definiccedilotildees de traduccedilatildeo como

reproduccedilatildeo exata pois exige torccedilotildees para que se exprima ldquoconteuacutedo essencialrdquo

Assim como os exemplos tradutoacuterios aqui citados podem relativizar certas

afirmaccedilotildees se considerarmos em vez deles traduccedilotildees que natildeo tenham sido

executadas com o mesmo esmero o texto literaacuterio de partida aqui referenciado

tem a mesma consequecircncia Finnegans wake se caracteriza como uma literatura

considerada radical mdash por vezes foi considerado texto ilegiacutevel e subestimado

como mera brincadeira intelectual mdash e dessa forma eacute paradigma ideal para

exemplificar o caraacuteter eteacutereo que propomos como o que um texto tem de

intraduziacutevel No entanto como dito anteriormente o que se entende por literaacuterio

em Finnegans wake vale para todo e qualquer texto-arte poesia romancepoema

etc independentemente do gecircnero literaacuterio

A problemaacutetica dos nomes proacuteprios em Finnegans wake pontua uma

dificuldade peculiar em sua traduccedilatildeo Os nomes das personagens mudam a todo

o tempo sem haver qualquer previsibilidade ainda que sempre haja pistas para

que o leitor reconheccedila as relaccedilotildees Poder-se-ia dizer que natildeo somente os nomes

sofrem mutaccedilotildees mas os proacuteprios seres HCE e ALP aparecem em siglas em

frases diversas enquanto Isobel tem sua vogal trocada ou eacute chamada por

variaccedilotildees diversas de seu apelido Issy ou na forma de Nuvoletta Shem e

Shaun mudam para combinaccedilotildees ainda mais distantes como Mutt e Jute Burrus

e Caseous Mercius e Justius Dolph e Kev sempre na reminiscecircncia do duplo

ambivalente Essas mudanccedilas de assinaturas reverberam a condiccedilatildeo mesma

das personagens no que estiver acontecendo a cada momento

79

Traduzir eacute natildeo solidificar mdash natildeo haacute traduccedilatildeo uacuteltima ainda que possa haver

uma melhor que outra(s) mdash mas lanccedilar jogar um jogo de azar aposta-se em

uma possibilidade existente entre infindas outras e se destrinccedila o resultado

Seraacute acertado eacute provaacutevel ainda que natildeo seja Poderia ser 1 mas foi 2 Seria

igual se fosse 3 mdash igual mas diferente Tal entendimento natildeo resolve a traduccedilatildeo

natildeo a define de forma a esquecermos os problemas que acarreta Ao contraacuterio

entendecirc-la como um enredamento problemaacutetico antes de tudo permite fundaacute-la

como texto-fonte de discussatildeo tanto quanto seu texto de partida Os noacutes

tradutoacuterios deixam de secirc-lo exclusivamente para em vez disso enriquecerem

toda a constelaccedilatildeo do texto (o texto de partida e suas traduccedilotildees coexistentes)

especialmente se literaacuterio filosoacutefico ou de forma geral ensaiacutestico adicionando

discussatildeo no proacuteprio corpus do que eacute posto em pauta Pode-se ler a traduccedilatildeo

como criacutetica como ensaio como resenha como resumo como paraacutefrase ela

pode transparecer todas essas formas de expressatildeo de um texto sendo ela

mesma outro texto em vez de gecircnero objetivo Uma (boa) traduccedilatildeo condensa

uma paideuma espremendo uma impressatildeo ao mesmo tempo em que exprime

uma compreensatildeo A eventual dificuldade existente em se valorar uma obra

literaacuteria como boa (ou mesmo como literaacuteria) pode ser a mesma de se valorar a

traduccedilatildeo mas seus valores podem variar de acordo com as pautas que propotildee

com as suas premissas aleacutem de ela mesma transparecer uma certa leitura ou

visatildeo do texto de partida atraveacutes das decisotildees tradutoacuterias e das criaccedilotildees que oa

tradutora possa se permitir ao trabalhar (sobre) o texto

Sem desconsiderar dificuldades especiacuteficas inerentes e inegaacuteveis ao texto

de James Joyce dilemas tradutoacuterios no Wake podem ser dilemas tradutoacuterios

compartilhados em geral por toda e qualquer empreitada de traduccedilatildeo de textos

escriturais A literatura em geral parecendo mais ou menos complexa mais ou

menos legiacutevel e compreensiacutevel demanda o cuidado detalhado e rigoroso e por

isso impotildee dificuldades incontornaacuteveis e em verdade sem soluccedilatildeo que as

extermine por mais que se tente traduzir de diversas maneiras e por mais notas

de rodapeacute que se preencham Referindo-nos especificamente ao proacuteprio

Finnegans wake citamos novamente o texto de Shireen Patell mdash em que ela fala

sobre todo e qualquer texto possivelmente intraduziacutevel

80

What cannot be translated calls for the future translations that perpetually reach toward but can only trace an oblique if missed touch () Absolute untranslatability is the silent articulation of the absent ideality of translation that nonetheless inspires translation figuration writing This absolute translatability is in and of the language itself (PATELL 2005 p 901)27

Ademais mesmo admitindo certa dificuldade especiacutefica inerente ao

Finnegans wake seja entre a traduccedilatildeo de nomes de personagens seja na dos

trovotildees de cem letras que povoam todo o livro mdash e que frequentemente satildeo

mantidos sem traduccedilatildeo mdash defende-se aqui uma postura necessaacuteria diante de

qualquer obra literaacuteria Pode-se evocar aqui um trecho de Jacques Derrida em

seu livro De la grammatologie discorrendo sobre as afirmaccedilotildees a respeito da

linguagem de Jean-Jacques Rousseau no texto ldquoGecircnese e escritura do Essai sur

lrsquooriginerdquo ldquoNatildeo haveraacute nem uma linha histoacuterica nem um quadro imoacutevel das

liacutenguas () As liacutenguas satildeo semeadasrdquo (DERRIDA 2011 p 263) Essa citaccedilatildeo

pode contribuir aqui como uma explicaccedilatildeo do dinamismo babeacutelico do proacuteprio

Wake que lida com liacutenguas sem delimitaccedilatildeo suficientemente inseridas em

fluidez de hibridizaccedilatildeo e fusatildeo sendo semeadas e assim portanto germinando

no feacutertil suporte terreno do texto Estende-se poreacutem a qualquer escritura que

contenha em si uma gagueira para falar com Gilles Deleuze ou qualquer texto

feito a partir de uma liacutengua contendo algum niacutevel de estranhamento diante da

proacutepria liacutengua atuando na sua fronteira Ainda que natildeo haja o trabalho de

confronto ou um fenocircmeno de clash entre diferentes idiomas uma liacutengua jamais

estaacute ausente de relaccedilotildees com outras liacutenguas que vieram antes depois que

ocuparam terras proacuteximas ou distantes Mesmo que natildeo sejam fundidos

explicitamente dezenas de diferentes idiomas como faz Joyce no Wake

nenhum texto eacute isolado em sua liacutengua

27 ldquoO que natildeo pode ser traduzido demanda futuras traduccedilotildees que perpetuamente se direcionam mas soacute podem rastrear um obliacutequo ou mesmo perdido toque () Intraduzibilidade absoluta eacute a articulaccedilatildeo silenciosa que inspira poreacutem traduccedilatildeo figuraccedilatildeo escrita Essa absoluta intraduzibilidade estaacute na e eacute da liacutengua ela mesmardquo

81

Tal postura tradutoacuteria jaacute seria suficiente para nos apartar do labor braccedilal

de buscar definiccedilotildees dicionarizadas como sinocircnimo de traduccedilatildeo Essa maneira

de ida ao texto se relaciona natildeo somente com o resultado que surgiraacute da

traduccedilatildeo mas comeccedila na forma de leitura do texto de partida na maneira como

eacute abordado pela primeira vez mdash natildeo somente pelo leitor que lecirc com intenccedilatildeo e

olhos de tradutor mas por qualquer outro Se o que se busca eacute a univocidade a

definiccedilatildeo a anaacutelise estrutural perfeita com blocos conceituais relacionados a

cada porccedilatildeo do texto e metaacuteforas delineadas a serem circuladas a babelizaccedilatildeo

do texto seraacute entatildeo deixada de lado A traduccedilatildeo pautada por uma simplificaccedilatildeo

ou univocidade semacircntica por reestruturaccedilatildeo deriva de uma leitura

hermenecircutica Se a gagueira do texto de partida eacute ignorada certamente natildeo

apareceraacute nem transpareceraacute qualquer tipo de gagueira no texto derivado

ldquotraduzidordquo a gagueira que habita a traduccedilatildeo eacute resultado da relaccedilatildeo primaacuteria mdash

no sentido de primeira mdash do tradutor com o texto que se propotildee a traduzir recriar

ou transcriar em uma postura de leitor disposto a vivecirc-lo em vez de entendecirc-lo

Disposto a ter uma experiecircncia com sua linguagem muito antes de tencionar

destrinchaacute-lo

CAPIacuteTULO III

LEITURA LUTO ELIPSE

83

Ao pensarmos em Finnegans wake seja tendo um conhecimento distante

fragmentado ou superficial a seu respeito seja apoacutes tentativas de aproximaccedilatildeo

da obra uma seacuterie de questotildees inevitavelmente nos consomem em verdade

continuam a aparecer mesmo durante a entrega a uma leitura profunda desse

texto impossiacutevel de se explorar de forma acelerada ou submetida a prazos

dados os obstaacuteculos que nos prendem por um tempo sempre maior que o

previsto em um paraacutegrafo em uma linha ou em uma soacute enigmaacutetica palavra Uma

leitura ceacutelere ainda que permita terminar de ler o livro integralmente eacute uma

leitura desperdiccedilada Em se tratando de Finnegans wake a concepccedilatildeo do livro

eacute clara quanto a mais valer o deter-se sobre uma linha que se mostre inebriante

do que o impaciente passar de paacuteginas insistentemente evocando uma leitura

fluida em velocidade que provavelmente teraacute sido forccedilada e pouco proveitosa

84

Essa escolha de Joyce aponta como sabemos e logicamente podemos

supor a estrutura circular do livro No entanto essa expressatildeo natildeo pode se

findar em si mesma sendo banalizada significando nada para aleacutem dela

Devemos antes de tudo questionar a esse respeito a fim de investigar o que

algumas anaacutelises afirmam como verdades que se apresentam integrais quando

de fato satildeo geradoras de problemas diversos Pergunta-se entatildeo quais as

implicaccedilotildees de uma estrutura circular Essa estrutura eacute verdadeiramente

possiacutevel em todos os aspectos que seriam forccedilosamente decorrentes de sua

concepccedilatildeo

Eacute oportuno relembrar aqui Umberto Eco citando Henri Pousseur que

indica caber ldquoao ouvinte colocar-se voluntariamente no centro de uma rede de

relaccedilotildees inexauriacuteveisrdquo (ECO 1989 p 49) natildeo havendo amarras que

determinem o caminho da leitura Uma espeacutecie de maior livre-arbiacutetrio se instala

necessariamente diante da falta de um caminho fechado como se em vez de

percorrer um corredor o leitor se encontrasse em um labirinto Esse labirinto eacute

claro foi projetado de modo que suas curvas e becos foram pelo menos ateacute

certo ponto tranquilamente previstos Com a multiplicidade de caminhos

oferecida nessa arquitetura no entanto em oposiccedilatildeo agrave unidade do caminho

linear haacute uma medida de imprevisibilidade por mais meticulosamente planejado

que esse labirinto seja a ordem de cada escolha do indiviacuteduo que vai percorrer

seu terreno

Outras referecircncias feitas por Umberto Eco se fazem necessaacuterias no que

concerne agrave porccedilatildeo fenomenoloacutegica de toda essa problemaacutetica Em uma leitura

desse tipo podemos considerar uma esquemaacutetica que envolva a consciecircncia do

sujeito-leitor diante da obra que aiacute eacute o que percebe como fenocircmeno mdash

consciecircncia que por ser instaacutevel isto eacute no sentido de uma consciecircncia natildeo-ideal

natildeo ser plenamente preacute-delimitada mas sim aberta a mutaccedilotildees imprevisiacuteveis e

que portanto natildeo nos permitiria calcular previamente todas as possibilidades de

interaccedilatildeo com a obra em um quadro finito e fechado Umberto Eco desenvolve

esse ponto com as seguintes observaccedilotildees

85

Assim um objeto natildeo somente apresenta diversas Abschattungen (ou perfis) mas satildeo possiacuteveis diversos pontos de vista sobre uma uacutenica Abschattung O objeto para ser definido deve ser transcendido em direccedilatildeo agrave seacuterie total da qual ele enquanto uma das possiacuteveis apariccedilotildees eacute membro Nesse sentido ao dualismo tradicional ser e parecer substitui-se uma bipolaridade de finito e infinito de tal modo que o infinito se potildee no proacuteprio coraccedilatildeo do finito () O problema da relaccedilatildeo do fenocircmeno com seu fundamento ontoloacutegico dentro de uma perspectiva de abertura perceptiva transforma-se no problema de relaccedilatildeo do fenocircmeno com a plurivalecircncia das percepccedilotildees que dele podemos ter (Ibid pp 58-59)

Dessa maneira no esteio dessas afirmaccedilotildees se noacutes tomarmos em

consideraccedilatildeo as possibilidades de que uma obra como Finnegans wake

demande natildeo somente uma apreciaccedilatildeo passiva decodificando primariamente o

texto mas acima de tudo uma interaccedilatildeo de caraacuteter ateacute mesmo mais executivo

se assim pudeacutessemos dizer seria necessaacuterio no miacutenimo considerar que essa

posiccedilatildeo ativa seraacute ocupada por um leitor que tem sua proacutepria bagagem subjetiva

Natildeo colocamos em questatildeo aqui uma bagagem de conhecimento objetivo

necessaacuterio para um entendimento de leitura nem nada nesse esteio ao

contraacuterio ao inveacutes de uma espeacutecie de elitizaccedilatildeo um acesso democraacutetico permite

que qualquer indiviacuteduo se ponha agrave fruiccedilatildeo da literatura da maneira como puder

acessaacute-la O que levamos em conta eacute o caraacuteter fenomenoloacutegico dessa interaccedilatildeo

observando que essa interaccedilatildeo com a obra teraacute algo de uacutenico para cada

consciecircncia que a perceba e que tome atitudes frente a ela Umberto Eco

continuando seu raciociacutenio a respeito desse fundamento ontoloacutegico na abertura

perceptiva cita excerto de Pheacutenomenologie de la perception de Maurice

Merleau-Ponty

A contradiccedilatildeo que encontramos entre a realidade do mundo e seu inacabamento eacute a proacutepria contradiccedilatildeo entre a ubiquidade da consciecircncia e seu engajar-se num campo de presenccedila () A consciecircncia que passa pelo lugar da clareza eacute ao contraacuterio o proacuteprio lugar do equiacutevoco () Eacute portanto essencial agrave coisa e ao mundo apresentarem-se como ldquoabertosrdquo prometer sempre ldquoalgo mais a verrdquo (MERLEAU-PONTY apud ECO 1989 p 59)

86

Estruturalmente poderiacuteamos entatildeo esquematizar trecircs possibilidades de

leitura do Finnegans wake todas coerentes com a consideraccedilatildeo de uma

estrutura circular A primeira eacute a despeito da assunccedilatildeo da circularidade a que

se pode fazer seguindo a ordem da numeraccedilatildeo dos fragmentos Essa eacute uma

leitura linear tanto quanto uma segunda possibilidade em que se acessaria a

obra de qualquer fragmento ignorando a determinaccedilatildeo do iniacutecio do livro com o

nuacutemero 1 e se seguiria a leitura a partir da paacutegina escolhida na ordem colocada

ndash escolhendo por exemplo o fragmento 429 para ser o primeiro e seguir a leitura

ateacute o de nuacutemero 628 em seguida do nuacutemero 1 ateacute o nuacutemero 428 Essas duas

possibilidades diferem radicalmente de uma terceira que seria a de ler os

fragmentos em qualquer ordem anarquizando completamente a obra e tirando

dela boa parte do sentido Ler Finnegans wake fora de ordem eacute o mesmo que ler

qualquer outro livro de que se tem conhecimento fora de ordem assim como eacute

o mesmo que percorrer um ciacuterculo dando passos adiante voltando seguindo

desviando eacute uma leitura anaacuterquica que extermina o que a obra tem a oferecer

como obra una e total

Excluindo entatildeo a terceira forma de leitura esclarecemos que os

fragmentos natildeo satildeo absolutamente isolados entre si e nem intercambiaacuteveis mdash

ao menos natildeo sem seacuterias consequecircncias para a coerecircncia da obra e para o

acesso a ela como foi concebida em sua integridade Os fragmentos guardam

tanta independecircncia entre si quanto as paacuteginas do romance mais tradicional o

fazem quase nenhuma Eacute possiacutevel ler uma paacutegina do Wake e dar-se por

satisfeito tanto quanto eacute possiacutevel ler uma paacutegina de qualquer livro e saber que

aquilo eacute apenas uma amostra um pedaccedilo uma parte separada do todo que lhe

confere coerecircncia como obra

As duas primeiras formas de leitura portanto parecem-nos similares No

entanto acessar uma obra a partir de uma paacutegina ou a partir de outra paacutegina

ainda que seja uma obra circular isto eacute sem iniacutecio meio e fim definidos resulta

em duas leituras absolutamente diferentes No entanto aqui tem-se a diferenccedila

crucial entre o Wake e qualquer outro livro uma estrutura circular implica

necessariamente na diluiccedilatildeo do segmento temporal fechado isto eacute numa

abertura em que qualquer paacutegina do livro pode ser parte de um iniacutecio de um

87

meio ou de um fim Afinal o livro pode ser livre dessas divisotildees em sua estrutura

mas o tempo da leitura jamais seraacute Sempre temos de ler em alguma ordem e

algum trecho inicia esse processo algum se faz no meio e algum trecho conclui

nosso percurso como leitores Caso pensemos portanto em multiplicar as

possibilidades de acesso ao Finnegans wake ateacute que sejam consideradas todas

as possibilidades de leitura teriacuteamos de lidar com nada menos que seiscentas

e vinte e oito formas de acesso agrave obra no miacutenimo

Mostra-se impossiacutevel eacute evidente experimentar todas essas formas de

acesso Considerando que houvesse o tempo necessaacuterio deveriacuteamos levar em

conta ainda a contaminaccedilatildeo inevitaacutevel no processo isto eacute a certo ponto jaacute se

saberia o que esperar e a mudanccedila na ordem natildeo teria o mesmo efeito que teria

se acessada em uma primeira leitura Uma vez lido em uma certa ordem o livro

jamais seraacute redescoberto atraveacutes de outra ao menos natildeo como se nunca tivesse

sido lindo anteriormente qualquer que seja a nova ordem

O que nos eacute possiacutevel questionar eacute ateacute que ponto essa circularidade existe

de fato tentando expor natildeo apenas a forma como ela eacute concebida e a partir de

que modelos mas tambeacutem as consequecircncias de seu uso e se a circularidade se

daacute apenas idealmente ou se eacute de fato executada isto eacute temos de investigar se

eacute perceptiacutevel e constataacutevel considerando o acesso ao livro por qualquer uma de

suas paacuteginas O que origina a elaboraccedilatildeo dessa estrutura em Finnegans wake

eacute como se sabe ldquoVicorsquos recurrent cycle at once repetitious and various mdash like

the Wake itselfrdquo e Tindall nos chama a atenccedilatildeo ainda para o fato de que ldquoJoycersquos

hieroglyph for the Wake and its title is a square its sides no doubt the quadrants

a little squashed of Vicorsquos wheelrdquo28 (TINDALL 1969 p 10) Mesmo que a forma

geomeacutetrica escolhida por Joyce em seus desenhos na elaboraccedilatildeo do Wake

tenha sido natildeo o ciacuterculo mas o quadrado isso se explica pela escolha por quatro

partes e ainda assim se relaciona agrave circularidade viconiana Nesse caso a forma

geomeacutetrica ter veacutertices ou natildeo eacute irrelevante mdash Joyce chega a preferir um cubo

28 ldquoO ciclo recorrente de Vico concomitantemente repetitivo e variado ndash como o proacuteprio Wakerdquo e ldquoo hieroacuteglifo de Joyce para o Wake e seu tiacutetulo eacute um quadrado ainda que seus lados sem duacutevidas satildeo os quadrantes um pouco distorcidos da da roda de Vicordquo

88

em alguns momentos mdash uma vez que se poderia observar uma espeacutecie de

ldquocircularidaderdquo tambeacutem nessas outras formas ao circundaacute-las especialmente

enfatizando um periacutemetro percorrido em repeticcedilatildeo ciacuteclica que retorna a um

ponto

A ideia desse retorno a um ponto eacute outro problema basilar derivado da

aceitaccedilatildeo do princiacutepio da circularidade de Finnegans wake Deve-se lembrar que

nem o ricorso de Vico nem a circularidade da obra de Joyce resultam no retorno

ao mesmo ponto pois em ambos os casos o ponto original eacute irrecuperaacutevel

Depois de ler todas as sentenccedilas de Finnegans wake a continuaccedilatildeo da uacuteltima

frase (dizendo aqui ldquouacuteltimardquo eacute claro deixando de lado a relativizaccedilatildeo da ordem

que acabamos de engendrar e tomando portanto a ordem linear numeacuterica)

retorna ao mesmo ponto se pensarmos que retorna agrave paacutegina 1 essa paacutegina no

entanto jaacute natildeo eacute mais a mesma que se tinha quando se iniciou a leitura Assim

se daacute tambeacutem com o ciclo das idades proposto por Vico que serviu como

modelo para o Wake apoacutes o fim da Idade dos Deuses dos Heroacuteis e dos Homens

haacute um ricorso agrave Idade dos Deuses mdash no entanto eacute outra Idade dos Deuses que

estaacute se formando com aspectos gerais que a definem mas que natildeo estaacute

retrocedendo a uma mera repeticcedilatildeo Natildeo se tem uma maacutequina do tempo que vai

e vem atravessando as mesmas fases mas uma evoluccedilatildeo que evoca

circularidades heterogecircneas Uma figura recorrente eacute a do eco que remete ao

movimento de repeticcedilatildeo ciacuteclica e eacute executado tanto na sonoridade do proacuteprio

texto com rimas e aliteraccedilotildeesassonacircncias quanto tambeacutem por vezes citado

explicitamente ldquoThe echo is where in the back of the wodes callhim forthrdquo (FW

1263)29 O formato circular que natildeo supotildee repeticcedilatildeo eacute perceptiacutevel em outras

obras de Joyce Em Retrato Stephen frequentemente se apresenta preso em

linhas de raciociacutenio que parecem recair sobre si mesmas ou sobre um ponto

originaacuterio mas que engendram ainda assim deslocamento Mesmo em

Ulysses haacute evidentes formas de circularidade a comeccedilar pela jornada diaacuteria do

protagonista Leopold Bloom mas que natildeo insinua dias sempre iguais ateacute a

estrutura do monoacutelogo de Molly que reitera termos agrave medida que avanccedila

29 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoO eco eacute onde no fundo da florode que venhardquo

89

Apesar de a estruturaccedilatildeo circular ser aceita a priori por William York

Tindall como a base de Finnegans wake o estudioso estadunidense natildeo parece

considerar de fato as implicaccedilotildees desse ciacuterculo tomando apenas as suas

causas ou origens mas natildeo as consequecircncias de afirmaccedilatildeo dessa estrutura

Tindall afirma que o primeiro capiacutetulo eacute visivelmente uma introduccedilatildeo geral e o

uacuteltimo uma conclusatildeo com o diferencial de que abarca ainda a funccedilatildeo de aticcedilar

o leitor para ao retorno agrave primeira paacutegina Vemos entatildeo o problema loacutegico em

sua afirmaccedilatildeo se o trecho ldquofinalrdquo de Wake serve para levar o leitor ao fragmento

de nuacutemero 1 temos um trecho incumbido de algo que se parece com uma

espeacutecie de introduccedilatildeo a esse retorno ou que certamente tem alguma funccedilatildeo

muito distinta da de concluir York Tindall provavelmente entrevendo a

incoerecircncia no que afirma explica ldquoA general conclusion [the last chapter] and

a general introduction [the first one] parallel in function demand parallel

methodsrdquo30 (TINDALL 1969 p 305)

No entanto o que Tindall afirma haver de similar entre o primeiro e o

uacuteltimo capiacutetulos existe por todo o livro Haacute sequecircncias de retornos mdash no capiacutetulo

4 depois no oitavo e assim por diante O mesmo vale para as trecircs idades que

formam com o ricorso os quatro lados desse percurso que natildeo se repetem

mas reaparecem distintos ainda que apareccedilam em ordem sempre esperada isto

eacute estejam alocados em trechos previsiacuteveis devidamente selecionados para eles

dentro da grande ordem de todas as fases O acesso entatildeo a depender de que

fragmento serviraacute como o iniacutecio pode se dar em um fragmento elaborado nos

moldes da Idade dos Deuses dos Heroacuteis ou dos Homens ou ainda do ricorso

mas seraacute sucedido de uma ordem invariaacutevel Que haveraacute diferenccedilas entre uma

leitura que se inicie em um capiacutetulo escrito de uma forma dentro de certa

estrutura basilar e uma que se inicie por outro que tenha outra estrutura natildeo

haacute duacutevidas se a leitura do todo do livro for possiacutevel de todos os fragmentos

poreacutem a circularidade estaraacute comprovada O livro que se lecirc entatildeo tem de ser o

mesmo somente acessado em outra ordem e portanto a partir de uma

30 ldquoUma conclusatildeo geral [o uacuteltimo capiacutetulo] e uma introduccedilatildeo geral [o primeiro] paralelas em funccedilatildeo demandam paralelismo em meacutetodordquo

90

sequecircncia distinta de leitura mas que permita concluir a leitura assim como a

tentativa que comeccedila do fragmento 1 tambeacutem propicia

A figura espectral se mostra deveras pertinente Wake se diferencia

tambeacutem pela formaccedilatildeo de uma polifonia especial que nos confunde natildeo apenas

em termos de natildeo saber que personagem estaacute falando agora mas ainda de

trazer as vozes dos mortos para se misturarem agraves dos vivos sem que se

intercalem mas efetivamente convivam mdash o que tambeacutem exige uma

compreensatildeo temporal absolutamente uacutenica em que em meio ainda a

possibilidades de porvir natildeo haacute separaccedilatildeo espaccedilo-temporal entre um suposto

agora e um suposto antes No livro James Joyce and the difference of language

Laurent Milesi diz

This evolution is thus inseparable from an increasing dissolution or ar leat problematization of neat entities like character and voice as well as the boundaries between them and consequently from the emergence of more polyphonic voices which in the lsquopollyloguersquo (FW 4709) or lsquodrama parapolylogicrsquo (FW 4745) of Finnegans wake will ultimately combine with shifting enunciative poles and a pliable linguistic medium to create erring discursive effects ascribable to a lsquosidersquo or lsquorolersquo ina many-faceted lsquocharacter complexrsquo (MILESI 2003 p 91)31

A estrutura circular e a referecircncia a figuras de diversos momentos

histoacutericos bem como a livros como o Livro dos mortos egiacutepcio ou o Livro de Kells

irlandecircs unem-se na dissoluccedilatildeo de fronteiras temporais Finnegans wake

certamente natildeo tem nem poderia pretender ter um momento (mesmo externo

histoacuterico) definido nem mesmo um tempo psicoloacutegico definido mdash que assumiria

a perspectiva da consciecircncia de uma personagem como sobressalente ditando

voz perspectiva contexto

31 ldquoEssa evoluccedilatildeo eacute entatildeo inseparaacutevel da crescente dissoluccedilatildeo ou ao menos problematizaccedilatildeo de entidades precisas como personagem e voz bem como das fronteiras entre elas e consequentemente da emergecircncia de mais vozes polifocircnicas que no lsquopollyloguersquo (FW 4709 ou lsquodrama parapolylogicrsquo (FW 4745) de Finnegans wake vatildeo por fim combinar com poacutelos enunciativos instaacuteveis e um meio linguiacutestico elaacutestico para criar efeitos discursivos errantes atribuiacuteveis a uma lsquofronteirarsquo ou lsquopapelrsquo em um mil-faces lsquocomplexo de personagemrsquordquo

91

Faz-se espectro ainda o todo da obra literaacuteria na medida em que natildeo se

sabe como ela seraacute executada pelo leitor que se depara com ela Como uma

partitura sem indicaccedilotildees precisas trazendo meras sugestotildees e portanto

inuacutemeras possibilidades de trocas Wake precisa ser executado mas pode secirc-lo

de diversas maneiras em diversas ordens Assim natildeo se tem uma imagem

niacutetida do que eacute o Finnegans wake mas primordialmente sabe-se o que ele pode

vir a ser em mais de uma possibilidade

A isso como jaacute foi exposto estaacute ligada uma temporalidade que poderaacute

operar diferentemente em cada execuccedilatildeo da partitura wakiana Uma oposiccedilatildeo

entre o tempo linear e o tempo ciacuteclico pode mostrar como a estrutura basilar do

Wake que se afasta da linearidade possibilita essa diversidade e o que isso

pode significar na tessitura textual e para uma leitura atenta ao escritural do

texto Explicando a diferenccedila entre tempo ciacuteclico e tempo linear o filoacutesofo Karl

Jaspers (1883-1969) diz

O ciclo do tempo visto como recorrecircncia eacute a imortalidade do que em tal ciclo se produz () A todo instante estaacute ligando o fim ao comeccedilo Vive no ciclo do eterno retorno Pode ocorrer que a distacircncia a separar o fim (morte) do comeccedilo (novo nascimento) seja imensa mas reduz-se a nada se a vida eacute revivida de maneira infinitamente repetitiva fazendo-se em tal sentido imortal () Inteiramente diverso eacute o que se passa com o tempo linear Tudo que eacute temporal eacute levado pelo tempo linear a um fim irremediaacutevel (JASPERS 2011 p 146)

A estrutura circular de Finnegans wake faz mais do que nos prender ao

livro-sem-fim traduz uma possibilidade de existecircncia fora do andamento do

tempo na pura temporalidade isto eacute naquilo que natildeo ultrapassa um presente

mas permanece nele Obriga-nos a estar no presente da leitura sem nos

desviarmos e sem conclusatildeo relendo e relendo e relendo Joyce nos obriga

mantendo-nos na atividade da leitura que nunca termina a cumprir a exigecircncia

que faz ao seu leitor Instalando o texto num eterno retorno transforma-se nessa

afirmaccedilatildeo da vida em que a morte jaacute natildeo ocupa o espaccedilo do esquecimento a

voz dos mortos ecoa entre os vivos sua presenccedila faz-se material a morte de

certa maneira aiacute jaacute natildeo existe

92

O tempo absoluto da concepccedilatildeo ciacuteclica que natildeo pode ser transposto se

opotildee ao tempo linear em que haacute resoluccedilatildeo transposiccedilatildeo um acontecimento

ultrapassa o outro um momento sucede o seguinte O apagamento do que fica

no passado soacute pode ser modificado pela soluccedilatildeo de decidir o que se grava na

histoacuteria Mesmo assim natildeo se recupera nada por inteiro sendo impossiacutevel uma

volta ao passado a memoacuteria evoca as reminiscecircncias que ocupam o tempo

presente apenas como resto incorpoacutereo como espectro O tempo absoluto se

faz de maneira inteiramente distinta Nas palavras de Jaspers nele ldquofaz-se aquilo

que se repete infinitamente mdash e permanece temporal () Tempo linear e tempo

ciacuteclico satildeo enigmas incompatiacuteveis () O tempo ciacuteclico torna possiacutevel a ideia do

lsquouma vez maisrsquo por meio do eterno retornordquo (Ibid p 147)

O tempo ciacuteclico do retorno tambeacutem se faz em espectros o retorno eacute

sempre o ldquouma vez maisrdquo poreacutem sempre singular jamais uma repeticcedilatildeo idecircntica

senatildeo recairia em uma simples hipoteacutetica volta ao passado do tempo

cronoloacutegico como uma espeacutecie de maacutequina do tempo construiacuteda no tempo

linear O retorno do tempo ciacuteclico natildeo se faz dessa maneira eacute um novo

acontecimento mas que se relaciona com algo jaacute ocorrido Se lermos o Wake

circularmente isto eacute repetidamente obedecendo agrave continuaccedilatildeo do uacuteltimo

fragmento no primeiro natildeo estaremos rebobinando nosso tempo mas tatildeo

somente fazendo uma nova leitura de uma mesma coisa um mesmo texto que

natildeo se alterou enquanto natildeo estaacutevamos olhando Haacute assim uma diferenccedila um

assombro do que se leu antes percorrendo o momento da releitura O tempo

ciacuteclico se faz entatildeo no seu retorno eterno de fantasmas

A palavra retorno no portuguecircs talvez natildeo seja tatildeo adequada justamente

por apagar essa diferenccedila ldquoretornarrdquo pressupotildee que se foi a algum lugar ao qual

se estaacute voltando indica entatildeo mais imediatamente o movimento do tempo

linear de maneira que se imagine uma volta na linha do tempo ao tempo

passado estanque em seu lugar No entanto ricorso termo de Giambattista Vico

se relaciona a curso agravequilo que flui parecendo entatildeo mais adequado agrave ideia do

tempo ciacuteclico em que as repeticcedilotildees satildeo novos acontecimentos Justifica-se aqui

a expressatildeo criada para intitular este trabalho que conjuga ldquofluirrdquo e ldquoricorsordquo para

explicitar esse caraacuteter no termo italiano de Vico

93

A maneira como esse engendramento ciacuteclico foi relido na filosofia

moderna com o eterno retorno de Friedrich Nietzsche indica ainda a

positividade dessa estrutura Como o fim de Ulysses eacute o ldquosimrdquo mdash e Joyce queria

que assim ele se mantivesse mesmo traduzido como a correspondecircncia a

respeito da traduccedilatildeo para o francecircs comprova em que Joyce pede para que o

fim seja tatildeo somente a palavra ldquosimrdquo mdash o ciclo coacutesmico reafirma o sim para o

mundo o cada vez novamente o novo deacutejagrave Eacute a accedilatildeo que natildeo se direciona a

uma finalizaccedilatildeo natildeo tende ao teacutermino mas agrave atividade plena contiacutenua ldquoO

mundo afirma-se por si tambeacutem na sua uniformidade que permanece a mesma

no decurso dos anos bendiz-se por si mesmo porque eacute aquilo que deve voltar

eternamente porque eacute o devir que natildeo conhece saciedade teacutedio nem fadigardquo

(Wille zur Macht ed 1901 sect 385)

A entrada na narrativa de Finnegans wake isto eacute o contato inaugural do

leitor com os acontecimentos narrativos eacute anunciada por uma queda ldquoThe fall bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhoun

awnskawntoohoohoordenenthurnukldquo Queda reverberante com repeticcedilotildees

silaacutebicas misturadas e a formaccedilatildeo desse conjunto de fonemas que natildeo eacute verbete

em nenhum idioma mas comporta idiomas diversos natildeo eacute um ponto de partida

da narrativa ndash natildeo haacute um primeiro acontecimento ou accedilatildeo mdash mas a queda na

narrativa que jaacute estaacute em curso como uma queda drsquoaacutegua anunciada no riverrun

a palavra de abertura da obra Assim a narrativa inicia-se jaacute iniciada

Apoacutes o riverrun diz-se ldquopast Eve and Adamrsquosrdquo Pode-se ler tendo em

mente que estamos passando em frente a Eve and Adamrsquos catedral em Dublin

ou que aquilo que seraacute narrado se situa temporalmente apoacutes Adatildeo e Eva ou

mesmo no passado do casal primaacuterio em tempos inefaacuteveis O tempo eacute fluido

talvez aparentemente caoacutetico mas apenas repensado reimaginado mdash

mudanccedilas de paracircmetros que pedem uma revisatildeo radical Isso tambeacutem

podemos dissecar no tiacutetulo que comporta o fim (fin no francecircs e finis no latim)

e a sua repeticcedilatildeo (-egan again mdash o proacuteprio eterno retorno) ou o fim de encontro

ao despertar (fin-egans (la) fin against + (the) Wake relacionando tambeacutem ao

nome do personagem Earwicker que em alematildeo eacute erwecker ldquoaquele que

despertardquo) ou ainda contra outro fim o veloacuterio outra traduccedilatildeo para wake

94

substantivo Como aponta Donaldo Schuumller ldquoA circularidade viconiana gira no

geral e nos detalhesrdquo (SCHUumlLER 2004 p 17)

Para William York Tindall o tempo eacute a mais importante mateacuteria desse

ldquoensaio sobre o homemrdquo de James Joyce ldquoRise and fall and rise again sleeping

and waking death and ressurrection sin and redemption conflict and

appeasement and above all time itself mdash saecula saeculorum mdash are the matter

of Joycersquos essay on manrdquo32 (TINDALL 1969 p 4) Tambeacutem caracteriza a obra

como a comeacutedia humana de Joyce ldquoNot only his essay on man the Wake is his

human comedyrdquo33 (Ibid p 7) Ao final de sua introduccedilatildeo Tindall afirma que seu

livro natildeo visa a uma apreensatildeo completa nem a ultimatos sobre a obra mas sim

a ser um suplemento dos estudos preacutevios ldquoAfter all what authority on the Wake

knows half of it Which half is the critical questionrdquo34 (Ibid pp 25-26)

O tempo em Finnegans wake destacado por Tindall cumpre papel vital

em toda a organizaccedilatildeo da obra aleacutem da estrutura circular em quatro partes que

Joyce emprega livremente das Idades do filoacutesofo Giambattista Vico mdash assim

como a Odisseia de Homero serve de base para Ulysses o Wake tem

correspondente nesse uacuteltimo caso no entanto Joyce parte de fonte filosoacutefica

em vez de literaacuteria Ainda no iniacutecio quando Harriet Weaver pareceu natildeo entender

e natildeo gostar do que leu do Work in progress Joyce ldquoinsistiu com ela para que

lesse a Scienza Nuova de Vico como com o Ulisses insistira em que lesse a

Odisseiardquo (ELLMANN 1989 p 695) Natildeo eacute soacute no cerne estrutural poreacutem que

podemos perceber a especificidade do tempo de um romancepoema plotless mdash

que se natildeo possui enredo natildeo possui portanto linha cronoloacutegica expliacutecita

Tindall pretende e tende a extrair o plot concatenando as cenas sempre com

uma possiacutevel visatildeo de causa e consequecircncia pontuando as personagens

nomeando-as e definindo-as Eventualmente sua tentativa recai contudo na

incontornaacutevel indefiniccedilatildeo

32 ldquoAscender e cair e ascender novamente dormir e despertar morte e ressureiccedilatildeo pecado e redenccedilatildeo conflito e conciliaccedilatildeo e acima de tudo o proacuteprio tempo mdash saecula saeculorum mdash satildeo a mateacuteria do ensaio de Joyce sobre o homemrdquo 33 ldquoNatildeo apenas seu ensaio sobre o ser humano o Wake eacute sua comeacutedia humanardquo 34 ldquoAfinal de contas que autoridade no Wake sabe metade do que se tem a saber sobre ele Qual metade eacute a pergunta fundamentalrdquo

95

Percebemos a dificuldade no exemplo do segundo capiacutetulo que eacute um dos

mais claros em termos de composiccedilatildeo de cena ou ao menos quanto ao

desenrolar das accedilotildees e seus agentes o que Tindall atribui ao fato de ter sido um

dos primeiros que Joyce escreveu ldquoMaybe he did not have time going over it to

complicate it according to his habitrdquo35 (Ibid p 57) Quanto a tempo e espaccedilo

contudo permanecemos na pluralidade mdash ou mais pertinente dizer na

ubiquidade Tomemos um entendimento primaacuterio da cena com o qual

poderiacuteamos depreender o enredo geral temos Earwicker (a essa altura jaacute

tivemos esclarecimentos sobre sua alcunha) no Phoenix Park em Dublin

surpreendido por um jovem que lhe pergunta as horas O garoto portava um

cilindro o que pode justificar que Earwicker (aqui lembramos Wecker alematildeo

para despertador ndash aquilo que daacute as horas) se sentiu ameaccedilado Defende-se

demonstrando culpa e natildeo responde com a precisatildeo que a pergunta

demandaria O deslocamento no tempo e no espaccedilo poreacutem ocorre em diversos

pontos no paralelo de Earwicker com Adatildeo na culpa em comum por terem

cometido algum pecado mdash Adatildeo no Jardim do Eacuteden nosso protagonista no

parque em questatildeo

They tell the story (an amalgam as absorbing as calzium chloereydes and hydrophobe sponges could make it) how one happygogusty Ides-of-April morning (the anniversary as it fell out of his first assumption of his mirthday suit and rights in appurtenance to the confusioning of human races) ages and ages after the alleged misdemeanour when the tried friend of all creation tigerwood roadstaff to his stay was billowing across the wide expanse o four greatest park in his caoutchouc kepi and great belt and hideinsacks and his blaufunx fustian and ironsides jackboots and Bhagafat gaiters and his rubberised inverness he met a cad with a pipe (FW 351-11)36

35 ldquoTalvez ele natildeo tenha tido tempo ao percorrecirc-lo [o texto] de complicaacute-lo como de haacutebitordquo 36 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2000) ldquoContam a estoacuteria (uma amaacutelgama tatildeo absorvente quanto caacutelcio clorado e esponja hidroacutefoba poderiam performaacute-la) como numa letagostosa idos-de-abril manhatilde (o aniversaacuterio como se soube da primeira assunccedilatildeo do nascimento costumes e direitos em pertinecircncia agrave confusatildeo das raccedilas humanas) idades e idades apoacutes a alegada delonga quando o amigo comprovado de toda criaccedilatildeo begala de pau-marfim para seu equiliacutebrio ondulava atraveacutes do vasto territoacuterio do nosso mais esplecircndido parque com seu kepi caucho e imenso cinturatildeo cota de ferro humor faacutesutico botas de cavalaria inglesa espirituralidade hindu e c apa de chuva ele encontrou um cadete com um cilindrordquo

96

Tindall abre a possibilidade de a cena se ampliar e se desdobrar no

espaccedilo e no tempo relacionando a cena ao pecado original ldquoMaybe it is any sin

of every man or every sin of any manrdquo37 (TINDALL 1969 p58) O que Earwicker

fez de errado no entanto permanece em suspenso para o leitor em meio aos

tantos boatos que se reproduzem aparentemente de maneira incessante

Aparecem ainda outros paralelos espaccedilo-temporais como aparece na

expressatildeo ldquoIdes-of-April morningrdquo que lembra os Idos de Marccedilo (o dia 15 desse

mecircs data do assassinato de Juacutelio Ceacutesar) O jovem vai embora e os rumores se

desdobram cada vez mais fazendo de Earwicker desde um homem que se sente

abstratamente culpado ateacute um reacuteu efetivo de um crime indefinido

Chamar essas referecircncias de ldquoparalelosrdquo no entanto como faz Tindall

pode ser uma forma de suprimir a funccedilatildeo delas na amaacutelgama (an amalgam as

absorbing as calzium chloereydes and hydrophobe sponges could make it) do

texto Uma cena simples como a supracitada que parece poder ser posta com

clareza e ter seus elementos narrativos devidamente pontuados desdobra-se

em ambiguidades e referecircncias a outros tempos e espaccedilos que natildeo satildeo externos

e comparados a ela mas que a compotildeem tanto quanto os fatos que

apresentamos como primaacuterios o culpado Earwicker ou HCE estaacute no Phoenix

Park mas ele eacute tambeacutem Adatildeo no Eacuteden (e natildeo estaacute no primeiro parque assim

como Adatildeo esteve um dia no Eacuteden) Estaacute em Roma e eacute tambeacutem viacutetima de

conspiraccedilatildeo assassinado por Brutus Finnegans wake trata como afirma

Tindall da humanidade do universal mas em acontecimentos vividos por

indiviacuteduos em suas realidades microscoacutepicas como um enredo que se desfaz

em meio a numerosas e esparsas superposiccedilotildees assim se forma a amaacutelgama

wakiana

Apoacutes ser julgado Earwicker eacute preso e posteriormente morto Tindall

contrariamente a suas pretensotildees de sumarizar o enredo e determinar a

ordenaccedilatildeo dos acontecimentos novamente natildeo pode evitar alguma hesitaccedilatildeo

ao tentar descrever os ocorridos do capiacutetulo IV ldquoEarwicker dead Anyhow they

took the liberty of burying himrdquo (Ibid p 85) Assim notamos que por mais que

37 Traduccedilatildeo nossa ldquoTalvez seja qualquer pecado de todo homem ou todo pecado de qualquer homemrdquo

97

se tente concatenar as cenas natildeo se pode fazecirc-lo sem interrogaccedilotildees

parecircnteses bifurcaccedilotildees multiplicaccedilotildees A duacutevida quanto agrave morte da

personagem vem pelo motivo de que simplesmente natildeo temos a morte factual

mdash como ocorreu onde se foi homiciacutedio mdash assim como o delito de Earwicker se

apaga ao se multiplicar satildeo tantas as conjecturas que nem se pode mais lidar

com o fato Aleacutem disso Earwicker continua presente na narrativa mesmo finado

Natildeo temos o acontecimento concreto de sua morte seguido pelo relato de como

seguiram as outras personagens em vez disso temos referecircncias aos que

compareceram ou natildeo a seu enterro agrave tumba ao processo de sepultamento no

rio e outras evidecircncias de que ele estaria morto tudo enquanto o morto

permanece ali natildeo como assombraccedilatildeo mas duplicado entre os presentes e os

ausentes

Com essa duacutevida entatildeo a questatildeo do tempo novamente se coloca como

pode haver a vivecircncia da morte tatildeo essencialmente temporal mdash marco

cronoloacutegico do fim vivecircncia humana de uma temporalidade do luto mdash sem sua

determinaccedilatildeo A hesitaccedilatildeo na afirmaccedilatildeo da morte da personagem anula que se

possa viver sua ausecircncia e portanto o luto Isso engendra natildeo somente mais

uma quebra na narrativa mas ainda uma dinacircmica proacutepria do processo de perda

Assim como observamos na cena do Phoenix Park o que ocorre natildeo eacute uma

divisatildeo do enredo em duas realidades paralelas ou dois enredos paralelos em

que um contempla a morte e o outro lida com a vida mas de uma soacute situaccedilatildeo

Se a morte natildeo eacute fato pontual fechado uniacutessono do enredo o trabalho

do luto natildeo teraacute uma origem propriamente estabelecida mdash ou tendo como

origem uma perda que se fez em presenccedila e em ausecircncia simultaneamente teraacute

uma outra formaccedilatildeo e dinacircmica A narrativa entatildeo natildeo teraacute suas implicaccedilotildees

de consequecircncia uma vez que a causa natildeo eacute certa Se tomarmos para pensar

o luto a exposiccedilatildeo de Sigmund Freud em Trauer und Melancholie de 1915 em

que o luto e a melancolia satildeo comparados a partir do ldquoquadro geral desses dois

estadosrdquo (FREUD 2010 p 128) de forma que ambos os quadros se aproximam

em todas as descriccedilotildees cliacutenicas e se diferenciam apenas pela afetaccedilatildeo da

autoestima teremos a seguinte definiccedilatildeo do luto

98

Via de regra luto eacute a reaccedilatildeo agrave perda de uma pessoa amada ou de uma abstraccedilatildeo que ocupa seu lugar como paacutetria liberdade um ideal etc () Confiamos que seraacute superado apoacutes certo tempo e achamos que perturbaacute-lo eacute inapropriado ateacute mesmo prejudicial () O luto profundo a reaccedilatildeo agrave perda de um ente amado comporta o mesmo doloroso abatimento a perda de interesse pelo mundo externo ndash na medida em que natildeo lembra o falecido ndash a perda da capacidade de eleger um novo objeto de amor ndash o que significaria substituir o pranteado ndash o afastamento de toda atividade que natildeo se ligue agrave memoacuteria do falecido (Ibid pp 128-129)

Ora se a personagem eacute enterrada mas natildeo eacute de todo perdida natildeo se vai

por completo do plano onde estatildeo as personagens vivas como estabelecer a

perda que se tem como premissa imprescindiacutevel do luto A perda engendra o

que Freud chama de trabalho do luto toda a libido relacionada ao objeto perdido

precisa ser redirecionada mas a resistecircncia ao abandono dessa libido eacute

desconfortaacutevel podendo gerar ateacute distanciamento da realidade mdash muito dura

para se suportar mdash e psicose de desejo Todo esse processo poreacutem tem um

resultado ldquoMas o fato eacute que apoacutes a consumaccedilatildeo do luto o Eu fica novamente

livre e desimpedidordquo (Ibid p 130)

De toda a explanaccedilatildeo de Freud a respeito do luto natildeo podemos deixar de

concluir que seu tempo mdash e ao que tudo indica tambeacutem o da melancolia mdash eacute

alterado Com a perda desestabilizadora o indiviacuteduo se vecirc imerso na

necessidade de uma mudanccedila de paracircmetros para seu conforto habitual na

busca pela substituiccedilatildeo do ente perdido e no caminho de redirecionamento da

libido cuja origem se perdeu Assim seria seguro dizer que o trabalho do luto

racionalizado por Freud pressupotildee um tempo de luto diferenciado do tempo

normal da vida No Wake o texto ressoa esse trabalho de luto e seu tempo

proacuteprio o remordimento da morte e do morto em meio a descriccedilotildees que abarcam

homenagens seu enterro e seu descanso

Any number of conservative public bodies through a number of select and other committees having power to add to their number before voting themselves and himself town port and garrison by a fit and proper resolution following a koorts order of the groundwet once for all out of plotty existence as a forescut so you maateskippey might to you cuttirunner on a new pack of klerds made him while his body still persisted their present of a protem grave in Moyelta of the best Lough

99

Neagh pattern then as much in demand among misonesans as the Isle of Man today among limniphobes Wacht even It was in a fairly fishy kettlekerry after the Fiannarsquos foreman had taken his handful enriched with ancient woods and dear dutchy deep-linns mid which were na old knoll and a troutbeck vainyvain of her osiery and a chatty sally with any Wilt or Walt who would ongle her as Izaak did to the tickle of his rod and watch her waters of her sillying waters of and there now brown peater arripple (may their guilt lightly over his somnolulutent form) Whoforyou lies his last by the wrath of Bog like the erst curst Hun in the bed of his treubleu Donawhu (FW 7614)38

Poderiacuteamos compreender muito a respeito dessa morte no Wake partindo

apenas do fato de que o trecho do capiacutetulo IV em que se anuncia o enterro

subaquaacutetico da personagem Humphrey Chimpden Earwicker parodia os textos

egiacutepcios que chamamos de forma abrangente de Livro dos Mortos coletivo do

que era registrado sobre as tumbas para auxiliar os defuntos em seus caminhos

poacutes-morte sem distinccedilatildeo de nobreza mas que envolviam julgamentos morais

de merecimento e davam diversas orientaccedilotildees para a superaccedilatildeo de obstaacuteculos

que porventura surgiriam para o morto nessa transiccedilatildeo Esses escritos eram

chamados pelos egiacutepcios de ldquotextos para irvoltar agrave luzrdquo o que jaacute nos indica que

haveria um caminho a ser traccedilado por Humphrey de maneira que a sua morte

experiecircncia mais radical de finalizaccedilatildeo natildeo seria para ele o ponto final do

percurso Em vez de seguir para ldquoo aleacutemrdquo ou para o mundo dos mortos muito ao

contraacuterio o morto submerso segue para a luz que haacute na superfiacutecie em um

caminho de volta agrave vida A passagem natildeo eacute encarada como uma superaccedilatildeo de

barreiras ou uma peripeacutecia narrativa surpreendente ao inveacutes disso tem-se na

verdades quase uma ausecircncia de barreiras entre os dois aspectos da existecircncia

38 Como traduziu Donaldo Schuumller (2000) ldquoQualquer nuacutemero de corpos puacuteblicos conservadores atraveacutes de um nuacutemero de seletos de outros comitecircs com poder de adicionar a seu nuacutemero antes de votar em si mesmos e nele urbe porto e guarniccedilatildeo por adequada e proacutepria resoluccedilatildeo seguindo uma ordem judicial da constituiccedilatildeo uma vez por todas fora de existecircncia narrativa como um pitoco assim podes cortar tudo o que te incomoda num novo baralho de panos quanto a ele enquanto seu corpo ainda persistiu presente deles um sepulcro pro tempore na planiacutecie de Moryelta do melhor modelo dos defuntos sob o Lough Neagh entatildeo tatildeo em demanda entre os misoneacutesios quanto a Ilha de Man agora entre os limnoacutefobos Un momentito Foi em fabulosa caccedila piscosa depois ki Finn proacute-homem tinharrancado um punhado de turfa enriquecido com bosques antigos e bem postos pantanos dos baixos paiacuteses nos quais havia picos e bicos de truta vivamente vaidosos de suas ramadas e dos salgueiros no bleblablaacute de Blaacute a Bleacute que iria fisga-la como fez Izaak para excitar sua raiz e contemplar suas aacuteguas de suas indefesas aacuteguas e agora os brunos arrepios de sua pele pedrosa (queira seu vestido vestir levemente sua sonululante forma) Queporti jaz no seu derradeiro jazigo pela rabia de Dioacutes como o remoto reacuteprobo Huno no leito azul de seu Tunobiasalrdquo

100

No capiacutetulo referente ao enterro e posterior ressurreiccedilatildeo de Humphrey

Chimpden Earwicker as intrusotildees em referecircncias ao tempo e a temporalidade

satildeo numerosas

Best This wastohavebeen underground heaven or molersquos paradise which is probably also an inversion of a phallopharos (FW 7633-34)39

all differing as clocks from keys since nobody appeared to have the same time of beard some saying by their Oorlog it was Sygstryggs to nine more holding with the Ryan vogt it was Dane to pfife (FW 7711-14)40

But abide Zeitrsquos sumonserving rise afterfall (FW 787)41

As tantas alusotildees indicam como formas ou visotildees do tempo permeiam

tudo o que estaacute sendo narrado mas vemos que natildeo haacute indicaccedilotildees precisas fala-

se repetidamente do tempo sem no entanto estabelecer marcos cronoloacutegicos

divisotildees concretas ou definiccedilotildees temporais para a narrativa Se o tempo no Wake

natildeo eacute vetorial e nem busca mediccedilotildees tambeacutem natildeo pode secirc-lo na morte ou no

luto por mais marcados e marcantes que esses eventos fossem em outras

realidades No lugar do sonho tudo muda ateacute mesmo as mais radicais

ocorrecircncias presenccedilas satildeo eteacutereas espectros convivem cenas e marcos se

dissolvem

O tempo dissolvido nas multiplicidades em vez de apreendido e

entendido linearmente corrobora o que dissemos a respeito da impossibilidade

de escolher uma linha enrediacutestica em detrimento de outra ao menos sem que

isso fira a tessitura conjunta que a diversidade espaccedilo-temporal oferece Assim

como estamos em diversos tempos e (em um parque de Dublin na Roma antiga

39 Tambeacutem segundo a traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2000) ldquoBem Este subterracircneo foi-para-haver-de-ser ceacuteu ou o paraiacuteso dos molhes que provavelmente foi tambeacutem uma inversatildeo de um phallofarol ()rdquo 40 Idem ldquodiferindo tudo como sinos diferem de chaves visto que ningueacutem parecia ter o mesmo horaacuterio agrave barba alguns queriam por seu Horloacutegio que era Sixtriques pras nove outros apegados agrave Ira Landa diziam que era Dane-se para as cincordquo 41 Idem ldquoMas aguardemos o requerimento do tempo despertar apoacutes-quedardquo

101

no Eacuteden e assim por diante) tudo ocorre ao mesmo tempo (o pecado de Adatildeo eacute

o de HCE e seu sentimento de conspiraccedilatildeo que culmina em assassinato eacute o

mesmo de Juacutelio Ceacutesar) Temos todo o texto como o tropo Natildeo havendo escolha

de linha cronoloacutegica ou de espaccedilo natildeo haacute accedilatildeo pontual que se possa eleger

Em um niacutevel mais microscoacutepico do texto wakiano o mesmo acontece no

que concerne aos tatildeo numerosos neologismos Natildeo haacute como escolher um

significado ou outro satildeo simultacircneos e quase sempre autorreferenciais

Poderiacuteamos entatildeo compreender a fama de ilegibilidade se a leitura deve

considerar que tudo eacute deslocado e que nada se consolida sem grandes perdas

eacute vaacutelido ver tamanha dificuldade em Finnegans wake Eacute exigido do leitor que

diversos textos em um sejam lidos mdash portanto ler os diversos textos sem separaacute-

los Em Derridabase Geoffrey Bennington discorre com o pensamento de

Jacques Derrida a respeito do entendimento de significante e de significado

partindo da noccedilatildeo de signo estabelecida por Ferdinand de Saussure

No sistema de diferenccedilas que eacute a liacutengua todo significante funciona remetendo a outros significantes sem que se chegue nunca a um significado Procurem no dicionaacuterio o significado de um significante desconhecido vocecircs encontraratildeo outros significantes nunca significados Jaacute foi dito um significado natildeo eacute mais do que um significante posto numa certa posiccedilatildeo por outros significantes natildeo existe significado ou sentido soacute haacute lsquoefeitosrsquo (Positions p 90) Mas este privileacutegio concedido ao significante logo o destroacutei com efeito o significante lsquosignificantersquo soacute significa na sua relaccedilatildeo com (o significante) lsquosignificadorsquo que ele coloca de antematildeo em posiccedilatildeo de prioridade lsquoSignificantersquo e lsquosignificadorsquo se entreimplicam assim como eles implicam lsquosignorsquo e lsquoreferentersquo Eacute impossiacutevel para noacutes estipular (conforme um gesto que eacute agraves vezes o da filosofia analiacutetica) que lsquosignificantersquo daqui pra frente natildeo implicaraacute lsquosignificadorsquo como seu corolaacuterio sob pena como Humpty Dumpty de cair na ilusatildeo do convencionalismo e de esquecer que recebemos a liacutengua e suas sedimentaccedilotildees muito mais do que as criamos (BENNINGTON 1996 p 34)

Assim podemos compreender tambeacutem que em Finnegans wake existam

ldquoefeitos de significadordquo em vez de categorias soacutelidas a que pudeacutessemos recorrer

para a compreensatildeo do signo Talvez fique claro como um dicionaacuterio com

significados estanques dos termos da obra literaacuteria seria tatildeo ou ainda mais

102

parcial do que os dicionaacuterios comuns a que Bennington se refere Os efeitos satildeo

portanto aquilo que operam como fantasmas espectros que rondam a

materialidade do texto Esses espectros natildeo apenas perpassam alguns

momentos mas efetivamente habitam a tessitura textual

O filoacutesofo franco-argelino Jacques Derrida rompendo com uma

concepccedilatildeo de tempo exposta na obra do fenomenoacutelogo alematildeo Edmund

Husserl ultrapassa a noccedilatildeo tanto espacial quanto temporal de um percorrer

regido unidirecionalmente bem como substitui essa dada noccedilatildeo circular ou

ciacuteclica que perigosamente remete ao risco de uma redundacircncia por uma ideia

de elipse em que nunca se alcanccedila verdadeiramente o objeto nem se recupera

as condiccedilotildees preacutevias do caminho percorrido O movimento eliacuteptico pode ser aqui

invocado natildeo para substituir a ideia do ciacuterculo que aparece em James Joyce

uma vez consideradas todas as nuances dessa circularidade aqui expostas mas

para acrescentar uma espeacutecie de nuance eliacuteptica dessa circularidade que natildeo

produz redundacircncia ou repeticcedilatildeo mas singularidade e mesmo inovaccedilatildeo Tendo

seu centro deslocado um trecho percorrido na leitura impede terminantemente

que o passado da leitura seja revisitado da forma como foi lido em seu presente

irrecuperaacutevel

Citado por Joanna Hodge em Derrida on time Jacques Derrida em seu

ensaio ldquoForm and meaning a note on the phenomenology of languagerdquo datado

de 1967 propotildee um pensamento que poderia valer para o Finnegans wake ao

menos dentro da discussatildeo aqui proposta a respeito do formato estrutural da

obra final de James Joyce A respeito do que natildeo poderia ser apreensiacutevel por

uma dialeacutetica per se mdash algo que veremos distancia-se daquilo que conjectura

o escritor irlandecircs em suas obras mdash diz Jacques Derrida

Thus one does not have to choose between two lines of thought Rather one has to meditate upon the circularity which makes them pass into one another indefinitely And also by rigorously repeating this circle in its proper historical possibility perhaps to let some elliptical displacement be produced in the difference of repetition a deficient displacement doubtless but deficient in a way that is not yet --- or is no longer --- absence negativity non-Being lack silence Neither matter

103

nor form nothing that could be recast by some philosopheme that is by some dialectics in whatever sense dialectics may be determined An ellipsis both of meaning and of form neither full speech nor a perfect circle More a less neither more nor less Perhaps an entirely other question (DERRIDA apud HODGE 2007 p 11)42

A descriccedilatildeo do percurso eliacuteptico em Derrida acrescenta aqui ao princiacutepio

de natildeo redundacircncia como supracitado quanto agrave circularidade de Finnegans

wake No entanto uma espeacutecie de dialeacutetica ocupa as preocupaccedilotildees do escritor

irlandecircs Joyce foi influenciado pela ideia de atraccedilatildeo de contraacuterios exposta no

The Marriage of Heaven and Hell do inglecircs William Blake e da antecipaccedilatildeo da

dialeacutetica hegeliana de Giordano Bruno de Nola filoacutesofo italiano em que ldquoall is in

allrdquo como em Finnegans wake

Desde uma de suas primeiras publicaccedilotildees Gramatologia Jacques

Derrida aponta uma espeacutecie de condescendecircncia mdash ou como ele diz

solidariedade mdash entre uma concepccedilatildeo histoacuterico-metafiacutesica calcada no linear

portanto calcada na estruturaccedilatildeo de presente apoacutes presente tempo apoacutes tempo

em que haacute sequecircncias e possiacuteveis iniacutecios meios e fins com um modelo

discursivo tradicional eacutepico Denuncia igualmente que ldquoa lsquolinharsquo representa

apenas um modelo particularrdquo (DERRIDA 2011 p 107) e que esse modelo por

mais que tenha marcado uma norma imperante natildeo prescinde do conceito

mundano da temporalidade ndash o conceito de homogeneidade e continuidade seja

reto seja circular que Heidegger aborda como derivado da ontologia Esse

modelo passa a deixar de imperar pela gradual ineficiecircncia na economia dos

textos cientiacuteficos e na mesma medida problematiza-se contudo Derrida afirma

ldquoO fim da escritura linear eacute efetivamente o fim do livrordquo (Ibid 108) A ressalva

42 ldquoPortanto natildeo eacute necessaacuterio fazer uma escolha entre duas linhas de pensamento Preferencialmente se deve meditar sobre a circularidade que as faz uma passar pela outra indefinidamente Inclusive rigorosamente repetindo esse ciacuterculo em sua proacutepria possibilidade histoacuterica talvez para deixar algum deslocamento eliacuteptico ser produzido na diferenciaccedilatildeo da repeticcedilatildeo um deslocamento deficiente sem duacutevidas mas deficiente de maneira que natildeo eacute ainda mdash ou natildeo mais mdash ausecircncia negatividade natildeo-Ser falta silecircncio Nem mateacuteria nem forma nada que possa ser refeito por um filosofema isto eacute por alguma dialeacutetica em qualquer que seja o sentido que determina a dialeacutetica Uma elipse tanto de sentido quanto de forma nem discurso completo nem um ciacuterculo perfeito Mais um menos nem mais nem menos Talvez uma questatildeo inteiramente outrardquo

104

vem do proacuteprio filoacutesofo quanto ao fato de que nos nossos dias ainda novas

escrituras satildeo desdobradas nas focircrmas dos livros literaacuterias ou teoacutericas A

conclusatildeo desses processos e desvios eacute absolutamente contundente ldquoPorque

comeccedilamos a escrever a escrever de outra maneira devemos reler de outra

maneirardquo (Ibid)

Essas dimensotildees de uma espeacutecie de inadequaccedilatildeo da escritura ao

sistema linear e o lanccedilar-se agraves dimensotildees temporais plurais e natildeo lineares satildeo

fatos natildeo concernentes aos problemas modernos lembra Derrida mas fazem-

se evidentes nos dias atuais Teriacuteamos de dizer a partir disso que Finnegans

wake natildeo eacute um livro ou que o que faz dele um livro eacute o formato numerado e

organizado para uma ediccedilatildeo que lhe impotildee linearidade especiacutefica O que pensar

dessa imposiccedilatildeo de focircrma a um livro circular e efetivamente acessiacutevel de

qualquer ponto mdash portanto avesso a qualquer ordenaccedilatildeo especialmente a uma

numeraccedilatildeo que tanto especifica e prende Talvez isso deva nos levar ao

desprendimento dessa numeraccedilatildeo por mais uacutetil que seja em termos de citaccedilatildeo

e compartilhamento Ou em vez de um desprendimento uma atitude avessa a

certa escravizaccedilatildeo que pode decorrer desse sistema que em vez de pretensioso

arranjo traz desarranjo da estrutura circular que se deve perceber na obra

Em seu Seminaacuterio de nuacutemero 23 denominado O sinthoma ou Le

sinthome mdash ou ainda ldquoo santo homemrdquo mdash dedicado a James Joyce Jacques

Lacan parece atravessar tambeacutem algo proacuteximo agrave questatildeo que aqui trazemos

Antes de citaacute-lo talvez seja interessante remeter ainda especialmente no que

diz respeito ao comeccedilo da citaccedilatildeo do psicanalista agrave ceacutelebre frase de Samuel

Beckett a respeito do Finnegans wake que eacute um livro natildeo sobre alguma coisa

mas eacute a coisa em si Lacan em seu Seminaacuterio diz

Leiam as paacuteginas de Finnegans wake sem procurar compreender Isso se lecirc () Eacute uma sorte que haja uma uacutenica ediccedilatildeo o que permite designar ao fazermos uma citaccedilatildeo a linha na paacutegina certa isto eacute na paacutegina que sempre teraacute o mesmo nuacutemero Se como acontece com os outros livros fosse preciso editar Finnegans wake com diversas paginaccedilotildees como iriacuteamos nos orientar (LACAN 2005 p 161)

105

Finnegans wake entatildeo soacute natildeo eacute o fim do livro porque foi encaixado em

uma estrutura linear a despeito de sua natureza Mas eacute o fim das barreiras

linguiacutesticas como estudadas historicamente mdash e novamente a ponte

supracitada com Derrida em ldquoGecircnese e escritura do Essai sur lrsquooriginerdquo se faz

profiacutecua lembrando o que diz a partir de Jean-Jacques Rousseau ldquoNatildeo haveraacute

nem uma linha histoacuterica nem um quadro imoacutevel das liacutenguas () As liacutenguas satildeo

semeadasrdquo (DERRIDA 2011 p 263) O dinamismo babeacutelico que como foi dito

alguns capiacutetulos atraacutes transpassa para a traduccedilatildeo afeta o leitor de maneiras

distintas e desestabiliza a interaccedilatildeo leitor-obra de uma maneira que tem certa

medida de imprevisibilidade O fim da barreira linguiacutestica se relaciona ao fim de

uma barreira temporal

Ainda sobre Rousseau nesse mesmo texto Derrida aponta a vontade do

iluminista francecircs de esgotar todos os recursos da escritura buscando

univocidade clareza e precisatildeo indicando a pontuaccedilatildeo como ldquoo melhor exemplo

de uma marca natildeo-foneacutetica no interior da escriturardquo (Ibid p 277) Rousseau

chega a dizer que seriam necessaacuterias novas invenccedilotildees em pontuaccedilatildeo para que

se extraiacutesse o melhor da escritura seu maacuteximo como pontos que indicassem

por exemplo ironia e vocativo este uacuteltimo com a intenccedilatildeo de diferenciar na

escrita o homem que se proclama daquele homem que eacute convocado na

linguagem Podemos vislumbrar uma semelhanccedila curiosamente em sentido

diametralmente oposto entre Rousseau e o iacutempeto joyciano ao inveacutes da busca

por univocidade e precisatildeo Joyce parece buscar alcanccedilar ou extrair tambeacutem o

maacuteximo do trabalho que realiza no campo da palavra escrita explorando no

entanto o que se constroacutei em desbravamento de disseminaccedilatildeo a partir do

alcance do plural linguiacutestico isto eacute daquilo que natildeo proiacutebe ambiguidade mas se

farta dela

Em muitos pontos do texto o proacuteprio Finnegans wake praticamente diz ao

leitor ou ao menos lhe indica formas de se debruccedilar sobre ele dando pistas de

suas premissas O excerto que mostraremos aqui traz a sugestatildeo de que fatores

como o tempo mdash plural mdash a inflexatildeopronuacutencia e as maneiras de se comunicar

algo tecircm o poder de afetar diretamente no processo comunicativo que envolveria

idealmente emissor mensagem coacutedigo receptor como postulado pelo

106

estruturalismo de Roman Jakobson O proacuteprio texto se anuncia em apelos a uma

Babel ou mais especificamente a um processo de babelizaccedilatildeo da(s) liacutengua(s)

e de deslocamento da emissatildeo de mensagens em um suposto procedimento de

comunicaccedilatildeo

Because Soferim Bebel if it goes to that (and dormerwindow gossip will cry it from the housetops no surelier than the writing on the wall will hue it to the mod of men that mote in the main street) every person place and thing in the chaosmos of Alle anyway connected with the gobblydumped turkery was moving and changing every part of the time the travelling inkhorn (possibly pot) the hare and turtle pen and paper the continually more and less intermisunderstanding minds of the anticollaborators the as time went on as it will variously inflected differetly pronounced otherwise spelled changeably meaning vocable scriptsigns (FW 11818-28)43

No proacuteprio texto de Finnegans wake portanto admite-se ou ateacute mesmo

assevera-se que a linguagem sob a dinacircmica de um caraacuteter mutaacutevel natildeo tem

um destino certo pontual no espaccedilo e tampouco no tempo seu remetimento

pode lidar com o extravio com a perda de seu destino Em se tratando do texto

literaacuterio em que o destinataacuterio natildeo eacute unitaacuterio essa possibilidade eacute ainda maior

especialmente em um texto como Finnegans wake que remete agrave conexatildeo entre

todas as coisas no caosmos de tudo mdash algo que cria uma possibilidade de cadeia

de remetimentos infinita

Para Jean-Jacques Rousseau o surgimento das liacutenguas se daacute na

passagem do grito natural indomado pela racionalidade ao som articulado Ao

mesmo tempo ele evoca o espectro de uma fala que se daacute puramente em

articulaccedilatildeo que seria uma liacutengua morta aacutelgebra ou escritura ou seja resultaria

na morte da fala Para Jacques Derrida ldquoa morte que natildeo eacute nem um presente

43 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoPorque Escritores de Babell sofridores se chega a isso (e conversas de soacutetatildeo o proclamaratildeo do talhado com mais probabilidade anoite-o que a escrita no muro haacute de calorir a mente dos mentantes moventes na via mestra) cada persona galgo ou algo no caosmo do Todo de alocuma forma conectado com o pingalim em piruetas do pingo movia-se e mundava em cada parte do tempo o estojo movente (possivelmente o tonteiro) o papel a tinta no pipel das fibulosas lebre e tortuga os constantes mal-entendidos dos descolaboradores mais ou menos entrementados enquanto o fluir do tempo seraacute variabilmente infletido diferentemente pronunciado riversamente ortografado grafissignos de vocaacutebulos de sentido cambianterdquo

107

por vir nem um presente passado trabalha o dentro da fala como o seu rastro

sua reserva sua diferecircncia interior e exterior seu suplementordquo (DERRIDA 2011

p 385)

Levando isso em consideraccedilatildeo e tambeacutem o sonho de Rousseau pela

liacutengua que por fim seria inarticulada Jacques Derrida questiona quase

concluindo a sua Gramatologia ldquoE se a cena do sonho for sempre uma cena de

escriturardquo (Ibid 386) Sigmund Freud apontava ser pertencente agrave escritura

talvez o mundo dos sonhos Finnegans wake sendo o proacuteprio livro da noite e

do sonho eacute entatildeo escritura na mais bem sucedida fuga da linearidade

CAPIacuteTULO IV

FLUIR E RETORNO

109

O problema estrutural em Finnegans wake eacute segundo afirmamos um

problema intrinsecamente constituiacutedo na questatildeo da dimensatildeo temporal da

existecircncia a comeccedilar por abranger o tempo da leitura da ficccedilatildeo mdash ateacute alcanccedilar

as explicaccedilotildees do tempo do sonho e outras analogias Para aleacutem do tempo do

sonho podemos pensar contrariamente a certa concepccedilatildeo temporal aristoteacutelica

de momento fugidio de linearidade e homogeneidade a concepccedilatildeo temporal da

tradiccedilatildeo semita que trata de simultaneidade assim como uma concepccedilatildeo vinda

de Bergson ou de Heidegger Nessa tradiccedilatildeo hebraica ao inveacutes da

mensurabilidade que secciona a vivecircncia haacute a concepccedilatildeo cairoloacutegica se

podemos assim colocar relacionando-a ao tempo do καιρός (em vez da

cronoloacutegica isto eacute o tempo na loacutegica de κρόνος)

110

Para considerar essa visatildeo procedente no entanto dificilmente seria

profiacutecuo simplesmente apontar momentos especiacuteficos do livro em que isso

aconteccedila sem considerar tambeacutem o todo em recortes que ilustrem afirmaccedilotildees

O entendimento de aspectos estruturais do Wake relacionados a concepccedilotildees de

temporalidade eacute bastante visiacutevel considerando os paradigmas viquianos de que

Joyce partiu ou simplesmente observando o iniacutecio do livro conter uma frase

cortada indicando uma estrutura in media res especialmente expliacutecita mais do

que se especula em Ulysses por exemplo Os caminhos que o texto segue

poreacutem em termos de tempo ultrapassam os aspectos mais pulsantes e chegam

a ser tortuosos uma vez que mudam a todo tempo desde o tratamento dado a

personagens ateacute a ambientaccedilatildeo passando pelo vocabulaacuterio sempre mutante mdash

que remete tambeacutem linguisticamente a outros tempos com usos anacrocircnicos ou

deslocados na diacronia dos idiomas entremeados ao contraacuterio do que uma

pretensatildeo naturalista teria de reproduzir um tempo e espaccedilo pontuais da

realidade mdash e claro pela narrativa desmantelada Assim ainda que seja difiacutecil

ilustrar certas afirmaccedilotildees sobre Finnegans wake pontualmente podemos

rememorar passagens e buscar e alguns destaques possiacuteveis

No quinto capiacutetulo do livro I que se inicia com um paraacutegrafo

surpreendentemente curto mdash apoacutes uma seacuterie de paraacutegrafos longos desde as

primeiras paacuteginas da obra mdash temos uma espeacutecie de apresentaccedilatildeo mais formal

e direta de uma das personagens principais da obra Anna Livia Plurabelle a

mulherrio O documento envolve diferentes personagens no entanto no que diz

respeito tanto agrave sua redaccedilatildeo quanto ao seu envio Diz o trecho

In the name of Annah the Allmaziful the Everliving the Bringer of Plurabilities haloed be her eve her singtime sung her rill be run unhemmed as it is uneven (FW 1041-3)44

44 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller em que o tradutor evoca a religiosidade da fala de oraccedilatildeo ldquoEm nome de Annah a Allmissassombrosa a Sempreviva a Portadora de Plurabilidades santificada seja sua evigiacutelia venha o reino de seu canto ritmem suas rumas sem peias assim na terra como no ceacuteurdquo

111

O que esse paraacutegrafo apresenta em verdade eacute a vinda de sua voz sua

chegada ao leitor por meio de uma carta-manifesto (ldquomamafestardquo) sem tiacutetulo que

seraacute mostrada em seguida aos leitores nesse mesmo capiacutetulo Desenha seu

lugar de inscriccedilatildeo aquele onde poderaacute se despir em transluacutecida sinceridade e

apelo No entanto ainda que seja introduzida sua carta e portanto sua voz e

sua presenccedila o paraacutegrafo se inicia com ldquoin the name ofrdquo isto eacute ldquoem nome

derdquo A expressatildeo natildeo serve aiacute para transferir a fala a algueacutem que a represente

como se houvesse um outro personagem que falasse em seu nome em seu

lugar forjando sua assinatura serve para sobrepor outras vozes agrave sua na

medida em que Anna Livia natildeo se ausenta para que falem por ela mas haacute uma

comunhatildeo de outras vozes que tomam o lugar da fala concomitantemente Natildeo

haacute uma passagem da voz de uma pessoa para outra mas uma assinalaccedilatildeo de

polifonia isto eacute de multiplicidade em simultaneidade

Primordialmente diversos indiacutecios nos levam agrave leitura de Anna Livia como

uma divindade aiacute evocada As referecircncias nesse trecho satildeo basicamente

islacircmicas Essa evocaccedilatildeo natildeo deixa de lembrar em referecircncia paralela agrave

antiguidade ocidental a forma como todo poema eacutepico deve se abrir evocando

e pedindo auxiacutelio agraves musas para fazer o texto acontecer surgir fluir mas

podemos vislumbrar aquela religiatildeo abraacircmica jaacute ao vermos o nome de Anna

Livia ao lado de um epiacuteteto de tamanha imponecircncia ldquothe Allmazifulrdquo que remete

a ldquoall-mercifulrdquo e por conseguinte tambeacutem agrave maneira consagrada de se referir a

Alaacute ldquoAllah the All-mercifulrdquo

A abertura desse paraacutegrafo ecoa ainda tanto em similaridade foneacutetica

quanto nas relaccedilotildees intertextuais que permite o termo ldquoBismillahrdquo que

reaparece a cada sura (cada capiacutetulo do Coratildeo) geralmente nessa mesma

posiccedilatildeo dando iniacutecio ao texto ali contido O eco aqui eacute efetivamente de

repeticcedilatildeo uma vez que ldquoBismillahrdquo significa exatamente ldquoIn the name of Allah

the All-mercifulrdquo Por maior que possa ser a importacircncia das repeticcedilotildees de

termos temas e referecircncias no Wake devemos ter o cuidado de natildeo acreditar

que elas soacute existem se perceptiacuteveis digamos a olho nu mesmo que sob a oacuteptica

meticulosa de quem procura as reproduccedilotildees explicitamente visiacuteveis

112

Jacques Derrida a respeito de estrutura textual diz na seccedilatildeo intitulada ldquoA

fita de maacutequina de escreverrdquo integrante da coletacircnea Papel-maacutequina que ldquoa

loacutegica do acontecimento textual como inscriccedilatildeo materialrdquo impede uma regulaccedilatildeo

com progressatildeo e regressatildeo isto eacute com ldquoo processo temporal como

habitualmente se pensardquo mas sim regulado pelo proacuteprio acontecimento ou

ocorrecircncia do texto ldquoportanto pela singularidade de uma uacutenica vezrdquo (DERRIDA

2009 p 86) Eacute caracterizada portanto uma forma proacutepria de experiecircncia de

maneira que somente uma visatildeo fenomenoloacutegica respeitaria tamanha

especificidade

No esteio desse raciociacutenio faz-se necessaacuterio reafirmarmos que tal tempo

relacionado ao escritural bem como agraves accedilotildees propriamente de escrita e de

leitura tem peculiaridades proacuteprias e por isso uma dinacircmica de consequecircncias

tanto variaacuteveis quanto incontrolaacuteveis A escrita prevecirc o que seraacute do que jorrou

dela e tambeacutem como chegaraacute ao leitor mas sabendo que deve falhar nessa

previsatildeo O tempo da leitura eacute um presente inescapaacutevel que tem de lidar com o

passado irrecuperaacutevel da leitura da linha anterior ainda que se volte e leia

novamente o que jaacute se leu a experiecircncia eacute outra O deparar-se com o texto

matriz de estranhamento frente agrave liacutengua ocorre sempre na singularidade

Derrida traz ainda afirmaccedilotildees a respeito do acontecimento na literatura

remetendo a certa categoria de materialidade do texto mdash materialidade de um

acircmbito metafiacutesico enquanto conceito filosoacutefico diferente portanto de mateacuteria

mdash que determina o conceito de acontecimento (ou a acontecimentalidade)

textual associado agrave desconstruccedilatildeo Essa conjectura eacute pertinente na medida em

que essa operaccedilatildeo desconstrutiva para Derrida tem sempre como alvo ou

ldquoimplica sempre um processo de desmetaforizaccedilatildeordquo (Ibid 131) em que se

revela a existecircncia de articulaccedilotildees ocultas em totalidades antes aparentemente

monaacutedicas Assim o que repousa sob o texto quase silenciosamente mas eacute

visiacutevel em sua superfiacutecie mdash em sua sintaxe em sua estrutura narrativa em seus

processos metoniacutemicos mais evidentes mdash eacute o que uma leitura desse formato

alcanccedila e eacute a abordagem que se propotildee aqui na leitura de Finnegans wake

considerando as disseminaccedilotildees de sentido pelo texto

113

Retornando ao Wake uma seacuterie de epiacutetetos se segue todos com inicial

maiuacutescula indicando que o paraacutegrafo se refere a uma autoridade amarrando os

adjetivos ao nome proacuteprio como corolaacuterios de um pronome de tratamento

especial ldquothe Everliving the Bringer of Plurabilitiesrdquo O restante do capiacutetulo natildeo

conteacutem mais referecircncias islacircmicas O que apareceu no primeiro paraacutegrafo natildeo

foi uma chave para a leitura do que viria depois mas referencias que se

entrecruzaram dentro do mesmo paraacutegrafo e depois aparentemente natildeo nos

servem para nada podendo imaginar que um leitor natildeo as perceba eou as

ignore e continue sua leitura sem prejuiacutezo Anna Livia natildeo eacute Allah nem lhe eacute

equivalente ou consiste em uma paroacutedia dele mas a figura de Allah surge por

detraacutes da mulher-Liffey

A expressatildeo ldquoin the name ofrdquo aleacutem de engendrar a referecircncia agrave fala

islacircmica (e agrave fala catoacutelica com o ldquoem nome do Pai do Filho e do Espiacuterito

Santordquo) aponta fatos narrativos Eacute notaacutevel no paraacutegrafo que essa expressatildeo

natildeo consiste em uma transmissatildeo naquele momento do poder de enunciaccedilatildeo

da proacutepria Plurabelle a outrem a partir desse ponto Lembra de maneira bem

humorada no entanto um anuacutencio real ou oficial sobre alguma questatildeo decidida

pela instacircncia maior de uma hierarquia Nesse sentido haacute uma intermediaccedilatildeo

nesse anuacutencio Haacute ainda uma interposiccedilatildeo de duas outras personagens da obra

quando a carta-mamafesta nos aparece a de seus filhos Shem e Shaun Shem

the penman escreve a carta cujo conteuacutedo lhe eacute transmitido por Anna Livia e

Shaun the postman encarrega-se de entregaacute-la funcionando como

mensageiro

Com o personagem de Shaun e especialmente quando lhe eacute atribuiacuteda

essa tarefa eacute inevitaacutevel lembrarmo-nos da relaccedilatildeo entre mensageiro e

hermenecircutica vislumbrada etimologicamente Tomamos a explicaccedilatildeo de

Heidegger a respeito do termo neste caso didaacutetica e objetiva Do diaacutelogo com

professor Tezuka da Universidade Real de Toacutequio nasce o texto ldquoDe uma

conversa sobre a linguagem entre um japonecircs e um pensadorrdquo de 19531954

publicado em A caminho da linguagem Questionado por Tezuka a respeito do

uso dos termos ldquohermenecircuticardquo e ldquofenomenologiardquo em Sein und Zeit ambos

114

posteriormente abandonados por Heidegger o filoacutesofo alematildeo responde a seu

interlocutor

A palavra ldquohermenecircuticordquo vem do verbo grego ἑρμηνεύειν Refere-se ao substantivo que se pode articular com o nome do deus Hermes Ἑρμής num jogo de pensamento mais rigoroso do que a exatidatildeo filoloacutegica Hermes eacute o mensageiro dos deuses Traz a mensagem do destino ἑρμηνεύειν eacute a exposiccedilatildeo que daacute notiacutecia agrave medida que consegue escutar uma mensagem Esta proposiccedilatildeo se transforma em interpretaccedilatildeo da mensagem dos poetas que nas palavras de Soacutecrates no diaacutelogo Iacuteon (534e) ldquosatildeo mensageiros dos deusesrdquo ἑρμηνῆς εἰσιν τῶν θεῶν () Assim hermenecircutico natildeo diz interpretar mas trazer mensagem e dar notiacutecia (HEIDEGGER 2011 pp96-97)

Shem the penman cujo epiacuteteto prova o quanto assumidamente eacute a

encarnaccedilatildeo do poeta tem em Shaun assim seu correspondente mensageiro e

essa esquemaacutetica fica ainda mais clara na dinacircmica da carta da matildee Anna Livia

espeacutecie de musa inspiradora evocada para a realizaccedilatildeo da escrita O ldquoin the

name ofrdquo opera na marcaccedilatildeo dessa impureza de voz da personagem matildee

deixando expliacutecito para o leitor que o conteuacutedo expresso ali percorre um caminho

indireto Faz-se necessaacuterio duvidar do acesso que podemos ter agrave voz que nos

remete o conteuacutedo do que lemos ateacute a chegada de seu monoacutelogo fluvialmente

verborraacutegico Poder-se-ia afirmar que a voz de Anna Livia soacute realmente toma seu

lugar e domina o texto tomando suas reacutedeas ao fim do livro IV sem

mensageiros tramitando mensagens em seu lugar ainda que aparentes

intromissotildees eventuais sempre aconteccedilam Certamente poreacutem a duacutevida que

Finnegans wake impotildee segundo traccedilamos a respeito de voz discursiva

possibilita uma teorizaccedilatildeo a respeito da impossibilidade de se destilar a sincronia

de uma voz uma fala uma entidade ou personagem A improbabilidade desse

isolamento ou dessa purificaccedilatildeo de categorias e instacircncias narrativas nos lanccedila

em aporias textuais diversas confirmando a compreensatildeo de que a leitura dos

capiacutetulos natildeo cumpra expectativas de clareza e de unidade mas que sejamos

sempre obrigados a questionar o que mudou e que nova polifonia em aparente

caotizaccedilatildeo estaacute sendo desenvolvida

115

Outros exemplos dessas simultaneidades diversas estatildeo no capiacutetulo 11

em que vimos a mesma indefiniccedilatildeo entre falas tempos e espaccedilos unindo a fala

embolada coletiva das pessoas ocupando o pub agrave do raacutedio e agrave de uma narraccedilatildeo

de histoacuteria aparentemente nem do pub nem do raacutedio entre as elucubraccedilotildees das

lavadeiras no capiacutetulo de ALP com a sonoridade dos ecos e a presentificaccedilatildeo

de uma seacuterie de falas que ouviram e reproduzem de diversas maneiras as

sessotildees de julgamento de HCE permeadas por intromissotildees os diversos

devaneios oniacutericos que colocam HCE em situaccedilotildees insoacutelitas espalhados por

muitos capiacutetulos e passando pelas metamorfoses das personagens em outras

pessoas e elementos da natureza as margens no capiacutetulo 10 que colocam no

mesmo espaccedilo de paacutegina vozes completamente distintas em origem conteuacutedo

e forma em que cada espaccedilo das margens se destina a um dos irmatildeos Isolda

ocupa as notas de rodapeacute e circundando todo o texto Shem e Shaun Mesmo

nessa divisatildeo de espaccedilo as vozes natildeo estatildeo isoladas as margens laterais

eventualmente se trocam e comentando-se intercaladamente misturam

assuntos e referecircncias desestabilizando a verdade ou a unidade do que seria

tradicionalmente a voz narrativa central

A dita correspondecircncia dicotocircmica entre Shem e Shaun se explicita ainda

na relaccedilatildeo de Shaun como o mensageiro com o deus Hermes Como eacute dito na

citaccedilatildeo de Heidegger o miacutetico Hermes tem uma relaccedilatildeo com a origem da

hermenecircutica ainda que por vias etimoloacutegicas indiretas (passando pelo verbo

ἑρμηνεύειν) Por outro lado Shem o poeta se opotildee a Shaun ainda nesse

quesito um irmatildeo estaacute aberto ao ambiacuteguo enquanto outro se concentra na

interpretaccedilatildeo una Sendo um mensageiro assim como Hermes era mensageiro

dos deuses Shaun se preocupa com a emissatildeo da mensagem com fazecirc-la

alcanccedilar o destinataacuterio exatamente como deve chegar sem extravio ou desvio

Shaun busca verdades ironizando a existecircncia do proacuteprio Wake enquanto

Shem se instala no terreno das possibilidades inclusive da possibilidade de que

o proacuteprio livro se faccedila No livro II capiacutetulo 9 mdash capiacutetulo 1 na divisatildeo de Campbell

e Robinson (2013) ldquoA hora das crianccedilasrdquo mdash os irmatildeos se separam entre as

luzes (Shaun) e as trevas (Shem) caoso caminho confuso do perder-se (Shem)

e a redenccedilatildeo e autocontemplaccedilatildeo (Shaun) isso eacute assinalado como uma

116

separaccedilatildeo quase chocante como de Dom Quixote e Sancho Panccedila de

possibilidade remota

A dicotomia entre os irmatildeos no entanto eacute transgredida na medida em

que se completam na divisatildeo de tarefas materializada pela carta de Anna Livia

Plurabelle O que se daria como uma pura oposiccedilatildeo se dissolve em uma espeacutecie

de paralelismo cada um dos irmatildeos tem seus preceitos seus caminhos que natildeo

se tocam mas seguem lado a lado e ainda que tenham nuances proacuteprias satildeo

dotados de caracteriacutesticas que operam por contraste O que os separa e

diferencia eacute muacutetuo em suas respectivas caracterizaccedilotildees havendo uma uniatildeo

maior que a meramente consanguiacutenea ainda que definitivamente natildeo sejam

personagens intercambiaacuteveis Operam na verdade como as relaccedilotildees entre

todos os familiares do nuacutecleo de Finnegans wake por similaridade e

diferenciaccedilatildeo com a caracterizaccedilatildeo de cada um deles sempre interligada e

passando pelas relaccedilotildees de parentesco mdash seja no incesto seja na continuidade

geracional que gera espelhamento e desdobramento seja nos pares

complementares e assim por diante O tempo do parentesco assim pode

caotizar uma linearidade cronoloacutegica eacute um anacronismo de cruzamentos

diversos mais do que uma uniatildeo ou intersecccedilatildeo de sincronias unitaacuterias mdash de

tempos individuais mdash nem a diacronia familiar como seria se interpretaacutessemos

o coletivo como histoacuteria e memoacuteria

A carta-mamafesta de Anna Livia portanto tem o seu caminho

anticircularizado tornado eliacuteptico com um ldquoretorno deslocadordquo da compreensatildeo

de Jacques Derrida e isso ocorre mesmo antes da chegada da mensagem jaacute

havendo a problematizaccedilatildeo de seu remetente atraveacutes de Anna Livia a

mensagem desloca-se por seus filhos em desvios natildeo rastreaacuteveis Eacute

desintegrada a noccedilatildeo de unidade nesse percurso bem como a possiacutevel

centralidade do emissor Estando a noccedilatildeo de presenccedila e a noccedilatildeo de centro

intimamente ligadas ambas se esfarelam simultaneamente Os espaccedilos de voz

em que os remetimentos se interseccionam seriam no Wake repensados

Finnegans wake entatildeo sendo o proacuteprio livro da noite e do sonho eacute escritura em

fuga do linear que natildeo soacute desvia como se estranha e se exila do terreno comum

117

da centralidade e dos eixos estaacuteveis das repeticcedilotildees criadoras de identidade da

mensagem enviada em linha reta mdash em uma potente polifonia

A distacircncia entre diferentes vozes implica que existam diferentes

temporalidades O filoacutesofo franco-lituano Emmanuel Levinas discorre sobre o

tempo partindo de sua investigaccedilatildeo central a dicotomia do mesmo e do Outro

(que em verdade se estabelecem em relaccedilotildees eacuteticas complexas superando um

caraacuteter meramente dicotocircmico) Em Autrement qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence

(1974) diferencia trecircs possibilidades de leitura temporal sendo a primeira delas

o tempo do mesmo a pura sincronia de um eu que vive seu tempo de um ponto

de vista determinado ateacute o ponto em que natildeo afetado por alteridades paralelas

O estabelecimento de uma diacronia soacute se daacute com a intromissatildeo desse outro

intromissatildeo em geral inevitaacutevel de maneira que natildeo haacute mais um soacute passado

nem uma perspectiva unificada do tempo presente A uacuteltima instacircncia seria o

ponto do anacronismo em que a dualidade eu-outro como duas entidades

paralelas ou entrecruzadas se multiplica em uma diversidade de passados

futuros e uma impossibilidade de presente uacutenico e de uma perspectiva solitaacuteria

intocada

Uma obra literaacuteria apresenta em princiacutepio uma sincronia haacute o texto uma

porccedilatildeo de enunciados congelados prontos a serem evocados num presente

qualquer de um leitor que com ele se depare Soacute pode ser lido em um presente

um instante na linearidade de cada letra que sucede outra cada palavra e linha

em ordem inertes Nessa interaccedilatildeo haacute o cruzamento de outro tempo apenas a

partir da abordagem leitor um mesmo um eu que vai com sua sincronia proacutepria

seu tempo presente agrave abordagem do texto No entanto a sincronia que se

apresenta natildeo eacute ativada senatildeo no contato com ele na leitura por algueacutem Ao

inveacutes de um cruzamento entatildeo poder-se-ia pensar na retirada do texto de uma

suspensatildeo temporal A obra ocupa um lugar de nenhum tempo ateacute que eacute

chamada a ocupar um presente de algueacutem cuja temporalidade lhe eacute imposta e

domina a interaccedilatildeo leitor-texto Se pensarmos tempo de maneira contiacutegua a

espaccedilo a obra ocuparia assim um natildeo-lugar A sincronia do texto acompanha

a linha do tempo de quem quer que seja o centro dessa conduccedilatildeo seja um

118

narrador personagem seja um narrador onisciente que nos guia pelo trilho dos

fatos seja fluxo de consciecircncia e o tempo do monoacutelogo interior

Isso nos impotildee o problema que sincronia eacute inerente ao Wake Haacute uma

incompatibilidade ainda entre o tempo presente do leitor e a natildeo-sincronia do

texto com que se depara Havendo uma sincronia na obra o leitor e seu tempo

se relacionam de um para um com o tempo do outro no entanto natildeo se pode

definir com precisatildeo (ou mesmo sem) a linearidade do Wake menos ainda

definir um personagem que detenha essa perspectiva de quem parte a

temporalidade No monoacutelogo poderiacuteamos afirmar que haveria a sincronia de

Anna Livia no entanto as intromissotildees satildeo tantas que vemos claramente um

cruzamento de temporalidades diversas Isso eacute favorecido pela forma do

monoacutelogo por seu proacuteprio modo assim como seria em qualquer tentativa de se

trabalhar a partir de um fluxo de consciecircncia e transformaacute-lo em teacutecnica natildeo eacute

poreacutem justificado por ele uma vez que haacute a possibilidade de que um monoacutelogo

interior narrado tenha uma temporalidade sincrocircnica absolutamente palpaacutevel O

final (se podemos assim dizer) de Finnegans wake no entanto sugere um

continuum que aponta a um futuro agrave substituiccedilatildeo da geraccedilatildeo anterior pela que

a sucede O capiacutetulo se inicia com ldquoSandhyasrdquo que lembra tanto Sunday (o Sol

que estaacute nascendo na manhatilde indica o novo dia jaacute que o sonho de Earwicker

pode ter se passado em uma noite de saacutebado) quanto um saṃdhiacute (सधि) termo

sacircnscrito que significa ldquojunccedilatildeordquo ou ldquoarticulaccedilatildeordquo e remete agrave cosmologia do

Bramanismo em que se denominam os intervalos entre as yugas (as quatro

idades satya treta dwapar e kali yuga) de sandhyā e sandhyānsa Assim o

encaminhamento para o final mdash do sonho do livro de uma idadefase mdash se daacute

de maneira prismaacutetica sem encaminhar pontualmente um fechamento temporal

especiacutefico pois natildeo se limita agrave cronologia hindu nem agrave da narrativa Os tempos

verbais satildeo claramente confusos dizem-se anulando-se ldquoThe child a natural

child thenown by the mnames of (aya aya) wouldbewas kidnapped at na age

of recent probably possibly remoterrdquo (FW 59534-36)45 A incerteza se explicita

45 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoUm menino filho natural entatildeo conhecido pelos mnomes de (aya aya) podequefoi raptado em data recente provavelmente tambeacutem pode que mais remotardquo

119

ldquowould berdquo e ldquowasrdquo se unem no que eacute passado e ao mesmo tempo possibilidade

a hesitaccedilatildeo confirma um ldquoprovavelmenterdquo recente mas tambeacutem possivelmente

ldquoremotordquo Natildeo haacute apenas duacutevida entre um ou outro tempo como garantir que o

passado de fato passou

Se concebermos o Wake todo como um livro de sonho seja do Humphrey

seja de Anna Livia talvez a consciecircncia de quem sonha seja essa figura

centralizadora A temporalidade do sonho poreacutem se instalaria como outro oacutebice

a essa definiccedilatildeo jaacute que natildeo possui um tempo cronometraacutevel e portanto sua

calculabilidade se dissipa de qualquer maneira Sem evocaacute-las

conscientemente memoacuterias compotildeem qualquer sonho mas podem ser

distorcidas constituindo devaneios que satildeo na verdade nada aleacutem de

conjecturas ficcionais Imiscuem-se desejos que vislumbram um certo futuro do

acircmbito do previsiacutevel e ainda o presente do sonhador que dorme em sono leve

ou pesado em algum lugar calmo ou barulhento confortaacutevel ou natildeo apoacutes ter

tido um dia bom ou ruim agitado ou tedioso Se pensaacutessemos no sonho fora da

ficccedilatildeo portanto muito haveria de ser considerado na ficccedilatildeo se eacute concebido um

personagem que sonha a narrativa ou que sonha uma escritura mdash para falarmos

junto com Freud mdash certamente natildeo se partiria do princiacutepio de que haacute uma

sincronia pois o tempo dessa produccedilatildeo oniacuterica natildeo seraacute uno mas antes de

aspecto muacuteltiplo

Citamos sincronia anacronismo termos previsiacuteveis em uma abordagem

sobre o tempo Podemos no entanto empregaacute-los de uma maneira mais

especiacutefica a partir de alguns apontamentos levinasianos que perpassam a

questatildeo da temporalidade pela via eacutetica e ontoloacutegica A eacutetica metafiacutesica de

Emmanuel Levinas eacute pautada em investigaccedilotildees fenomenoloacutegicas cuidadosas e

no olhar sobre as exigecircncias morais a alteridade e a justiccedila mdash que constituem

o ser humano desde o face a face um-Outro ateacute o todo da vida em sociedade

Um desdobramento do tiacutetulo de uma de suas obras Autrement qursquoecirctre ou au-

delagrave de lrsquoessence isto eacute aleacutem do ser outramente que ser outro que (no sentido

negativo) ser indica a intenccedilatildeo de ultrapassar o ser como concebido ateacute entatildeo

nas discussotildees da ontologia remetendo indubitavelmente ao legado daquele

que resgatou a questatildeo-do-ser (Seinsfrage) ateacute entatildeo esquecida Martin

120

Heidegger Em Sein und Zeit (1927 2012) Ser e tempo o filoacutesofo de Meszligkirch

retoma o ser das trevas em que este estava envolto apontando resumidamente

trecircs preconceitos que imperavam como entraves de sua investigaccedilatildeo a saber

sua suposta inerente universalidade o atravanco inevitaacutevel em qualquer

tentativa de definiccedilatildeo e por fim sua totalidade em si autossuficiecircncia

Aquilo que de modo fragmentaacuterio e numa primeira investida foi um dia arrancado dos fenocircmenos pelo supremo esforccedilo do pensamento de haacute muito se trivializou () Sobre a base dos pontos-de-partida gregos da interpretaccedilatildeo do ser construiu-se um dogma que natildeo soacute declara supeacuterflua a pergunta pelo sentido de ser mas aleacutem disso sanciona sua omissatildeo Diz-se ldquoserrdquo eacute o conceito mais universal e o mais vazio e como tal resiste a toda tentativa de definiccedilatildeo (HEIDEGGER 2012 p 33)

Estabelece jaacute na introduccedilatildeo de seu tratado que o objetivo eacute ldquoa elaboraccedilatildeo

concreta da pergunta pelo sentido de lsquoserrsquordquo e que o tempo assim como aparece

em segundo lugar no tiacutetulo constitui no conteuacutedo de toda a obra apenas uma

ldquometa provisoacuteriardquo no que for pertinente para direcionar ldquoo horizonte possiacutevel de

todo entendimento-do-ser em geralrdquo (Ibid p 31) O tempo eacute um caminho

interpretativo para o ser este sim o centro da investigaccedilatildeo de Heidegger Assim

partindo da revisitaccedilatildeo do que a ontologia relegou como terras infeacuterteis

desenvolveu seu Dasein matriz do entendimento-do-ser o ente cuja maior

possibilidade-de-ser eacute a de perguntar (Frager perguntante) Esse retorno agrave

ontologia agrave maacutexima pergunta ontoloacutegica primordial eacute acompanhado entatildeo pela

temporalidade sentido do ser do Dasein na medida em que se constitui como

aquilo a partir de que ele eacute capaz de entender e processar um algo

Assim como a Seinsfrage permaneceu intocada Heidegger destaca que

o conceito de tempo se manteve praticamente inalterado desde Aristoacuteteles

mesmo passando por Henri Bergson (dizendo que o filoacutesofo francecircs eacute mais

aristoteacutelico do que pensa) e reteve tambeacutem o preconceito de um entendimento

vulgar da funccedilatildeo ontoloacutegica autossustentaacutevel Natildeo se pode poreacutem escapar

desse outro resgate Direciona-se assim agrave ldquodestruiccedilatildeo do conteuacutedo transmitido

pela ontologia antiga tarefa a ser levada a cabo pelo fio-condutor da questatildeo-

do-serrdquo (Ibid p 87) mas uma destruiccedilatildeo (Destruktion) que ldquonatildeo quer sepultar o

121

passado no nadardquo pois ldquoela tem um propoacutesito positivo e sua funccedilatildeo negativa

permanece inexpressa e indiretardquo (Ibid p 89) Toda essa necessidade eacute

justificada

Porque o ser soacute pode ser apreendido cada vez na perspectiva do tempo a resposta agrave questatildeo-do-ser natildeo pode residir numa proposiccedilatildeo isolada e cega A resposta natildeo eacute entendida na mera reiteraccedilatildeo do que eacute enunciado em proposiccedilatildeo sobretudo se eacute posta em circulaccedilatildeo como resultado flutuando no ar para mero registro de uma informaccedilatildeo sobre um ldquoponto-de-vistardquo que talvez se afaste do modo de tratamento ateacute agora usual (Ibid p 79)

O tempo como horizonte interpretativo do ser natildeo eacute uma escolha

heideggeriana por assim dizer em termos fundantes A ontologia antiga

interpretando o ser a partir e atraveacutes do mundo isto eacute da natureza acaba por

fazecirc-lo a partir do tempo O sentido de ser asism eacute παρουσία ou ουσία

presenccedila Heidegger cita brevemente que a tese ontoloacutegica de Parmecircnides de

Eleia influenciou diretamente Tomaacutes de Aquino que a absorveu no que diz

respeito agrave alma do ser humano e do νοεῖν o perceber que guiam a questatildeo-do-

ser e colaboram para caracterizar o Dasein em sua precedecircncia ocircntico-

ontoloacutegica No poema fragmentado ldquoSobre a naturezardquo ou ldquoDa naturezardquo de

Parmecircnides uacutenica obra considerada sobrevivente do filoacutesofo preacute-socraacutetico

encontra-se um eixo que se disseminou por toda a praacutetica filosoacutefica do ocidente

pois o mesmo eacute pensar e ser

[] τὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι

(Frag III)

Para Parmecircnides o ser estaacute no que aparece e eacute inuacutetil tentar conceber o

natildeo-ser de maneira que se faz necessaacuterio para a definiccedilatildeo do ser pensando

nos termos do que se daacute agrave apariccedilatildeo e portanto no tempo presente Os dois

termos-chave gregos aqui assinalados παρουσία e νοεῖν respectivamente

presenccedila e perceber levam a um outro intimamente ligado ao modo da

122

discussatildeo de Heidegger bem como a Levinas e outros filoacutesofos preocupados

com questotildees proacuteximas o substantivo φαινόμενον e seu verbo correlacionado

φαίνεσθαι respectivamente ldquoaquilo que aparecerdquo e ldquoaparecerrdquo

O trecho da obra remanescente de Parmecircnides explica poeticamente a

sua ontologia calcada nas relaccedilotildees que apontamos como envolvidas nessa teia

vocabular

Vamos vou dizer-te ndash e tu escuta e fixa o relato que ouviste ndash

quais os uacutenicos caminhos de investigaccedilatildeo que haacute para pensar

um que eacute que natildeo eacute para natildeo ser

eacute caminho de confianccedila (pois acompanha a verdade)

o outro que natildeo eacute que tem de natildeo ser

esse te indico ser caminho em tudo ignoto

pois natildeo poderaacutes conhecer o que natildeo eacute natildeo eacute consumaacutevel

nem mostraacute-lo []

Εἰ δ΄ ἄγ΄ ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας

αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι

ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

Πειθοῦς ἐστι κέλευθος - Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ -

[5] ἡ δ΄ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι

τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν

οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν - οὐ γὰρ ἀνυστόν -

οὔτε φράσαις[]

(Frag II)46

O brilho da aparecircncia natildeo significa aiacute apenas um clarificar das coisas no

momento do mostrar pois de alguma maneira acaba por esconder o ser ainda

assim somente a presenccedila pode definir sua existecircncia Como dissemos essa

necessidade funda uma relaccedilatildeo forccedilosa com o tempo presente que se

estabelece como referecircncia para qualquer ente Justifica-se aiacute que Heidegger

46 A traduccedilatildeo de Joseacute Gabriel Trindade Santos de 2002 eacute pautada no texto original (como tambeacutem citamos aqui) estabelecido pelo filoacutelogo claacutessico escocecircs John Burnet na ocasiatildeo de sua traduccedilatildeo para o inglecircs feita em 1892 Todas as citaccedilotildees de Parmecircnides inclusive a da paacutegina anterior pertencem a essa mesma traduccedilatildeo

123

tenha se dedicado tambeacutem ao tema do tempo era necessaacuterio discorrer sobre

ele para falar do ser especialmente tendo a intenccedilatildeo de desmontar essa

ontologia claacutessica por ldquoserrdquo e ldquotempordquo serem de fato inseparaacuteveis nessa

definiccedilatildeo ontoloacutegica tradicional

Tamanho paradigma resulta em um dito ldquoprivileacutegio do presenterdquo nas

investigaccedilotildees filosoacuteficas a esse respeito sobre o qual discorre Jacques Derrida

em Marges de la philosophie (1972 1991)

O privileacutegio do presente (Gegenwart) teria jaacute marcado o Poema de Parmecircnides O legein e o noein deviam apreender um presente sob a espeacutecie daquilo que permanece e persiste proacuteximo e disponiacutevel exposto diante do olhar ou ao alcance da matildeo um presente na forma da Vorhandenheit Essa presenccedila apresenta-se eacute apreendida no legein ou no noein segundo um processo estrutura temporal eacute de pura apresentaccedilatildeo de pura permanecircncia (reinen ldquoGegenwiirtigensrdquo) (DERRIDA 1991 p 66)

Derrida natildeo aponta e ateacute reitera um certo reducionismo linguiacutestico que

Heidegger comete ao considerar οὐσία exatamente o mesmo que presenccedila que

seria a παρουσία repetindo essa mesma relaccedilatildeo Heidegger afirma diversas

vezes ldquoa determinaccedilatildeo do sentido do ser como παρουσία ou como οὐσία o que

ontoloacutegico-temporalmente significa lsquopresenccedilarsquordquo (HEIDEGGER 2012 p 95) ldquoO

ente que nele [no ser] e para ele se mostra e eacute entendido como o propriamente

ente recebe portanto sua interpretaccedilatildeo em referecircncia ao pre-sente (Gegen-wart)

isto eacute concebido como presenccedila (οὐσία)rdquo (Ibid p 97) A palavra παρουσία

significa de fato presenccedila tanto temporal quanto espacial natildeo sendo mero

sinocircnimo de seu termo formante οὐσία particiacutepio presente do verbo ldquoserrdquo na

forma feminina (o que o aproxima da traduccedilatildeo consagrada para ldquosubstacircnciardquo

que Heidegger critica ou algo que se aproxime de aquilo que vem sendo) que

forma tambeacutem ἀπουσία aquilo que natildeo eacute que natildeo vem sendo (por analogia

ausecircncia)

A rigor esse termo em grego eacute composto por uma dupla maneira de dizer o ser a essecircncia diz o ser no sentido ldquodo que eacute a coisardquo e a existecircncia no sentido ldquode que a coisa eacuterdquo () Mesmo levando em conta

124

que eacute esse segundo sentido [o que excede a referecircncia existencial] que prevalece ele natildeo eacute o uacutenico motivo pelo qual Heidegger traduz ousiacutea por Seiendheit em um claro esforccedilo para imprimir uma adaptaccedilatildeo literal dessa ambiguidade do termo em grego () Ousiacutea fazia parte do vocabulaacuterio corrente entre os gregos e indicava e caracterizava bens imobiliaacuterios propriedades e riquezas () Nesse sentido o ser equivale a um bem que deve sempre ser presente e constante ousiacutea eacute em primeiro lugar o que permance (para) eacute parousiacutea uma presenccedila constante (BOUTOT apud NASSER 2006 pp 117-118)

Essa polissemia entatildeo natildeo pode ser reduzida a uma equivalecircncia pura

entre οὐσία e παρουσία Haacute ainda a possibilidade de que οὐσία seja ainda em

certos contextos filosoacuteficos essecircncia A relaccedilatildeo do tempo com a ontologia tanto

de Platatildeo quanto no que diz Parmecircnides em seu poema fragmentado eacute inegaacutevel

e permanece intacta de maneira que o ser seja um permanecer no presente

permanecer na presenccedila estar no presente

Jacques Derrida traz a aporia de Aristoacuteteles na Fiacutesica IV mostrando que

o paradigma trazido mdash o dito privileacutegio do presente mdash jaacute era conhecido natildeo soacute

por Heidegger mas em toda a histoacuteria das investigaccedilotildees ontoloacutegicas desde a

Antiguidade O presente como tempo padratildeo caracteriza o tempo na metafiacutesica

Todo outro tempo passado ou futuro eacute tomado a partir desse conceito central

No entanto ldquoo tempo eacute o nome da impossiacutevel possibilidaderdquo de maneira que um

agora eacute o mesmo e outronovo ao mesmo tempo

O sentido do tempo eacute pensado a partir do presente como natildeo-tempo E natildeo pode secirc-lo de outro modo nenhum sentido (qualquer que seja o sentido em que o entendamos como essecircncia como significaccedilatildeo do discurso como orientaccedilatildeo do movimento entre uma arquia e um telos) pocircde jamais ser pensado na histoacuteria da metafiacutesica de outro modo senatildeo a partir da presenccedila e como presenccedila (Ibid p 87)

No monoacutelogo de Anna Livia vecirc-se talvez pela uacutenica vez em todo o livro

uma supremacia do tempo presente se instaurando com o despertar mdash ainda

que o sonho precise de uma pessoa dormindo em um dado tempo ldquopresenterdquo o

sonhador se ausenta desse tempo em direccedilatildeo ao tempo do sonho que se

caotiza Com o anuacutencio do fim da noite no entanto vemos uma recuperaccedilatildeo

125

gradual de um tempo como o trecho a seguir em que uma contagem intercalada

entre as frases faz espeacutecie de escansatildeo

Passing One We are passing Two From sleep we are passing Three Into the wikewades warld from sleep we are passing Four Come hours be ours But still Ah diar ah diar And stay (FW 60833-36)47

Como os passos de um baleacute ou de uma danccedila que indica o tempo da

coreografia e finalmente o fim dos movimentos (com ldquostayrdquo) e em meio a suspiros

de Anna Livia (ah dear) encaminhamo-nos para longe do breu das sombras

que natildeo progridem no tempo mas pairam entre fases fluidas Anna Livia natildeo

instaura no entanto com a chegada do dia sincronia ou diacronia puras ldquoYet

no body is presente here which was not there before Only is order othered

Nought is nulled Fuitfiat (FW 61313-14)48 Apesar de estar sendo instaurada

uma espeacutecie de nova etapa externa ao oniacuterico Anna Livia nos afirma que soacute o

que muda eacute a ordem mas nada estaacute sendo efetivamente deixado para traacutes

relegado ao ostracismo de um tempo passado nada eacute nulo ldquoFuitfiatrdquo tem o fuit

que lembra ldquofugirrdquo do francecircs e fiat o latim de fez-se feito estaacute feito indica que

algo foge mas algo tambeacutem se faz aparece (fiat lux)

Haacute passagem sim como ela anuncia reiteradas vezes do sonho para o

despertar da noite para o dia para a claridade no entanto o passado natildeo se

cristaliza como antecedente que nada mais tem de relaccedilatildeo com o que vem uma

vez que as reminiscecircncias natildeo se afastam O que eacute ciacuteclico pode instaurar uma

espeacutecie de privileacutegio do presente na medida em que com o estatuto do ricorso

tudo retornar significa se fazer presente novamente Natildeo haacute rememoraccedilatildeo de

algo que ficou no passado e cuja presenccedila foi substituiacuteda por plena ausecircncia

Ao contraacuterio o que haacute eacute uma eterna (re)presentificaccedilatildeo do que se passou seja

47 ldquoPassagem Um Passamos Dois Do sono estamos passando Trecircs Ao vasto visto mundo do sono passamos Quatro Venham eras a nossas horas Silente Ah dea ah dia E staacuterdquo 48 ldquoPoreacutem aqui natildeo tem ningueacutem que jaacute caacute natildeo esteve antes Soacute que a ordem foi outrada Nada se anulou Fuitfiatrdquo

126

com o caraacuteter espectral do que sempre ronda do que resta em caraacuteter

fantasmaacutetico e fantasmagoacuterico seja do efeitvo retorno de acontecimentos

reiterados O tempo se reinventa de maneira que o conceito de lembranccedila e ideia

de memoacuteria se redefinam diante do fim que se aproxima ao mesmo tempo em

que anuncia uma revinda

What has gone How it ends Begin to forget it It will remember itself from every sides with all gestures in each our word Todayrsquos truth tomorrowrsquos trend Forget remember Have we cherished expectations Are we for liberty of perusiveness Whyafter what forewhere A plainplanned liffeyism assemblements Eblaniarsquos conglomerate horde By dim delty Deva Forget (FW 61419-22)49

No livro XI de suas Confissotildees (398 dC 1987) Agostinho de Hipona

reiterou a supremacia do presente ao afirmar a definiccedilatildeo da (anti)temporalidade

do eterno ldquoNa eternidade nada passa tudo eacute presente ao passo que o tempo

nunca eacute todo presenterdquo (AGOSTINHO 1987 216) Periacuteodos anteriores agrave criaccedilatildeo

divina recaem nessa problemaacutetica ldquoPoreacutem se antes da criaccedilatildeo do ceacuteu e da terra

natildeo havia tempo para que perguntar o que faziacuteeis entatildeo Natildeo podia haver

lsquoentatildeorsquo onde natildeo havia tempordquo (Ibid 1987 217) Agostinho define a

temporalidade a partir do presente pois define o passado e o futuro por contraste

e diferenciaccedilatildeo no entanto Agostinho tambeacutem traz a possibilidade do natildeo-

tempo e desloca o centro ainda do aparecimentopresenccedila para o

desaparecimentoausecircncia

49 ldquoO que se passou Como haacute de terminar Comeccedila a deslembraacute-lo Isso haacute de se remembrar de todos os lados com todos os gestos em cada uma de nossas palavras Verdade hoje verso amanhatilde Desmembra remembra Afagamos expectativa Somos pela liberdade de investigaccedilatildeo Por que apoacutes o que eacute prassempre Plenos planos de liffeyismo nas assembleias da horda conglomerada de Eblacircnia Junto agrave turva dialeacutetica Diva Olovidiarrdquo

127

Quanto ao presente se fosse sempre presente jaacute natildeo seria tempo mas eternidade Mas se o presente para ser tempo tem necessariamente de passar para o preteacuterito como podemos afirmar que ele existe se a causa da sua existecircncia eacute a mesma pela qual deixaraacute de existir Para que digamos que o tempo verdadeiramente existe porque tende a natildeo ser (Ibid p 218)

Sendo uma abordagem natildeo necessariamente do acircmbito da investigaccedilatildeo

ontoloacutegica Agostinho natildeo busca a definiccedilatildeo do tempo em si pois volta-se agrave

percepccedilatildeo Isso se evidencia quando ele faz efetivamente a pergunta

especiacutefica do tempo

O que eacute por conseguinte o tempo Se ningueacutem mo perguntar eu sei se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta jaacute natildeo sei Poreacutem atrevo-me a declarar sem receio de contestaccedilatildeo que se nada sobreviesse natildeo haveria tempo futuro e se agora nada houvesse natildeo existiria o tempo presente (Id)

Sua resposta deixa claro que saber o que eacute o tempo significa aiacute estar na condiccedilatildeo

de um ser que pode vivecirc-lo percebendo suas mudanccedilas Agostinho diz os

termos ldquotempo futurordquo e ldquotempo presenterdquo uma divisatildeo que evidencia o fato de a

sua pergunta pelo ser do tempo natildeo buscar de fato uma investigaccedilatildeo mais que

perceptiva da temporalidade lidando com sua vivecircncia em vez de buscar sua

definiccedilatildeo ou conceituaccedilatildeo Talvez fosse a resposta mais indicada para o tempo

do Finnegans wake sem questionamentos ao nos depararmos sabemos algo

sobre pois vivemos a temporalidade do texto jaacute se tivermos de explicaacute-la eacute que

os problemas se iniciam

A relaccedilatildeo entre uma consciecircncia de temporalidade e a dificuldade de bem

compreender o tempo tambeacutem se mostra textualmente O capiacutetulo 13 que

Campbell e Robinson denominam Shaun before the people (ldquoShaun diante do

povordquo) lembra Agostinho ou um diaacutelogo socraacutetico com a forma de perguntas e

respostas em que Shaun vai respondendo a quatorze perguntas uma a uma

Com uma abertura no capiacutetulo que se preocupa em situar as horas o que abala

o apego ao presente (aleacutem de esse apego existir no proacuteprio meacutetodo de

128

questionamentos e reacuteplicas imediatas) eacute a consciecircncia de uma sombra ou algo

de uma meia-noite que se aproxima ldquoCome not here Black Switch outrdquo (FW

40317)50 A consciecircncia que no caso eacute a consciecircncia de uma outra dimensatildeo

atraveacutes de medo e receio abala o terreno temporal de bases fixas no tempo

presente ainda que o ciclo e o ricorso tambeacutem afirmem essas bases

O tempo do texto caso coincida com o tempo da leitura mdash que o faz

reviver como a execuccedilatildeo da partitura faz com a composiccedilatildeo musical mdash eacute o

presente puro da experiecircncia O tempo narrativo mdash se deixarmos de lado

temporariamente a concepccedilatildeo de Finnegans wake como livro que descarta a

narrativa e desmantela seus elementos mdash poderia ser entendido em uma

primeira tentativa de imediato como tempo circular dada a sua estrutura e a

inspiraccedilatildeo nas Idades da teoria de Giambattista Vico Isso seria adequado para

pensarmos a relaccedilatildeo entre esse tempo presente da leitura e a dada circularidade

textual mdash o que se faz em ciclo sendo um eterno retorno teria necessariamente

de engendrar por conseguinte um eterno presente no esteio do que afirma

Agostinho pois eacute a continuidade que desconhece iniacutecio e fim divisatildeo que

seccione ou corte o que tem por definiccedilatildeo a fluidez Isso leva agrave aporia de que

fala Agostinho entre considerar que o ciclo engendra um presente supremo mas

por outro lado se soacute houvesse presente natildeo haveria tempo e sim eternidade

No entanto se o texto jaacute natildeo eacute em si ciacuteclico e como vimos com Derrida

tem seu centro deslocado e uma caracterizaccedilatildeo possivelmente eliacuteptica mdash ainda

que em verdade o ciclo seja viquiano seja joyciano seja nietzschiano natildeo eacute

simplesmente repeticcedilatildeo pura e simples mas sim retorno com diferenciaccedilatildeo isto

eacute natildeo soacute passiacutevel como obrigatoriamente submetido a mudanccedila e a renovaccedilatildeo

mdash essa relaccedilatildeo de presente se quebraria A isso se relaciona intrinsecamente

o fato de que o texto escritural reinvocando Derrida lida com o porvir diferente

do futuro Essa outra qualidade temporal modifica toda a dinacircmica textual na

medida em que o porvir eacute o tempo do acontecimento daquilo que vem sem

espera que surge do vazio da ausecircncia por outro lado o texto que lida com

futuro calculaacutevel iniacutecio-meio-fim e sequecircncia narrativa eacute o que lida com a

50 ldquoNatildeo te quero nero Sombra sumardquo

129

presenccedila e a previsibilidade Somente o porvir deixa rastros espectrais daquilo

que natildeo se previu mdash e eacute disso que todo a leitura do texto literaacuterio estaacute

inevitavelmente permeada

Emmanuel Levinas filoacutesofo que compreende a histoacuteria como

escatoloacutegica natildeo como progressista e que afirma sua eacutetica metafiacutesica a partir

da existecircncia do Outro tem compreensatildeo temporal que pode nos ajudar a

compreender a dificuldade de se enxergar uma sincronia no texto de Finnegans

wake Para Levinas a tradiccedilatildeo que supotildee a existecircncia do tempo de um eu estaacute

equivocada por desconsiderar o face a face desconsiderar o Outro Assim uma

sincronia isto eacute a assunccedilatildeo de um uacutenico presente natildeo passa como tempo da

subjetividade de um indiviacuteduo de mera presunccedilatildeo por entender o tempo

objetivamente (por mais inicialmente contraditoacuterio que isso possa soar) Isso

poderia ser resolvido pela adiccedilatildeo do tempo diacrocircnico que passa a existir na

relaccedilatildeo com o outro e instaura um tempo que eu subjetividade individual natildeo

vivi Haveria uma disjunccedilatildeo anacrocircnica entre sincronia e diacronia como

princiacutepio da descontinuidade que provaria a impossibilidade de um tempo

objetivo ou de uma compreensatildeo objetiva do tempo reduzindo isso a mera

pretensatildeo A sincronia eacute uma temporalidade insular enquanto a diacronia

expandiria esse isolamento A futuridade do futuro natildeo vem como porvir no meu

horizonte e natildeo posso reduzir o tempo do Outro ao meu o tempo do Outro eacute o

Outro do meu tempo

Eacute a terceira categoria sobre a qual discorre Levinas na supracitada obra

Autrement qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence contudo que mais nos interessa e

que complementa fundamentalmente as noccedilotildees expostas anteriormente Eacute

somente no reconhecimento de que haacute na verdade muitos presentes e de que

nem mesmo o proacuteprio eu sendo um eu ordinaacuterio deteacutem o seu presente mdash

menos ainda seu passado reduzido a lembranccedilas embaccediladas e seu futuro

incerto mdash que se poderia compreender verdadeiramente o tempo Isso porque

somente um eu ideal ou melhor o ser real que dita o que o presente eacute poderia

ser premissa de sua existecircncia e efetivamente deter ou reter o presente O

reconhecimento dessa impossibilidade aliado ao reconhecimento essencial de

que existe o face a face de que existe o Outro cujo tempo me eacute tatildeo inapreensiacutevel

130

quanto ele mesmo o eacute haveria o reconhecimento de que sincronia e diacronia

portanto satildeo maneiras ainda defeituosas de se compreender o tempo para o

humano A terceira categoria fundamental que adveacutem dessas reflexotildees eacute o

tempo do anacronismo Reconhecendo-se a existecircncia de muitos presentes o

anacronismo reconhece ainda que o surgimento de um Outro abre natildeo soacute o meu

tempo para o delea mas tambeacutem haacute tempos de muitos outros de muitos tempos

mortos ou ainda por virem a nascer O tempo consiste em uma relaccedilatildeo com o

que natildeo pode ser assimilado com aponta Levinas natildeo se trata de ter boa

memoacuteria ou natildeo mesmo que suas limitaccedilotildees tenham importacircncia nisso tudo

mas o central eacute a impossibilidade de que toda a dispersatildeo do tempo pudesse se

juntar em um soacute presente Por isso sincronia e diacronia satildeo insuficientes para

essa compreensatildeo enquanto o anacronismo respeita a existecircncia das nuances

variadas dos aspectos temporais da existecircncia

Essa compreensatildeo levinasiana eacute ao que nos parece brilhantemente

adequada para a compreensatildeo do tempo no texto do Wake justamente sendo

uma obra que reuacutene simultaneamente mortos e vivos remorrentes e

ressuscitantes mdash e aqui se faz mister evocarmos o revenant de que fala

tambeacutem Derrida evocando novamente o caraacuteter espectral de presenccedila-

ausecircncia simultacircnea e vinda inesperada isto eacute cuja chegada se faz somente no

porvir como o fantasma de um autor que retorna e se faz presente de alguma

outra forma por meio de sua obra O tempo como concebido por Giambattista

Vico como paradigma natildeo anula a pluralidade do anacronismo sobre o qual

Emmanuel Levinas discorre ao contraacuterio compreende-se que as Idades

viquianas abarquem presentes diversos e natildeo partam de uma consciecircncia

temporal uacutenica Poderiacuteamos falar em caotizaccedilatildeo mas em verdade caotiza-se

na medida em que se foge do linear cronoloacutegico sincrocircnico uno sem que a

caracterizaccedilatildeo necessariamente se reduza de maneira especiacutefica a pura e

simplesmente caos

Na caracterizaccedilatildeo de onde reside Shem o irmatildeo que pode ser o alterego

do artista (e ateacute do proacuteprio Joyce) onde convive com passado morte alteridades

diversas assim como na prisatildeo morte e ressurreiccedilatildeo de Humphrey Chimpden

Earwicker pai de Shaun Shem e Isobel e marido de Anna Livia vemos essa

131

fusatildeo de vida e morte que natildeo controla o tempo em fases imisciacuteveis Shem estaacute

em meio a ldquofresh horrors from Hadesrdquo (FW 18335)51 e por ldquoTumult son of

thunder self exiled in upon his ego a nightlong a shaking betwixtween White or

reddr hawrors noondayterrorised to skin and bone by na ineluctable phantomrdquo

(FW 1846-9)52 trecho em que inevitavelmente nos lembramos da inelutaacutevel

modalidade do visiacutevel de Ulysses que aqui se transformou em fantasma como

visiacutevel

Interessante notar como o capiacutetulo imediatamente posterior ao de Shem

que seraacute o Anna Livia Plurabelle em que lavadeiras confabulam sobre fatos e

fofocas termina com a noite caindo em cada vez mais escuridatildeo e menos

informaccedilatildeo factual menos visatildeo clara como se a cena fosse se apagando e

perdendo a forccedila a cada vez que se repete a palavra ldquonightrdquo Em meio a

paranoias e sensaccedilatildeo de adormecimento ldquonightrdquo daacute o tom de queda gradual mdash

natildeo como a queda monumental de Earwicker no primeiro fragmento que

tambeacutem se repete pelo livro mas uma quebra branda Em vez de pontuar um

momento o efeito principal eacute com ldquonightrdquo prosseguir evocando a escuridatildeo e

ao mesmo tempo mantendo-se progressivamente suspensos os ecos dessas

conversas

Dark hawks hear us Night Night My ho head halls I feel as heavy as yonder stone Tell me of John or Shaun Who were Shem and Shaun the living sons and daughters of Night now Tell me tell me tell me elm Night night Telmetale of stem or stone Beside the rivering waters of hitherandthithering waters of Night (FW 21536-2165)53

Sendo todo um livro da noite como se coloca usualmente e como o

proacuteprio Joyce jaacute pontuou em oposiccedilatildeo a Ulysses as misturas de escuridatildeo noite

quebra de fala e silecircncio seriam naturalmente recorrentes Ainda assim elas

acontecem de maneira especialmente controlada em momentos cruciais e

51 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2003) ldquonovos horrores do Hadesrdquo 52 ldquoTumulto filho do trovatildeo auto-exilado no seu ego tremores da noite inteira entre horrores brancos e rubros aterrorizado ao meio-dia da pele aos ossos por um fantasma inelutaacutevelrdquo (idem) 53 ldquoNoturnos falcotildees nos escutam Noite Noite Tomba a testa Pende pesada qual pedra aquela Que me falas de John ou de Shaun Shem e Shaun viventes filhos ou filhas foram de quem A noite noita Fala-me fala-me fala-me carvelha Noite noite Conta-me contos de Stem ou Stone Junto agraves rio-revantes aacuteguas de correntes-e-recorrentes aacuteguas De Noiterdquo (idem)

132

especiacuteficos no Wake como que desestabilizando a noccedilatildeo temporal de noite mdash

ou de uma noite ou de noite como algo definido temporal e ateacute espacialmente

mdash em vez de partirem para o que seria uma caracterizaccedilatildeo temporal A noite

funciona como algo que subverte a ineacutercia do tempo presente sendo uma noite

sem duraccedilatildeo reverberando ainda em uma seacuterie de evocaccedilotildees de ldquonightrdquo como

se ela natildeo estivesse presente mas invadisse aos poucos agrave medida que o apelo

acontece A palavra ldquoNightrdquo caracteriza o indefinido em vez de definir (seja uma

ou seja qualquer) noite especiacutefica

Aquilo que natildeo eacute definido pontualmente natildeo pode consequentemente

fazer parte de uma evoluccedilatildeo temporal da ordem do linear com cenas

consecutivas que se somam sem se sobreporem progredindo do passado para

o futuro Isso natildeo deve necessariamente acontecer somente na hipoacutetese da

eternidade pura como disse Agostinho a respeito do tempo presente que natildeo

tem passado e futuro como constrastes o que retorna sempre em ciacuterculos pode

tambeacutem ter como corolaacuterios antesagoradepois ao mesmo tempo em que natildeo

teria iniacutecio fundadororiginaacuterio nem fim escatoloacutegico Retornando a Autrement

qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence para caracterizar a oposiccedilatildeo do anacronismo

que reuacutene essas vozes e ausecircncias-presentes em relaccedilatildeo agrave ideia de linearidade

que uma sincronia necessariamente conteacutem Emmanuel Levinas cita a tradiccedilatildeo

fenomenoloacutegica como caracterizadora da unidade de sincronia que natildeo

considera a alteridade e a eacutetica citando Edmund Husserl Com esse gancho

esclarecedor entatildeo Levinas explica

Chez Husserl la conscience interne du temps et la conscience tout court se deacutecrivent dans la temporaliteacute de la sensation ldquosentir crsquoest lagrave ce que nous tenons pour la conscience originaire du tempsrdquo et ldquola conscience nrsquoest rien sans lrsquoimpressionrdquo Temps impression sensible et conscience se conjuguent () Parler conscience crsquoest parler temps (LEVINAS 1978 pp 56-57)54

54 ldquoEm Husserl a consciecircncia interna do tempo e a consciecircncia em si se descrevem na temporalidade da sensaccedilatildeo ldquoeacute no sentir que podemos ter a consciecircncia originaacuteria do tempordquo e ldquoa consciecircncia natildeo eacute nada sem a impressatildeordquo Tempo impressatildeo sensiacutevel e consciecircncia se conjugam () Falar de consciecircncia eacute falar de tempordquo

133

Emmanuel Levinas considera entatildeo uma temporalidade especiacutefica para

a fenomenologia que considera a consciecircncia de um indiviacuteduo como premissa

para qualquer investigaccedilatildeo eacute essa temporalidade o que resulta em uma

sincronia natildeo atravessada pela alteridade Ao contraacuterio dessa concepccedilatildeo

Levinas descreve o ldquoAnachronisme qui ateste une temporaliteacute diffeacuterente de celle

qui scande la consciencerdquo (Ibid p 141)55 A isso podemos contrapor uma outra

ponte com o Ser e tempo de Martin Heidegger quanto ao aspecto do ente como

ldquodentro do tempordquo Heidegger interfere com o apontamento da historicidade

como um modo-de-ser temporal do Dasein Nessa abordagem o tempo ou o

tempo presente tambeacutem deixa de ser isolado pela experiecircncia sincrocircnica

individual

A determinaccedilatildeo da historicidade eacute anterior ao que se chama de histoacuteria (o acontecer de-histoacuteria-universal) Historicidade significa a constituiccedilatildeo-de-ser do ldquogestar-serdquo do Dasein como tal sobre cujo fundamento eacute unicamente possiacutevel algo assim como a ldquohistoacuteria universalrdquo e o histoacuterico a ela pertencente O Dasein em seu ser factual eacute cada vez como jaacute era e ldquoo querdquo jaacute era Expressamente ou natildeo ele eacute seu passado E natildeo soacute no sentido de que seu passado como que desliza ldquoatraacutesrdquo dele possuindo ele o passado como se fosse uma propriedade subsistente que por vezes volta a ter efeito sobre ele (HEIDEGGER 2012 p 81)

Assim o privileacutegio do presente que citamos anteriormente como foi

apontado por Derrida em referecircncia ainda a Aristoacuteteles perde seu aspecto de

vivecircncia possiacutevel como sendo algo puramente nodo instante algo

complementando pelo que acrescenta Heidegger no excerto acima de Ser e

tempo o passado integra o presente (como o revenant) e natildeo se encerra atraacutes

dele ou antes dele intacto e passiacutevel de retorno somente por

rememoraccedilatildeorecordaccedilatildeo (entendida como espeacutecie de movimento de lembranccedila

feito intencionalmente) Uma suposta divisatildeo temporal entre as fases entatildeo que

separe o passado do presente natildeo eacute possiacutevel considerando o passado como

essa historicidade que reveacutem O presente no entanto ainda eacute o tempo central

55 ldquoAnacronismo que atesta uma temporalidade diferente daquela que mede a consciecircnciardquo

134

da leitura Em Escritura do retorno Mallarmeacute Joyce e o meta-signo Piero Eyben

relaciona o que propotildee ser o resultado da empreitada de Joyce mdash ldquodestruiccedilatildeo

do signordquo mdash com uma ldquoagoridade da letrardquo ldquo() a experiecircncia joyceana da

destruiccedilatildeo do signo deve ser compreendida como um limite da experiecircncia do

agora () a significacircncia eacute sua uacutenica respostardquo (EYBEN 2012 pp 650-651) A

marca do presente natildeo eacute pura nem pode ser destilada em uma fase temporal

solitaacuteria

Nessa des-fundaccedilatildeo de toda origem podemos ver a proacutepria cena da presenccedila enquanto elemento presente que se relaciona com outra coisa que natildeo ele mesmo guardando em si a marca do elemento passado e deixando-se jaacute moldar pela marca de sua relaccedilatildeo com o elemento futuro () Todo rastro eacute sem presente e sem arquia uma vez que se constroacutei como a siacutentese de ldquomarcasrdquo que se estabelecem em um espaccedilamento (devir-tempo do espaccedilo) (Ibid p 651)

No capiacutetulo 9 do livro II livro das crianccedilas temos uma espeacutecie de

encenaccedilatildeo teatral Satildeo situados personagens e ainda o tempo ldquoTime the

pressantrdquo (FW 22117)56 O presente mais parece um verbo no geruacutendio ou uma

forma nominal de um verbo indicando uma accedilatildeo que remete ao presente

movimentado em movimento natildeo inerte e recortado Mesmo na ficccedilatildeo dentro

da ficccedilatildeo eacute o tempo dinacircmico que se faz Nas palavras do tradutor do Wake

Donaldo Schuumller ldquoO fixo dissolve-se no que flui Cultura do presente Qual se

tudo se embala em vir-a-serrdquo (2003 p 96) Aqui o presente natildeo se faz em

eternidade pura e ciacuteclica mas no porvir que se instala a expectativa do que pode

vir eacute diferente da futuridade do futuro certo previsto mdash e portanto calcado no

tempo presente que o planeja O porvir ao contraacuterio faz do presente uma pura

expectacircncia naquilo que se tece como limiar de ausente e presente por ser a

expectativa do que natildeo se pode de fato esperar Se o futuro no escapa pelos

dedos e o passado resta o presente soacute pode ser uma contaminaccedilatildeo geral dessa

fludez de ricorso torrencial

56 ldquoTempo o pressanterdquo (traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller 2003)

135

Finnegans wake muito mais questiona do que afirma seu proacuteprio tempo

em vias expliacutecitas Mesmo no fim do livro quando se encaminharia para um

fechamento e portanto para o teacutermino a sutura a closure Anna Livia nos

encaminha para o desembocar do rio mdash no mar no retorno ao seu curso no

ricorso na fluidez que eacute seu destino em repeticcedilatildeo mas repeticcedilatildeo em sempre

inovaccedilatildeo mdash que natildeo se situa com precisatildeo temporal O livro IV se abre com

ldquoSandhyas Sandyas Sandhyasrdquo (FW 5931) Segundo Donaldo Schuumller haacute aiacute

referecircncia a Sanctus Sanctus Sanctus (que aparece tambeacutem em ldquoXanthos

Xanthos Xanthosrdquo mdash FW 2359) e a sandhi palavra do sacircnscrito que significa

paz ou crepuacutesculo Muito mais pode ser dito sobre essa abertura aleacutem da

saudaccedilatildeo latina religiosa o que vem do sacircnscrito pesa sua presenccedila em um

significado riquiacutessimo

O termo do sacircnscrito sandhyā como pode ser transliterado de सनधया

pode significar uniatildeo ao mesmo tempo em que eacute diferenciaccedilatildeo divisatildeo eacute o

crepuacutesculo ou o nascer do sol ao mesmo tempo em que eacute a escuridatildeo da

madrugada ou da manhatilde eacute transiccedilatildeo uniatildeo e impossibilidade de uniatildeo de dois

opostos claro e escuro dia e noite comeccedilo e fim Eacute justamente a articulaccedilatildeo

entre aquele instante do meio que natildeo se pode chamar somente de iniacutecio nem

somente de fim eacute ambos ao mesmo tempo Eacute o momento de reiniacutecio e portanto

de redenccedilatildeo e renovaccedilatildeo assim como de fim de enterrar de sumir de natildeo ver

Tem-se um dia todo pela frente concomitantemente poreacutem natildeo se tem mais

um dia que acaba de findar A palavra eacute absolutamente adequada indica tanto

iniacutecio quanto fim e ainda significa intervalo entremeio fase que antecede uma

e sucede outra As relaccedilotildees possiacuteveis satildeo muitas Lidar com a morte por

exemplo eacute lidar com algo que se inicia povoado por uma ausecircncia Luto se faz

em elipse Natildeo se supera um passado mas se convive com ele ateacute que ele

povoe o presente de maneira cada vez mais transluacutecida e menos materialmente

formada e visiacutevel como o presente pode nos parecer na imediaticidade

fenomecircnica do instante

136

Direcionando-se ao fim no mesmo livro dotado de um soacute capiacutetulo Anna

Livia diz ldquoLike almost now Howrdquo (FW 62629-30)57 Em inglecircs pode-se

compreender ldquolike almost nowrdquo como o mesmo que ldquocomo quase agorardquo de

maneira que eseja sendo indicado ou referenciado um ldquoagorardquo natildeo pontual ou

natildeo pontuado talvez fluido por ser indefiniacutevel o agora o eacute quase agrave medida que

o presente escapa Logo ela anuncia mais contundentemente a substituiccedilatildeo de

geraccedilotildees com a passagem do tempo

And can it be itrsquos nnow fforvell Illas I wisht I had better glances to peer to you through this baylightrsquos growing But yoursquore changing alcoosha yoursquore changing from me I can feel Or is it me is Irsquom getting mixed Brightening up and tightening down Yes yoursquore changing sonhusband and yoursquore turning I can feel you for a daughterwife from the hills again (FW 62633-36 6271-3)58

Anna Livia daacute lugar agrave filha Isobel na ordem natural familoar e aos filhos

Shem e Shaun assim como seu marido seraacute substituiacutedo O espaccedilo das

memoacuterias (ldquoAnd let her rain now if she likes Gently or strongly as she likes

Anyway let her rain now if she likes I done my best when I was letrdquo --- FW 62711-

1359) Isobel Isabel Issy que eacute tambeacutem Nuvoletta a nuvem que chove e

preenche o rio mas eacute formada a partir dele Anna Livia abre espaccedilo ao

protagonismo da filha que a sucede no fluir e o ricorso eacute fechado no ciclo natural

que metaforiza o das relaccedilotildees familiares

O fluir-ricorso eacute mais que o fechamento do ciclo que realiza o movimento

circular e repete o mesmo percurso em cadeia eacute primordialmente a

impossibilidade de diferir o fechamento da (re)abertura em momento-iacutenterim

entre a morte e a vida que unem em Finnegans wake o anacronismo daquilo que

natildeo se unitariza em tempo vivido por uma consciecircncia agrave diferenciaccedilatildeo que se

faz com o ciclo que se modifica com as geraccedilotildees com as reverberaccedilotildees do que

57 ldquoQuase como agora Comordquo na traduccedilatildeo de Schuumller (2003) 58 ldquoSeraacute que eacute agora nnossrsquouacuteltimo adeus Illaacutes Oxalaacute eu tivesse melhores vistas para te contemplar agrave luz alvorecente da Bahia Mas tu jaacute natildeo bates meupulso tu te abates de mim bem o sinto Ou isto eacute eu eacute Estou confusa Illo minando-me estou me dilu indo Sim estaacutes mudando filhemarido posso sentir-te para uma filhesposa dos montes outravezrdquo (idem) 59 ldquoChovela agora se eacute isso que adora Chovisco ou trombada como lhe agrada Chova no entanto visto que vinda eacute minhrsquohora Dei meu recado enquanto me foi dadordquo (idem)

137

se vatildeo ainda ecoando no futuro com as singularidades O desmantelamento

desse presente puro o transforma em algo contaminado de porvir ainda

permeado do rastro do passado e acima de tudo indefiniacutevel como tempo palpaacutevel

a natildeo ser se emoldurado em conjunturas ficcionalizantes

A continuidade eacute assegurada por meio da evocaccedilatildeo de Anna Livia dos

que a seguiratildeo apelo e chamamento que fazem a anunciaccedilatildeo da chuva de

NuvolettaIsobel A matildee de certa maneira dando a sua permissatildeo mas sendo

antes forccedilada pelas circunstacircncias do tempo que natildeo para daacute lugar sem

desaparecer por completo A temporalidade essencial de todo o Wake eacute a da

substituiccedilatildeo que natildeo substitui pois manteacutem o que perpetua mas tambeacutem

aniquila da mesma maneira como o crepuacutesculo pode ser confundido com o

nascer do Sol

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

139

Foi reafirmado o quanto defendemos o afastamento da compreensatildeo una

de literatura seja com Finnegans wake seja com qualquer outra obra escritural

Isso pode ser natildeo uma saiacuteda sagaz que se esquivaria de questionamentos

importantes sobre a estrutura e os desdobramentos semacircnticos do texto

intrincado de Joyce mas sim uma abertura ao perigoso desfrutar dos problemas

Em vez de uma estrateacutegia uma compreensatildeo de que eacute da incompreensatildeo que

podem surgir boas leituras inclusive acadecircmicas Para partir da incompreensatildeo

aiacute sim nada mais adequado desafiador e divertido do que o Finnegans wake

Em vez de resolver os problemas responder os questionamentos e fechar o livro

com a certeza veemente de que se compreendeu e jaacute se pode dizer ldquotermineirdquo

abre-se o livro novamente E novamente E incessantemente

140

Isso natildeo eacute necessariamente preocupante restaria talvez saber se o

problema eacute conosco com o texto ou se consiste na impossiacutevel acomodaccedilatildeo a

uma teoria literaacuteria que demanda explicaccedilotildees que natildeo podemos dar Ou ateacute

possamos talvez mas necessariamente optando por um caminho que reduz a

uma interpretaccedilatildeo mdash um trabalho hermenecircutico que busca o dogma ao inveacutes de

lidar por que natildeo com mais de uma possibilidade simultacircnea Foi instaurada a

heranccedila de lidar com a literatura como lidamos com as escrituras sagradas que

podem oferecer uma poeacutetica que abre para a fruiccedilatildeo mas acima de tudo pautam

ensinamentos que devem ser objetivos pelo bem do funcionamento de um

sistema externo ao texto Literatura poreacutem natildeo eacute o que diremos dela Como os

guias para o Finnegans wake dizem em geral desculpando-se

antecipadamente isto mdash esta dissertaccedilatildeo esta pesquisa mdash natildeo pretende

abarcar uma leitura totalizadora Talvez jaacute fosse a hora de isso natildeo precisar ser

dito apenas para o Wake mas sobre qualquer livro de literatura Eacute claro que haacute

uma dificuldade em abrirmos matildeo do status de ldquoautoridade emrdquo mas a literatura

precisa dessa distacircncia O cuidado cientiacutefico dela eacute esse

Considerando contudo as demandas de ensino baacutesico de literatura nas

escolas por exemplo ou mesmo as demandas acadecircmicas que exigem

porventura uma produtividade que se possa comprovar como acomodar o

Finnegans wake ao que a teoria ou a leitura hermenecircutica teorizada demandam

Aliaacutes como mdash e por que mdash acomodar qualquer obra literaacuteria a uma

sistematizaccedilatildeo que esquematiza seus elementos de maneira engessada O

ponto sequer eacute uma recusa natildeo mais tatildeo inovadora ou a reforma do sistema de

qualquer teoria de qualquer aporte mas o entendimento claro de como isso

afeta uma leitura e da hierarquia entre essas instacircncias se determina o que um

livro pode ter para funcionar e o que seu gecircnero permite que se pressuponha a

seu respeito Nesse sentido o questionamento do tempo tatildeo filosoacutefico e

abstrato tornar-se-ia praacutetico quando pensaacutessemos no impacto das concepccedilotildees

de histoacuteria da literatura cacircnone sistema O tempo feito em uma diacronia das

obras-primas o tempo sobre o qual repousam as obras que importam e o tempo

do ostracismo das relegadas agrave margem Esse tempo nos importa somente para

ser questionado

141

O manual tradicional e didaacutetico Teoria literaacuteria de Hecircnio Tavares traz o

excerto ldquoO objeto da ciecircncia da literaturardquo de Fundamentos da interpretaccedilatildeo e

da anaacutelise literaacuteria (1948) de Wolfgang Kayser que por sua vez cita a

separaccedilatildeo severa entre poesia e literatura feita pelo italiano Benedetto Croce

A poesia estaria fora da literatura Natildeo seria no entanto facilmente classificada

pelos criteacuterios formais de versos e estrofes mas sim um termo valorativo

qualitativo Dessa maneira ateacute mesmo Os Lusiacuteadas ficariam de fora de Poesia

(Dichtung) nessa classificaccedilatildeo e ldquodela separado por um abismordquo (KAYSER in

TAVARES 2002 p 42) Citamos essa curiosa e incisiva classificaccedilatildeo em

tentativa de delimitar o que eacute digno de ser apreciado como Poesia e o que natildeo

eacute para apontar a ironia se essa classificaccedilatildeo aparentemente excessivamente

limitante natildeo pressupotildee que Poesia seja tatildeo somente forma oposta agrave prosa

talvez Finnegans wake entrasse para o rol da Poesia e de fora da literatura

tivesse sua qualidade canonicamente reconhecida

No texto ldquoChe cosrsquoegrave la poesiardquo Jacques Derrida toma outros rumos na

problematizaccedilatildeo do que eacute literatura e do que eacute poesia A figura do ouriccedilo surge

para apontar uma experiecircncia que jamais eacute inofensiva de maneira que uma

relaccedilatildeo com o texto literaacuterio eacute uma relaccedilatildeo da qual nunca se pode sair incoacutelume

Natildeo se lecirc sem apelo e aqui evocamos novamente a carta mamafesta de Anna

Livia como momento condensador desse apelo ou sua posterior anaacutelise no

capiacutetulo 6 em que o meacutetodo de perguntas e respostas lanccedila o questionamento

e a demanda inevitavelmente tambeacutem ao leitor ou mesmo o de Shaun iniciando

o capiacutetulo 13 dizendo ldquoHark () Horkrdquo (FW 40313)60 Em Escritura do retorno

assinala-se que

Derrida inicia sua problemaacutetica () com a renuacutencia com certo desligamento do saber Saber em termos de poemaacutetica eacute saber renunciar o que se sabe Nesse sentido a poesia exige outra forma de conhecer que talvez seria aquela do ditado que se pode ldquover como ditadordquo A poesia natildeo eacute uma aparecircncia mdash ou ainda natildeo eacute uma ldquoparecenccedilardquo sua accedilatildeo eacute daquilo que se vecirc fora do parecido mas dentro de uma representabilidade que eacute sua proacutepria reflexatildeo (EYBEN 2012 p 259)

60 ldquoEscuta () Escuchardquo (2003)

142

Como dissemos uma necessidade de autenticaccedilatildeo do texto por um

sistema literaacuterio que forja sua histoacuteria e seu cacircnone natildeo nos preocupa (o apego

ao sistema que sobrevive e mutila experiecircncias literaacuterias talvez sim) Tambeacutem

citado por Hecircnio Tavares diz Afracircnio Peixoto ldquoO gecircnero das obras-primas em

geral eacute pessoal e privativo delasrdquo (PEIXOTO in TAVARES 2002 p 158)

exemplificando sua afirmaccedilatildeo citando Rabelais Quixote Montesquieu Mesmo

que fosse relativamente possiacutevel de se definirem as classificaccedilotildees ainda assim

permanecem dispensaacuteveis no lanccedilar-se ao texto e lanccedilando-nos deparamo-nos

com o segredo indiziacutevel proacuteprio do escritural

Se indiziacutevel evidentemente tambeacutem inclassificaacutevel sem que isso seja um

defeito e distante de ser uma abertura a qualquer coisa a uma leitura tatildeo frouxa

que fosse vazia ou esvaziada por uma relativizaccedilatildeo desmedida Finnegans wake

eacute aberto e amplo mas cheio e povoado de caminhos sem que tenha reacutedeas

apertadas demais para direcionar uma soacute leitura ou uma rota preferencial como

todo texto escritural tem entradas diversas e a literatura natildeo se faz em

hierarquias atraveacutes das quais nos prestamos a buscar a verdade do texto que

estaraacute no fim do caminho percorrido Se houvesse uma linha reta a ser seguida

ou mesmo um labirinto desse tipo natildeo haveria segredo no texto mdash ou haveria

um segredo que se perderia sendo revelado e nesse caso deixaria de existir o

que desmoronaria o entendimento de segredo do texto literaacuterio como aquilo que

se manteacutem secreto mesmo apoacutes repetidas leituras e mergulhos no texto por

mais profundos que possam ser Em Gecircneses genealogias gecircneros e o gecircnio

em que fala de Heacutelegravene Cixous Jacques Derrida assevera sobre o segredo da

literatura

Laacute se encontra como segredo da literatura o poder infinito de manter indecidiacutevel e portanto irrevelaacutevel o segredo do que ela diz ela a literatura ou ela Cixous () O segredo da literatura eacute pois o proacuteprio segredo Eacute o lugar secreto onde ela se institui como a possibilidade mesma do segredo o lugar de sua gecircnese ou de sua genealogia proacutepria Isto eacute verdade em todos os gecircneros literaacuterios (DERRIDA 2005 p 22)

143

Tambeacutem pertinente eacute o que nesse mesmo lugar Derrida diz a respeito

ainda de Cixous e de uma escrita que desperta do oniacuterico ldquopalavra escrita ao

despertar endereccedilada e destinada ao despertar Como se o despertar ao sair

do sonho em seu wake estivesse ainda na vigiacutelia do sonhordquo (Ibid p 45) e ldquoo

proacuteprio sonho eacute o que interrompe o sono O sonho desperta O sonho vela e ele

vela a endereccedilar injunccedilotildees inflexiacuteveis agrave vigiacuteliardquo (Ibid p 43) Ainda que essas

palavras de Derrida natildeo sejam expliacutecita e diretamente sobre o Wake nelas o

sonho natildeo eacute anestesia e no Wake tambeacutem natildeo ocorre ateacute o oposto o sonho se

mescla ao despertar e agrave ressureiccedilatildeo O sonho para Derrida e para Joyce em

nada inerte e tambeacutem nada linear como a vida real eacute o terreno das maiores e

multiplicadas possibilidades bem como da atividade de certa maneira caoacutetica e

do tempo do anacronismo do entrecruzamento de alteridades e dos ecos

polifocircnicos

Encaminhamos este fim mdash que certamente nos faz retornar retornar ao

texto ao Wake a Joyce agrave literatura mdash lembrando que a temporalidade da leitura

eacute a materialidade do tempo da literatura eacute o tempo efetivamente vivido na

ressureiccedilatildeo do texto mas eacute tambeacutem temporalidade significativamente esquiva

a tentativas de definiccedilatildeo O presente da (de uma e de qualquer) leitura eacute

constantemente desestabilizado (e em Wake isso se faz sem misericoacuterdia) e

nunca se tem uma base fixa na qual se agarrar a natildeo ser o proacuteprio abismo

escritural

Em termos joyceanos natildeo temos um rio de significado mas sim o rio como rasura da chuva que eacute em si uma forma de conduccedilatildeo dos significantes como respostas mdash reacuteplicas mdash ainda textuais O sujeito que lecirc tambeacutem eacute perdido rasurado pois sua referecircncia deve ater-se apenas agrave escritura uacutenica satisfaccedilatildeo exigida O sujeito cavado na aparecircncia eacute soterrado pelo barranco chuvoso dos sintagmas deslocados (EYBEN 2012 pp 258-259)

Em termos de temporalidade textual buscamos entender relaccedilotildees

diversas aleacutem da temporalidade da leitura ou da literatura lidavivida entraram

aqui o tempo do ausente do morto que se faz espectro (aleacutem do que acontece

com HCE o proacuteprio morto ressuscitado como Tim Finnegan o eacute na balada

irlandesa a que Joyce se remete) presenccedila e ausecircncia como dispositivos de

144

uma temporalidade do anacronismo presenccedilas que se fazem tambeacutem no

chamamento no apelo e na demanda A estrutura paradigmaacutetica viquiana

oferece subsiacutedios jaacute trabalhados mas o Wake com seu caraacuteter oniacuterico acoberta

uma seacuterie de cruzamentos e noacutes que se vistos mais de perto enriquecem a

leitura Pode ser que anaacutelises de textos de escritura de literatura em vez do

senso comum de que sejam elucidativas e iluminadoras sejam natildeo somente

dispensaacuteveis mas tambeacutem excessivas produzindo mesmo interferecircncias

tornando a jaacute difiacutecil leitura por si soacute ainda mais barroca e excessivamente pesada

de detalhes a serem enxergados Caminhos mais interessantes por

conseguinte seriam os da teorizaccedilatildeo que interesse por si soacute que possam

acompanhar a leitura do Wake sem causar ruiacutedos nela tampouco pretendendo

clarificaacute-la em objetivaccedilatildeo pretensiosa

Finnegans wake se estabelece no entremeio da verdadeira oposiccedilatildeo entre

circularidade e linearidade em que o ciacuterculo pode ser pensado se percorrido nos

moldes da demeure nomade derridiana e natildeo em ciclos de revisitaccedilatildeo Se

tomarmos o Wake a partir do tempo mensurado que se insere no caraacuteter circular

do sentido homogecircneo e infinito teremos de pensaacute-lo sublinhe-se em seu

caraacuteter precisamente literaacuterio de forma distinta de pensarmos essa mesma obra

a partir do tempo de simultaneidade que considere a estrutura circular sem

redundacircncia sem repeticcedilatildeo e sem divisotildees de linearidade

145

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Page 3: O FLUIR-RICORSO E OS TEMPOS DE FINNEGANS WAKE...O fluir-ricorso e os tempos de Finnegans wake. Dissertação de Mestrado. Orientador Piero Luis Zanetti Eyben. Brasília: Universidade

LUIacuteSA LEITE S DE FREITAS

O FLUIR-RICORSO E OS TEMPOS DE FINNEGANS WAKE

Dissertaccedilatildeo apresentada ao curso de Mestrado em Literatura do Departamento de Teoria

Literaacuteria e Literaturas da Universidade de Brasiacutelia aprovada pela banca examinadora

Brasiacutelia 16 de dezembro de 2014

____________________________________________________________________

Dr Piero Luis Zanetti Eyben

Universidade de Brasiacutelia mdash Presidente

____________________________________________________________________

Dr Caetano Waldrigues Galindo

Universidade Federal do Paranaacute mdash Membro Externo

____________________________________________________________________

Dr Henryk Siewierski

Universidade de Brasiacutelia mdash Membro Interno

____________________________________________________________________

Dra Cristina Maria Teixeira Stevens

Universidade de Brasiacutelia mdash Membro Interno ndash Suplente

aos meus pais

AGRADECIMENTOS

Satildeo 23 anos de agradecimentos diversos Vamos laacute paciecircncia aos meus pais que haacute tanto tempo reforccedilam os valores que sempre me passaram minha matildee linda fonte de amor na sua forma mais pura mulher que mais admiro no mundo e que sintetiza comprometimento devoccedilatildeo e moral meu pai minha referecircncia maacutexima cuja paixatildeo e eacutetica tanto admiro e que sempre me influenciaram aleacutem de ser certamente a mais incriacutevel combinaccedilatildeo de compositor escritor e professor que possa existir aos meus queridos avoacutes que descansam em paz em algum lugar e agrave minha avoacute wanda por quem meu amor eacute absolutamente infinito aos meus dois irmatildeos e agraves minhas duas irmatildes camila irmatilde mais velha para quem ainda olho com olhar de crianccedila tamanha eacute minha admiraccedilatildeo por seu talento sensibilidade e forccedila felipe maninho mais velho em quem por toda a infacircncia me espelhei mdash e de quem tanto peguei discos e bonecos do power rangers sem permissatildeo miguel que desde que veio ao mundo se mostra cada vez mais como um grande ser humano julinha que tornou nossas vidas mais doces e mais risonhas mdash e do jeito que o tempo passa em breve vai estar lendo ela mesma esta frase estendo isto aqui ainda aos meus irmatildeos de consideraccedilatildeo (nada de meios irmatildeos mdash tenho somente irmatildeos inteiros) tia sandra e e meus tantos familiares todos que provam que amor natildeo se divide mas se multiplica agravequele que estaacute sempre laacute para mim haacute sete anos e a quem tanto amo marcos oliveira agrave isabella carrazza que desempenha o papel primordial de amiga inseparaacutevel desde 2001 ao igor versiani e ao henrique barbosa os melhores amigos que os uacuteltimos anos me deram e que espero ter sempre por perto natildeo importa em que lugar do mundo estejam porque temos natildeo um cantinho mas verdadeiros latifuacutendios no coraccedilatildeo uns dos outros agrave joana melo que me ofereceu sua amizade tatildeo especial por toda a graduaccedilatildeoampaleacutem e a quem soacute posso agradecer por isso e fazer jus a essa troca agrave stephanie winkler pela sua amizade tatildeo profunda e inigualaacutevel ao pedro couto meu grande amigo com quem tenho a sintonia sagitta em tantos niacuteveis ao lucas lyra que agraves vezes me entende como poucos e a quem quero tatildeo bem agrave raquel campos amiga-irmatilde de companheirismo tatildeo vasto fez desse tempo de mestrado algo muito melhor agrave ludimila menezes amiga-em-forma-bruta enche meus dias de beleza com sua enorme sinceridade de alma que me enche de forccedila e alegria

ao rafael machado que se desdobra em mil e eu tanto admiro por seu apoio incomensuraacutevel e pelo conviacutevio agrave sarah jeanne cujo companheirismo fez toda a diferenccedila e por quem nutro o maior carinho possiacutevel e tambeacutem ao victor fialho e agrave sayuri hirako queridos que coloriram esse tempo junto conosco agraves feministas-realmente-amigas-queer-poacutes-modernxs-pan-normativxs grupo no qual a mariana ferreira me incluiu e cujo nome jaacute define a genialidade amanda quadrado ana paula jacob liacuteria nogueira lorena figueiredo luciana torres marcella fernandes thauana tavares cada uma de vocecircs tem um espaccedilo de carinho e amor dentro de mim ao joyce e agrave sua filha que o inspirou lucia mas tambeacutem ao proust ao dante agrave emily dickinson ao truffaut e agrave sofia coppola agrave fiona apple agrave brody dalle e ao rufus wainwright ao georges bizet e ao giacomo puccini agraves cidades brasiacutelia com sua vastidatildeo e belo horizonte com seu acolhimento agrave muacutesica a arte que tanto quanto literatura e filosofia me manteacutem viva e manteacutem em mim o interesse por me manter viva ao prof piero eyben mais do que orientador desta dissertaccedilatildeo modificou para sempre minha relaccedilatildeo com a graduaccedilatildeo em Letras e com a academia e cujas aulas nunca mais quis parar de frequentar desde 2011 pelos tantos ensinamentos pelo acolhimento e pela capacidade de redefinir esse meu percurso obrigada minha gratidatildeo natildeo tem limites e este trabalho natildeo existiria sem tudo isso agrave Capes pelo apoio financeiro agrave Universidade de Brasiacutelia pela importacircncia que ganha mais espaccedilo em mim desde 2009 a todos que passaram pela minha vida deixando alguma marca e que natildeo nomeei aqui certamente me tornei outra depois de vocecircs digo seus nomes em silecircncio obrigada

First we feel Then we fall

(FW 62711)

Now follow we out by Starloe

(FW 38230)

Resumo

FREITAS Luiacutesa O fluir-ricorso e os tempos de Finnegans wake Dissertaccedilatildeo de Mestrado

Orientador Piero Luis Zanetti Eyben Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 2014 151 p

Esta dissertaccedilatildeo percorre investigaccedilotildees acerca do tempo tanto como instacircncia narrativa tanto

como conceito de teorias filosoacuteficas a partir da obra uacuteltima do escritor irlandecircs James Joyce

(1882-1941) Finnegans wake (1939) O aporte teoacuterico perpassa a fenomenologia e em especial

a filosofia de Jacques Derrida (1930-2004) O ricorso termo que proveacutem da obra do filoacutesofo

Giambattista Vico (1668-1744) eacute aqui relido como fluir-ricorso em uma ampliaccedilatildeo das

investigaccedilotildees sobre o tempo no Finnegans wake para aleacutem da Scienza nuova (1725) seu

paradigma central O tempo como tambeacutem formador de memoacuteria diacronia coletiva

compartilhada traz agrave tona o questionamento da inserccedilatildeo ou exclusatildeo de certos textos no cacircnone

da histoacuteria da literatura e como esse sistema pocircde lidar com as peculiaridades do texto de

Finnegans wake desde a recepccedilatildeo de seus contemporacircneos modernistas Sobre o tempo do

proacuteprio texto suas relaccedilotildees com muacutesica e outras artes outro importante filoacutesofo para o trabalho

eacute Emmanuel Levinas (1906-1995) Lidando com sincronia diacronia e anacronismo traccedilamos

as possibilidades de entender o tempo do texto do Wake com o apoio desses termos como

abordados pelo filoacutesofo Ainda nesse acircmbito eacute tambeacutem discutido em parte deste trabalho o

tempo da traduccedilatildeo mdash ou seus tempos mdash e apontadas as traduccedilotildees brasileiras para o texto de

James Joyce A leitura das traduccedilotildees eacute feita sempre no esteio das discussotildees do tempo bem

como o questionamento sobre o cacircnone literaacuterio e a histoacuteria da literatura que partem igualmente

dessas noccedilotildees passando tambeacutem por Agostinho Martin Heidegger e Paul Ricoeur

Palavras-chave James Joyce Finnegans wake Tempo Jacques Derrida Fenomenologia

Abstract

FREITAS Luiacutesa The flowing-ricorso and the times of Finnegans wake Masterrsquos dissertation

Supervised by Piero Luis Zanetti Eyben Brasiacutelia University of Brasiacutelia 2014 151 p

This dissertation investigates different notions of time considered as a narrative concept as well

as a philosophical concept and center of philosophical theories from the last work by the Irish

author James Joyce (1882-1941) Finnegans wake (1939) The theoretical framework goes

through phenomenology and especially the philosophy of Jacques Derrida (1930-2004) The

ricorso term we take from the works of the Italian philosopher Giambattista Vico (1668-1744) is

reinterpreted here as a flowing-ricorso invoking the movement of a river broadening the

investigations on time concerning Finnegans wake beyond what we can see with Scienza nuova

(1725) its central paradigm The notion of time also as a memory a shared collective diachronic

vision elicits the questioning of the insertion or exclusion of some texts among the canonical ones

in the history of literature and how this system can deal with the peculiarities of Finnegans wake

ever since its first reception by the contemporary modernists About the time within the text itself

its relations with music and other forms of art another important philosopher here is Emmanuel

Levinas (1906-1995) Dealing with synchronic diachronic and anachronism we find the

possibilities of understanding the time of the text in the case of Finnegans Wake with the support

of Levinasrsquo approach of these terms Still concerning those themes the time of a translation is

also brought to this analysis mdash or its sundry times mdash and the different Brazilian translations for

James Joycersquos text are indicated The approach of this analysis of translations is based on the

investigation of the concept of time and the questions concerning the literary canon and the history

of literature all of these being connected notions also reading the works of Agostinho Martin

Heidegger and Paul Ricoeur

Keywords James Joyce Finnegans wake Time Jacques Derrida Phenomenology

Sumaacuterio

INTRODUCcedilAtildeO ndash Wake e environs11

CAPIacuteTULO I ndash Wake em pauta30

1 Algo parecido com nada 31

2 Sui generis38

3 Fluidez vida-morte46

4 Paralelos psicanaacutelise teoria da relatividade muacutesica51

CAPIacuteTULO II ndash Finnegans wake e o tempo da traduccedilatildeo64

CAPIacuteTULO III ndash Leitura luto elipse82

CAPIacuteTULO IV ndash Fluir e retorno108

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS138

BIBLIOGRAFIA145

INTRODUCcedilAtildeO WAKE E ENVIRONS

Hightime is ups be it down into outs according

Premente eacute o tempo que seja feito do teu jeito1

(FW 23916)

1 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2002) O mesmo valeraacute para as proacuteximas citaccedilotildees de Finnegans wake em portuguecircs exceto quando indicado de resto citaccedilotildees diversas desacompanhadas da indicaccedilatildeo de autoria satildeo traduccedilotildees livres feitas por mim

12

Decidir ler Finnegans wake eacute decidir por lanccedilar-se ao texto

Ainda que sua escrita tenha sido iniciada pouco tempo apoacutes a publicaccedilatildeo

de Ulysses (1922) que jaacute despertara uma recepccedilatildeo que ia de manifestaccedilotildees de

repuacutedio a grandes elogios passando por problemas com censura e acusaccedilotildees

de obscenidade Finnegans wake (1939) foi publicado mais de dezesseis anos

depois de o dublinense James Augustine Aloysius Joyce (1882-1941) comeccedilaacute-

lo e por volta de dois anos antes de seu falecimento em Zurique no dia 13 de

janeiro de 1941 Nesse iacutenterim acabou por ficar ofuscada a publicaccedilatildeo de

Pomes Penyeach (1927) livro que tambeacutem foi escrito em um longo intervalo de

tempo de 1904 a 1924 apesar de mdash bem ao contraacuterio das duas obras entre as

quais estaacute intercalado mdash consistir em treze curtos poemas

13

O contexto em que Finnegans wake foi produzido eacute permeado por

algumas peculiaridades aleacutem do longo tempo de escrita e reescrita a publicaccedilatildeo

de fragmentos do que ateacute entatildeo se chamava Work in progress possibilitou que

Joyce jaacute tivesse enquanto ainda escrevia concreta noccedilatildeo do impacto que sua

produccedilatildeo final poderia causar mdash fosse entre quem a lesse fosse entre quem

natildeo leu mas ouviu falar fosse entre quem comeccedilou a ler e desistiu ateacute os que

leram mas tiveram a sensaccedilatildeo de natildeo terem lido (talvez a mais comum no

primeiro contato com o Wake)

Soma-se a isso o problema de visatildeo de Joyce decorrente de um quadro

de glaucoma que se agravava cada vez mais obrigando-o a passar por mais de

dez cirurgias e a buscar consultas com meacutedicos de diferentes lugares em busca

de alguma melhora Chegou ao ponto de natildeo conseguir mais ler nada impresso

passando a ter de escrever em uma caligrafia enorme para conseguir enxergar

melhor usar um tapa-olho que ficou famoso em algumas de suas fotografias e

ditar alguns trechos de fragmentos do Finnegans wake O entatildeo jovem escritor

Samuel Beckett chegou a fazer esse trabalho algumas vezes ouvindo a citaccedilatildeo

de Joyce com apreccedilo pela tarefa especial que executava Aleacutem de ser uma das

figuras mais proacuteximas do jaacute ceacutelebre conterracircneo de quem recebeu alguns

elogios especiais e chegou a ser tratado com rara intimidade foi um de seus

mais sinceros admiradores e mais ativos defensores Os dois ficaram afastados

por um periacuteodo de cerca de um ano apoacutes um mal entendido que envolvia a filha

de Joyce Lucia Anna Joyce que parecia ter se apaixonado pelo jovem irlandecircs

que visitava seu pai mas a relaccedilatildeo dos dois escritores acabou por sobreviver ao

ocorrido

Joyce teve em vida numerosos admiradores que como Beckett

apoiaram ativamente sua produccedilatildeo Entre os nomes mais importantes daqueles

que estiverem em alguma medida presentes na fase final de sua vida estaacute o de

sua mecenas a inglesa Harriet Shaw Weaver (1876-1961) que se tornaria

editora da revista The Egoist (anteriormente chamada de The Freewoman e The

New Freewoman) Weaver estudou na London School of Economics e participou

ativamente do maior movimento pelos direitos das mulheres no Reino Unido

Womenrsquos social and political union que reivindicou o sufraacutegio universal direito

14

concedido somente em 1928 (deacutecadas depois da fundaccedilatildeo do grupo em 1903

e mais de um seacuteculo depois das primeiras reivindicaccedilotildees na Inglaterra desde o

iniacutecio endossadas publicamente por alguns homens ceacutelebres) A revista The

Egoist contava com Ezra Pound na seccedilatildeo literaacuteria e nela foram publicados

Pheacutenomenologie de la perceptiontrechos de Ulysses Pound por um tempo

teceu diversos elogios aos trabalhos de Joyce e tambeacutem o apoiou antes que

comeccedilasse a mudar suas opiniotildees a respeito das empreitadas literaacuterias do

irlandecircs exilado especificamente na fase final de suas obras em especial diante

de Finnegans wake que lhe pareceu um material por demais indigesto

Outro importante nome eacute o de Sylvia Beach (1887-1962) proprietaacuteria da

Shakespeare and Company mdash fundada em 1919 e apelidada por Joyce de

Stratford-on-Odeacuteon em referecircncia a Stratford-upon-Avon cidade natal de

Shakespeare e agrave rue de l`Odeacuteon onde ficava a livraria mdash que publicou a

primeira ediccedilatildeo de Ulysses em 1922 e Pomes Penyeach em 1927 aleacutem da

coletacircnea de ensaios sobre o Wake que ainda estava em construccedilatildeo em 1929

Our exagmination round his factification for incamination of Work in progress

Beach apoiou e acompanhou boa parte da carreira de Joyce ainda que algumas

das empreitadas tenham lhe acarretado problemas ldquoI understood from the first

that working with or for Mr Joyce the pleasure was mine mdash an infinite pleasure

the profits were for himrdquo2 (FLANNER 1972 apud HALFORD 2010) Os anos

1930 marcaram dificuldades econocircmicas apesar da ajuda de amigos e

simpatizantes da livraria que formaram um grupo para ajudar a reerguecirc-la o Les

amis de Shakespeare and company Em 1941 poreacutem com a invasatildeo da Franccedila

pelo Terceiro Reich agravando a Segunda Guerra Mundial os problemas se

somaram e levaram-na agrave falecircncia Apesar de a relaccedilatildeo entre Joyce e Beach ter

se tornado ceacutelebre e a livraria ter sido centro de muitos encontros conta-se que

ironicamente o fechamento da livraria aconteceu pouco depois de Sylvia Beach

se recusar a vender a uacuteltima coacutepia de Finnegans wake a um oficial do

totalitarismo nazista

2 ldquoCompreendi desde o iniacutecio que trabalhar com ou para o Sr Joyce o prazer era todo meu ndash um infinito prazer os lucros eram delerdquo

15

In late 1941 Shakespeare and company was forced to close shortly after Beach refused to sell her last personal copy of Finnegans wake to a Nazi officer It was symbolically ldquoliberatedrdquo in 1944 by Ernest Hemingway but in fact the bookstore never reopened though in the 1950s Beach gave an American named Whitman permission to open a bookstore under that name (FARGNOLI 2006 p 352)3

Foram figuras importantes na fase final vida de Joyce o casal Eugene

Jolas (1894-1952) e Maria McDonald (1893-1987) americanos residentes em

Paris que editavam a revista literaacuteria experimental Transition fundada por eles

em 1927 em que foram publicados excertos de Finnegans wake ainda sob seu

tiacutetulo provisoacuterio anterior Work in progress aleacutem de artigos sobre a obra de

James Joyce Conheceram-se por Sylvia Beach A revista de ares inovadores e

artisticamente progressistas se estabeleceu como referecircncia na capital francesa

especialmente entre os angloacutefonos desterrados A seguinte descriccedilatildeo de Eugene

Jolas encontra-se na premiada biografia James Joyce (1959 1989)4 escrita pelo

norte-americano Richard Ellmann

Homem sensiacutevel procurava uma teoria da arte que tambeacutem fosse uma filosofia de vid pensava tecirc-la encontrado numa ldquoreligiatildeo da palavrardquo cujo ritual ele saturava com termos como ldquofantaacutesticordquo ldquomacircnticordquo e seu neologismo ldquoparamitordquo Soacute na arte se podia confiar e confiar apenas se se abjurasse do externo em nome da imaginaccedilatildeo (p 725)

Eugene Jolas foi um daqueles que mais apoiaram e defenderam a obra

de James Joyce em sua eacutepoca tendo visto em Finnegans wake uma obra que

seria forte e consistente acircncora para o manifesto que publicou em 1929 na

proacutepria revista Transition denominado ldquoRevolution of the wordrdquo no qual discorria

sobre novas formas de linguagem literaacuteria Durante a deacutecada de 1960 jaacute viuacuteva

Maria se tornaria ceacutelebre ainda como presidenta do Comitecirc Americano de Paris

3 ldquoNo fim de 1941 Shakespeare and company foi obrigatoriamente fechada pouco tempo depois de Beach ter se recusado a vender sua uacuteltima coacutepia pessoa de Finnegans wake a um oficial nazista Foi simbolicamente ldquoliberadardquo em 1944 por Ernest Hemingway mas a livraria nunca foi reaberta de fato apesar de nos anos 1950 Beach ter permitido que um americano chamado Whitman abrisse uma livraria usando o mesmo nomerdquo 4 Em 1982 Richard Ellmann recebeu o James Tait Black Memorial Prize na categoria biografia um dos mais tradicionais precircmios literaacuterios britacircnicos

16

contra a Guerra do Vietnatilde que foi censurado pelo governo francecircs poucos anos

depois de sua fundaccedilatildeo em 1968

Adrienne Monnier (1892-1955) foi mais uma das maiores apoiadoras de

James Joyce em Paris Abriu a livraria La maison des amis des livres em 1915

que ficava proacutexima de um dos endereccedilos da Shakespeare and company (o da

rue de lrsquoOdeacuteon que originou o jaacute citado apelido de Joyce de ldquoStratford-on-

Odeacuteonrdquo) Adrienne Monnier difundiu na Franccedila a obra literaacuteria do escritor norte-

americano Ernest Hemingway em traduccedilotildees para liacutengua francesa e publicou por

um tempo o perioacutedico literaacuterio Le navire drsquoargent que contava com Jean Preacutevost

em sua equipe editorial Uma das primeiras mulheres a ser dona de uma livraria

especialmente fundada por ela mesma isto eacute sem que tivesse sido herdada de

famiacutelia ou de um falecido marido Monnier foi referecircncia para Sylvia Beach que

abriu seu negoacutecio quatro anos depois construindo-se entre elas uma vasta

parceria

Ford Madox Ford (1873-1939) literato inglecircs proacuteximo de Ezra Pound que

tambeacutem residiu em Paris e que inspirou um capiacutetulo do autobiograacutefico A

moveable feast de Ernest Hemingway foi outra fonte de apoio com que Joyce

contou Ford editava a revista literaacuteria The transatlantic review em Paris e a

publicava em Londres pela editora independente Gerald Duckworth Overlook

(hoje tatildeo somente Duckworth Overlook cujo slogan eacute ldquoindependente desde

1898rdquo) Inicialmente os financiadores da Transatlantic exigiram que nada escrito

por Joyce fosse publicado na revista mas acabaram abrindo matildeo da proibiccedilatildeo

quando Ford ameaccedilou recusar o cargo de editor Com doze ediccedilotildees mensais

durante o ano de 1924 foi a primeira publicaccedilatildeo a conter excertos do entatildeo Work

in progress mdash tiacutetulo virtualmente sugerido por Ford em seu suplemento literaacuterio

depois adotado por Joyce mdash que soacute mais tarde apareceriam tambeacutem na

Transition do casal Jolas Ford que tambeacutem publicou Hemingway e Tristan

Tzara chegou a temer que sua revista fosse prejudicada se houvesse alguma

acusaccedilatildeo de obscenidade do que Joyce escreveu Por outro lado a princiacutepio o

proacuteprio Joyce se recusou publicar assim trechos de sua obra em andamento por

acreditar que natildeo seria bom tecirc-la fragmentada (apesar de Ulysses ter sido

17

publicado dessa maneira em outra revista a Little review) tendo negado outros

convites anteriores mas acabou cedendo

Tanto as vaacuterias publicaccedilotildees dos excertos em progresso quanto

posteriormente a publicaccedilatildeo de Finnegans wake poreacutem fizeram com que ateacute

alguns de seus admiradores mais contundentes se manifestassem

negativamente Ateacute mesmo Nora a esposa de Joyce criticou o texto do Wake

pejorativamente um ldquochop sueyrdquo questionando a qualidade a partir da

ininteligibilidade Reiterava assim a opiniatildeo expressa por Harriet Shaw Weaver

que tambeacutem se posicionou desfavoraacutevel ao que Joyce estava produzindo no fim

de sua vida distanciando-se consideravelmente dele na fase em que estava

escrevendo o Wake Em uma carta a Joyce disse abertamente natildeo se interessar

pela ldquoproduccedilatildeo de seu Atacado de Trocadilhos de Seguranccedila nem pelas

escuridotildees e ininteligibilidades do seu sistema de linguagem deliberadamente

emaranhado Parece-me que vocecirc desperdiccedila seu gecircniordquo (ELLMANN 1989 p

728) Ainda que natildeo tenha havido grande rancor entre os dois na ocasiatildeo da

morte de Joyce em Zurique ela teria arcado com as despesas de seu funeral mdash

que natildeo teve refinamentos e nem qualquer homenagem ou contribuiccedilatildeo vinda

da Irlanda

Ezra Pound (1885-1972) foi quem possivelmente fez o comentaacuterio mais

aacutecido O escritor norte-americano comeccedilou a tecer criacuteticas desde os capiacutetulos

finais de Ulysses e quanto a Finnegans wake ao receber de Joyce o manuscrito

do livro de Shaun para que lesse e comentasse respondeu a ele que soacute lhe

restava desejar sucesso mas natildeo sabia o que pensar Na mesma carta chegou

a dizer que aquele texto soacute valeria a pena se apresentasse uma visatildeo divina ou

a cura para a gonorreia (ldquothe claprdquo) ldquoNothing short of divine vision or a new cure

for the clapp [sic] can possibly be worth all that circumambient peripherisationrdquo5

(READ 1970 p 228) Vale lembrar que anteriormente na ocasiatildeo de uma

tentativa de angariar fundos para Joyce a partir do Royal Literary Fund Pound

se referiu a Joyce escrevendo a Yeats e George Moore de maneira muito

5 A traduccedilatildeo feita por Lya Luft da biografia de Joyce escrita por Richard Ellmann traz a seguinte versatildeo do trecho ldquoNada ateacute onde eu possa ver nada sem visatildeo divina ou uma nova cura da gonorreia valeraacute possivelmente a peripatetizaccedilatildeo circunambienterdquo (1989 p 721)

18

elogiosa tendo expressado esses elogios tambeacutem ao proacuteprio Joyce em outras

ocasiotildees ldquostill it gives me a certain satisfaction to state that I consider Joyce a

good poet and without exception the best of the younger prose writers His style

has the hard clarity of a Stendhal or a Flaubert He has also the richness of

erudition which differentiates him from certain able and vigorous but rather

overloaded impressionist writersrdquo6 (ELLMANN apud DENNING 1997 p 10)

A primeira publicaccedilatildeo sobre Finnegans wake surgiu antes mesmo que a

obra fosse concluiacuteda Alguns apoiadores de Joyce se reuniram em torno da obra

coletiva Our exagmination round his factification for incamination of Work in

progress7 (1929) quando ainda havia apenas os fragmentos denominados Work

in progress com o intuito de atenuar a recepccedilatildeo que ateacute entatildeo oscilava

nebulosamente O tiacutetulo circular sugestivo e bem-humorado foi sugerido por

Joyce A coletacircnea foi publicada pela Faber and Faber a mesma editora que

publicou a primeira ediccedilatildeo de Finnegans wake quase dez anos mais tarde em 4

de maio de 1939 Reunia ensaios criacuteticos de doze autores Samuel Beckett

Stuart Gilbert Eugene Jolas Marcel Brion Frank Budgen Victor Llona Elliot

Paul Robert McAlmon Thomas MacGreevy John Rodker Robert Sage e

William Carlos Williams O proacuteprio Joyce desejava que essa publicaccedilatildeo natildeo

contivesse apenas textos elogiosos mas tambeacutem que se expressasse algo de

negativo a respeito de seus escritos Aleacutem dos doze artigos houve dois textos

extras denominados ldquocartas de protestordquo (letters of protest) e ambos trouxeram

criacuteticas o de uma jornalista que assinou sob o pseudocircnimo de G V L Slingsby

e outro assinado por um poeta russo chamado Vladimir Dixon O texto de Dixon

ldquoA litter do James Joycerdquo denomina seu destinataacuterio ora de senhor Germs

Choice ora de senhor Shamersquos Voice trocadilhos que fizeram Stuart Gilbert e

Sylvia Beach cogitarem que essa criacutetica negativa tivesse sido escrita pelo proacuteprio

Joyce A hipoacutetese poreacutem permanece natildeo confirmada

6 Traduccedilatildeo livre ldquoainda assim me daacute certa satisfaccedilatildeo afirmar que considero Joyce um bom poeta e sem exceccedilatildeo o melhor dos jovens prosadores Seu estilo tem claridade dura de um Stendhal ou de um Flaubert Ele tem ainda a riqueza da erudiccedilatildeo que o diferencia de alguns haacutebeis e vigorosos poreacutem excessivos escritores impressionistasrdquo 7 A mesma traduccedilatildeo supracitada propotildee o tiacutetulo traduzido Nosso Exagme em torno da sua factificaccedilatildeo da incaminaccedilatildeo de Obra em realizaccedilatildeo (Ibid p 755)

19

O tradutor inglecircs Stuart Gilbert (1883-1969) um dos nomes envolvidos na

publicaccedilatildeo era um dos assiacuteduos e atentos leitores contemporacircneos de Joyce

Foi quem publicou James Joyces Ulysses A Study (1930) livro ainda hoje uacutetil

para consulta na leitura da obra que precedeu Finnegans wake elucidando

numerosas referecircncias um tanto obscuras por todos os capiacutetulos e incluindo

ainda a famigerada tabela comparativa entre Ulysses e a Odisseia de Homero

Stuart Gilbert foi apresentado a Joyce por Sylvia Beach assim como Maria e

Eugene Jolas

Apesar de conterracircneos Samuel Beckett (1906-1989) e James Joyce se

conheceram somente em Paris no exiacutelio da terra-matildee compartilhada e logo se

estabeleceu a rotina de que Beckett o visitasse sempre que estivesse na cidade

Por ter acompanhado boa parte do processo de criaccedilatildeo de Finnegans wake

especialmente na ajuda que deu a Joyce por seus problemas de visatildeo podemos

imaginar que Samuel Beckett era grande candidato a uma espeacutecie de leitor ideal

o mais proacuteximo do texto aleacutem do proacuteprio autor Suas observaccedilotildees sobre o livro

de Joyce satildeo brilhantes Eacute sabido que foi Beckett o primeiro (ou ao menos

certamente um dos primeiros) a notar verdadeiramente que a incompreensatildeo

mais comum se traduz antes mesmo de a leitura ser iniciada isto eacute ainda ali

nas expectativas perante o livro mdash como poderiacuteamos ldquoentenderrdquo o Finnegans

wake esperando uma leitura tradicional

You cannot complain that this stuff is not written in English It is not written at all It is not to be read It is to be looked at and listened to () Here form is content content is form () His writing is not about something it is that something itself When the sense is sleep the words go to sleephellip When the sense is dancing the words dance (BECKETT 1964 p14)8

8 ldquoNatildeo se pode reclamar que esse material natildeo esteja escrito em inglecircs Simplesmente natildeo eacute um material escrito Natildeo existe para ser lido Existe para ser olhado e ouvido () Aqui forma eacute conteuacutedo conteuacutedo eacute forma () Sua escrita [de Joyce] natildeo eacute sobre alguma coisa eacute a proacutepria coisa Quando o sentido eacute adormecido as palavras vatildeo dormir Quando o sentido eacute danccedilar as palavras danccedilamrdquo

20

O que Beckett muito cedo percebeu e acaba por nos confirmar eacute que a

linguagem em Finnegans wake natildeo se presta a meramente servir ao

remetimento agrave descriccedilatildeo nem a contar um ocorrido prefere trazer nela em vez

de apresentar por meio dela intenta tecirc-la como ambiente proacuteprio do

acontecimento natildeo como ferramenta siacutegnica para dizecirc-lo representativamente

ou dizecirc-lo a distacircncia Levando essa tentativa em consideraccedilatildeo nada mais

coerente do que dispensar a escolha de um idioma para produzir o texto tecendo

sua literariedade de maneira anaacuterquica em relaccedilatildeo a regras de formaccedilatildeo de

palavras ou quaisquer outras normatividades de um idioma e suas limitaccedilotildees a

ponto de se poder dizer que o Finnegans wake natildeo estaacute escrito em inglecircs nem

em irlandecircs mas sim em uma liacutengua proacutepria babeacutelica mdash ainda que se possa

argumentar que a base dessa subversatildeo eacute a liacutengua inglesa de maneira que

Joyce tanto escreve no inglecircs quanto contra ele como jaacute foi dito nas palavras do

estudioso Seamus Deane

Joyce involves himself and us in an extremely complex series of translations that are endless because there is no original and no target language () the original language is the target language The book is written in the English language and also against the English language it converts itself into English and perverts itself from English (DEANE 2000 p viii)9

Lendo uma obra que natildeo pode oferecer certezas ou linearidades

estamos em uacuteltima instacircncia simplesmente nos entregando a ela sem indiacutecios

que possibilitem saber ou prever minimamente no que tudo aquilo vai dar O

leitor soacute pode continuar sua empreitada se estiver ciente dessa ausecircncia de

sentidos pontuais e de sequecircncias narrativas agraves quais normalmente buscaria se

prender Natildeo haacute uma sequecircncia de cenas causando a sensaccedilatildeo de suspense

ou de fluidez narrativa que nos faz virar as paacuteginas em prosa comum Ao inveacutes

disso o livro todo eacute espeacutecie de puro e constante suspense (uma descriccedilatildeo em

si impossiacutevel para o significado de ldquosuspenserdquo) como se o caminho de seu texto

9 ldquoJoyce se envolve e nos envolve em uma complexa seacuterie de traduccedilotildees que satildeo infinitas porque natildeo haacute liacutengua de origem e liacutengua-alvo () a liacutengua de origem eacute a liacutengua-alvo O livro eacute escrito em liacutengua inglesa e tambeacutem contra a liacutengua inglesa ele se converte em inglecircs e se perverte do inglecircsrdquo

21

virasse esquinas que os leitores nem mesmo tinham visto que existiam Cada

termo cada linha do Wake conteacutem diversas camadas semacircnticas que podem

ser absorvidas em diferentes niacuteveis e assim a leitura se realiza de uma forma

uacutenica de acordo com as referecircncias que o leitor captou Essa configuraccedilatildeo

textual potencializa mdash ou polemiza mdash as diferenccedilas que existiratildeo entre leituras

por pessoas diferentes ou entre as releituras de um mesmo indiviacuteduo

Por isso decidir ler Finnegans wake eacute decidir por lanccedilar-se ao texto Lecirc-

lo eacute uma experiecircncia fenomecircnica per se

Mesmo para alguns leitores que dedicaram parte de suas vidas a lecirc-lo e

relecirc-lo o texto natildeo se ausenta de dificuldades Uma das primeiras publicaccedilotildees

oferecendo uma leitura ampla e aprofundada da totalidade do Wake que se

propusesse a ter alguma didaacutetica em sua abordagem foi A Skeleton key to

Finnegans wake dos pioneiros Joseph Campbell e Henry Morton Robinson em

1944 O inglecircs Anthony Burgess lembrado por sua famigerada ficccedilatildeo distoacutepica

A Clockwork Orange (1962) e o acadecircmico americano William York Tindall

tambeacutem foram alguns dos primeiros a publicarem guias completos para a leitura

do Wake aleacutem de Robinson e Campbell Burgess publicou Here Comes

Everybody an introduction to James Joyce for the ordinary reader (1965) pela

proacutepria Faber and Faber A shorter Finnegans wake (1967) que traz o texto de

Joyce consideravelmente reduzido por Burgess e Joysprick na introduction to

the language of James Joyce (1973) Tindall publicou A readerrsquos guide to

Finnegans wake (1969) que sucedeu seu outro estudo didaacutetico de escopo mais

amplo A readerrsquos guide to James Joyce (1955)

William York Tindall tenta tornar o processo de leitura o mais didaacutetico e

facilitado possiacutevel indicando as referecircncias em cada capiacutetulo do Wake Ao final

de sua introduccedilatildeo em A readerrsquos guide to Finnegans wake Tindall afirma que

seu guia natildeo visa a uma apreensatildeo completa nem a ultimatos sobre a obra mas

sim a ser um suplemento de estudos preacutevios e acompanhar a leitura de uma

maneira relativamente independente isto eacute livremente ldquoAfter all what authority

on the Wake knows half of it Which half is the critical questionrdquo (TINDALL 1969

22

pp 25-26)10 Ironizar a possibilidade de que se saiba afirmar algo sobre

Finnegans wake talvez se aplique em verdade a qualquer texto literaacuterio mas

William York Tindall se resguarda claro especificamente em sua condiccedilatildeo de

joyciano e de redator de um guia para o Finnegans wake Diz ainda nessa

mesma introduccedilatildeo

Surely the Wake abounds in farcical materials () But farce is a category of drama and except from dream maybe the Wake evades categories Therersquos lsquolots of fun at Finneganrsquos wakersquo says the poet in his ballad of Tim Finnegan Taking my clue from this distrusting categories as I distrust earnestness I content myself with calling the Wake a very funny book (Ibid p 20)11

De fato o humor eacute uma das caracteriacutesticas sobressalentes em Finnegans

wake Os puns frequentemente carregam uma ironia inevitavelmente risiacutevel

Entre absurdos e alfinetadas a coletacircnea de trocadilhos ruma ao riso Uma das

comparaccedilotildees mais acertadas mdash ainda que comparaccedilotildees sejam sempre

perigosas mdash foi feita pelo escritor francecircs Valery Larbaud falando de Ulysses

ldquoeacute tatildeo grande e abrangente e humano quanto Rabelaisrdquo (ELLMANN 1989 p

617) Esse algo de rabelaisiano povoa ainda mais o sucedente Finnegans wake

que pretende tudo abarcar trabalha sobre o aparente exagero mdash que perde a

caracteriacutestica de excesso ao se fazer produtivo O exagero leva ao humor o

inacreditaacutevel e inverossiacutemil levam agrave quebra imediata e incontornaacutevel da

seriedade O que Wake tem de excessivo pode ser para nos fazer rir mais do

que para impressionar presunccedilosamente ou para meramente dificultar o texto ou

adornaacute-lo mais que isso o que o texto faz eacute lotar a si proacuteprio isto eacute se estufar

de conteuacutedo com um barroquismo que se autoironiza

10 ldquoAfinal de contas qual autoridade no Wake conhece sequer metade dele Qual metade eacute a questatildeo criacuteticardquo 11 ldquoCertamente o Wake se aproxima de materiais farsescos () Mas a farsa eacute uma categoria do drama e exceto por sonho talvez o Wake se esquiva de categorias Haacute lsquomuita diversatildeo no funeral do Finneganrsquo diz o poeta em sua balada sobre Tim Finnegan Tirando daiacute uma pista desconfiando de categorias como desconfio de seriedade eu me contento com chamar o Wake de um livro muito engraccediladordquo

23

Em artigo de 1955 ldquoA obra de arte abertardquo posteriormente publicado em

Teoria da poesia concreta (1965) Haroldo de Campos buscou compreender as

direccedilotildees para as quais apontavam as obras de arte modernas e para percorrer

esse caminho partiu de Finnegans wake e de obras de diversos autores mdash

Mallarmeacute Ezra Pound Cummings Pierre Boulez Deacutecio Pignatari e outros Em

Opera aperta (1962) Umberto Eco aborda o tema de maneira similar tambeacutem

fundamentou seu paradigma de obra de arte aberta a partir de Finnegans wake

e outras obras12 Havia uma seccedilatildeo toda dedicada a Joyce na primeira ediccedilatildeo

que depois passou a ser editada separadamente e consistia em uma

primeira tentativa pessoal de acompanhar o desenvolvimento de um artista no qual o projeto de uma obra aberta manifesta em transparecircncia ao niacutevel da pesquisa das estruturas operacionais toda uma aventura cultural a soluccedilatildeo de um problema ideoloacutegico a morte e o nascimento de dois universos morais e filosoacuteficos (ECO 1988 p 22)

Haroldo de Campos e Umberto Eco falando da ldquoobra de arte abertardquo natildeo

foram os uacutenicos a derivar do Finnegans wake de Joyce compreensotildees e

premissas de um grande paradigma teoacuterico Joseph Campbell (1904-1987)

teoacuterico estadunidense elaborou o ceacutelebre conceito de monomito segundo o qual

a jornada de um heroacutei eacute ciacuteclica e essa caracteriacutestica poderia ser notada em todas

as mitologias em diferentes graus tomando como exemplos mitos que

compotildeem a mitologia hindu egiacutepcia grega e cristatilde Joseph Campbell parte da

tese de que todos esses mitos satildeo variaccedilotildees de uma mesma narrativa una Um

dos padrotildees que Campbell estudou nessas variaccedilotildees foi a jornada do heroacutei

descrito em The hero of a thousand faces (1949) A primeira publicaccedilatildeo de

impacto de Joseph Campbell foi justamente jaacute citado estudo pioneiro entre as

12 Natildeo satildeo necessariamente abordagens idecircnticas apesar da grande coincidecircncia entre ambas inclusive terminoloacutegicas O proacuteprio Umberto Eco em introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo brasileira diz ldquoEacute mesmo curioso que alguns anos antes de eu escrever Obra Aberta Haroldo de Campos num pequeno artigo lhe antecipasse os temas de modo assombroso como se ele tivesse resenhado o livro que eu ainda natildeo tinha escrito e que iria escrever sem ter lido seu artigo Mas isso significa que certos problemas se manifestam de maneira imperiosa num dado momento histoacuterico deduzem-se quase que automaticamente do estado das pesquisas em cursordquo (ECO 1988 p 17)

24

publicaccedilotildees sobre o Wake A skeleton key to Finnegans wake (1944) escrito por

ele em parceria com Henry Morton Robinson e publicado pela editora Harcourt

entatildeo Harcourt Brace Foi certamente o primeiro estudo completo e que se

propunha a servir como guia de leitura mais de duas deacutecadas antes de Tindall

publicar o seu famoso A readerrsquos guide A obra de James Joyce gerou inspiraccedilatildeo

para Campbell ateacute mesmo na escolha do termo ldquoAnd his monomyth Ah hordquo

(FW 58124) As ideias desenvolvidas no conceito satildeo bastante caras ao

Finnegans wake muitas variaccedilotildees temaacuteticas reunidas formando uma unidade

um caleidoscoacutepio dos grandes mitos em que as narrativas histoacuterias se

entrelaccedilam ao inveacutes de somente se diferenciarem entre si Apagam-se as linhas

que delimitam a identidade cultural o idioma a liacutengua nacional ou regional o

momento histoacuterico ou qualquer porccedilatildeo isolada de tempo e espaccedilo tudo age em

prol da compreensatildeo do todo e do que nos une atraveacutes dos seacuteculos e das

fronteiras

No Brasil a recepccedilatildeo de Finnegans wake e sua influecircncia no trabalho de

grandes intelectuais tambeacutem natildeo tardou a se explicitar mdash e com grandes

leitoresleituras alguns fragmentos foram traduzidos por Augusto de Campos e

Haroldo de Campos em Panaroma do Finnegans wake (1962) Essa publicaccedilatildeo

foi de enorme importacircncia na difusatildeo do texto no Brasil em uma via de matildeo

dupla tanto Joyce influenciou intelectuais ligados agrave poesia concreta quanto os

irmatildeos Campos contribuiacuteram para difundir ainda mais a sua obra Felizmente

natildeo houve grande impacto negativo que afastasse leitores e parecesse invalidar

a qualidade do Wake ao contraacuterio a recepccedilatildeo foi natildeo soacute positiva como

especialmente produtiva em especial graccedilas agrave publicaccedilatildeo do Panaroma do

Finnegans wake que encorajou certa inspiraccedilatildeo e aproximaccedilatildeo da obra com o

que se fazia no Brasil em termos de poesia traduccedilatildeo e ateacute mesmo muacutesica13 jaacute

nos anos 1960

13 Eacute relativamente desconhecido o fato de que Peacutericles Cavalcanti musicou um trecho do Panaroma do Finnegans wake traduzido por Augusto de Campos ldquoNuvoletardquo mas essa bela versatildeo pode ser conhecida online numa performance com Regina Caseacute de 1983 no Sesc Pompeia para o programa Faacutebrica de Som

25

Haacute ainda poucas (ou talvez seja um nuacutemero surpreendentemente alto)

traduccedilotildees extensas de Finnegans wake publicadas mundo afora mdash francecircs

alematildeo mandarim polonecircs japonecircs (haacute duas) coreano italiano galego

contam-se nos dedos mdash e o portuguecircs haacute poucos anos foi incluiacutedo entre os

poucos idiomas que possuem traduccedilatildeo integral graccedilas a Donaldo Schuumller que

traduziu o texto do Wake para o portuguecircs brasileiro (se eacute que seria coerente

dizer dessa maneira enquadrando em um idioma) no decorrer de quatro anos

A traduccedilatildeo cujo primeiro volume data de 2001 foi publicada aos poucos e trouxe

consigo o tiacutetulo cunhado pelos irmatildeos Campos Finniacutecius reveacutem Com notas de

leitura a cada capiacutetulo que comentam aspectos gerais do texto Schuumller realizou

essa tarefa hercuacutelea com vasto meacuterito e deixou sua contribuiccedilatildeo criacutetica unida ao

seu trabalho de traduccedilatildeo

Houve em especial nos anos 2000 uma revisitaccedilatildeo de toda a tradiccedilatildeo

de Joyce e uma espeacutecie de nova recepccedilatildeo sua no Brasil com muitas traduccedilotildees

e trabalhos diversos sendo publicados Uma terceira via de traduccedilatildeo foi

executada com Ulysses (2012) por Caetano W Galindo que tambeacutem traduziu

Finnrsquos Hotel (2014) Este uacuteltimo se trata de textos que antecederam a finalizaccedilatildeo

do Work in progress que se tornaria o Finnegans wake Permaneceu em

suspenso se o Finnrsquos hotel de Joyce deveria ser um livro independente e ele

acabou por descartaacute-lo ou se eram rascunhos ensaios tentativas ou algo

semelhante do que planejava fazer em sua obra final jaacute que o livro abarca muitos

elementos do Wake Recentemente tambeacutem alguns dos escritos esparsos de

James Joyce foram editados em De santos e saacutebios escritos esteacuteticos e poliacuteticos

(2012) organizado a partir de The critical writings por Dirce Waltrick do Amarante

e Seacutergio Medeiros ambos fizeram tambeacutem a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo de Cartas

a Nora (2012) que possuem traduccedilatildeo portuguesa editada no mesmo ano feita

por Joseacute Miguel Silva ainda no mesmo ano foram publicadas tambeacutem as

Epifanias (2012) de Joyce traduzidas por Piero Eyben anteriores ainda satildeo o

livro-guia Para ler o Finnegans wake de James Joyce (2009) de Dirce Waltrick

do Amarante que traz tambeacutem uma traduccedilatildeo do fragmento Anna Livia

Plurabelle e O efeito da letra Lacan leitor de Joyce (2003) de Ram Mandil

26

Expusemos entatildeo de maneira breviacutessima a recepccedilatildeo de Finnegans

wake da maneira como se deu inicialmente em especial no seu impacto entre

as figuras centrais da vida de James Joyce como escritor mdash que contrasta como

pontuamos com a maneira como o Wake chegou ao Brasil se estabelecendo

natildeo muito tardiamente como referecircncia e influecircncia tanto para alguns de nossos

maiores intelectuais quanto para um puacuteblico geral e de diversas aacutereas A

intenccedilatildeo de uma maneira ou de outra natildeo eacute sublinhe-se a de reiterar as

dificuldades de acesso ao texto jaacute que muitas das objeccedilotildees citadas por

contemporacircneos de Joyce partem do argumento de uma suposta profunda e

contraproducente inteligibilidade bem como da noccedilatildeo de que sua obra final seria

um jogo louco ou inuacutetil de palavras e sons

Ao contraacuterio pode ser relevante conhecermos ao menos alguns dados

sobre a recepccedilatildeo turbulenta para sabermos enfrentar esses argumentos jaacute

velhos enferrujados que intentam justificar por que natildeo ler Finnegans wake e

ainda surgem com espantosa frequecircncia Como respondecirc-los hoje Ainda se

acredita que Finnegans wake eacute uma piada um sarro um jogo intelectual banal

e mais pretensioso do que primoroso Ainda eacute visto como um texto

impenetraacutevel Por quecirc Ateacute quando Quais as consequecircncias de uma obra

como essas ser considerada ldquoum livro que ningueacutem leulecircrdquo considerando ainda

os avisos ou receios dos que dizem que em geral lecirc-se cada vez menos

literatura Como Finnegans wake eacute considerado claacutessico (se o for) se eacute ilegiacutevel

e impenetraacutevel eou uma peccedila de chacota intelectual O que seria um claacutessico

e de que vale essa classificaccedilatildeo valorativa

Eacute claro que natildeo faria sentido negar as peculiaridades inerentes ao texto e

agrave sua construccedilatildeo e nem pretendemos fazecirc-lo pretendemos o exato oposto

desse reducionismo que eacute enxergaacute-las e enfrentaacute-las da maneira mais

destemida possiacutevel mdash destemida no sentido de natildeo criar diferenciaccedilotildees entre

literatura ldquofaacutecilrdquo e ldquodifiacutecilrdquo leia-se sem criar uma categoria especial para a leitura

do Finnegans wake Natildeo se trata de afirmarmos que seja um texto ldquofaacutecilrdquo nem

que seja um texto impenetraacutevel Ideal eacute que o encaremos como o que ele eacute mdash

um texto literaacuterio um texto escritural como quisermos chamaacute-lo eacute um texto

Demanda-nos a leitura De noacutes leitores quaisquer que sejamos Se olhamos

27

para o Wake e questionamos o que conteacutem jaacute somos grandes candidatos a

percorrer seus caminhos Natildeo satildeo muitos os dispostos Natildeo porque devam ser

selecionados mas porque os preconceitos talvez afastem os desinteressados

Ulysses jaacute carrega tambeacutem certo estigma mas parece figurar como uma obra

um tanto mais simpaacutetica ou atraente quiccedilaacute mais receptiva ainda que

considerada tambeacutem difiacutecil extensa complexa Ulysses tem trecircs traduccedilotildees

brasileiras14 de trecircs intelectuais de diferentes eacutepocas de meacuterito e de peso de

fundos distintos e consequentemente trabalhos tradutoacuterios tambeacutem (felizmente)

diferentes entre si o que tambeacutem colabora para multiplicar nossas possibilidades

de fontes e referecircncias durante a leitura Sua dificuldade parece ser menos alvo

de piadas do tipo ldquomas ningueacutem lecircrdquo ainda que curiosamente natildeo haja guias

elaborados e nem mesmo traduccedilotildees brasileiras de guias de leitura

especificamente voltados para Ulysses ainda enquanto jaacute temos Para ler o

Finnegans wake de James Joyce (2009)

Apontar problemas ou tecer criacuteticas diversas agrave construccedilatildeo textual de

Finnegans wake como foi mostrado natildeo foi exclusividade dos absolutamente

conservadores ao menos artisticamente falando Diante da radicalidade do texto

e da aparente incompreensibilidade era como se um estranhamento

imediatamente tomasse o possiacutevel leitor mesmo que este fosse algueacutem

relativamente (ou mesmo bastante) aberto Como vimos os exemplos satildeo

muitos de artistas como Ezra Pound (ldquoA receptividade de Pound agrave inovaccedilatildeo

tinha seus limites como Joyce agora sabiardquo ELLMANN 1989 p 722) de sua

parceira proacutexima Sylvia Beach ateacute mesmo de alguns parentes como sua

esposa Nora sempre fonte de apoio e companheirismo e seu irmatildeo que

tambeacutem era escritor Foram variadas as reaccedilotildees mas especialmente numerosas

as reaccedilotildees negativas chegando a atingir emocionalmente Joyce em alguns

momentos

14 A saber a de Antocircnio Houaiss (1966) a de Bernardina da Silveira Pinheiro (2005) e a mais recente de Caetano Galindo (2012) premiada pela Academia Brasileira de Letras e pela Associaccedilatildeo Paulista de Criacuteticos de Arte aleacutem de ter recebido o Precircmio Jabuti de melhor traduccedilatildeo do mesmo ano

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A fama de Finnegans wake que se espalhou pelo mundo (e permanece

ateacute os dias de hoje contaminando a visatildeo que normalmente se tem do livro de

preconceitos uma vez que quase sempre precedem a sua leitura) de que eacute um

livro impenetraacutevel eou uma grande piada de James Joyce ou de que eacute nada

aleacutem de um livro propositalmente dificiacutelimo e insano natildeo acabaraacute de repente O

que preocupa eacute o ldquonada aleacutemrdquo Que se tome Wake como paradigma de livro

complexo eacute aceitaacutevel e ateacute pertinente que se deixe de lecirc-lo tendo em conta esse

tipo de estigma poreacutem passa a ser uma subestimaccedilatildeo e pode ser de alguma

maneira uma perda real Felizmente no Brasil como vimos existe cada vez

mais um nuacutemero de publicaccedilotildees sobre Joyce que vem crescendo e se ampliando

tanto quanto vem se aprofundando com diferentes leituras A recepccedilatildeo

atribulada de que fizemos um panorama no entanto desde as primeiras reaccedilotildees

agrave obra final de James Joyce mesmo entre aqueles que o admiravam e

acompanhavam seu trabalho aponta para algo que estaacute no cerne das

consideraccedilotildees desta pesquisa o que o Wake tem de tatildeo deslocado tatildeo

marginal sendo ao mesmo tempo tatildeo ceacutelebre O objetivo eacute fazer dessa

compreensatildeo algo produtivo

Pois bem se eacute um livro ilegiacutevel natildeo se poderia escrever um trabalho

acadecircmico sobre ele (ou em algumas visotildees do que eacute um trabalho sobre

literatura justamente por isso fazecirc-lo seria necessaacuterio e sugerido

ironicamente) A concepccedilatildeo de legiacutevel eacute a que deve ser posta em xeque aiacute em

primeiro lugar ou ao menos antes de se questionar se Finnegans wake o eacute ou

natildeo Isso se faz especialmente necessaacuterio se falamos de legiacutevel referindo-nos agrave

literatura como se houvesse um processo de alfabetizaccedilatildeo especiacutefico No

entanto mesmo que se pare de olhar para o Wake apenas observando esse seu

caraacuteter superficial arriscamo-nos a dizer que sua impenetrabilidade por si soacute

diz alguma coisa A maneira como se encara a conceituaccedilatildeo de obra literaacuteria mdash

desde a assunccedilatildeo dessa possibilidade ateacute o processo de efetivamente

conceituaacute-la mdash certamente tem implicaccedilotildees no processo de aceitaccedilatildeo ou de

recusa diante de uma obra especiacutefica bem como na accedilatildeo criacutetica de valorar e de

julgar

29

Ora se uma coisa natildeo se encaixa no que se espera dela algo natildeo estaacute

nas medidas esperadas ou a coisa ou o molde isto eacute a focircrma com suas

medidas limitadas e exigecircncias de enquadramento Se a obra eacute algo que se deva

encaixar em uma concepccedilatildeo de literatura que a antecede e normatiza as

produccedilotildees literaacuterias em uma hierarquia duvidosa que cria uma governanccedila de

cima para baixo do molde para a coisa eacute compreensiacutevel toda a resistecircncia que

foi criada frente ao Finnegans wake

O que essa maacute recepccedilatildeo que ecoa ateacute hoje em estigmas diversos

normalmente aponta portanto eacute que o problema ou o defeito estaacute na obra de

Joyce levando em conta esse procedimento normativo de interpretaccedilatildeo e de

julgamento e critica da literatura O que propomos eacute que o problema esteja

talvez no molde

CAPIacuteTULO I

WAKE EM PAUTA

31

1 Algo parecido com nada

A recepccedilatildeo negativa ou perplexa diante de Finnegans wake como vimos

foi ampla a ponto de certa maacute reputaccedilatildeo ultrapassar o teste do tempo permitindo

que sobrevivessem estigmas relacionados agrave obra ateacute os dias de hoje causando

ranccedilo mesmo entre literatos e afastando possiacuteveis leitores por entre as deacutecadas

Ulysses foi um (anti)romance aclamado ainda que tambeacutem tenha tido uma

recepccedilatildeo controversa e resultado poucos anos depois de sua publicaccedilatildeo em

uma seacuterie de processos contra Joyce e na proibiccedilatildeo de sua circulaccedilatildeo nos

Estados Unidos e no Reino Unido sob a acusaccedilatildeo (hoje risiacutevel) de conter

pornografia Tambeacutem significou uma reviravolta naquilo a partir de que se definia

mesmo um ldquoromancerdquo suscitando hesitaccedilatildeo impaciecircncia e reprovaccedilatildeo mas

acabou por selar a fama de Joyce em vida traduzida inclusive em alguma

seguranccedila financeira mesmo que temporaacuteria

32

No caso de Finnegans wake no entanto a sua fama paradoxalmente foi

o motivo de seu relativo ostracismo Quando jaacute estava viuacuteva Nora Barnacle que

natildeo se interessava tanto por literatura e natildeo se sentia exatamente atraiacuteda pela

convivecircncia com artistas tampouco por conversas literaacuterias aleacutem de

eventualmente deixar Joyce magoado por natildeo ler o que ele escrevia chegou a

perguntar a Maria Jolas ldquoPor que falam tanto no Ulysses O Finnegans wake eacute

o livro importante Quando eacute que vocecirc e Eugene vatildeo escrever sobre elerdquo

(ELLMANN 1989 p 912) Como eacute sabido ateacute mesmo contemporacircneos

entusiastas da obra joyciana que natildeo lhe poupavam elogios tiveram opiniotildees

controversas a respeito da obra de maacutexima radicalidade na qual Joyce teria

conseguido engendrar uma inovaccedilatildeo tanto formal quanto de conteuacutedo ainda

maiores do que em suas produccedilotildees anteriores

Seu irmatildeo mais novo Stanislaus Joyce (1884-1955) com quem mantinha

contato e se correspondia mesmo com as constantes mudanccedilas de residecircncia

entre paiacuteses escreveu-lhe em 1924 dizendo que havia lido ldquoseu romance ainda

sem nome na transatlantic reviewrdquo (Ibid p 712) Reitera que em geral gosta

muito do predecessor Ulysses ainda que natildeo tenha paciecircncia nem humor para

alguns trechos mas aponta que haacute uma ou outra parte ldquoinesperadamente ternardquo

e comovente Sobre o Finnegans wake no entanto a impressatildeo eacute outra e lhe

parece que muitos agora o elogiam por bajulaccedilatildeo deixando Joyce mimado

demais Cita um artigo de Ford Madox Ford cuja leitura foi indicada a ele pelo

irmatildeo em que Ford sugere que se encare o Work in progress ldquocomo um ritmo

nonsense e que o leitor deveria abandonar-se ao seu balanccedilordquo No entanto

Stanislaus natildeo parece se convencer ldquoTenho certeza embora o artigo pareccedila ter

a sua aprovaccedilatildeo de que ele fala sem saber o que dizrdquo (Ibid p 713) Por sua

vez afirma que natildeo entendeu muito do que leu tampouco se interessou

verdadeiramente Citando a publicaccedilatildeo de Herbert Gorman James Joyce The

first forty years (1924) que atribui a Joyce ldquoa uacuteltima palavra em literatura

modernardquo elucubra que isso talvez signifique algo mais literal e escatoloacutegico

para a literatura

33

Pode ser a uacuteltima palavra noutro sentido a insensata erracircncia da literatura antes de sua extinccedilatildeo final Natildeo que eu imagine que a literatura vaacute morrer algum dia enquanto os homens falarem e escreverem Mas podem cessar de ler ou pelo menos de ler tais coisas Eu de minha parte natildeo leria mais que um paraacutegrafo daquilo se natildeo conhecesse vocecirc () Por que vocecirc continua inteligiacutevel e sincero nos versos Se a literatura deve se desenvolver ao longo das linhas de sua obra mais recente ela certamente se tornaraacute como Shakespeare aludiu haacute seacuteculos passados algo parecido com nada (Ibid pp 712-713)

Aleacutem da jaacute exposta incompreensatildeo eou desinteresse que os excertos de

Finnegans wake causaram nos leitores mesmo naqueles que eram proacuteximos de

James Joyce e que jaacute nutriam admiraccedilatildeo por seu trabalho o que nos chama a

atenccedilatildeo eacute a reflexatildeo direta de Stanislaus mdash que era assim como o irmatildeo mais

velho um literato mantinha anotaccedilotildees sobre literatura e arte e escreveu trecircs

livros sobre Joyce Dublin e literatura dois deles publicados postumamente mdash

ao deparar-se com a existecircncia daquele texto sobre o proacuteprio destino da

literatura A maneira como ele enxerga a radicalidade de Finnegans wake lhe diz

que se ela passasse a ser constituiacuteda cada vez mais por obras como essa

poderia ter a sua existecircncia ameaccedilada ou ao menos os seus pilares fortemente

balanccedilados Levantando a hipoacutetese de que o nuacutemero de leitores diminuiria cada

vez mais atribui a culpa da ldquotendecircncia ao nadardquo ao proacuteprio texto afastando as

pessoas por sua aridez Natildeo se trata simplesmente de uma mudanccedila no

entendimento de gecircnero nem de inovaccedilotildees estruturais e formais (que

demonstrariam uma contribuiccedilatildeo ou uma destruiccedilatildeo parcial ainda dentro da

literatura) de alguma maneira Finnegans wake ou acabaria com a literatura ou

ficaria agrave margem dela

Joyce poreacutem tinha a consciecircncia de que seu projeto inevitavelmente

envolvia um caraacuteter em algum niacutevel obscuro ou embaccedilado certamente de difiacutecil

compreensatildeo imediata mas confiava com algum otimismo na possibilidade de

que os leitores atravessariam as dificuldades do texto e admirariam o que ele

sistematizou Dizia claramente que ldquoo mundo da noite natildeo pode ser representado

na linguagem diurnardquo e ldquoPara Claud Sykes insistiu ldquoEacute tudo tatildeo simples Se

algueacutem natildeo entende uma passagem tudo o que precisa eacute ler em voz altardquo (Ibid

p 729)

34

Natildeo parecia concordar portanto com a preocupaccedilatildeo que alguns lhe

expressavam a respeito do caraacuteter ou mais ou menos literaacuterio de sua obra Ao

contraacuterio parecia entender que sim era uma obra muitiacutessimo distinta mas que

trazia consigo algo de grandioso por si e em si natildeo necessariamente grandioso

pela razatildeo de quebrar paradigmas muito menos o iniacutecio de uma ldquonovardquo literatura

toda pautada em seu estilo Augusto de Campos em ldquoOutras palavras sobre

Finnegans wakerdquo aponta a reaccedilatildeo do escritor irlandecircs a essas provavelmente

inesperadas criacuteticas de seu digamos ex-admirador (termo um tanto forte poreacutem

relativamente fiel ao que aconteceu) Ezra Pound bem como sua defesa diante

das acusaccedilotildees de ininteligibilidade

Mas Joyce natildeo se deixou desencorajar pelas objeccedilotildees de Pound (ao qual replicou obliquamente com trocadilhos e alusotildees no proacuteprio Finnegans wake) ldquoEacute possiacutevel que Pound tenha razatildeordquo escreveu a Harriet Shaw Weaver em 1927 ldquomas eu natildeo posso voltar atraacutesrdquo Como esclarece Forrest Read o escritor se defendia das acusaccedilotildees de obscuridade que lhe faziam agrave eacutepoca argumentando ldquoUma grande parte da existecircncia dos seres humanos se passa em um estado que natildeo pode ser tornado sensiacutevel pelo uso da linguagem lsquode olhos abertosrdquo uma gramaacutetica preacute-fabricada um enredo linear (CAMPOS 2001 p 195)

Por mais complexo que seja o texto de Joyce e por mais controversa que

tenha sido a sua recepccedilatildeo o supracitado guia A skeleton key de Joseph

Campbell e Henry Morton Robinson foi publicado apenas cinco anos depois da

publicaccedilatildeo integral de Finnegans wake demonstrando leitura de consideraacutevel

aprofundamento vertical e a percepccedilatildeo de inuacutemeras referecircncias presentes na

obra em um periacuteodo relativamente curto de tempo Na introduccedilatildeo denominada

ldquoIntroduccedilatildeo a um assunto estranhordquo (que foi traduzida para o portuguecircs por

Augusto de Campos e publicada na ediccedilatildeo mais recente do Panaroma do

Finnegans wake de 2001) os autores de A skeleton key alertam o leitor ingecircnuo

ou temeroso a respeito do que se encontraraacute na obra magna de Joyce sem

negar a existecircncia de algumas dificuldades nesse percurso Apontam

explicitamente para o terreno aacuterido com que se defrontaraacute o leitor conseguem

fazecirc-lo poreacutem de forma que apesar da honestidade ao dizer e ao pesar os

35

obstaacuteculos prevaleccedila um tom positivo e mesmo uma espeacutecie de convite direto

a essa jornada literaacuteria incomparaacutevel sobre a qual escolheram desenvolver um

estudo de alguma maneira democratizador

O vasto desiacutegnio e a intrincada estrutura de Finnegans wake datildeo ao livro um aspecto proibitivo de impenetrabiidade Agrave primeira vista parecemo-nos defrontar com uma selva densa e enganosa iacutenvia e recoberta por luxuriantes perversidades de forma e linguagem () Empreita a imaginaccedilatildeo exige disciplina e tenacidade dos que querem segui-lo na aventura Contudo algumas das dificuldades desaparecem desde que um leitor bem disposto encontre alguns pontos cardeais e acerte o rumo Entatildeo o imenso mapa de Finnegans wake comeccedila lentamente a desdobrar-se emergem as figuras e os motivos os temas tornam-se reconheciacuteveis e o ouvido vai-se familiarizando cada vez mais com o vocabulaacuterio de Joyce Natildeo se espere alcanccedilar um entendimento completo num primeiro e aacutevido embate na verdade pode-se natildeo lograacute-lo nunca (CAMPBELL ROBINSON 2001 p 152)

Joyce ouviu mais de uma vez que sua obra final natildeo era ou natildeo fazia parte

da literatura Pelo menos duas dessas ocorrecircncias estatildeo documentadas em sua

biografia como duas ocasiotildees em que o parecer foi quase idecircntico A primeira

foi na leitura de um fragmento frente a um grupo pequeno de amigos em que

tendo sua opiniatildeo requisitada por Joyce a irlandesa Mary Colum respondeu

ldquoJoyce eu acho que isso estaacute fora da literaturardquo (ELLMANN 1989 p 782) Na

outra ocasiatildeo figura uma inglesa que nos permanece anocircnima Ela ouviu Joyce

lendo um trecho e supostamente disse apenas ldquoIsso natildeo eacute literaturardquo Segundo

registra o bioacutegrafo Richard Ellmann Joyce respondeu ldquoFoirdquo ldquoquerendo dizer que

fora enquanto ela escutavardquo (Ibid p 865)

O problema natildeo estaacute no texto de James Joyce mas no que se espera de

um texto literaacuterio Propor uma nova focircrma no entanto parece-nos inuacutetil porque

natildeo estamos pensando somente no que abarcaria Finnegans wake afinal que

formatos abarcam a literatura Se inventaacutessemos os moldes sob medida apoacutes

uma extensa pesquisa e numerosas releituras natildeo teriacuteamos nada aleacutem de um

molde natildeo para ldquoliteraturardquo mas para o Wake Quando nos propuseacutessemos a ler

qualquer outra obra literaacuteria eacute certo que nos deparariacuteamos com outras

36

dificuldades e entatildeo o molde jaacute estaria inutilizado novamente Tentaremos

entatildeo operar a leitura que natildeo busca generalidades ou padrotildees nem constroacutei

guias idealmente universais Eacute claro que produzindo uma dissertaccedilatildeo e

investigando a relaccedilatildeo entre o que a teoria espera do livro e o que o livro entrega

agrave teoria esse intercacircmbio seraacute em alguma medida necessaacuterio no entanto o

ponto central natildeo eacute ler o Wake a partir de alguma teoria ou a partir de algueacutem O

meacutetodo aqui parte do lanccedilar-se ao texto ler Finnegans wake Ponto Meacutetodo

antimetoacutedico

Conta-se que James Joyce disse ldquocom um sorriso cacircndidordquo para o poeta

e ativista americano Max Eastman (1883-1969) ldquoA exigecircncia que faccedilo para o

meu leitor eacute que ele devote sua vida inteira a ler meus livrosrdquo (ELLMANN 1989

p 865) Relevando-se o possiacutevel exagero da expressatildeo ldquodevote sua vida inteirardquo

ainda que se referisse certamente agrave crescente complexidade que suas obras

apresentavam Joyce gostava mais de saber que era lido do que de

necessariamente ser elogiado ainda que a incompreensatildeo o desanimasse (e

que ser lido por mais pessoas significasse um risco maior de ser

incompreendido) Outra frase ainda mais hiperboacutelica eacute a famosa definiccedilatildeo de

leitor ideal que seja aquele que ldquosofra de uma insocircnia idealrdquo (Id)

Um possiacutevel pedantismo por traacutes do tom jocoso eacute anulado por diversas

outras declaraccedilotildees como as que se referem a Finnegans wake como tatildeo

somente um livro divertido mdash o oposto do que a famosa declaraccedilatildeo de que foi

escrito ldquopara manter os criacuteticos ocupados por trezentos anosrdquo (Id) ldquoEu sou

apenas um palhaccedilo irlandecircs um grande piadista do universordquo disse certa vez

ao escritor francecircs Jacques Mercanton (1910-1996) e respondendo a uma

pergunta de Terence White Gervais (1913-1968) sobre o Wake ter niacuteveis de

significado disse ldquoNatildeo natildeo Eacute feito para fazer vocecirc rirrdquo (Id) Qualquer que seja

a funccedilatildeo proeminente no Wake seja a de divertir seja a de ocupar criacuteticos mdash ou

ambas mdash parece-nos absolutamente incogitaacutevel que qualquer autor que

trabalhe por anos a fio em uma obra prefira natildeo ser lido e eacute acima de tudo o

compromisso de lermos Finnegans wake aquilo com que nos comprometemos

aqui

37

O ponto central dessa tentativa se desenlaccedila em torno da questatildeo do

tempo tomando-o natildeo apenas como instacircncia literaacuteria mas tambeacutem filosoacutefica

perpassando discussotildees da metafiacutesica de diversas eacutepocas tambeacutem sem a

concentraccedilatildeo no conceito de tempo para algum filoacutesofo especiacutefico A escolha

desse tema se justifica facilmente para aqueles que sabem um pouco sobre

como Joyce concebeu sua uacuteltima obra sabendo da relevacircncia da filosofia do

italiano Giambattista Vico em sua construccedilatildeo com a ideia de temporalidade

constituiacuteda pela divisatildeo de trecircs Idades mais o ricorso bem como sobre a

problemaacutetica de se entender a cronologia da narrativa (ainda veremos se eacute

possiacutevel falar em ldquocronologiardquo e mesmo em ldquonarrativardquo) Ainda assim

pretendemos investigar para aleacutem do paradigma de Vico talvez vislumbrando o

que impede afinal que Finnegans wake seja encarado como qualquer outra

obra literaacuteria ou apenas como mais uma obra literaacuteria difiacutecil como outras

tambeacutem o satildeo Note-se aqui a diferenccedila entre um livro qualquer e um livro como

qualquer outro natildeo eacute que o desejado seja considerar Finnegans wake como um

livro qualquer eacute claro Mas que seja considerado pelo menos legiacutevel e divertido

como Joyce o considerou e tantos leitores tambeacutem o consideram ao inveacutes de se

perpetuar como um mito de livro que nunca eacute lido e pior como um livro

defeituoso jaacute que natildeo facilmente compreendido segundo os moldes da teoria

literaacuteria O que percebemos eacute que talvez ele seja considerado de difiacutecil

compreensatildeo especialmente nos casos em que o leitor o encara tendo uma seacuterie

de expectativas relacionadas a uma visatildeo tradicional de literatura assim como

acontece tambeacutem de uma outra maneira com Ulysses

Se confirmamos a hipoacutetese de que seja possiacutevel e ateacute mesmo desejaacutevel

uma ruptura dessas expectativas ou ao menos uma maior libertaccedilatildeo delas pode

ser que se torne finalmente possiacutevel que mais leitores ganhem um novo desafio

de leitura que poderatildeo constatar como efetivamente repleto de fruiccedilatildeo natildeo

apenas de operaccedilatildeo cognitiva casmurra e tediosa A isso se combina a ideia de

literatura concebida por Maurice Blanchot evocada em Escritura do retorno

Mallarmeacute Joyce e o meta-signo a respeito dela como experiecircncia-limite ldquoLer

no espaccedilo literaacuterio blanchotiano eacute compreender as variaccedilotildees de um devir mdash

sempre futuro do leitor mdash como uma vicissitude do tempo que eacute a proacutepria obrardquo

38

(EYBEN 2012 p 242) Nessa concepccedilatildeo a leitura eacute ldquouma escritura

interminaacutevel vertigem da noccedilatildeo de espaccedilordquo (Ibid p 243) A leitura com a qual

afirmamos assumir um compromisso eacute inscrita nesse entendimento escritural

em que ler natildeo eacute simplesmente decodificar evidentemente mas tambeacutem natildeo eacute

realizar uma hermenecircutica uma busca por verdade do texto e nem uma

facilitaccedilatildeo do desbravamento do texto joyciano que se apresenta de uma forma

especiacutefica a cada leitora mdash e inclusive a cada leitura no sentido de fazer-se

sempre novo

2 Sui generis

O questionamento sobre o gecircnero que muito recorrentemente se impotildee

constitui uma problemaacutetica jaacute levantada desde Ulysses e seu tal caraacuteter de

antirromance15 A dificuldade de inserir Finnegans wake em uma definiccedilatildeo desse

tipo eacute absolutamente clara e redundantemente lembrada O ponto mais perigoso

das investigaccedilotildees dessa natureza eacute o fato de que esse alhures inominado em

que se insere a obra final joyciana pode induzir o candidato a leitor agrave armadilha

de rejeitaacute-la ou diminui-la pelo que ela tem de avesso agraves possibilidades de

categorizaccedilatildeo mdash assumindo absurdamente a teoria como a entidade regente

superior agrave mateacuteria sobre a qual se teoriza Com esse entendimento natildeo raro

consideram-se as obras meros objetos que se natildeo se sujeitam a alguma focircrma

e nem satildeo capazes de gerar novas categorias devem por essa loacutegica ter algo

de mal estruturado ou tecircm melhor destino sendo ignoradas Isso

ocasionalmente se daacute entre teoacutericos da literatura de forma relativamente

anaacuteloga ao que acontece quando gramaacuteticos consideram o conjunto de regras

da gramaacutetica normativa de um idioma como aquilo que rege e direciona o que

deve ser levado em conta na liacutengua ignorando que esse conjunto de regras eacute

na verdade obviamente restrito e derivado em percurso convencional da mateacuteria

15 O termo que aqui usamos pela segunda vez (a primeira com o prefixo entre parecircnteses) parece ser posterior a Joyce Deriva de anti-roman (francecircs)anti-novel (inglecircs) De qualquer maneira soacute sintetiza o que jaacute se dizia sobre o romance ter acabado com Ulysses Joyce natildeo deve ter sido o primeiro autor a suscitar esse tipo de comentaacuterio o mesmo se disse de outras maneiras de Gustave Flaubert e Henry James

39

que o precede Sendo uma liacutengua algo mais amplo variado e mutaacutevel do que a

gramaacutetica normativa jamais conseguiraacute abarcar mesmo em seus mais

longamente descritivos iacutempetos eacute uma insanidade sobrepor a ela a

normatizaccedilatildeo assim como tambeacutem eacute insensato desconsiderar Finnegans wake

pelo que tem de inclassificaacutevel mdash ou dir-se-ia de indomaacutevel incompreensiacutevel

inacessiacutevel mdash algo que muito frequentemente se deu desde o iniacutecio da

publicaccedilatildeo de seus fragmentos como Work in progress

Enquanto Ulysses eacute o livro do dia Finnegans wake eacute o livro da noite com

sua linguagem oniacuterica permeada de ambiguidades e incertezas e seus

caminhos tortuosos Como Joyce dizia ldquoEacute natural que as coisas natildeo sejam tatildeo

claras agrave noite natildeo eacuterdquo (CAMPOS 2001 p 196) Como uma consequecircncia

inevitaacutevel classificar o Wake em um gecircnero literaacuterio mostra-se um desafio mdash ou

talvez um esforccedilo dispensaacutevel que nada acrescentaria agrave compreensatildeo da obra

Haroldo de Campos lanccedila possibilidades criativas de referecircncia classificatoacuteria

com os termos ldquoprosapoesiardquo (CAMPOS 2001 p 29) e ldquoromance-riordquo (Id p 27)

tambeacutem usado por Donaldo Schuumller ldquoPor flores e por floras por faunos e por

faunas por vidas e por vias flui Finnegans wake o romance e o rio o romance-

riordquo (SCHUumlLER 2004 p 15) (Eacute curioso notar uma outra possibilidade de grafia

para esse uacuteltimo termo inventado considerando que a opccedilatildeo pela duplicaccedilatildeo da

letra ldquorrdquo poderia remeter mais imediatamente agrave bela palavra que abre o fragmento

nuacutemero 1 de Finnegans wake optando por como Joyce fazia quase sempre

dispensar o uso de hifens mdash riverrun ou riocorrente na traduccedilatildeo feita por

Augusto de Campos e rolarriuanna na de Schuumller)

Respostas a essa problemaacutetica satildeo dadas no proacuteprio texto de James

Joyce mdash e devem ser entendidas sempre nesse mesmo lugar Uma possiacutevel

afirmaccedilatildeo concisa a respeito de tantos questionamentos entre eles o de gecircnero

o de literatura e o de cacircnone estaacute em uma frase relativamente curta ldquothis is nat

language at any sinse of the worldrdquo (FW 8312)16 Joyce condensou aiacute tanto a

afirmaccedilatildeo de que ldquoistordquo natildeo eacute linguagem em nenhum sentido do termo quanto a

de que natildeo eacute linguagem em parte nenhuma do mundo e ainda de que eacute

16 ldquoIsso eacute linguagem-noite em qualquer sentido do univerbordquo

40

linguagem noturna com ldquonatrdquo lembrando ldquonoiterdquo night (inglecircs) nacht (alematildeo)

ldquoworldrdquo entre palavra e mundo foi genialmente traduzido por Donaldo Schuumller

como ldquouniverbordquo Confirma-se assim tanto o estatuto noturno que acompanha

uma incerteza da escuridatildeo mdash vemos significantes como vemos silhuetas e

sombras que nos situam gerando incerteza mdash quanto a temporalidade da noite

que se resvala em madrugada indefinida que eacute a vastidatildeo do breu em que tanto

espaccedilo quanto tempo satildeo dotados dessa qualidade vasta e ao mesmo tempo

fosca confirma-se ainda a linguagem que natildeo eacute a linguagem que se espera em

nenhum sentido do univerbo o proacuteprio livro se afirma como uma suposta natildeo-

linguagem que eacute simplesmente uma linguagem de caraacuteter proacuteprio afirmado

como algo noturno que se contamina e se faz pelas possibilidades de labirintos

oniacutericos

De forma geral esse desprezo do cacircnone ou espeacutecie de pouco caso com

Finnegans wake eacute carregado de conclusotildees precipitadas e diga-se desistecircncias

raacutepidas Os leitores minguam como se o texto natildeo merecesse atenccedilatildeo natildeo

merecesse leitura Hipoacuteteses de que seja uma grande piada ainda se mantecircm

Como afirmaram em 1944 os pioneiros Joseph Campbell e Henry Morton

Robinson quando Finnegans wake foi publicado integralmente isto eacute cinco

anos antes

lsquoWhat does it all meanrsquo rsquoWhy should we bother about a book so hard to readrsquo were questions quite generally asked Even normally responsive readers dismissed the book as a perverse triumph of the unintelligible17 (CAMPBELL ROBINSON 2005 p xxi)

No entanto ainda que somente mais de vinte anos depois o estudioso norte-

americano tambeacutem pioneiro na incursatildeo profunda ao Finnegans wake William

York Tindall afirma ldquoEverything in the Wake has meaning definite limited by a

frame or immediate context and discoverable Our danger (hellip) Is too much

17 ldquolsquoO que isso tudo significarsquo lsquoPor que deveriacuteamos nos ocupar com um livro tatildeo difiacutecil de ser lidorsquo eram perguntas feitas frequentemente Ateacute mesmo os leitores normalmente interessados desprezaram o livro como um triunfo perverso do ininteligiacutevelrdquo (CAMPBELL ROBINSON 2005 p xxi)

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ingenuityrdquo18 (TINDALL 1969 p 22) James Joyce engendra uma obra calcada

em racionalidade e enquadramento meticuloso de cada detalhe em uma

estrutura com criatividade ininterrupta e esse controle eacute visiacutevel ainda que resulte

em uma obra inclassificaacutevel e ainda que o resultado gere comentaacuterios que a

relacionem ao completo caos e a uma ideia de puro nonsense O que Tindall

aponta como o risco maior natildeo eacute note-se que o leitor talvez natildeo entenda o livro

ou natildeo veja alguma referecircncia mas sim que seja ingecircnuo diante da existecircncia

de possibilidades no texto e o tome por puro fingimento de quebra-cabeccedila

As dificuldades satildeo evidentes o susto ou a antipatia causada pelo Wake

ultrapassou o passar dos anos Mesmo os leitores mais proacuteximos de entendecirc-lo

tiveram suas dificuldades resistecircncias e uma infinidade de criacuteticas diante dele

Como ler entatildeo hoje uma obra como Finnegans wake Estaacute aiacute para ser lida ou

para ser rejeitada tida como uma piada para manter criacuteticos ocupados ou como

exemplo do funcionamento da linguagem em uma mente esquizoide Exige-nos

uma postura diferenciada Estaacute dentro ou fora da literatura mdash ou eacute na verdade

sua ameaccedila

Haacute talvez um grande conjunto de duas maneiras grosso modo de se

encarar o texto literaacuterio ou uma obra de arte qualquer primeiro sentindo que

conseguimos extrair uma finalizaccedilatildeo de nossa leitura ou ao contraacuterio na

segunda maneira sentimo-nos grave e verdadeiramente impotentes ao sequer

cogitar essa possibilidade De forma geral haveria assim uma bifurcaccedilatildeo de

duas distintas e abrangentes escolas ou caminhos sendo aquela que daacute uma

interpretaccedilatildeo fixa considerada correta ou superior a vertente mais obsoleta Os

perigos da segunda no entanto satildeo tambeacutem apontados com frequecircncia natildeo se

pode dizer tudo e qualquer coisa dizem O receio de uma espeacutecie de perigosa

autotelia que desestabiliza o mais tradicional corpus hermenecircutico se instala

entre as duas extremidades bifurcadas pontas de diferentes abordagens que

natildeo somente lidam com o texto de maneiras antagocircnicas mas ainda e por isso

mesmo partem de noccedilotildees igualmente opostas da proacutepria ontologia de uma obra

18 Traduccedilatildeo livre do trecho de Tindall ldquoTudo no Wake tem um significado definido limitado por uma moldura ou contexto imediato e passiacutevel de ser descoberto Nosso risco eacute o excesso de ingenuidaderdquo

42

de arte Sendo a primeira vertente bastante autoexplicativa esgotando-se

facilmente qualquer tentativa de discorrer sobre ela poderiacuteamos abordar direto

o problema indicado na segunda de que tudo poderia ser dito na abertura

absoluta e desgovernada que descentraliza as interpretaccedilotildees da obra em uma

descentralizaccedilatildeo e horizontalidade total (e vejamos se eacute isso mesmo o que

ocorre) considerando no caso o texto literaacuterio e especificamente o Wake

aquele que poderia ser acusado de ser um dos textos mais anaacuterquicos e

ameaccediladores do seacuteculo XX

Em primeiro lugar dir-se-ia que o texto natildeo se termina

O texto que natildeo se termina significa tanto um texto que natildeo acaba quanto

um texto que noacutes natildeo terminamos de ler e ainda um texto que natildeo finalizamos

sendo impossiacutevel dar-lhe qualquer ultimato interpretativo Isso natildeo se reduz a

um caraacuteter interminaacutevel condicionado pela leitura uacutenica que cada leitor com seu

aparato psicoloacutegico e experiecircncia que lhe satildeo inerentes executa ao se deparar

com o texto Tampouco diz respeito somente a uma seacuterie de releituras feitas em

diferentes momentos histoacutericos de modo que Machado de Assis tenha sido

reinterpretado com o passar do tempo etc A infinitude de que se trata aqui natildeo

se refere a esse tipo de desdobramento ainda que natildeo os anule nem os negue

como processos naturais da presenccedila do texto em diferentes eacutepocas e sob

diferentes olhos

Se natildeo eacute entatildeo um desses fatores externos o que insere o texto no tempo

da infinitude poderiacuteamos inferir que seja assim alguma caracteriacutestica interna

No entanto faltam-nos dados mdash ou pior evidecircncias mdash de que seja possiacutevel a

separaccedilatildeo como se faria digamos entre textos primaacuterios e secundaacuterios ou

qualquer procedimento semelhante Soacute que isso potencialmente nos colocaria

sob o constrangimento de admitir que natildeo haacute obras de arte pois elas estariam

por toda a parte potencialmente tudo conteria a infinitude Tudo seria arte como

lidar com essa possibilidade que parece destruir as fronteiras de definiccedilatildeo entre

aquilo que eacute e o que natildeo eacute um objeto de apreciaccedilatildeo ou de estudo

43

Desfaccedilamos alguns passos Se natildeo considerarmos o texto em sua

projeccedilatildeo ao infinito isto eacute se admitirmos entatildeo que ele desemboca em uma

interpretaccedilatildeo e assim deteacutem atinente uma exegese fechada somos obrigados

a exploraacute-lo em busca de sua verdade Cada leitura investigativa seria como um

caminho para fora da caverna platocircnica estariacuteamos cada vez mais proacuteximos das

ideias Da mesma maneira que o caminho de acesso agrave episteacuteme natildeo rejeita o

mundo do familiar e da doacutexa mas em verdade confronta-se com as sombras

para nelas alcanccedilar a luz o contato com o texto de uma maneira insistente e

atenta desvelaria eventualmente sua verdade a despeito de qualquer aparato

teoacuterico-criacutetico com que qualquer leitor pudesse contar nessa varredura Nesse

sentido uma experiecircncia com o texto seria suficiente

Sabemos no entanto que interpretaccedilotildees unas natildeo nascem assim De

forma geral vecircm de fora para dentro de cima para baixo de maneira imposta e

consagrada por convenccedilotildees ou argumentos de autoridade A experiecircncia com o

texto traz agrave tona em geral alguns poucos consensos uma dose de subjetividade

e havendo consonacircncia teoacuterico-critica eventuais conclusotildees convergentes

quanto aos aspectos mais superficiais do texto em especial aqueles

relacionados agraves categorias mais estanques da forma Ainda assim nem sempre

haacute consenso mesmo nesse campo Gecircneros textuais podem parecer categorias

fortemente imisciacuteveis mas frequentemente natildeo satildeo facilmente definidas

Finnegans wake eacute justamente uma obra cujo gecircnero jamais foi definido mdash

ou (in)definido como sui generis mdash que sequer traz consigo roacutetulo evidente de

prosa ou de poesia Augusto de Campos expressa esse dilema de maneira

sinteacutetica com os neologismos ldquoprosoemardquo ldquoromance-riordquo ldquoromancepoemardquo

Esse noacute se alastra considerando que Wake natildeo se encaixa em um gecircnero uma

seacuterie de assunccedilotildees a seu respeito natildeo pode ser feita tatildeo facilmente e

possivelmente caem por terra A fuga de um conceito fechado assim em efeito

dominoacute acaba por impossibilitar uma seacuterie de inferecircncias que dele naturalmente

decorreriam assim como o contraacuterio tambeacutem se daacute com a fixaccedilatildeo de uma

categoria que consequentemente baliza tantas outras de imediato seja a

respeito da extensatildeo da forma da qualidade das potencialidades sonoras e

semacircnticas etc Se um texto eacute composto de versos eacute certamente um poema

44

tem estrofes possivelmente um esquema de rimas controlado se for um soneto

temos ainda mais inferecircncias prontas para serem testadas inclusive a respeito

do conteuacutedo se eacute conto eacute menor do que se for romance e assim por diante

Um texto inclassificaacutevel se apresenta dessa maneira jaacute de partida como

um problema em si uma fonte de inquietaccedilatildeo interminaacutevel ou que natildeo cessa

tatildeo rapidamente Mateacuteria para manter criacuteticos ocupados por anos como

profetizou o proacuteprio Joyce Corre o risco certamente de ser condenado para

fora da literatura mdash por natildeo caber nela natildeo ser contemplado em suas barreiras

Se o esquema existente natildeo o conteacutem comumente se supotildee a existecircncia de

defeito no texto natildeo uma possiacutevel limitaccedilatildeo das categorias que se consolidaram

para sua interpretaccedilatildeo O conservadorismo expulsa o que ameaccedila a tradiccedilatildeo por

preferir deixar de lado uma obra a implodir um sistema que abarca tantas outras

com seguranccedila e conforto Eacute instaurada uma problemaacutetica mesmo a partir do

ponto de confronto que eacute uma leitura na medida em que o leitor se espanta

diante do texto literaacuterio como discorre Piero Eyben em Escritura do retorno

Antes o texto joyceano torna-se pela falta repulsivo em sua intransitividade Natildeo haacute leitor que se veja nele identificado como completude Sua estrutura inacabada faz da verdade identitaacuteria uma falaacutecia De modo que o desvio o reveacutes de sua leitura nos leva a uma significacircncia zeroloacutegica na qual todo sujeito se anula e torna-se apenas membro da obra que este interpreta como significantes () A linguagem do inacabamento seria uma linguagem da falta pois coloca no caput o sem-cabeccedila (EYBEN 2012 p 610)

Rejeita-se o texto por saber que lhe impor uma interpretaccedilatildeo qualquer

seria gritantemente descabido Uma leitura de Finnegans wake que busque e

defina sua trama por exemplo encaixando no tempo no espaccedilo nos

personagens (protagonistas antagonistas) nos narradores e em todas as

categorias da narrativa uma seacuterie de respostas imutaacuteveis necessariamente

berraria sua artificialidade Para que se leia o texto como eacute sem distorcecirc-lo com

planificaccedilotildees simplificaccedilotildees e cerceamentos deve-se despi-lo das forccedilas que o

comprimem Somente assim se pode ler o texto como ele se apresenta

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respeitando sua integridade Deve-se entatildeo ir agrave leitura esperando nada menos

que o infinito

Lembramos aqui o que diz Jacques Derrida em ldquoDuas palavras por Joycerdquo

Eacute com este sentimento poderia dizer com este ressentimento que devo estar lendo Joyce haacute muito tempo () Mas natildeo sei se podemos dizer ldquoeu leio Joycerdquo como acabei de fazer Naturalmente soacute podemos ler Joyce quer saibamos disto ou natildeo Eacute a sua forccedila Mas os enunciados do tipo ldquoleio Joycerdquo ldquoleiam Joycerdquo ldquovocecirc jaacute leu Joycerdquo sempre me pareceram cocircmicos irresistivelmente (DERRIDA 1992 p 21)

Nessa mesma palestra de 1982 Derrida tambeacutem faz uma ldquosimplificaccedilatildeo

descabidardquo em duas grandezas Refere-se agraves maneiras de o autor deixar-se nos

arquivos de sua obra apagando-se quanto mais ela se faccedila presente Apesar de

ter sido proposto aqui o exame da outra ponta dessa relaccedilatildeo mdash a do leitor mdash a

primeira atitude de autor descrita por Derrida pode ser vista como anaacuteloga agrave

maneira de leitura que expusemos ligada a certezas e fincada em uma ideia de

verdade textual consiste naquele que ldquoescreve para darrdquo de maneira que a obra

se decirc a ponto de poder ser valorada ldquogostaacutevelrdquo ldquoamaacutevelrdquo (Ibid pp 19-20) e

diriacuteamos ainda acessiacutevel e possiacutevel A segunda atitude que Jacques Derrida

considera semelhante agrave de Joyce eacute a de hipermneacutesia em vez de acessarmos

uma materialidade pura de texto no esquecimento do autor vivemos em funccedilatildeo

de sua memoacuteria em meio a sua presenccedila

Se o texto se nos apresenta dessa maneira precisamos estar dispostos

a entender que ele nos escapa Fugidio se transforma em espectro Sair da

caverna natildeo eacute ir aleacutem dela nem deixaacute-la para traacutes no percurso o caminho

platocircnico eacute um modo de estar que adentra mais como o movimento que

pretende mergulhar no texto literaacuterio natildeo se trata de ultrapassaacute-lo mas de estar

cada vez mais inteiramente nele Nesse sentido confessa-nos Derrida ldquoSim a

cada vez que escrevo e mesmo nas coisas da academia um fantasma de Joyce

estaacute presente em minha abordagemrdquo (Ibid p 23) O entendimento de Jacques

Derrida de um caraacuteter espectral que ronde o texto atraveacutes da escritura eacute profiacutecuo

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em uma seacuterie de anaacutelises aqui podemos ensaiar aproximaacute-lo de uma ideia de

temporalidade que pode ser retirada do proacuteprio Finnegans wake

3 Fluidez vida-morte

A mitologia egiacutepcia estaacute presente em quase todos os capiacutetulos de

Finnegans wake agraves vezes escondida entre nomes que assinalam muacuteltiplas

assinaturas mdash desfazendo portanto a proacutepria ideia de nome mdash- e engendrando

numerosas rasgaduras temporais No capiacutetulo 4 do livro I o ldquolivro dos paisrdquo

denominado por Campbell e Robinson ldquoHis demise and resurrectionrdquo o

desmantelamento dos nomes eacute especialmente profiacutecuo Em meio a isso

segundo Donaldo Schuumller ldquoO tempo cronoloacutegico se anula em favor de um tempo

natildeo medido por aparelhos tempo feito soacute de fluxos () Em julgamento estaacute

nossa cultura nossas certezas nosso vocabulaacuterio nossa maneira de dizer e de

narrarrdquo (2003 p 169) HCE eacute preso e logo o rio Nilo eacute evocado aproximando-o

de Osiacuteris logo torna-se personagem morto ldquoonce and for all out of plotty

existencerdquo (FW 7618) fora da ldquoexistecircncia narradardquo como aponta Schuumller

Podemos apontar aiacute uma espeacutecie de resumo de toda a literariedade de

Finnegans wake HCE eacute capturado e morre de certa forma para sempre se

morrer significa estar fora de uma certa narrativa natildeo estaraacute ausente poreacutem

por toda a eternidade O lugar onde jaz eacute construiacutedo por um arquiteto com nome

de cemiteacuterio parisiense Peurelachasse (Pegravere Lachaise) que condensa la peur

(medo em francecircs) e la chasse (a caccedila) pois natildeo eacute um natildeo-lugar dos mortos

ao contraacuterio a morte aqui eacute acontecimento que desemboca em diluacutevio que

retoma a forccedila vital O que seria um par de oposiccedilatildeo se (con)funde e tem sua

ambivalecircncia transformada (ou transtornada) vida e morte dia e noite paimatildee

e filho(a)(s) os irmatildeos Shem e Shaun (ao contraacuterio de oposiccedilotildees riacutegidas como

Caim e Abel Rocircmulo e Remo)

Como dissemos o capiacutetulo eacute rico em temporalidade despedaccedilada o

tempo eacute indicado de maneira antirrepresentativa sem que se possa calcular ou

mapear um momento a partir de suas referecircncias ldquoBest This wastohavebeen

47

underground heavenrdquo (FW 7633)19 Diferentes tempos verbais intercalados natildeo

somente plantam uma duacutevida mas efetivamente explicitam a impossibilidade de

definiccedilatildeo a fluidez entre os periacuteodos A morte mdash especialmente aquela que seraacute

seguida de ressureiccedilatildeo mdash perambula por presente passado e futuro ldquoBut abide

Zeitrsquos sumonserving rise afterfallrdquo (FW 787)20 Nesse excerto o tempo parece

ser espeacutecie de entidade burocraacutetica que controla o universo de Finnegans wake

garantindo que um ciclo seja cumprido A morte de Humphrey Chimpden

Earwicker bem como todos os seus corolaacuterios natildeo satildeo controlaacuteveis por seres

que controlem seu tempo e a sucessatildeo de acontecimentos de suas vidas o ciclo

mdash como nas disposiccedilotildees de Giambattista Vico mdash eacute inelutaacutevel e forccedila sua

continuidade a despeito das vontades Elucubraccedilotildees natildeo mudam as

necessidades do Zeit A fluidez eacute como a correnteza do rio que natildeo escolhe seu

direcionamento

Se frente ao texto um periacuteodo sequer puder ser lido de apenas duas

maneiras diferentes jaacute teriacuteamos aiacute dois textos inteiros tambeacutem completamente

distintos A semacircntica natildeo pode se encerrar a cada frase nem a cada termo

nem a cada trecho ou capiacutetulo ou seja o que for lemos o todo considerando que

todos os trechos estejam incessantemente interligados e interdependentes de

maneira que a totalidade do texto seja um organismo indissoluacutevel Quais as

chances assim de que um texto qualquer seja absolutamente riacutegido com

significados puramente literais que alcanccedilam seus alvos pontualmente sem

nenhuma borda nem fenda de significaccedilatildeo seja ele concebido como texto

literaacuterio desde o berccedilo ou natildeo

Em vez de concluir que haacute certos textos que rebeldes fogem das reacutedeas

do sistema literaacuterio e suas classificaccedilotildees determinantes tendemos muito mais a

enxergar que todo texto tem uma faiacutesca disseminativa dentro de si que

frequentemente eacute ignorada em leituras que o planificam em uma sequecircncia

palpaacutevel para as classificaccedilotildees agraves quais estamos acostumados que nos

aparecem como urgecircncias quando na verdade a urgecircncia eacute o proacuteprio texto Ele

demanda nossa leitura urge que nos deparemos com os textos como satildeo e que

19 ldquoBem Este subterracircneo foi-para-haver-de-ser-ceacuteu ()rdquo 20 ldquoMas aguardemos o requerimento do tempo despertar apoacutes-quedardquo

48

rejeitemos distorccedilotildees que parecem visotildees transluacutecidas e por isso nos mantecircm

confortaacuteveis O que o texto faz eacute nos tirar do conforto de nossa liacutengua e nos

lanccedilar a uma outra proacutepria dele mesmo se nos lanccedilamos agrave leitura sem buscar

categorias estanques podemos finalmente conseguir sair do que julgamos

concreto em direccedilatildeo ao que nos vem de espectral prismaacutetico ndash aquilo que natildeo

pode existir num tempo que natildeo seja o do porvir Qualquer presentificaccedilatildeo

estanque negaria essa situaccedilatildeo de promessa do futuro promessa que

permanece messianismo sem previsatildeo pois caso se concretize o porvir se

desmantela no cumprimento da promessa que eacute seu desaparecimento

Apaga-se por inteiro o suposto perigo de que no infinito qualquer coisa

que nada tem a ver com o texto possa ser dita ou acusaccedilatildeo da leviandade de

que assim tudo seja arte indiscriminadamente receios fraacutegeis e superficiais que

nos limitam a concepccedilotildees especiacuteficas de arte e nos afastam normativamente de

leituras que sejam um modo de estar no texto mdash e portanto efetivamente o

contraacuterio de sair dele ou de excedecirc-lo O problema na verdade reside em

subestimar as possibilidades de um texto muito mais do que em superestimar

qualquer rastro ou sombra do espectro escritural esvaindo-se aiacute a proacutepria

essecircncia do texto em troca de uma carapuccedila que o defina

Um porvir desfigurado e desfigurante faz do texto uma mateacuteria de

instabilidade nas matildeos do leitor O caraacuteter fantasmagoacuterico latente povoa a escrita

de escritura O caraacuteter espaccedilo-temporal do Wake nos leva para o caminho do

intertexto do subtexto de tudo que estaacute contido e condensado no uacutenico texto

que chamamos de Finnegans wake O que desmantela as certezas estaacute

anunciado desde o tiacutetulo haacute um veloacuterio um luto e um tempo da eternidade da

morte mas haacute o movimento de despertar acordar o reiniacutecio o ciclo se faz

novamente no sim que responde pela continuaccedilatildeo eterna natildeo pela finalizaccedilatildeo

Desde o tiacutetulo portanto temos a postura de leitura definida ler e reler Finnegans

wake sem cronograma sob o espectro de Joyce e da babelizaccedilatildeo das liacutenguas

sem delimitaccedilatildeo espaccedilo-temporal

O espectro tem relaccedilatildeo ainda com o que natildeo se materializa e por isso

natildeo pode ser visto com clareza Entre tantos temas e motivos recorrentes

49

recirculando por todo o Finnegans wake a visatildeo eacute um dos sentidos amplamente

explorados como tema e fonte de trocadilhos A elaboraccedilatildeo altamente

perfeccionista do aspecto foneacutetico de Wake eacute atribuiacuteda tambeacutem agrave apuraccedilatildeo da

audiccedilatildeo inevitaacutevel consequecircncia da cegueira causada pelo glaucoma e nos faz

recordar a recomendaccedilatildeo de Joyce de que se lessem os fragmentos em voz

alta para uma experiecircncia outra de leitura (ou para a experiecircncia) A gravaccedilatildeo

da reacutecita feita pelo proacuteprio autor do episoacutedio ldquoAnna Livia Plurabellerdquo ou ldquoALPrdquo

como ele chamava eacute uma reliacutequia de grandioso valor para estudiosos de sua

exiacutemia obra Em texto composto por tantos neologismos e em meio agrave

simultaneidade de idiomas de diversos troncos linguiacutesticos haacute diversos

caminhos e muacuteltiplas escolhas para a entonaccedilatildeo o ritmo e a pronuacutencia do texto

de Finnegans wake e essas satildeo decisotildees que devem ser feitas pelo leitor capaz

de vislumbrar a polissemia de cada sintagma por meio da leitura em voz alta

A necessidade de envolvimento do leitor ouvinte instrumentista ou

espectador na arte caracterizada como moderna eacute sempre decorrente de uma

autonomia que lhe eacute conferida propositalmente ou natildeo em certa medida frente

agrave obra que se mostra maleaacutevel e porosa a esse envolvimento O fato de que

Finnegans wake eacute uma obra que deliberadamente proporciona autonomia ao

leitor transparece em sua estrutura inclusive se considerarmos a decisatildeo

primeira de por onde comeccedilar pois o livro pode ser acessado a partir de qualquer

um de seus fragmentos a despeito da numeraccedilatildeo neles embutida Esta facilita

certamente a citaccedilatildeo o compartilhamento etc mas a ordem de leitura eacute lanccedilada

ao leitor mdash um engendramento crsquoest agrave vous de sobreposiccedilatildeo de estados natildeo

comunicaacuteveis de simultaneidade de possibilidades no engendrar de um

multiverso em detrimento de um universo

Em Obra aberta o teoacuterico italiano Umberto Eco estabelece fronteiras

fundamentais entre obras tradicionais e obras modernas referindo-se

propriamente a suas formas e concepccedilotildees fugindo de definiccedilotildees de cunho

meramente histoacuterico-diacrocircnico O ponto de partida basilar para essa divisatildeo eacute

o fator da ambiguidade como ausente no caso das obras claacutessicas ou moldadas

tradicionalmente ou presente no caso das obras de arte modernas Citando

Finnegans wake obra uacuteltima de James Joyce como paradigma de obra moderna

50

caracterizada como aberta segundo seus preceitos isso fica mais claro se for

colocada a seguinte pergunta relativamente simples de que trata o referido livro

ou dir-se-ia ldquosobre o querdquo eacute Finnegans wake

No caso de obras jaacute haacute muito tempo consideradas claacutessicas a resposta

pontual a essa pergunta eacute possiacutevel ao menos segundo Umberto Eco sem

acarretar muitos questionamentos estruturais No caso de uma opera aperta

como Finnegans wake no entanto a resposta pontual eacute impossiacutevel mdash ou melhor

eacute possiacutevel poreacutem sempre parcial e funcionando como gatilho para outros pontos-

problema que devem ser alinhados com a resposta escolhida Podemos ensaiar

possibilidades sobre o Wake afirmando por exemplo que o livro trata de luto ou

que eacute sobre julgamento ou sobre uma famiacutelia dublinense ou a respeito de sonho

e inconsciente ou que eacute um sonho do protagonista haacute diversas respostas e

nenhuma parece vir como satisfatoacuteria Cada uma delas deve implicar uma seacuterie

de definiccedilotildees estruturais mdash se a narrativa eacute um sonho deve haver algueacutem que

sonha se eacute o (possiacutevel) protagonista HCE quem sonha temos entatildeo um foco

narrativo definido Estabelecer poreacutem um foco narrativo cuja fonte se

estabelece no plano mental inconsciente tem implicaccedilotildees outras a respeito de

como defini-lo em seu estatuto de narrador e de personagem Assim eacute

necessaacuterio atentar-se ao fato de que cada afirmaccedilatildeo acarreta uma seacuterie de

outras consequecircncias

A indefiniccedilatildeo de elementos estruturantes da narrativa no entanto natildeo eacute

vaacutelida somente para uma obra extrema como Finnegans wake mas para

qualquer obra que se aplique ao paradigma estabelecido por Umberto Eco

Ademais destaca-se o papel do leitor na projeccedilatildeo semacircntica da obra natildeo do

ponto de vista do senso comum de que a subjetividade confere certo empirismo

interpretativo aberto a uma relatividade sem horizonte definido mas em sentido

um tanto mais fleumaacutetico de que a manipulaccedilatildeo do objeto interfere no resultado

do mesmo mdash quase como um experimento de Erwin Schroumldinger Satildeo por

conseguinte cabiacuteveis as analogias com o Livre de Steacutephane Mallarmeacute

(poe)moacutebiles a muacutesica aleatoacuteria de Luciano Berio (que produziu muacutesica

inspirada no livro Chamber music ou Muacutesica de cacircmara de Joyce) e de

Karlheinz Stockhausen A diferenccedila do envolvimento necessaacuterio do puacuteblico

51

apareceria para Eco portanto em um grau consideravelmente maior na obra de

arte moderna

Lembrando o que diz Samuel Beckett sobre o texto de Joyce o que

podemos destacar a respeito da maneira como se apresentaria um

acontecimento ao leitor em Finnegans wake eacute que isso na verdade

simplesmente natildeo ocorre ou ao menos natildeo em termos de uma cena contada

narrada como conhecemos A narrativa como a conhecemos em que uma cena

eacute mostrada contada ao leitor eacute substituiacuteda aqui pela proacutepria experiecircncia da cena

ou da coisa que seria descrita Ao inveacutes de contar uma cena daacute-se a mesma ao

leitor Natildeo se trata apenas de se desapegar do tipo de descriccedilatildeo realista

objetiva que presume distanciamento pois tambeacutem natildeo se trata do relato em

primeira pessoa subjetivo e por isso duacutebio na tentativa de explorar a psique

de uma personagem especiacutefica em suas contradiccedilotildees internas tentando acessar

a complexidade de sua consciecircncia Nenhuma dessas abordagens opostas seria

possiacutevel no Wake pois nele nem sempre se pode diferenciar as vozes do texto

mdash e nem sempre eacute preciso uma vez que natildeo haacute enredo que dependa desse

acompanhamento

4 Paralelos psicanaacutelise teoria da relatividade muacutesica

A disposiccedilatildeo estrutural de Finnegans wake em circularidade eacute o que

permite o acesso a partir de qualquer paacutegina e o leitor por sua vez tem

autonomia explicitamente garantida impelido a tomar uma decisatildeo no primeiro

acesso ao livro A circularidade no entanto e a numeraccedilatildeo dos fragmentos

sugerem uma ordem taacutecita mdash que natildeo pode ser simplesmente ignorada mas

natildeo deve ser vista tambeacutem como a uacutenica forma de leitura assim se engendra

o niacutevel de ambiguidade da obra Como em Ulysses a presenccedila da Odisseia na

concepccedilatildeo de cada um dos capiacutetulos eacute uma possiacutevel referecircncia de leitura mas

natildeo a linha central isto eacute natildeo eacute um necessaacuterio paralelismo agrave incursatildeo ao livro

de Joyce Ler literatura eacute dispor-se a um caminho que natildeo busca certezas ao

contraacuterio do que o apego a anaacutelises literaacuterias demasiado pragmaacuteticas ainda que

52

o neguem possa sugerir Mesmo em um livro de cunho bastante tradicionalista

como A Anaacutelise literaacuteria de Massaud Moiseacutes o lembrete eacute claro

A leitura com profundidade pressupotildee sempre que o texto literaacuterio sendo composto de metaacuteforas eacute ambiacuteguo por natureza ou seja guarda uma multiplicidade de sentidos Ler mal significa natildeo perceber a extensatildeo dessa ambiguidade ou apenas percebecirc-la sem poder compreendecirc-la ou justificaacute-la (MOISEacuteS 1969 p 24)

Exigir uma explicaccedilatildeo para cada noacute morfoloacutegico ou sintaacutetico que se

vislumbra no texto ou acusa-lo de impor dificuldades ao acompanhamento do

enredo satildeo acusaccedilotildees a Finnegans wake que partem de uma concepccedilatildeo

possivelmente questionaacutevel de literatura eou lidam com uma ideia redutora e

limitante de exegese ignorando a alta voltagem do cociente conotativo que o

texto oferece e a riqueza de leituras e possibilidades mdash que estatildeo longe de

formar um todo incoerente ou um texto composto de nonsense ao contraacuterio

Finnegans wake foi concebido de forma comprovadamente calculada e o humor

do texto estaacute distante de ser tatildeo hermeacutetico quanto se pensa Campbell e

Robinson utilizam um galicismo bastante peculiar para caracterizar Finnegans

wake cauchemar Derivado de cauquemaire termo registrado a partir do seacuteculo

XV pode definir simplesmente uma espeacutecie de sonho incocircmodo no limiar do

que seria um pesadelo No dicionaacuterio Larousse21 eacute precisamente uma

ldquomanifestaccedilatildeo oniacuterica que pode causar uma forte resposta emocional negativa

na mente de medo ou de horrorrdquo Sua formaccedilatildeo se deu a partir do termo picardo

cauchier que significa ldquopressionarrdquo ou ldquoempurrarrdquo e do termo germacircnico

proveniente do holandecircs mare que significa ldquoespectrordquo ldquofantasmardquo O campo

semacircntico em que se enquadra o termo envolve da anguacutestia ao desespero O

leitor portanto estaraacute avisado natildeo se trata de um sonho planificado e agradaacutevel

mas de um percurso sinuoso de que se deve duvidar e ao qual nos entregamos

sem reservas O leitor deve se dispor ao obscuro em vez de exigir clareza como

em um sonho caracterizado por Freud em que objetos satildeo siacutembolos e o que

21 Larousse 2013 ldquoCauchemar nom masculin Recircve peacutenible avec sensation doppression dangoisse Ideacutee chose ou personne qui importune ou cause du tourment Ce professeur est mon cauchemar Synonymes Hantise obsession tourmentrdquo

53

aparenta ser apenas um fato que se explica por si pode natildeo secirc-lo A isso se

acrescenta o que diz Freud sobre o reflexo (como ato involuntaacuterio automaacutetico

natildeo uma decisatildeo consciente) da negaccedilatildeo e a pulsatildeo de destruiccedilatildeo ldquoO texto [da

negativa] pode negar-se agrave interpretaccedilatildeo como meio de reagir agraves palavras de um

outro significante da proacutepria enunciaccedilatildeordquo (EYBEN 2012 p 283) A negaccedilatildeo

que vem do estranhamento produz afirmaccedilatildeo soacute se enxerga em Finnegans

wake o estranho a partir de noccedilotildees como narrativa e tempo linear negando-se

o estabelecido em direccedilatildeo a uma (nova) resposta

A referecircncia a Sigmund Freud natildeo vem apenas dos dados biograacuteficos em

afirmaccedilotildees do proacuteprio autor de que o livro eacute configurado como um sonho Joyce

dizia natildeo ser nada simpatizante da psicanaacutelise Apesar disso Lucia sua filha

tinha distuacuterbios mentais que ficaram mais graves com o passar do tempo e

chegou a se consultar com Carl Jung colega de Freud nos primeiros estudos

psicanaliacuteticos com quem ela se deu inicialmente muito bem Em Finnegans

wake Joyce cita tanto Freud quanto Jung maiores referecircncias no nascimento

da psicanaacutelise um tanto sardonicamente No fragmento 115 como destaca

Lenita Esteves em sua tese lecirc-se ldquoold Sykos who have done our unsmiling bit

on rsquoalices when they were yung and easily freudenedrdquo (FW 11521-23) Como

muito do que aparece no Wake (e muito do que aparece em nossos sonhos) a

citaccedilatildeo natildeo eacute clara e direta estando escondida poreacutem possiacutevel de ser

encontrada (ldquoyung and freudenedrdquo) com o termo ldquosykos on lsquoalicesrdquo separado em

duas partes como uma ldquocadeia truncadardquo (ESTEVES 1999 p 86) formando

ldquopsychoanalysisrdquo e a referecircncia agrave Alice de Lewis Carroll mdash autor cuja obra

sabemos ter influenciado Joyce e que aparece no trecho aqui referido como ldquoold

sykordquo (ldquoold psychordquo um ldquovelho loucordquo) O poeta e criacutetico dinamarquecircs Kristensen

certa vez perguntou se Joyce acreditava na Ciecircncia nova de Giambattista Vico

ao receber a sugestatildeo de Joyce que a lesse para ler Finnegans wake Joyce

respondeu ldquoNatildeo creio em nenhuma ciecircncia mas minha imaginaccedilatildeo cresce

quando leio Vico como natildeo aconteceu quando li Freud ou Jungrdquo (ELLMANN

1989 p 853)

Carl Jung chegou a ler Joyce e tambeacutem natildeo abrira caminhos para uma

simpatia maior entre eles ldquoJung garantiu que algumas de suas palavras

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ldquoportmanteaurdquo e neologismos eram notaacuteveis mas disse que eram acasos ela

[Lucia] e seu pai comentaria ele mais tarde eram como duas pessoas descendo

ao fundo de um rio uma caindo outra mergulhandordquo (Ibid p 837) A metaacutefora

do rio para a linguagem esquizofrecircnica pelo menos certamente teria agradado

Joyce se natildeo viesse nessa ocasiatildeo Especialmente vindo de algueacutem que havia

percebido em sua produccedilatildeo literaacuteria (e na de Lucia ao ler alguns de seus

poemas e apontar que havia ali indicaccedilotildees de problemas mentais) uma

exemplificaccedilatildeo de insanidade

Uma possiacutevel analogia entre uma obra como Finnegans wake e a

Interpretaccedilatildeo de Muitos Mundos (IMM) formulaccedilatildeo de estados relativos

elaborada pelo fiacutesico quacircntico Hugh Everett encontra-se no esteio da afirmaccedilatildeo

de Umberto Eco a respeito dessa mesma obra fazendo um paralelo entre a

relatividade de Einstein e as possibilidades diversas de tempos e espaccedilos

distintos e simultacircneos na obra de Joyce

Em Finnegans wake encontramo-nos enfim verdadeiramente na presenccedila de um cosmo einsteiniano curvado sobre si mesmo mdash a palavra inicial une-se agrave palavra final mdash e portanto acabado mas por isso mesmo ilimitado Todo acontecimento toda palavra encontra-se numa relaccedilatildeo possiacutevel com todos os outros e eacute da escolha semacircntica efetuada em presenccedila de um termo que depende o modo de entender todos os demais Isso natildeo significa que a obra natildeo tenha um sentido se Joyce introduz nela certas chaves eacute justamente por desejar que a obra seja lida num sentido determinado Mas esse ldquosentidordquo tem a riqueza do cosmo e o autor quer ambiciosamente que ele implique a totalidade do espaccedilo e do tempo mdash dos espaccedilos e dos tempos possiacuteveis O instrumento-mor dessa ambiguidade integral eacute o pun o calembour (ECO 1989 p 48)

Jaacute no iniacutecio de seu livro ao citar a obra de James Joyce como ldquoexemplo

maacuteximo de obra lsquoabertarsquordquo (Ibid p 47) Umberto Eco traccedila uma referecircncia com

Albert Einstein por meio de Edmund Wilson a respeito tambeacutem da obra anterior

Ulysses

Sua forccedila ao inveacutes de acompanhar uma linha expande-se a si mesma em todas as dimensotildees (inclusive a do Tempo) (hellip) Joyce desenvolveu consideraacutevel maestria teacutecnica para apresentar-nos os elementos de sua histoacutera numa ordem tal que nos torne capazes de encontrar sozinhos os nossos caminhos (Ibid p 48)

55

Como sabemos a dita circularidade do Wake eacute construiacuteda de tal forma

que daacute margem a diferentes formas de acesso e leitura Isso gera diversas

possibilidades paralelas e igualmente aceitaacuteveis dentro da estrutura se

entendermos que de fato qualquer paacutegina pode ser a primeira e qualquer

paacutegina pode ser a uacuteltima Essas possibilidades diferem natildeo apenas em suas

caracteriacutesticas mas tambeacutem em suas implicaccedilotildees Assim coexistem

paralelamente essas possibilidades a partir das ordens de leitura efetivamente

disponiacuteveis e a obra permanece una Ateacute mesmo dentro de um capiacutetulo pode

ser que pouco importe a ordem de onde se comeccedila a ler De um paraacutegrafo para

outro o assunto pode mudar drasticamente Tomemos como exemplo o capiacutetulo

III do terceiro livro em que a primeira paacutegina fala dos Four Old Men a segunda

inicia uma ode a Isobel a filha discorrendo sobre toda a sua beleza e

ingenuidade e o paraacutegrafo seguinte salta nada menos para Humphrey

Chimpden Earwicker becircbado no chatildeo de seu pub

Em artigo intitulado ldquoThe Finnecies of music wed poetry A muacutesica e o

Finnegans Wakerdquo Caetano Galindo tradutor da mais recente versatildeo em

portuguecircs de Ulysses (2012) e da uacutenica de Finnrsquos hotel (2014) parte da ideia

desenvolvida por Walter Pater de que ldquoToda a arte constantemente aspira agrave

condiccedilatildeo da muacutesicardquo (PATER apud GALINDO 2010 p 286 traduccedilatildeo do trecho

feita por Caetano Galindo) Frequentemente se afirma percorrendo a fortuna

criacutetica de Finnegans wake que essa obra eacute o resultado de suposto projeto

formalista de extrema acuidade em que a semacircntica eacute absolutamente preterida

em relaccedilatildeo agrave forma agrave esteacutetica focada na materialidade do significante No

entanto natildeo haacute possibilidade de falar de significante sem significado sendo esse

um par indissoluacutevel e acusar Joyce de se apoiar na pura materialidade do signo

para construir um texto de conteuacutedo calcado no nonsense e portanto

ldquoincompreensiacutevelrdquo mdash ou mais especificamente um texto que efetivamente nada

tenha a dizer mdash e puramente sonoro se mostra descabida a qualquer leitor atento

do Wake

A aproximaccedilatildeo entre a literatura joyciana e a arte musical eacute contudo

bastante profiacutecua Aleacutem de a sonoridade como dissemos ser aspecto de suma

importacircncia nos textos de Joyce segundo ele proacuteprio essa proeminecircncia eacute

56

expliacutecita na leitura observando-se os jogos linguiacutesticos riacutetmicos e o papel do

aspecto foneacutetico na compreensatildeo de muitos dos trocadilhos (puns) Ainda que

os fatores biograacuteficos nada determinem a respeito da produccedilatildeo literaacuteria cabe

apontar tambeacutem a tiacutetulo de curiosidade para a relaccedilatildeo estreita de Joyce com a

muacutesica queria ser cantor e sua matildee foi cantora e integrou coros de igrejas A

aproximaccedilatildeo entre experiecircncias literaacuterias e muacutesica natildeo seria algo novo para o

autor irlandecircs que demonstrava esse interesse desde os poemas de Chamber

Music mdash admirados por Ezra Pound mdash passando por trechos eminentemente

meloacutedicos de A Portrait of the artist as a young man ateacute o episoacutedio das Sereias

(como eacute conhecido) de Ulysses

Richard Ellmann afirma que diante de algumas das criacuteticas frequentes a

respeito do caraacuteter literaacuterio de Finnegans wake ldquoo aspecto musical do livro era

uma de suas justificativasrdquo (ELLMANN 1989 p 865) Questionado por Terence

White Gervais ldquose o livro era uma mistura de muacutesica e literaturardquo ldquoJoyce

respondeu laconicamente lsquoNatildeo eacute pura muacutesicarsquordquo (Id) A variedade de formas de

entonaccedilatildeo e pronuacutencia aproximam o Finnegans wake do que seria uma

composiccedilatildeo musical que precisa ser executada lida como se lecirc a partirura em

muacutesica mdash conferindo vida agraves indicaccedilotildees que o papel traz O leitor se vecirc dessa

forma no exato centro dessa demanda sendo-lhe exigidas seguidas decisotildees

persecutoacuterias Nem Ulysses nem Finnegans wake satildeo obras para serem lidas

de forma passiva apenas acompanhando a narrativa que se desenha sozinha

recostando-se acomodando-se em leitura plaacutecida eacute preciso lecirc-los de maneira

executiva

O capiacutetulo 11 (considerado na divisatildeo de Campbell e Robinson o capiacutetulo

3 do livro II mdash que chamam de ldquolivro dos filhosrdquo mdash denominado ldquoTavernry in

feastrdquo) reuacutene sensaccedilotildees diversas com destaque ao sentido da audiccedilatildeo em

cenas de festejo e bebedeira no pub da famiacutelia dublinense As cenas (ou

sensaccedilotildees) se assemelham ao que seria um sonho de HCE tendo contudo

tambeacutem a sua participaccedilatildeo Na nota preliminar de Donaldo Schuumller ldquoA

identificaccedilatildeo chega a extremos HCE sonha e eacute sonhado () Recolhem-se

fragmentos espalhados no tempo e no espaccedilordquo (2003 p 215) Em meio a

57

transformaccedilotildees de HCE em Raacute deus egiacutepcio do Sol histoacuterias ouvidas pelo raacutedio

que envolvem visitas de um norueguecircs a Dublin em busca de um alfaiate

casamento quedas e um seacutetimo trovatildeo faz-se musicalidade no ambiente

barulhento

Snip snap snoody Noo err historyend goody Of a lil trip trap and a big treesnooker (hellip) (FW 3321-2)22

For hanigen with hunugen still haunt ahunt to find their hinnigen where Pappappapparrassannuaragheallachnatullaghmonganmacmacmacwhackfalltherdebblenonthedubblandaddydoodled and anruly person creeked a jest (FW 3324-7)23

Such was the act of goth stepping the tolk of Doolin drain and plantage wattle and daub with yoursquoll peel as Irsquoll pale and wersquoll pull the boath toground togutter testies touchwood and shenstone unto pop and puma calf and condor under all the gaauspices (incorporated) the chal and his chi their roammerin over gribgrobgrab reining trippetytrappty (so fore shault thou flow else thy cavern hair) to whom she (anit likenand please-thee) Till sealump becamedump to bumpslump a lifflebed (altolagrave allamarsch O gueacute O gueacute) (FW 33214-18)24

Joyce controla o ritmo do texto de forma que pulsem frases com tocircnicas

bem definidas formando o que ambienta o burburinho da noite no bar cheio e de

pessoas em festa Aleacutem das evidentes e numerosas aliteraccedilotildees ao unir

palavras como em ldquobecamedump to bumpslumprdquo eacute criado todo um novo ritmo

do iniacutecio ao fim das enunciaccedilotildees Aleacutem do forte impacto sonoro a semacircntica eacute

consequentemente modificada deslocando-se o que seria um significado

22 ldquoPirlimpimpim Da estorieta este eacute o fim De uma pequerrucha hip e de um grande triscunardquo (na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller 2003) 23 ldquoPois essazim e essezim ainda andam por aiacute a procura de Finn onde Pappappapparrassannuaragheallachnatullaghmonganmacmacmacwhackfalltherdebblenonthedubblandaddydoodled e uma personalidade ilegal largou um gracejordquo (idem) 24 ldquoTal foi o ato deusassombrado pra deter a fala do palanquim drenagem e plantaccedilatildeo vime e barro tua eacute a repulsa meu eacute o pulso nosso eacute o impulso do barco agrave terra dos aterrados testemunhas de madeira sapiencial e de pedra filosofal ateacute pupa e puma o bov hino e o condor sob todos os gaauspiacutecios (incorporados) o cujo e seu ela perroeirando caraagoraagarra reinando o trotedatropa (ateacute aqui fluiraacutes ou te arrastaratildeo pelos cabelos como na caverna) a quem ela (natildeo se assemelha praza-te) Ateacute que marulho se converta em entulho o brusco baque no liacuteffido leito (altolaacute allamarcha O quecirc o quecirc)rdquo (idem)

58

previsiacutevel para um neologismo que natildeo se fixa como neologismo uma vez que

continua podendo ser reinventado Do trovatildeo que possivelmente eacute o mais

musical de todos passamos ateacute mesmo por Shakespeare (ldquoshenstonerdquo) aqui

unido a Shem

Retornando ao texto de Caetano Galindo a aproximaccedilatildeo entre Finnegans

wake e muacutesica daacute-se entatildeo pela possibilidade de pensar essa obra literaacuteria

como uma partitura lembrando ainda a sugestatildeo do proacuteprio Joyce de que a

leitura de sua obra era diferenciada se fosse feita em voz alta mdash executada como

muacutesica escrita sobre as pautas de uma obra musical Isso se relaciona

diretamente a um certo papel atribuiacutedo ao leitor nessa interaccedilatildeo menos passiva

e mais ativamente investigativa ou analiacutetica em um sentido que eacute certamente

mais inventivo do que interpretativo Em vez de linhas pautas Sobre essa

comparaccedilatildeo diz Caetano Galindo

Uma partitura por outro lado jamais seraacute vista como a ldquoinauguraccedilatildeordquo de uma obra privileacutegio que cabe a sua primeira execuccedilatildeo puacuteblica A partitura afinal eacute muito menos ldquoa obrardquo que um detalhado conjunto de instruccedilotildees para a realizaccedilatildeo da obra que passa a existir apenas quando executada que tem a capacidade de existir como tal e de afetar mesmo pessoas ldquoanalfabetasrdquo no sistema de signos em que se escreve que manteacutem com aquele autoacutegrafo uma relaccedilatildeo portanto necessariamente de maior independecircncia Hierarquicamente superior E jaacute naqueles primeiros poucos exemplos de ldquobrincadeirasrdquo sonoras do Wake junto da constataccedilatildeo de que se trata de uma obra em que a leitura e a leitura em voz alta tem um papel completamente diferente na atribuiccedilatildeo na criaccedilatildeo de seu sentido fazem com que de diversas maneiras se possa sim pensar no livro como mais proacuteximo de uma partitura (GALINDO 2010 p 298)

A multiplicidade proporcionada por essa abertura natildeo prejudica portanto

a unidade da obra nem significa abertura a qualquer interpretaccedilatildeo a abertura

em questatildeo eacute efetivamente de autonomia e participaccedilatildeo do leitor tomando

decisotildees que efetivamente afetam sua experiecircncia com a obra natildeo por sua

evidente subjetividade como pessoa mas em seu papel como destinataacuterio mdash e

natildeo mero receptor de uma obra fechada cuja significaccedilatildeo estaacute dada inerte A

essa abertura poderiacuteamos entatildeo comparar a da muacutesica e seu efeito que parte

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de um ldquodesdeacutem com o sentidordquo para usar expressatildeo de Caetano Galindo Mais

do que relaccedilotildees de sonoridade com o uso de aliteraccedilotildees assonacircncias rimas

que comumente relacionamos a uma certa qualidade musical (mas que satildeo

aspectos em geral inerentes a quaisquer textos literaacuterios) o texto tem um

princiacutepio estruturante diferenciado que assim o assemelha agrave muacutesica

Essa aproximaccedilatildeo diz respeito agrave maneira de interaccedilatildeo que existe entre a

obra e um inteacuterprete de uma composiccedilatildeo musical mais do que entre a obra e o

seu ouvinte Assim nos remetemos agrave aproximaccedilatildeo feita por Eco entre o texto

joyciano e a muacutesica moderna que se justifica em diversos aspectos entre os

quais destacamos aqui o da necessaacuteria execuccedilatildeo em uma certa sequecircncia

temporal como fundamento inerente agraves duas artes muacutesica e literatura Ambas

satildeo elaboradas a partir de uma ordenaccedilatildeo que se alterada modifica-se ao

contraacuterio de obras de arte com entrada livre O componente temporal tem

destaque de maneira evidente tambeacutem no cinema tem possibilidades diversas

de entendimento na fotografia e nas artes plaacutesticas a partitura no entanto assim

como o texto teatral de outra maneira tambeacutem o eacute faz parte do rol de peccedilas

executaacuteveis Eacute das obras de arte que se escrevem e inscritas permanecem na

promessa de que se deem em um novo tempo em um acontecimento fora do

papel

Natildeo falamos portanto tatildeo somente de um texto literaacuterio musical mas dos

fundamentos compartilhados entre as duas artes em termos fundamentais de

elaboraccedilatildeo e de acessoexecuccedilatildeorecepccedilatildeo dentro da plasticidade de cada uma

delas A problemaacutetica inescapaacutevel que concerne agrave sucessatildeo temporal como fator

inato da obra natildeo se refere no texto literaacuterio simplesmente agrave sequecircncia de sons

mas a toda a mateacuteria da obra Como em certas obras musicais o compositor

deixa a possibilidade de o(s) instrumentista(s) ou mesmo o(s) ouvinte(s)

intercambiarem partes do todo de forma entatildeo prevista e deliberada pelo autor

em todas as suas consequecircncias temos em Finnegans wake a possibilidade de

entrada por qualquer trecho No entanto assim como na obra musical as

consequecircncias satildeo medidas tambeacutem no Wake existe eacute claro uma ordem

subjacente ainda que se possa ignoraacute-la no processo de leitura e iniciar de

60

qualquer paacutegina A leitura ainda que executiva eacute feita em cima de indicaccedilotildees

preacute-existentes

O leitor ideal do Wake por conseguinte deve ser aquele indiviacuteduo aberto

a uma renovaccedilatildeo inesgotaacutevel de processos cognitivos aquele que natildeo executa

sua leitura preso a seus horizontes mas estaacute disposto a expandi-los a cada linha

A fluidez em Finnegans wake se deve ao natildeo estabelecimento de uma voz que

tenha lugar proacuteprio Como diz Derrida em ldquoDuas palavras por Joycerdquo haacute livros

que terminamos de ler assim que iniciamos a leitura enquanto James Joyce nos

faz encarar a leitura que nunca parece ter fim Muito frequentemente Finnegans

wake eacute lembrado por ser um livro circular sendo essa uma das mais evidentes

caracteriacutesticas da estrutura elaborada por Joyce Podemos lembrar ainda a

figura eliacuteptica como Derrida a concebe para atestarmos que a circularidade

wakiana natildeo se engendra em reiteraccedilatildeo ciacuteclica em regressos a pontos

iniciaacuteticos nem em repeticcedilotildees de processos idecircnticos Ao contraacuterio a

circularidade do Wake efetivamente se aproxima da viconiana que inspirou

Joyce temos um processo de retorno que soacute eacute previsiacutevel ateacute certo ponto pois

engendra acima de tudo a renovaccedilatildeo de seus elementos Assim ateacute nas

repeticcedilotildees de um mesmo termo pela obra podemos perceber como o que

acontece natildeo eacute a retomada pura e simples mas a operaccedilatildeo de uma diffeacuterance

com ldquoardquo uma vez que o termo eacute aparentemente duplicado mas natildeo ocorre da

mesma forma e portanto jaacute natildeo eacute idecircntico em significado

A relaccedilatildeo com muacutesica novamente se faz proveitosa por uma outra via de

relaccedilatildeo Em um paralelismo bastante coerente a respeito de como eacute possiacutevel a

operaccedilatildeo de leitura de uma obra como Finnegans wake Umberto Eco tece

comparaccedilotildees citando o compositor belga Henri Pousseur um dos nomes da

nouvelle musique junto tambeacutem de Luciano Berio Pierre Boulez e Karlheinz

Stockhausen

Para definirmos a situaccedilatildeo do leitor de Finnegans wake parece-nos servir perfeitamente a descriccedilatildeo dada por Pousseur da situaccedilatildeo do indiviacuteduo que ouve uma composiccedilatildeo serial poacutes-dodecafocircnica ldquoJaacute que os fenocircmenos natildeo mais estatildeo concatenados uns aos outros segundo um determinismo consequente cabe ao ouvinte colocar-se

61

voluntariamente no centro de uma rede de relaccedilotildees inexauriacuteveis escolhendo por assim dizer ele proacuteprio (embora ciente de que sua escolha eacute condicionada pelo objeto visado) seus graus de aproximaccedilatildeo seus pontos de encontro sua escala de referecircncias eacute ele agora que se dispotildee a utilizar simultaneamente a maior quantidade de graduaccedilotildees e de dimensotildees possiacuteveis a dinamizar a multiplicar a estender ao maacuteximo seus instrumentos de assimilaccedilatildeordquo E com essa citaccedilatildeo fica sublinhada como se disto houvesse necessidade a convergecircncia de todo o nosso discurso para um ponto uacutenico de interesse e a unidade da problemaacutetica da obra ldquoabertardquo no mundo contemporacircneo (ECO 1989 p 49)

Assim a postura ativa se faz natildeo somente numa via extra de interaccedilatildeo

obra-receptor mas eacute efetivamente uma demanda necessaacuteria para que essa

interaccedilatildeo possa se viabilizar Ainda que ambiguidade e polissemia sejam

evidentemente traccedilos inerentes a quaisquer textos literaacuterios em geral haacute uma

oferta disseminativa especiacutefica onde se engendra diffeacuterance A interaccedilatildeo

receptor-obra na qual a participaccedilatildeo e as escolhas do leitor eacute uma necessidade

tem uma dinacircmica operacionalizante que natildeo somente ressuscita o texto morto

na leitura mas o faz quase podendo daacute-lo agrave luz Em consonacircncia com o que eacute

dito por Haroldo de Campos em A arte no horizonte do provaacutevel voltamos agrave

Escritura do retorno ldquoA arte joycena circular e em aberto natildeo possui como

operador a figura autoral mandataacuteria Antes a informaccedilatildeo esteacutetica mdash como

transmissatildeo de sensaccedilatildeo da forma mdash eacute gerada pelo interpretante que assume a

posiccedilatildeo de operadorrdquo (EYBEN 2012 p 616)

Isso natildeo implica no entanto eacute bom que lembremos uma abertura

semacircntica total e desgovernada que nos leve a aquiescer para as suposiccedilotildees

de que Finnegans wake seja uma grande piada sem qualquer indiacutecio de que sua

leitura valha a pena Aleacutem de rascunhos e arquivos de Joyce apontarem

fortemente para o contraacuterio com esquematizaccedilotildees da estrutura e registros das

formulaccedilotildees de trechos reescritos e reeditados com precisatildeo vimos que natildeo

foram poucos os leitores que se dedicaram agrave incursatildeo por essa obra ainda que

seja tatildeo mal falada quanto se diz que eacute incompreensiacutevel Natildeo se trata apenas de

frases compostas de um puro trava-liacutengua sucedendo o outro que natildeo remetem

a nada e tecircm seus significados encerrados em si mesmos de forma que somente

o significante seja manipulado em brincadeiras linguiacutesticas mdash ainda que a

62

comparaccedilatildeo inicial seja relativamente cabiacutevel no que diz respeito aos jogos

foneacuteticos e trocadilhos que compotildeem a obra joyciana O recurso natildeo resulta em

uma anulaccedilatildeo da unidade significativa ao contraacuterio temos sua expansatildeo Haacute

criacuteticos que traccedilam a sequecircncia da intriga na obra e a analisam sob essa oacuteptica

ainda assim sabemos natildeo haver linearidade narrativa na concepccedilatildeo tradicional

de enredo uma vez que o Wake traz o que se caracteriza pelo adjetivo plotless25

Como lembra o proacuteprio Eco mais agrave frente poreacutem ldquoEssa pluralidade

semacircntica natildeo determina ainda o valor esteacuteticordquo (ECO 1989 p 91) Fosse essa

a mateacuteria-prima de Finnegans wake natildeo seria composto entatildeo por mais que

jogos intelectuais e tantos criacuteticos assim o julgaram Se pluralidade semacircntica

implica uma seacuterie definida de possibilidades a b ou c para uma frase expressatildeo

capiacutetulo ou para a obra toda estaacute mais longe de Finnegans wake do que supotildee

Eco Polissemia subentende a possibilidade de visualizar nas palavras as

possibilidades para as quais elas se abrem como na ambiguidade em geral

tambeacutem se tem a consciecircncia dos sentidos que povoam o mesmo territoacuterio Por

mais contraditoacuterio que possa soar isso ainda pode integrar poreacutem uma leitura

hermenecircutica substitui-se a noccedilatildeo de verdade contida em uma unidade pela de

um espectro de verdades simultacircneas ainda controladas detidas nos limites do

horizonte que nossa visatildeo alcanccedila com nitidez

Em vez disso poderiacuteamos mdash podemos mdash ler Finnegans wake sem

necessariamente buscar conter em diagramas mentais os pontos semacircnticos

oferecidos em cada expressatildeo natildeo somente porque esse seria um trabalho

cansativo mas tambeacutem porque natildeo nos ofereceria garantias de ser esta a

melhor maneira de intimidade com o texto Da mesma maneira ler com fluidez

ainda que uma ou outra referecircncia possa nos escapar pelos dedos natildeo eacute

necessariamente uma forma menos integrada de se deparar com a obra em

questatildeo Fluidez aqui sublinhe-se natildeo se refere agrave suposiccedilatildeo de que se tenha

diante das paacuteginas do livro um leitor passando por elas uma a uma de maneira

25 O termo vem do inglecircs plot que se refere especificamente a enredo ou trama O Wake natildeo possui um enredo que mova a leitura e seja separaacutevel em situaccedilatildeo inicial cliacutemax e desfecho e mesmo os elementos baacutesicos da narrativa ndash personagens narradores tempo e espaccedilo ndash se modificam todo o tempo

63

homogecircnea sem que se detenha em nada de especiacutefico avanccedilando

ininterruptamente pelo texto em um ritmo padronizado meramente

decodificando palavras lendo o texto somente no sentido mais simploacuterio de

assunccedilatildeo da existecircncia e de certa compreensibilidade de um dado coacutedigo

Referimo-nos ao contraacuterio ao caso de um leitor qualquer se se lance agrave leitura

do livro mdash de modo que detenha um tempo singular de sua proacutepria leitura que

flui em seu ritmo proacuteprio individual variaacutevel e incalculaacutevel

Pelo fato de que o texto como eacute tecido exige do leitor a tomada de

algumas decisotildees jaacute haacute demanda suficiente de uma postura ativa que natildeo

precisa ser a tradicional postura de identificar todos os componentes e assim

destrinchar todos os elementos do texto por mais que isso eventualmente possa

ser de grande ajuda Talvez a noccedilatildeo do todo seja mais importante e mais difiacutecil

de ser alcanccedilada fora dessa anaacutelise a que estamos acostumados Muito do

texto por mais hercuacuteleo que o trabalho possa parecer pode ser forccedilosamente

colocado em diagramas e planilhas mentais com divisotildees e classificaccedilotildees

criadas a partir de moldes teoacutericos preacute-existentes mas lidar com o texto em sua

complexidade eacute respeitaacute-lo na sua porccedilatildeo de problemaacutetica indecifraacutevel

CAPIacuteTULO II

FINNEGANS WAKE E O TEMPO DA TRADUCcedilAtildeO

65

No prefaacutecio agrave traduccedilatildeo dos poemas de Charles Baudelaire reunidos na

seccedilatildeo Tableaux parisiens publicada em 1923 denominado ldquoDie Aufgabe des

Uumlbersetzersrdquo Walter Benjamin apresenta nas palavras de Haroldo de Campos

a sua ldquometafiacutesica antes do que uma fiacutesica da traduccedilatildeordquo (CAMPOS 2008 p

179) Ao encetar sua exposiccedilatildeo a respeito da ldquotarefa-renuacutencia do tradutorrdquo como

traduziu Susana Kampff Lages Benjamin questiona qual o destino do texto

traduzido apoacutes afirmar o que aqui se traz como epiacutegrafe a compreensatildeo mdash ou

a tentativa de engendrar alguma mdash das obras de arte natildeo deve se pautar pelo

receptor Enseja lembrar que se costuma entender a traduccedilatildeo limitando-se agrave

visatildeo corriqueira de que teria o objetivo preciacutepuo ou mesmo uacutenico de facilitadora

do acesso ao texto o que recairia justamente no problema de ter no destinataacuterio

sua justificativa focando na recepccedilatildeo do texto toda a necessidade de sua

existecircncia mdash ou mais gravemente a sua utilidade mdash e portanto tirar dessa

relaccedilatildeo suas premissas e direcionamentos

66

A existecircncia de um problema em considerar a traduccedilatildeo como algo

produzido tatildeo somente para atender agravequeles privados da compreensatildeo do

idioma do texto de partida antecede contudo qualquer afirmativa contra a

exegese que se paute pela recepccedilatildeo ou a favor de qualquer fantasiologia em

detrimento de uma investigaccedilatildeo do pateacutetico schlegeliano ou do empiacuterico em

literatura Eacute possiacutevel perceber esse problema no apontamento do fato um tanto

expliacutecito de que o leitor da traduccedilatildeo que visa substituir o texto de partida

inevitavelmente a leraacute como texto original (no sentido de primeiro

evidentemente) As relaccedilotildees entre o texto de partida e suas traduccedilotildees eacute

perigosamente apagada no caso do leitor cujo contato com a obra se daacute somente

por uma traduccedilatildeo especialmente entre aquelas que natildeo contecircm comentaacuterios

notas ou recursos similares por meio dos quais o tradutor aponte seus dilemas

e exprima as dificuldades pelas quais passou remetendo ao texto de partida

bem como que criteacuterios utilizou em suas escolhas e renuacutencias lexicais ou

sintaacuteticas

Aleacutem das peculiaridades inescapaacuteveis da leitura de uma obra de traduccedilatildeo

sem o concomitante acesso ao texto traduzido existem ainda os problemas

inerentes ao texto Tradutores que se incumbem da tarefa de transmitir algum

ato comunicativo a ser detectado no texto de partida transportando uma

mensagem mdash por vezes artificialmente construiacuteda ou forccedilosamente encontrada

em uma leitura enviesada ou mesmo forjada mdash a outro idioma por meio do labor

tradutoacuterio estariam prestes a falhar de certa maneira ao menos segundo o que

assevera Benjamin ao recaiacuterem na ldquotraduccedilatildeo inexata de um conteuacutedo

inessencialrdquo (BENJAMIN 2008 p 66) A falha tem eacute claro nesse caso um

sentido especiacutefico que parte da concepccedilatildeo que Benjamin traz de traduccedilatildeo Seria

demasiadamente penoso declarar ou apontar fracassos tradutoacuterios completos a

qualquer que seja a tentativa ao menos em literatura de traduzir algum texto

Como a Benjamin poreacutem a compreensatildeo do que significa ou qual a intenccedilatildeo do

ato de traduzir literatura parece-nos primordial ao labor tradutoacuterio e tambeacutem agrave

leitura de traduccedilotildees pois esclarecer o ponto de que partimos ao olhar o texto

se eacute o mesmo ou se jaacute eacute outro que medidas haacute de ldquomesmordquo e de ldquooutrordquo ou de

67

ldquoinovaccedilatildeordquo algo que compreendemos por processos de diferenciaccedilatildeo e

similaridade

ldquoDie Aufgabe des Uumlbersetzersrdquo eacute um texto frequentemente referido como

ensaio a despeito de ser mais loacutegico e afirmativo do que essa classificaccedilatildeo

poderia implicar (isso talvez ocorra pela obsessatildeo proacutepria do seacuteculo XX de

enxergar Essayismus em variadas formas textuais e em alguns autores

Moumlglichkeitsmenschen ou ldquopossibilitaacuteriosrdquo nos termos do escritor modernista

austriacuteaco Robert Musil contemporacircneo de Joyce) Benjamin transparece certo

idealismo em seu conceito de liacutengua pura e transita entre a construccedilatildeo desse

conceito eteacutereo agrave medida que o texto avanccedila e nuances de uma tradiccedilatildeo

platocircnica um tanto menos hesitante mais soacutelida Ainda assim eacute clara a

ratificaccedilatildeo buscada pelo autor de afirmar a traduccedilatildeo da arte tatildeo dignificante

quanto a criaccedilatildeo artiacutestica per se

Considerando-se um texto classificado como ldquoliteraacuteriordquo o dilema de como

traduzir se torna especificamente (poreacutem natildeo necessariamente mais) complexo

Poder-se-ia considerar que a abertura do texto facilita a tarefa tradutoacuteria uma

vez que expande as possibilidades de escolhas em vez de reduzir a

correspondecircncia de uma palavra a uma entrada dicionarizada ou opccedilatildeo lexical

mais imediata Traduzir literatura demanda meditar sobre um termo mas

tambeacutem sobre a frase a estrutura e o todo da obra A expansatildeo lexical

engendrada em arte eacute contudo sinteacutetica natildeo haacute possibilidades quaisquer de

consequecircncias equivalentes mas ao contraacuterio as consequecircncias de uma

escolha ou outra devem ser drasticamente distintas A necessidade do mot juste

do labor artiacutestico literaacuterio permanece sendo uma demanda da tarefa tradutoacuteria e

nesse sentido o tradutor em um entendimento radical de sua praacutetica de alguma

forma reescreve o texto de partida tomando emprestadas a estrutura e as ideias

do que traduz

Esse eacute o princiacutepio levado agrave risca com o termo transcriaccedilatildeo ainda que natildeo

se restrinja agrave modalidade concebida pelos irmatildeos Campos que envolve ainda

outros argumentos A despeito da conaccedilatildeo ou vocaccedilatildeo artiacutestica putativa do

tradutor ou seu esforccedilo em ser tambeacutem poeta a traduccedilatildeo de literatura lida com

68

o fenocircmeno potencializado de cada termo ter alto impacto seja o mot juste

procurado pelo tradutor criativamente seja buscado em metodologia que

percorra caminho teacutecnico-investigativo Haroldo de Campos afirma a respeito

das traduccedilotildees do Panaroma do Finnegans wake (2001) ldquo() o que interessa

natildeo eacute a literalidade do texto mas sobretudo a fidelidade ao espiacuterito ao lsquoclimarsquo

joyciano frente ao diverso feixe de possibilidades do material verbal manipuladordquo

(CAMPOS 2001 pp 27-28) Essa fidelidade pode ser entendida como anaacuteloga

agrave que Benjamin defende que se engendra sendo fiel agrave forma do texto

destituindo-o da fidelidade ipsis litteris isto eacute daquela realizada de maneira

literal de vocaacutebulo em vocaacutebulo apoiada na suposta funccedilatildeo tradutoacuteria de

transpor a mensagem comunicativa considerada ldquoinessencialrdquo Em seu texto

ldquoTransluciferaccedilatildeo mefistofaacuteusticardquo Haroldo afirma que ldquoNatildeo seria descabido

ultimar a teoria benjaminiana da traduccedilatildeo como portadora da mensagem lsquointerrsquo

(ou lsquotransrsquo) semioacutetica da liacutengua pura orientada pelo lema rebelionaacuterio do non

serviamrdquo (CAMPOS 2008 p 180)

Natildeo haacute nem deve haver por conseguinte expectativa de transposiccedilatildeo

entre planos em resultado tradutoacuterio calculaacutevel desde que se admita que a

traduccedilatildeo como o texto de partida natildeo significa o mesmo que ele mas eacute mdash deve

ser em sua tautologia como propotildee Albercht Fabri Se vemos o tangenciamento

de Benjamin devemos vislumbrar no processo tradutoacuterio cerebral o ponto a ser

tocado entre a infinidade de pontos natildeo obstante isso soacute pode permitir a

deduccedilatildeo do horizonte da liacutengua pura se for mantido o espaccedilamento da ldquopulsatildeo

dionisiacuteaca que eacute capaz de dissolver a diamantizaccedilatildeo apoliacutenea do original preacute-

formado em nova festa siacutegnicardquo pondo a ldquocristalografia em ebuliccedilatildeo de lavardquo

(CAMPOS 2008 p 180) Revela-se prejudicial o uso de termos similares a

ldquomensagemrdquo ldquomensageirordquo pois afirma um binarismo de espaccedilos em que dois

planos coexistem e entre eles ocorre o intercacircmbio Falar em ldquoportadora de

mensagemrdquo soacute eacute cabiacutevel nesse contexto se referindo agrave ldquointer (ou trans)

semioacutetica da liacutengua purardquo da fala de Haroldo mas natildeo ao que remete de forma

mais imediata o conteuacutedo inessencial mdash ao inveacutes da categoria da forma que

caracteriza a traduccedilatildeo na teoria benjaminiana

69

Admitiriacuteamos assim a possibilidade de o receptor da traduccedilatildeo ser um

leitor capaz de acessar o original de forma que a traduccedilatildeo seja um texto

adicional ao inveacutes de atuar como um usurpador do estatuto de texto primeiro

Mais do que uma possibilidade o leitor ideal da traduccedilatildeo seria esse que pode

vecirc-la como fonte de variantes interpretativas provenientes de leitura singular do

texto feita pelo tradutor (um leitor ideal sob essa oacuteptica) A palavra para

ldquotraduccedilatildeordquo na liacutengua alematilde eacute Uumlbersetzung junccedilatildeo do prefixo (do tipo que tem

valor semacircntico tambeacutem por si soacute) uumlber com a palavra setzung significando uma

sobreposiccedilatildeo sobreaplicaccedilatildeo Indica uma sobre-escrit(ur)a uma sobrevivecircncia

O leitor da traduccedilatildeo que tem acesso ao original mdash o que definimos como o leitor

ideal da traduccedilatildeo mdash e sua leitura do texto de partida e do que lhe foi sobre-escrito

eacute outro argumento a favor da traduccedilatildeo criativa e ratifica a possibilidade de o labor

tradutoacuterio poder e dever ser executado como arte conferindo ao tradutor natildeo

somente status mas responsabilidade Natildeo soacute pode se dedicar agrave busca do mot

juste como se incumbe desse dever ao se prestar agrave traduccedilatildeo

Walter Benjamin afirma o estatuto da traduccedilatildeo como forma que natildeo se

rende ao papel de transpor significados de um idioma a outro libertando-a de

qualquer caraacuteter submisso ao texto traduzido No entanto isso natildeo significa

forccedilar uma desvinculaccedilatildeo Ao contraacuterio afirma que ldquoeacute preciso retornar ao

originalrdquo (BENJAMIN 2008 p 67) Os quatro tradutores do texto de Benjamin mdash

Fernando Camacho Karlheinz Barck (e equipe natildeo nomeada) Susana Kampff

Lages e Joatildeo Barrento mdash optam pelos termos ldquoretornarrdquo ou ldquoregressarrdquo ldquoo

regressordquo No entanto pensar em voltar-se ao que eacute o texto original explicitaria

como isso significa o ato literal de como leitor do texto de partida debruccedilar-se

considerando como o tradutor deve eacute oacutebvio ir a ele natildeo somente em um

regresso simboacutelico mas tambeacutem como parte efetiva do processo de traduccedilatildeo A

concisa expressatildeo do movimento de voltar-se aponta tambeacutem para a

necessidade de evocaacute-lo no texto resultante da traduccedilatildeo ainda que natildeo seja

servil a ele e por uacuteltimo aponta para o retorno agrave liacutengua pura una babeacutelica

aquela em que natildeo haacute a categoria do enunciado e que ultrapassa as liacutenguas

nacionais

70

A traduccedilatildeo para Walter Benjamin eacute intraduziacutevel Esse fato confirma sua

autotelia O tradutor eacute fiel na medida em que produz devir em seu idioma de

forma fiel agrave que o escritor do texto de partida o fez em sua liacutengua Se pensarmos

que uma obra literaacuteria pode ter como qualidade inerente a ela segundo

Benjamin sua traduzibilidade a observaccedilatildeo tatildeo comum a respeito de Finnegans

wake vem agrave tona essa obra considerada atraveacutes dos tempos de ilegiacutevel a

intraduziacutevel teria que niacutevel de traduzibilidade Como questiona Lenita Esteves

no terceiro capiacutetulo de sua tese ldquoMas da mesma forma que Derrida aponta para

um certo aspecto risiacutevel da pergunta lsquoVocecirc jaacute leu Joycersquo podemos achar

engraccedilada a pergunta lsquoAlgueacutem jaacute traduziu Finnegans Wakersquordquo (ESTEVES

1999 p 83) Frequentemente se afirma que o idioma dessa obra de James

Joyce natildeo eacute o inglecircs mas um outro limitado ao livro e nele desenvolvido

elaborado pelo autor a partir de idiomas diversos Consideremos entatildeo que

Finnegans wake (1939) possui mdash ou melhor produz engendra uma liacutengua da

proacutepria obra Isso significaria natildeo apenas que a traduccedilatildeo deve fazer o mesmo

mas tambeacutem que esse idioma proacuteprio tem no texto as definiccedilotildees de suas

especificidades as diretrizes de seus paracircmetros e a que princiacutepios estaacute

submetido

Natildeo poderiacuteamos afirmar o mesmo no entanto a respeito de todo e

qualquer texto literaacuterio Finnegans wake apresenta de forma radicalmente

expliacutecita e elaborada com extrema acuidade o que toda a Literatura todo e

qualquer texto-arte traz intacto em sua essecircncia uma liacutengua proacutepria um dizer

que natildeo se repete no linguajar cotidiano tampouco em outros autores ainda

menos em textos teacutecnicos dissertativos cientiacuteficos Podemos entender

destarte a essecircncia antiteacutetica da tarefa de traduzir literatura cujos alicerces satildeo

os dois fatos concorrentes de que o texto literaacuterio recusa-se a uma transposiccedilatildeo

de seus significados a uma traduccedilatildeo entendida como produtora de alguma

equivalecircncia e o de que tambeacutem demanda que seja traduzido em tendo

traduzibilidade inerente de maneira diferente ou em outro grau que natildeo pertence

a uma traduzibilidade de sentido de mensagem de comunicaccedilatildeo A traduccedilatildeo de

literatura portanto de texto que produza em sua tessitura uma linguagem

proacutepria enquadrada em sua focircrma exige efetivamente a criaccedilatildeo de mais uma

71

liacutengua proacutepria tecida textualmente jaacute que existiraacute outro texto ou nova versatildeo do

texto que se intenta traduzir Esse fator inescapaacutevel por conseguinte faz

necessaacuterio que inspirando-se no ldquoidioma proacuteprio do textordquo de partida o tradutor

se lance a realizar alguma espeacutecie de criaccedilatildeo no idioma para o qual traduz ainda

que natildeo seja um seguidor dos caminhos de liberdade apontados pela

transcriaccedilatildeo

A traduccedilatildeo de literatura difere-se ainda por outro fator que natildeo diz respeito

a sua feitura mas reside no que excede sua elaboraccedilatildeo o acometimento de

certa direccedilatildeo na recepccedilatildeo e na criacutetica do texto em distintas heranccedilas escolhidas

Eacute niacutetido em Finnegans wake o quanto seus principais tradutores brasileiros mdash

Augusto de Campos Haroldo de Campos e o professor Donaldo Schuumller mdash

encaram a obra como radical aleacutem de efetivamente concordarem com o fato de

que sua complexidade torna a traduccedilatildeo tanto mais difiacutecil quanto profiacutecua

ldquoFinnegans wake eacute 100 de inovaccedilatildeo linguiacutestica Nenhuma concessatildeo Nenhum

recuordquo (CAMPOS 2001 p 21) Na introduccedilatildeo do primeiro volume de sua

traduccedilatildeo Donaldo Schuumller ldquoDistanciamo-nos com frequecircncia da literalidade

para captar efeitos que ultrapassam significados () Num discurso

deliberadamente oniacuterico luminosidade intensa natildeo se atingiraacute nuncardquo

(SCHUumlLER 2004 p 25) Em texto publicado no Panaroma e tambeacutem na

coletacircnea Teoria da poesia concreta Haroldo de Campos afirma ldquoTraduzir

James Joyce especialmente fragmentos de Finnegans wake eacute uma ginaacutestica

com a palavra um trabalho de perfeccionismo Algo que nunca assume o

aparato estaacutetico do definitivordquo (CAMPOS 2001 p 27)

Apesar das semelhanccedilas ambas as traduccedilotildees tanto a de Panaroma do

Finnegans wake cuja primeira ediccedilatildeo data de 1962 quanto a de Finnegans

wakeFinnicius reveacutem (2004) implicam recepccedilotildees (preacute e poacutes-traduccedilatildeo) distintas

e empregam diferentes instrumentos para lidar com as possibilidades do texto

de partida Os irmatildeos Campos optam pela traduccedilatildeo que chamam de intensiva

(ao inveacutes de extensiva) colhendo trechos que demonstrem o potencial radical

do texto como um todo ldquoO nosso objetivo sempre foi o de trabalhar e lapidar

alguns dos momentos maacutegicos do livro e somente dar a puacuteblico aqueles que

em nosso entender oferecessem em portuguecircs um estatuto equivalente agrave alta

72

voltagem de invenccedilatildeo e criatividade do original Trabalho de concentraccedilatildeordquo

(CAMPOS 2001 p 21)

Schuumller por outro lado algumas deacutecadas depois opta pela traduccedilatildeo

integral e portanto por aquela que tenderia ao que Augusto de Campos e

Haroldo de Campos entatildeo denominaram extensiva ainda que o labor de

Donaldo Schuumller natildeo deixe de ser tambeacutem de intensidade sobre o texto

debruccedilou-se sobre cada fragmento dedicando-se a cada um separadamente

gradualmente como uma obra por si Alerta ldquoPara se fazer entendido o texto

oferece muitas versotildees do mesmo coacutedigo cifradordquo (SCHUumlLER 2008 p 24)

Como Joyce nas palavras dos irmatildeos Campos natildeo faz concessotildees o tradutor

afirma seguir o mesmo caminho de natildeo simplificar e recomenda leitura que se

submeta aos mesmos riscos ldquoVencida a vertigem ante frequentes abismos

somos estimulados a criar roteiros proacuteprios () Natildeo se espere assim

inteligibilidade completa do textordquo (Ibid p 25)

Se a traduccedilatildeo intensiva portanto daacute a entender a potenciaccedilatildeo de um

esforccedilo vertical de imersatildeo aplica-se tambeacutem agrave metodologia de Donaldo que

percorre fragmento a fragmento traduzindo criativamente Cumpre a missatildeo

predita por Lenita Esteves em sua tese anos antes da publicaccedilatildeo completa da

traduccedilatildeo de Schuumller ldquoMas da mesma forma que Derrida aponta para um certo

aspecto risiacutevel da pergunta lsquoVocecirc jaacute leu Joycersquo podemos achar engraccedilada a

pergunta ldquoAlgueacutem jaacute traduziu Finnegans wakerdquo Traduziu de que liacutengua para

que outra Se como afirmam alguns autores Joyce fragmentou quebrou

desmantelou a liacutengua inglesa o tradutor teraacute tambeacutem que compor um texto

desmantelando sua liacutenguardquo (ESTEVES 1999 p 83) A liacutengua portuguesa eacute

entatildeo invadida mdash natildeo invalidada mas povoada mdash- por um texto wakiano em

vez de prestar-se ao trabalho de verter de caacute para laacute eacute tambeacutem como o inglecircs

o foi alterada habitada pela literatura que a torce e a desorienta Uma enxurrada

invade com correnteza violenta a liacutengua para a qual se verte enquanto a

linguagem segue o fluxo que natildeo eacute margeado por delimitaccedilotildees gramaticais mas

ao contraacuterio gera a erosatildeo dessas fronteiras

73

Comparando as duas traduccedilotildees do primeiro fragmento de Finnegans

wake das ediccedilotildees supracitadas podemos perceber como versotildees de um texto

tatildeo radical que optam por soluccedilotildees tradutoacuterias distintas resultam em dois textos

consideravelmente diferentes entre si ainda que ambas partam do princiacutepio de

serem traduccedilotildees para a liacutengua portuguesa e que tenham sido feitas por

brasileiros Na primeira linha por exemplo

riverrun past Eve and Adamrsquos (FW 31)

Observa-se que ldquopast _____rdquo (o termo past seguido de um complemento

direto portanto) pode significar algo como ldquoapoacutesrdquo em portuguecircs poreacutem tanto

temporalmente referindo-se a uma sequecircncia cronoloacutegica quanto

espacialmente indicando uma passagem no caso pela igreja Adam and Eve

em Dublin A inversatildeo no nome do local indica uma subversatildeo e portanto uma

impossibilidade de se decidir entre o sentido de passar pela igreja ou de passar

o tempo de Adatildeo e Eva indicado tambeacutem pelo termo ldquopastrdquo que carrega traccedilos

semacircnticos relacionados a tempo A demanda da coexistecircncia dessas duas

possibilidades portanto eacute um desafio tradutoacuterio que se impotildee jaacute no primeiro

periacuteodo da obra A traduccedilatildeo de Augusto de Campos opta por direcionar o olhar

agrave ideia temporal

riocorrente depois de Eva e Adatildeo (CAMPOS 2001 p 41)

Aleacutem do uso do termo ldquodepoisrdquo tambeacutem relacionado a tempo

prioritariamente como o ldquopastrdquo do texto de partida mas tambeacutem possiacutevel de se

referir ao deslocamento no espaccedilo a ausecircncia de artigo antes de ldquoEva e Adatildeordquo

esconderia a possibilidade de pensar no local na construccedilatildeo mdash na igreja

especiacutefica (algo que em inglecircs jaacute que natildeo admitiria artigo eacute indicado pelo uso

de apoacutestrofe + ldquosrdquo do possessivo) Assim poderia ser talvez mais imediato

74

pensar em ldquoEva e Adatildeordquo como algo que seja mais que somente os dois

personagens biacuteblicos se estivesse escrito digamos ldquodepois da Eva e Adatildeordquo de

forma que o artigo indicasse haver uma elipse (funccedilatildeo que eacute cumprida no texto

de Joyce pelo possessivo marcado com lsquos)

Quanto agrave opccedilatildeo posterior de Donaldo Schuumller (2002) perlustrando uma

outra via tradutoacuteria pode-se dizer que visa explicitar essa possibilidade de leitura

mais difiacutecil de ser captada mdash especialmente pelo leitor natildeo irlandecircs que natildeo teraacute

a referecircncia do nome dessa igreja em mente e tirando a viacutergula

rolarriuanna e passa por Nossenhora drsquoOhmemrsquos

Manteve-se entatildeo na traduccedilatildeo de Schuumller a referecircncia ao catolicismo

ainda que agora seja agrave Nossa Senhora do Oacute A opccedilatildeo aqui trazendo agrave sentenccedila

uma imagem relacionada agrave praacutetica religiosa na Peniacutensula Ibeacuterica e no Brasil foi

a de ser fiel ao ldquoespiacuteritordquo joyciano mdash no termo dos irmatildeos Campos herdado da

ideia de Ezra Pound mdash no que se refere agrave proposta de universalidade a despeito

das referecircncias a uma cidade especiacutefica Finnegans wake faz do mapa de Dublin

uma referecircncia a tudo aquilo que ultrapassa quaisquer limites geograacuteficos Haacute

em Salvador no bairro de Paripe uma Igreja de Nossa Senhora do Oacute uma das

primeiras paroacutequias fundadas na colocircnia portuguesa data do seacuteculo XVI O

marco iniciaacutetico de Adatildeo e Eva isto eacute a semacircntica do ab initio se reverbera

nessa marcaccedilatildeo histoacuterica em territoacuterio brasileiro Deve-se lembrar que a

traduccedilatildeo por ldquoNossenhora d`Ohmemrsquosrdquo natildeo se amarra a esse ponto geograacutefico

uma vez que existem diversas paroacutequias dedicadas a essa mesma Santa por

todo o Brasil em Portugal e na Espanha Podemos perceber ademais nessa

mesma expressatildeo que traduziria a princiacutepio um mero nome de igreja mdash em

Joyce nada eacute meramente um nome mdash a presenccedila do personagem HCE todos

os homens Here Comes Everybody (entre tantos outros arrolamentos) mostra-

se na aglutinaccedilatildeo de Oacute com Homem = Ohmem que reverbera ainda um

possiacutevel ldquoameacutemrdquo A viacutergula apoacutes riverrun foi trocada pela conjunccedilatildeo aditiva mas

75

a viacutergula apoacutes Adamrsquos manteve-se a mesma apoacutes Ohmemrsquos que foi grafado com

ldquomrdquo no final e apoacutestrofe + s assim como eacute o nome masculino o de Adatildeo em

inglecircs

A respeito das referecircncias presentes na obra do escritor irlandecircs Donaldo

Schuumller diz ldquoNatildeo haacute paacutegina em FW sem evocaccedilotildees literaacuterias mdash as biacuteblicas

superam todas mdash como se Joyce quisesse abarcar tudo o que se escreveu

fazendo de todos os textos um livro soacuterdquo (SCHUumlLER 2004 p 20) Esse ideal

extremo de condensaccedilatildeo traz uma possibilidade ou um anseio de superaccedilatildeo do

tempo reunindo todas as obras jaacute escritas em uma soacute supera-se o que o tempo

apaga o que a distacircncia cronoloacutegica segrega A literatura pode ser pensada

entatildeo em seu caraacuteter trans-histoacuterico como afirma o fenomenoacutelogo francecircs Paul

Ricoeur em Tempo e narrativa na medida em que se eleva sobre as divisotildees do

tempo histoacuterico e cronoloacutegico de modo que se faz de toda a histoacuteria da literatura

um acontecimento contemporacircneo discorrendo sobre o tempo do calendaacuterio

ldquoentre o tempo vivido e o tempo universalrdquo com Benveniste a partir das noccedilotildees

de tempo linguiacutestico

Contudo embora a contagem do tempo do calendaacuterio esteja apoiada nos fenocircmenos astronocircmicos que datildeo sentido agrave noccedilatildeo de tempo fiacutesico o princiacutepio da divisatildeo do tempo do calendaacuterio escapa agrave fiacutesica e agrave astronomia () A originalidade que o tempo axial confere ao tempo do calendaacuterio autoriza a declarar este uacuteltimo ldquoexteriorrdquo tanto ao tempo fiacutesico como ao tempo vivido Por um lado todos os instantes satildeo candidatos legiacutetimos ao papel de momento axial Por outro natildeo haacute nada que diga que determinado dia do calendaacuterio tomado em si mesmo eacute passado presente ou futuro () Para ter presente como tambeacutem aprendemos com Benveniste eacute preciso que algueacutem fale o presente eacute o discurso que o enuncia para chegar ao tempo vivido a partir do tempo crocircnico eacute portanto preciso passar pelo tempo linguiacutestico referido ao discurso eacute por isso que determinada data completa e expliacutecita natildeo pode ser dita nem futura nem passada se ignorarmos a data da enunciaccedilatildeo que a pronuncia (RICOEUR 2012 pp182-184)

De alguma maneira a Odisseia de Homero eacute passiacutevel de ser entendida

contiguamente ao Ulysses de Joyce assim como ocorreria entatildeo com as

referecircncias contidas em Finnegans wake desde as biacuteblicas passando por

Tristatildeo e Isolda lendas irlandesas e tantas outras referecircncias histoacuterico-culturais

76

Um eterno retorno na literatura em vez de uma histoacuteria literaacuteria linear ou

perioacutedica os efeitos de uma obra natildeo tecircm iniacutecio ou fim mas engendram um

impacto que se espirala alastra-se atraveacutes do tempo sem uma chegada

O texto lanccedilado agrave traduccedilatildeo atinge em concretude a possibilidade de seu

desdobramento multiplicado agrave medida que vaacuterias traduccedilotildees coexistam Haver

mais de uma traduccedilatildeo para um mesmo fragmento de Finnegans wake ou para

qualquer outro texto literaacuterio soacute adiciona em vez de se anularem ou se

contradizerem muito mais provavelmente se complementam Seratildeo distintas por

mais parecidas que sejam transformando o texto de partida em variados outros

que natildeo lhe satildeo alheios tampouco lhe equivalem Traduzir eacute frequentemente

entendida em senso comum como uma atividade verbal geradora de equidade

como o transportar das letras de um idioma a outro Intercambiar idiomas no

entanto implica a mudanccedila de paradigmas mdash natildeo apenas pela existecircncia de

fenocircmenos linguiacutesticos relacionados a certa constituiccedilatildeo social e cultural que

existem e variam mesmo em um soacute idioma mas tambeacutem de acordo com os

diferentes paracircmetros (no sentido chomskyano) isto eacute possibilidades efetivas

de expressatildeo que a organizaccedilatildeo de determinado sistema verbal proporciona

Paralelamente ao ipsis litteris portanto compreendemos a traduccedilatildeo como uma

(tentativa de) equivalecircncia imperfeita a priori mdash ou em vez de equidade como

uma renovaccedilatildeo ou um desdobramento em tese infinito Isso sem que perda de

vista que haacute como diz Benjamin uma tangecircncia na qual a relaccedilatildeo entre o texto

de partida e a sua traduccedilatildeo se relacionam sem que haja uma transparecircncia ou

um espelhamento entre os dois um sobre o outro ou um frente ao outro mas

sim uma uniatildeo tangencial de dois textos distintos

Tendo em mente esses procedimentos e o exemplo dos brilhantes

resultados do trabalho dos irmatildeos Campos e do de Schuumller ensejaria a

pergunta uma boa traduccedilatildeo deve entender o ato tradutoacuterio dessa forma

disseminadora para produzir algo tatildeo rico quanto se afirma que uma traduccedilatildeo

pode alcanccedilar devendo ansiar por tal resultado Ou em outras palavras a

traduccedilatildeo eacute tudo isso ou sob certas condiccedilotildees demarcadas concernentes a uma

metodologia e a uma postura diante de sua feitura pode secirc-lo A mesma

pergunta permanece pairando a respeito da arte e da definiccedilatildeo de texto literaacuterio

77

A busca por saber que texto eacute ldquoboardquo literatura e que texto sequer eacute ldquoliteraacuteriordquo

afora a prova do tempo que inclui ou exclui obras de um cacircnone atrai diversas

respostas O que podemos ratificar eacute que as traduccedilotildees que partam da noccedilatildeo de

ato comunicativo de exegese una de uma interpretaccedilatildeo fechada do texto ainda

que natildeo tenham como objetivo transparecer algo de incomunicaacutevel do texto

literaacuterio poderatildeo porventura fazecirc-lo mdash como que carregando algo do texto de

partida sem nem perceber Ou se pensarmos de maneira um tanto mais

pessimista apenas destruiratildeo a relaccedilatildeo ideal eteacuterea e fugitiva com o texto de

partida natildeo sendo fiel a seu espiacuterito e ao que faz dele uma peccedila de arte e

funcionaratildeo como exerciacutecio de traduccedilatildeo intentando sinoniacutemia impossiacutevel e

concretizando mera paraacutefrase que talvez extirpe o caraacuteter literaacuterio artiacutestico que

havia outrora no texto de partida

Em ldquoUntranslatable yourdquo Shireen Patell sintetiza um caraacuteter duplo do

trabalho de traduccedilatildeo ldquoThe task of the translator () is at once an act of mourning

and na ethical practice because it is a task dictated by an absolute alterity that

signals both loss and law without calculusrdquo (PATELL 2005 p 899)26 Patell

lembra ainda Derrida no que diz respeito ao fato de que a traduccedilatildeo natildeo eacute uma

relaccedilatildeo intersubjetiva ou interpessoal mas grafemaacutetica Haacute uma diferenccedila entre

a assinatura e quem assina no caso da traduccedilatildeo essa diferenccedila se explicita na

distacircncia entre o tradutor e aquilo com o que se compromete em nome de algo

o texto e a assinatura tecircm sobrevida Ainda que haja uma dificuldade em

determinar a autoria de um texto traduzido se autor ou tradutor ou se uma

combinaccedilatildeo emerge uma assinatura nova

As mesmas perguntas a respeito da ilegibilidade de Finnegans wake se

fazem quanto agrave sua traduzibilidade ou agraves possibilidades tradutoacuterias que pode

oferecer O fato eacute que o texto possui uma riqueza nesse sentido tendo sido

produzidas excelentes traduccedilotildees e havendo ainda uma proficuidade para novas

tentativas Traduzido por Augusto de Campos Haroldo de Campos Donaldo

Schuumller e tantos outros mais que possam ter se aventurado bem como

tangencialmente por Caetano Galindo que traduziu Finnrsquos Hotel texto de Joyce

26 ldquoA tarefa doa tradutora eacute ao mesmo tempo um ato de luto e uma praacutetica eacutetica porque eacute uma tarefa comandada por uma alteridade absoluta que assinala tanto perda quanto lei sem caacutelculordquo

78

escrito entre Finnegans wake e Ulysses que parece ter sido uma espeacutecie de

rascunho do que seria o Wake ou talvez uma obra independente com algumas

pontes ou treinos ou inspiraccedilotildees de Joyce sobre o trabalho de traduzir Joyce

em Finnrsquos hotel (2014) diz Galindo ldquo[Joyce] Cobra que vocecirc fuce em cantos do

portuguecircs que normalmente ficam ali soacute pegando poacute Eacute em suma um imenso

prazer para quem tem esse tipo de perversatildeordquo (p 11) mdash e aqui lembramos o que

diz Seamus Deane excerto jaacute citado em capiacutetulo anterior ldquo[The book] converts

itself into English and perverts itself from Englishrdquo (DEANE 2000 p viii) Tanto

a escrita de Joyce quanto a traduccedilatildeo de seu texto sendo perversotildees do idioma

(ou de idiomas) natildeo poderiam caber em definiccedilotildees de traduccedilatildeo como

reproduccedilatildeo exata pois exige torccedilotildees para que se exprima ldquoconteuacutedo essencialrdquo

Assim como os exemplos tradutoacuterios aqui citados podem relativizar certas

afirmaccedilotildees se considerarmos em vez deles traduccedilotildees que natildeo tenham sido

executadas com o mesmo esmero o texto literaacuterio de partida aqui referenciado

tem a mesma consequecircncia Finnegans wake se caracteriza como uma literatura

considerada radical mdash por vezes foi considerado texto ilegiacutevel e subestimado

como mera brincadeira intelectual mdash e dessa forma eacute paradigma ideal para

exemplificar o caraacuteter eteacutereo que propomos como o que um texto tem de

intraduziacutevel No entanto como dito anteriormente o que se entende por literaacuterio

em Finnegans wake vale para todo e qualquer texto-arte poesia romancepoema

etc independentemente do gecircnero literaacuterio

A problemaacutetica dos nomes proacuteprios em Finnegans wake pontua uma

dificuldade peculiar em sua traduccedilatildeo Os nomes das personagens mudam a todo

o tempo sem haver qualquer previsibilidade ainda que sempre haja pistas para

que o leitor reconheccedila as relaccedilotildees Poder-se-ia dizer que natildeo somente os nomes

sofrem mutaccedilotildees mas os proacuteprios seres HCE e ALP aparecem em siglas em

frases diversas enquanto Isobel tem sua vogal trocada ou eacute chamada por

variaccedilotildees diversas de seu apelido Issy ou na forma de Nuvoletta Shem e

Shaun mudam para combinaccedilotildees ainda mais distantes como Mutt e Jute Burrus

e Caseous Mercius e Justius Dolph e Kev sempre na reminiscecircncia do duplo

ambivalente Essas mudanccedilas de assinaturas reverberam a condiccedilatildeo mesma

das personagens no que estiver acontecendo a cada momento

79

Traduzir eacute natildeo solidificar mdash natildeo haacute traduccedilatildeo uacuteltima ainda que possa haver

uma melhor que outra(s) mdash mas lanccedilar jogar um jogo de azar aposta-se em

uma possibilidade existente entre infindas outras e se destrinccedila o resultado

Seraacute acertado eacute provaacutevel ainda que natildeo seja Poderia ser 1 mas foi 2 Seria

igual se fosse 3 mdash igual mas diferente Tal entendimento natildeo resolve a traduccedilatildeo

natildeo a define de forma a esquecermos os problemas que acarreta Ao contraacuterio

entendecirc-la como um enredamento problemaacutetico antes de tudo permite fundaacute-la

como texto-fonte de discussatildeo tanto quanto seu texto de partida Os noacutes

tradutoacuterios deixam de secirc-lo exclusivamente para em vez disso enriquecerem

toda a constelaccedilatildeo do texto (o texto de partida e suas traduccedilotildees coexistentes)

especialmente se literaacuterio filosoacutefico ou de forma geral ensaiacutestico adicionando

discussatildeo no proacuteprio corpus do que eacute posto em pauta Pode-se ler a traduccedilatildeo

como criacutetica como ensaio como resenha como resumo como paraacutefrase ela

pode transparecer todas essas formas de expressatildeo de um texto sendo ela

mesma outro texto em vez de gecircnero objetivo Uma (boa) traduccedilatildeo condensa

uma paideuma espremendo uma impressatildeo ao mesmo tempo em que exprime

uma compreensatildeo A eventual dificuldade existente em se valorar uma obra

literaacuteria como boa (ou mesmo como literaacuteria) pode ser a mesma de se valorar a

traduccedilatildeo mas seus valores podem variar de acordo com as pautas que propotildee

com as suas premissas aleacutem de ela mesma transparecer uma certa leitura ou

visatildeo do texto de partida atraveacutes das decisotildees tradutoacuterias e das criaccedilotildees que oa

tradutora possa se permitir ao trabalhar (sobre) o texto

Sem desconsiderar dificuldades especiacuteficas inerentes e inegaacuteveis ao texto

de James Joyce dilemas tradutoacuterios no Wake podem ser dilemas tradutoacuterios

compartilhados em geral por toda e qualquer empreitada de traduccedilatildeo de textos

escriturais A literatura em geral parecendo mais ou menos complexa mais ou

menos legiacutevel e compreensiacutevel demanda o cuidado detalhado e rigoroso e por

isso impotildee dificuldades incontornaacuteveis e em verdade sem soluccedilatildeo que as

extermine por mais que se tente traduzir de diversas maneiras e por mais notas

de rodapeacute que se preencham Referindo-nos especificamente ao proacuteprio

Finnegans wake citamos novamente o texto de Shireen Patell mdash em que ela fala

sobre todo e qualquer texto possivelmente intraduziacutevel

80

What cannot be translated calls for the future translations that perpetually reach toward but can only trace an oblique if missed touch () Absolute untranslatability is the silent articulation of the absent ideality of translation that nonetheless inspires translation figuration writing This absolute translatability is in and of the language itself (PATELL 2005 p 901)27

Ademais mesmo admitindo certa dificuldade especiacutefica inerente ao

Finnegans wake seja entre a traduccedilatildeo de nomes de personagens seja na dos

trovotildees de cem letras que povoam todo o livro mdash e que frequentemente satildeo

mantidos sem traduccedilatildeo mdash defende-se aqui uma postura necessaacuteria diante de

qualquer obra literaacuteria Pode-se evocar aqui um trecho de Jacques Derrida em

seu livro De la grammatologie discorrendo sobre as afirmaccedilotildees a respeito da

linguagem de Jean-Jacques Rousseau no texto ldquoGecircnese e escritura do Essai sur

lrsquooriginerdquo ldquoNatildeo haveraacute nem uma linha histoacuterica nem um quadro imoacutevel das

liacutenguas () As liacutenguas satildeo semeadasrdquo (DERRIDA 2011 p 263) Essa citaccedilatildeo

pode contribuir aqui como uma explicaccedilatildeo do dinamismo babeacutelico do proacuteprio

Wake que lida com liacutenguas sem delimitaccedilatildeo suficientemente inseridas em

fluidez de hibridizaccedilatildeo e fusatildeo sendo semeadas e assim portanto germinando

no feacutertil suporte terreno do texto Estende-se poreacutem a qualquer escritura que

contenha em si uma gagueira para falar com Gilles Deleuze ou qualquer texto

feito a partir de uma liacutengua contendo algum niacutevel de estranhamento diante da

proacutepria liacutengua atuando na sua fronteira Ainda que natildeo haja o trabalho de

confronto ou um fenocircmeno de clash entre diferentes idiomas uma liacutengua jamais

estaacute ausente de relaccedilotildees com outras liacutenguas que vieram antes depois que

ocuparam terras proacuteximas ou distantes Mesmo que natildeo sejam fundidos

explicitamente dezenas de diferentes idiomas como faz Joyce no Wake

nenhum texto eacute isolado em sua liacutengua

27 ldquoO que natildeo pode ser traduzido demanda futuras traduccedilotildees que perpetuamente se direcionam mas soacute podem rastrear um obliacutequo ou mesmo perdido toque () Intraduzibilidade absoluta eacute a articulaccedilatildeo silenciosa que inspira poreacutem traduccedilatildeo figuraccedilatildeo escrita Essa absoluta intraduzibilidade estaacute na e eacute da liacutengua ela mesmardquo

81

Tal postura tradutoacuteria jaacute seria suficiente para nos apartar do labor braccedilal

de buscar definiccedilotildees dicionarizadas como sinocircnimo de traduccedilatildeo Essa maneira

de ida ao texto se relaciona natildeo somente com o resultado que surgiraacute da

traduccedilatildeo mas comeccedila na forma de leitura do texto de partida na maneira como

eacute abordado pela primeira vez mdash natildeo somente pelo leitor que lecirc com intenccedilatildeo e

olhos de tradutor mas por qualquer outro Se o que se busca eacute a univocidade a

definiccedilatildeo a anaacutelise estrutural perfeita com blocos conceituais relacionados a

cada porccedilatildeo do texto e metaacuteforas delineadas a serem circuladas a babelizaccedilatildeo

do texto seraacute entatildeo deixada de lado A traduccedilatildeo pautada por uma simplificaccedilatildeo

ou univocidade semacircntica por reestruturaccedilatildeo deriva de uma leitura

hermenecircutica Se a gagueira do texto de partida eacute ignorada certamente natildeo

apareceraacute nem transpareceraacute qualquer tipo de gagueira no texto derivado

ldquotraduzidordquo a gagueira que habita a traduccedilatildeo eacute resultado da relaccedilatildeo primaacuteria mdash

no sentido de primeira mdash do tradutor com o texto que se propotildee a traduzir recriar

ou transcriar em uma postura de leitor disposto a vivecirc-lo em vez de entendecirc-lo

Disposto a ter uma experiecircncia com sua linguagem muito antes de tencionar

destrinchaacute-lo

CAPIacuteTULO III

LEITURA LUTO ELIPSE

83

Ao pensarmos em Finnegans wake seja tendo um conhecimento distante

fragmentado ou superficial a seu respeito seja apoacutes tentativas de aproximaccedilatildeo

da obra uma seacuterie de questotildees inevitavelmente nos consomem em verdade

continuam a aparecer mesmo durante a entrega a uma leitura profunda desse

texto impossiacutevel de se explorar de forma acelerada ou submetida a prazos

dados os obstaacuteculos que nos prendem por um tempo sempre maior que o

previsto em um paraacutegrafo em uma linha ou em uma soacute enigmaacutetica palavra Uma

leitura ceacutelere ainda que permita terminar de ler o livro integralmente eacute uma

leitura desperdiccedilada Em se tratando de Finnegans wake a concepccedilatildeo do livro

eacute clara quanto a mais valer o deter-se sobre uma linha que se mostre inebriante

do que o impaciente passar de paacuteginas insistentemente evocando uma leitura

fluida em velocidade que provavelmente teraacute sido forccedilada e pouco proveitosa

84

Essa escolha de Joyce aponta como sabemos e logicamente podemos

supor a estrutura circular do livro No entanto essa expressatildeo natildeo pode se

findar em si mesma sendo banalizada significando nada para aleacutem dela

Devemos antes de tudo questionar a esse respeito a fim de investigar o que

algumas anaacutelises afirmam como verdades que se apresentam integrais quando

de fato satildeo geradoras de problemas diversos Pergunta-se entatildeo quais as

implicaccedilotildees de uma estrutura circular Essa estrutura eacute verdadeiramente

possiacutevel em todos os aspectos que seriam forccedilosamente decorrentes de sua

concepccedilatildeo

Eacute oportuno relembrar aqui Umberto Eco citando Henri Pousseur que

indica caber ldquoao ouvinte colocar-se voluntariamente no centro de uma rede de

relaccedilotildees inexauriacuteveisrdquo (ECO 1989 p 49) natildeo havendo amarras que

determinem o caminho da leitura Uma espeacutecie de maior livre-arbiacutetrio se instala

necessariamente diante da falta de um caminho fechado como se em vez de

percorrer um corredor o leitor se encontrasse em um labirinto Esse labirinto eacute

claro foi projetado de modo que suas curvas e becos foram pelo menos ateacute

certo ponto tranquilamente previstos Com a multiplicidade de caminhos

oferecida nessa arquitetura no entanto em oposiccedilatildeo agrave unidade do caminho

linear haacute uma medida de imprevisibilidade por mais meticulosamente planejado

que esse labirinto seja a ordem de cada escolha do indiviacuteduo que vai percorrer

seu terreno

Outras referecircncias feitas por Umberto Eco se fazem necessaacuterias no que

concerne agrave porccedilatildeo fenomenoloacutegica de toda essa problemaacutetica Em uma leitura

desse tipo podemos considerar uma esquemaacutetica que envolva a consciecircncia do

sujeito-leitor diante da obra que aiacute eacute o que percebe como fenocircmeno mdash

consciecircncia que por ser instaacutevel isto eacute no sentido de uma consciecircncia natildeo-ideal

natildeo ser plenamente preacute-delimitada mas sim aberta a mutaccedilotildees imprevisiacuteveis e

que portanto natildeo nos permitiria calcular previamente todas as possibilidades de

interaccedilatildeo com a obra em um quadro finito e fechado Umberto Eco desenvolve

esse ponto com as seguintes observaccedilotildees

85

Assim um objeto natildeo somente apresenta diversas Abschattungen (ou perfis) mas satildeo possiacuteveis diversos pontos de vista sobre uma uacutenica Abschattung O objeto para ser definido deve ser transcendido em direccedilatildeo agrave seacuterie total da qual ele enquanto uma das possiacuteveis apariccedilotildees eacute membro Nesse sentido ao dualismo tradicional ser e parecer substitui-se uma bipolaridade de finito e infinito de tal modo que o infinito se potildee no proacuteprio coraccedilatildeo do finito () O problema da relaccedilatildeo do fenocircmeno com seu fundamento ontoloacutegico dentro de uma perspectiva de abertura perceptiva transforma-se no problema de relaccedilatildeo do fenocircmeno com a plurivalecircncia das percepccedilotildees que dele podemos ter (Ibid pp 58-59)

Dessa maneira no esteio dessas afirmaccedilotildees se noacutes tomarmos em

consideraccedilatildeo as possibilidades de que uma obra como Finnegans wake

demande natildeo somente uma apreciaccedilatildeo passiva decodificando primariamente o

texto mas acima de tudo uma interaccedilatildeo de caraacuteter ateacute mesmo mais executivo

se assim pudeacutessemos dizer seria necessaacuterio no miacutenimo considerar que essa

posiccedilatildeo ativa seraacute ocupada por um leitor que tem sua proacutepria bagagem subjetiva

Natildeo colocamos em questatildeo aqui uma bagagem de conhecimento objetivo

necessaacuterio para um entendimento de leitura nem nada nesse esteio ao

contraacuterio ao inveacutes de uma espeacutecie de elitizaccedilatildeo um acesso democraacutetico permite

que qualquer indiviacuteduo se ponha agrave fruiccedilatildeo da literatura da maneira como puder

acessaacute-la O que levamos em conta eacute o caraacuteter fenomenoloacutegico dessa interaccedilatildeo

observando que essa interaccedilatildeo com a obra teraacute algo de uacutenico para cada

consciecircncia que a perceba e que tome atitudes frente a ela Umberto Eco

continuando seu raciociacutenio a respeito desse fundamento ontoloacutegico na abertura

perceptiva cita excerto de Pheacutenomenologie de la perception de Maurice

Merleau-Ponty

A contradiccedilatildeo que encontramos entre a realidade do mundo e seu inacabamento eacute a proacutepria contradiccedilatildeo entre a ubiquidade da consciecircncia e seu engajar-se num campo de presenccedila () A consciecircncia que passa pelo lugar da clareza eacute ao contraacuterio o proacuteprio lugar do equiacutevoco () Eacute portanto essencial agrave coisa e ao mundo apresentarem-se como ldquoabertosrdquo prometer sempre ldquoalgo mais a verrdquo (MERLEAU-PONTY apud ECO 1989 p 59)

86

Estruturalmente poderiacuteamos entatildeo esquematizar trecircs possibilidades de

leitura do Finnegans wake todas coerentes com a consideraccedilatildeo de uma

estrutura circular A primeira eacute a despeito da assunccedilatildeo da circularidade a que

se pode fazer seguindo a ordem da numeraccedilatildeo dos fragmentos Essa eacute uma

leitura linear tanto quanto uma segunda possibilidade em que se acessaria a

obra de qualquer fragmento ignorando a determinaccedilatildeo do iniacutecio do livro com o

nuacutemero 1 e se seguiria a leitura a partir da paacutegina escolhida na ordem colocada

ndash escolhendo por exemplo o fragmento 429 para ser o primeiro e seguir a leitura

ateacute o de nuacutemero 628 em seguida do nuacutemero 1 ateacute o nuacutemero 428 Essas duas

possibilidades diferem radicalmente de uma terceira que seria a de ler os

fragmentos em qualquer ordem anarquizando completamente a obra e tirando

dela boa parte do sentido Ler Finnegans wake fora de ordem eacute o mesmo que ler

qualquer outro livro de que se tem conhecimento fora de ordem assim como eacute

o mesmo que percorrer um ciacuterculo dando passos adiante voltando seguindo

desviando eacute uma leitura anaacuterquica que extermina o que a obra tem a oferecer

como obra una e total

Excluindo entatildeo a terceira forma de leitura esclarecemos que os

fragmentos natildeo satildeo absolutamente isolados entre si e nem intercambiaacuteveis mdash

ao menos natildeo sem seacuterias consequecircncias para a coerecircncia da obra e para o

acesso a ela como foi concebida em sua integridade Os fragmentos guardam

tanta independecircncia entre si quanto as paacuteginas do romance mais tradicional o

fazem quase nenhuma Eacute possiacutevel ler uma paacutegina do Wake e dar-se por

satisfeito tanto quanto eacute possiacutevel ler uma paacutegina de qualquer livro e saber que

aquilo eacute apenas uma amostra um pedaccedilo uma parte separada do todo que lhe

confere coerecircncia como obra

As duas primeiras formas de leitura portanto parecem-nos similares No

entanto acessar uma obra a partir de uma paacutegina ou a partir de outra paacutegina

ainda que seja uma obra circular isto eacute sem iniacutecio meio e fim definidos resulta

em duas leituras absolutamente diferentes No entanto aqui tem-se a diferenccedila

crucial entre o Wake e qualquer outro livro uma estrutura circular implica

necessariamente na diluiccedilatildeo do segmento temporal fechado isto eacute numa

abertura em que qualquer paacutegina do livro pode ser parte de um iniacutecio de um

87

meio ou de um fim Afinal o livro pode ser livre dessas divisotildees em sua estrutura

mas o tempo da leitura jamais seraacute Sempre temos de ler em alguma ordem e

algum trecho inicia esse processo algum se faz no meio e algum trecho conclui

nosso percurso como leitores Caso pensemos portanto em multiplicar as

possibilidades de acesso ao Finnegans wake ateacute que sejam consideradas todas

as possibilidades de leitura teriacuteamos de lidar com nada menos que seiscentas

e vinte e oito formas de acesso agrave obra no miacutenimo

Mostra-se impossiacutevel eacute evidente experimentar todas essas formas de

acesso Considerando que houvesse o tempo necessaacuterio deveriacuteamos levar em

conta ainda a contaminaccedilatildeo inevitaacutevel no processo isto eacute a certo ponto jaacute se

saberia o que esperar e a mudanccedila na ordem natildeo teria o mesmo efeito que teria

se acessada em uma primeira leitura Uma vez lido em uma certa ordem o livro

jamais seraacute redescoberto atraveacutes de outra ao menos natildeo como se nunca tivesse

sido lindo anteriormente qualquer que seja a nova ordem

O que nos eacute possiacutevel questionar eacute ateacute que ponto essa circularidade existe

de fato tentando expor natildeo apenas a forma como ela eacute concebida e a partir de

que modelos mas tambeacutem as consequecircncias de seu uso e se a circularidade se

daacute apenas idealmente ou se eacute de fato executada isto eacute temos de investigar se

eacute perceptiacutevel e constataacutevel considerando o acesso ao livro por qualquer uma de

suas paacuteginas O que origina a elaboraccedilatildeo dessa estrutura em Finnegans wake

eacute como se sabe ldquoVicorsquos recurrent cycle at once repetitious and various mdash like

the Wake itselfrdquo e Tindall nos chama a atenccedilatildeo ainda para o fato de que ldquoJoycersquos

hieroglyph for the Wake and its title is a square its sides no doubt the quadrants

a little squashed of Vicorsquos wheelrdquo28 (TINDALL 1969 p 10) Mesmo que a forma

geomeacutetrica escolhida por Joyce em seus desenhos na elaboraccedilatildeo do Wake

tenha sido natildeo o ciacuterculo mas o quadrado isso se explica pela escolha por quatro

partes e ainda assim se relaciona agrave circularidade viconiana Nesse caso a forma

geomeacutetrica ter veacutertices ou natildeo eacute irrelevante mdash Joyce chega a preferir um cubo

28 ldquoO ciclo recorrente de Vico concomitantemente repetitivo e variado ndash como o proacuteprio Wakerdquo e ldquoo hieroacuteglifo de Joyce para o Wake e seu tiacutetulo eacute um quadrado ainda que seus lados sem duacutevidas satildeo os quadrantes um pouco distorcidos da da roda de Vicordquo

88

em alguns momentos mdash uma vez que se poderia observar uma espeacutecie de

ldquocircularidaderdquo tambeacutem nessas outras formas ao circundaacute-las especialmente

enfatizando um periacutemetro percorrido em repeticcedilatildeo ciacuteclica que retorna a um

ponto

A ideia desse retorno a um ponto eacute outro problema basilar derivado da

aceitaccedilatildeo do princiacutepio da circularidade de Finnegans wake Deve-se lembrar que

nem o ricorso de Vico nem a circularidade da obra de Joyce resultam no retorno

ao mesmo ponto pois em ambos os casos o ponto original eacute irrecuperaacutevel

Depois de ler todas as sentenccedilas de Finnegans wake a continuaccedilatildeo da uacuteltima

frase (dizendo aqui ldquouacuteltimardquo eacute claro deixando de lado a relativizaccedilatildeo da ordem

que acabamos de engendrar e tomando portanto a ordem linear numeacuterica)

retorna ao mesmo ponto se pensarmos que retorna agrave paacutegina 1 essa paacutegina no

entanto jaacute natildeo eacute mais a mesma que se tinha quando se iniciou a leitura Assim

se daacute tambeacutem com o ciclo das idades proposto por Vico que serviu como

modelo para o Wake apoacutes o fim da Idade dos Deuses dos Heroacuteis e dos Homens

haacute um ricorso agrave Idade dos Deuses mdash no entanto eacute outra Idade dos Deuses que

estaacute se formando com aspectos gerais que a definem mas que natildeo estaacute

retrocedendo a uma mera repeticcedilatildeo Natildeo se tem uma maacutequina do tempo que vai

e vem atravessando as mesmas fases mas uma evoluccedilatildeo que evoca

circularidades heterogecircneas Uma figura recorrente eacute a do eco que remete ao

movimento de repeticcedilatildeo ciacuteclica e eacute executado tanto na sonoridade do proacuteprio

texto com rimas e aliteraccedilotildeesassonacircncias quanto tambeacutem por vezes citado

explicitamente ldquoThe echo is where in the back of the wodes callhim forthrdquo (FW

1263)29 O formato circular que natildeo supotildee repeticcedilatildeo eacute perceptiacutevel em outras

obras de Joyce Em Retrato Stephen frequentemente se apresenta preso em

linhas de raciociacutenio que parecem recair sobre si mesmas ou sobre um ponto

originaacuterio mas que engendram ainda assim deslocamento Mesmo em

Ulysses haacute evidentes formas de circularidade a comeccedilar pela jornada diaacuteria do

protagonista Leopold Bloom mas que natildeo insinua dias sempre iguais ateacute a

estrutura do monoacutelogo de Molly que reitera termos agrave medida que avanccedila

29 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoO eco eacute onde no fundo da florode que venhardquo

89

Apesar de a estruturaccedilatildeo circular ser aceita a priori por William York

Tindall como a base de Finnegans wake o estudioso estadunidense natildeo parece

considerar de fato as implicaccedilotildees desse ciacuterculo tomando apenas as suas

causas ou origens mas natildeo as consequecircncias de afirmaccedilatildeo dessa estrutura

Tindall afirma que o primeiro capiacutetulo eacute visivelmente uma introduccedilatildeo geral e o

uacuteltimo uma conclusatildeo com o diferencial de que abarca ainda a funccedilatildeo de aticcedilar

o leitor para ao retorno agrave primeira paacutegina Vemos entatildeo o problema loacutegico em

sua afirmaccedilatildeo se o trecho ldquofinalrdquo de Wake serve para levar o leitor ao fragmento

de nuacutemero 1 temos um trecho incumbido de algo que se parece com uma

espeacutecie de introduccedilatildeo a esse retorno ou que certamente tem alguma funccedilatildeo

muito distinta da de concluir York Tindall provavelmente entrevendo a

incoerecircncia no que afirma explica ldquoA general conclusion [the last chapter] and

a general introduction [the first one] parallel in function demand parallel

methodsrdquo30 (TINDALL 1969 p 305)

No entanto o que Tindall afirma haver de similar entre o primeiro e o

uacuteltimo capiacutetulos existe por todo o livro Haacute sequecircncias de retornos mdash no capiacutetulo

4 depois no oitavo e assim por diante O mesmo vale para as trecircs idades que

formam com o ricorso os quatro lados desse percurso que natildeo se repetem

mas reaparecem distintos ainda que apareccedilam em ordem sempre esperada isto

eacute estejam alocados em trechos previsiacuteveis devidamente selecionados para eles

dentro da grande ordem de todas as fases O acesso entatildeo a depender de que

fragmento serviraacute como o iniacutecio pode se dar em um fragmento elaborado nos

moldes da Idade dos Deuses dos Heroacuteis ou dos Homens ou ainda do ricorso

mas seraacute sucedido de uma ordem invariaacutevel Que haveraacute diferenccedilas entre uma

leitura que se inicie em um capiacutetulo escrito de uma forma dentro de certa

estrutura basilar e uma que se inicie por outro que tenha outra estrutura natildeo

haacute duacutevidas se a leitura do todo do livro for possiacutevel de todos os fragmentos

poreacutem a circularidade estaraacute comprovada O livro que se lecirc entatildeo tem de ser o

mesmo somente acessado em outra ordem e portanto a partir de uma

30 ldquoUma conclusatildeo geral [o uacuteltimo capiacutetulo] e uma introduccedilatildeo geral [o primeiro] paralelas em funccedilatildeo demandam paralelismo em meacutetodordquo

90

sequecircncia distinta de leitura mas que permita concluir a leitura assim como a

tentativa que comeccedila do fragmento 1 tambeacutem propicia

A figura espectral se mostra deveras pertinente Wake se diferencia

tambeacutem pela formaccedilatildeo de uma polifonia especial que nos confunde natildeo apenas

em termos de natildeo saber que personagem estaacute falando agora mas ainda de

trazer as vozes dos mortos para se misturarem agraves dos vivos sem que se

intercalem mas efetivamente convivam mdash o que tambeacutem exige uma

compreensatildeo temporal absolutamente uacutenica em que em meio ainda a

possibilidades de porvir natildeo haacute separaccedilatildeo espaccedilo-temporal entre um suposto

agora e um suposto antes No livro James Joyce and the difference of language

Laurent Milesi diz

This evolution is thus inseparable from an increasing dissolution or ar leat problematization of neat entities like character and voice as well as the boundaries between them and consequently from the emergence of more polyphonic voices which in the lsquopollyloguersquo (FW 4709) or lsquodrama parapolylogicrsquo (FW 4745) of Finnegans wake will ultimately combine with shifting enunciative poles and a pliable linguistic medium to create erring discursive effects ascribable to a lsquosidersquo or lsquorolersquo ina many-faceted lsquocharacter complexrsquo (MILESI 2003 p 91)31

A estrutura circular e a referecircncia a figuras de diversos momentos

histoacutericos bem como a livros como o Livro dos mortos egiacutepcio ou o Livro de Kells

irlandecircs unem-se na dissoluccedilatildeo de fronteiras temporais Finnegans wake

certamente natildeo tem nem poderia pretender ter um momento (mesmo externo

histoacuterico) definido nem mesmo um tempo psicoloacutegico definido mdash que assumiria

a perspectiva da consciecircncia de uma personagem como sobressalente ditando

voz perspectiva contexto

31 ldquoEssa evoluccedilatildeo eacute entatildeo inseparaacutevel da crescente dissoluccedilatildeo ou ao menos problematizaccedilatildeo de entidades precisas como personagem e voz bem como das fronteiras entre elas e consequentemente da emergecircncia de mais vozes polifocircnicas que no lsquopollyloguersquo (FW 4709 ou lsquodrama parapolylogicrsquo (FW 4745) de Finnegans wake vatildeo por fim combinar com poacutelos enunciativos instaacuteveis e um meio linguiacutestico elaacutestico para criar efeitos discursivos errantes atribuiacuteveis a uma lsquofronteirarsquo ou lsquopapelrsquo em um mil-faces lsquocomplexo de personagemrsquordquo

91

Faz-se espectro ainda o todo da obra literaacuteria na medida em que natildeo se

sabe como ela seraacute executada pelo leitor que se depara com ela Como uma

partitura sem indicaccedilotildees precisas trazendo meras sugestotildees e portanto

inuacutemeras possibilidades de trocas Wake precisa ser executado mas pode secirc-lo

de diversas maneiras em diversas ordens Assim natildeo se tem uma imagem

niacutetida do que eacute o Finnegans wake mas primordialmente sabe-se o que ele pode

vir a ser em mais de uma possibilidade

A isso como jaacute foi exposto estaacute ligada uma temporalidade que poderaacute

operar diferentemente em cada execuccedilatildeo da partitura wakiana Uma oposiccedilatildeo

entre o tempo linear e o tempo ciacuteclico pode mostrar como a estrutura basilar do

Wake que se afasta da linearidade possibilita essa diversidade e o que isso

pode significar na tessitura textual e para uma leitura atenta ao escritural do

texto Explicando a diferenccedila entre tempo ciacuteclico e tempo linear o filoacutesofo Karl

Jaspers (1883-1969) diz

O ciclo do tempo visto como recorrecircncia eacute a imortalidade do que em tal ciclo se produz () A todo instante estaacute ligando o fim ao comeccedilo Vive no ciclo do eterno retorno Pode ocorrer que a distacircncia a separar o fim (morte) do comeccedilo (novo nascimento) seja imensa mas reduz-se a nada se a vida eacute revivida de maneira infinitamente repetitiva fazendo-se em tal sentido imortal () Inteiramente diverso eacute o que se passa com o tempo linear Tudo que eacute temporal eacute levado pelo tempo linear a um fim irremediaacutevel (JASPERS 2011 p 146)

A estrutura circular de Finnegans wake faz mais do que nos prender ao

livro-sem-fim traduz uma possibilidade de existecircncia fora do andamento do

tempo na pura temporalidade isto eacute naquilo que natildeo ultrapassa um presente

mas permanece nele Obriga-nos a estar no presente da leitura sem nos

desviarmos e sem conclusatildeo relendo e relendo e relendo Joyce nos obriga

mantendo-nos na atividade da leitura que nunca termina a cumprir a exigecircncia

que faz ao seu leitor Instalando o texto num eterno retorno transforma-se nessa

afirmaccedilatildeo da vida em que a morte jaacute natildeo ocupa o espaccedilo do esquecimento a

voz dos mortos ecoa entre os vivos sua presenccedila faz-se material a morte de

certa maneira aiacute jaacute natildeo existe

92

O tempo absoluto da concepccedilatildeo ciacuteclica que natildeo pode ser transposto se

opotildee ao tempo linear em que haacute resoluccedilatildeo transposiccedilatildeo um acontecimento

ultrapassa o outro um momento sucede o seguinte O apagamento do que fica

no passado soacute pode ser modificado pela soluccedilatildeo de decidir o que se grava na

histoacuteria Mesmo assim natildeo se recupera nada por inteiro sendo impossiacutevel uma

volta ao passado a memoacuteria evoca as reminiscecircncias que ocupam o tempo

presente apenas como resto incorpoacutereo como espectro O tempo absoluto se

faz de maneira inteiramente distinta Nas palavras de Jaspers nele ldquofaz-se aquilo

que se repete infinitamente mdash e permanece temporal () Tempo linear e tempo

ciacuteclico satildeo enigmas incompatiacuteveis () O tempo ciacuteclico torna possiacutevel a ideia do

lsquouma vez maisrsquo por meio do eterno retornordquo (Ibid p 147)

O tempo ciacuteclico do retorno tambeacutem se faz em espectros o retorno eacute

sempre o ldquouma vez maisrdquo poreacutem sempre singular jamais uma repeticcedilatildeo idecircntica

senatildeo recairia em uma simples hipoteacutetica volta ao passado do tempo

cronoloacutegico como uma espeacutecie de maacutequina do tempo construiacuteda no tempo

linear O retorno do tempo ciacuteclico natildeo se faz dessa maneira eacute um novo

acontecimento mas que se relaciona com algo jaacute ocorrido Se lermos o Wake

circularmente isto eacute repetidamente obedecendo agrave continuaccedilatildeo do uacuteltimo

fragmento no primeiro natildeo estaremos rebobinando nosso tempo mas tatildeo

somente fazendo uma nova leitura de uma mesma coisa um mesmo texto que

natildeo se alterou enquanto natildeo estaacutevamos olhando Haacute assim uma diferenccedila um

assombro do que se leu antes percorrendo o momento da releitura O tempo

ciacuteclico se faz entatildeo no seu retorno eterno de fantasmas

A palavra retorno no portuguecircs talvez natildeo seja tatildeo adequada justamente

por apagar essa diferenccedila ldquoretornarrdquo pressupotildee que se foi a algum lugar ao qual

se estaacute voltando indica entatildeo mais imediatamente o movimento do tempo

linear de maneira que se imagine uma volta na linha do tempo ao tempo

passado estanque em seu lugar No entanto ricorso termo de Giambattista Vico

se relaciona a curso agravequilo que flui parecendo entatildeo mais adequado agrave ideia do

tempo ciacuteclico em que as repeticcedilotildees satildeo novos acontecimentos Justifica-se aqui

a expressatildeo criada para intitular este trabalho que conjuga ldquofluirrdquo e ldquoricorsordquo para

explicitar esse caraacuteter no termo italiano de Vico

93

A maneira como esse engendramento ciacuteclico foi relido na filosofia

moderna com o eterno retorno de Friedrich Nietzsche indica ainda a

positividade dessa estrutura Como o fim de Ulysses eacute o ldquosimrdquo mdash e Joyce queria

que assim ele se mantivesse mesmo traduzido como a correspondecircncia a

respeito da traduccedilatildeo para o francecircs comprova em que Joyce pede para que o

fim seja tatildeo somente a palavra ldquosimrdquo mdash o ciclo coacutesmico reafirma o sim para o

mundo o cada vez novamente o novo deacutejagrave Eacute a accedilatildeo que natildeo se direciona a

uma finalizaccedilatildeo natildeo tende ao teacutermino mas agrave atividade plena contiacutenua ldquoO

mundo afirma-se por si tambeacutem na sua uniformidade que permanece a mesma

no decurso dos anos bendiz-se por si mesmo porque eacute aquilo que deve voltar

eternamente porque eacute o devir que natildeo conhece saciedade teacutedio nem fadigardquo

(Wille zur Macht ed 1901 sect 385)

A entrada na narrativa de Finnegans wake isto eacute o contato inaugural do

leitor com os acontecimentos narrativos eacute anunciada por uma queda ldquoThe fall bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhoun

awnskawntoohoohoordenenthurnukldquo Queda reverberante com repeticcedilotildees

silaacutebicas misturadas e a formaccedilatildeo desse conjunto de fonemas que natildeo eacute verbete

em nenhum idioma mas comporta idiomas diversos natildeo eacute um ponto de partida

da narrativa ndash natildeo haacute um primeiro acontecimento ou accedilatildeo mdash mas a queda na

narrativa que jaacute estaacute em curso como uma queda drsquoaacutegua anunciada no riverrun

a palavra de abertura da obra Assim a narrativa inicia-se jaacute iniciada

Apoacutes o riverrun diz-se ldquopast Eve and Adamrsquosrdquo Pode-se ler tendo em

mente que estamos passando em frente a Eve and Adamrsquos catedral em Dublin

ou que aquilo que seraacute narrado se situa temporalmente apoacutes Adatildeo e Eva ou

mesmo no passado do casal primaacuterio em tempos inefaacuteveis O tempo eacute fluido

talvez aparentemente caoacutetico mas apenas repensado reimaginado mdash

mudanccedilas de paracircmetros que pedem uma revisatildeo radical Isso tambeacutem

podemos dissecar no tiacutetulo que comporta o fim (fin no francecircs e finis no latim)

e a sua repeticcedilatildeo (-egan again mdash o proacuteprio eterno retorno) ou o fim de encontro

ao despertar (fin-egans (la) fin against + (the) Wake relacionando tambeacutem ao

nome do personagem Earwicker que em alematildeo eacute erwecker ldquoaquele que

despertardquo) ou ainda contra outro fim o veloacuterio outra traduccedilatildeo para wake

94

substantivo Como aponta Donaldo Schuumller ldquoA circularidade viconiana gira no

geral e nos detalhesrdquo (SCHUumlLER 2004 p 17)

Para William York Tindall o tempo eacute a mais importante mateacuteria desse

ldquoensaio sobre o homemrdquo de James Joyce ldquoRise and fall and rise again sleeping

and waking death and ressurrection sin and redemption conflict and

appeasement and above all time itself mdash saecula saeculorum mdash are the matter

of Joycersquos essay on manrdquo32 (TINDALL 1969 p 4) Tambeacutem caracteriza a obra

como a comeacutedia humana de Joyce ldquoNot only his essay on man the Wake is his

human comedyrdquo33 (Ibid p 7) Ao final de sua introduccedilatildeo Tindall afirma que seu

livro natildeo visa a uma apreensatildeo completa nem a ultimatos sobre a obra mas sim

a ser um suplemento dos estudos preacutevios ldquoAfter all what authority on the Wake

knows half of it Which half is the critical questionrdquo34 (Ibid pp 25-26)

O tempo em Finnegans wake destacado por Tindall cumpre papel vital

em toda a organizaccedilatildeo da obra aleacutem da estrutura circular em quatro partes que

Joyce emprega livremente das Idades do filoacutesofo Giambattista Vico mdash assim

como a Odisseia de Homero serve de base para Ulysses o Wake tem

correspondente nesse uacuteltimo caso no entanto Joyce parte de fonte filosoacutefica

em vez de literaacuteria Ainda no iniacutecio quando Harriet Weaver pareceu natildeo entender

e natildeo gostar do que leu do Work in progress Joyce ldquoinsistiu com ela para que

lesse a Scienza Nuova de Vico como com o Ulisses insistira em que lesse a

Odisseiardquo (ELLMANN 1989 p 695) Natildeo eacute soacute no cerne estrutural poreacutem que

podemos perceber a especificidade do tempo de um romancepoema plotless mdash

que se natildeo possui enredo natildeo possui portanto linha cronoloacutegica expliacutecita

Tindall pretende e tende a extrair o plot concatenando as cenas sempre com

uma possiacutevel visatildeo de causa e consequecircncia pontuando as personagens

nomeando-as e definindo-as Eventualmente sua tentativa recai contudo na

incontornaacutevel indefiniccedilatildeo

32 ldquoAscender e cair e ascender novamente dormir e despertar morte e ressureiccedilatildeo pecado e redenccedilatildeo conflito e conciliaccedilatildeo e acima de tudo o proacuteprio tempo mdash saecula saeculorum mdash satildeo a mateacuteria do ensaio de Joyce sobre o homemrdquo 33 ldquoNatildeo apenas seu ensaio sobre o ser humano o Wake eacute sua comeacutedia humanardquo 34 ldquoAfinal de contas que autoridade no Wake sabe metade do que se tem a saber sobre ele Qual metade eacute a pergunta fundamentalrdquo

95

Percebemos a dificuldade no exemplo do segundo capiacutetulo que eacute um dos

mais claros em termos de composiccedilatildeo de cena ou ao menos quanto ao

desenrolar das accedilotildees e seus agentes o que Tindall atribui ao fato de ter sido um

dos primeiros que Joyce escreveu ldquoMaybe he did not have time going over it to

complicate it according to his habitrdquo35 (Ibid p 57) Quanto a tempo e espaccedilo

contudo permanecemos na pluralidade mdash ou mais pertinente dizer na

ubiquidade Tomemos um entendimento primaacuterio da cena com o qual

poderiacuteamos depreender o enredo geral temos Earwicker (a essa altura jaacute

tivemos esclarecimentos sobre sua alcunha) no Phoenix Park em Dublin

surpreendido por um jovem que lhe pergunta as horas O garoto portava um

cilindro o que pode justificar que Earwicker (aqui lembramos Wecker alematildeo

para despertador ndash aquilo que daacute as horas) se sentiu ameaccedilado Defende-se

demonstrando culpa e natildeo responde com a precisatildeo que a pergunta

demandaria O deslocamento no tempo e no espaccedilo poreacutem ocorre em diversos

pontos no paralelo de Earwicker com Adatildeo na culpa em comum por terem

cometido algum pecado mdash Adatildeo no Jardim do Eacuteden nosso protagonista no

parque em questatildeo

They tell the story (an amalgam as absorbing as calzium chloereydes and hydrophobe sponges could make it) how one happygogusty Ides-of-April morning (the anniversary as it fell out of his first assumption of his mirthday suit and rights in appurtenance to the confusioning of human races) ages and ages after the alleged misdemeanour when the tried friend of all creation tigerwood roadstaff to his stay was billowing across the wide expanse o four greatest park in his caoutchouc kepi and great belt and hideinsacks and his blaufunx fustian and ironsides jackboots and Bhagafat gaiters and his rubberised inverness he met a cad with a pipe (FW 351-11)36

35 ldquoTalvez ele natildeo tenha tido tempo ao percorrecirc-lo [o texto] de complicaacute-lo como de haacutebitordquo 36 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2000) ldquoContam a estoacuteria (uma amaacutelgama tatildeo absorvente quanto caacutelcio clorado e esponja hidroacutefoba poderiam performaacute-la) como numa letagostosa idos-de-abril manhatilde (o aniversaacuterio como se soube da primeira assunccedilatildeo do nascimento costumes e direitos em pertinecircncia agrave confusatildeo das raccedilas humanas) idades e idades apoacutes a alegada delonga quando o amigo comprovado de toda criaccedilatildeo begala de pau-marfim para seu equiliacutebrio ondulava atraveacutes do vasto territoacuterio do nosso mais esplecircndido parque com seu kepi caucho e imenso cinturatildeo cota de ferro humor faacutesutico botas de cavalaria inglesa espirituralidade hindu e c apa de chuva ele encontrou um cadete com um cilindrordquo

96

Tindall abre a possibilidade de a cena se ampliar e se desdobrar no

espaccedilo e no tempo relacionando a cena ao pecado original ldquoMaybe it is any sin

of every man or every sin of any manrdquo37 (TINDALL 1969 p58) O que Earwicker

fez de errado no entanto permanece em suspenso para o leitor em meio aos

tantos boatos que se reproduzem aparentemente de maneira incessante

Aparecem ainda outros paralelos espaccedilo-temporais como aparece na

expressatildeo ldquoIdes-of-April morningrdquo que lembra os Idos de Marccedilo (o dia 15 desse

mecircs data do assassinato de Juacutelio Ceacutesar) O jovem vai embora e os rumores se

desdobram cada vez mais fazendo de Earwicker desde um homem que se sente

abstratamente culpado ateacute um reacuteu efetivo de um crime indefinido

Chamar essas referecircncias de ldquoparalelosrdquo no entanto como faz Tindall

pode ser uma forma de suprimir a funccedilatildeo delas na amaacutelgama (an amalgam as

absorbing as calzium chloereydes and hydrophobe sponges could make it) do

texto Uma cena simples como a supracitada que parece poder ser posta com

clareza e ter seus elementos narrativos devidamente pontuados desdobra-se

em ambiguidades e referecircncias a outros tempos e espaccedilos que natildeo satildeo externos

e comparados a ela mas que a compotildeem tanto quanto os fatos que

apresentamos como primaacuterios o culpado Earwicker ou HCE estaacute no Phoenix

Park mas ele eacute tambeacutem Adatildeo no Eacuteden (e natildeo estaacute no primeiro parque assim

como Adatildeo esteve um dia no Eacuteden) Estaacute em Roma e eacute tambeacutem viacutetima de

conspiraccedilatildeo assassinado por Brutus Finnegans wake trata como afirma

Tindall da humanidade do universal mas em acontecimentos vividos por

indiviacuteduos em suas realidades microscoacutepicas como um enredo que se desfaz

em meio a numerosas e esparsas superposiccedilotildees assim se forma a amaacutelgama

wakiana

Apoacutes ser julgado Earwicker eacute preso e posteriormente morto Tindall

contrariamente a suas pretensotildees de sumarizar o enredo e determinar a

ordenaccedilatildeo dos acontecimentos novamente natildeo pode evitar alguma hesitaccedilatildeo

ao tentar descrever os ocorridos do capiacutetulo IV ldquoEarwicker dead Anyhow they

took the liberty of burying himrdquo (Ibid p 85) Assim notamos que por mais que

37 Traduccedilatildeo nossa ldquoTalvez seja qualquer pecado de todo homem ou todo pecado de qualquer homemrdquo

97

se tente concatenar as cenas natildeo se pode fazecirc-lo sem interrogaccedilotildees

parecircnteses bifurcaccedilotildees multiplicaccedilotildees A duacutevida quanto agrave morte da

personagem vem pelo motivo de que simplesmente natildeo temos a morte factual

mdash como ocorreu onde se foi homiciacutedio mdash assim como o delito de Earwicker se

apaga ao se multiplicar satildeo tantas as conjecturas que nem se pode mais lidar

com o fato Aleacutem disso Earwicker continua presente na narrativa mesmo finado

Natildeo temos o acontecimento concreto de sua morte seguido pelo relato de como

seguiram as outras personagens em vez disso temos referecircncias aos que

compareceram ou natildeo a seu enterro agrave tumba ao processo de sepultamento no

rio e outras evidecircncias de que ele estaria morto tudo enquanto o morto

permanece ali natildeo como assombraccedilatildeo mas duplicado entre os presentes e os

ausentes

Com essa duacutevida entatildeo a questatildeo do tempo novamente se coloca como

pode haver a vivecircncia da morte tatildeo essencialmente temporal mdash marco

cronoloacutegico do fim vivecircncia humana de uma temporalidade do luto mdash sem sua

determinaccedilatildeo A hesitaccedilatildeo na afirmaccedilatildeo da morte da personagem anula que se

possa viver sua ausecircncia e portanto o luto Isso engendra natildeo somente mais

uma quebra na narrativa mas ainda uma dinacircmica proacutepria do processo de perda

Assim como observamos na cena do Phoenix Park o que ocorre natildeo eacute uma

divisatildeo do enredo em duas realidades paralelas ou dois enredos paralelos em

que um contempla a morte e o outro lida com a vida mas de uma soacute situaccedilatildeo

Se a morte natildeo eacute fato pontual fechado uniacutessono do enredo o trabalho

do luto natildeo teraacute uma origem propriamente estabelecida mdash ou tendo como

origem uma perda que se fez em presenccedila e em ausecircncia simultaneamente teraacute

uma outra formaccedilatildeo e dinacircmica A narrativa entatildeo natildeo teraacute suas implicaccedilotildees

de consequecircncia uma vez que a causa natildeo eacute certa Se tomarmos para pensar

o luto a exposiccedilatildeo de Sigmund Freud em Trauer und Melancholie de 1915 em

que o luto e a melancolia satildeo comparados a partir do ldquoquadro geral desses dois

estadosrdquo (FREUD 2010 p 128) de forma que ambos os quadros se aproximam

em todas as descriccedilotildees cliacutenicas e se diferenciam apenas pela afetaccedilatildeo da

autoestima teremos a seguinte definiccedilatildeo do luto

98

Via de regra luto eacute a reaccedilatildeo agrave perda de uma pessoa amada ou de uma abstraccedilatildeo que ocupa seu lugar como paacutetria liberdade um ideal etc () Confiamos que seraacute superado apoacutes certo tempo e achamos que perturbaacute-lo eacute inapropriado ateacute mesmo prejudicial () O luto profundo a reaccedilatildeo agrave perda de um ente amado comporta o mesmo doloroso abatimento a perda de interesse pelo mundo externo ndash na medida em que natildeo lembra o falecido ndash a perda da capacidade de eleger um novo objeto de amor ndash o que significaria substituir o pranteado ndash o afastamento de toda atividade que natildeo se ligue agrave memoacuteria do falecido (Ibid pp 128-129)

Ora se a personagem eacute enterrada mas natildeo eacute de todo perdida natildeo se vai

por completo do plano onde estatildeo as personagens vivas como estabelecer a

perda que se tem como premissa imprescindiacutevel do luto A perda engendra o

que Freud chama de trabalho do luto toda a libido relacionada ao objeto perdido

precisa ser redirecionada mas a resistecircncia ao abandono dessa libido eacute

desconfortaacutevel podendo gerar ateacute distanciamento da realidade mdash muito dura

para se suportar mdash e psicose de desejo Todo esse processo poreacutem tem um

resultado ldquoMas o fato eacute que apoacutes a consumaccedilatildeo do luto o Eu fica novamente

livre e desimpedidordquo (Ibid p 130)

De toda a explanaccedilatildeo de Freud a respeito do luto natildeo podemos deixar de

concluir que seu tempo mdash e ao que tudo indica tambeacutem o da melancolia mdash eacute

alterado Com a perda desestabilizadora o indiviacuteduo se vecirc imerso na

necessidade de uma mudanccedila de paracircmetros para seu conforto habitual na

busca pela substituiccedilatildeo do ente perdido e no caminho de redirecionamento da

libido cuja origem se perdeu Assim seria seguro dizer que o trabalho do luto

racionalizado por Freud pressupotildee um tempo de luto diferenciado do tempo

normal da vida No Wake o texto ressoa esse trabalho de luto e seu tempo

proacuteprio o remordimento da morte e do morto em meio a descriccedilotildees que abarcam

homenagens seu enterro e seu descanso

Any number of conservative public bodies through a number of select and other committees having power to add to their number before voting themselves and himself town port and garrison by a fit and proper resolution following a koorts order of the groundwet once for all out of plotty existence as a forescut so you maateskippey might to you cuttirunner on a new pack of klerds made him while his body still persisted their present of a protem grave in Moyelta of the best Lough

99

Neagh pattern then as much in demand among misonesans as the Isle of Man today among limniphobes Wacht even It was in a fairly fishy kettlekerry after the Fiannarsquos foreman had taken his handful enriched with ancient woods and dear dutchy deep-linns mid which were na old knoll and a troutbeck vainyvain of her osiery and a chatty sally with any Wilt or Walt who would ongle her as Izaak did to the tickle of his rod and watch her waters of her sillying waters of and there now brown peater arripple (may their guilt lightly over his somnolulutent form) Whoforyou lies his last by the wrath of Bog like the erst curst Hun in the bed of his treubleu Donawhu (FW 7614)38

Poderiacuteamos compreender muito a respeito dessa morte no Wake partindo

apenas do fato de que o trecho do capiacutetulo IV em que se anuncia o enterro

subaquaacutetico da personagem Humphrey Chimpden Earwicker parodia os textos

egiacutepcios que chamamos de forma abrangente de Livro dos Mortos coletivo do

que era registrado sobre as tumbas para auxiliar os defuntos em seus caminhos

poacutes-morte sem distinccedilatildeo de nobreza mas que envolviam julgamentos morais

de merecimento e davam diversas orientaccedilotildees para a superaccedilatildeo de obstaacuteculos

que porventura surgiriam para o morto nessa transiccedilatildeo Esses escritos eram

chamados pelos egiacutepcios de ldquotextos para irvoltar agrave luzrdquo o que jaacute nos indica que

haveria um caminho a ser traccedilado por Humphrey de maneira que a sua morte

experiecircncia mais radical de finalizaccedilatildeo natildeo seria para ele o ponto final do

percurso Em vez de seguir para ldquoo aleacutemrdquo ou para o mundo dos mortos muito ao

contraacuterio o morto submerso segue para a luz que haacute na superfiacutecie em um

caminho de volta agrave vida A passagem natildeo eacute encarada como uma superaccedilatildeo de

barreiras ou uma peripeacutecia narrativa surpreendente ao inveacutes disso tem-se na

verdades quase uma ausecircncia de barreiras entre os dois aspectos da existecircncia

38 Como traduziu Donaldo Schuumller (2000) ldquoQualquer nuacutemero de corpos puacuteblicos conservadores atraveacutes de um nuacutemero de seletos de outros comitecircs com poder de adicionar a seu nuacutemero antes de votar em si mesmos e nele urbe porto e guarniccedilatildeo por adequada e proacutepria resoluccedilatildeo seguindo uma ordem judicial da constituiccedilatildeo uma vez por todas fora de existecircncia narrativa como um pitoco assim podes cortar tudo o que te incomoda num novo baralho de panos quanto a ele enquanto seu corpo ainda persistiu presente deles um sepulcro pro tempore na planiacutecie de Moryelta do melhor modelo dos defuntos sob o Lough Neagh entatildeo tatildeo em demanda entre os misoneacutesios quanto a Ilha de Man agora entre os limnoacutefobos Un momentito Foi em fabulosa caccedila piscosa depois ki Finn proacute-homem tinharrancado um punhado de turfa enriquecido com bosques antigos e bem postos pantanos dos baixos paiacuteses nos quais havia picos e bicos de truta vivamente vaidosos de suas ramadas e dos salgueiros no bleblablaacute de Blaacute a Bleacute que iria fisga-la como fez Izaak para excitar sua raiz e contemplar suas aacuteguas de suas indefesas aacuteguas e agora os brunos arrepios de sua pele pedrosa (queira seu vestido vestir levemente sua sonululante forma) Queporti jaz no seu derradeiro jazigo pela rabia de Dioacutes como o remoto reacuteprobo Huno no leito azul de seu Tunobiasalrdquo

100

No capiacutetulo referente ao enterro e posterior ressurreiccedilatildeo de Humphrey

Chimpden Earwicker as intrusotildees em referecircncias ao tempo e a temporalidade

satildeo numerosas

Best This wastohavebeen underground heaven or molersquos paradise which is probably also an inversion of a phallopharos (FW 7633-34)39

all differing as clocks from keys since nobody appeared to have the same time of beard some saying by their Oorlog it was Sygstryggs to nine more holding with the Ryan vogt it was Dane to pfife (FW 7711-14)40

But abide Zeitrsquos sumonserving rise afterfall (FW 787)41

As tantas alusotildees indicam como formas ou visotildees do tempo permeiam

tudo o que estaacute sendo narrado mas vemos que natildeo haacute indicaccedilotildees precisas fala-

se repetidamente do tempo sem no entanto estabelecer marcos cronoloacutegicos

divisotildees concretas ou definiccedilotildees temporais para a narrativa Se o tempo no Wake

natildeo eacute vetorial e nem busca mediccedilotildees tambeacutem natildeo pode secirc-lo na morte ou no

luto por mais marcados e marcantes que esses eventos fossem em outras

realidades No lugar do sonho tudo muda ateacute mesmo as mais radicais

ocorrecircncias presenccedilas satildeo eteacutereas espectros convivem cenas e marcos se

dissolvem

O tempo dissolvido nas multiplicidades em vez de apreendido e

entendido linearmente corrobora o que dissemos a respeito da impossibilidade

de escolher uma linha enrediacutestica em detrimento de outra ao menos sem que

isso fira a tessitura conjunta que a diversidade espaccedilo-temporal oferece Assim

como estamos em diversos tempos e (em um parque de Dublin na Roma antiga

39 Tambeacutem segundo a traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2000) ldquoBem Este subterracircneo foi-para-haver-de-ser ceacuteu ou o paraiacuteso dos molhes que provavelmente foi tambeacutem uma inversatildeo de um phallofarol ()rdquo 40 Idem ldquodiferindo tudo como sinos diferem de chaves visto que ningueacutem parecia ter o mesmo horaacuterio agrave barba alguns queriam por seu Horloacutegio que era Sixtriques pras nove outros apegados agrave Ira Landa diziam que era Dane-se para as cincordquo 41 Idem ldquoMas aguardemos o requerimento do tempo despertar apoacutes-quedardquo

101

no Eacuteden e assim por diante) tudo ocorre ao mesmo tempo (o pecado de Adatildeo eacute

o de HCE e seu sentimento de conspiraccedilatildeo que culmina em assassinato eacute o

mesmo de Juacutelio Ceacutesar) Temos todo o texto como o tropo Natildeo havendo escolha

de linha cronoloacutegica ou de espaccedilo natildeo haacute accedilatildeo pontual que se possa eleger

Em um niacutevel mais microscoacutepico do texto wakiano o mesmo acontece no

que concerne aos tatildeo numerosos neologismos Natildeo haacute como escolher um

significado ou outro satildeo simultacircneos e quase sempre autorreferenciais

Poderiacuteamos entatildeo compreender a fama de ilegibilidade se a leitura deve

considerar que tudo eacute deslocado e que nada se consolida sem grandes perdas

eacute vaacutelido ver tamanha dificuldade em Finnegans wake Eacute exigido do leitor que

diversos textos em um sejam lidos mdash portanto ler os diversos textos sem separaacute-

los Em Derridabase Geoffrey Bennington discorre com o pensamento de

Jacques Derrida a respeito do entendimento de significante e de significado

partindo da noccedilatildeo de signo estabelecida por Ferdinand de Saussure

No sistema de diferenccedilas que eacute a liacutengua todo significante funciona remetendo a outros significantes sem que se chegue nunca a um significado Procurem no dicionaacuterio o significado de um significante desconhecido vocecircs encontraratildeo outros significantes nunca significados Jaacute foi dito um significado natildeo eacute mais do que um significante posto numa certa posiccedilatildeo por outros significantes natildeo existe significado ou sentido soacute haacute lsquoefeitosrsquo (Positions p 90) Mas este privileacutegio concedido ao significante logo o destroacutei com efeito o significante lsquosignificantersquo soacute significa na sua relaccedilatildeo com (o significante) lsquosignificadorsquo que ele coloca de antematildeo em posiccedilatildeo de prioridade lsquoSignificantersquo e lsquosignificadorsquo se entreimplicam assim como eles implicam lsquosignorsquo e lsquoreferentersquo Eacute impossiacutevel para noacutes estipular (conforme um gesto que eacute agraves vezes o da filosofia analiacutetica) que lsquosignificantersquo daqui pra frente natildeo implicaraacute lsquosignificadorsquo como seu corolaacuterio sob pena como Humpty Dumpty de cair na ilusatildeo do convencionalismo e de esquecer que recebemos a liacutengua e suas sedimentaccedilotildees muito mais do que as criamos (BENNINGTON 1996 p 34)

Assim podemos compreender tambeacutem que em Finnegans wake existam

ldquoefeitos de significadordquo em vez de categorias soacutelidas a que pudeacutessemos recorrer

para a compreensatildeo do signo Talvez fique claro como um dicionaacuterio com

significados estanques dos termos da obra literaacuteria seria tatildeo ou ainda mais

102

parcial do que os dicionaacuterios comuns a que Bennington se refere Os efeitos satildeo

portanto aquilo que operam como fantasmas espectros que rondam a

materialidade do texto Esses espectros natildeo apenas perpassam alguns

momentos mas efetivamente habitam a tessitura textual

O filoacutesofo franco-argelino Jacques Derrida rompendo com uma

concepccedilatildeo de tempo exposta na obra do fenomenoacutelogo alematildeo Edmund

Husserl ultrapassa a noccedilatildeo tanto espacial quanto temporal de um percorrer

regido unidirecionalmente bem como substitui essa dada noccedilatildeo circular ou

ciacuteclica que perigosamente remete ao risco de uma redundacircncia por uma ideia

de elipse em que nunca se alcanccedila verdadeiramente o objeto nem se recupera

as condiccedilotildees preacutevias do caminho percorrido O movimento eliacuteptico pode ser aqui

invocado natildeo para substituir a ideia do ciacuterculo que aparece em James Joyce

uma vez consideradas todas as nuances dessa circularidade aqui expostas mas

para acrescentar uma espeacutecie de nuance eliacuteptica dessa circularidade que natildeo

produz redundacircncia ou repeticcedilatildeo mas singularidade e mesmo inovaccedilatildeo Tendo

seu centro deslocado um trecho percorrido na leitura impede terminantemente

que o passado da leitura seja revisitado da forma como foi lido em seu presente

irrecuperaacutevel

Citado por Joanna Hodge em Derrida on time Jacques Derrida em seu

ensaio ldquoForm and meaning a note on the phenomenology of languagerdquo datado

de 1967 propotildee um pensamento que poderia valer para o Finnegans wake ao

menos dentro da discussatildeo aqui proposta a respeito do formato estrutural da

obra final de James Joyce A respeito do que natildeo poderia ser apreensiacutevel por

uma dialeacutetica per se mdash algo que veremos distancia-se daquilo que conjectura

o escritor irlandecircs em suas obras mdash diz Jacques Derrida

Thus one does not have to choose between two lines of thought Rather one has to meditate upon the circularity which makes them pass into one another indefinitely And also by rigorously repeating this circle in its proper historical possibility perhaps to let some elliptical displacement be produced in the difference of repetition a deficient displacement doubtless but deficient in a way that is not yet --- or is no longer --- absence negativity non-Being lack silence Neither matter

103

nor form nothing that could be recast by some philosopheme that is by some dialectics in whatever sense dialectics may be determined An ellipsis both of meaning and of form neither full speech nor a perfect circle More a less neither more nor less Perhaps an entirely other question (DERRIDA apud HODGE 2007 p 11)42

A descriccedilatildeo do percurso eliacuteptico em Derrida acrescenta aqui ao princiacutepio

de natildeo redundacircncia como supracitado quanto agrave circularidade de Finnegans

wake No entanto uma espeacutecie de dialeacutetica ocupa as preocupaccedilotildees do escritor

irlandecircs Joyce foi influenciado pela ideia de atraccedilatildeo de contraacuterios exposta no

The Marriage of Heaven and Hell do inglecircs William Blake e da antecipaccedilatildeo da

dialeacutetica hegeliana de Giordano Bruno de Nola filoacutesofo italiano em que ldquoall is in

allrdquo como em Finnegans wake

Desde uma de suas primeiras publicaccedilotildees Gramatologia Jacques

Derrida aponta uma espeacutecie de condescendecircncia mdash ou como ele diz

solidariedade mdash entre uma concepccedilatildeo histoacuterico-metafiacutesica calcada no linear

portanto calcada na estruturaccedilatildeo de presente apoacutes presente tempo apoacutes tempo

em que haacute sequecircncias e possiacuteveis iniacutecios meios e fins com um modelo

discursivo tradicional eacutepico Denuncia igualmente que ldquoa lsquolinharsquo representa

apenas um modelo particularrdquo (DERRIDA 2011 p 107) e que esse modelo por

mais que tenha marcado uma norma imperante natildeo prescinde do conceito

mundano da temporalidade ndash o conceito de homogeneidade e continuidade seja

reto seja circular que Heidegger aborda como derivado da ontologia Esse

modelo passa a deixar de imperar pela gradual ineficiecircncia na economia dos

textos cientiacuteficos e na mesma medida problematiza-se contudo Derrida afirma

ldquoO fim da escritura linear eacute efetivamente o fim do livrordquo (Ibid 108) A ressalva

42 ldquoPortanto natildeo eacute necessaacuterio fazer uma escolha entre duas linhas de pensamento Preferencialmente se deve meditar sobre a circularidade que as faz uma passar pela outra indefinidamente Inclusive rigorosamente repetindo esse ciacuterculo em sua proacutepria possibilidade histoacuterica talvez para deixar algum deslocamento eliacuteptico ser produzido na diferenciaccedilatildeo da repeticcedilatildeo um deslocamento deficiente sem duacutevidas mas deficiente de maneira que natildeo eacute ainda mdash ou natildeo mais mdash ausecircncia negatividade natildeo-Ser falta silecircncio Nem mateacuteria nem forma nada que possa ser refeito por um filosofema isto eacute por alguma dialeacutetica em qualquer que seja o sentido que determina a dialeacutetica Uma elipse tanto de sentido quanto de forma nem discurso completo nem um ciacuterculo perfeito Mais um menos nem mais nem menos Talvez uma questatildeo inteiramente outrardquo

104

vem do proacuteprio filoacutesofo quanto ao fato de que nos nossos dias ainda novas

escrituras satildeo desdobradas nas focircrmas dos livros literaacuterias ou teoacutericas A

conclusatildeo desses processos e desvios eacute absolutamente contundente ldquoPorque

comeccedilamos a escrever a escrever de outra maneira devemos reler de outra

maneirardquo (Ibid)

Essas dimensotildees de uma espeacutecie de inadequaccedilatildeo da escritura ao

sistema linear e o lanccedilar-se agraves dimensotildees temporais plurais e natildeo lineares satildeo

fatos natildeo concernentes aos problemas modernos lembra Derrida mas fazem-

se evidentes nos dias atuais Teriacuteamos de dizer a partir disso que Finnegans

wake natildeo eacute um livro ou que o que faz dele um livro eacute o formato numerado e

organizado para uma ediccedilatildeo que lhe impotildee linearidade especiacutefica O que pensar

dessa imposiccedilatildeo de focircrma a um livro circular e efetivamente acessiacutevel de

qualquer ponto mdash portanto avesso a qualquer ordenaccedilatildeo especialmente a uma

numeraccedilatildeo que tanto especifica e prende Talvez isso deva nos levar ao

desprendimento dessa numeraccedilatildeo por mais uacutetil que seja em termos de citaccedilatildeo

e compartilhamento Ou em vez de um desprendimento uma atitude avessa a

certa escravizaccedilatildeo que pode decorrer desse sistema que em vez de pretensioso

arranjo traz desarranjo da estrutura circular que se deve perceber na obra

Em seu Seminaacuterio de nuacutemero 23 denominado O sinthoma ou Le

sinthome mdash ou ainda ldquoo santo homemrdquo mdash dedicado a James Joyce Jacques

Lacan parece atravessar tambeacutem algo proacuteximo agrave questatildeo que aqui trazemos

Antes de citaacute-lo talvez seja interessante remeter ainda especialmente no que

diz respeito ao comeccedilo da citaccedilatildeo do psicanalista agrave ceacutelebre frase de Samuel

Beckett a respeito do Finnegans wake que eacute um livro natildeo sobre alguma coisa

mas eacute a coisa em si Lacan em seu Seminaacuterio diz

Leiam as paacuteginas de Finnegans wake sem procurar compreender Isso se lecirc () Eacute uma sorte que haja uma uacutenica ediccedilatildeo o que permite designar ao fazermos uma citaccedilatildeo a linha na paacutegina certa isto eacute na paacutegina que sempre teraacute o mesmo nuacutemero Se como acontece com os outros livros fosse preciso editar Finnegans wake com diversas paginaccedilotildees como iriacuteamos nos orientar (LACAN 2005 p 161)

105

Finnegans wake entatildeo soacute natildeo eacute o fim do livro porque foi encaixado em

uma estrutura linear a despeito de sua natureza Mas eacute o fim das barreiras

linguiacutesticas como estudadas historicamente mdash e novamente a ponte

supracitada com Derrida em ldquoGecircnese e escritura do Essai sur lrsquooriginerdquo se faz

profiacutecua lembrando o que diz a partir de Jean-Jacques Rousseau ldquoNatildeo haveraacute

nem uma linha histoacuterica nem um quadro imoacutevel das liacutenguas () As liacutenguas satildeo

semeadasrdquo (DERRIDA 2011 p 263) O dinamismo babeacutelico que como foi dito

alguns capiacutetulos atraacutes transpassa para a traduccedilatildeo afeta o leitor de maneiras

distintas e desestabiliza a interaccedilatildeo leitor-obra de uma maneira que tem certa

medida de imprevisibilidade O fim da barreira linguiacutestica se relaciona ao fim de

uma barreira temporal

Ainda sobre Rousseau nesse mesmo texto Derrida aponta a vontade do

iluminista francecircs de esgotar todos os recursos da escritura buscando

univocidade clareza e precisatildeo indicando a pontuaccedilatildeo como ldquoo melhor exemplo

de uma marca natildeo-foneacutetica no interior da escriturardquo (Ibid p 277) Rousseau

chega a dizer que seriam necessaacuterias novas invenccedilotildees em pontuaccedilatildeo para que

se extraiacutesse o melhor da escritura seu maacuteximo como pontos que indicassem

por exemplo ironia e vocativo este uacuteltimo com a intenccedilatildeo de diferenciar na

escrita o homem que se proclama daquele homem que eacute convocado na

linguagem Podemos vislumbrar uma semelhanccedila curiosamente em sentido

diametralmente oposto entre Rousseau e o iacutempeto joyciano ao inveacutes da busca

por univocidade e precisatildeo Joyce parece buscar alcanccedilar ou extrair tambeacutem o

maacuteximo do trabalho que realiza no campo da palavra escrita explorando no

entanto o que se constroacutei em desbravamento de disseminaccedilatildeo a partir do

alcance do plural linguiacutestico isto eacute daquilo que natildeo proiacutebe ambiguidade mas se

farta dela

Em muitos pontos do texto o proacuteprio Finnegans wake praticamente diz ao

leitor ou ao menos lhe indica formas de se debruccedilar sobre ele dando pistas de

suas premissas O excerto que mostraremos aqui traz a sugestatildeo de que fatores

como o tempo mdash plural mdash a inflexatildeopronuacutencia e as maneiras de se comunicar

algo tecircm o poder de afetar diretamente no processo comunicativo que envolveria

idealmente emissor mensagem coacutedigo receptor como postulado pelo

106

estruturalismo de Roman Jakobson O proacuteprio texto se anuncia em apelos a uma

Babel ou mais especificamente a um processo de babelizaccedilatildeo da(s) liacutengua(s)

e de deslocamento da emissatildeo de mensagens em um suposto procedimento de

comunicaccedilatildeo

Because Soferim Bebel if it goes to that (and dormerwindow gossip will cry it from the housetops no surelier than the writing on the wall will hue it to the mod of men that mote in the main street) every person place and thing in the chaosmos of Alle anyway connected with the gobblydumped turkery was moving and changing every part of the time the travelling inkhorn (possibly pot) the hare and turtle pen and paper the continually more and less intermisunderstanding minds of the anticollaborators the as time went on as it will variously inflected differetly pronounced otherwise spelled changeably meaning vocable scriptsigns (FW 11818-28)43

No proacuteprio texto de Finnegans wake portanto admite-se ou ateacute mesmo

assevera-se que a linguagem sob a dinacircmica de um caraacuteter mutaacutevel natildeo tem

um destino certo pontual no espaccedilo e tampouco no tempo seu remetimento

pode lidar com o extravio com a perda de seu destino Em se tratando do texto

literaacuterio em que o destinataacuterio natildeo eacute unitaacuterio essa possibilidade eacute ainda maior

especialmente em um texto como Finnegans wake que remete agrave conexatildeo entre

todas as coisas no caosmos de tudo mdash algo que cria uma possibilidade de cadeia

de remetimentos infinita

Para Jean-Jacques Rousseau o surgimento das liacutenguas se daacute na

passagem do grito natural indomado pela racionalidade ao som articulado Ao

mesmo tempo ele evoca o espectro de uma fala que se daacute puramente em

articulaccedilatildeo que seria uma liacutengua morta aacutelgebra ou escritura ou seja resultaria

na morte da fala Para Jacques Derrida ldquoa morte que natildeo eacute nem um presente

43 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoPorque Escritores de Babell sofridores se chega a isso (e conversas de soacutetatildeo o proclamaratildeo do talhado com mais probabilidade anoite-o que a escrita no muro haacute de calorir a mente dos mentantes moventes na via mestra) cada persona galgo ou algo no caosmo do Todo de alocuma forma conectado com o pingalim em piruetas do pingo movia-se e mundava em cada parte do tempo o estojo movente (possivelmente o tonteiro) o papel a tinta no pipel das fibulosas lebre e tortuga os constantes mal-entendidos dos descolaboradores mais ou menos entrementados enquanto o fluir do tempo seraacute variabilmente infletido diferentemente pronunciado riversamente ortografado grafissignos de vocaacutebulos de sentido cambianterdquo

107

por vir nem um presente passado trabalha o dentro da fala como o seu rastro

sua reserva sua diferecircncia interior e exterior seu suplementordquo (DERRIDA 2011

p 385)

Levando isso em consideraccedilatildeo e tambeacutem o sonho de Rousseau pela

liacutengua que por fim seria inarticulada Jacques Derrida questiona quase

concluindo a sua Gramatologia ldquoE se a cena do sonho for sempre uma cena de

escriturardquo (Ibid 386) Sigmund Freud apontava ser pertencente agrave escritura

talvez o mundo dos sonhos Finnegans wake sendo o proacuteprio livro da noite e

do sonho eacute entatildeo escritura na mais bem sucedida fuga da linearidade

CAPIacuteTULO IV

FLUIR E RETORNO

109

O problema estrutural em Finnegans wake eacute segundo afirmamos um

problema intrinsecamente constituiacutedo na questatildeo da dimensatildeo temporal da

existecircncia a comeccedilar por abranger o tempo da leitura da ficccedilatildeo mdash ateacute alcanccedilar

as explicaccedilotildees do tempo do sonho e outras analogias Para aleacutem do tempo do

sonho podemos pensar contrariamente a certa concepccedilatildeo temporal aristoteacutelica

de momento fugidio de linearidade e homogeneidade a concepccedilatildeo temporal da

tradiccedilatildeo semita que trata de simultaneidade assim como uma concepccedilatildeo vinda

de Bergson ou de Heidegger Nessa tradiccedilatildeo hebraica ao inveacutes da

mensurabilidade que secciona a vivecircncia haacute a concepccedilatildeo cairoloacutegica se

podemos assim colocar relacionando-a ao tempo do καιρός (em vez da

cronoloacutegica isto eacute o tempo na loacutegica de κρόνος)

110

Para considerar essa visatildeo procedente no entanto dificilmente seria

profiacutecuo simplesmente apontar momentos especiacuteficos do livro em que isso

aconteccedila sem considerar tambeacutem o todo em recortes que ilustrem afirmaccedilotildees

O entendimento de aspectos estruturais do Wake relacionados a concepccedilotildees de

temporalidade eacute bastante visiacutevel considerando os paradigmas viquianos de que

Joyce partiu ou simplesmente observando o iniacutecio do livro conter uma frase

cortada indicando uma estrutura in media res especialmente expliacutecita mais do

que se especula em Ulysses por exemplo Os caminhos que o texto segue

poreacutem em termos de tempo ultrapassam os aspectos mais pulsantes e chegam

a ser tortuosos uma vez que mudam a todo tempo desde o tratamento dado a

personagens ateacute a ambientaccedilatildeo passando pelo vocabulaacuterio sempre mutante mdash

que remete tambeacutem linguisticamente a outros tempos com usos anacrocircnicos ou

deslocados na diacronia dos idiomas entremeados ao contraacuterio do que uma

pretensatildeo naturalista teria de reproduzir um tempo e espaccedilo pontuais da

realidade mdash e claro pela narrativa desmantelada Assim ainda que seja difiacutecil

ilustrar certas afirmaccedilotildees sobre Finnegans wake pontualmente podemos

rememorar passagens e buscar e alguns destaques possiacuteveis

No quinto capiacutetulo do livro I que se inicia com um paraacutegrafo

surpreendentemente curto mdash apoacutes uma seacuterie de paraacutegrafos longos desde as

primeiras paacuteginas da obra mdash temos uma espeacutecie de apresentaccedilatildeo mais formal

e direta de uma das personagens principais da obra Anna Livia Plurabelle a

mulherrio O documento envolve diferentes personagens no entanto no que diz

respeito tanto agrave sua redaccedilatildeo quanto ao seu envio Diz o trecho

In the name of Annah the Allmaziful the Everliving the Bringer of Plurabilities haloed be her eve her singtime sung her rill be run unhemmed as it is uneven (FW 1041-3)44

44 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller em que o tradutor evoca a religiosidade da fala de oraccedilatildeo ldquoEm nome de Annah a Allmissassombrosa a Sempreviva a Portadora de Plurabilidades santificada seja sua evigiacutelia venha o reino de seu canto ritmem suas rumas sem peias assim na terra como no ceacuteurdquo

111

O que esse paraacutegrafo apresenta em verdade eacute a vinda de sua voz sua

chegada ao leitor por meio de uma carta-manifesto (ldquomamafestardquo) sem tiacutetulo que

seraacute mostrada em seguida aos leitores nesse mesmo capiacutetulo Desenha seu

lugar de inscriccedilatildeo aquele onde poderaacute se despir em transluacutecida sinceridade e

apelo No entanto ainda que seja introduzida sua carta e portanto sua voz e

sua presenccedila o paraacutegrafo se inicia com ldquoin the name ofrdquo isto eacute ldquoem nome

derdquo A expressatildeo natildeo serve aiacute para transferir a fala a algueacutem que a represente

como se houvesse um outro personagem que falasse em seu nome em seu

lugar forjando sua assinatura serve para sobrepor outras vozes agrave sua na

medida em que Anna Livia natildeo se ausenta para que falem por ela mas haacute uma

comunhatildeo de outras vozes que tomam o lugar da fala concomitantemente Natildeo

haacute uma passagem da voz de uma pessoa para outra mas uma assinalaccedilatildeo de

polifonia isto eacute de multiplicidade em simultaneidade

Primordialmente diversos indiacutecios nos levam agrave leitura de Anna Livia como

uma divindade aiacute evocada As referecircncias nesse trecho satildeo basicamente

islacircmicas Essa evocaccedilatildeo natildeo deixa de lembrar em referecircncia paralela agrave

antiguidade ocidental a forma como todo poema eacutepico deve se abrir evocando

e pedindo auxiacutelio agraves musas para fazer o texto acontecer surgir fluir mas

podemos vislumbrar aquela religiatildeo abraacircmica jaacute ao vermos o nome de Anna

Livia ao lado de um epiacuteteto de tamanha imponecircncia ldquothe Allmazifulrdquo que remete

a ldquoall-mercifulrdquo e por conseguinte tambeacutem agrave maneira consagrada de se referir a

Alaacute ldquoAllah the All-mercifulrdquo

A abertura desse paraacutegrafo ecoa ainda tanto em similaridade foneacutetica

quanto nas relaccedilotildees intertextuais que permite o termo ldquoBismillahrdquo que

reaparece a cada sura (cada capiacutetulo do Coratildeo) geralmente nessa mesma

posiccedilatildeo dando iniacutecio ao texto ali contido O eco aqui eacute efetivamente de

repeticcedilatildeo uma vez que ldquoBismillahrdquo significa exatamente ldquoIn the name of Allah

the All-mercifulrdquo Por maior que possa ser a importacircncia das repeticcedilotildees de

termos temas e referecircncias no Wake devemos ter o cuidado de natildeo acreditar

que elas soacute existem se perceptiacuteveis digamos a olho nu mesmo que sob a oacuteptica

meticulosa de quem procura as reproduccedilotildees explicitamente visiacuteveis

112

Jacques Derrida a respeito de estrutura textual diz na seccedilatildeo intitulada ldquoA

fita de maacutequina de escreverrdquo integrante da coletacircnea Papel-maacutequina que ldquoa

loacutegica do acontecimento textual como inscriccedilatildeo materialrdquo impede uma regulaccedilatildeo

com progressatildeo e regressatildeo isto eacute com ldquoo processo temporal como

habitualmente se pensardquo mas sim regulado pelo proacuteprio acontecimento ou

ocorrecircncia do texto ldquoportanto pela singularidade de uma uacutenica vezrdquo (DERRIDA

2009 p 86) Eacute caracterizada portanto uma forma proacutepria de experiecircncia de

maneira que somente uma visatildeo fenomenoloacutegica respeitaria tamanha

especificidade

No esteio desse raciociacutenio faz-se necessaacuterio reafirmarmos que tal tempo

relacionado ao escritural bem como agraves accedilotildees propriamente de escrita e de

leitura tem peculiaridades proacuteprias e por isso uma dinacircmica de consequecircncias

tanto variaacuteveis quanto incontrolaacuteveis A escrita prevecirc o que seraacute do que jorrou

dela e tambeacutem como chegaraacute ao leitor mas sabendo que deve falhar nessa

previsatildeo O tempo da leitura eacute um presente inescapaacutevel que tem de lidar com o

passado irrecuperaacutevel da leitura da linha anterior ainda que se volte e leia

novamente o que jaacute se leu a experiecircncia eacute outra O deparar-se com o texto

matriz de estranhamento frente agrave liacutengua ocorre sempre na singularidade

Derrida traz ainda afirmaccedilotildees a respeito do acontecimento na literatura

remetendo a certa categoria de materialidade do texto mdash materialidade de um

acircmbito metafiacutesico enquanto conceito filosoacutefico diferente portanto de mateacuteria

mdash que determina o conceito de acontecimento (ou a acontecimentalidade)

textual associado agrave desconstruccedilatildeo Essa conjectura eacute pertinente na medida em

que essa operaccedilatildeo desconstrutiva para Derrida tem sempre como alvo ou

ldquoimplica sempre um processo de desmetaforizaccedilatildeordquo (Ibid 131) em que se

revela a existecircncia de articulaccedilotildees ocultas em totalidades antes aparentemente

monaacutedicas Assim o que repousa sob o texto quase silenciosamente mas eacute

visiacutevel em sua superfiacutecie mdash em sua sintaxe em sua estrutura narrativa em seus

processos metoniacutemicos mais evidentes mdash eacute o que uma leitura desse formato

alcanccedila e eacute a abordagem que se propotildee aqui na leitura de Finnegans wake

considerando as disseminaccedilotildees de sentido pelo texto

113

Retornando ao Wake uma seacuterie de epiacutetetos se segue todos com inicial

maiuacutescula indicando que o paraacutegrafo se refere a uma autoridade amarrando os

adjetivos ao nome proacuteprio como corolaacuterios de um pronome de tratamento

especial ldquothe Everliving the Bringer of Plurabilitiesrdquo O restante do capiacutetulo natildeo

conteacutem mais referecircncias islacircmicas O que apareceu no primeiro paraacutegrafo natildeo

foi uma chave para a leitura do que viria depois mas referencias que se

entrecruzaram dentro do mesmo paraacutegrafo e depois aparentemente natildeo nos

servem para nada podendo imaginar que um leitor natildeo as perceba eou as

ignore e continue sua leitura sem prejuiacutezo Anna Livia natildeo eacute Allah nem lhe eacute

equivalente ou consiste em uma paroacutedia dele mas a figura de Allah surge por

detraacutes da mulher-Liffey

A expressatildeo ldquoin the name ofrdquo aleacutem de engendrar a referecircncia agrave fala

islacircmica (e agrave fala catoacutelica com o ldquoem nome do Pai do Filho e do Espiacuterito

Santordquo) aponta fatos narrativos Eacute notaacutevel no paraacutegrafo que essa expressatildeo

natildeo consiste em uma transmissatildeo naquele momento do poder de enunciaccedilatildeo

da proacutepria Plurabelle a outrem a partir desse ponto Lembra de maneira bem

humorada no entanto um anuacutencio real ou oficial sobre alguma questatildeo decidida

pela instacircncia maior de uma hierarquia Nesse sentido haacute uma intermediaccedilatildeo

nesse anuacutencio Haacute ainda uma interposiccedilatildeo de duas outras personagens da obra

quando a carta-mamafesta nos aparece a de seus filhos Shem e Shaun Shem

the penman escreve a carta cujo conteuacutedo lhe eacute transmitido por Anna Livia e

Shaun the postman encarrega-se de entregaacute-la funcionando como

mensageiro

Com o personagem de Shaun e especialmente quando lhe eacute atribuiacuteda

essa tarefa eacute inevitaacutevel lembrarmo-nos da relaccedilatildeo entre mensageiro e

hermenecircutica vislumbrada etimologicamente Tomamos a explicaccedilatildeo de

Heidegger a respeito do termo neste caso didaacutetica e objetiva Do diaacutelogo com

professor Tezuka da Universidade Real de Toacutequio nasce o texto ldquoDe uma

conversa sobre a linguagem entre um japonecircs e um pensadorrdquo de 19531954

publicado em A caminho da linguagem Questionado por Tezuka a respeito do

uso dos termos ldquohermenecircuticardquo e ldquofenomenologiardquo em Sein und Zeit ambos

114

posteriormente abandonados por Heidegger o filoacutesofo alematildeo responde a seu

interlocutor

A palavra ldquohermenecircuticordquo vem do verbo grego ἑρμηνεύειν Refere-se ao substantivo que se pode articular com o nome do deus Hermes Ἑρμής num jogo de pensamento mais rigoroso do que a exatidatildeo filoloacutegica Hermes eacute o mensageiro dos deuses Traz a mensagem do destino ἑρμηνεύειν eacute a exposiccedilatildeo que daacute notiacutecia agrave medida que consegue escutar uma mensagem Esta proposiccedilatildeo se transforma em interpretaccedilatildeo da mensagem dos poetas que nas palavras de Soacutecrates no diaacutelogo Iacuteon (534e) ldquosatildeo mensageiros dos deusesrdquo ἑρμηνῆς εἰσιν τῶν θεῶν () Assim hermenecircutico natildeo diz interpretar mas trazer mensagem e dar notiacutecia (HEIDEGGER 2011 pp96-97)

Shem the penman cujo epiacuteteto prova o quanto assumidamente eacute a

encarnaccedilatildeo do poeta tem em Shaun assim seu correspondente mensageiro e

essa esquemaacutetica fica ainda mais clara na dinacircmica da carta da matildee Anna Livia

espeacutecie de musa inspiradora evocada para a realizaccedilatildeo da escrita O ldquoin the

name ofrdquo opera na marcaccedilatildeo dessa impureza de voz da personagem matildee

deixando expliacutecito para o leitor que o conteuacutedo expresso ali percorre um caminho

indireto Faz-se necessaacuterio duvidar do acesso que podemos ter agrave voz que nos

remete o conteuacutedo do que lemos ateacute a chegada de seu monoacutelogo fluvialmente

verborraacutegico Poder-se-ia afirmar que a voz de Anna Livia soacute realmente toma seu

lugar e domina o texto tomando suas reacutedeas ao fim do livro IV sem

mensageiros tramitando mensagens em seu lugar ainda que aparentes

intromissotildees eventuais sempre aconteccedilam Certamente poreacutem a duacutevida que

Finnegans wake impotildee segundo traccedilamos a respeito de voz discursiva

possibilita uma teorizaccedilatildeo a respeito da impossibilidade de se destilar a sincronia

de uma voz uma fala uma entidade ou personagem A improbabilidade desse

isolamento ou dessa purificaccedilatildeo de categorias e instacircncias narrativas nos lanccedila

em aporias textuais diversas confirmando a compreensatildeo de que a leitura dos

capiacutetulos natildeo cumpra expectativas de clareza e de unidade mas que sejamos

sempre obrigados a questionar o que mudou e que nova polifonia em aparente

caotizaccedilatildeo estaacute sendo desenvolvida

115

Outros exemplos dessas simultaneidades diversas estatildeo no capiacutetulo 11

em que vimos a mesma indefiniccedilatildeo entre falas tempos e espaccedilos unindo a fala

embolada coletiva das pessoas ocupando o pub agrave do raacutedio e agrave de uma narraccedilatildeo

de histoacuteria aparentemente nem do pub nem do raacutedio entre as elucubraccedilotildees das

lavadeiras no capiacutetulo de ALP com a sonoridade dos ecos e a presentificaccedilatildeo

de uma seacuterie de falas que ouviram e reproduzem de diversas maneiras as

sessotildees de julgamento de HCE permeadas por intromissotildees os diversos

devaneios oniacutericos que colocam HCE em situaccedilotildees insoacutelitas espalhados por

muitos capiacutetulos e passando pelas metamorfoses das personagens em outras

pessoas e elementos da natureza as margens no capiacutetulo 10 que colocam no

mesmo espaccedilo de paacutegina vozes completamente distintas em origem conteuacutedo

e forma em que cada espaccedilo das margens se destina a um dos irmatildeos Isolda

ocupa as notas de rodapeacute e circundando todo o texto Shem e Shaun Mesmo

nessa divisatildeo de espaccedilo as vozes natildeo estatildeo isoladas as margens laterais

eventualmente se trocam e comentando-se intercaladamente misturam

assuntos e referecircncias desestabilizando a verdade ou a unidade do que seria

tradicionalmente a voz narrativa central

A dita correspondecircncia dicotocircmica entre Shem e Shaun se explicita ainda

na relaccedilatildeo de Shaun como o mensageiro com o deus Hermes Como eacute dito na

citaccedilatildeo de Heidegger o miacutetico Hermes tem uma relaccedilatildeo com a origem da

hermenecircutica ainda que por vias etimoloacutegicas indiretas (passando pelo verbo

ἑρμηνεύειν) Por outro lado Shem o poeta se opotildee a Shaun ainda nesse

quesito um irmatildeo estaacute aberto ao ambiacuteguo enquanto outro se concentra na

interpretaccedilatildeo una Sendo um mensageiro assim como Hermes era mensageiro

dos deuses Shaun se preocupa com a emissatildeo da mensagem com fazecirc-la

alcanccedilar o destinataacuterio exatamente como deve chegar sem extravio ou desvio

Shaun busca verdades ironizando a existecircncia do proacuteprio Wake enquanto

Shem se instala no terreno das possibilidades inclusive da possibilidade de que

o proacuteprio livro se faccedila No livro II capiacutetulo 9 mdash capiacutetulo 1 na divisatildeo de Campbell

e Robinson (2013) ldquoA hora das crianccedilasrdquo mdash os irmatildeos se separam entre as

luzes (Shaun) e as trevas (Shem) caoso caminho confuso do perder-se (Shem)

e a redenccedilatildeo e autocontemplaccedilatildeo (Shaun) isso eacute assinalado como uma

116

separaccedilatildeo quase chocante como de Dom Quixote e Sancho Panccedila de

possibilidade remota

A dicotomia entre os irmatildeos no entanto eacute transgredida na medida em

que se completam na divisatildeo de tarefas materializada pela carta de Anna Livia

Plurabelle O que se daria como uma pura oposiccedilatildeo se dissolve em uma espeacutecie

de paralelismo cada um dos irmatildeos tem seus preceitos seus caminhos que natildeo

se tocam mas seguem lado a lado e ainda que tenham nuances proacuteprias satildeo

dotados de caracteriacutesticas que operam por contraste O que os separa e

diferencia eacute muacutetuo em suas respectivas caracterizaccedilotildees havendo uma uniatildeo

maior que a meramente consanguiacutenea ainda que definitivamente natildeo sejam

personagens intercambiaacuteveis Operam na verdade como as relaccedilotildees entre

todos os familiares do nuacutecleo de Finnegans wake por similaridade e

diferenciaccedilatildeo com a caracterizaccedilatildeo de cada um deles sempre interligada e

passando pelas relaccedilotildees de parentesco mdash seja no incesto seja na continuidade

geracional que gera espelhamento e desdobramento seja nos pares

complementares e assim por diante O tempo do parentesco assim pode

caotizar uma linearidade cronoloacutegica eacute um anacronismo de cruzamentos

diversos mais do que uma uniatildeo ou intersecccedilatildeo de sincronias unitaacuterias mdash de

tempos individuais mdash nem a diacronia familiar como seria se interpretaacutessemos

o coletivo como histoacuteria e memoacuteria

A carta-mamafesta de Anna Livia portanto tem o seu caminho

anticircularizado tornado eliacuteptico com um ldquoretorno deslocadordquo da compreensatildeo

de Jacques Derrida e isso ocorre mesmo antes da chegada da mensagem jaacute

havendo a problematizaccedilatildeo de seu remetente atraveacutes de Anna Livia a

mensagem desloca-se por seus filhos em desvios natildeo rastreaacuteveis Eacute

desintegrada a noccedilatildeo de unidade nesse percurso bem como a possiacutevel

centralidade do emissor Estando a noccedilatildeo de presenccedila e a noccedilatildeo de centro

intimamente ligadas ambas se esfarelam simultaneamente Os espaccedilos de voz

em que os remetimentos se interseccionam seriam no Wake repensados

Finnegans wake entatildeo sendo o proacuteprio livro da noite e do sonho eacute escritura em

fuga do linear que natildeo soacute desvia como se estranha e se exila do terreno comum

117

da centralidade e dos eixos estaacuteveis das repeticcedilotildees criadoras de identidade da

mensagem enviada em linha reta mdash em uma potente polifonia

A distacircncia entre diferentes vozes implica que existam diferentes

temporalidades O filoacutesofo franco-lituano Emmanuel Levinas discorre sobre o

tempo partindo de sua investigaccedilatildeo central a dicotomia do mesmo e do Outro

(que em verdade se estabelecem em relaccedilotildees eacuteticas complexas superando um

caraacuteter meramente dicotocircmico) Em Autrement qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence

(1974) diferencia trecircs possibilidades de leitura temporal sendo a primeira delas

o tempo do mesmo a pura sincronia de um eu que vive seu tempo de um ponto

de vista determinado ateacute o ponto em que natildeo afetado por alteridades paralelas

O estabelecimento de uma diacronia soacute se daacute com a intromissatildeo desse outro

intromissatildeo em geral inevitaacutevel de maneira que natildeo haacute mais um soacute passado

nem uma perspectiva unificada do tempo presente A uacuteltima instacircncia seria o

ponto do anacronismo em que a dualidade eu-outro como duas entidades

paralelas ou entrecruzadas se multiplica em uma diversidade de passados

futuros e uma impossibilidade de presente uacutenico e de uma perspectiva solitaacuteria

intocada

Uma obra literaacuteria apresenta em princiacutepio uma sincronia haacute o texto uma

porccedilatildeo de enunciados congelados prontos a serem evocados num presente

qualquer de um leitor que com ele se depare Soacute pode ser lido em um presente

um instante na linearidade de cada letra que sucede outra cada palavra e linha

em ordem inertes Nessa interaccedilatildeo haacute o cruzamento de outro tempo apenas a

partir da abordagem leitor um mesmo um eu que vai com sua sincronia proacutepria

seu tempo presente agrave abordagem do texto No entanto a sincronia que se

apresenta natildeo eacute ativada senatildeo no contato com ele na leitura por algueacutem Ao

inveacutes de um cruzamento entatildeo poder-se-ia pensar na retirada do texto de uma

suspensatildeo temporal A obra ocupa um lugar de nenhum tempo ateacute que eacute

chamada a ocupar um presente de algueacutem cuja temporalidade lhe eacute imposta e

domina a interaccedilatildeo leitor-texto Se pensarmos tempo de maneira contiacutegua a

espaccedilo a obra ocuparia assim um natildeo-lugar A sincronia do texto acompanha

a linha do tempo de quem quer que seja o centro dessa conduccedilatildeo seja um

118

narrador personagem seja um narrador onisciente que nos guia pelo trilho dos

fatos seja fluxo de consciecircncia e o tempo do monoacutelogo interior

Isso nos impotildee o problema que sincronia eacute inerente ao Wake Haacute uma

incompatibilidade ainda entre o tempo presente do leitor e a natildeo-sincronia do

texto com que se depara Havendo uma sincronia na obra o leitor e seu tempo

se relacionam de um para um com o tempo do outro no entanto natildeo se pode

definir com precisatildeo (ou mesmo sem) a linearidade do Wake menos ainda

definir um personagem que detenha essa perspectiva de quem parte a

temporalidade No monoacutelogo poderiacuteamos afirmar que haveria a sincronia de

Anna Livia no entanto as intromissotildees satildeo tantas que vemos claramente um

cruzamento de temporalidades diversas Isso eacute favorecido pela forma do

monoacutelogo por seu proacuteprio modo assim como seria em qualquer tentativa de se

trabalhar a partir de um fluxo de consciecircncia e transformaacute-lo em teacutecnica natildeo eacute

poreacutem justificado por ele uma vez que haacute a possibilidade de que um monoacutelogo

interior narrado tenha uma temporalidade sincrocircnica absolutamente palpaacutevel O

final (se podemos assim dizer) de Finnegans wake no entanto sugere um

continuum que aponta a um futuro agrave substituiccedilatildeo da geraccedilatildeo anterior pela que

a sucede O capiacutetulo se inicia com ldquoSandhyasrdquo que lembra tanto Sunday (o Sol

que estaacute nascendo na manhatilde indica o novo dia jaacute que o sonho de Earwicker

pode ter se passado em uma noite de saacutebado) quanto um saṃdhiacute (सधि) termo

sacircnscrito que significa ldquojunccedilatildeordquo ou ldquoarticulaccedilatildeordquo e remete agrave cosmologia do

Bramanismo em que se denominam os intervalos entre as yugas (as quatro

idades satya treta dwapar e kali yuga) de sandhyā e sandhyānsa Assim o

encaminhamento para o final mdash do sonho do livro de uma idadefase mdash se daacute

de maneira prismaacutetica sem encaminhar pontualmente um fechamento temporal

especiacutefico pois natildeo se limita agrave cronologia hindu nem agrave da narrativa Os tempos

verbais satildeo claramente confusos dizem-se anulando-se ldquoThe child a natural

child thenown by the mnames of (aya aya) wouldbewas kidnapped at na age

of recent probably possibly remoterrdquo (FW 59534-36)45 A incerteza se explicita

45 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoUm menino filho natural entatildeo conhecido pelos mnomes de (aya aya) podequefoi raptado em data recente provavelmente tambeacutem pode que mais remotardquo

119

ldquowould berdquo e ldquowasrdquo se unem no que eacute passado e ao mesmo tempo possibilidade

a hesitaccedilatildeo confirma um ldquoprovavelmenterdquo recente mas tambeacutem possivelmente

ldquoremotordquo Natildeo haacute apenas duacutevida entre um ou outro tempo como garantir que o

passado de fato passou

Se concebermos o Wake todo como um livro de sonho seja do Humphrey

seja de Anna Livia talvez a consciecircncia de quem sonha seja essa figura

centralizadora A temporalidade do sonho poreacutem se instalaria como outro oacutebice

a essa definiccedilatildeo jaacute que natildeo possui um tempo cronometraacutevel e portanto sua

calculabilidade se dissipa de qualquer maneira Sem evocaacute-las

conscientemente memoacuterias compotildeem qualquer sonho mas podem ser

distorcidas constituindo devaneios que satildeo na verdade nada aleacutem de

conjecturas ficcionais Imiscuem-se desejos que vislumbram um certo futuro do

acircmbito do previsiacutevel e ainda o presente do sonhador que dorme em sono leve

ou pesado em algum lugar calmo ou barulhento confortaacutevel ou natildeo apoacutes ter

tido um dia bom ou ruim agitado ou tedioso Se pensaacutessemos no sonho fora da

ficccedilatildeo portanto muito haveria de ser considerado na ficccedilatildeo se eacute concebido um

personagem que sonha a narrativa ou que sonha uma escritura mdash para falarmos

junto com Freud mdash certamente natildeo se partiria do princiacutepio de que haacute uma

sincronia pois o tempo dessa produccedilatildeo oniacuterica natildeo seraacute uno mas antes de

aspecto muacuteltiplo

Citamos sincronia anacronismo termos previsiacuteveis em uma abordagem

sobre o tempo Podemos no entanto empregaacute-los de uma maneira mais

especiacutefica a partir de alguns apontamentos levinasianos que perpassam a

questatildeo da temporalidade pela via eacutetica e ontoloacutegica A eacutetica metafiacutesica de

Emmanuel Levinas eacute pautada em investigaccedilotildees fenomenoloacutegicas cuidadosas e

no olhar sobre as exigecircncias morais a alteridade e a justiccedila mdash que constituem

o ser humano desde o face a face um-Outro ateacute o todo da vida em sociedade

Um desdobramento do tiacutetulo de uma de suas obras Autrement qursquoecirctre ou au-

delagrave de lrsquoessence isto eacute aleacutem do ser outramente que ser outro que (no sentido

negativo) ser indica a intenccedilatildeo de ultrapassar o ser como concebido ateacute entatildeo

nas discussotildees da ontologia remetendo indubitavelmente ao legado daquele

que resgatou a questatildeo-do-ser (Seinsfrage) ateacute entatildeo esquecida Martin

120

Heidegger Em Sein und Zeit (1927 2012) Ser e tempo o filoacutesofo de Meszligkirch

retoma o ser das trevas em que este estava envolto apontando resumidamente

trecircs preconceitos que imperavam como entraves de sua investigaccedilatildeo a saber

sua suposta inerente universalidade o atravanco inevitaacutevel em qualquer

tentativa de definiccedilatildeo e por fim sua totalidade em si autossuficiecircncia

Aquilo que de modo fragmentaacuterio e numa primeira investida foi um dia arrancado dos fenocircmenos pelo supremo esforccedilo do pensamento de haacute muito se trivializou () Sobre a base dos pontos-de-partida gregos da interpretaccedilatildeo do ser construiu-se um dogma que natildeo soacute declara supeacuterflua a pergunta pelo sentido de ser mas aleacutem disso sanciona sua omissatildeo Diz-se ldquoserrdquo eacute o conceito mais universal e o mais vazio e como tal resiste a toda tentativa de definiccedilatildeo (HEIDEGGER 2012 p 33)

Estabelece jaacute na introduccedilatildeo de seu tratado que o objetivo eacute ldquoa elaboraccedilatildeo

concreta da pergunta pelo sentido de lsquoserrsquordquo e que o tempo assim como aparece

em segundo lugar no tiacutetulo constitui no conteuacutedo de toda a obra apenas uma

ldquometa provisoacuteriardquo no que for pertinente para direcionar ldquoo horizonte possiacutevel de

todo entendimento-do-ser em geralrdquo (Ibid p 31) O tempo eacute um caminho

interpretativo para o ser este sim o centro da investigaccedilatildeo de Heidegger Assim

partindo da revisitaccedilatildeo do que a ontologia relegou como terras infeacuterteis

desenvolveu seu Dasein matriz do entendimento-do-ser o ente cuja maior

possibilidade-de-ser eacute a de perguntar (Frager perguntante) Esse retorno agrave

ontologia agrave maacutexima pergunta ontoloacutegica primordial eacute acompanhado entatildeo pela

temporalidade sentido do ser do Dasein na medida em que se constitui como

aquilo a partir de que ele eacute capaz de entender e processar um algo

Assim como a Seinsfrage permaneceu intocada Heidegger destaca que

o conceito de tempo se manteve praticamente inalterado desde Aristoacuteteles

mesmo passando por Henri Bergson (dizendo que o filoacutesofo francecircs eacute mais

aristoteacutelico do que pensa) e reteve tambeacutem o preconceito de um entendimento

vulgar da funccedilatildeo ontoloacutegica autossustentaacutevel Natildeo se pode poreacutem escapar

desse outro resgate Direciona-se assim agrave ldquodestruiccedilatildeo do conteuacutedo transmitido

pela ontologia antiga tarefa a ser levada a cabo pelo fio-condutor da questatildeo-

do-serrdquo (Ibid p 87) mas uma destruiccedilatildeo (Destruktion) que ldquonatildeo quer sepultar o

121

passado no nadardquo pois ldquoela tem um propoacutesito positivo e sua funccedilatildeo negativa

permanece inexpressa e indiretardquo (Ibid p 89) Toda essa necessidade eacute

justificada

Porque o ser soacute pode ser apreendido cada vez na perspectiva do tempo a resposta agrave questatildeo-do-ser natildeo pode residir numa proposiccedilatildeo isolada e cega A resposta natildeo eacute entendida na mera reiteraccedilatildeo do que eacute enunciado em proposiccedilatildeo sobretudo se eacute posta em circulaccedilatildeo como resultado flutuando no ar para mero registro de uma informaccedilatildeo sobre um ldquoponto-de-vistardquo que talvez se afaste do modo de tratamento ateacute agora usual (Ibid p 79)

O tempo como horizonte interpretativo do ser natildeo eacute uma escolha

heideggeriana por assim dizer em termos fundantes A ontologia antiga

interpretando o ser a partir e atraveacutes do mundo isto eacute da natureza acaba por

fazecirc-lo a partir do tempo O sentido de ser asism eacute παρουσία ou ουσία

presenccedila Heidegger cita brevemente que a tese ontoloacutegica de Parmecircnides de

Eleia influenciou diretamente Tomaacutes de Aquino que a absorveu no que diz

respeito agrave alma do ser humano e do νοεῖν o perceber que guiam a questatildeo-do-

ser e colaboram para caracterizar o Dasein em sua precedecircncia ocircntico-

ontoloacutegica No poema fragmentado ldquoSobre a naturezardquo ou ldquoDa naturezardquo de

Parmecircnides uacutenica obra considerada sobrevivente do filoacutesofo preacute-socraacutetico

encontra-se um eixo que se disseminou por toda a praacutetica filosoacutefica do ocidente

pois o mesmo eacute pensar e ser

[] τὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι

(Frag III)

Para Parmecircnides o ser estaacute no que aparece e eacute inuacutetil tentar conceber o

natildeo-ser de maneira que se faz necessaacuterio para a definiccedilatildeo do ser pensando

nos termos do que se daacute agrave apariccedilatildeo e portanto no tempo presente Os dois

termos-chave gregos aqui assinalados παρουσία e νοεῖν respectivamente

presenccedila e perceber levam a um outro intimamente ligado ao modo da

122

discussatildeo de Heidegger bem como a Levinas e outros filoacutesofos preocupados

com questotildees proacuteximas o substantivo φαινόμενον e seu verbo correlacionado

φαίνεσθαι respectivamente ldquoaquilo que aparecerdquo e ldquoaparecerrdquo

O trecho da obra remanescente de Parmecircnides explica poeticamente a

sua ontologia calcada nas relaccedilotildees que apontamos como envolvidas nessa teia

vocabular

Vamos vou dizer-te ndash e tu escuta e fixa o relato que ouviste ndash

quais os uacutenicos caminhos de investigaccedilatildeo que haacute para pensar

um que eacute que natildeo eacute para natildeo ser

eacute caminho de confianccedila (pois acompanha a verdade)

o outro que natildeo eacute que tem de natildeo ser

esse te indico ser caminho em tudo ignoto

pois natildeo poderaacutes conhecer o que natildeo eacute natildeo eacute consumaacutevel

nem mostraacute-lo []

Εἰ δ΄ ἄγ΄ ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας

αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι

ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

Πειθοῦς ἐστι κέλευθος - Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ -

[5] ἡ δ΄ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι

τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν

οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν - οὐ γὰρ ἀνυστόν -

οὔτε φράσαις[]

(Frag II)46

O brilho da aparecircncia natildeo significa aiacute apenas um clarificar das coisas no

momento do mostrar pois de alguma maneira acaba por esconder o ser ainda

assim somente a presenccedila pode definir sua existecircncia Como dissemos essa

necessidade funda uma relaccedilatildeo forccedilosa com o tempo presente que se

estabelece como referecircncia para qualquer ente Justifica-se aiacute que Heidegger

46 A traduccedilatildeo de Joseacute Gabriel Trindade Santos de 2002 eacute pautada no texto original (como tambeacutem citamos aqui) estabelecido pelo filoacutelogo claacutessico escocecircs John Burnet na ocasiatildeo de sua traduccedilatildeo para o inglecircs feita em 1892 Todas as citaccedilotildees de Parmecircnides inclusive a da paacutegina anterior pertencem a essa mesma traduccedilatildeo

123

tenha se dedicado tambeacutem ao tema do tempo era necessaacuterio discorrer sobre

ele para falar do ser especialmente tendo a intenccedilatildeo de desmontar essa

ontologia claacutessica por ldquoserrdquo e ldquotempordquo serem de fato inseparaacuteveis nessa

definiccedilatildeo ontoloacutegica tradicional

Tamanho paradigma resulta em um dito ldquoprivileacutegio do presenterdquo nas

investigaccedilotildees filosoacuteficas a esse respeito sobre o qual discorre Jacques Derrida

em Marges de la philosophie (1972 1991)

O privileacutegio do presente (Gegenwart) teria jaacute marcado o Poema de Parmecircnides O legein e o noein deviam apreender um presente sob a espeacutecie daquilo que permanece e persiste proacuteximo e disponiacutevel exposto diante do olhar ou ao alcance da matildeo um presente na forma da Vorhandenheit Essa presenccedila apresenta-se eacute apreendida no legein ou no noein segundo um processo estrutura temporal eacute de pura apresentaccedilatildeo de pura permanecircncia (reinen ldquoGegenwiirtigensrdquo) (DERRIDA 1991 p 66)

Derrida natildeo aponta e ateacute reitera um certo reducionismo linguiacutestico que

Heidegger comete ao considerar οὐσία exatamente o mesmo que presenccedila que

seria a παρουσία repetindo essa mesma relaccedilatildeo Heidegger afirma diversas

vezes ldquoa determinaccedilatildeo do sentido do ser como παρουσία ou como οὐσία o que

ontoloacutegico-temporalmente significa lsquopresenccedilarsquordquo (HEIDEGGER 2012 p 95) ldquoO

ente que nele [no ser] e para ele se mostra e eacute entendido como o propriamente

ente recebe portanto sua interpretaccedilatildeo em referecircncia ao pre-sente (Gegen-wart)

isto eacute concebido como presenccedila (οὐσία)rdquo (Ibid p 97) A palavra παρουσία

significa de fato presenccedila tanto temporal quanto espacial natildeo sendo mero

sinocircnimo de seu termo formante οὐσία particiacutepio presente do verbo ldquoserrdquo na

forma feminina (o que o aproxima da traduccedilatildeo consagrada para ldquosubstacircnciardquo

que Heidegger critica ou algo que se aproxime de aquilo que vem sendo) que

forma tambeacutem ἀπουσία aquilo que natildeo eacute que natildeo vem sendo (por analogia

ausecircncia)

A rigor esse termo em grego eacute composto por uma dupla maneira de dizer o ser a essecircncia diz o ser no sentido ldquodo que eacute a coisardquo e a existecircncia no sentido ldquode que a coisa eacuterdquo () Mesmo levando em conta

124

que eacute esse segundo sentido [o que excede a referecircncia existencial] que prevalece ele natildeo eacute o uacutenico motivo pelo qual Heidegger traduz ousiacutea por Seiendheit em um claro esforccedilo para imprimir uma adaptaccedilatildeo literal dessa ambiguidade do termo em grego () Ousiacutea fazia parte do vocabulaacuterio corrente entre os gregos e indicava e caracterizava bens imobiliaacuterios propriedades e riquezas () Nesse sentido o ser equivale a um bem que deve sempre ser presente e constante ousiacutea eacute em primeiro lugar o que permance (para) eacute parousiacutea uma presenccedila constante (BOUTOT apud NASSER 2006 pp 117-118)

Essa polissemia entatildeo natildeo pode ser reduzida a uma equivalecircncia pura

entre οὐσία e παρουσία Haacute ainda a possibilidade de que οὐσία seja ainda em

certos contextos filosoacuteficos essecircncia A relaccedilatildeo do tempo com a ontologia tanto

de Platatildeo quanto no que diz Parmecircnides em seu poema fragmentado eacute inegaacutevel

e permanece intacta de maneira que o ser seja um permanecer no presente

permanecer na presenccedila estar no presente

Jacques Derrida traz a aporia de Aristoacuteteles na Fiacutesica IV mostrando que

o paradigma trazido mdash o dito privileacutegio do presente mdash jaacute era conhecido natildeo soacute

por Heidegger mas em toda a histoacuteria das investigaccedilotildees ontoloacutegicas desde a

Antiguidade O presente como tempo padratildeo caracteriza o tempo na metafiacutesica

Todo outro tempo passado ou futuro eacute tomado a partir desse conceito central

No entanto ldquoo tempo eacute o nome da impossiacutevel possibilidaderdquo de maneira que um

agora eacute o mesmo e outronovo ao mesmo tempo

O sentido do tempo eacute pensado a partir do presente como natildeo-tempo E natildeo pode secirc-lo de outro modo nenhum sentido (qualquer que seja o sentido em que o entendamos como essecircncia como significaccedilatildeo do discurso como orientaccedilatildeo do movimento entre uma arquia e um telos) pocircde jamais ser pensado na histoacuteria da metafiacutesica de outro modo senatildeo a partir da presenccedila e como presenccedila (Ibid p 87)

No monoacutelogo de Anna Livia vecirc-se talvez pela uacutenica vez em todo o livro

uma supremacia do tempo presente se instaurando com o despertar mdash ainda

que o sonho precise de uma pessoa dormindo em um dado tempo ldquopresenterdquo o

sonhador se ausenta desse tempo em direccedilatildeo ao tempo do sonho que se

caotiza Com o anuacutencio do fim da noite no entanto vemos uma recuperaccedilatildeo

125

gradual de um tempo como o trecho a seguir em que uma contagem intercalada

entre as frases faz espeacutecie de escansatildeo

Passing One We are passing Two From sleep we are passing Three Into the wikewades warld from sleep we are passing Four Come hours be ours But still Ah diar ah diar And stay (FW 60833-36)47

Como os passos de um baleacute ou de uma danccedila que indica o tempo da

coreografia e finalmente o fim dos movimentos (com ldquostayrdquo) e em meio a suspiros

de Anna Livia (ah dear) encaminhamo-nos para longe do breu das sombras

que natildeo progridem no tempo mas pairam entre fases fluidas Anna Livia natildeo

instaura no entanto com a chegada do dia sincronia ou diacronia puras ldquoYet

no body is presente here which was not there before Only is order othered

Nought is nulled Fuitfiat (FW 61313-14)48 Apesar de estar sendo instaurada

uma espeacutecie de nova etapa externa ao oniacuterico Anna Livia nos afirma que soacute o

que muda eacute a ordem mas nada estaacute sendo efetivamente deixado para traacutes

relegado ao ostracismo de um tempo passado nada eacute nulo ldquoFuitfiatrdquo tem o fuit

que lembra ldquofugirrdquo do francecircs e fiat o latim de fez-se feito estaacute feito indica que

algo foge mas algo tambeacutem se faz aparece (fiat lux)

Haacute passagem sim como ela anuncia reiteradas vezes do sonho para o

despertar da noite para o dia para a claridade no entanto o passado natildeo se

cristaliza como antecedente que nada mais tem de relaccedilatildeo com o que vem uma

vez que as reminiscecircncias natildeo se afastam O que eacute ciacuteclico pode instaurar uma

espeacutecie de privileacutegio do presente na medida em que com o estatuto do ricorso

tudo retornar significa se fazer presente novamente Natildeo haacute rememoraccedilatildeo de

algo que ficou no passado e cuja presenccedila foi substituiacuteda por plena ausecircncia

Ao contraacuterio o que haacute eacute uma eterna (re)presentificaccedilatildeo do que se passou seja

47 ldquoPassagem Um Passamos Dois Do sono estamos passando Trecircs Ao vasto visto mundo do sono passamos Quatro Venham eras a nossas horas Silente Ah dea ah dia E staacuterdquo 48 ldquoPoreacutem aqui natildeo tem ningueacutem que jaacute caacute natildeo esteve antes Soacute que a ordem foi outrada Nada se anulou Fuitfiatrdquo

126

com o caraacuteter espectral do que sempre ronda do que resta em caraacuteter

fantasmaacutetico e fantasmagoacuterico seja do efeitvo retorno de acontecimentos

reiterados O tempo se reinventa de maneira que o conceito de lembranccedila e ideia

de memoacuteria se redefinam diante do fim que se aproxima ao mesmo tempo em

que anuncia uma revinda

What has gone How it ends Begin to forget it It will remember itself from every sides with all gestures in each our word Todayrsquos truth tomorrowrsquos trend Forget remember Have we cherished expectations Are we for liberty of perusiveness Whyafter what forewhere A plainplanned liffeyism assemblements Eblaniarsquos conglomerate horde By dim delty Deva Forget (FW 61419-22)49

No livro XI de suas Confissotildees (398 dC 1987) Agostinho de Hipona

reiterou a supremacia do presente ao afirmar a definiccedilatildeo da (anti)temporalidade

do eterno ldquoNa eternidade nada passa tudo eacute presente ao passo que o tempo

nunca eacute todo presenterdquo (AGOSTINHO 1987 216) Periacuteodos anteriores agrave criaccedilatildeo

divina recaem nessa problemaacutetica ldquoPoreacutem se antes da criaccedilatildeo do ceacuteu e da terra

natildeo havia tempo para que perguntar o que faziacuteeis entatildeo Natildeo podia haver

lsquoentatildeorsquo onde natildeo havia tempordquo (Ibid 1987 217) Agostinho define a

temporalidade a partir do presente pois define o passado e o futuro por contraste

e diferenciaccedilatildeo no entanto Agostinho tambeacutem traz a possibilidade do natildeo-

tempo e desloca o centro ainda do aparecimentopresenccedila para o

desaparecimentoausecircncia

49 ldquoO que se passou Como haacute de terminar Comeccedila a deslembraacute-lo Isso haacute de se remembrar de todos os lados com todos os gestos em cada uma de nossas palavras Verdade hoje verso amanhatilde Desmembra remembra Afagamos expectativa Somos pela liberdade de investigaccedilatildeo Por que apoacutes o que eacute prassempre Plenos planos de liffeyismo nas assembleias da horda conglomerada de Eblacircnia Junto agrave turva dialeacutetica Diva Olovidiarrdquo

127

Quanto ao presente se fosse sempre presente jaacute natildeo seria tempo mas eternidade Mas se o presente para ser tempo tem necessariamente de passar para o preteacuterito como podemos afirmar que ele existe se a causa da sua existecircncia eacute a mesma pela qual deixaraacute de existir Para que digamos que o tempo verdadeiramente existe porque tende a natildeo ser (Ibid p 218)

Sendo uma abordagem natildeo necessariamente do acircmbito da investigaccedilatildeo

ontoloacutegica Agostinho natildeo busca a definiccedilatildeo do tempo em si pois volta-se agrave

percepccedilatildeo Isso se evidencia quando ele faz efetivamente a pergunta

especiacutefica do tempo

O que eacute por conseguinte o tempo Se ningueacutem mo perguntar eu sei se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta jaacute natildeo sei Poreacutem atrevo-me a declarar sem receio de contestaccedilatildeo que se nada sobreviesse natildeo haveria tempo futuro e se agora nada houvesse natildeo existiria o tempo presente (Id)

Sua resposta deixa claro que saber o que eacute o tempo significa aiacute estar na condiccedilatildeo

de um ser que pode vivecirc-lo percebendo suas mudanccedilas Agostinho diz os

termos ldquotempo futurordquo e ldquotempo presenterdquo uma divisatildeo que evidencia o fato de a

sua pergunta pelo ser do tempo natildeo buscar de fato uma investigaccedilatildeo mais que

perceptiva da temporalidade lidando com sua vivecircncia em vez de buscar sua

definiccedilatildeo ou conceituaccedilatildeo Talvez fosse a resposta mais indicada para o tempo

do Finnegans wake sem questionamentos ao nos depararmos sabemos algo

sobre pois vivemos a temporalidade do texto jaacute se tivermos de explicaacute-la eacute que

os problemas se iniciam

A relaccedilatildeo entre uma consciecircncia de temporalidade e a dificuldade de bem

compreender o tempo tambeacutem se mostra textualmente O capiacutetulo 13 que

Campbell e Robinson denominam Shaun before the people (ldquoShaun diante do

povordquo) lembra Agostinho ou um diaacutelogo socraacutetico com a forma de perguntas e

respostas em que Shaun vai respondendo a quatorze perguntas uma a uma

Com uma abertura no capiacutetulo que se preocupa em situar as horas o que abala

o apego ao presente (aleacutem de esse apego existir no proacuteprio meacutetodo de

128

questionamentos e reacuteplicas imediatas) eacute a consciecircncia de uma sombra ou algo

de uma meia-noite que se aproxima ldquoCome not here Black Switch outrdquo (FW

40317)50 A consciecircncia que no caso eacute a consciecircncia de uma outra dimensatildeo

atraveacutes de medo e receio abala o terreno temporal de bases fixas no tempo

presente ainda que o ciclo e o ricorso tambeacutem afirmem essas bases

O tempo do texto caso coincida com o tempo da leitura mdash que o faz

reviver como a execuccedilatildeo da partitura faz com a composiccedilatildeo musical mdash eacute o

presente puro da experiecircncia O tempo narrativo mdash se deixarmos de lado

temporariamente a concepccedilatildeo de Finnegans wake como livro que descarta a

narrativa e desmantela seus elementos mdash poderia ser entendido em uma

primeira tentativa de imediato como tempo circular dada a sua estrutura e a

inspiraccedilatildeo nas Idades da teoria de Giambattista Vico Isso seria adequado para

pensarmos a relaccedilatildeo entre esse tempo presente da leitura e a dada circularidade

textual mdash o que se faz em ciclo sendo um eterno retorno teria necessariamente

de engendrar por conseguinte um eterno presente no esteio do que afirma

Agostinho pois eacute a continuidade que desconhece iniacutecio e fim divisatildeo que

seccione ou corte o que tem por definiccedilatildeo a fluidez Isso leva agrave aporia de que

fala Agostinho entre considerar que o ciclo engendra um presente supremo mas

por outro lado se soacute houvesse presente natildeo haveria tempo e sim eternidade

No entanto se o texto jaacute natildeo eacute em si ciacuteclico e como vimos com Derrida

tem seu centro deslocado e uma caracterizaccedilatildeo possivelmente eliacuteptica mdash ainda

que em verdade o ciclo seja viquiano seja joyciano seja nietzschiano natildeo eacute

simplesmente repeticcedilatildeo pura e simples mas sim retorno com diferenciaccedilatildeo isto

eacute natildeo soacute passiacutevel como obrigatoriamente submetido a mudanccedila e a renovaccedilatildeo

mdash essa relaccedilatildeo de presente se quebraria A isso se relaciona intrinsecamente

o fato de que o texto escritural reinvocando Derrida lida com o porvir diferente

do futuro Essa outra qualidade temporal modifica toda a dinacircmica textual na

medida em que o porvir eacute o tempo do acontecimento daquilo que vem sem

espera que surge do vazio da ausecircncia por outro lado o texto que lida com

futuro calculaacutevel iniacutecio-meio-fim e sequecircncia narrativa eacute o que lida com a

50 ldquoNatildeo te quero nero Sombra sumardquo

129

presenccedila e a previsibilidade Somente o porvir deixa rastros espectrais daquilo

que natildeo se previu mdash e eacute disso que todo a leitura do texto literaacuterio estaacute

inevitavelmente permeada

Emmanuel Levinas filoacutesofo que compreende a histoacuteria como

escatoloacutegica natildeo como progressista e que afirma sua eacutetica metafiacutesica a partir

da existecircncia do Outro tem compreensatildeo temporal que pode nos ajudar a

compreender a dificuldade de se enxergar uma sincronia no texto de Finnegans

wake Para Levinas a tradiccedilatildeo que supotildee a existecircncia do tempo de um eu estaacute

equivocada por desconsiderar o face a face desconsiderar o Outro Assim uma

sincronia isto eacute a assunccedilatildeo de um uacutenico presente natildeo passa como tempo da

subjetividade de um indiviacuteduo de mera presunccedilatildeo por entender o tempo

objetivamente (por mais inicialmente contraditoacuterio que isso possa soar) Isso

poderia ser resolvido pela adiccedilatildeo do tempo diacrocircnico que passa a existir na

relaccedilatildeo com o outro e instaura um tempo que eu subjetividade individual natildeo

vivi Haveria uma disjunccedilatildeo anacrocircnica entre sincronia e diacronia como

princiacutepio da descontinuidade que provaria a impossibilidade de um tempo

objetivo ou de uma compreensatildeo objetiva do tempo reduzindo isso a mera

pretensatildeo A sincronia eacute uma temporalidade insular enquanto a diacronia

expandiria esse isolamento A futuridade do futuro natildeo vem como porvir no meu

horizonte e natildeo posso reduzir o tempo do Outro ao meu o tempo do Outro eacute o

Outro do meu tempo

Eacute a terceira categoria sobre a qual discorre Levinas na supracitada obra

Autrement qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence contudo que mais nos interessa e

que complementa fundamentalmente as noccedilotildees expostas anteriormente Eacute

somente no reconhecimento de que haacute na verdade muitos presentes e de que

nem mesmo o proacuteprio eu sendo um eu ordinaacuterio deteacutem o seu presente mdash

menos ainda seu passado reduzido a lembranccedilas embaccediladas e seu futuro

incerto mdash que se poderia compreender verdadeiramente o tempo Isso porque

somente um eu ideal ou melhor o ser real que dita o que o presente eacute poderia

ser premissa de sua existecircncia e efetivamente deter ou reter o presente O

reconhecimento dessa impossibilidade aliado ao reconhecimento essencial de

que existe o face a face de que existe o Outro cujo tempo me eacute tatildeo inapreensiacutevel

130

quanto ele mesmo o eacute haveria o reconhecimento de que sincronia e diacronia

portanto satildeo maneiras ainda defeituosas de se compreender o tempo para o

humano A terceira categoria fundamental que adveacutem dessas reflexotildees eacute o

tempo do anacronismo Reconhecendo-se a existecircncia de muitos presentes o

anacronismo reconhece ainda que o surgimento de um Outro abre natildeo soacute o meu

tempo para o delea mas tambeacutem haacute tempos de muitos outros de muitos tempos

mortos ou ainda por virem a nascer O tempo consiste em uma relaccedilatildeo com o

que natildeo pode ser assimilado com aponta Levinas natildeo se trata de ter boa

memoacuteria ou natildeo mesmo que suas limitaccedilotildees tenham importacircncia nisso tudo

mas o central eacute a impossibilidade de que toda a dispersatildeo do tempo pudesse se

juntar em um soacute presente Por isso sincronia e diacronia satildeo insuficientes para

essa compreensatildeo enquanto o anacronismo respeita a existecircncia das nuances

variadas dos aspectos temporais da existecircncia

Essa compreensatildeo levinasiana eacute ao que nos parece brilhantemente

adequada para a compreensatildeo do tempo no texto do Wake justamente sendo

uma obra que reuacutene simultaneamente mortos e vivos remorrentes e

ressuscitantes mdash e aqui se faz mister evocarmos o revenant de que fala

tambeacutem Derrida evocando novamente o caraacuteter espectral de presenccedila-

ausecircncia simultacircnea e vinda inesperada isto eacute cuja chegada se faz somente no

porvir como o fantasma de um autor que retorna e se faz presente de alguma

outra forma por meio de sua obra O tempo como concebido por Giambattista

Vico como paradigma natildeo anula a pluralidade do anacronismo sobre o qual

Emmanuel Levinas discorre ao contraacuterio compreende-se que as Idades

viquianas abarquem presentes diversos e natildeo partam de uma consciecircncia

temporal uacutenica Poderiacuteamos falar em caotizaccedilatildeo mas em verdade caotiza-se

na medida em que se foge do linear cronoloacutegico sincrocircnico uno sem que a

caracterizaccedilatildeo necessariamente se reduza de maneira especiacutefica a pura e

simplesmente caos

Na caracterizaccedilatildeo de onde reside Shem o irmatildeo que pode ser o alterego

do artista (e ateacute do proacuteprio Joyce) onde convive com passado morte alteridades

diversas assim como na prisatildeo morte e ressurreiccedilatildeo de Humphrey Chimpden

Earwicker pai de Shaun Shem e Isobel e marido de Anna Livia vemos essa

131

fusatildeo de vida e morte que natildeo controla o tempo em fases imisciacuteveis Shem estaacute

em meio a ldquofresh horrors from Hadesrdquo (FW 18335)51 e por ldquoTumult son of

thunder self exiled in upon his ego a nightlong a shaking betwixtween White or

reddr hawrors noondayterrorised to skin and bone by na ineluctable phantomrdquo

(FW 1846-9)52 trecho em que inevitavelmente nos lembramos da inelutaacutevel

modalidade do visiacutevel de Ulysses que aqui se transformou em fantasma como

visiacutevel

Interessante notar como o capiacutetulo imediatamente posterior ao de Shem

que seraacute o Anna Livia Plurabelle em que lavadeiras confabulam sobre fatos e

fofocas termina com a noite caindo em cada vez mais escuridatildeo e menos

informaccedilatildeo factual menos visatildeo clara como se a cena fosse se apagando e

perdendo a forccedila a cada vez que se repete a palavra ldquonightrdquo Em meio a

paranoias e sensaccedilatildeo de adormecimento ldquonightrdquo daacute o tom de queda gradual mdash

natildeo como a queda monumental de Earwicker no primeiro fragmento que

tambeacutem se repete pelo livro mas uma quebra branda Em vez de pontuar um

momento o efeito principal eacute com ldquonightrdquo prosseguir evocando a escuridatildeo e

ao mesmo tempo mantendo-se progressivamente suspensos os ecos dessas

conversas

Dark hawks hear us Night Night My ho head halls I feel as heavy as yonder stone Tell me of John or Shaun Who were Shem and Shaun the living sons and daughters of Night now Tell me tell me tell me elm Night night Telmetale of stem or stone Beside the rivering waters of hitherandthithering waters of Night (FW 21536-2165)53

Sendo todo um livro da noite como se coloca usualmente e como o

proacuteprio Joyce jaacute pontuou em oposiccedilatildeo a Ulysses as misturas de escuridatildeo noite

quebra de fala e silecircncio seriam naturalmente recorrentes Ainda assim elas

acontecem de maneira especialmente controlada em momentos cruciais e

51 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2003) ldquonovos horrores do Hadesrdquo 52 ldquoTumulto filho do trovatildeo auto-exilado no seu ego tremores da noite inteira entre horrores brancos e rubros aterrorizado ao meio-dia da pele aos ossos por um fantasma inelutaacutevelrdquo (idem) 53 ldquoNoturnos falcotildees nos escutam Noite Noite Tomba a testa Pende pesada qual pedra aquela Que me falas de John ou de Shaun Shem e Shaun viventes filhos ou filhas foram de quem A noite noita Fala-me fala-me fala-me carvelha Noite noite Conta-me contos de Stem ou Stone Junto agraves rio-revantes aacuteguas de correntes-e-recorrentes aacuteguas De Noiterdquo (idem)

132

especiacuteficos no Wake como que desestabilizando a noccedilatildeo temporal de noite mdash

ou de uma noite ou de noite como algo definido temporal e ateacute espacialmente

mdash em vez de partirem para o que seria uma caracterizaccedilatildeo temporal A noite

funciona como algo que subverte a ineacutercia do tempo presente sendo uma noite

sem duraccedilatildeo reverberando ainda em uma seacuterie de evocaccedilotildees de ldquonightrdquo como

se ela natildeo estivesse presente mas invadisse aos poucos agrave medida que o apelo

acontece A palavra ldquoNightrdquo caracteriza o indefinido em vez de definir (seja uma

ou seja qualquer) noite especiacutefica

Aquilo que natildeo eacute definido pontualmente natildeo pode consequentemente

fazer parte de uma evoluccedilatildeo temporal da ordem do linear com cenas

consecutivas que se somam sem se sobreporem progredindo do passado para

o futuro Isso natildeo deve necessariamente acontecer somente na hipoacutetese da

eternidade pura como disse Agostinho a respeito do tempo presente que natildeo

tem passado e futuro como constrastes o que retorna sempre em ciacuterculos pode

tambeacutem ter como corolaacuterios antesagoradepois ao mesmo tempo em que natildeo

teria iniacutecio fundadororiginaacuterio nem fim escatoloacutegico Retornando a Autrement

qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence para caracterizar a oposiccedilatildeo do anacronismo

que reuacutene essas vozes e ausecircncias-presentes em relaccedilatildeo agrave ideia de linearidade

que uma sincronia necessariamente conteacutem Emmanuel Levinas cita a tradiccedilatildeo

fenomenoloacutegica como caracterizadora da unidade de sincronia que natildeo

considera a alteridade e a eacutetica citando Edmund Husserl Com esse gancho

esclarecedor entatildeo Levinas explica

Chez Husserl la conscience interne du temps et la conscience tout court se deacutecrivent dans la temporaliteacute de la sensation ldquosentir crsquoest lagrave ce que nous tenons pour la conscience originaire du tempsrdquo et ldquola conscience nrsquoest rien sans lrsquoimpressionrdquo Temps impression sensible et conscience se conjuguent () Parler conscience crsquoest parler temps (LEVINAS 1978 pp 56-57)54

54 ldquoEm Husserl a consciecircncia interna do tempo e a consciecircncia em si se descrevem na temporalidade da sensaccedilatildeo ldquoeacute no sentir que podemos ter a consciecircncia originaacuteria do tempordquo e ldquoa consciecircncia natildeo eacute nada sem a impressatildeordquo Tempo impressatildeo sensiacutevel e consciecircncia se conjugam () Falar de consciecircncia eacute falar de tempordquo

133

Emmanuel Levinas considera entatildeo uma temporalidade especiacutefica para

a fenomenologia que considera a consciecircncia de um indiviacuteduo como premissa

para qualquer investigaccedilatildeo eacute essa temporalidade o que resulta em uma

sincronia natildeo atravessada pela alteridade Ao contraacuterio dessa concepccedilatildeo

Levinas descreve o ldquoAnachronisme qui ateste une temporaliteacute diffeacuterente de celle

qui scande la consciencerdquo (Ibid p 141)55 A isso podemos contrapor uma outra

ponte com o Ser e tempo de Martin Heidegger quanto ao aspecto do ente como

ldquodentro do tempordquo Heidegger interfere com o apontamento da historicidade

como um modo-de-ser temporal do Dasein Nessa abordagem o tempo ou o

tempo presente tambeacutem deixa de ser isolado pela experiecircncia sincrocircnica

individual

A determinaccedilatildeo da historicidade eacute anterior ao que se chama de histoacuteria (o acontecer de-histoacuteria-universal) Historicidade significa a constituiccedilatildeo-de-ser do ldquogestar-serdquo do Dasein como tal sobre cujo fundamento eacute unicamente possiacutevel algo assim como a ldquohistoacuteria universalrdquo e o histoacuterico a ela pertencente O Dasein em seu ser factual eacute cada vez como jaacute era e ldquoo querdquo jaacute era Expressamente ou natildeo ele eacute seu passado E natildeo soacute no sentido de que seu passado como que desliza ldquoatraacutesrdquo dele possuindo ele o passado como se fosse uma propriedade subsistente que por vezes volta a ter efeito sobre ele (HEIDEGGER 2012 p 81)

Assim o privileacutegio do presente que citamos anteriormente como foi

apontado por Derrida em referecircncia ainda a Aristoacuteteles perde seu aspecto de

vivecircncia possiacutevel como sendo algo puramente nodo instante algo

complementando pelo que acrescenta Heidegger no excerto acima de Ser e

tempo o passado integra o presente (como o revenant) e natildeo se encerra atraacutes

dele ou antes dele intacto e passiacutevel de retorno somente por

rememoraccedilatildeorecordaccedilatildeo (entendida como espeacutecie de movimento de lembranccedila

feito intencionalmente) Uma suposta divisatildeo temporal entre as fases entatildeo que

separe o passado do presente natildeo eacute possiacutevel considerando o passado como

essa historicidade que reveacutem O presente no entanto ainda eacute o tempo central

55 ldquoAnacronismo que atesta uma temporalidade diferente daquela que mede a consciecircnciardquo

134

da leitura Em Escritura do retorno Mallarmeacute Joyce e o meta-signo Piero Eyben

relaciona o que propotildee ser o resultado da empreitada de Joyce mdash ldquodestruiccedilatildeo

do signordquo mdash com uma ldquoagoridade da letrardquo ldquo() a experiecircncia joyceana da

destruiccedilatildeo do signo deve ser compreendida como um limite da experiecircncia do

agora () a significacircncia eacute sua uacutenica respostardquo (EYBEN 2012 pp 650-651) A

marca do presente natildeo eacute pura nem pode ser destilada em uma fase temporal

solitaacuteria

Nessa des-fundaccedilatildeo de toda origem podemos ver a proacutepria cena da presenccedila enquanto elemento presente que se relaciona com outra coisa que natildeo ele mesmo guardando em si a marca do elemento passado e deixando-se jaacute moldar pela marca de sua relaccedilatildeo com o elemento futuro () Todo rastro eacute sem presente e sem arquia uma vez que se constroacutei como a siacutentese de ldquomarcasrdquo que se estabelecem em um espaccedilamento (devir-tempo do espaccedilo) (Ibid p 651)

No capiacutetulo 9 do livro II livro das crianccedilas temos uma espeacutecie de

encenaccedilatildeo teatral Satildeo situados personagens e ainda o tempo ldquoTime the

pressantrdquo (FW 22117)56 O presente mais parece um verbo no geruacutendio ou uma

forma nominal de um verbo indicando uma accedilatildeo que remete ao presente

movimentado em movimento natildeo inerte e recortado Mesmo na ficccedilatildeo dentro

da ficccedilatildeo eacute o tempo dinacircmico que se faz Nas palavras do tradutor do Wake

Donaldo Schuumller ldquoO fixo dissolve-se no que flui Cultura do presente Qual se

tudo se embala em vir-a-serrdquo (2003 p 96) Aqui o presente natildeo se faz em

eternidade pura e ciacuteclica mas no porvir que se instala a expectativa do que pode

vir eacute diferente da futuridade do futuro certo previsto mdash e portanto calcado no

tempo presente que o planeja O porvir ao contraacuterio faz do presente uma pura

expectacircncia naquilo que se tece como limiar de ausente e presente por ser a

expectativa do que natildeo se pode de fato esperar Se o futuro no escapa pelos

dedos e o passado resta o presente soacute pode ser uma contaminaccedilatildeo geral dessa

fludez de ricorso torrencial

56 ldquoTempo o pressanterdquo (traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller 2003)

135

Finnegans wake muito mais questiona do que afirma seu proacuteprio tempo

em vias expliacutecitas Mesmo no fim do livro quando se encaminharia para um

fechamento e portanto para o teacutermino a sutura a closure Anna Livia nos

encaminha para o desembocar do rio mdash no mar no retorno ao seu curso no

ricorso na fluidez que eacute seu destino em repeticcedilatildeo mas repeticcedilatildeo em sempre

inovaccedilatildeo mdash que natildeo se situa com precisatildeo temporal O livro IV se abre com

ldquoSandhyas Sandyas Sandhyasrdquo (FW 5931) Segundo Donaldo Schuumller haacute aiacute

referecircncia a Sanctus Sanctus Sanctus (que aparece tambeacutem em ldquoXanthos

Xanthos Xanthosrdquo mdash FW 2359) e a sandhi palavra do sacircnscrito que significa

paz ou crepuacutesculo Muito mais pode ser dito sobre essa abertura aleacutem da

saudaccedilatildeo latina religiosa o que vem do sacircnscrito pesa sua presenccedila em um

significado riquiacutessimo

O termo do sacircnscrito sandhyā como pode ser transliterado de सनधया

pode significar uniatildeo ao mesmo tempo em que eacute diferenciaccedilatildeo divisatildeo eacute o

crepuacutesculo ou o nascer do sol ao mesmo tempo em que eacute a escuridatildeo da

madrugada ou da manhatilde eacute transiccedilatildeo uniatildeo e impossibilidade de uniatildeo de dois

opostos claro e escuro dia e noite comeccedilo e fim Eacute justamente a articulaccedilatildeo

entre aquele instante do meio que natildeo se pode chamar somente de iniacutecio nem

somente de fim eacute ambos ao mesmo tempo Eacute o momento de reiniacutecio e portanto

de redenccedilatildeo e renovaccedilatildeo assim como de fim de enterrar de sumir de natildeo ver

Tem-se um dia todo pela frente concomitantemente poreacutem natildeo se tem mais

um dia que acaba de findar A palavra eacute absolutamente adequada indica tanto

iniacutecio quanto fim e ainda significa intervalo entremeio fase que antecede uma

e sucede outra As relaccedilotildees possiacuteveis satildeo muitas Lidar com a morte por

exemplo eacute lidar com algo que se inicia povoado por uma ausecircncia Luto se faz

em elipse Natildeo se supera um passado mas se convive com ele ateacute que ele

povoe o presente de maneira cada vez mais transluacutecida e menos materialmente

formada e visiacutevel como o presente pode nos parecer na imediaticidade

fenomecircnica do instante

136

Direcionando-se ao fim no mesmo livro dotado de um soacute capiacutetulo Anna

Livia diz ldquoLike almost now Howrdquo (FW 62629-30)57 Em inglecircs pode-se

compreender ldquolike almost nowrdquo como o mesmo que ldquocomo quase agorardquo de

maneira que eseja sendo indicado ou referenciado um ldquoagorardquo natildeo pontual ou

natildeo pontuado talvez fluido por ser indefiniacutevel o agora o eacute quase agrave medida que

o presente escapa Logo ela anuncia mais contundentemente a substituiccedilatildeo de

geraccedilotildees com a passagem do tempo

And can it be itrsquos nnow fforvell Illas I wisht I had better glances to peer to you through this baylightrsquos growing But yoursquore changing alcoosha yoursquore changing from me I can feel Or is it me is Irsquom getting mixed Brightening up and tightening down Yes yoursquore changing sonhusband and yoursquore turning I can feel you for a daughterwife from the hills again (FW 62633-36 6271-3)58

Anna Livia daacute lugar agrave filha Isobel na ordem natural familoar e aos filhos

Shem e Shaun assim como seu marido seraacute substituiacutedo O espaccedilo das

memoacuterias (ldquoAnd let her rain now if she likes Gently or strongly as she likes

Anyway let her rain now if she likes I done my best when I was letrdquo --- FW 62711-

1359) Isobel Isabel Issy que eacute tambeacutem Nuvoletta a nuvem que chove e

preenche o rio mas eacute formada a partir dele Anna Livia abre espaccedilo ao

protagonismo da filha que a sucede no fluir e o ricorso eacute fechado no ciclo natural

que metaforiza o das relaccedilotildees familiares

O fluir-ricorso eacute mais que o fechamento do ciclo que realiza o movimento

circular e repete o mesmo percurso em cadeia eacute primordialmente a

impossibilidade de diferir o fechamento da (re)abertura em momento-iacutenterim

entre a morte e a vida que unem em Finnegans wake o anacronismo daquilo que

natildeo se unitariza em tempo vivido por uma consciecircncia agrave diferenciaccedilatildeo que se

faz com o ciclo que se modifica com as geraccedilotildees com as reverberaccedilotildees do que

57 ldquoQuase como agora Comordquo na traduccedilatildeo de Schuumller (2003) 58 ldquoSeraacute que eacute agora nnossrsquouacuteltimo adeus Illaacutes Oxalaacute eu tivesse melhores vistas para te contemplar agrave luz alvorecente da Bahia Mas tu jaacute natildeo bates meupulso tu te abates de mim bem o sinto Ou isto eacute eu eacute Estou confusa Illo minando-me estou me dilu indo Sim estaacutes mudando filhemarido posso sentir-te para uma filhesposa dos montes outravezrdquo (idem) 59 ldquoChovela agora se eacute isso que adora Chovisco ou trombada como lhe agrada Chova no entanto visto que vinda eacute minhrsquohora Dei meu recado enquanto me foi dadordquo (idem)

137

se vatildeo ainda ecoando no futuro com as singularidades O desmantelamento

desse presente puro o transforma em algo contaminado de porvir ainda

permeado do rastro do passado e acima de tudo indefiniacutevel como tempo palpaacutevel

a natildeo ser se emoldurado em conjunturas ficcionalizantes

A continuidade eacute assegurada por meio da evocaccedilatildeo de Anna Livia dos

que a seguiratildeo apelo e chamamento que fazem a anunciaccedilatildeo da chuva de

NuvolettaIsobel A matildee de certa maneira dando a sua permissatildeo mas sendo

antes forccedilada pelas circunstacircncias do tempo que natildeo para daacute lugar sem

desaparecer por completo A temporalidade essencial de todo o Wake eacute a da

substituiccedilatildeo que natildeo substitui pois manteacutem o que perpetua mas tambeacutem

aniquila da mesma maneira como o crepuacutesculo pode ser confundido com o

nascer do Sol

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

139

Foi reafirmado o quanto defendemos o afastamento da compreensatildeo una

de literatura seja com Finnegans wake seja com qualquer outra obra escritural

Isso pode ser natildeo uma saiacuteda sagaz que se esquivaria de questionamentos

importantes sobre a estrutura e os desdobramentos semacircnticos do texto

intrincado de Joyce mas sim uma abertura ao perigoso desfrutar dos problemas

Em vez de uma estrateacutegia uma compreensatildeo de que eacute da incompreensatildeo que

podem surgir boas leituras inclusive acadecircmicas Para partir da incompreensatildeo

aiacute sim nada mais adequado desafiador e divertido do que o Finnegans wake

Em vez de resolver os problemas responder os questionamentos e fechar o livro

com a certeza veemente de que se compreendeu e jaacute se pode dizer ldquotermineirdquo

abre-se o livro novamente E novamente E incessantemente

140

Isso natildeo eacute necessariamente preocupante restaria talvez saber se o

problema eacute conosco com o texto ou se consiste na impossiacutevel acomodaccedilatildeo a

uma teoria literaacuteria que demanda explicaccedilotildees que natildeo podemos dar Ou ateacute

possamos talvez mas necessariamente optando por um caminho que reduz a

uma interpretaccedilatildeo mdash um trabalho hermenecircutico que busca o dogma ao inveacutes de

lidar por que natildeo com mais de uma possibilidade simultacircnea Foi instaurada a

heranccedila de lidar com a literatura como lidamos com as escrituras sagradas que

podem oferecer uma poeacutetica que abre para a fruiccedilatildeo mas acima de tudo pautam

ensinamentos que devem ser objetivos pelo bem do funcionamento de um

sistema externo ao texto Literatura poreacutem natildeo eacute o que diremos dela Como os

guias para o Finnegans wake dizem em geral desculpando-se

antecipadamente isto mdash esta dissertaccedilatildeo esta pesquisa mdash natildeo pretende

abarcar uma leitura totalizadora Talvez jaacute fosse a hora de isso natildeo precisar ser

dito apenas para o Wake mas sobre qualquer livro de literatura Eacute claro que haacute

uma dificuldade em abrirmos matildeo do status de ldquoautoridade emrdquo mas a literatura

precisa dessa distacircncia O cuidado cientiacutefico dela eacute esse

Considerando contudo as demandas de ensino baacutesico de literatura nas

escolas por exemplo ou mesmo as demandas acadecircmicas que exigem

porventura uma produtividade que se possa comprovar como acomodar o

Finnegans wake ao que a teoria ou a leitura hermenecircutica teorizada demandam

Aliaacutes como mdash e por que mdash acomodar qualquer obra literaacuteria a uma

sistematizaccedilatildeo que esquematiza seus elementos de maneira engessada O

ponto sequer eacute uma recusa natildeo mais tatildeo inovadora ou a reforma do sistema de

qualquer teoria de qualquer aporte mas o entendimento claro de como isso

afeta uma leitura e da hierarquia entre essas instacircncias se determina o que um

livro pode ter para funcionar e o que seu gecircnero permite que se pressuponha a

seu respeito Nesse sentido o questionamento do tempo tatildeo filosoacutefico e

abstrato tornar-se-ia praacutetico quando pensaacutessemos no impacto das concepccedilotildees

de histoacuteria da literatura cacircnone sistema O tempo feito em uma diacronia das

obras-primas o tempo sobre o qual repousam as obras que importam e o tempo

do ostracismo das relegadas agrave margem Esse tempo nos importa somente para

ser questionado

141

O manual tradicional e didaacutetico Teoria literaacuteria de Hecircnio Tavares traz o

excerto ldquoO objeto da ciecircncia da literaturardquo de Fundamentos da interpretaccedilatildeo e

da anaacutelise literaacuteria (1948) de Wolfgang Kayser que por sua vez cita a

separaccedilatildeo severa entre poesia e literatura feita pelo italiano Benedetto Croce

A poesia estaria fora da literatura Natildeo seria no entanto facilmente classificada

pelos criteacuterios formais de versos e estrofes mas sim um termo valorativo

qualitativo Dessa maneira ateacute mesmo Os Lusiacuteadas ficariam de fora de Poesia

(Dichtung) nessa classificaccedilatildeo e ldquodela separado por um abismordquo (KAYSER in

TAVARES 2002 p 42) Citamos essa curiosa e incisiva classificaccedilatildeo em

tentativa de delimitar o que eacute digno de ser apreciado como Poesia e o que natildeo

eacute para apontar a ironia se essa classificaccedilatildeo aparentemente excessivamente

limitante natildeo pressupotildee que Poesia seja tatildeo somente forma oposta agrave prosa

talvez Finnegans wake entrasse para o rol da Poesia e de fora da literatura

tivesse sua qualidade canonicamente reconhecida

No texto ldquoChe cosrsquoegrave la poesiardquo Jacques Derrida toma outros rumos na

problematizaccedilatildeo do que eacute literatura e do que eacute poesia A figura do ouriccedilo surge

para apontar uma experiecircncia que jamais eacute inofensiva de maneira que uma

relaccedilatildeo com o texto literaacuterio eacute uma relaccedilatildeo da qual nunca se pode sair incoacutelume

Natildeo se lecirc sem apelo e aqui evocamos novamente a carta mamafesta de Anna

Livia como momento condensador desse apelo ou sua posterior anaacutelise no

capiacutetulo 6 em que o meacutetodo de perguntas e respostas lanccedila o questionamento

e a demanda inevitavelmente tambeacutem ao leitor ou mesmo o de Shaun iniciando

o capiacutetulo 13 dizendo ldquoHark () Horkrdquo (FW 40313)60 Em Escritura do retorno

assinala-se que

Derrida inicia sua problemaacutetica () com a renuacutencia com certo desligamento do saber Saber em termos de poemaacutetica eacute saber renunciar o que se sabe Nesse sentido a poesia exige outra forma de conhecer que talvez seria aquela do ditado que se pode ldquover como ditadordquo A poesia natildeo eacute uma aparecircncia mdash ou ainda natildeo eacute uma ldquoparecenccedilardquo sua accedilatildeo eacute daquilo que se vecirc fora do parecido mas dentro de uma representabilidade que eacute sua proacutepria reflexatildeo (EYBEN 2012 p 259)

60 ldquoEscuta () Escuchardquo (2003)

142

Como dissemos uma necessidade de autenticaccedilatildeo do texto por um

sistema literaacuterio que forja sua histoacuteria e seu cacircnone natildeo nos preocupa (o apego

ao sistema que sobrevive e mutila experiecircncias literaacuterias talvez sim) Tambeacutem

citado por Hecircnio Tavares diz Afracircnio Peixoto ldquoO gecircnero das obras-primas em

geral eacute pessoal e privativo delasrdquo (PEIXOTO in TAVARES 2002 p 158)

exemplificando sua afirmaccedilatildeo citando Rabelais Quixote Montesquieu Mesmo

que fosse relativamente possiacutevel de se definirem as classificaccedilotildees ainda assim

permanecem dispensaacuteveis no lanccedilar-se ao texto e lanccedilando-nos deparamo-nos

com o segredo indiziacutevel proacuteprio do escritural

Se indiziacutevel evidentemente tambeacutem inclassificaacutevel sem que isso seja um

defeito e distante de ser uma abertura a qualquer coisa a uma leitura tatildeo frouxa

que fosse vazia ou esvaziada por uma relativizaccedilatildeo desmedida Finnegans wake

eacute aberto e amplo mas cheio e povoado de caminhos sem que tenha reacutedeas

apertadas demais para direcionar uma soacute leitura ou uma rota preferencial como

todo texto escritural tem entradas diversas e a literatura natildeo se faz em

hierarquias atraveacutes das quais nos prestamos a buscar a verdade do texto que

estaraacute no fim do caminho percorrido Se houvesse uma linha reta a ser seguida

ou mesmo um labirinto desse tipo natildeo haveria segredo no texto mdash ou haveria

um segredo que se perderia sendo revelado e nesse caso deixaria de existir o

que desmoronaria o entendimento de segredo do texto literaacuterio como aquilo que

se manteacutem secreto mesmo apoacutes repetidas leituras e mergulhos no texto por

mais profundos que possam ser Em Gecircneses genealogias gecircneros e o gecircnio

em que fala de Heacutelegravene Cixous Jacques Derrida assevera sobre o segredo da

literatura

Laacute se encontra como segredo da literatura o poder infinito de manter indecidiacutevel e portanto irrevelaacutevel o segredo do que ela diz ela a literatura ou ela Cixous () O segredo da literatura eacute pois o proacuteprio segredo Eacute o lugar secreto onde ela se institui como a possibilidade mesma do segredo o lugar de sua gecircnese ou de sua genealogia proacutepria Isto eacute verdade em todos os gecircneros literaacuterios (DERRIDA 2005 p 22)

143

Tambeacutem pertinente eacute o que nesse mesmo lugar Derrida diz a respeito

ainda de Cixous e de uma escrita que desperta do oniacuterico ldquopalavra escrita ao

despertar endereccedilada e destinada ao despertar Como se o despertar ao sair

do sonho em seu wake estivesse ainda na vigiacutelia do sonhordquo (Ibid p 45) e ldquoo

proacuteprio sonho eacute o que interrompe o sono O sonho desperta O sonho vela e ele

vela a endereccedilar injunccedilotildees inflexiacuteveis agrave vigiacuteliardquo (Ibid p 43) Ainda que essas

palavras de Derrida natildeo sejam expliacutecita e diretamente sobre o Wake nelas o

sonho natildeo eacute anestesia e no Wake tambeacutem natildeo ocorre ateacute o oposto o sonho se

mescla ao despertar e agrave ressureiccedilatildeo O sonho para Derrida e para Joyce em

nada inerte e tambeacutem nada linear como a vida real eacute o terreno das maiores e

multiplicadas possibilidades bem como da atividade de certa maneira caoacutetica e

do tempo do anacronismo do entrecruzamento de alteridades e dos ecos

polifocircnicos

Encaminhamos este fim mdash que certamente nos faz retornar retornar ao

texto ao Wake a Joyce agrave literatura mdash lembrando que a temporalidade da leitura

eacute a materialidade do tempo da literatura eacute o tempo efetivamente vivido na

ressureiccedilatildeo do texto mas eacute tambeacutem temporalidade significativamente esquiva

a tentativas de definiccedilatildeo O presente da (de uma e de qualquer) leitura eacute

constantemente desestabilizado (e em Wake isso se faz sem misericoacuterdia) e

nunca se tem uma base fixa na qual se agarrar a natildeo ser o proacuteprio abismo

escritural

Em termos joyceanos natildeo temos um rio de significado mas sim o rio como rasura da chuva que eacute em si uma forma de conduccedilatildeo dos significantes como respostas mdash reacuteplicas mdash ainda textuais O sujeito que lecirc tambeacutem eacute perdido rasurado pois sua referecircncia deve ater-se apenas agrave escritura uacutenica satisfaccedilatildeo exigida O sujeito cavado na aparecircncia eacute soterrado pelo barranco chuvoso dos sintagmas deslocados (EYBEN 2012 pp 258-259)

Em termos de temporalidade textual buscamos entender relaccedilotildees

diversas aleacutem da temporalidade da leitura ou da literatura lidavivida entraram

aqui o tempo do ausente do morto que se faz espectro (aleacutem do que acontece

com HCE o proacuteprio morto ressuscitado como Tim Finnegan o eacute na balada

irlandesa a que Joyce se remete) presenccedila e ausecircncia como dispositivos de

144

uma temporalidade do anacronismo presenccedilas que se fazem tambeacutem no

chamamento no apelo e na demanda A estrutura paradigmaacutetica viquiana

oferece subsiacutedios jaacute trabalhados mas o Wake com seu caraacuteter oniacuterico acoberta

uma seacuterie de cruzamentos e noacutes que se vistos mais de perto enriquecem a

leitura Pode ser que anaacutelises de textos de escritura de literatura em vez do

senso comum de que sejam elucidativas e iluminadoras sejam natildeo somente

dispensaacuteveis mas tambeacutem excessivas produzindo mesmo interferecircncias

tornando a jaacute difiacutecil leitura por si soacute ainda mais barroca e excessivamente pesada

de detalhes a serem enxergados Caminhos mais interessantes por

conseguinte seriam os da teorizaccedilatildeo que interesse por si soacute que possam

acompanhar a leitura do Wake sem causar ruiacutedos nela tampouco pretendendo

clarificaacute-la em objetivaccedilatildeo pretensiosa

Finnegans wake se estabelece no entremeio da verdadeira oposiccedilatildeo entre

circularidade e linearidade em que o ciacuterculo pode ser pensado se percorrido nos

moldes da demeure nomade derridiana e natildeo em ciclos de revisitaccedilatildeo Se

tomarmos o Wake a partir do tempo mensurado que se insere no caraacuteter circular

do sentido homogecircneo e infinito teremos de pensaacute-lo sublinhe-se em seu

caraacuteter precisamente literaacuterio de forma distinta de pensarmos essa mesma obra

a partir do tempo de simultaneidade que considere a estrutura circular sem

redundacircncia sem repeticcedilatildeo e sem divisotildees de linearidade

145

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Page 4: O FLUIR-RICORSO E OS TEMPOS DE FINNEGANS WAKE...O fluir-ricorso e os tempos de Finnegans wake. Dissertação de Mestrado. Orientador Piero Luis Zanetti Eyben. Brasília: Universidade

aos meus pais

AGRADECIMENTOS

Satildeo 23 anos de agradecimentos diversos Vamos laacute paciecircncia aos meus pais que haacute tanto tempo reforccedilam os valores que sempre me passaram minha matildee linda fonte de amor na sua forma mais pura mulher que mais admiro no mundo e que sintetiza comprometimento devoccedilatildeo e moral meu pai minha referecircncia maacutexima cuja paixatildeo e eacutetica tanto admiro e que sempre me influenciaram aleacutem de ser certamente a mais incriacutevel combinaccedilatildeo de compositor escritor e professor que possa existir aos meus queridos avoacutes que descansam em paz em algum lugar e agrave minha avoacute wanda por quem meu amor eacute absolutamente infinito aos meus dois irmatildeos e agraves minhas duas irmatildes camila irmatilde mais velha para quem ainda olho com olhar de crianccedila tamanha eacute minha admiraccedilatildeo por seu talento sensibilidade e forccedila felipe maninho mais velho em quem por toda a infacircncia me espelhei mdash e de quem tanto peguei discos e bonecos do power rangers sem permissatildeo miguel que desde que veio ao mundo se mostra cada vez mais como um grande ser humano julinha que tornou nossas vidas mais doces e mais risonhas mdash e do jeito que o tempo passa em breve vai estar lendo ela mesma esta frase estendo isto aqui ainda aos meus irmatildeos de consideraccedilatildeo (nada de meios irmatildeos mdash tenho somente irmatildeos inteiros) tia sandra e e meus tantos familiares todos que provam que amor natildeo se divide mas se multiplica agravequele que estaacute sempre laacute para mim haacute sete anos e a quem tanto amo marcos oliveira agrave isabella carrazza que desempenha o papel primordial de amiga inseparaacutevel desde 2001 ao igor versiani e ao henrique barbosa os melhores amigos que os uacuteltimos anos me deram e que espero ter sempre por perto natildeo importa em que lugar do mundo estejam porque temos natildeo um cantinho mas verdadeiros latifuacutendios no coraccedilatildeo uns dos outros agrave joana melo que me ofereceu sua amizade tatildeo especial por toda a graduaccedilatildeoampaleacutem e a quem soacute posso agradecer por isso e fazer jus a essa troca agrave stephanie winkler pela sua amizade tatildeo profunda e inigualaacutevel ao pedro couto meu grande amigo com quem tenho a sintonia sagitta em tantos niacuteveis ao lucas lyra que agraves vezes me entende como poucos e a quem quero tatildeo bem agrave raquel campos amiga-irmatilde de companheirismo tatildeo vasto fez desse tempo de mestrado algo muito melhor agrave ludimila menezes amiga-em-forma-bruta enche meus dias de beleza com sua enorme sinceridade de alma que me enche de forccedila e alegria

ao rafael machado que se desdobra em mil e eu tanto admiro por seu apoio incomensuraacutevel e pelo conviacutevio agrave sarah jeanne cujo companheirismo fez toda a diferenccedila e por quem nutro o maior carinho possiacutevel e tambeacutem ao victor fialho e agrave sayuri hirako queridos que coloriram esse tempo junto conosco agraves feministas-realmente-amigas-queer-poacutes-modernxs-pan-normativxs grupo no qual a mariana ferreira me incluiu e cujo nome jaacute define a genialidade amanda quadrado ana paula jacob liacuteria nogueira lorena figueiredo luciana torres marcella fernandes thauana tavares cada uma de vocecircs tem um espaccedilo de carinho e amor dentro de mim ao joyce e agrave sua filha que o inspirou lucia mas tambeacutem ao proust ao dante agrave emily dickinson ao truffaut e agrave sofia coppola agrave fiona apple agrave brody dalle e ao rufus wainwright ao georges bizet e ao giacomo puccini agraves cidades brasiacutelia com sua vastidatildeo e belo horizonte com seu acolhimento agrave muacutesica a arte que tanto quanto literatura e filosofia me manteacutem viva e manteacutem em mim o interesse por me manter viva ao prof piero eyben mais do que orientador desta dissertaccedilatildeo modificou para sempre minha relaccedilatildeo com a graduaccedilatildeo em Letras e com a academia e cujas aulas nunca mais quis parar de frequentar desde 2011 pelos tantos ensinamentos pelo acolhimento e pela capacidade de redefinir esse meu percurso obrigada minha gratidatildeo natildeo tem limites e este trabalho natildeo existiria sem tudo isso agrave Capes pelo apoio financeiro agrave Universidade de Brasiacutelia pela importacircncia que ganha mais espaccedilo em mim desde 2009 a todos que passaram pela minha vida deixando alguma marca e que natildeo nomeei aqui certamente me tornei outra depois de vocecircs digo seus nomes em silecircncio obrigada

First we feel Then we fall

(FW 62711)

Now follow we out by Starloe

(FW 38230)

Resumo

FREITAS Luiacutesa O fluir-ricorso e os tempos de Finnegans wake Dissertaccedilatildeo de Mestrado

Orientador Piero Luis Zanetti Eyben Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 2014 151 p

Esta dissertaccedilatildeo percorre investigaccedilotildees acerca do tempo tanto como instacircncia narrativa tanto

como conceito de teorias filosoacuteficas a partir da obra uacuteltima do escritor irlandecircs James Joyce

(1882-1941) Finnegans wake (1939) O aporte teoacuterico perpassa a fenomenologia e em especial

a filosofia de Jacques Derrida (1930-2004) O ricorso termo que proveacutem da obra do filoacutesofo

Giambattista Vico (1668-1744) eacute aqui relido como fluir-ricorso em uma ampliaccedilatildeo das

investigaccedilotildees sobre o tempo no Finnegans wake para aleacutem da Scienza nuova (1725) seu

paradigma central O tempo como tambeacutem formador de memoacuteria diacronia coletiva

compartilhada traz agrave tona o questionamento da inserccedilatildeo ou exclusatildeo de certos textos no cacircnone

da histoacuteria da literatura e como esse sistema pocircde lidar com as peculiaridades do texto de

Finnegans wake desde a recepccedilatildeo de seus contemporacircneos modernistas Sobre o tempo do

proacuteprio texto suas relaccedilotildees com muacutesica e outras artes outro importante filoacutesofo para o trabalho

eacute Emmanuel Levinas (1906-1995) Lidando com sincronia diacronia e anacronismo traccedilamos

as possibilidades de entender o tempo do texto do Wake com o apoio desses termos como

abordados pelo filoacutesofo Ainda nesse acircmbito eacute tambeacutem discutido em parte deste trabalho o

tempo da traduccedilatildeo mdash ou seus tempos mdash e apontadas as traduccedilotildees brasileiras para o texto de

James Joyce A leitura das traduccedilotildees eacute feita sempre no esteio das discussotildees do tempo bem

como o questionamento sobre o cacircnone literaacuterio e a histoacuteria da literatura que partem igualmente

dessas noccedilotildees passando tambeacutem por Agostinho Martin Heidegger e Paul Ricoeur

Palavras-chave James Joyce Finnegans wake Tempo Jacques Derrida Fenomenologia

Abstract

FREITAS Luiacutesa The flowing-ricorso and the times of Finnegans wake Masterrsquos dissertation

Supervised by Piero Luis Zanetti Eyben Brasiacutelia University of Brasiacutelia 2014 151 p

This dissertation investigates different notions of time considered as a narrative concept as well

as a philosophical concept and center of philosophical theories from the last work by the Irish

author James Joyce (1882-1941) Finnegans wake (1939) The theoretical framework goes

through phenomenology and especially the philosophy of Jacques Derrida (1930-2004) The

ricorso term we take from the works of the Italian philosopher Giambattista Vico (1668-1744) is

reinterpreted here as a flowing-ricorso invoking the movement of a river broadening the

investigations on time concerning Finnegans wake beyond what we can see with Scienza nuova

(1725) its central paradigm The notion of time also as a memory a shared collective diachronic

vision elicits the questioning of the insertion or exclusion of some texts among the canonical ones

in the history of literature and how this system can deal with the peculiarities of Finnegans wake

ever since its first reception by the contemporary modernists About the time within the text itself

its relations with music and other forms of art another important philosopher here is Emmanuel

Levinas (1906-1995) Dealing with synchronic diachronic and anachronism we find the

possibilities of understanding the time of the text in the case of Finnegans Wake with the support

of Levinasrsquo approach of these terms Still concerning those themes the time of a translation is

also brought to this analysis mdash or its sundry times mdash and the different Brazilian translations for

James Joycersquos text are indicated The approach of this analysis of translations is based on the

investigation of the concept of time and the questions concerning the literary canon and the history

of literature all of these being connected notions also reading the works of Agostinho Martin

Heidegger and Paul Ricoeur

Keywords James Joyce Finnegans wake Time Jacques Derrida Phenomenology

Sumaacuterio

INTRODUCcedilAtildeO ndash Wake e environs11

CAPIacuteTULO I ndash Wake em pauta30

1 Algo parecido com nada 31

2 Sui generis38

3 Fluidez vida-morte46

4 Paralelos psicanaacutelise teoria da relatividade muacutesica51

CAPIacuteTULO II ndash Finnegans wake e o tempo da traduccedilatildeo64

CAPIacuteTULO III ndash Leitura luto elipse82

CAPIacuteTULO IV ndash Fluir e retorno108

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS138

BIBLIOGRAFIA145

INTRODUCcedilAtildeO WAKE E ENVIRONS

Hightime is ups be it down into outs according

Premente eacute o tempo que seja feito do teu jeito1

(FW 23916)

1 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2002) O mesmo valeraacute para as proacuteximas citaccedilotildees de Finnegans wake em portuguecircs exceto quando indicado de resto citaccedilotildees diversas desacompanhadas da indicaccedilatildeo de autoria satildeo traduccedilotildees livres feitas por mim

12

Decidir ler Finnegans wake eacute decidir por lanccedilar-se ao texto

Ainda que sua escrita tenha sido iniciada pouco tempo apoacutes a publicaccedilatildeo

de Ulysses (1922) que jaacute despertara uma recepccedilatildeo que ia de manifestaccedilotildees de

repuacutedio a grandes elogios passando por problemas com censura e acusaccedilotildees

de obscenidade Finnegans wake (1939) foi publicado mais de dezesseis anos

depois de o dublinense James Augustine Aloysius Joyce (1882-1941) comeccedilaacute-

lo e por volta de dois anos antes de seu falecimento em Zurique no dia 13 de

janeiro de 1941 Nesse iacutenterim acabou por ficar ofuscada a publicaccedilatildeo de

Pomes Penyeach (1927) livro que tambeacutem foi escrito em um longo intervalo de

tempo de 1904 a 1924 apesar de mdash bem ao contraacuterio das duas obras entre as

quais estaacute intercalado mdash consistir em treze curtos poemas

13

O contexto em que Finnegans wake foi produzido eacute permeado por

algumas peculiaridades aleacutem do longo tempo de escrita e reescrita a publicaccedilatildeo

de fragmentos do que ateacute entatildeo se chamava Work in progress possibilitou que

Joyce jaacute tivesse enquanto ainda escrevia concreta noccedilatildeo do impacto que sua

produccedilatildeo final poderia causar mdash fosse entre quem a lesse fosse entre quem

natildeo leu mas ouviu falar fosse entre quem comeccedilou a ler e desistiu ateacute os que

leram mas tiveram a sensaccedilatildeo de natildeo terem lido (talvez a mais comum no

primeiro contato com o Wake)

Soma-se a isso o problema de visatildeo de Joyce decorrente de um quadro

de glaucoma que se agravava cada vez mais obrigando-o a passar por mais de

dez cirurgias e a buscar consultas com meacutedicos de diferentes lugares em busca

de alguma melhora Chegou ao ponto de natildeo conseguir mais ler nada impresso

passando a ter de escrever em uma caligrafia enorme para conseguir enxergar

melhor usar um tapa-olho que ficou famoso em algumas de suas fotografias e

ditar alguns trechos de fragmentos do Finnegans wake O entatildeo jovem escritor

Samuel Beckett chegou a fazer esse trabalho algumas vezes ouvindo a citaccedilatildeo

de Joyce com apreccedilo pela tarefa especial que executava Aleacutem de ser uma das

figuras mais proacuteximas do jaacute ceacutelebre conterracircneo de quem recebeu alguns

elogios especiais e chegou a ser tratado com rara intimidade foi um de seus

mais sinceros admiradores e mais ativos defensores Os dois ficaram afastados

por um periacuteodo de cerca de um ano apoacutes um mal entendido que envolvia a filha

de Joyce Lucia Anna Joyce que parecia ter se apaixonado pelo jovem irlandecircs

que visitava seu pai mas a relaccedilatildeo dos dois escritores acabou por sobreviver ao

ocorrido

Joyce teve em vida numerosos admiradores que como Beckett

apoiaram ativamente sua produccedilatildeo Entre os nomes mais importantes daqueles

que estiverem em alguma medida presentes na fase final de sua vida estaacute o de

sua mecenas a inglesa Harriet Shaw Weaver (1876-1961) que se tornaria

editora da revista The Egoist (anteriormente chamada de The Freewoman e The

New Freewoman) Weaver estudou na London School of Economics e participou

ativamente do maior movimento pelos direitos das mulheres no Reino Unido

Womenrsquos social and political union que reivindicou o sufraacutegio universal direito

14

concedido somente em 1928 (deacutecadas depois da fundaccedilatildeo do grupo em 1903

e mais de um seacuteculo depois das primeiras reivindicaccedilotildees na Inglaterra desde o

iniacutecio endossadas publicamente por alguns homens ceacutelebres) A revista The

Egoist contava com Ezra Pound na seccedilatildeo literaacuteria e nela foram publicados

Pheacutenomenologie de la perceptiontrechos de Ulysses Pound por um tempo

teceu diversos elogios aos trabalhos de Joyce e tambeacutem o apoiou antes que

comeccedilasse a mudar suas opiniotildees a respeito das empreitadas literaacuterias do

irlandecircs exilado especificamente na fase final de suas obras em especial diante

de Finnegans wake que lhe pareceu um material por demais indigesto

Outro importante nome eacute o de Sylvia Beach (1887-1962) proprietaacuteria da

Shakespeare and Company mdash fundada em 1919 e apelidada por Joyce de

Stratford-on-Odeacuteon em referecircncia a Stratford-upon-Avon cidade natal de

Shakespeare e agrave rue de l`Odeacuteon onde ficava a livraria mdash que publicou a

primeira ediccedilatildeo de Ulysses em 1922 e Pomes Penyeach em 1927 aleacutem da

coletacircnea de ensaios sobre o Wake que ainda estava em construccedilatildeo em 1929

Our exagmination round his factification for incamination of Work in progress

Beach apoiou e acompanhou boa parte da carreira de Joyce ainda que algumas

das empreitadas tenham lhe acarretado problemas ldquoI understood from the first

that working with or for Mr Joyce the pleasure was mine mdash an infinite pleasure

the profits were for himrdquo2 (FLANNER 1972 apud HALFORD 2010) Os anos

1930 marcaram dificuldades econocircmicas apesar da ajuda de amigos e

simpatizantes da livraria que formaram um grupo para ajudar a reerguecirc-la o Les

amis de Shakespeare and company Em 1941 poreacutem com a invasatildeo da Franccedila

pelo Terceiro Reich agravando a Segunda Guerra Mundial os problemas se

somaram e levaram-na agrave falecircncia Apesar de a relaccedilatildeo entre Joyce e Beach ter

se tornado ceacutelebre e a livraria ter sido centro de muitos encontros conta-se que

ironicamente o fechamento da livraria aconteceu pouco depois de Sylvia Beach

se recusar a vender a uacuteltima coacutepia de Finnegans wake a um oficial do

totalitarismo nazista

2 ldquoCompreendi desde o iniacutecio que trabalhar com ou para o Sr Joyce o prazer era todo meu ndash um infinito prazer os lucros eram delerdquo

15

In late 1941 Shakespeare and company was forced to close shortly after Beach refused to sell her last personal copy of Finnegans wake to a Nazi officer It was symbolically ldquoliberatedrdquo in 1944 by Ernest Hemingway but in fact the bookstore never reopened though in the 1950s Beach gave an American named Whitman permission to open a bookstore under that name (FARGNOLI 2006 p 352)3

Foram figuras importantes na fase final vida de Joyce o casal Eugene

Jolas (1894-1952) e Maria McDonald (1893-1987) americanos residentes em

Paris que editavam a revista literaacuteria experimental Transition fundada por eles

em 1927 em que foram publicados excertos de Finnegans wake ainda sob seu

tiacutetulo provisoacuterio anterior Work in progress aleacutem de artigos sobre a obra de

James Joyce Conheceram-se por Sylvia Beach A revista de ares inovadores e

artisticamente progressistas se estabeleceu como referecircncia na capital francesa

especialmente entre os angloacutefonos desterrados A seguinte descriccedilatildeo de Eugene

Jolas encontra-se na premiada biografia James Joyce (1959 1989)4 escrita pelo

norte-americano Richard Ellmann

Homem sensiacutevel procurava uma teoria da arte que tambeacutem fosse uma filosofia de vid pensava tecirc-la encontrado numa ldquoreligiatildeo da palavrardquo cujo ritual ele saturava com termos como ldquofantaacutesticordquo ldquomacircnticordquo e seu neologismo ldquoparamitordquo Soacute na arte se podia confiar e confiar apenas se se abjurasse do externo em nome da imaginaccedilatildeo (p 725)

Eugene Jolas foi um daqueles que mais apoiaram e defenderam a obra

de James Joyce em sua eacutepoca tendo visto em Finnegans wake uma obra que

seria forte e consistente acircncora para o manifesto que publicou em 1929 na

proacutepria revista Transition denominado ldquoRevolution of the wordrdquo no qual discorria

sobre novas formas de linguagem literaacuteria Durante a deacutecada de 1960 jaacute viuacuteva

Maria se tornaria ceacutelebre ainda como presidenta do Comitecirc Americano de Paris

3 ldquoNo fim de 1941 Shakespeare and company foi obrigatoriamente fechada pouco tempo depois de Beach ter se recusado a vender sua uacuteltima coacutepia pessoa de Finnegans wake a um oficial nazista Foi simbolicamente ldquoliberadardquo em 1944 por Ernest Hemingway mas a livraria nunca foi reaberta de fato apesar de nos anos 1950 Beach ter permitido que um americano chamado Whitman abrisse uma livraria usando o mesmo nomerdquo 4 Em 1982 Richard Ellmann recebeu o James Tait Black Memorial Prize na categoria biografia um dos mais tradicionais precircmios literaacuterios britacircnicos

16

contra a Guerra do Vietnatilde que foi censurado pelo governo francecircs poucos anos

depois de sua fundaccedilatildeo em 1968

Adrienne Monnier (1892-1955) foi mais uma das maiores apoiadoras de

James Joyce em Paris Abriu a livraria La maison des amis des livres em 1915

que ficava proacutexima de um dos endereccedilos da Shakespeare and company (o da

rue de lrsquoOdeacuteon que originou o jaacute citado apelido de Joyce de ldquoStratford-on-

Odeacuteonrdquo) Adrienne Monnier difundiu na Franccedila a obra literaacuteria do escritor norte-

americano Ernest Hemingway em traduccedilotildees para liacutengua francesa e publicou por

um tempo o perioacutedico literaacuterio Le navire drsquoargent que contava com Jean Preacutevost

em sua equipe editorial Uma das primeiras mulheres a ser dona de uma livraria

especialmente fundada por ela mesma isto eacute sem que tivesse sido herdada de

famiacutelia ou de um falecido marido Monnier foi referecircncia para Sylvia Beach que

abriu seu negoacutecio quatro anos depois construindo-se entre elas uma vasta

parceria

Ford Madox Ford (1873-1939) literato inglecircs proacuteximo de Ezra Pound que

tambeacutem residiu em Paris e que inspirou um capiacutetulo do autobiograacutefico A

moveable feast de Ernest Hemingway foi outra fonte de apoio com que Joyce

contou Ford editava a revista literaacuteria The transatlantic review em Paris e a

publicava em Londres pela editora independente Gerald Duckworth Overlook

(hoje tatildeo somente Duckworth Overlook cujo slogan eacute ldquoindependente desde

1898rdquo) Inicialmente os financiadores da Transatlantic exigiram que nada escrito

por Joyce fosse publicado na revista mas acabaram abrindo matildeo da proibiccedilatildeo

quando Ford ameaccedilou recusar o cargo de editor Com doze ediccedilotildees mensais

durante o ano de 1924 foi a primeira publicaccedilatildeo a conter excertos do entatildeo Work

in progress mdash tiacutetulo virtualmente sugerido por Ford em seu suplemento literaacuterio

depois adotado por Joyce mdash que soacute mais tarde apareceriam tambeacutem na

Transition do casal Jolas Ford que tambeacutem publicou Hemingway e Tristan

Tzara chegou a temer que sua revista fosse prejudicada se houvesse alguma

acusaccedilatildeo de obscenidade do que Joyce escreveu Por outro lado a princiacutepio o

proacuteprio Joyce se recusou publicar assim trechos de sua obra em andamento por

acreditar que natildeo seria bom tecirc-la fragmentada (apesar de Ulysses ter sido

17

publicado dessa maneira em outra revista a Little review) tendo negado outros

convites anteriores mas acabou cedendo

Tanto as vaacuterias publicaccedilotildees dos excertos em progresso quanto

posteriormente a publicaccedilatildeo de Finnegans wake poreacutem fizeram com que ateacute

alguns de seus admiradores mais contundentes se manifestassem

negativamente Ateacute mesmo Nora a esposa de Joyce criticou o texto do Wake

pejorativamente um ldquochop sueyrdquo questionando a qualidade a partir da

ininteligibilidade Reiterava assim a opiniatildeo expressa por Harriet Shaw Weaver

que tambeacutem se posicionou desfavoraacutevel ao que Joyce estava produzindo no fim

de sua vida distanciando-se consideravelmente dele na fase em que estava

escrevendo o Wake Em uma carta a Joyce disse abertamente natildeo se interessar

pela ldquoproduccedilatildeo de seu Atacado de Trocadilhos de Seguranccedila nem pelas

escuridotildees e ininteligibilidades do seu sistema de linguagem deliberadamente

emaranhado Parece-me que vocecirc desperdiccedila seu gecircniordquo (ELLMANN 1989 p

728) Ainda que natildeo tenha havido grande rancor entre os dois na ocasiatildeo da

morte de Joyce em Zurique ela teria arcado com as despesas de seu funeral mdash

que natildeo teve refinamentos e nem qualquer homenagem ou contribuiccedilatildeo vinda

da Irlanda

Ezra Pound (1885-1972) foi quem possivelmente fez o comentaacuterio mais

aacutecido O escritor norte-americano comeccedilou a tecer criacuteticas desde os capiacutetulos

finais de Ulysses e quanto a Finnegans wake ao receber de Joyce o manuscrito

do livro de Shaun para que lesse e comentasse respondeu a ele que soacute lhe

restava desejar sucesso mas natildeo sabia o que pensar Na mesma carta chegou

a dizer que aquele texto soacute valeria a pena se apresentasse uma visatildeo divina ou

a cura para a gonorreia (ldquothe claprdquo) ldquoNothing short of divine vision or a new cure

for the clapp [sic] can possibly be worth all that circumambient peripherisationrdquo5

(READ 1970 p 228) Vale lembrar que anteriormente na ocasiatildeo de uma

tentativa de angariar fundos para Joyce a partir do Royal Literary Fund Pound

se referiu a Joyce escrevendo a Yeats e George Moore de maneira muito

5 A traduccedilatildeo feita por Lya Luft da biografia de Joyce escrita por Richard Ellmann traz a seguinte versatildeo do trecho ldquoNada ateacute onde eu possa ver nada sem visatildeo divina ou uma nova cura da gonorreia valeraacute possivelmente a peripatetizaccedilatildeo circunambienterdquo (1989 p 721)

18

elogiosa tendo expressado esses elogios tambeacutem ao proacuteprio Joyce em outras

ocasiotildees ldquostill it gives me a certain satisfaction to state that I consider Joyce a

good poet and without exception the best of the younger prose writers His style

has the hard clarity of a Stendhal or a Flaubert He has also the richness of

erudition which differentiates him from certain able and vigorous but rather

overloaded impressionist writersrdquo6 (ELLMANN apud DENNING 1997 p 10)

A primeira publicaccedilatildeo sobre Finnegans wake surgiu antes mesmo que a

obra fosse concluiacuteda Alguns apoiadores de Joyce se reuniram em torno da obra

coletiva Our exagmination round his factification for incamination of Work in

progress7 (1929) quando ainda havia apenas os fragmentos denominados Work

in progress com o intuito de atenuar a recepccedilatildeo que ateacute entatildeo oscilava

nebulosamente O tiacutetulo circular sugestivo e bem-humorado foi sugerido por

Joyce A coletacircnea foi publicada pela Faber and Faber a mesma editora que

publicou a primeira ediccedilatildeo de Finnegans wake quase dez anos mais tarde em 4

de maio de 1939 Reunia ensaios criacuteticos de doze autores Samuel Beckett

Stuart Gilbert Eugene Jolas Marcel Brion Frank Budgen Victor Llona Elliot

Paul Robert McAlmon Thomas MacGreevy John Rodker Robert Sage e

William Carlos Williams O proacuteprio Joyce desejava que essa publicaccedilatildeo natildeo

contivesse apenas textos elogiosos mas tambeacutem que se expressasse algo de

negativo a respeito de seus escritos Aleacutem dos doze artigos houve dois textos

extras denominados ldquocartas de protestordquo (letters of protest) e ambos trouxeram

criacuteticas o de uma jornalista que assinou sob o pseudocircnimo de G V L Slingsby

e outro assinado por um poeta russo chamado Vladimir Dixon O texto de Dixon

ldquoA litter do James Joycerdquo denomina seu destinataacuterio ora de senhor Germs

Choice ora de senhor Shamersquos Voice trocadilhos que fizeram Stuart Gilbert e

Sylvia Beach cogitarem que essa criacutetica negativa tivesse sido escrita pelo proacuteprio

Joyce A hipoacutetese poreacutem permanece natildeo confirmada

6 Traduccedilatildeo livre ldquoainda assim me daacute certa satisfaccedilatildeo afirmar que considero Joyce um bom poeta e sem exceccedilatildeo o melhor dos jovens prosadores Seu estilo tem claridade dura de um Stendhal ou de um Flaubert Ele tem ainda a riqueza da erudiccedilatildeo que o diferencia de alguns haacutebeis e vigorosos poreacutem excessivos escritores impressionistasrdquo 7 A mesma traduccedilatildeo supracitada propotildee o tiacutetulo traduzido Nosso Exagme em torno da sua factificaccedilatildeo da incaminaccedilatildeo de Obra em realizaccedilatildeo (Ibid p 755)

19

O tradutor inglecircs Stuart Gilbert (1883-1969) um dos nomes envolvidos na

publicaccedilatildeo era um dos assiacuteduos e atentos leitores contemporacircneos de Joyce

Foi quem publicou James Joyces Ulysses A Study (1930) livro ainda hoje uacutetil

para consulta na leitura da obra que precedeu Finnegans wake elucidando

numerosas referecircncias um tanto obscuras por todos os capiacutetulos e incluindo

ainda a famigerada tabela comparativa entre Ulysses e a Odisseia de Homero

Stuart Gilbert foi apresentado a Joyce por Sylvia Beach assim como Maria e

Eugene Jolas

Apesar de conterracircneos Samuel Beckett (1906-1989) e James Joyce se

conheceram somente em Paris no exiacutelio da terra-matildee compartilhada e logo se

estabeleceu a rotina de que Beckett o visitasse sempre que estivesse na cidade

Por ter acompanhado boa parte do processo de criaccedilatildeo de Finnegans wake

especialmente na ajuda que deu a Joyce por seus problemas de visatildeo podemos

imaginar que Samuel Beckett era grande candidato a uma espeacutecie de leitor ideal

o mais proacuteximo do texto aleacutem do proacuteprio autor Suas observaccedilotildees sobre o livro

de Joyce satildeo brilhantes Eacute sabido que foi Beckett o primeiro (ou ao menos

certamente um dos primeiros) a notar verdadeiramente que a incompreensatildeo

mais comum se traduz antes mesmo de a leitura ser iniciada isto eacute ainda ali

nas expectativas perante o livro mdash como poderiacuteamos ldquoentenderrdquo o Finnegans

wake esperando uma leitura tradicional

You cannot complain that this stuff is not written in English It is not written at all It is not to be read It is to be looked at and listened to () Here form is content content is form () His writing is not about something it is that something itself When the sense is sleep the words go to sleephellip When the sense is dancing the words dance (BECKETT 1964 p14)8

8 ldquoNatildeo se pode reclamar que esse material natildeo esteja escrito em inglecircs Simplesmente natildeo eacute um material escrito Natildeo existe para ser lido Existe para ser olhado e ouvido () Aqui forma eacute conteuacutedo conteuacutedo eacute forma () Sua escrita [de Joyce] natildeo eacute sobre alguma coisa eacute a proacutepria coisa Quando o sentido eacute adormecido as palavras vatildeo dormir Quando o sentido eacute danccedilar as palavras danccedilamrdquo

20

O que Beckett muito cedo percebeu e acaba por nos confirmar eacute que a

linguagem em Finnegans wake natildeo se presta a meramente servir ao

remetimento agrave descriccedilatildeo nem a contar um ocorrido prefere trazer nela em vez

de apresentar por meio dela intenta tecirc-la como ambiente proacuteprio do

acontecimento natildeo como ferramenta siacutegnica para dizecirc-lo representativamente

ou dizecirc-lo a distacircncia Levando essa tentativa em consideraccedilatildeo nada mais

coerente do que dispensar a escolha de um idioma para produzir o texto tecendo

sua literariedade de maneira anaacuterquica em relaccedilatildeo a regras de formaccedilatildeo de

palavras ou quaisquer outras normatividades de um idioma e suas limitaccedilotildees a

ponto de se poder dizer que o Finnegans wake natildeo estaacute escrito em inglecircs nem

em irlandecircs mas sim em uma liacutengua proacutepria babeacutelica mdash ainda que se possa

argumentar que a base dessa subversatildeo eacute a liacutengua inglesa de maneira que

Joyce tanto escreve no inglecircs quanto contra ele como jaacute foi dito nas palavras do

estudioso Seamus Deane

Joyce involves himself and us in an extremely complex series of translations that are endless because there is no original and no target language () the original language is the target language The book is written in the English language and also against the English language it converts itself into English and perverts itself from English (DEANE 2000 p viii)9

Lendo uma obra que natildeo pode oferecer certezas ou linearidades

estamos em uacuteltima instacircncia simplesmente nos entregando a ela sem indiacutecios

que possibilitem saber ou prever minimamente no que tudo aquilo vai dar O

leitor soacute pode continuar sua empreitada se estiver ciente dessa ausecircncia de

sentidos pontuais e de sequecircncias narrativas agraves quais normalmente buscaria se

prender Natildeo haacute uma sequecircncia de cenas causando a sensaccedilatildeo de suspense

ou de fluidez narrativa que nos faz virar as paacuteginas em prosa comum Ao inveacutes

disso o livro todo eacute espeacutecie de puro e constante suspense (uma descriccedilatildeo em

si impossiacutevel para o significado de ldquosuspenserdquo) como se o caminho de seu texto

9 ldquoJoyce se envolve e nos envolve em uma complexa seacuterie de traduccedilotildees que satildeo infinitas porque natildeo haacute liacutengua de origem e liacutengua-alvo () a liacutengua de origem eacute a liacutengua-alvo O livro eacute escrito em liacutengua inglesa e tambeacutem contra a liacutengua inglesa ele se converte em inglecircs e se perverte do inglecircsrdquo

21

virasse esquinas que os leitores nem mesmo tinham visto que existiam Cada

termo cada linha do Wake conteacutem diversas camadas semacircnticas que podem

ser absorvidas em diferentes niacuteveis e assim a leitura se realiza de uma forma

uacutenica de acordo com as referecircncias que o leitor captou Essa configuraccedilatildeo

textual potencializa mdash ou polemiza mdash as diferenccedilas que existiratildeo entre leituras

por pessoas diferentes ou entre as releituras de um mesmo indiviacuteduo

Por isso decidir ler Finnegans wake eacute decidir por lanccedilar-se ao texto Lecirc-

lo eacute uma experiecircncia fenomecircnica per se

Mesmo para alguns leitores que dedicaram parte de suas vidas a lecirc-lo e

relecirc-lo o texto natildeo se ausenta de dificuldades Uma das primeiras publicaccedilotildees

oferecendo uma leitura ampla e aprofundada da totalidade do Wake que se

propusesse a ter alguma didaacutetica em sua abordagem foi A Skeleton key to

Finnegans wake dos pioneiros Joseph Campbell e Henry Morton Robinson em

1944 O inglecircs Anthony Burgess lembrado por sua famigerada ficccedilatildeo distoacutepica

A Clockwork Orange (1962) e o acadecircmico americano William York Tindall

tambeacutem foram alguns dos primeiros a publicarem guias completos para a leitura

do Wake aleacutem de Robinson e Campbell Burgess publicou Here Comes

Everybody an introduction to James Joyce for the ordinary reader (1965) pela

proacutepria Faber and Faber A shorter Finnegans wake (1967) que traz o texto de

Joyce consideravelmente reduzido por Burgess e Joysprick na introduction to

the language of James Joyce (1973) Tindall publicou A readerrsquos guide to

Finnegans wake (1969) que sucedeu seu outro estudo didaacutetico de escopo mais

amplo A readerrsquos guide to James Joyce (1955)

William York Tindall tenta tornar o processo de leitura o mais didaacutetico e

facilitado possiacutevel indicando as referecircncias em cada capiacutetulo do Wake Ao final

de sua introduccedilatildeo em A readerrsquos guide to Finnegans wake Tindall afirma que

seu guia natildeo visa a uma apreensatildeo completa nem a ultimatos sobre a obra mas

sim a ser um suplemento de estudos preacutevios e acompanhar a leitura de uma

maneira relativamente independente isto eacute livremente ldquoAfter all what authority

on the Wake knows half of it Which half is the critical questionrdquo (TINDALL 1969

22

pp 25-26)10 Ironizar a possibilidade de que se saiba afirmar algo sobre

Finnegans wake talvez se aplique em verdade a qualquer texto literaacuterio mas

William York Tindall se resguarda claro especificamente em sua condiccedilatildeo de

joyciano e de redator de um guia para o Finnegans wake Diz ainda nessa

mesma introduccedilatildeo

Surely the Wake abounds in farcical materials () But farce is a category of drama and except from dream maybe the Wake evades categories Therersquos lsquolots of fun at Finneganrsquos wakersquo says the poet in his ballad of Tim Finnegan Taking my clue from this distrusting categories as I distrust earnestness I content myself with calling the Wake a very funny book (Ibid p 20)11

De fato o humor eacute uma das caracteriacutesticas sobressalentes em Finnegans

wake Os puns frequentemente carregam uma ironia inevitavelmente risiacutevel

Entre absurdos e alfinetadas a coletacircnea de trocadilhos ruma ao riso Uma das

comparaccedilotildees mais acertadas mdash ainda que comparaccedilotildees sejam sempre

perigosas mdash foi feita pelo escritor francecircs Valery Larbaud falando de Ulysses

ldquoeacute tatildeo grande e abrangente e humano quanto Rabelaisrdquo (ELLMANN 1989 p

617) Esse algo de rabelaisiano povoa ainda mais o sucedente Finnegans wake

que pretende tudo abarcar trabalha sobre o aparente exagero mdash que perde a

caracteriacutestica de excesso ao se fazer produtivo O exagero leva ao humor o

inacreditaacutevel e inverossiacutemil levam agrave quebra imediata e incontornaacutevel da

seriedade O que Wake tem de excessivo pode ser para nos fazer rir mais do

que para impressionar presunccedilosamente ou para meramente dificultar o texto ou

adornaacute-lo mais que isso o que o texto faz eacute lotar a si proacuteprio isto eacute se estufar

de conteuacutedo com um barroquismo que se autoironiza

10 ldquoAfinal de contas qual autoridade no Wake conhece sequer metade dele Qual metade eacute a questatildeo criacuteticardquo 11 ldquoCertamente o Wake se aproxima de materiais farsescos () Mas a farsa eacute uma categoria do drama e exceto por sonho talvez o Wake se esquiva de categorias Haacute lsquomuita diversatildeo no funeral do Finneganrsquo diz o poeta em sua balada sobre Tim Finnegan Tirando daiacute uma pista desconfiando de categorias como desconfio de seriedade eu me contento com chamar o Wake de um livro muito engraccediladordquo

23

Em artigo de 1955 ldquoA obra de arte abertardquo posteriormente publicado em

Teoria da poesia concreta (1965) Haroldo de Campos buscou compreender as

direccedilotildees para as quais apontavam as obras de arte modernas e para percorrer

esse caminho partiu de Finnegans wake e de obras de diversos autores mdash

Mallarmeacute Ezra Pound Cummings Pierre Boulez Deacutecio Pignatari e outros Em

Opera aperta (1962) Umberto Eco aborda o tema de maneira similar tambeacutem

fundamentou seu paradigma de obra de arte aberta a partir de Finnegans wake

e outras obras12 Havia uma seccedilatildeo toda dedicada a Joyce na primeira ediccedilatildeo

que depois passou a ser editada separadamente e consistia em uma

primeira tentativa pessoal de acompanhar o desenvolvimento de um artista no qual o projeto de uma obra aberta manifesta em transparecircncia ao niacutevel da pesquisa das estruturas operacionais toda uma aventura cultural a soluccedilatildeo de um problema ideoloacutegico a morte e o nascimento de dois universos morais e filosoacuteficos (ECO 1988 p 22)

Haroldo de Campos e Umberto Eco falando da ldquoobra de arte abertardquo natildeo

foram os uacutenicos a derivar do Finnegans wake de Joyce compreensotildees e

premissas de um grande paradigma teoacuterico Joseph Campbell (1904-1987)

teoacuterico estadunidense elaborou o ceacutelebre conceito de monomito segundo o qual

a jornada de um heroacutei eacute ciacuteclica e essa caracteriacutestica poderia ser notada em todas

as mitologias em diferentes graus tomando como exemplos mitos que

compotildeem a mitologia hindu egiacutepcia grega e cristatilde Joseph Campbell parte da

tese de que todos esses mitos satildeo variaccedilotildees de uma mesma narrativa una Um

dos padrotildees que Campbell estudou nessas variaccedilotildees foi a jornada do heroacutei

descrito em The hero of a thousand faces (1949) A primeira publicaccedilatildeo de

impacto de Joseph Campbell foi justamente jaacute citado estudo pioneiro entre as

12 Natildeo satildeo necessariamente abordagens idecircnticas apesar da grande coincidecircncia entre ambas inclusive terminoloacutegicas O proacuteprio Umberto Eco em introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo brasileira diz ldquoEacute mesmo curioso que alguns anos antes de eu escrever Obra Aberta Haroldo de Campos num pequeno artigo lhe antecipasse os temas de modo assombroso como se ele tivesse resenhado o livro que eu ainda natildeo tinha escrito e que iria escrever sem ter lido seu artigo Mas isso significa que certos problemas se manifestam de maneira imperiosa num dado momento histoacuterico deduzem-se quase que automaticamente do estado das pesquisas em cursordquo (ECO 1988 p 17)

24

publicaccedilotildees sobre o Wake A skeleton key to Finnegans wake (1944) escrito por

ele em parceria com Henry Morton Robinson e publicado pela editora Harcourt

entatildeo Harcourt Brace Foi certamente o primeiro estudo completo e que se

propunha a servir como guia de leitura mais de duas deacutecadas antes de Tindall

publicar o seu famoso A readerrsquos guide A obra de James Joyce gerou inspiraccedilatildeo

para Campbell ateacute mesmo na escolha do termo ldquoAnd his monomyth Ah hordquo

(FW 58124) As ideias desenvolvidas no conceito satildeo bastante caras ao

Finnegans wake muitas variaccedilotildees temaacuteticas reunidas formando uma unidade

um caleidoscoacutepio dos grandes mitos em que as narrativas histoacuterias se

entrelaccedilam ao inveacutes de somente se diferenciarem entre si Apagam-se as linhas

que delimitam a identidade cultural o idioma a liacutengua nacional ou regional o

momento histoacuterico ou qualquer porccedilatildeo isolada de tempo e espaccedilo tudo age em

prol da compreensatildeo do todo e do que nos une atraveacutes dos seacuteculos e das

fronteiras

No Brasil a recepccedilatildeo de Finnegans wake e sua influecircncia no trabalho de

grandes intelectuais tambeacutem natildeo tardou a se explicitar mdash e com grandes

leitoresleituras alguns fragmentos foram traduzidos por Augusto de Campos e

Haroldo de Campos em Panaroma do Finnegans wake (1962) Essa publicaccedilatildeo

foi de enorme importacircncia na difusatildeo do texto no Brasil em uma via de matildeo

dupla tanto Joyce influenciou intelectuais ligados agrave poesia concreta quanto os

irmatildeos Campos contribuiacuteram para difundir ainda mais a sua obra Felizmente

natildeo houve grande impacto negativo que afastasse leitores e parecesse invalidar

a qualidade do Wake ao contraacuterio a recepccedilatildeo foi natildeo soacute positiva como

especialmente produtiva em especial graccedilas agrave publicaccedilatildeo do Panaroma do

Finnegans wake que encorajou certa inspiraccedilatildeo e aproximaccedilatildeo da obra com o

que se fazia no Brasil em termos de poesia traduccedilatildeo e ateacute mesmo muacutesica13 jaacute

nos anos 1960

13 Eacute relativamente desconhecido o fato de que Peacutericles Cavalcanti musicou um trecho do Panaroma do Finnegans wake traduzido por Augusto de Campos ldquoNuvoletardquo mas essa bela versatildeo pode ser conhecida online numa performance com Regina Caseacute de 1983 no Sesc Pompeia para o programa Faacutebrica de Som

25

Haacute ainda poucas (ou talvez seja um nuacutemero surpreendentemente alto)

traduccedilotildees extensas de Finnegans wake publicadas mundo afora mdash francecircs

alematildeo mandarim polonecircs japonecircs (haacute duas) coreano italiano galego

contam-se nos dedos mdash e o portuguecircs haacute poucos anos foi incluiacutedo entre os

poucos idiomas que possuem traduccedilatildeo integral graccedilas a Donaldo Schuumller que

traduziu o texto do Wake para o portuguecircs brasileiro (se eacute que seria coerente

dizer dessa maneira enquadrando em um idioma) no decorrer de quatro anos

A traduccedilatildeo cujo primeiro volume data de 2001 foi publicada aos poucos e trouxe

consigo o tiacutetulo cunhado pelos irmatildeos Campos Finniacutecius reveacutem Com notas de

leitura a cada capiacutetulo que comentam aspectos gerais do texto Schuumller realizou

essa tarefa hercuacutelea com vasto meacuterito e deixou sua contribuiccedilatildeo criacutetica unida ao

seu trabalho de traduccedilatildeo

Houve em especial nos anos 2000 uma revisitaccedilatildeo de toda a tradiccedilatildeo

de Joyce e uma espeacutecie de nova recepccedilatildeo sua no Brasil com muitas traduccedilotildees

e trabalhos diversos sendo publicados Uma terceira via de traduccedilatildeo foi

executada com Ulysses (2012) por Caetano W Galindo que tambeacutem traduziu

Finnrsquos Hotel (2014) Este uacuteltimo se trata de textos que antecederam a finalizaccedilatildeo

do Work in progress que se tornaria o Finnegans wake Permaneceu em

suspenso se o Finnrsquos hotel de Joyce deveria ser um livro independente e ele

acabou por descartaacute-lo ou se eram rascunhos ensaios tentativas ou algo

semelhante do que planejava fazer em sua obra final jaacute que o livro abarca muitos

elementos do Wake Recentemente tambeacutem alguns dos escritos esparsos de

James Joyce foram editados em De santos e saacutebios escritos esteacuteticos e poliacuteticos

(2012) organizado a partir de The critical writings por Dirce Waltrick do Amarante

e Seacutergio Medeiros ambos fizeram tambeacutem a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo de Cartas

a Nora (2012) que possuem traduccedilatildeo portuguesa editada no mesmo ano feita

por Joseacute Miguel Silva ainda no mesmo ano foram publicadas tambeacutem as

Epifanias (2012) de Joyce traduzidas por Piero Eyben anteriores ainda satildeo o

livro-guia Para ler o Finnegans wake de James Joyce (2009) de Dirce Waltrick

do Amarante que traz tambeacutem uma traduccedilatildeo do fragmento Anna Livia

Plurabelle e O efeito da letra Lacan leitor de Joyce (2003) de Ram Mandil

26

Expusemos entatildeo de maneira breviacutessima a recepccedilatildeo de Finnegans

wake da maneira como se deu inicialmente em especial no seu impacto entre

as figuras centrais da vida de James Joyce como escritor mdash que contrasta como

pontuamos com a maneira como o Wake chegou ao Brasil se estabelecendo

natildeo muito tardiamente como referecircncia e influecircncia tanto para alguns de nossos

maiores intelectuais quanto para um puacuteblico geral e de diversas aacutereas A

intenccedilatildeo de uma maneira ou de outra natildeo eacute sublinhe-se a de reiterar as

dificuldades de acesso ao texto jaacute que muitas das objeccedilotildees citadas por

contemporacircneos de Joyce partem do argumento de uma suposta profunda e

contraproducente inteligibilidade bem como da noccedilatildeo de que sua obra final seria

um jogo louco ou inuacutetil de palavras e sons

Ao contraacuterio pode ser relevante conhecermos ao menos alguns dados

sobre a recepccedilatildeo turbulenta para sabermos enfrentar esses argumentos jaacute

velhos enferrujados que intentam justificar por que natildeo ler Finnegans wake e

ainda surgem com espantosa frequecircncia Como respondecirc-los hoje Ainda se

acredita que Finnegans wake eacute uma piada um sarro um jogo intelectual banal

e mais pretensioso do que primoroso Ainda eacute visto como um texto

impenetraacutevel Por quecirc Ateacute quando Quais as consequecircncias de uma obra

como essas ser considerada ldquoum livro que ningueacutem leulecircrdquo considerando ainda

os avisos ou receios dos que dizem que em geral lecirc-se cada vez menos

literatura Como Finnegans wake eacute considerado claacutessico (se o for) se eacute ilegiacutevel

e impenetraacutevel eou uma peccedila de chacota intelectual O que seria um claacutessico

e de que vale essa classificaccedilatildeo valorativa

Eacute claro que natildeo faria sentido negar as peculiaridades inerentes ao texto e

agrave sua construccedilatildeo e nem pretendemos fazecirc-lo pretendemos o exato oposto

desse reducionismo que eacute enxergaacute-las e enfrentaacute-las da maneira mais

destemida possiacutevel mdash destemida no sentido de natildeo criar diferenciaccedilotildees entre

literatura ldquofaacutecilrdquo e ldquodifiacutecilrdquo leia-se sem criar uma categoria especial para a leitura

do Finnegans wake Natildeo se trata de afirmarmos que seja um texto ldquofaacutecilrdquo nem

que seja um texto impenetraacutevel Ideal eacute que o encaremos como o que ele eacute mdash

um texto literaacuterio um texto escritural como quisermos chamaacute-lo eacute um texto

Demanda-nos a leitura De noacutes leitores quaisquer que sejamos Se olhamos

27

para o Wake e questionamos o que conteacutem jaacute somos grandes candidatos a

percorrer seus caminhos Natildeo satildeo muitos os dispostos Natildeo porque devam ser

selecionados mas porque os preconceitos talvez afastem os desinteressados

Ulysses jaacute carrega tambeacutem certo estigma mas parece figurar como uma obra

um tanto mais simpaacutetica ou atraente quiccedilaacute mais receptiva ainda que

considerada tambeacutem difiacutecil extensa complexa Ulysses tem trecircs traduccedilotildees

brasileiras14 de trecircs intelectuais de diferentes eacutepocas de meacuterito e de peso de

fundos distintos e consequentemente trabalhos tradutoacuterios tambeacutem (felizmente)

diferentes entre si o que tambeacutem colabora para multiplicar nossas possibilidades

de fontes e referecircncias durante a leitura Sua dificuldade parece ser menos alvo

de piadas do tipo ldquomas ningueacutem lecircrdquo ainda que curiosamente natildeo haja guias

elaborados e nem mesmo traduccedilotildees brasileiras de guias de leitura

especificamente voltados para Ulysses ainda enquanto jaacute temos Para ler o

Finnegans wake de James Joyce (2009)

Apontar problemas ou tecer criacuteticas diversas agrave construccedilatildeo textual de

Finnegans wake como foi mostrado natildeo foi exclusividade dos absolutamente

conservadores ao menos artisticamente falando Diante da radicalidade do texto

e da aparente incompreensibilidade era como se um estranhamento

imediatamente tomasse o possiacutevel leitor mesmo que este fosse algueacutem

relativamente (ou mesmo bastante) aberto Como vimos os exemplos satildeo

muitos de artistas como Ezra Pound (ldquoA receptividade de Pound agrave inovaccedilatildeo

tinha seus limites como Joyce agora sabiardquo ELLMANN 1989 p 722) de sua

parceira proacutexima Sylvia Beach ateacute mesmo de alguns parentes como sua

esposa Nora sempre fonte de apoio e companheirismo e seu irmatildeo que

tambeacutem era escritor Foram variadas as reaccedilotildees mas especialmente numerosas

as reaccedilotildees negativas chegando a atingir emocionalmente Joyce em alguns

momentos

14 A saber a de Antocircnio Houaiss (1966) a de Bernardina da Silveira Pinheiro (2005) e a mais recente de Caetano Galindo (2012) premiada pela Academia Brasileira de Letras e pela Associaccedilatildeo Paulista de Criacuteticos de Arte aleacutem de ter recebido o Precircmio Jabuti de melhor traduccedilatildeo do mesmo ano

28

A fama de Finnegans wake que se espalhou pelo mundo (e permanece

ateacute os dias de hoje contaminando a visatildeo que normalmente se tem do livro de

preconceitos uma vez que quase sempre precedem a sua leitura) de que eacute um

livro impenetraacutevel eou uma grande piada de James Joyce ou de que eacute nada

aleacutem de um livro propositalmente dificiacutelimo e insano natildeo acabaraacute de repente O

que preocupa eacute o ldquonada aleacutemrdquo Que se tome Wake como paradigma de livro

complexo eacute aceitaacutevel e ateacute pertinente que se deixe de lecirc-lo tendo em conta esse

tipo de estigma poreacutem passa a ser uma subestimaccedilatildeo e pode ser de alguma

maneira uma perda real Felizmente no Brasil como vimos existe cada vez

mais um nuacutemero de publicaccedilotildees sobre Joyce que vem crescendo e se ampliando

tanto quanto vem se aprofundando com diferentes leituras A recepccedilatildeo

atribulada de que fizemos um panorama no entanto desde as primeiras reaccedilotildees

agrave obra final de James Joyce mesmo entre aqueles que o admiravam e

acompanhavam seu trabalho aponta para algo que estaacute no cerne das

consideraccedilotildees desta pesquisa o que o Wake tem de tatildeo deslocado tatildeo

marginal sendo ao mesmo tempo tatildeo ceacutelebre O objetivo eacute fazer dessa

compreensatildeo algo produtivo

Pois bem se eacute um livro ilegiacutevel natildeo se poderia escrever um trabalho

acadecircmico sobre ele (ou em algumas visotildees do que eacute um trabalho sobre

literatura justamente por isso fazecirc-lo seria necessaacuterio e sugerido

ironicamente) A concepccedilatildeo de legiacutevel eacute a que deve ser posta em xeque aiacute em

primeiro lugar ou ao menos antes de se questionar se Finnegans wake o eacute ou

natildeo Isso se faz especialmente necessaacuterio se falamos de legiacutevel referindo-nos agrave

literatura como se houvesse um processo de alfabetizaccedilatildeo especiacutefico No

entanto mesmo que se pare de olhar para o Wake apenas observando esse seu

caraacuteter superficial arriscamo-nos a dizer que sua impenetrabilidade por si soacute

diz alguma coisa A maneira como se encara a conceituaccedilatildeo de obra literaacuteria mdash

desde a assunccedilatildeo dessa possibilidade ateacute o processo de efetivamente

conceituaacute-la mdash certamente tem implicaccedilotildees no processo de aceitaccedilatildeo ou de

recusa diante de uma obra especiacutefica bem como na accedilatildeo criacutetica de valorar e de

julgar

29

Ora se uma coisa natildeo se encaixa no que se espera dela algo natildeo estaacute

nas medidas esperadas ou a coisa ou o molde isto eacute a focircrma com suas

medidas limitadas e exigecircncias de enquadramento Se a obra eacute algo que se deva

encaixar em uma concepccedilatildeo de literatura que a antecede e normatiza as

produccedilotildees literaacuterias em uma hierarquia duvidosa que cria uma governanccedila de

cima para baixo do molde para a coisa eacute compreensiacutevel toda a resistecircncia que

foi criada frente ao Finnegans wake

O que essa maacute recepccedilatildeo que ecoa ateacute hoje em estigmas diversos

normalmente aponta portanto eacute que o problema ou o defeito estaacute na obra de

Joyce levando em conta esse procedimento normativo de interpretaccedilatildeo e de

julgamento e critica da literatura O que propomos eacute que o problema esteja

talvez no molde

CAPIacuteTULO I

WAKE EM PAUTA

31

1 Algo parecido com nada

A recepccedilatildeo negativa ou perplexa diante de Finnegans wake como vimos

foi ampla a ponto de certa maacute reputaccedilatildeo ultrapassar o teste do tempo permitindo

que sobrevivessem estigmas relacionados agrave obra ateacute os dias de hoje causando

ranccedilo mesmo entre literatos e afastando possiacuteveis leitores por entre as deacutecadas

Ulysses foi um (anti)romance aclamado ainda que tambeacutem tenha tido uma

recepccedilatildeo controversa e resultado poucos anos depois de sua publicaccedilatildeo em

uma seacuterie de processos contra Joyce e na proibiccedilatildeo de sua circulaccedilatildeo nos

Estados Unidos e no Reino Unido sob a acusaccedilatildeo (hoje risiacutevel) de conter

pornografia Tambeacutem significou uma reviravolta naquilo a partir de que se definia

mesmo um ldquoromancerdquo suscitando hesitaccedilatildeo impaciecircncia e reprovaccedilatildeo mas

acabou por selar a fama de Joyce em vida traduzida inclusive em alguma

seguranccedila financeira mesmo que temporaacuteria

32

No caso de Finnegans wake no entanto a sua fama paradoxalmente foi

o motivo de seu relativo ostracismo Quando jaacute estava viuacuteva Nora Barnacle que

natildeo se interessava tanto por literatura e natildeo se sentia exatamente atraiacuteda pela

convivecircncia com artistas tampouco por conversas literaacuterias aleacutem de

eventualmente deixar Joyce magoado por natildeo ler o que ele escrevia chegou a

perguntar a Maria Jolas ldquoPor que falam tanto no Ulysses O Finnegans wake eacute

o livro importante Quando eacute que vocecirc e Eugene vatildeo escrever sobre elerdquo

(ELLMANN 1989 p 912) Como eacute sabido ateacute mesmo contemporacircneos

entusiastas da obra joyciana que natildeo lhe poupavam elogios tiveram opiniotildees

controversas a respeito da obra de maacutexima radicalidade na qual Joyce teria

conseguido engendrar uma inovaccedilatildeo tanto formal quanto de conteuacutedo ainda

maiores do que em suas produccedilotildees anteriores

Seu irmatildeo mais novo Stanislaus Joyce (1884-1955) com quem mantinha

contato e se correspondia mesmo com as constantes mudanccedilas de residecircncia

entre paiacuteses escreveu-lhe em 1924 dizendo que havia lido ldquoseu romance ainda

sem nome na transatlantic reviewrdquo (Ibid p 712) Reitera que em geral gosta

muito do predecessor Ulysses ainda que natildeo tenha paciecircncia nem humor para

alguns trechos mas aponta que haacute uma ou outra parte ldquoinesperadamente ternardquo

e comovente Sobre o Finnegans wake no entanto a impressatildeo eacute outra e lhe

parece que muitos agora o elogiam por bajulaccedilatildeo deixando Joyce mimado

demais Cita um artigo de Ford Madox Ford cuja leitura foi indicada a ele pelo

irmatildeo em que Ford sugere que se encare o Work in progress ldquocomo um ritmo

nonsense e que o leitor deveria abandonar-se ao seu balanccedilordquo No entanto

Stanislaus natildeo parece se convencer ldquoTenho certeza embora o artigo pareccedila ter

a sua aprovaccedilatildeo de que ele fala sem saber o que dizrdquo (Ibid p 713) Por sua

vez afirma que natildeo entendeu muito do que leu tampouco se interessou

verdadeiramente Citando a publicaccedilatildeo de Herbert Gorman James Joyce The

first forty years (1924) que atribui a Joyce ldquoa uacuteltima palavra em literatura

modernardquo elucubra que isso talvez signifique algo mais literal e escatoloacutegico

para a literatura

33

Pode ser a uacuteltima palavra noutro sentido a insensata erracircncia da literatura antes de sua extinccedilatildeo final Natildeo que eu imagine que a literatura vaacute morrer algum dia enquanto os homens falarem e escreverem Mas podem cessar de ler ou pelo menos de ler tais coisas Eu de minha parte natildeo leria mais que um paraacutegrafo daquilo se natildeo conhecesse vocecirc () Por que vocecirc continua inteligiacutevel e sincero nos versos Se a literatura deve se desenvolver ao longo das linhas de sua obra mais recente ela certamente se tornaraacute como Shakespeare aludiu haacute seacuteculos passados algo parecido com nada (Ibid pp 712-713)

Aleacutem da jaacute exposta incompreensatildeo eou desinteresse que os excertos de

Finnegans wake causaram nos leitores mesmo naqueles que eram proacuteximos de

James Joyce e que jaacute nutriam admiraccedilatildeo por seu trabalho o que nos chama a

atenccedilatildeo eacute a reflexatildeo direta de Stanislaus mdash que era assim como o irmatildeo mais

velho um literato mantinha anotaccedilotildees sobre literatura e arte e escreveu trecircs

livros sobre Joyce Dublin e literatura dois deles publicados postumamente mdash

ao deparar-se com a existecircncia daquele texto sobre o proacuteprio destino da

literatura A maneira como ele enxerga a radicalidade de Finnegans wake lhe diz

que se ela passasse a ser constituiacuteda cada vez mais por obras como essa

poderia ter a sua existecircncia ameaccedilada ou ao menos os seus pilares fortemente

balanccedilados Levantando a hipoacutetese de que o nuacutemero de leitores diminuiria cada

vez mais atribui a culpa da ldquotendecircncia ao nadardquo ao proacuteprio texto afastando as

pessoas por sua aridez Natildeo se trata simplesmente de uma mudanccedila no

entendimento de gecircnero nem de inovaccedilotildees estruturais e formais (que

demonstrariam uma contribuiccedilatildeo ou uma destruiccedilatildeo parcial ainda dentro da

literatura) de alguma maneira Finnegans wake ou acabaria com a literatura ou

ficaria agrave margem dela

Joyce poreacutem tinha a consciecircncia de que seu projeto inevitavelmente

envolvia um caraacuteter em algum niacutevel obscuro ou embaccedilado certamente de difiacutecil

compreensatildeo imediata mas confiava com algum otimismo na possibilidade de

que os leitores atravessariam as dificuldades do texto e admirariam o que ele

sistematizou Dizia claramente que ldquoo mundo da noite natildeo pode ser representado

na linguagem diurnardquo e ldquoPara Claud Sykes insistiu ldquoEacute tudo tatildeo simples Se

algueacutem natildeo entende uma passagem tudo o que precisa eacute ler em voz altardquo (Ibid

p 729)

34

Natildeo parecia concordar portanto com a preocupaccedilatildeo que alguns lhe

expressavam a respeito do caraacuteter ou mais ou menos literaacuterio de sua obra Ao

contraacuterio parecia entender que sim era uma obra muitiacutessimo distinta mas que

trazia consigo algo de grandioso por si e em si natildeo necessariamente grandioso

pela razatildeo de quebrar paradigmas muito menos o iniacutecio de uma ldquonovardquo literatura

toda pautada em seu estilo Augusto de Campos em ldquoOutras palavras sobre

Finnegans wakerdquo aponta a reaccedilatildeo do escritor irlandecircs a essas provavelmente

inesperadas criacuteticas de seu digamos ex-admirador (termo um tanto forte poreacutem

relativamente fiel ao que aconteceu) Ezra Pound bem como sua defesa diante

das acusaccedilotildees de ininteligibilidade

Mas Joyce natildeo se deixou desencorajar pelas objeccedilotildees de Pound (ao qual replicou obliquamente com trocadilhos e alusotildees no proacuteprio Finnegans wake) ldquoEacute possiacutevel que Pound tenha razatildeordquo escreveu a Harriet Shaw Weaver em 1927 ldquomas eu natildeo posso voltar atraacutesrdquo Como esclarece Forrest Read o escritor se defendia das acusaccedilotildees de obscuridade que lhe faziam agrave eacutepoca argumentando ldquoUma grande parte da existecircncia dos seres humanos se passa em um estado que natildeo pode ser tornado sensiacutevel pelo uso da linguagem lsquode olhos abertosrdquo uma gramaacutetica preacute-fabricada um enredo linear (CAMPOS 2001 p 195)

Por mais complexo que seja o texto de Joyce e por mais controversa que

tenha sido a sua recepccedilatildeo o supracitado guia A skeleton key de Joseph

Campbell e Henry Morton Robinson foi publicado apenas cinco anos depois da

publicaccedilatildeo integral de Finnegans wake demonstrando leitura de consideraacutevel

aprofundamento vertical e a percepccedilatildeo de inuacutemeras referecircncias presentes na

obra em um periacuteodo relativamente curto de tempo Na introduccedilatildeo denominada

ldquoIntroduccedilatildeo a um assunto estranhordquo (que foi traduzida para o portuguecircs por

Augusto de Campos e publicada na ediccedilatildeo mais recente do Panaroma do

Finnegans wake de 2001) os autores de A skeleton key alertam o leitor ingecircnuo

ou temeroso a respeito do que se encontraraacute na obra magna de Joyce sem

negar a existecircncia de algumas dificuldades nesse percurso Apontam

explicitamente para o terreno aacuterido com que se defrontaraacute o leitor conseguem

fazecirc-lo poreacutem de forma que apesar da honestidade ao dizer e ao pesar os

35

obstaacuteculos prevaleccedila um tom positivo e mesmo uma espeacutecie de convite direto

a essa jornada literaacuteria incomparaacutevel sobre a qual escolheram desenvolver um

estudo de alguma maneira democratizador

O vasto desiacutegnio e a intrincada estrutura de Finnegans wake datildeo ao livro um aspecto proibitivo de impenetrabiidade Agrave primeira vista parecemo-nos defrontar com uma selva densa e enganosa iacutenvia e recoberta por luxuriantes perversidades de forma e linguagem () Empreita a imaginaccedilatildeo exige disciplina e tenacidade dos que querem segui-lo na aventura Contudo algumas das dificuldades desaparecem desde que um leitor bem disposto encontre alguns pontos cardeais e acerte o rumo Entatildeo o imenso mapa de Finnegans wake comeccedila lentamente a desdobrar-se emergem as figuras e os motivos os temas tornam-se reconheciacuteveis e o ouvido vai-se familiarizando cada vez mais com o vocabulaacuterio de Joyce Natildeo se espere alcanccedilar um entendimento completo num primeiro e aacutevido embate na verdade pode-se natildeo lograacute-lo nunca (CAMPBELL ROBINSON 2001 p 152)

Joyce ouviu mais de uma vez que sua obra final natildeo era ou natildeo fazia parte

da literatura Pelo menos duas dessas ocorrecircncias estatildeo documentadas em sua

biografia como duas ocasiotildees em que o parecer foi quase idecircntico A primeira

foi na leitura de um fragmento frente a um grupo pequeno de amigos em que

tendo sua opiniatildeo requisitada por Joyce a irlandesa Mary Colum respondeu

ldquoJoyce eu acho que isso estaacute fora da literaturardquo (ELLMANN 1989 p 782) Na

outra ocasiatildeo figura uma inglesa que nos permanece anocircnima Ela ouviu Joyce

lendo um trecho e supostamente disse apenas ldquoIsso natildeo eacute literaturardquo Segundo

registra o bioacutegrafo Richard Ellmann Joyce respondeu ldquoFoirdquo ldquoquerendo dizer que

fora enquanto ela escutavardquo (Ibid p 865)

O problema natildeo estaacute no texto de James Joyce mas no que se espera de

um texto literaacuterio Propor uma nova focircrma no entanto parece-nos inuacutetil porque

natildeo estamos pensando somente no que abarcaria Finnegans wake afinal que

formatos abarcam a literatura Se inventaacutessemos os moldes sob medida apoacutes

uma extensa pesquisa e numerosas releituras natildeo teriacuteamos nada aleacutem de um

molde natildeo para ldquoliteraturardquo mas para o Wake Quando nos propuseacutessemos a ler

qualquer outra obra literaacuteria eacute certo que nos deparariacuteamos com outras

36

dificuldades e entatildeo o molde jaacute estaria inutilizado novamente Tentaremos

entatildeo operar a leitura que natildeo busca generalidades ou padrotildees nem constroacutei

guias idealmente universais Eacute claro que produzindo uma dissertaccedilatildeo e

investigando a relaccedilatildeo entre o que a teoria espera do livro e o que o livro entrega

agrave teoria esse intercacircmbio seraacute em alguma medida necessaacuterio no entanto o

ponto central natildeo eacute ler o Wake a partir de alguma teoria ou a partir de algueacutem O

meacutetodo aqui parte do lanccedilar-se ao texto ler Finnegans wake Ponto Meacutetodo

antimetoacutedico

Conta-se que James Joyce disse ldquocom um sorriso cacircndidordquo para o poeta

e ativista americano Max Eastman (1883-1969) ldquoA exigecircncia que faccedilo para o

meu leitor eacute que ele devote sua vida inteira a ler meus livrosrdquo (ELLMANN 1989

p 865) Relevando-se o possiacutevel exagero da expressatildeo ldquodevote sua vida inteirardquo

ainda que se referisse certamente agrave crescente complexidade que suas obras

apresentavam Joyce gostava mais de saber que era lido do que de

necessariamente ser elogiado ainda que a incompreensatildeo o desanimasse (e

que ser lido por mais pessoas significasse um risco maior de ser

incompreendido) Outra frase ainda mais hiperboacutelica eacute a famosa definiccedilatildeo de

leitor ideal que seja aquele que ldquosofra de uma insocircnia idealrdquo (Id)

Um possiacutevel pedantismo por traacutes do tom jocoso eacute anulado por diversas

outras declaraccedilotildees como as que se referem a Finnegans wake como tatildeo

somente um livro divertido mdash o oposto do que a famosa declaraccedilatildeo de que foi

escrito ldquopara manter os criacuteticos ocupados por trezentos anosrdquo (Id) ldquoEu sou

apenas um palhaccedilo irlandecircs um grande piadista do universordquo disse certa vez

ao escritor francecircs Jacques Mercanton (1910-1996) e respondendo a uma

pergunta de Terence White Gervais (1913-1968) sobre o Wake ter niacuteveis de

significado disse ldquoNatildeo natildeo Eacute feito para fazer vocecirc rirrdquo (Id) Qualquer que seja

a funccedilatildeo proeminente no Wake seja a de divertir seja a de ocupar criacuteticos mdash ou

ambas mdash parece-nos absolutamente incogitaacutevel que qualquer autor que

trabalhe por anos a fio em uma obra prefira natildeo ser lido e eacute acima de tudo o

compromisso de lermos Finnegans wake aquilo com que nos comprometemos

aqui

37

O ponto central dessa tentativa se desenlaccedila em torno da questatildeo do

tempo tomando-o natildeo apenas como instacircncia literaacuteria mas tambeacutem filosoacutefica

perpassando discussotildees da metafiacutesica de diversas eacutepocas tambeacutem sem a

concentraccedilatildeo no conceito de tempo para algum filoacutesofo especiacutefico A escolha

desse tema se justifica facilmente para aqueles que sabem um pouco sobre

como Joyce concebeu sua uacuteltima obra sabendo da relevacircncia da filosofia do

italiano Giambattista Vico em sua construccedilatildeo com a ideia de temporalidade

constituiacuteda pela divisatildeo de trecircs Idades mais o ricorso bem como sobre a

problemaacutetica de se entender a cronologia da narrativa (ainda veremos se eacute

possiacutevel falar em ldquocronologiardquo e mesmo em ldquonarrativardquo) Ainda assim

pretendemos investigar para aleacutem do paradigma de Vico talvez vislumbrando o

que impede afinal que Finnegans wake seja encarado como qualquer outra

obra literaacuteria ou apenas como mais uma obra literaacuteria difiacutecil como outras

tambeacutem o satildeo Note-se aqui a diferenccedila entre um livro qualquer e um livro como

qualquer outro natildeo eacute que o desejado seja considerar Finnegans wake como um

livro qualquer eacute claro Mas que seja considerado pelo menos legiacutevel e divertido

como Joyce o considerou e tantos leitores tambeacutem o consideram ao inveacutes de se

perpetuar como um mito de livro que nunca eacute lido e pior como um livro

defeituoso jaacute que natildeo facilmente compreendido segundo os moldes da teoria

literaacuteria O que percebemos eacute que talvez ele seja considerado de difiacutecil

compreensatildeo especialmente nos casos em que o leitor o encara tendo uma seacuterie

de expectativas relacionadas a uma visatildeo tradicional de literatura assim como

acontece tambeacutem de uma outra maneira com Ulysses

Se confirmamos a hipoacutetese de que seja possiacutevel e ateacute mesmo desejaacutevel

uma ruptura dessas expectativas ou ao menos uma maior libertaccedilatildeo delas pode

ser que se torne finalmente possiacutevel que mais leitores ganhem um novo desafio

de leitura que poderatildeo constatar como efetivamente repleto de fruiccedilatildeo natildeo

apenas de operaccedilatildeo cognitiva casmurra e tediosa A isso se combina a ideia de

literatura concebida por Maurice Blanchot evocada em Escritura do retorno

Mallarmeacute Joyce e o meta-signo a respeito dela como experiecircncia-limite ldquoLer

no espaccedilo literaacuterio blanchotiano eacute compreender as variaccedilotildees de um devir mdash

sempre futuro do leitor mdash como uma vicissitude do tempo que eacute a proacutepria obrardquo

38

(EYBEN 2012 p 242) Nessa concepccedilatildeo a leitura eacute ldquouma escritura

interminaacutevel vertigem da noccedilatildeo de espaccedilordquo (Ibid p 243) A leitura com a qual

afirmamos assumir um compromisso eacute inscrita nesse entendimento escritural

em que ler natildeo eacute simplesmente decodificar evidentemente mas tambeacutem natildeo eacute

realizar uma hermenecircutica uma busca por verdade do texto e nem uma

facilitaccedilatildeo do desbravamento do texto joyciano que se apresenta de uma forma

especiacutefica a cada leitora mdash e inclusive a cada leitura no sentido de fazer-se

sempre novo

2 Sui generis

O questionamento sobre o gecircnero que muito recorrentemente se impotildee

constitui uma problemaacutetica jaacute levantada desde Ulysses e seu tal caraacuteter de

antirromance15 A dificuldade de inserir Finnegans wake em uma definiccedilatildeo desse

tipo eacute absolutamente clara e redundantemente lembrada O ponto mais perigoso

das investigaccedilotildees dessa natureza eacute o fato de que esse alhures inominado em

que se insere a obra final joyciana pode induzir o candidato a leitor agrave armadilha

de rejeitaacute-la ou diminui-la pelo que ela tem de avesso agraves possibilidades de

categorizaccedilatildeo mdash assumindo absurdamente a teoria como a entidade regente

superior agrave mateacuteria sobre a qual se teoriza Com esse entendimento natildeo raro

consideram-se as obras meros objetos que se natildeo se sujeitam a alguma focircrma

e nem satildeo capazes de gerar novas categorias devem por essa loacutegica ter algo

de mal estruturado ou tecircm melhor destino sendo ignoradas Isso

ocasionalmente se daacute entre teoacutericos da literatura de forma relativamente

anaacuteloga ao que acontece quando gramaacuteticos consideram o conjunto de regras

da gramaacutetica normativa de um idioma como aquilo que rege e direciona o que

deve ser levado em conta na liacutengua ignorando que esse conjunto de regras eacute

na verdade obviamente restrito e derivado em percurso convencional da mateacuteria

15 O termo que aqui usamos pela segunda vez (a primeira com o prefixo entre parecircnteses) parece ser posterior a Joyce Deriva de anti-roman (francecircs)anti-novel (inglecircs) De qualquer maneira soacute sintetiza o que jaacute se dizia sobre o romance ter acabado com Ulysses Joyce natildeo deve ter sido o primeiro autor a suscitar esse tipo de comentaacuterio o mesmo se disse de outras maneiras de Gustave Flaubert e Henry James

39

que o precede Sendo uma liacutengua algo mais amplo variado e mutaacutevel do que a

gramaacutetica normativa jamais conseguiraacute abarcar mesmo em seus mais

longamente descritivos iacutempetos eacute uma insanidade sobrepor a ela a

normatizaccedilatildeo assim como tambeacutem eacute insensato desconsiderar Finnegans wake

pelo que tem de inclassificaacutevel mdash ou dir-se-ia de indomaacutevel incompreensiacutevel

inacessiacutevel mdash algo que muito frequentemente se deu desde o iniacutecio da

publicaccedilatildeo de seus fragmentos como Work in progress

Enquanto Ulysses eacute o livro do dia Finnegans wake eacute o livro da noite com

sua linguagem oniacuterica permeada de ambiguidades e incertezas e seus

caminhos tortuosos Como Joyce dizia ldquoEacute natural que as coisas natildeo sejam tatildeo

claras agrave noite natildeo eacuterdquo (CAMPOS 2001 p 196) Como uma consequecircncia

inevitaacutevel classificar o Wake em um gecircnero literaacuterio mostra-se um desafio mdash ou

talvez um esforccedilo dispensaacutevel que nada acrescentaria agrave compreensatildeo da obra

Haroldo de Campos lanccedila possibilidades criativas de referecircncia classificatoacuteria

com os termos ldquoprosapoesiardquo (CAMPOS 2001 p 29) e ldquoromance-riordquo (Id p 27)

tambeacutem usado por Donaldo Schuumller ldquoPor flores e por floras por faunos e por

faunas por vidas e por vias flui Finnegans wake o romance e o rio o romance-

riordquo (SCHUumlLER 2004 p 15) (Eacute curioso notar uma outra possibilidade de grafia

para esse uacuteltimo termo inventado considerando que a opccedilatildeo pela duplicaccedilatildeo da

letra ldquorrdquo poderia remeter mais imediatamente agrave bela palavra que abre o fragmento

nuacutemero 1 de Finnegans wake optando por como Joyce fazia quase sempre

dispensar o uso de hifens mdash riverrun ou riocorrente na traduccedilatildeo feita por

Augusto de Campos e rolarriuanna na de Schuumller)

Respostas a essa problemaacutetica satildeo dadas no proacuteprio texto de James

Joyce mdash e devem ser entendidas sempre nesse mesmo lugar Uma possiacutevel

afirmaccedilatildeo concisa a respeito de tantos questionamentos entre eles o de gecircnero

o de literatura e o de cacircnone estaacute em uma frase relativamente curta ldquothis is nat

language at any sinse of the worldrdquo (FW 8312)16 Joyce condensou aiacute tanto a

afirmaccedilatildeo de que ldquoistordquo natildeo eacute linguagem em nenhum sentido do termo quanto a

de que natildeo eacute linguagem em parte nenhuma do mundo e ainda de que eacute

16 ldquoIsso eacute linguagem-noite em qualquer sentido do univerbordquo

40

linguagem noturna com ldquonatrdquo lembrando ldquonoiterdquo night (inglecircs) nacht (alematildeo)

ldquoworldrdquo entre palavra e mundo foi genialmente traduzido por Donaldo Schuumller

como ldquouniverbordquo Confirma-se assim tanto o estatuto noturno que acompanha

uma incerteza da escuridatildeo mdash vemos significantes como vemos silhuetas e

sombras que nos situam gerando incerteza mdash quanto a temporalidade da noite

que se resvala em madrugada indefinida que eacute a vastidatildeo do breu em que tanto

espaccedilo quanto tempo satildeo dotados dessa qualidade vasta e ao mesmo tempo

fosca confirma-se ainda a linguagem que natildeo eacute a linguagem que se espera em

nenhum sentido do univerbo o proacuteprio livro se afirma como uma suposta natildeo-

linguagem que eacute simplesmente uma linguagem de caraacuteter proacuteprio afirmado

como algo noturno que se contamina e se faz pelas possibilidades de labirintos

oniacutericos

De forma geral esse desprezo do cacircnone ou espeacutecie de pouco caso com

Finnegans wake eacute carregado de conclusotildees precipitadas e diga-se desistecircncias

raacutepidas Os leitores minguam como se o texto natildeo merecesse atenccedilatildeo natildeo

merecesse leitura Hipoacuteteses de que seja uma grande piada ainda se mantecircm

Como afirmaram em 1944 os pioneiros Joseph Campbell e Henry Morton

Robinson quando Finnegans wake foi publicado integralmente isto eacute cinco

anos antes

lsquoWhat does it all meanrsquo rsquoWhy should we bother about a book so hard to readrsquo were questions quite generally asked Even normally responsive readers dismissed the book as a perverse triumph of the unintelligible17 (CAMPBELL ROBINSON 2005 p xxi)

No entanto ainda que somente mais de vinte anos depois o estudioso norte-

americano tambeacutem pioneiro na incursatildeo profunda ao Finnegans wake William

York Tindall afirma ldquoEverything in the Wake has meaning definite limited by a

frame or immediate context and discoverable Our danger (hellip) Is too much

17 ldquolsquoO que isso tudo significarsquo lsquoPor que deveriacuteamos nos ocupar com um livro tatildeo difiacutecil de ser lidorsquo eram perguntas feitas frequentemente Ateacute mesmo os leitores normalmente interessados desprezaram o livro como um triunfo perverso do ininteligiacutevelrdquo (CAMPBELL ROBINSON 2005 p xxi)

41

ingenuityrdquo18 (TINDALL 1969 p 22) James Joyce engendra uma obra calcada

em racionalidade e enquadramento meticuloso de cada detalhe em uma

estrutura com criatividade ininterrupta e esse controle eacute visiacutevel ainda que resulte

em uma obra inclassificaacutevel e ainda que o resultado gere comentaacuterios que a

relacionem ao completo caos e a uma ideia de puro nonsense O que Tindall

aponta como o risco maior natildeo eacute note-se que o leitor talvez natildeo entenda o livro

ou natildeo veja alguma referecircncia mas sim que seja ingecircnuo diante da existecircncia

de possibilidades no texto e o tome por puro fingimento de quebra-cabeccedila

As dificuldades satildeo evidentes o susto ou a antipatia causada pelo Wake

ultrapassou o passar dos anos Mesmo os leitores mais proacuteximos de entendecirc-lo

tiveram suas dificuldades resistecircncias e uma infinidade de criacuteticas diante dele

Como ler entatildeo hoje uma obra como Finnegans wake Estaacute aiacute para ser lida ou

para ser rejeitada tida como uma piada para manter criacuteticos ocupados ou como

exemplo do funcionamento da linguagem em uma mente esquizoide Exige-nos

uma postura diferenciada Estaacute dentro ou fora da literatura mdash ou eacute na verdade

sua ameaccedila

Haacute talvez um grande conjunto de duas maneiras grosso modo de se

encarar o texto literaacuterio ou uma obra de arte qualquer primeiro sentindo que

conseguimos extrair uma finalizaccedilatildeo de nossa leitura ou ao contraacuterio na

segunda maneira sentimo-nos grave e verdadeiramente impotentes ao sequer

cogitar essa possibilidade De forma geral haveria assim uma bifurcaccedilatildeo de

duas distintas e abrangentes escolas ou caminhos sendo aquela que daacute uma

interpretaccedilatildeo fixa considerada correta ou superior a vertente mais obsoleta Os

perigos da segunda no entanto satildeo tambeacutem apontados com frequecircncia natildeo se

pode dizer tudo e qualquer coisa dizem O receio de uma espeacutecie de perigosa

autotelia que desestabiliza o mais tradicional corpus hermenecircutico se instala

entre as duas extremidades bifurcadas pontas de diferentes abordagens que

natildeo somente lidam com o texto de maneiras antagocircnicas mas ainda e por isso

mesmo partem de noccedilotildees igualmente opostas da proacutepria ontologia de uma obra

18 Traduccedilatildeo livre do trecho de Tindall ldquoTudo no Wake tem um significado definido limitado por uma moldura ou contexto imediato e passiacutevel de ser descoberto Nosso risco eacute o excesso de ingenuidaderdquo

42

de arte Sendo a primeira vertente bastante autoexplicativa esgotando-se

facilmente qualquer tentativa de discorrer sobre ela poderiacuteamos abordar direto

o problema indicado na segunda de que tudo poderia ser dito na abertura

absoluta e desgovernada que descentraliza as interpretaccedilotildees da obra em uma

descentralizaccedilatildeo e horizontalidade total (e vejamos se eacute isso mesmo o que

ocorre) considerando no caso o texto literaacuterio e especificamente o Wake

aquele que poderia ser acusado de ser um dos textos mais anaacuterquicos e

ameaccediladores do seacuteculo XX

Em primeiro lugar dir-se-ia que o texto natildeo se termina

O texto que natildeo se termina significa tanto um texto que natildeo acaba quanto

um texto que noacutes natildeo terminamos de ler e ainda um texto que natildeo finalizamos

sendo impossiacutevel dar-lhe qualquer ultimato interpretativo Isso natildeo se reduz a

um caraacuteter interminaacutevel condicionado pela leitura uacutenica que cada leitor com seu

aparato psicoloacutegico e experiecircncia que lhe satildeo inerentes executa ao se deparar

com o texto Tampouco diz respeito somente a uma seacuterie de releituras feitas em

diferentes momentos histoacutericos de modo que Machado de Assis tenha sido

reinterpretado com o passar do tempo etc A infinitude de que se trata aqui natildeo

se refere a esse tipo de desdobramento ainda que natildeo os anule nem os negue

como processos naturais da presenccedila do texto em diferentes eacutepocas e sob

diferentes olhos

Se natildeo eacute entatildeo um desses fatores externos o que insere o texto no tempo

da infinitude poderiacuteamos inferir que seja assim alguma caracteriacutestica interna

No entanto faltam-nos dados mdash ou pior evidecircncias mdash de que seja possiacutevel a

separaccedilatildeo como se faria digamos entre textos primaacuterios e secundaacuterios ou

qualquer procedimento semelhante Soacute que isso potencialmente nos colocaria

sob o constrangimento de admitir que natildeo haacute obras de arte pois elas estariam

por toda a parte potencialmente tudo conteria a infinitude Tudo seria arte como

lidar com essa possibilidade que parece destruir as fronteiras de definiccedilatildeo entre

aquilo que eacute e o que natildeo eacute um objeto de apreciaccedilatildeo ou de estudo

43

Desfaccedilamos alguns passos Se natildeo considerarmos o texto em sua

projeccedilatildeo ao infinito isto eacute se admitirmos entatildeo que ele desemboca em uma

interpretaccedilatildeo e assim deteacutem atinente uma exegese fechada somos obrigados

a exploraacute-lo em busca de sua verdade Cada leitura investigativa seria como um

caminho para fora da caverna platocircnica estariacuteamos cada vez mais proacuteximos das

ideias Da mesma maneira que o caminho de acesso agrave episteacuteme natildeo rejeita o

mundo do familiar e da doacutexa mas em verdade confronta-se com as sombras

para nelas alcanccedilar a luz o contato com o texto de uma maneira insistente e

atenta desvelaria eventualmente sua verdade a despeito de qualquer aparato

teoacuterico-criacutetico com que qualquer leitor pudesse contar nessa varredura Nesse

sentido uma experiecircncia com o texto seria suficiente

Sabemos no entanto que interpretaccedilotildees unas natildeo nascem assim De

forma geral vecircm de fora para dentro de cima para baixo de maneira imposta e

consagrada por convenccedilotildees ou argumentos de autoridade A experiecircncia com o

texto traz agrave tona em geral alguns poucos consensos uma dose de subjetividade

e havendo consonacircncia teoacuterico-critica eventuais conclusotildees convergentes

quanto aos aspectos mais superficiais do texto em especial aqueles

relacionados agraves categorias mais estanques da forma Ainda assim nem sempre

haacute consenso mesmo nesse campo Gecircneros textuais podem parecer categorias

fortemente imisciacuteveis mas frequentemente natildeo satildeo facilmente definidas

Finnegans wake eacute justamente uma obra cujo gecircnero jamais foi definido mdash

ou (in)definido como sui generis mdash que sequer traz consigo roacutetulo evidente de

prosa ou de poesia Augusto de Campos expressa esse dilema de maneira

sinteacutetica com os neologismos ldquoprosoemardquo ldquoromance-riordquo ldquoromancepoemardquo

Esse noacute se alastra considerando que Wake natildeo se encaixa em um gecircnero uma

seacuterie de assunccedilotildees a seu respeito natildeo pode ser feita tatildeo facilmente e

possivelmente caem por terra A fuga de um conceito fechado assim em efeito

dominoacute acaba por impossibilitar uma seacuterie de inferecircncias que dele naturalmente

decorreriam assim como o contraacuterio tambeacutem se daacute com a fixaccedilatildeo de uma

categoria que consequentemente baliza tantas outras de imediato seja a

respeito da extensatildeo da forma da qualidade das potencialidades sonoras e

semacircnticas etc Se um texto eacute composto de versos eacute certamente um poema

44

tem estrofes possivelmente um esquema de rimas controlado se for um soneto

temos ainda mais inferecircncias prontas para serem testadas inclusive a respeito

do conteuacutedo se eacute conto eacute menor do que se for romance e assim por diante

Um texto inclassificaacutevel se apresenta dessa maneira jaacute de partida como

um problema em si uma fonte de inquietaccedilatildeo interminaacutevel ou que natildeo cessa

tatildeo rapidamente Mateacuteria para manter criacuteticos ocupados por anos como

profetizou o proacuteprio Joyce Corre o risco certamente de ser condenado para

fora da literatura mdash por natildeo caber nela natildeo ser contemplado em suas barreiras

Se o esquema existente natildeo o conteacutem comumente se supotildee a existecircncia de

defeito no texto natildeo uma possiacutevel limitaccedilatildeo das categorias que se consolidaram

para sua interpretaccedilatildeo O conservadorismo expulsa o que ameaccedila a tradiccedilatildeo por

preferir deixar de lado uma obra a implodir um sistema que abarca tantas outras

com seguranccedila e conforto Eacute instaurada uma problemaacutetica mesmo a partir do

ponto de confronto que eacute uma leitura na medida em que o leitor se espanta

diante do texto literaacuterio como discorre Piero Eyben em Escritura do retorno

Antes o texto joyceano torna-se pela falta repulsivo em sua intransitividade Natildeo haacute leitor que se veja nele identificado como completude Sua estrutura inacabada faz da verdade identitaacuteria uma falaacutecia De modo que o desvio o reveacutes de sua leitura nos leva a uma significacircncia zeroloacutegica na qual todo sujeito se anula e torna-se apenas membro da obra que este interpreta como significantes () A linguagem do inacabamento seria uma linguagem da falta pois coloca no caput o sem-cabeccedila (EYBEN 2012 p 610)

Rejeita-se o texto por saber que lhe impor uma interpretaccedilatildeo qualquer

seria gritantemente descabido Uma leitura de Finnegans wake que busque e

defina sua trama por exemplo encaixando no tempo no espaccedilo nos

personagens (protagonistas antagonistas) nos narradores e em todas as

categorias da narrativa uma seacuterie de respostas imutaacuteveis necessariamente

berraria sua artificialidade Para que se leia o texto como eacute sem distorcecirc-lo com

planificaccedilotildees simplificaccedilotildees e cerceamentos deve-se despi-lo das forccedilas que o

comprimem Somente assim se pode ler o texto como ele se apresenta

45

respeitando sua integridade Deve-se entatildeo ir agrave leitura esperando nada menos

que o infinito

Lembramos aqui o que diz Jacques Derrida em ldquoDuas palavras por Joycerdquo

Eacute com este sentimento poderia dizer com este ressentimento que devo estar lendo Joyce haacute muito tempo () Mas natildeo sei se podemos dizer ldquoeu leio Joycerdquo como acabei de fazer Naturalmente soacute podemos ler Joyce quer saibamos disto ou natildeo Eacute a sua forccedila Mas os enunciados do tipo ldquoleio Joycerdquo ldquoleiam Joycerdquo ldquovocecirc jaacute leu Joycerdquo sempre me pareceram cocircmicos irresistivelmente (DERRIDA 1992 p 21)

Nessa mesma palestra de 1982 Derrida tambeacutem faz uma ldquosimplificaccedilatildeo

descabidardquo em duas grandezas Refere-se agraves maneiras de o autor deixar-se nos

arquivos de sua obra apagando-se quanto mais ela se faccedila presente Apesar de

ter sido proposto aqui o exame da outra ponta dessa relaccedilatildeo mdash a do leitor mdash a

primeira atitude de autor descrita por Derrida pode ser vista como anaacuteloga agrave

maneira de leitura que expusemos ligada a certezas e fincada em uma ideia de

verdade textual consiste naquele que ldquoescreve para darrdquo de maneira que a obra

se decirc a ponto de poder ser valorada ldquogostaacutevelrdquo ldquoamaacutevelrdquo (Ibid pp 19-20) e

diriacuteamos ainda acessiacutevel e possiacutevel A segunda atitude que Jacques Derrida

considera semelhante agrave de Joyce eacute a de hipermneacutesia em vez de acessarmos

uma materialidade pura de texto no esquecimento do autor vivemos em funccedilatildeo

de sua memoacuteria em meio a sua presenccedila

Se o texto se nos apresenta dessa maneira precisamos estar dispostos

a entender que ele nos escapa Fugidio se transforma em espectro Sair da

caverna natildeo eacute ir aleacutem dela nem deixaacute-la para traacutes no percurso o caminho

platocircnico eacute um modo de estar que adentra mais como o movimento que

pretende mergulhar no texto literaacuterio natildeo se trata de ultrapassaacute-lo mas de estar

cada vez mais inteiramente nele Nesse sentido confessa-nos Derrida ldquoSim a

cada vez que escrevo e mesmo nas coisas da academia um fantasma de Joyce

estaacute presente em minha abordagemrdquo (Ibid p 23) O entendimento de Jacques

Derrida de um caraacuteter espectral que ronde o texto atraveacutes da escritura eacute profiacutecuo

46

em uma seacuterie de anaacutelises aqui podemos ensaiar aproximaacute-lo de uma ideia de

temporalidade que pode ser retirada do proacuteprio Finnegans wake

3 Fluidez vida-morte

A mitologia egiacutepcia estaacute presente em quase todos os capiacutetulos de

Finnegans wake agraves vezes escondida entre nomes que assinalam muacuteltiplas

assinaturas mdash desfazendo portanto a proacutepria ideia de nome mdash- e engendrando

numerosas rasgaduras temporais No capiacutetulo 4 do livro I o ldquolivro dos paisrdquo

denominado por Campbell e Robinson ldquoHis demise and resurrectionrdquo o

desmantelamento dos nomes eacute especialmente profiacutecuo Em meio a isso

segundo Donaldo Schuumller ldquoO tempo cronoloacutegico se anula em favor de um tempo

natildeo medido por aparelhos tempo feito soacute de fluxos () Em julgamento estaacute

nossa cultura nossas certezas nosso vocabulaacuterio nossa maneira de dizer e de

narrarrdquo (2003 p 169) HCE eacute preso e logo o rio Nilo eacute evocado aproximando-o

de Osiacuteris logo torna-se personagem morto ldquoonce and for all out of plotty

existencerdquo (FW 7618) fora da ldquoexistecircncia narradardquo como aponta Schuumller

Podemos apontar aiacute uma espeacutecie de resumo de toda a literariedade de

Finnegans wake HCE eacute capturado e morre de certa forma para sempre se

morrer significa estar fora de uma certa narrativa natildeo estaraacute ausente poreacutem

por toda a eternidade O lugar onde jaz eacute construiacutedo por um arquiteto com nome

de cemiteacuterio parisiense Peurelachasse (Pegravere Lachaise) que condensa la peur

(medo em francecircs) e la chasse (a caccedila) pois natildeo eacute um natildeo-lugar dos mortos

ao contraacuterio a morte aqui eacute acontecimento que desemboca em diluacutevio que

retoma a forccedila vital O que seria um par de oposiccedilatildeo se (con)funde e tem sua

ambivalecircncia transformada (ou transtornada) vida e morte dia e noite paimatildee

e filho(a)(s) os irmatildeos Shem e Shaun (ao contraacuterio de oposiccedilotildees riacutegidas como

Caim e Abel Rocircmulo e Remo)

Como dissemos o capiacutetulo eacute rico em temporalidade despedaccedilada o

tempo eacute indicado de maneira antirrepresentativa sem que se possa calcular ou

mapear um momento a partir de suas referecircncias ldquoBest This wastohavebeen

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underground heavenrdquo (FW 7633)19 Diferentes tempos verbais intercalados natildeo

somente plantam uma duacutevida mas efetivamente explicitam a impossibilidade de

definiccedilatildeo a fluidez entre os periacuteodos A morte mdash especialmente aquela que seraacute

seguida de ressureiccedilatildeo mdash perambula por presente passado e futuro ldquoBut abide

Zeitrsquos sumonserving rise afterfallrdquo (FW 787)20 Nesse excerto o tempo parece

ser espeacutecie de entidade burocraacutetica que controla o universo de Finnegans wake

garantindo que um ciclo seja cumprido A morte de Humphrey Chimpden

Earwicker bem como todos os seus corolaacuterios natildeo satildeo controlaacuteveis por seres

que controlem seu tempo e a sucessatildeo de acontecimentos de suas vidas o ciclo

mdash como nas disposiccedilotildees de Giambattista Vico mdash eacute inelutaacutevel e forccedila sua

continuidade a despeito das vontades Elucubraccedilotildees natildeo mudam as

necessidades do Zeit A fluidez eacute como a correnteza do rio que natildeo escolhe seu

direcionamento

Se frente ao texto um periacuteodo sequer puder ser lido de apenas duas

maneiras diferentes jaacute teriacuteamos aiacute dois textos inteiros tambeacutem completamente

distintos A semacircntica natildeo pode se encerrar a cada frase nem a cada termo

nem a cada trecho ou capiacutetulo ou seja o que for lemos o todo considerando que

todos os trechos estejam incessantemente interligados e interdependentes de

maneira que a totalidade do texto seja um organismo indissoluacutevel Quais as

chances assim de que um texto qualquer seja absolutamente riacutegido com

significados puramente literais que alcanccedilam seus alvos pontualmente sem

nenhuma borda nem fenda de significaccedilatildeo seja ele concebido como texto

literaacuterio desde o berccedilo ou natildeo

Em vez de concluir que haacute certos textos que rebeldes fogem das reacutedeas

do sistema literaacuterio e suas classificaccedilotildees determinantes tendemos muito mais a

enxergar que todo texto tem uma faiacutesca disseminativa dentro de si que

frequentemente eacute ignorada em leituras que o planificam em uma sequecircncia

palpaacutevel para as classificaccedilotildees agraves quais estamos acostumados que nos

aparecem como urgecircncias quando na verdade a urgecircncia eacute o proacuteprio texto Ele

demanda nossa leitura urge que nos deparemos com os textos como satildeo e que

19 ldquoBem Este subterracircneo foi-para-haver-de-ser-ceacuteu ()rdquo 20 ldquoMas aguardemos o requerimento do tempo despertar apoacutes-quedardquo

48

rejeitemos distorccedilotildees que parecem visotildees transluacutecidas e por isso nos mantecircm

confortaacuteveis O que o texto faz eacute nos tirar do conforto de nossa liacutengua e nos

lanccedilar a uma outra proacutepria dele mesmo se nos lanccedilamos agrave leitura sem buscar

categorias estanques podemos finalmente conseguir sair do que julgamos

concreto em direccedilatildeo ao que nos vem de espectral prismaacutetico ndash aquilo que natildeo

pode existir num tempo que natildeo seja o do porvir Qualquer presentificaccedilatildeo

estanque negaria essa situaccedilatildeo de promessa do futuro promessa que

permanece messianismo sem previsatildeo pois caso se concretize o porvir se

desmantela no cumprimento da promessa que eacute seu desaparecimento

Apaga-se por inteiro o suposto perigo de que no infinito qualquer coisa

que nada tem a ver com o texto possa ser dita ou acusaccedilatildeo da leviandade de

que assim tudo seja arte indiscriminadamente receios fraacutegeis e superficiais que

nos limitam a concepccedilotildees especiacuteficas de arte e nos afastam normativamente de

leituras que sejam um modo de estar no texto mdash e portanto efetivamente o

contraacuterio de sair dele ou de excedecirc-lo O problema na verdade reside em

subestimar as possibilidades de um texto muito mais do que em superestimar

qualquer rastro ou sombra do espectro escritural esvaindo-se aiacute a proacutepria

essecircncia do texto em troca de uma carapuccedila que o defina

Um porvir desfigurado e desfigurante faz do texto uma mateacuteria de

instabilidade nas matildeos do leitor O caraacuteter fantasmagoacuterico latente povoa a escrita

de escritura O caraacuteter espaccedilo-temporal do Wake nos leva para o caminho do

intertexto do subtexto de tudo que estaacute contido e condensado no uacutenico texto

que chamamos de Finnegans wake O que desmantela as certezas estaacute

anunciado desde o tiacutetulo haacute um veloacuterio um luto e um tempo da eternidade da

morte mas haacute o movimento de despertar acordar o reiniacutecio o ciclo se faz

novamente no sim que responde pela continuaccedilatildeo eterna natildeo pela finalizaccedilatildeo

Desde o tiacutetulo portanto temos a postura de leitura definida ler e reler Finnegans

wake sem cronograma sob o espectro de Joyce e da babelizaccedilatildeo das liacutenguas

sem delimitaccedilatildeo espaccedilo-temporal

O espectro tem relaccedilatildeo ainda com o que natildeo se materializa e por isso

natildeo pode ser visto com clareza Entre tantos temas e motivos recorrentes

49

recirculando por todo o Finnegans wake a visatildeo eacute um dos sentidos amplamente

explorados como tema e fonte de trocadilhos A elaboraccedilatildeo altamente

perfeccionista do aspecto foneacutetico de Wake eacute atribuiacuteda tambeacutem agrave apuraccedilatildeo da

audiccedilatildeo inevitaacutevel consequecircncia da cegueira causada pelo glaucoma e nos faz

recordar a recomendaccedilatildeo de Joyce de que se lessem os fragmentos em voz

alta para uma experiecircncia outra de leitura (ou para a experiecircncia) A gravaccedilatildeo

da reacutecita feita pelo proacuteprio autor do episoacutedio ldquoAnna Livia Plurabellerdquo ou ldquoALPrdquo

como ele chamava eacute uma reliacutequia de grandioso valor para estudiosos de sua

exiacutemia obra Em texto composto por tantos neologismos e em meio agrave

simultaneidade de idiomas de diversos troncos linguiacutesticos haacute diversos

caminhos e muacuteltiplas escolhas para a entonaccedilatildeo o ritmo e a pronuacutencia do texto

de Finnegans wake e essas satildeo decisotildees que devem ser feitas pelo leitor capaz

de vislumbrar a polissemia de cada sintagma por meio da leitura em voz alta

A necessidade de envolvimento do leitor ouvinte instrumentista ou

espectador na arte caracterizada como moderna eacute sempre decorrente de uma

autonomia que lhe eacute conferida propositalmente ou natildeo em certa medida frente

agrave obra que se mostra maleaacutevel e porosa a esse envolvimento O fato de que

Finnegans wake eacute uma obra que deliberadamente proporciona autonomia ao

leitor transparece em sua estrutura inclusive se considerarmos a decisatildeo

primeira de por onde comeccedilar pois o livro pode ser acessado a partir de qualquer

um de seus fragmentos a despeito da numeraccedilatildeo neles embutida Esta facilita

certamente a citaccedilatildeo o compartilhamento etc mas a ordem de leitura eacute lanccedilada

ao leitor mdash um engendramento crsquoest agrave vous de sobreposiccedilatildeo de estados natildeo

comunicaacuteveis de simultaneidade de possibilidades no engendrar de um

multiverso em detrimento de um universo

Em Obra aberta o teoacuterico italiano Umberto Eco estabelece fronteiras

fundamentais entre obras tradicionais e obras modernas referindo-se

propriamente a suas formas e concepccedilotildees fugindo de definiccedilotildees de cunho

meramente histoacuterico-diacrocircnico O ponto de partida basilar para essa divisatildeo eacute

o fator da ambiguidade como ausente no caso das obras claacutessicas ou moldadas

tradicionalmente ou presente no caso das obras de arte modernas Citando

Finnegans wake obra uacuteltima de James Joyce como paradigma de obra moderna

50

caracterizada como aberta segundo seus preceitos isso fica mais claro se for

colocada a seguinte pergunta relativamente simples de que trata o referido livro

ou dir-se-ia ldquosobre o querdquo eacute Finnegans wake

No caso de obras jaacute haacute muito tempo consideradas claacutessicas a resposta

pontual a essa pergunta eacute possiacutevel ao menos segundo Umberto Eco sem

acarretar muitos questionamentos estruturais No caso de uma opera aperta

como Finnegans wake no entanto a resposta pontual eacute impossiacutevel mdash ou melhor

eacute possiacutevel poreacutem sempre parcial e funcionando como gatilho para outros pontos-

problema que devem ser alinhados com a resposta escolhida Podemos ensaiar

possibilidades sobre o Wake afirmando por exemplo que o livro trata de luto ou

que eacute sobre julgamento ou sobre uma famiacutelia dublinense ou a respeito de sonho

e inconsciente ou que eacute um sonho do protagonista haacute diversas respostas e

nenhuma parece vir como satisfatoacuteria Cada uma delas deve implicar uma seacuterie

de definiccedilotildees estruturais mdash se a narrativa eacute um sonho deve haver algueacutem que

sonha se eacute o (possiacutevel) protagonista HCE quem sonha temos entatildeo um foco

narrativo definido Estabelecer poreacutem um foco narrativo cuja fonte se

estabelece no plano mental inconsciente tem implicaccedilotildees outras a respeito de

como defini-lo em seu estatuto de narrador e de personagem Assim eacute

necessaacuterio atentar-se ao fato de que cada afirmaccedilatildeo acarreta uma seacuterie de

outras consequecircncias

A indefiniccedilatildeo de elementos estruturantes da narrativa no entanto natildeo eacute

vaacutelida somente para uma obra extrema como Finnegans wake mas para

qualquer obra que se aplique ao paradigma estabelecido por Umberto Eco

Ademais destaca-se o papel do leitor na projeccedilatildeo semacircntica da obra natildeo do

ponto de vista do senso comum de que a subjetividade confere certo empirismo

interpretativo aberto a uma relatividade sem horizonte definido mas em sentido

um tanto mais fleumaacutetico de que a manipulaccedilatildeo do objeto interfere no resultado

do mesmo mdash quase como um experimento de Erwin Schroumldinger Satildeo por

conseguinte cabiacuteveis as analogias com o Livre de Steacutephane Mallarmeacute

(poe)moacutebiles a muacutesica aleatoacuteria de Luciano Berio (que produziu muacutesica

inspirada no livro Chamber music ou Muacutesica de cacircmara de Joyce) e de

Karlheinz Stockhausen A diferenccedila do envolvimento necessaacuterio do puacuteblico

51

apareceria para Eco portanto em um grau consideravelmente maior na obra de

arte moderna

Lembrando o que diz Samuel Beckett sobre o texto de Joyce o que

podemos destacar a respeito da maneira como se apresentaria um

acontecimento ao leitor em Finnegans wake eacute que isso na verdade

simplesmente natildeo ocorre ou ao menos natildeo em termos de uma cena contada

narrada como conhecemos A narrativa como a conhecemos em que uma cena

eacute mostrada contada ao leitor eacute substituiacuteda aqui pela proacutepria experiecircncia da cena

ou da coisa que seria descrita Ao inveacutes de contar uma cena daacute-se a mesma ao

leitor Natildeo se trata apenas de se desapegar do tipo de descriccedilatildeo realista

objetiva que presume distanciamento pois tambeacutem natildeo se trata do relato em

primeira pessoa subjetivo e por isso duacutebio na tentativa de explorar a psique

de uma personagem especiacutefica em suas contradiccedilotildees internas tentando acessar

a complexidade de sua consciecircncia Nenhuma dessas abordagens opostas seria

possiacutevel no Wake pois nele nem sempre se pode diferenciar as vozes do texto

mdash e nem sempre eacute preciso uma vez que natildeo haacute enredo que dependa desse

acompanhamento

4 Paralelos psicanaacutelise teoria da relatividade muacutesica

A disposiccedilatildeo estrutural de Finnegans wake em circularidade eacute o que

permite o acesso a partir de qualquer paacutegina e o leitor por sua vez tem

autonomia explicitamente garantida impelido a tomar uma decisatildeo no primeiro

acesso ao livro A circularidade no entanto e a numeraccedilatildeo dos fragmentos

sugerem uma ordem taacutecita mdash que natildeo pode ser simplesmente ignorada mas

natildeo deve ser vista tambeacutem como a uacutenica forma de leitura assim se engendra

o niacutevel de ambiguidade da obra Como em Ulysses a presenccedila da Odisseia na

concepccedilatildeo de cada um dos capiacutetulos eacute uma possiacutevel referecircncia de leitura mas

natildeo a linha central isto eacute natildeo eacute um necessaacuterio paralelismo agrave incursatildeo ao livro

de Joyce Ler literatura eacute dispor-se a um caminho que natildeo busca certezas ao

contraacuterio do que o apego a anaacutelises literaacuterias demasiado pragmaacuteticas ainda que

52

o neguem possa sugerir Mesmo em um livro de cunho bastante tradicionalista

como A Anaacutelise literaacuteria de Massaud Moiseacutes o lembrete eacute claro

A leitura com profundidade pressupotildee sempre que o texto literaacuterio sendo composto de metaacuteforas eacute ambiacuteguo por natureza ou seja guarda uma multiplicidade de sentidos Ler mal significa natildeo perceber a extensatildeo dessa ambiguidade ou apenas percebecirc-la sem poder compreendecirc-la ou justificaacute-la (MOISEacuteS 1969 p 24)

Exigir uma explicaccedilatildeo para cada noacute morfoloacutegico ou sintaacutetico que se

vislumbra no texto ou acusa-lo de impor dificuldades ao acompanhamento do

enredo satildeo acusaccedilotildees a Finnegans wake que partem de uma concepccedilatildeo

possivelmente questionaacutevel de literatura eou lidam com uma ideia redutora e

limitante de exegese ignorando a alta voltagem do cociente conotativo que o

texto oferece e a riqueza de leituras e possibilidades mdash que estatildeo longe de

formar um todo incoerente ou um texto composto de nonsense ao contraacuterio

Finnegans wake foi concebido de forma comprovadamente calculada e o humor

do texto estaacute distante de ser tatildeo hermeacutetico quanto se pensa Campbell e

Robinson utilizam um galicismo bastante peculiar para caracterizar Finnegans

wake cauchemar Derivado de cauquemaire termo registrado a partir do seacuteculo

XV pode definir simplesmente uma espeacutecie de sonho incocircmodo no limiar do

que seria um pesadelo No dicionaacuterio Larousse21 eacute precisamente uma

ldquomanifestaccedilatildeo oniacuterica que pode causar uma forte resposta emocional negativa

na mente de medo ou de horrorrdquo Sua formaccedilatildeo se deu a partir do termo picardo

cauchier que significa ldquopressionarrdquo ou ldquoempurrarrdquo e do termo germacircnico

proveniente do holandecircs mare que significa ldquoespectrordquo ldquofantasmardquo O campo

semacircntico em que se enquadra o termo envolve da anguacutestia ao desespero O

leitor portanto estaraacute avisado natildeo se trata de um sonho planificado e agradaacutevel

mas de um percurso sinuoso de que se deve duvidar e ao qual nos entregamos

sem reservas O leitor deve se dispor ao obscuro em vez de exigir clareza como

em um sonho caracterizado por Freud em que objetos satildeo siacutembolos e o que

21 Larousse 2013 ldquoCauchemar nom masculin Recircve peacutenible avec sensation doppression dangoisse Ideacutee chose ou personne qui importune ou cause du tourment Ce professeur est mon cauchemar Synonymes Hantise obsession tourmentrdquo

53

aparenta ser apenas um fato que se explica por si pode natildeo secirc-lo A isso se

acrescenta o que diz Freud sobre o reflexo (como ato involuntaacuterio automaacutetico

natildeo uma decisatildeo consciente) da negaccedilatildeo e a pulsatildeo de destruiccedilatildeo ldquoO texto [da

negativa] pode negar-se agrave interpretaccedilatildeo como meio de reagir agraves palavras de um

outro significante da proacutepria enunciaccedilatildeordquo (EYBEN 2012 p 283) A negaccedilatildeo

que vem do estranhamento produz afirmaccedilatildeo soacute se enxerga em Finnegans

wake o estranho a partir de noccedilotildees como narrativa e tempo linear negando-se

o estabelecido em direccedilatildeo a uma (nova) resposta

A referecircncia a Sigmund Freud natildeo vem apenas dos dados biograacuteficos em

afirmaccedilotildees do proacuteprio autor de que o livro eacute configurado como um sonho Joyce

dizia natildeo ser nada simpatizante da psicanaacutelise Apesar disso Lucia sua filha

tinha distuacuterbios mentais que ficaram mais graves com o passar do tempo e

chegou a se consultar com Carl Jung colega de Freud nos primeiros estudos

psicanaliacuteticos com quem ela se deu inicialmente muito bem Em Finnegans

wake Joyce cita tanto Freud quanto Jung maiores referecircncias no nascimento

da psicanaacutelise um tanto sardonicamente No fragmento 115 como destaca

Lenita Esteves em sua tese lecirc-se ldquoold Sykos who have done our unsmiling bit

on rsquoalices when they were yung and easily freudenedrdquo (FW 11521-23) Como

muito do que aparece no Wake (e muito do que aparece em nossos sonhos) a

citaccedilatildeo natildeo eacute clara e direta estando escondida poreacutem possiacutevel de ser

encontrada (ldquoyung and freudenedrdquo) com o termo ldquosykos on lsquoalicesrdquo separado em

duas partes como uma ldquocadeia truncadardquo (ESTEVES 1999 p 86) formando

ldquopsychoanalysisrdquo e a referecircncia agrave Alice de Lewis Carroll mdash autor cuja obra

sabemos ter influenciado Joyce e que aparece no trecho aqui referido como ldquoold

sykordquo (ldquoold psychordquo um ldquovelho loucordquo) O poeta e criacutetico dinamarquecircs Kristensen

certa vez perguntou se Joyce acreditava na Ciecircncia nova de Giambattista Vico

ao receber a sugestatildeo de Joyce que a lesse para ler Finnegans wake Joyce

respondeu ldquoNatildeo creio em nenhuma ciecircncia mas minha imaginaccedilatildeo cresce

quando leio Vico como natildeo aconteceu quando li Freud ou Jungrdquo (ELLMANN

1989 p 853)

Carl Jung chegou a ler Joyce e tambeacutem natildeo abrira caminhos para uma

simpatia maior entre eles ldquoJung garantiu que algumas de suas palavras

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ldquoportmanteaurdquo e neologismos eram notaacuteveis mas disse que eram acasos ela

[Lucia] e seu pai comentaria ele mais tarde eram como duas pessoas descendo

ao fundo de um rio uma caindo outra mergulhandordquo (Ibid p 837) A metaacutefora

do rio para a linguagem esquizofrecircnica pelo menos certamente teria agradado

Joyce se natildeo viesse nessa ocasiatildeo Especialmente vindo de algueacutem que havia

percebido em sua produccedilatildeo literaacuteria (e na de Lucia ao ler alguns de seus

poemas e apontar que havia ali indicaccedilotildees de problemas mentais) uma

exemplificaccedilatildeo de insanidade

Uma possiacutevel analogia entre uma obra como Finnegans wake e a

Interpretaccedilatildeo de Muitos Mundos (IMM) formulaccedilatildeo de estados relativos

elaborada pelo fiacutesico quacircntico Hugh Everett encontra-se no esteio da afirmaccedilatildeo

de Umberto Eco a respeito dessa mesma obra fazendo um paralelo entre a

relatividade de Einstein e as possibilidades diversas de tempos e espaccedilos

distintos e simultacircneos na obra de Joyce

Em Finnegans wake encontramo-nos enfim verdadeiramente na presenccedila de um cosmo einsteiniano curvado sobre si mesmo mdash a palavra inicial une-se agrave palavra final mdash e portanto acabado mas por isso mesmo ilimitado Todo acontecimento toda palavra encontra-se numa relaccedilatildeo possiacutevel com todos os outros e eacute da escolha semacircntica efetuada em presenccedila de um termo que depende o modo de entender todos os demais Isso natildeo significa que a obra natildeo tenha um sentido se Joyce introduz nela certas chaves eacute justamente por desejar que a obra seja lida num sentido determinado Mas esse ldquosentidordquo tem a riqueza do cosmo e o autor quer ambiciosamente que ele implique a totalidade do espaccedilo e do tempo mdash dos espaccedilos e dos tempos possiacuteveis O instrumento-mor dessa ambiguidade integral eacute o pun o calembour (ECO 1989 p 48)

Jaacute no iniacutecio de seu livro ao citar a obra de James Joyce como ldquoexemplo

maacuteximo de obra lsquoabertarsquordquo (Ibid p 47) Umberto Eco traccedila uma referecircncia com

Albert Einstein por meio de Edmund Wilson a respeito tambeacutem da obra anterior

Ulysses

Sua forccedila ao inveacutes de acompanhar uma linha expande-se a si mesma em todas as dimensotildees (inclusive a do Tempo) (hellip) Joyce desenvolveu consideraacutevel maestria teacutecnica para apresentar-nos os elementos de sua histoacutera numa ordem tal que nos torne capazes de encontrar sozinhos os nossos caminhos (Ibid p 48)

55

Como sabemos a dita circularidade do Wake eacute construiacuteda de tal forma

que daacute margem a diferentes formas de acesso e leitura Isso gera diversas

possibilidades paralelas e igualmente aceitaacuteveis dentro da estrutura se

entendermos que de fato qualquer paacutegina pode ser a primeira e qualquer

paacutegina pode ser a uacuteltima Essas possibilidades diferem natildeo apenas em suas

caracteriacutesticas mas tambeacutem em suas implicaccedilotildees Assim coexistem

paralelamente essas possibilidades a partir das ordens de leitura efetivamente

disponiacuteveis e a obra permanece una Ateacute mesmo dentro de um capiacutetulo pode

ser que pouco importe a ordem de onde se comeccedila a ler De um paraacutegrafo para

outro o assunto pode mudar drasticamente Tomemos como exemplo o capiacutetulo

III do terceiro livro em que a primeira paacutegina fala dos Four Old Men a segunda

inicia uma ode a Isobel a filha discorrendo sobre toda a sua beleza e

ingenuidade e o paraacutegrafo seguinte salta nada menos para Humphrey

Chimpden Earwicker becircbado no chatildeo de seu pub

Em artigo intitulado ldquoThe Finnecies of music wed poetry A muacutesica e o

Finnegans Wakerdquo Caetano Galindo tradutor da mais recente versatildeo em

portuguecircs de Ulysses (2012) e da uacutenica de Finnrsquos hotel (2014) parte da ideia

desenvolvida por Walter Pater de que ldquoToda a arte constantemente aspira agrave

condiccedilatildeo da muacutesicardquo (PATER apud GALINDO 2010 p 286 traduccedilatildeo do trecho

feita por Caetano Galindo) Frequentemente se afirma percorrendo a fortuna

criacutetica de Finnegans wake que essa obra eacute o resultado de suposto projeto

formalista de extrema acuidade em que a semacircntica eacute absolutamente preterida

em relaccedilatildeo agrave forma agrave esteacutetica focada na materialidade do significante No

entanto natildeo haacute possibilidade de falar de significante sem significado sendo esse

um par indissoluacutevel e acusar Joyce de se apoiar na pura materialidade do signo

para construir um texto de conteuacutedo calcado no nonsense e portanto

ldquoincompreensiacutevelrdquo mdash ou mais especificamente um texto que efetivamente nada

tenha a dizer mdash e puramente sonoro se mostra descabida a qualquer leitor atento

do Wake

A aproximaccedilatildeo entre a literatura joyciana e a arte musical eacute contudo

bastante profiacutecua Aleacutem de a sonoridade como dissemos ser aspecto de suma

importacircncia nos textos de Joyce segundo ele proacuteprio essa proeminecircncia eacute

56

expliacutecita na leitura observando-se os jogos linguiacutesticos riacutetmicos e o papel do

aspecto foneacutetico na compreensatildeo de muitos dos trocadilhos (puns) Ainda que

os fatores biograacuteficos nada determinem a respeito da produccedilatildeo literaacuteria cabe

apontar tambeacutem a tiacutetulo de curiosidade para a relaccedilatildeo estreita de Joyce com a

muacutesica queria ser cantor e sua matildee foi cantora e integrou coros de igrejas A

aproximaccedilatildeo entre experiecircncias literaacuterias e muacutesica natildeo seria algo novo para o

autor irlandecircs que demonstrava esse interesse desde os poemas de Chamber

Music mdash admirados por Ezra Pound mdash passando por trechos eminentemente

meloacutedicos de A Portrait of the artist as a young man ateacute o episoacutedio das Sereias

(como eacute conhecido) de Ulysses

Richard Ellmann afirma que diante de algumas das criacuteticas frequentes a

respeito do caraacuteter literaacuterio de Finnegans wake ldquoo aspecto musical do livro era

uma de suas justificativasrdquo (ELLMANN 1989 p 865) Questionado por Terence

White Gervais ldquose o livro era uma mistura de muacutesica e literaturardquo ldquoJoyce

respondeu laconicamente lsquoNatildeo eacute pura muacutesicarsquordquo (Id) A variedade de formas de

entonaccedilatildeo e pronuacutencia aproximam o Finnegans wake do que seria uma

composiccedilatildeo musical que precisa ser executada lida como se lecirc a partirura em

muacutesica mdash conferindo vida agraves indicaccedilotildees que o papel traz O leitor se vecirc dessa

forma no exato centro dessa demanda sendo-lhe exigidas seguidas decisotildees

persecutoacuterias Nem Ulysses nem Finnegans wake satildeo obras para serem lidas

de forma passiva apenas acompanhando a narrativa que se desenha sozinha

recostando-se acomodando-se em leitura plaacutecida eacute preciso lecirc-los de maneira

executiva

O capiacutetulo 11 (considerado na divisatildeo de Campbell e Robinson o capiacutetulo

3 do livro II mdash que chamam de ldquolivro dos filhosrdquo mdash denominado ldquoTavernry in

feastrdquo) reuacutene sensaccedilotildees diversas com destaque ao sentido da audiccedilatildeo em

cenas de festejo e bebedeira no pub da famiacutelia dublinense As cenas (ou

sensaccedilotildees) se assemelham ao que seria um sonho de HCE tendo contudo

tambeacutem a sua participaccedilatildeo Na nota preliminar de Donaldo Schuumller ldquoA

identificaccedilatildeo chega a extremos HCE sonha e eacute sonhado () Recolhem-se

fragmentos espalhados no tempo e no espaccedilordquo (2003 p 215) Em meio a

57

transformaccedilotildees de HCE em Raacute deus egiacutepcio do Sol histoacuterias ouvidas pelo raacutedio

que envolvem visitas de um norueguecircs a Dublin em busca de um alfaiate

casamento quedas e um seacutetimo trovatildeo faz-se musicalidade no ambiente

barulhento

Snip snap snoody Noo err historyend goody Of a lil trip trap and a big treesnooker (hellip) (FW 3321-2)22

For hanigen with hunugen still haunt ahunt to find their hinnigen where Pappappapparrassannuaragheallachnatullaghmonganmacmacmacwhackfalltherdebblenonthedubblandaddydoodled and anruly person creeked a jest (FW 3324-7)23

Such was the act of goth stepping the tolk of Doolin drain and plantage wattle and daub with yoursquoll peel as Irsquoll pale and wersquoll pull the boath toground togutter testies touchwood and shenstone unto pop and puma calf and condor under all the gaauspices (incorporated) the chal and his chi their roammerin over gribgrobgrab reining trippetytrappty (so fore shault thou flow else thy cavern hair) to whom she (anit likenand please-thee) Till sealump becamedump to bumpslump a lifflebed (altolagrave allamarsch O gueacute O gueacute) (FW 33214-18)24

Joyce controla o ritmo do texto de forma que pulsem frases com tocircnicas

bem definidas formando o que ambienta o burburinho da noite no bar cheio e de

pessoas em festa Aleacutem das evidentes e numerosas aliteraccedilotildees ao unir

palavras como em ldquobecamedump to bumpslumprdquo eacute criado todo um novo ritmo

do iniacutecio ao fim das enunciaccedilotildees Aleacutem do forte impacto sonoro a semacircntica eacute

consequentemente modificada deslocando-se o que seria um significado

22 ldquoPirlimpimpim Da estorieta este eacute o fim De uma pequerrucha hip e de um grande triscunardquo (na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller 2003) 23 ldquoPois essazim e essezim ainda andam por aiacute a procura de Finn onde Pappappapparrassannuaragheallachnatullaghmonganmacmacmacwhackfalltherdebblenonthedubblandaddydoodled e uma personalidade ilegal largou um gracejordquo (idem) 24 ldquoTal foi o ato deusassombrado pra deter a fala do palanquim drenagem e plantaccedilatildeo vime e barro tua eacute a repulsa meu eacute o pulso nosso eacute o impulso do barco agrave terra dos aterrados testemunhas de madeira sapiencial e de pedra filosofal ateacute pupa e puma o bov hino e o condor sob todos os gaauspiacutecios (incorporados) o cujo e seu ela perroeirando caraagoraagarra reinando o trotedatropa (ateacute aqui fluiraacutes ou te arrastaratildeo pelos cabelos como na caverna) a quem ela (natildeo se assemelha praza-te) Ateacute que marulho se converta em entulho o brusco baque no liacuteffido leito (altolaacute allamarcha O quecirc o quecirc)rdquo (idem)

58

previsiacutevel para um neologismo que natildeo se fixa como neologismo uma vez que

continua podendo ser reinventado Do trovatildeo que possivelmente eacute o mais

musical de todos passamos ateacute mesmo por Shakespeare (ldquoshenstonerdquo) aqui

unido a Shem

Retornando ao texto de Caetano Galindo a aproximaccedilatildeo entre Finnegans

wake e muacutesica daacute-se entatildeo pela possibilidade de pensar essa obra literaacuteria

como uma partitura lembrando ainda a sugestatildeo do proacuteprio Joyce de que a

leitura de sua obra era diferenciada se fosse feita em voz alta mdash executada como

muacutesica escrita sobre as pautas de uma obra musical Isso se relaciona

diretamente a um certo papel atribuiacutedo ao leitor nessa interaccedilatildeo menos passiva

e mais ativamente investigativa ou analiacutetica em um sentido que eacute certamente

mais inventivo do que interpretativo Em vez de linhas pautas Sobre essa

comparaccedilatildeo diz Caetano Galindo

Uma partitura por outro lado jamais seraacute vista como a ldquoinauguraccedilatildeordquo de uma obra privileacutegio que cabe a sua primeira execuccedilatildeo puacuteblica A partitura afinal eacute muito menos ldquoa obrardquo que um detalhado conjunto de instruccedilotildees para a realizaccedilatildeo da obra que passa a existir apenas quando executada que tem a capacidade de existir como tal e de afetar mesmo pessoas ldquoanalfabetasrdquo no sistema de signos em que se escreve que manteacutem com aquele autoacutegrafo uma relaccedilatildeo portanto necessariamente de maior independecircncia Hierarquicamente superior E jaacute naqueles primeiros poucos exemplos de ldquobrincadeirasrdquo sonoras do Wake junto da constataccedilatildeo de que se trata de uma obra em que a leitura e a leitura em voz alta tem um papel completamente diferente na atribuiccedilatildeo na criaccedilatildeo de seu sentido fazem com que de diversas maneiras se possa sim pensar no livro como mais proacuteximo de uma partitura (GALINDO 2010 p 298)

A multiplicidade proporcionada por essa abertura natildeo prejudica portanto

a unidade da obra nem significa abertura a qualquer interpretaccedilatildeo a abertura

em questatildeo eacute efetivamente de autonomia e participaccedilatildeo do leitor tomando

decisotildees que efetivamente afetam sua experiecircncia com a obra natildeo por sua

evidente subjetividade como pessoa mas em seu papel como destinataacuterio mdash e

natildeo mero receptor de uma obra fechada cuja significaccedilatildeo estaacute dada inerte A

essa abertura poderiacuteamos entatildeo comparar a da muacutesica e seu efeito que parte

59

de um ldquodesdeacutem com o sentidordquo para usar expressatildeo de Caetano Galindo Mais

do que relaccedilotildees de sonoridade com o uso de aliteraccedilotildees assonacircncias rimas

que comumente relacionamos a uma certa qualidade musical (mas que satildeo

aspectos em geral inerentes a quaisquer textos literaacuterios) o texto tem um

princiacutepio estruturante diferenciado que assim o assemelha agrave muacutesica

Essa aproximaccedilatildeo diz respeito agrave maneira de interaccedilatildeo que existe entre a

obra e um inteacuterprete de uma composiccedilatildeo musical mais do que entre a obra e o

seu ouvinte Assim nos remetemos agrave aproximaccedilatildeo feita por Eco entre o texto

joyciano e a muacutesica moderna que se justifica em diversos aspectos entre os

quais destacamos aqui o da necessaacuteria execuccedilatildeo em uma certa sequecircncia

temporal como fundamento inerente agraves duas artes muacutesica e literatura Ambas

satildeo elaboradas a partir de uma ordenaccedilatildeo que se alterada modifica-se ao

contraacuterio de obras de arte com entrada livre O componente temporal tem

destaque de maneira evidente tambeacutem no cinema tem possibilidades diversas

de entendimento na fotografia e nas artes plaacutesticas a partitura no entanto assim

como o texto teatral de outra maneira tambeacutem o eacute faz parte do rol de peccedilas

executaacuteveis Eacute das obras de arte que se escrevem e inscritas permanecem na

promessa de que se deem em um novo tempo em um acontecimento fora do

papel

Natildeo falamos portanto tatildeo somente de um texto literaacuterio musical mas dos

fundamentos compartilhados entre as duas artes em termos fundamentais de

elaboraccedilatildeo e de acessoexecuccedilatildeorecepccedilatildeo dentro da plasticidade de cada uma

delas A problemaacutetica inescapaacutevel que concerne agrave sucessatildeo temporal como fator

inato da obra natildeo se refere no texto literaacuterio simplesmente agrave sequecircncia de sons

mas a toda a mateacuteria da obra Como em certas obras musicais o compositor

deixa a possibilidade de o(s) instrumentista(s) ou mesmo o(s) ouvinte(s)

intercambiarem partes do todo de forma entatildeo prevista e deliberada pelo autor

em todas as suas consequecircncias temos em Finnegans wake a possibilidade de

entrada por qualquer trecho No entanto assim como na obra musical as

consequecircncias satildeo medidas tambeacutem no Wake existe eacute claro uma ordem

subjacente ainda que se possa ignoraacute-la no processo de leitura e iniciar de

60

qualquer paacutegina A leitura ainda que executiva eacute feita em cima de indicaccedilotildees

preacute-existentes

O leitor ideal do Wake por conseguinte deve ser aquele indiviacuteduo aberto

a uma renovaccedilatildeo inesgotaacutevel de processos cognitivos aquele que natildeo executa

sua leitura preso a seus horizontes mas estaacute disposto a expandi-los a cada linha

A fluidez em Finnegans wake se deve ao natildeo estabelecimento de uma voz que

tenha lugar proacuteprio Como diz Derrida em ldquoDuas palavras por Joycerdquo haacute livros

que terminamos de ler assim que iniciamos a leitura enquanto James Joyce nos

faz encarar a leitura que nunca parece ter fim Muito frequentemente Finnegans

wake eacute lembrado por ser um livro circular sendo essa uma das mais evidentes

caracteriacutesticas da estrutura elaborada por Joyce Podemos lembrar ainda a

figura eliacuteptica como Derrida a concebe para atestarmos que a circularidade

wakiana natildeo se engendra em reiteraccedilatildeo ciacuteclica em regressos a pontos

iniciaacuteticos nem em repeticcedilotildees de processos idecircnticos Ao contraacuterio a

circularidade do Wake efetivamente se aproxima da viconiana que inspirou

Joyce temos um processo de retorno que soacute eacute previsiacutevel ateacute certo ponto pois

engendra acima de tudo a renovaccedilatildeo de seus elementos Assim ateacute nas

repeticcedilotildees de um mesmo termo pela obra podemos perceber como o que

acontece natildeo eacute a retomada pura e simples mas a operaccedilatildeo de uma diffeacuterance

com ldquoardquo uma vez que o termo eacute aparentemente duplicado mas natildeo ocorre da

mesma forma e portanto jaacute natildeo eacute idecircntico em significado

A relaccedilatildeo com muacutesica novamente se faz proveitosa por uma outra via de

relaccedilatildeo Em um paralelismo bastante coerente a respeito de como eacute possiacutevel a

operaccedilatildeo de leitura de uma obra como Finnegans wake Umberto Eco tece

comparaccedilotildees citando o compositor belga Henri Pousseur um dos nomes da

nouvelle musique junto tambeacutem de Luciano Berio Pierre Boulez e Karlheinz

Stockhausen

Para definirmos a situaccedilatildeo do leitor de Finnegans wake parece-nos servir perfeitamente a descriccedilatildeo dada por Pousseur da situaccedilatildeo do indiviacuteduo que ouve uma composiccedilatildeo serial poacutes-dodecafocircnica ldquoJaacute que os fenocircmenos natildeo mais estatildeo concatenados uns aos outros segundo um determinismo consequente cabe ao ouvinte colocar-se

61

voluntariamente no centro de uma rede de relaccedilotildees inexauriacuteveis escolhendo por assim dizer ele proacuteprio (embora ciente de que sua escolha eacute condicionada pelo objeto visado) seus graus de aproximaccedilatildeo seus pontos de encontro sua escala de referecircncias eacute ele agora que se dispotildee a utilizar simultaneamente a maior quantidade de graduaccedilotildees e de dimensotildees possiacuteveis a dinamizar a multiplicar a estender ao maacuteximo seus instrumentos de assimilaccedilatildeordquo E com essa citaccedilatildeo fica sublinhada como se disto houvesse necessidade a convergecircncia de todo o nosso discurso para um ponto uacutenico de interesse e a unidade da problemaacutetica da obra ldquoabertardquo no mundo contemporacircneo (ECO 1989 p 49)

Assim a postura ativa se faz natildeo somente numa via extra de interaccedilatildeo

obra-receptor mas eacute efetivamente uma demanda necessaacuteria para que essa

interaccedilatildeo possa se viabilizar Ainda que ambiguidade e polissemia sejam

evidentemente traccedilos inerentes a quaisquer textos literaacuterios em geral haacute uma

oferta disseminativa especiacutefica onde se engendra diffeacuterance A interaccedilatildeo

receptor-obra na qual a participaccedilatildeo e as escolhas do leitor eacute uma necessidade

tem uma dinacircmica operacionalizante que natildeo somente ressuscita o texto morto

na leitura mas o faz quase podendo daacute-lo agrave luz Em consonacircncia com o que eacute

dito por Haroldo de Campos em A arte no horizonte do provaacutevel voltamos agrave

Escritura do retorno ldquoA arte joycena circular e em aberto natildeo possui como

operador a figura autoral mandataacuteria Antes a informaccedilatildeo esteacutetica mdash como

transmissatildeo de sensaccedilatildeo da forma mdash eacute gerada pelo interpretante que assume a

posiccedilatildeo de operadorrdquo (EYBEN 2012 p 616)

Isso natildeo implica no entanto eacute bom que lembremos uma abertura

semacircntica total e desgovernada que nos leve a aquiescer para as suposiccedilotildees

de que Finnegans wake seja uma grande piada sem qualquer indiacutecio de que sua

leitura valha a pena Aleacutem de rascunhos e arquivos de Joyce apontarem

fortemente para o contraacuterio com esquematizaccedilotildees da estrutura e registros das

formulaccedilotildees de trechos reescritos e reeditados com precisatildeo vimos que natildeo

foram poucos os leitores que se dedicaram agrave incursatildeo por essa obra ainda que

seja tatildeo mal falada quanto se diz que eacute incompreensiacutevel Natildeo se trata apenas de

frases compostas de um puro trava-liacutengua sucedendo o outro que natildeo remetem

a nada e tecircm seus significados encerrados em si mesmos de forma que somente

o significante seja manipulado em brincadeiras linguiacutesticas mdash ainda que a

62

comparaccedilatildeo inicial seja relativamente cabiacutevel no que diz respeito aos jogos

foneacuteticos e trocadilhos que compotildeem a obra joyciana O recurso natildeo resulta em

uma anulaccedilatildeo da unidade significativa ao contraacuterio temos sua expansatildeo Haacute

criacuteticos que traccedilam a sequecircncia da intriga na obra e a analisam sob essa oacuteptica

ainda assim sabemos natildeo haver linearidade narrativa na concepccedilatildeo tradicional

de enredo uma vez que o Wake traz o que se caracteriza pelo adjetivo plotless25

Como lembra o proacuteprio Eco mais agrave frente poreacutem ldquoEssa pluralidade

semacircntica natildeo determina ainda o valor esteacuteticordquo (ECO 1989 p 91) Fosse essa

a mateacuteria-prima de Finnegans wake natildeo seria composto entatildeo por mais que

jogos intelectuais e tantos criacuteticos assim o julgaram Se pluralidade semacircntica

implica uma seacuterie definida de possibilidades a b ou c para uma frase expressatildeo

capiacutetulo ou para a obra toda estaacute mais longe de Finnegans wake do que supotildee

Eco Polissemia subentende a possibilidade de visualizar nas palavras as

possibilidades para as quais elas se abrem como na ambiguidade em geral

tambeacutem se tem a consciecircncia dos sentidos que povoam o mesmo territoacuterio Por

mais contraditoacuterio que possa soar isso ainda pode integrar poreacutem uma leitura

hermenecircutica substitui-se a noccedilatildeo de verdade contida em uma unidade pela de

um espectro de verdades simultacircneas ainda controladas detidas nos limites do

horizonte que nossa visatildeo alcanccedila com nitidez

Em vez disso poderiacuteamos mdash podemos mdash ler Finnegans wake sem

necessariamente buscar conter em diagramas mentais os pontos semacircnticos

oferecidos em cada expressatildeo natildeo somente porque esse seria um trabalho

cansativo mas tambeacutem porque natildeo nos ofereceria garantias de ser esta a

melhor maneira de intimidade com o texto Da mesma maneira ler com fluidez

ainda que uma ou outra referecircncia possa nos escapar pelos dedos natildeo eacute

necessariamente uma forma menos integrada de se deparar com a obra em

questatildeo Fluidez aqui sublinhe-se natildeo se refere agrave suposiccedilatildeo de que se tenha

diante das paacuteginas do livro um leitor passando por elas uma a uma de maneira

25 O termo vem do inglecircs plot que se refere especificamente a enredo ou trama O Wake natildeo possui um enredo que mova a leitura e seja separaacutevel em situaccedilatildeo inicial cliacutemax e desfecho e mesmo os elementos baacutesicos da narrativa ndash personagens narradores tempo e espaccedilo ndash se modificam todo o tempo

63

homogecircnea sem que se detenha em nada de especiacutefico avanccedilando

ininterruptamente pelo texto em um ritmo padronizado meramente

decodificando palavras lendo o texto somente no sentido mais simploacuterio de

assunccedilatildeo da existecircncia e de certa compreensibilidade de um dado coacutedigo

Referimo-nos ao contraacuterio ao caso de um leitor qualquer se se lance agrave leitura

do livro mdash de modo que detenha um tempo singular de sua proacutepria leitura que

flui em seu ritmo proacuteprio individual variaacutevel e incalculaacutevel

Pelo fato de que o texto como eacute tecido exige do leitor a tomada de

algumas decisotildees jaacute haacute demanda suficiente de uma postura ativa que natildeo

precisa ser a tradicional postura de identificar todos os componentes e assim

destrinchar todos os elementos do texto por mais que isso eventualmente possa

ser de grande ajuda Talvez a noccedilatildeo do todo seja mais importante e mais difiacutecil

de ser alcanccedilada fora dessa anaacutelise a que estamos acostumados Muito do

texto por mais hercuacuteleo que o trabalho possa parecer pode ser forccedilosamente

colocado em diagramas e planilhas mentais com divisotildees e classificaccedilotildees

criadas a partir de moldes teoacutericos preacute-existentes mas lidar com o texto em sua

complexidade eacute respeitaacute-lo na sua porccedilatildeo de problemaacutetica indecifraacutevel

CAPIacuteTULO II

FINNEGANS WAKE E O TEMPO DA TRADUCcedilAtildeO

65

No prefaacutecio agrave traduccedilatildeo dos poemas de Charles Baudelaire reunidos na

seccedilatildeo Tableaux parisiens publicada em 1923 denominado ldquoDie Aufgabe des

Uumlbersetzersrdquo Walter Benjamin apresenta nas palavras de Haroldo de Campos

a sua ldquometafiacutesica antes do que uma fiacutesica da traduccedilatildeordquo (CAMPOS 2008 p

179) Ao encetar sua exposiccedilatildeo a respeito da ldquotarefa-renuacutencia do tradutorrdquo como

traduziu Susana Kampff Lages Benjamin questiona qual o destino do texto

traduzido apoacutes afirmar o que aqui se traz como epiacutegrafe a compreensatildeo mdash ou

a tentativa de engendrar alguma mdash das obras de arte natildeo deve se pautar pelo

receptor Enseja lembrar que se costuma entender a traduccedilatildeo limitando-se agrave

visatildeo corriqueira de que teria o objetivo preciacutepuo ou mesmo uacutenico de facilitadora

do acesso ao texto o que recairia justamente no problema de ter no destinataacuterio

sua justificativa focando na recepccedilatildeo do texto toda a necessidade de sua

existecircncia mdash ou mais gravemente a sua utilidade mdash e portanto tirar dessa

relaccedilatildeo suas premissas e direcionamentos

66

A existecircncia de um problema em considerar a traduccedilatildeo como algo

produzido tatildeo somente para atender agravequeles privados da compreensatildeo do

idioma do texto de partida antecede contudo qualquer afirmativa contra a

exegese que se paute pela recepccedilatildeo ou a favor de qualquer fantasiologia em

detrimento de uma investigaccedilatildeo do pateacutetico schlegeliano ou do empiacuterico em

literatura Eacute possiacutevel perceber esse problema no apontamento do fato um tanto

expliacutecito de que o leitor da traduccedilatildeo que visa substituir o texto de partida

inevitavelmente a leraacute como texto original (no sentido de primeiro

evidentemente) As relaccedilotildees entre o texto de partida e suas traduccedilotildees eacute

perigosamente apagada no caso do leitor cujo contato com a obra se daacute somente

por uma traduccedilatildeo especialmente entre aquelas que natildeo contecircm comentaacuterios

notas ou recursos similares por meio dos quais o tradutor aponte seus dilemas

e exprima as dificuldades pelas quais passou remetendo ao texto de partida

bem como que criteacuterios utilizou em suas escolhas e renuacutencias lexicais ou

sintaacuteticas

Aleacutem das peculiaridades inescapaacuteveis da leitura de uma obra de traduccedilatildeo

sem o concomitante acesso ao texto traduzido existem ainda os problemas

inerentes ao texto Tradutores que se incumbem da tarefa de transmitir algum

ato comunicativo a ser detectado no texto de partida transportando uma

mensagem mdash por vezes artificialmente construiacuteda ou forccedilosamente encontrada

em uma leitura enviesada ou mesmo forjada mdash a outro idioma por meio do labor

tradutoacuterio estariam prestes a falhar de certa maneira ao menos segundo o que

assevera Benjamin ao recaiacuterem na ldquotraduccedilatildeo inexata de um conteuacutedo

inessencialrdquo (BENJAMIN 2008 p 66) A falha tem eacute claro nesse caso um

sentido especiacutefico que parte da concepccedilatildeo que Benjamin traz de traduccedilatildeo Seria

demasiadamente penoso declarar ou apontar fracassos tradutoacuterios completos a

qualquer que seja a tentativa ao menos em literatura de traduzir algum texto

Como a Benjamin poreacutem a compreensatildeo do que significa ou qual a intenccedilatildeo do

ato de traduzir literatura parece-nos primordial ao labor tradutoacuterio e tambeacutem agrave

leitura de traduccedilotildees pois esclarecer o ponto de que partimos ao olhar o texto

se eacute o mesmo ou se jaacute eacute outro que medidas haacute de ldquomesmordquo e de ldquooutrordquo ou de

67

ldquoinovaccedilatildeordquo algo que compreendemos por processos de diferenciaccedilatildeo e

similaridade

ldquoDie Aufgabe des Uumlbersetzersrdquo eacute um texto frequentemente referido como

ensaio a despeito de ser mais loacutegico e afirmativo do que essa classificaccedilatildeo

poderia implicar (isso talvez ocorra pela obsessatildeo proacutepria do seacuteculo XX de

enxergar Essayismus em variadas formas textuais e em alguns autores

Moumlglichkeitsmenschen ou ldquopossibilitaacuteriosrdquo nos termos do escritor modernista

austriacuteaco Robert Musil contemporacircneo de Joyce) Benjamin transparece certo

idealismo em seu conceito de liacutengua pura e transita entre a construccedilatildeo desse

conceito eteacutereo agrave medida que o texto avanccedila e nuances de uma tradiccedilatildeo

platocircnica um tanto menos hesitante mais soacutelida Ainda assim eacute clara a

ratificaccedilatildeo buscada pelo autor de afirmar a traduccedilatildeo da arte tatildeo dignificante

quanto a criaccedilatildeo artiacutestica per se

Considerando-se um texto classificado como ldquoliteraacuteriordquo o dilema de como

traduzir se torna especificamente (poreacutem natildeo necessariamente mais) complexo

Poder-se-ia considerar que a abertura do texto facilita a tarefa tradutoacuteria uma

vez que expande as possibilidades de escolhas em vez de reduzir a

correspondecircncia de uma palavra a uma entrada dicionarizada ou opccedilatildeo lexical

mais imediata Traduzir literatura demanda meditar sobre um termo mas

tambeacutem sobre a frase a estrutura e o todo da obra A expansatildeo lexical

engendrada em arte eacute contudo sinteacutetica natildeo haacute possibilidades quaisquer de

consequecircncias equivalentes mas ao contraacuterio as consequecircncias de uma

escolha ou outra devem ser drasticamente distintas A necessidade do mot juste

do labor artiacutestico literaacuterio permanece sendo uma demanda da tarefa tradutoacuteria e

nesse sentido o tradutor em um entendimento radical de sua praacutetica de alguma

forma reescreve o texto de partida tomando emprestadas a estrutura e as ideias

do que traduz

Esse eacute o princiacutepio levado agrave risca com o termo transcriaccedilatildeo ainda que natildeo

se restrinja agrave modalidade concebida pelos irmatildeos Campos que envolve ainda

outros argumentos A despeito da conaccedilatildeo ou vocaccedilatildeo artiacutestica putativa do

tradutor ou seu esforccedilo em ser tambeacutem poeta a traduccedilatildeo de literatura lida com

68

o fenocircmeno potencializado de cada termo ter alto impacto seja o mot juste

procurado pelo tradutor criativamente seja buscado em metodologia que

percorra caminho teacutecnico-investigativo Haroldo de Campos afirma a respeito

das traduccedilotildees do Panaroma do Finnegans wake (2001) ldquo() o que interessa

natildeo eacute a literalidade do texto mas sobretudo a fidelidade ao espiacuterito ao lsquoclimarsquo

joyciano frente ao diverso feixe de possibilidades do material verbal manipuladordquo

(CAMPOS 2001 pp 27-28) Essa fidelidade pode ser entendida como anaacuteloga

agrave que Benjamin defende que se engendra sendo fiel agrave forma do texto

destituindo-o da fidelidade ipsis litteris isto eacute daquela realizada de maneira

literal de vocaacutebulo em vocaacutebulo apoiada na suposta funccedilatildeo tradutoacuteria de

transpor a mensagem comunicativa considerada ldquoinessencialrdquo Em seu texto

ldquoTransluciferaccedilatildeo mefistofaacuteusticardquo Haroldo afirma que ldquoNatildeo seria descabido

ultimar a teoria benjaminiana da traduccedilatildeo como portadora da mensagem lsquointerrsquo

(ou lsquotransrsquo) semioacutetica da liacutengua pura orientada pelo lema rebelionaacuterio do non

serviamrdquo (CAMPOS 2008 p 180)

Natildeo haacute nem deve haver por conseguinte expectativa de transposiccedilatildeo

entre planos em resultado tradutoacuterio calculaacutevel desde que se admita que a

traduccedilatildeo como o texto de partida natildeo significa o mesmo que ele mas eacute mdash deve

ser em sua tautologia como propotildee Albercht Fabri Se vemos o tangenciamento

de Benjamin devemos vislumbrar no processo tradutoacuterio cerebral o ponto a ser

tocado entre a infinidade de pontos natildeo obstante isso soacute pode permitir a

deduccedilatildeo do horizonte da liacutengua pura se for mantido o espaccedilamento da ldquopulsatildeo

dionisiacuteaca que eacute capaz de dissolver a diamantizaccedilatildeo apoliacutenea do original preacute-

formado em nova festa siacutegnicardquo pondo a ldquocristalografia em ebuliccedilatildeo de lavardquo

(CAMPOS 2008 p 180) Revela-se prejudicial o uso de termos similares a

ldquomensagemrdquo ldquomensageirordquo pois afirma um binarismo de espaccedilos em que dois

planos coexistem e entre eles ocorre o intercacircmbio Falar em ldquoportadora de

mensagemrdquo soacute eacute cabiacutevel nesse contexto se referindo agrave ldquointer (ou trans)

semioacutetica da liacutengua purardquo da fala de Haroldo mas natildeo ao que remete de forma

mais imediata o conteuacutedo inessencial mdash ao inveacutes da categoria da forma que

caracteriza a traduccedilatildeo na teoria benjaminiana

69

Admitiriacuteamos assim a possibilidade de o receptor da traduccedilatildeo ser um

leitor capaz de acessar o original de forma que a traduccedilatildeo seja um texto

adicional ao inveacutes de atuar como um usurpador do estatuto de texto primeiro

Mais do que uma possibilidade o leitor ideal da traduccedilatildeo seria esse que pode

vecirc-la como fonte de variantes interpretativas provenientes de leitura singular do

texto feita pelo tradutor (um leitor ideal sob essa oacuteptica) A palavra para

ldquotraduccedilatildeordquo na liacutengua alematilde eacute Uumlbersetzung junccedilatildeo do prefixo (do tipo que tem

valor semacircntico tambeacutem por si soacute) uumlber com a palavra setzung significando uma

sobreposiccedilatildeo sobreaplicaccedilatildeo Indica uma sobre-escrit(ur)a uma sobrevivecircncia

O leitor da traduccedilatildeo que tem acesso ao original mdash o que definimos como o leitor

ideal da traduccedilatildeo mdash e sua leitura do texto de partida e do que lhe foi sobre-escrito

eacute outro argumento a favor da traduccedilatildeo criativa e ratifica a possibilidade de o labor

tradutoacuterio poder e dever ser executado como arte conferindo ao tradutor natildeo

somente status mas responsabilidade Natildeo soacute pode se dedicar agrave busca do mot

juste como se incumbe desse dever ao se prestar agrave traduccedilatildeo

Walter Benjamin afirma o estatuto da traduccedilatildeo como forma que natildeo se

rende ao papel de transpor significados de um idioma a outro libertando-a de

qualquer caraacuteter submisso ao texto traduzido No entanto isso natildeo significa

forccedilar uma desvinculaccedilatildeo Ao contraacuterio afirma que ldquoeacute preciso retornar ao

originalrdquo (BENJAMIN 2008 p 67) Os quatro tradutores do texto de Benjamin mdash

Fernando Camacho Karlheinz Barck (e equipe natildeo nomeada) Susana Kampff

Lages e Joatildeo Barrento mdash optam pelos termos ldquoretornarrdquo ou ldquoregressarrdquo ldquoo

regressordquo No entanto pensar em voltar-se ao que eacute o texto original explicitaria

como isso significa o ato literal de como leitor do texto de partida debruccedilar-se

considerando como o tradutor deve eacute oacutebvio ir a ele natildeo somente em um

regresso simboacutelico mas tambeacutem como parte efetiva do processo de traduccedilatildeo A

concisa expressatildeo do movimento de voltar-se aponta tambeacutem para a

necessidade de evocaacute-lo no texto resultante da traduccedilatildeo ainda que natildeo seja

servil a ele e por uacuteltimo aponta para o retorno agrave liacutengua pura una babeacutelica

aquela em que natildeo haacute a categoria do enunciado e que ultrapassa as liacutenguas

nacionais

70

A traduccedilatildeo para Walter Benjamin eacute intraduziacutevel Esse fato confirma sua

autotelia O tradutor eacute fiel na medida em que produz devir em seu idioma de

forma fiel agrave que o escritor do texto de partida o fez em sua liacutengua Se pensarmos

que uma obra literaacuteria pode ter como qualidade inerente a ela segundo

Benjamin sua traduzibilidade a observaccedilatildeo tatildeo comum a respeito de Finnegans

wake vem agrave tona essa obra considerada atraveacutes dos tempos de ilegiacutevel a

intraduziacutevel teria que niacutevel de traduzibilidade Como questiona Lenita Esteves

no terceiro capiacutetulo de sua tese ldquoMas da mesma forma que Derrida aponta para

um certo aspecto risiacutevel da pergunta lsquoVocecirc jaacute leu Joycersquo podemos achar

engraccedilada a pergunta lsquoAlgueacutem jaacute traduziu Finnegans Wakersquordquo (ESTEVES

1999 p 83) Frequentemente se afirma que o idioma dessa obra de James

Joyce natildeo eacute o inglecircs mas um outro limitado ao livro e nele desenvolvido

elaborado pelo autor a partir de idiomas diversos Consideremos entatildeo que

Finnegans wake (1939) possui mdash ou melhor produz engendra uma liacutengua da

proacutepria obra Isso significaria natildeo apenas que a traduccedilatildeo deve fazer o mesmo

mas tambeacutem que esse idioma proacuteprio tem no texto as definiccedilotildees de suas

especificidades as diretrizes de seus paracircmetros e a que princiacutepios estaacute

submetido

Natildeo poderiacuteamos afirmar o mesmo no entanto a respeito de todo e

qualquer texto literaacuterio Finnegans wake apresenta de forma radicalmente

expliacutecita e elaborada com extrema acuidade o que toda a Literatura todo e

qualquer texto-arte traz intacto em sua essecircncia uma liacutengua proacutepria um dizer

que natildeo se repete no linguajar cotidiano tampouco em outros autores ainda

menos em textos teacutecnicos dissertativos cientiacuteficos Podemos entender

destarte a essecircncia antiteacutetica da tarefa de traduzir literatura cujos alicerces satildeo

os dois fatos concorrentes de que o texto literaacuterio recusa-se a uma transposiccedilatildeo

de seus significados a uma traduccedilatildeo entendida como produtora de alguma

equivalecircncia e o de que tambeacutem demanda que seja traduzido em tendo

traduzibilidade inerente de maneira diferente ou em outro grau que natildeo pertence

a uma traduzibilidade de sentido de mensagem de comunicaccedilatildeo A traduccedilatildeo de

literatura portanto de texto que produza em sua tessitura uma linguagem

proacutepria enquadrada em sua focircrma exige efetivamente a criaccedilatildeo de mais uma

71

liacutengua proacutepria tecida textualmente jaacute que existiraacute outro texto ou nova versatildeo do

texto que se intenta traduzir Esse fator inescapaacutevel por conseguinte faz

necessaacuterio que inspirando-se no ldquoidioma proacuteprio do textordquo de partida o tradutor

se lance a realizar alguma espeacutecie de criaccedilatildeo no idioma para o qual traduz ainda

que natildeo seja um seguidor dos caminhos de liberdade apontados pela

transcriaccedilatildeo

A traduccedilatildeo de literatura difere-se ainda por outro fator que natildeo diz respeito

a sua feitura mas reside no que excede sua elaboraccedilatildeo o acometimento de

certa direccedilatildeo na recepccedilatildeo e na criacutetica do texto em distintas heranccedilas escolhidas

Eacute niacutetido em Finnegans wake o quanto seus principais tradutores brasileiros mdash

Augusto de Campos Haroldo de Campos e o professor Donaldo Schuumller mdash

encaram a obra como radical aleacutem de efetivamente concordarem com o fato de

que sua complexidade torna a traduccedilatildeo tanto mais difiacutecil quanto profiacutecua

ldquoFinnegans wake eacute 100 de inovaccedilatildeo linguiacutestica Nenhuma concessatildeo Nenhum

recuordquo (CAMPOS 2001 p 21) Na introduccedilatildeo do primeiro volume de sua

traduccedilatildeo Donaldo Schuumller ldquoDistanciamo-nos com frequecircncia da literalidade

para captar efeitos que ultrapassam significados () Num discurso

deliberadamente oniacuterico luminosidade intensa natildeo se atingiraacute nuncardquo

(SCHUumlLER 2004 p 25) Em texto publicado no Panaroma e tambeacutem na

coletacircnea Teoria da poesia concreta Haroldo de Campos afirma ldquoTraduzir

James Joyce especialmente fragmentos de Finnegans wake eacute uma ginaacutestica

com a palavra um trabalho de perfeccionismo Algo que nunca assume o

aparato estaacutetico do definitivordquo (CAMPOS 2001 p 27)

Apesar das semelhanccedilas ambas as traduccedilotildees tanto a de Panaroma do

Finnegans wake cuja primeira ediccedilatildeo data de 1962 quanto a de Finnegans

wakeFinnicius reveacutem (2004) implicam recepccedilotildees (preacute e poacutes-traduccedilatildeo) distintas

e empregam diferentes instrumentos para lidar com as possibilidades do texto

de partida Os irmatildeos Campos optam pela traduccedilatildeo que chamam de intensiva

(ao inveacutes de extensiva) colhendo trechos que demonstrem o potencial radical

do texto como um todo ldquoO nosso objetivo sempre foi o de trabalhar e lapidar

alguns dos momentos maacutegicos do livro e somente dar a puacuteblico aqueles que

em nosso entender oferecessem em portuguecircs um estatuto equivalente agrave alta

72

voltagem de invenccedilatildeo e criatividade do original Trabalho de concentraccedilatildeordquo

(CAMPOS 2001 p 21)

Schuumller por outro lado algumas deacutecadas depois opta pela traduccedilatildeo

integral e portanto por aquela que tenderia ao que Augusto de Campos e

Haroldo de Campos entatildeo denominaram extensiva ainda que o labor de

Donaldo Schuumller natildeo deixe de ser tambeacutem de intensidade sobre o texto

debruccedilou-se sobre cada fragmento dedicando-se a cada um separadamente

gradualmente como uma obra por si Alerta ldquoPara se fazer entendido o texto

oferece muitas versotildees do mesmo coacutedigo cifradordquo (SCHUumlLER 2008 p 24)

Como Joyce nas palavras dos irmatildeos Campos natildeo faz concessotildees o tradutor

afirma seguir o mesmo caminho de natildeo simplificar e recomenda leitura que se

submeta aos mesmos riscos ldquoVencida a vertigem ante frequentes abismos

somos estimulados a criar roteiros proacuteprios () Natildeo se espere assim

inteligibilidade completa do textordquo (Ibid p 25)

Se a traduccedilatildeo intensiva portanto daacute a entender a potenciaccedilatildeo de um

esforccedilo vertical de imersatildeo aplica-se tambeacutem agrave metodologia de Donaldo que

percorre fragmento a fragmento traduzindo criativamente Cumpre a missatildeo

predita por Lenita Esteves em sua tese anos antes da publicaccedilatildeo completa da

traduccedilatildeo de Schuumller ldquoMas da mesma forma que Derrida aponta para um certo

aspecto risiacutevel da pergunta lsquoVocecirc jaacute leu Joycersquo podemos achar engraccedilada a

pergunta ldquoAlgueacutem jaacute traduziu Finnegans wakerdquo Traduziu de que liacutengua para

que outra Se como afirmam alguns autores Joyce fragmentou quebrou

desmantelou a liacutengua inglesa o tradutor teraacute tambeacutem que compor um texto

desmantelando sua liacutenguardquo (ESTEVES 1999 p 83) A liacutengua portuguesa eacute

entatildeo invadida mdash natildeo invalidada mas povoada mdash- por um texto wakiano em

vez de prestar-se ao trabalho de verter de caacute para laacute eacute tambeacutem como o inglecircs

o foi alterada habitada pela literatura que a torce e a desorienta Uma enxurrada

invade com correnteza violenta a liacutengua para a qual se verte enquanto a

linguagem segue o fluxo que natildeo eacute margeado por delimitaccedilotildees gramaticais mas

ao contraacuterio gera a erosatildeo dessas fronteiras

73

Comparando as duas traduccedilotildees do primeiro fragmento de Finnegans

wake das ediccedilotildees supracitadas podemos perceber como versotildees de um texto

tatildeo radical que optam por soluccedilotildees tradutoacuterias distintas resultam em dois textos

consideravelmente diferentes entre si ainda que ambas partam do princiacutepio de

serem traduccedilotildees para a liacutengua portuguesa e que tenham sido feitas por

brasileiros Na primeira linha por exemplo

riverrun past Eve and Adamrsquos (FW 31)

Observa-se que ldquopast _____rdquo (o termo past seguido de um complemento

direto portanto) pode significar algo como ldquoapoacutesrdquo em portuguecircs poreacutem tanto

temporalmente referindo-se a uma sequecircncia cronoloacutegica quanto

espacialmente indicando uma passagem no caso pela igreja Adam and Eve

em Dublin A inversatildeo no nome do local indica uma subversatildeo e portanto uma

impossibilidade de se decidir entre o sentido de passar pela igreja ou de passar

o tempo de Adatildeo e Eva indicado tambeacutem pelo termo ldquopastrdquo que carrega traccedilos

semacircnticos relacionados a tempo A demanda da coexistecircncia dessas duas

possibilidades portanto eacute um desafio tradutoacuterio que se impotildee jaacute no primeiro

periacuteodo da obra A traduccedilatildeo de Augusto de Campos opta por direcionar o olhar

agrave ideia temporal

riocorrente depois de Eva e Adatildeo (CAMPOS 2001 p 41)

Aleacutem do uso do termo ldquodepoisrdquo tambeacutem relacionado a tempo

prioritariamente como o ldquopastrdquo do texto de partida mas tambeacutem possiacutevel de se

referir ao deslocamento no espaccedilo a ausecircncia de artigo antes de ldquoEva e Adatildeordquo

esconderia a possibilidade de pensar no local na construccedilatildeo mdash na igreja

especiacutefica (algo que em inglecircs jaacute que natildeo admitiria artigo eacute indicado pelo uso

de apoacutestrofe + ldquosrdquo do possessivo) Assim poderia ser talvez mais imediato

74

pensar em ldquoEva e Adatildeordquo como algo que seja mais que somente os dois

personagens biacuteblicos se estivesse escrito digamos ldquodepois da Eva e Adatildeordquo de

forma que o artigo indicasse haver uma elipse (funccedilatildeo que eacute cumprida no texto

de Joyce pelo possessivo marcado com lsquos)

Quanto agrave opccedilatildeo posterior de Donaldo Schuumller (2002) perlustrando uma

outra via tradutoacuteria pode-se dizer que visa explicitar essa possibilidade de leitura

mais difiacutecil de ser captada mdash especialmente pelo leitor natildeo irlandecircs que natildeo teraacute

a referecircncia do nome dessa igreja em mente e tirando a viacutergula

rolarriuanna e passa por Nossenhora drsquoOhmemrsquos

Manteve-se entatildeo na traduccedilatildeo de Schuumller a referecircncia ao catolicismo

ainda que agora seja agrave Nossa Senhora do Oacute A opccedilatildeo aqui trazendo agrave sentenccedila

uma imagem relacionada agrave praacutetica religiosa na Peniacutensula Ibeacuterica e no Brasil foi

a de ser fiel ao ldquoespiacuteritordquo joyciano mdash no termo dos irmatildeos Campos herdado da

ideia de Ezra Pound mdash no que se refere agrave proposta de universalidade a despeito

das referecircncias a uma cidade especiacutefica Finnegans wake faz do mapa de Dublin

uma referecircncia a tudo aquilo que ultrapassa quaisquer limites geograacuteficos Haacute

em Salvador no bairro de Paripe uma Igreja de Nossa Senhora do Oacute uma das

primeiras paroacutequias fundadas na colocircnia portuguesa data do seacuteculo XVI O

marco iniciaacutetico de Adatildeo e Eva isto eacute a semacircntica do ab initio se reverbera

nessa marcaccedilatildeo histoacuterica em territoacuterio brasileiro Deve-se lembrar que a

traduccedilatildeo por ldquoNossenhora d`Ohmemrsquosrdquo natildeo se amarra a esse ponto geograacutefico

uma vez que existem diversas paroacutequias dedicadas a essa mesma Santa por

todo o Brasil em Portugal e na Espanha Podemos perceber ademais nessa

mesma expressatildeo que traduziria a princiacutepio um mero nome de igreja mdash em

Joyce nada eacute meramente um nome mdash a presenccedila do personagem HCE todos

os homens Here Comes Everybody (entre tantos outros arrolamentos) mostra-

se na aglutinaccedilatildeo de Oacute com Homem = Ohmem que reverbera ainda um

possiacutevel ldquoameacutemrdquo A viacutergula apoacutes riverrun foi trocada pela conjunccedilatildeo aditiva mas

75

a viacutergula apoacutes Adamrsquos manteve-se a mesma apoacutes Ohmemrsquos que foi grafado com

ldquomrdquo no final e apoacutestrofe + s assim como eacute o nome masculino o de Adatildeo em

inglecircs

A respeito das referecircncias presentes na obra do escritor irlandecircs Donaldo

Schuumller diz ldquoNatildeo haacute paacutegina em FW sem evocaccedilotildees literaacuterias mdash as biacuteblicas

superam todas mdash como se Joyce quisesse abarcar tudo o que se escreveu

fazendo de todos os textos um livro soacuterdquo (SCHUumlLER 2004 p 20) Esse ideal

extremo de condensaccedilatildeo traz uma possibilidade ou um anseio de superaccedilatildeo do

tempo reunindo todas as obras jaacute escritas em uma soacute supera-se o que o tempo

apaga o que a distacircncia cronoloacutegica segrega A literatura pode ser pensada

entatildeo em seu caraacuteter trans-histoacuterico como afirma o fenomenoacutelogo francecircs Paul

Ricoeur em Tempo e narrativa na medida em que se eleva sobre as divisotildees do

tempo histoacuterico e cronoloacutegico de modo que se faz de toda a histoacuteria da literatura

um acontecimento contemporacircneo discorrendo sobre o tempo do calendaacuterio

ldquoentre o tempo vivido e o tempo universalrdquo com Benveniste a partir das noccedilotildees

de tempo linguiacutestico

Contudo embora a contagem do tempo do calendaacuterio esteja apoiada nos fenocircmenos astronocircmicos que datildeo sentido agrave noccedilatildeo de tempo fiacutesico o princiacutepio da divisatildeo do tempo do calendaacuterio escapa agrave fiacutesica e agrave astronomia () A originalidade que o tempo axial confere ao tempo do calendaacuterio autoriza a declarar este uacuteltimo ldquoexteriorrdquo tanto ao tempo fiacutesico como ao tempo vivido Por um lado todos os instantes satildeo candidatos legiacutetimos ao papel de momento axial Por outro natildeo haacute nada que diga que determinado dia do calendaacuterio tomado em si mesmo eacute passado presente ou futuro () Para ter presente como tambeacutem aprendemos com Benveniste eacute preciso que algueacutem fale o presente eacute o discurso que o enuncia para chegar ao tempo vivido a partir do tempo crocircnico eacute portanto preciso passar pelo tempo linguiacutestico referido ao discurso eacute por isso que determinada data completa e expliacutecita natildeo pode ser dita nem futura nem passada se ignorarmos a data da enunciaccedilatildeo que a pronuncia (RICOEUR 2012 pp182-184)

De alguma maneira a Odisseia de Homero eacute passiacutevel de ser entendida

contiguamente ao Ulysses de Joyce assim como ocorreria entatildeo com as

referecircncias contidas em Finnegans wake desde as biacuteblicas passando por

Tristatildeo e Isolda lendas irlandesas e tantas outras referecircncias histoacuterico-culturais

76

Um eterno retorno na literatura em vez de uma histoacuteria literaacuteria linear ou

perioacutedica os efeitos de uma obra natildeo tecircm iniacutecio ou fim mas engendram um

impacto que se espirala alastra-se atraveacutes do tempo sem uma chegada

O texto lanccedilado agrave traduccedilatildeo atinge em concretude a possibilidade de seu

desdobramento multiplicado agrave medida que vaacuterias traduccedilotildees coexistam Haver

mais de uma traduccedilatildeo para um mesmo fragmento de Finnegans wake ou para

qualquer outro texto literaacuterio soacute adiciona em vez de se anularem ou se

contradizerem muito mais provavelmente se complementam Seratildeo distintas por

mais parecidas que sejam transformando o texto de partida em variados outros

que natildeo lhe satildeo alheios tampouco lhe equivalem Traduzir eacute frequentemente

entendida em senso comum como uma atividade verbal geradora de equidade

como o transportar das letras de um idioma a outro Intercambiar idiomas no

entanto implica a mudanccedila de paradigmas mdash natildeo apenas pela existecircncia de

fenocircmenos linguiacutesticos relacionados a certa constituiccedilatildeo social e cultural que

existem e variam mesmo em um soacute idioma mas tambeacutem de acordo com os

diferentes paracircmetros (no sentido chomskyano) isto eacute possibilidades efetivas

de expressatildeo que a organizaccedilatildeo de determinado sistema verbal proporciona

Paralelamente ao ipsis litteris portanto compreendemos a traduccedilatildeo como uma

(tentativa de) equivalecircncia imperfeita a priori mdash ou em vez de equidade como

uma renovaccedilatildeo ou um desdobramento em tese infinito Isso sem que perda de

vista que haacute como diz Benjamin uma tangecircncia na qual a relaccedilatildeo entre o texto

de partida e a sua traduccedilatildeo se relacionam sem que haja uma transparecircncia ou

um espelhamento entre os dois um sobre o outro ou um frente ao outro mas

sim uma uniatildeo tangencial de dois textos distintos

Tendo em mente esses procedimentos e o exemplo dos brilhantes

resultados do trabalho dos irmatildeos Campos e do de Schuumller ensejaria a

pergunta uma boa traduccedilatildeo deve entender o ato tradutoacuterio dessa forma

disseminadora para produzir algo tatildeo rico quanto se afirma que uma traduccedilatildeo

pode alcanccedilar devendo ansiar por tal resultado Ou em outras palavras a

traduccedilatildeo eacute tudo isso ou sob certas condiccedilotildees demarcadas concernentes a uma

metodologia e a uma postura diante de sua feitura pode secirc-lo A mesma

pergunta permanece pairando a respeito da arte e da definiccedilatildeo de texto literaacuterio

77

A busca por saber que texto eacute ldquoboardquo literatura e que texto sequer eacute ldquoliteraacuteriordquo

afora a prova do tempo que inclui ou exclui obras de um cacircnone atrai diversas

respostas O que podemos ratificar eacute que as traduccedilotildees que partam da noccedilatildeo de

ato comunicativo de exegese una de uma interpretaccedilatildeo fechada do texto ainda

que natildeo tenham como objetivo transparecer algo de incomunicaacutevel do texto

literaacuterio poderatildeo porventura fazecirc-lo mdash como que carregando algo do texto de

partida sem nem perceber Ou se pensarmos de maneira um tanto mais

pessimista apenas destruiratildeo a relaccedilatildeo ideal eteacuterea e fugitiva com o texto de

partida natildeo sendo fiel a seu espiacuterito e ao que faz dele uma peccedila de arte e

funcionaratildeo como exerciacutecio de traduccedilatildeo intentando sinoniacutemia impossiacutevel e

concretizando mera paraacutefrase que talvez extirpe o caraacuteter literaacuterio artiacutestico que

havia outrora no texto de partida

Em ldquoUntranslatable yourdquo Shireen Patell sintetiza um caraacuteter duplo do

trabalho de traduccedilatildeo ldquoThe task of the translator () is at once an act of mourning

and na ethical practice because it is a task dictated by an absolute alterity that

signals both loss and law without calculusrdquo (PATELL 2005 p 899)26 Patell

lembra ainda Derrida no que diz respeito ao fato de que a traduccedilatildeo natildeo eacute uma

relaccedilatildeo intersubjetiva ou interpessoal mas grafemaacutetica Haacute uma diferenccedila entre

a assinatura e quem assina no caso da traduccedilatildeo essa diferenccedila se explicita na

distacircncia entre o tradutor e aquilo com o que se compromete em nome de algo

o texto e a assinatura tecircm sobrevida Ainda que haja uma dificuldade em

determinar a autoria de um texto traduzido se autor ou tradutor ou se uma

combinaccedilatildeo emerge uma assinatura nova

As mesmas perguntas a respeito da ilegibilidade de Finnegans wake se

fazem quanto agrave sua traduzibilidade ou agraves possibilidades tradutoacuterias que pode

oferecer O fato eacute que o texto possui uma riqueza nesse sentido tendo sido

produzidas excelentes traduccedilotildees e havendo ainda uma proficuidade para novas

tentativas Traduzido por Augusto de Campos Haroldo de Campos Donaldo

Schuumller e tantos outros mais que possam ter se aventurado bem como

tangencialmente por Caetano Galindo que traduziu Finnrsquos Hotel texto de Joyce

26 ldquoA tarefa doa tradutora eacute ao mesmo tempo um ato de luto e uma praacutetica eacutetica porque eacute uma tarefa comandada por uma alteridade absoluta que assinala tanto perda quanto lei sem caacutelculordquo

78

escrito entre Finnegans wake e Ulysses que parece ter sido uma espeacutecie de

rascunho do que seria o Wake ou talvez uma obra independente com algumas

pontes ou treinos ou inspiraccedilotildees de Joyce sobre o trabalho de traduzir Joyce

em Finnrsquos hotel (2014) diz Galindo ldquo[Joyce] Cobra que vocecirc fuce em cantos do

portuguecircs que normalmente ficam ali soacute pegando poacute Eacute em suma um imenso

prazer para quem tem esse tipo de perversatildeordquo (p 11) mdash e aqui lembramos o que

diz Seamus Deane excerto jaacute citado em capiacutetulo anterior ldquo[The book] converts

itself into English and perverts itself from Englishrdquo (DEANE 2000 p viii) Tanto

a escrita de Joyce quanto a traduccedilatildeo de seu texto sendo perversotildees do idioma

(ou de idiomas) natildeo poderiam caber em definiccedilotildees de traduccedilatildeo como

reproduccedilatildeo exata pois exige torccedilotildees para que se exprima ldquoconteuacutedo essencialrdquo

Assim como os exemplos tradutoacuterios aqui citados podem relativizar certas

afirmaccedilotildees se considerarmos em vez deles traduccedilotildees que natildeo tenham sido

executadas com o mesmo esmero o texto literaacuterio de partida aqui referenciado

tem a mesma consequecircncia Finnegans wake se caracteriza como uma literatura

considerada radical mdash por vezes foi considerado texto ilegiacutevel e subestimado

como mera brincadeira intelectual mdash e dessa forma eacute paradigma ideal para

exemplificar o caraacuteter eteacutereo que propomos como o que um texto tem de

intraduziacutevel No entanto como dito anteriormente o que se entende por literaacuterio

em Finnegans wake vale para todo e qualquer texto-arte poesia romancepoema

etc independentemente do gecircnero literaacuterio

A problemaacutetica dos nomes proacuteprios em Finnegans wake pontua uma

dificuldade peculiar em sua traduccedilatildeo Os nomes das personagens mudam a todo

o tempo sem haver qualquer previsibilidade ainda que sempre haja pistas para

que o leitor reconheccedila as relaccedilotildees Poder-se-ia dizer que natildeo somente os nomes

sofrem mutaccedilotildees mas os proacuteprios seres HCE e ALP aparecem em siglas em

frases diversas enquanto Isobel tem sua vogal trocada ou eacute chamada por

variaccedilotildees diversas de seu apelido Issy ou na forma de Nuvoletta Shem e

Shaun mudam para combinaccedilotildees ainda mais distantes como Mutt e Jute Burrus

e Caseous Mercius e Justius Dolph e Kev sempre na reminiscecircncia do duplo

ambivalente Essas mudanccedilas de assinaturas reverberam a condiccedilatildeo mesma

das personagens no que estiver acontecendo a cada momento

79

Traduzir eacute natildeo solidificar mdash natildeo haacute traduccedilatildeo uacuteltima ainda que possa haver

uma melhor que outra(s) mdash mas lanccedilar jogar um jogo de azar aposta-se em

uma possibilidade existente entre infindas outras e se destrinccedila o resultado

Seraacute acertado eacute provaacutevel ainda que natildeo seja Poderia ser 1 mas foi 2 Seria

igual se fosse 3 mdash igual mas diferente Tal entendimento natildeo resolve a traduccedilatildeo

natildeo a define de forma a esquecermos os problemas que acarreta Ao contraacuterio

entendecirc-la como um enredamento problemaacutetico antes de tudo permite fundaacute-la

como texto-fonte de discussatildeo tanto quanto seu texto de partida Os noacutes

tradutoacuterios deixam de secirc-lo exclusivamente para em vez disso enriquecerem

toda a constelaccedilatildeo do texto (o texto de partida e suas traduccedilotildees coexistentes)

especialmente se literaacuterio filosoacutefico ou de forma geral ensaiacutestico adicionando

discussatildeo no proacuteprio corpus do que eacute posto em pauta Pode-se ler a traduccedilatildeo

como criacutetica como ensaio como resenha como resumo como paraacutefrase ela

pode transparecer todas essas formas de expressatildeo de um texto sendo ela

mesma outro texto em vez de gecircnero objetivo Uma (boa) traduccedilatildeo condensa

uma paideuma espremendo uma impressatildeo ao mesmo tempo em que exprime

uma compreensatildeo A eventual dificuldade existente em se valorar uma obra

literaacuteria como boa (ou mesmo como literaacuteria) pode ser a mesma de se valorar a

traduccedilatildeo mas seus valores podem variar de acordo com as pautas que propotildee

com as suas premissas aleacutem de ela mesma transparecer uma certa leitura ou

visatildeo do texto de partida atraveacutes das decisotildees tradutoacuterias e das criaccedilotildees que oa

tradutora possa se permitir ao trabalhar (sobre) o texto

Sem desconsiderar dificuldades especiacuteficas inerentes e inegaacuteveis ao texto

de James Joyce dilemas tradutoacuterios no Wake podem ser dilemas tradutoacuterios

compartilhados em geral por toda e qualquer empreitada de traduccedilatildeo de textos

escriturais A literatura em geral parecendo mais ou menos complexa mais ou

menos legiacutevel e compreensiacutevel demanda o cuidado detalhado e rigoroso e por

isso impotildee dificuldades incontornaacuteveis e em verdade sem soluccedilatildeo que as

extermine por mais que se tente traduzir de diversas maneiras e por mais notas

de rodapeacute que se preencham Referindo-nos especificamente ao proacuteprio

Finnegans wake citamos novamente o texto de Shireen Patell mdash em que ela fala

sobre todo e qualquer texto possivelmente intraduziacutevel

80

What cannot be translated calls for the future translations that perpetually reach toward but can only trace an oblique if missed touch () Absolute untranslatability is the silent articulation of the absent ideality of translation that nonetheless inspires translation figuration writing This absolute translatability is in and of the language itself (PATELL 2005 p 901)27

Ademais mesmo admitindo certa dificuldade especiacutefica inerente ao

Finnegans wake seja entre a traduccedilatildeo de nomes de personagens seja na dos

trovotildees de cem letras que povoam todo o livro mdash e que frequentemente satildeo

mantidos sem traduccedilatildeo mdash defende-se aqui uma postura necessaacuteria diante de

qualquer obra literaacuteria Pode-se evocar aqui um trecho de Jacques Derrida em

seu livro De la grammatologie discorrendo sobre as afirmaccedilotildees a respeito da

linguagem de Jean-Jacques Rousseau no texto ldquoGecircnese e escritura do Essai sur

lrsquooriginerdquo ldquoNatildeo haveraacute nem uma linha histoacuterica nem um quadro imoacutevel das

liacutenguas () As liacutenguas satildeo semeadasrdquo (DERRIDA 2011 p 263) Essa citaccedilatildeo

pode contribuir aqui como uma explicaccedilatildeo do dinamismo babeacutelico do proacuteprio

Wake que lida com liacutenguas sem delimitaccedilatildeo suficientemente inseridas em

fluidez de hibridizaccedilatildeo e fusatildeo sendo semeadas e assim portanto germinando

no feacutertil suporte terreno do texto Estende-se poreacutem a qualquer escritura que

contenha em si uma gagueira para falar com Gilles Deleuze ou qualquer texto

feito a partir de uma liacutengua contendo algum niacutevel de estranhamento diante da

proacutepria liacutengua atuando na sua fronteira Ainda que natildeo haja o trabalho de

confronto ou um fenocircmeno de clash entre diferentes idiomas uma liacutengua jamais

estaacute ausente de relaccedilotildees com outras liacutenguas que vieram antes depois que

ocuparam terras proacuteximas ou distantes Mesmo que natildeo sejam fundidos

explicitamente dezenas de diferentes idiomas como faz Joyce no Wake

nenhum texto eacute isolado em sua liacutengua

27 ldquoO que natildeo pode ser traduzido demanda futuras traduccedilotildees que perpetuamente se direcionam mas soacute podem rastrear um obliacutequo ou mesmo perdido toque () Intraduzibilidade absoluta eacute a articulaccedilatildeo silenciosa que inspira poreacutem traduccedilatildeo figuraccedilatildeo escrita Essa absoluta intraduzibilidade estaacute na e eacute da liacutengua ela mesmardquo

81

Tal postura tradutoacuteria jaacute seria suficiente para nos apartar do labor braccedilal

de buscar definiccedilotildees dicionarizadas como sinocircnimo de traduccedilatildeo Essa maneira

de ida ao texto se relaciona natildeo somente com o resultado que surgiraacute da

traduccedilatildeo mas comeccedila na forma de leitura do texto de partida na maneira como

eacute abordado pela primeira vez mdash natildeo somente pelo leitor que lecirc com intenccedilatildeo e

olhos de tradutor mas por qualquer outro Se o que se busca eacute a univocidade a

definiccedilatildeo a anaacutelise estrutural perfeita com blocos conceituais relacionados a

cada porccedilatildeo do texto e metaacuteforas delineadas a serem circuladas a babelizaccedilatildeo

do texto seraacute entatildeo deixada de lado A traduccedilatildeo pautada por uma simplificaccedilatildeo

ou univocidade semacircntica por reestruturaccedilatildeo deriva de uma leitura

hermenecircutica Se a gagueira do texto de partida eacute ignorada certamente natildeo

apareceraacute nem transpareceraacute qualquer tipo de gagueira no texto derivado

ldquotraduzidordquo a gagueira que habita a traduccedilatildeo eacute resultado da relaccedilatildeo primaacuteria mdash

no sentido de primeira mdash do tradutor com o texto que se propotildee a traduzir recriar

ou transcriar em uma postura de leitor disposto a vivecirc-lo em vez de entendecirc-lo

Disposto a ter uma experiecircncia com sua linguagem muito antes de tencionar

destrinchaacute-lo

CAPIacuteTULO III

LEITURA LUTO ELIPSE

83

Ao pensarmos em Finnegans wake seja tendo um conhecimento distante

fragmentado ou superficial a seu respeito seja apoacutes tentativas de aproximaccedilatildeo

da obra uma seacuterie de questotildees inevitavelmente nos consomem em verdade

continuam a aparecer mesmo durante a entrega a uma leitura profunda desse

texto impossiacutevel de se explorar de forma acelerada ou submetida a prazos

dados os obstaacuteculos que nos prendem por um tempo sempre maior que o

previsto em um paraacutegrafo em uma linha ou em uma soacute enigmaacutetica palavra Uma

leitura ceacutelere ainda que permita terminar de ler o livro integralmente eacute uma

leitura desperdiccedilada Em se tratando de Finnegans wake a concepccedilatildeo do livro

eacute clara quanto a mais valer o deter-se sobre uma linha que se mostre inebriante

do que o impaciente passar de paacuteginas insistentemente evocando uma leitura

fluida em velocidade que provavelmente teraacute sido forccedilada e pouco proveitosa

84

Essa escolha de Joyce aponta como sabemos e logicamente podemos

supor a estrutura circular do livro No entanto essa expressatildeo natildeo pode se

findar em si mesma sendo banalizada significando nada para aleacutem dela

Devemos antes de tudo questionar a esse respeito a fim de investigar o que

algumas anaacutelises afirmam como verdades que se apresentam integrais quando

de fato satildeo geradoras de problemas diversos Pergunta-se entatildeo quais as

implicaccedilotildees de uma estrutura circular Essa estrutura eacute verdadeiramente

possiacutevel em todos os aspectos que seriam forccedilosamente decorrentes de sua

concepccedilatildeo

Eacute oportuno relembrar aqui Umberto Eco citando Henri Pousseur que

indica caber ldquoao ouvinte colocar-se voluntariamente no centro de uma rede de

relaccedilotildees inexauriacuteveisrdquo (ECO 1989 p 49) natildeo havendo amarras que

determinem o caminho da leitura Uma espeacutecie de maior livre-arbiacutetrio se instala

necessariamente diante da falta de um caminho fechado como se em vez de

percorrer um corredor o leitor se encontrasse em um labirinto Esse labirinto eacute

claro foi projetado de modo que suas curvas e becos foram pelo menos ateacute

certo ponto tranquilamente previstos Com a multiplicidade de caminhos

oferecida nessa arquitetura no entanto em oposiccedilatildeo agrave unidade do caminho

linear haacute uma medida de imprevisibilidade por mais meticulosamente planejado

que esse labirinto seja a ordem de cada escolha do indiviacuteduo que vai percorrer

seu terreno

Outras referecircncias feitas por Umberto Eco se fazem necessaacuterias no que

concerne agrave porccedilatildeo fenomenoloacutegica de toda essa problemaacutetica Em uma leitura

desse tipo podemos considerar uma esquemaacutetica que envolva a consciecircncia do

sujeito-leitor diante da obra que aiacute eacute o que percebe como fenocircmeno mdash

consciecircncia que por ser instaacutevel isto eacute no sentido de uma consciecircncia natildeo-ideal

natildeo ser plenamente preacute-delimitada mas sim aberta a mutaccedilotildees imprevisiacuteveis e

que portanto natildeo nos permitiria calcular previamente todas as possibilidades de

interaccedilatildeo com a obra em um quadro finito e fechado Umberto Eco desenvolve

esse ponto com as seguintes observaccedilotildees

85

Assim um objeto natildeo somente apresenta diversas Abschattungen (ou perfis) mas satildeo possiacuteveis diversos pontos de vista sobre uma uacutenica Abschattung O objeto para ser definido deve ser transcendido em direccedilatildeo agrave seacuterie total da qual ele enquanto uma das possiacuteveis apariccedilotildees eacute membro Nesse sentido ao dualismo tradicional ser e parecer substitui-se uma bipolaridade de finito e infinito de tal modo que o infinito se potildee no proacuteprio coraccedilatildeo do finito () O problema da relaccedilatildeo do fenocircmeno com seu fundamento ontoloacutegico dentro de uma perspectiva de abertura perceptiva transforma-se no problema de relaccedilatildeo do fenocircmeno com a plurivalecircncia das percepccedilotildees que dele podemos ter (Ibid pp 58-59)

Dessa maneira no esteio dessas afirmaccedilotildees se noacutes tomarmos em

consideraccedilatildeo as possibilidades de que uma obra como Finnegans wake

demande natildeo somente uma apreciaccedilatildeo passiva decodificando primariamente o

texto mas acima de tudo uma interaccedilatildeo de caraacuteter ateacute mesmo mais executivo

se assim pudeacutessemos dizer seria necessaacuterio no miacutenimo considerar que essa

posiccedilatildeo ativa seraacute ocupada por um leitor que tem sua proacutepria bagagem subjetiva

Natildeo colocamos em questatildeo aqui uma bagagem de conhecimento objetivo

necessaacuterio para um entendimento de leitura nem nada nesse esteio ao

contraacuterio ao inveacutes de uma espeacutecie de elitizaccedilatildeo um acesso democraacutetico permite

que qualquer indiviacuteduo se ponha agrave fruiccedilatildeo da literatura da maneira como puder

acessaacute-la O que levamos em conta eacute o caraacuteter fenomenoloacutegico dessa interaccedilatildeo

observando que essa interaccedilatildeo com a obra teraacute algo de uacutenico para cada

consciecircncia que a perceba e que tome atitudes frente a ela Umberto Eco

continuando seu raciociacutenio a respeito desse fundamento ontoloacutegico na abertura

perceptiva cita excerto de Pheacutenomenologie de la perception de Maurice

Merleau-Ponty

A contradiccedilatildeo que encontramos entre a realidade do mundo e seu inacabamento eacute a proacutepria contradiccedilatildeo entre a ubiquidade da consciecircncia e seu engajar-se num campo de presenccedila () A consciecircncia que passa pelo lugar da clareza eacute ao contraacuterio o proacuteprio lugar do equiacutevoco () Eacute portanto essencial agrave coisa e ao mundo apresentarem-se como ldquoabertosrdquo prometer sempre ldquoalgo mais a verrdquo (MERLEAU-PONTY apud ECO 1989 p 59)

86

Estruturalmente poderiacuteamos entatildeo esquematizar trecircs possibilidades de

leitura do Finnegans wake todas coerentes com a consideraccedilatildeo de uma

estrutura circular A primeira eacute a despeito da assunccedilatildeo da circularidade a que

se pode fazer seguindo a ordem da numeraccedilatildeo dos fragmentos Essa eacute uma

leitura linear tanto quanto uma segunda possibilidade em que se acessaria a

obra de qualquer fragmento ignorando a determinaccedilatildeo do iniacutecio do livro com o

nuacutemero 1 e se seguiria a leitura a partir da paacutegina escolhida na ordem colocada

ndash escolhendo por exemplo o fragmento 429 para ser o primeiro e seguir a leitura

ateacute o de nuacutemero 628 em seguida do nuacutemero 1 ateacute o nuacutemero 428 Essas duas

possibilidades diferem radicalmente de uma terceira que seria a de ler os

fragmentos em qualquer ordem anarquizando completamente a obra e tirando

dela boa parte do sentido Ler Finnegans wake fora de ordem eacute o mesmo que ler

qualquer outro livro de que se tem conhecimento fora de ordem assim como eacute

o mesmo que percorrer um ciacuterculo dando passos adiante voltando seguindo

desviando eacute uma leitura anaacuterquica que extermina o que a obra tem a oferecer

como obra una e total

Excluindo entatildeo a terceira forma de leitura esclarecemos que os

fragmentos natildeo satildeo absolutamente isolados entre si e nem intercambiaacuteveis mdash

ao menos natildeo sem seacuterias consequecircncias para a coerecircncia da obra e para o

acesso a ela como foi concebida em sua integridade Os fragmentos guardam

tanta independecircncia entre si quanto as paacuteginas do romance mais tradicional o

fazem quase nenhuma Eacute possiacutevel ler uma paacutegina do Wake e dar-se por

satisfeito tanto quanto eacute possiacutevel ler uma paacutegina de qualquer livro e saber que

aquilo eacute apenas uma amostra um pedaccedilo uma parte separada do todo que lhe

confere coerecircncia como obra

As duas primeiras formas de leitura portanto parecem-nos similares No

entanto acessar uma obra a partir de uma paacutegina ou a partir de outra paacutegina

ainda que seja uma obra circular isto eacute sem iniacutecio meio e fim definidos resulta

em duas leituras absolutamente diferentes No entanto aqui tem-se a diferenccedila

crucial entre o Wake e qualquer outro livro uma estrutura circular implica

necessariamente na diluiccedilatildeo do segmento temporal fechado isto eacute numa

abertura em que qualquer paacutegina do livro pode ser parte de um iniacutecio de um

87

meio ou de um fim Afinal o livro pode ser livre dessas divisotildees em sua estrutura

mas o tempo da leitura jamais seraacute Sempre temos de ler em alguma ordem e

algum trecho inicia esse processo algum se faz no meio e algum trecho conclui

nosso percurso como leitores Caso pensemos portanto em multiplicar as

possibilidades de acesso ao Finnegans wake ateacute que sejam consideradas todas

as possibilidades de leitura teriacuteamos de lidar com nada menos que seiscentas

e vinte e oito formas de acesso agrave obra no miacutenimo

Mostra-se impossiacutevel eacute evidente experimentar todas essas formas de

acesso Considerando que houvesse o tempo necessaacuterio deveriacuteamos levar em

conta ainda a contaminaccedilatildeo inevitaacutevel no processo isto eacute a certo ponto jaacute se

saberia o que esperar e a mudanccedila na ordem natildeo teria o mesmo efeito que teria

se acessada em uma primeira leitura Uma vez lido em uma certa ordem o livro

jamais seraacute redescoberto atraveacutes de outra ao menos natildeo como se nunca tivesse

sido lindo anteriormente qualquer que seja a nova ordem

O que nos eacute possiacutevel questionar eacute ateacute que ponto essa circularidade existe

de fato tentando expor natildeo apenas a forma como ela eacute concebida e a partir de

que modelos mas tambeacutem as consequecircncias de seu uso e se a circularidade se

daacute apenas idealmente ou se eacute de fato executada isto eacute temos de investigar se

eacute perceptiacutevel e constataacutevel considerando o acesso ao livro por qualquer uma de

suas paacuteginas O que origina a elaboraccedilatildeo dessa estrutura em Finnegans wake

eacute como se sabe ldquoVicorsquos recurrent cycle at once repetitious and various mdash like

the Wake itselfrdquo e Tindall nos chama a atenccedilatildeo ainda para o fato de que ldquoJoycersquos

hieroglyph for the Wake and its title is a square its sides no doubt the quadrants

a little squashed of Vicorsquos wheelrdquo28 (TINDALL 1969 p 10) Mesmo que a forma

geomeacutetrica escolhida por Joyce em seus desenhos na elaboraccedilatildeo do Wake

tenha sido natildeo o ciacuterculo mas o quadrado isso se explica pela escolha por quatro

partes e ainda assim se relaciona agrave circularidade viconiana Nesse caso a forma

geomeacutetrica ter veacutertices ou natildeo eacute irrelevante mdash Joyce chega a preferir um cubo

28 ldquoO ciclo recorrente de Vico concomitantemente repetitivo e variado ndash como o proacuteprio Wakerdquo e ldquoo hieroacuteglifo de Joyce para o Wake e seu tiacutetulo eacute um quadrado ainda que seus lados sem duacutevidas satildeo os quadrantes um pouco distorcidos da da roda de Vicordquo

88

em alguns momentos mdash uma vez que se poderia observar uma espeacutecie de

ldquocircularidaderdquo tambeacutem nessas outras formas ao circundaacute-las especialmente

enfatizando um periacutemetro percorrido em repeticcedilatildeo ciacuteclica que retorna a um

ponto

A ideia desse retorno a um ponto eacute outro problema basilar derivado da

aceitaccedilatildeo do princiacutepio da circularidade de Finnegans wake Deve-se lembrar que

nem o ricorso de Vico nem a circularidade da obra de Joyce resultam no retorno

ao mesmo ponto pois em ambos os casos o ponto original eacute irrecuperaacutevel

Depois de ler todas as sentenccedilas de Finnegans wake a continuaccedilatildeo da uacuteltima

frase (dizendo aqui ldquouacuteltimardquo eacute claro deixando de lado a relativizaccedilatildeo da ordem

que acabamos de engendrar e tomando portanto a ordem linear numeacuterica)

retorna ao mesmo ponto se pensarmos que retorna agrave paacutegina 1 essa paacutegina no

entanto jaacute natildeo eacute mais a mesma que se tinha quando se iniciou a leitura Assim

se daacute tambeacutem com o ciclo das idades proposto por Vico que serviu como

modelo para o Wake apoacutes o fim da Idade dos Deuses dos Heroacuteis e dos Homens

haacute um ricorso agrave Idade dos Deuses mdash no entanto eacute outra Idade dos Deuses que

estaacute se formando com aspectos gerais que a definem mas que natildeo estaacute

retrocedendo a uma mera repeticcedilatildeo Natildeo se tem uma maacutequina do tempo que vai

e vem atravessando as mesmas fases mas uma evoluccedilatildeo que evoca

circularidades heterogecircneas Uma figura recorrente eacute a do eco que remete ao

movimento de repeticcedilatildeo ciacuteclica e eacute executado tanto na sonoridade do proacuteprio

texto com rimas e aliteraccedilotildeesassonacircncias quanto tambeacutem por vezes citado

explicitamente ldquoThe echo is where in the back of the wodes callhim forthrdquo (FW

1263)29 O formato circular que natildeo supotildee repeticcedilatildeo eacute perceptiacutevel em outras

obras de Joyce Em Retrato Stephen frequentemente se apresenta preso em

linhas de raciociacutenio que parecem recair sobre si mesmas ou sobre um ponto

originaacuterio mas que engendram ainda assim deslocamento Mesmo em

Ulysses haacute evidentes formas de circularidade a comeccedilar pela jornada diaacuteria do

protagonista Leopold Bloom mas que natildeo insinua dias sempre iguais ateacute a

estrutura do monoacutelogo de Molly que reitera termos agrave medida que avanccedila

29 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoO eco eacute onde no fundo da florode que venhardquo

89

Apesar de a estruturaccedilatildeo circular ser aceita a priori por William York

Tindall como a base de Finnegans wake o estudioso estadunidense natildeo parece

considerar de fato as implicaccedilotildees desse ciacuterculo tomando apenas as suas

causas ou origens mas natildeo as consequecircncias de afirmaccedilatildeo dessa estrutura

Tindall afirma que o primeiro capiacutetulo eacute visivelmente uma introduccedilatildeo geral e o

uacuteltimo uma conclusatildeo com o diferencial de que abarca ainda a funccedilatildeo de aticcedilar

o leitor para ao retorno agrave primeira paacutegina Vemos entatildeo o problema loacutegico em

sua afirmaccedilatildeo se o trecho ldquofinalrdquo de Wake serve para levar o leitor ao fragmento

de nuacutemero 1 temos um trecho incumbido de algo que se parece com uma

espeacutecie de introduccedilatildeo a esse retorno ou que certamente tem alguma funccedilatildeo

muito distinta da de concluir York Tindall provavelmente entrevendo a

incoerecircncia no que afirma explica ldquoA general conclusion [the last chapter] and

a general introduction [the first one] parallel in function demand parallel

methodsrdquo30 (TINDALL 1969 p 305)

No entanto o que Tindall afirma haver de similar entre o primeiro e o

uacuteltimo capiacutetulos existe por todo o livro Haacute sequecircncias de retornos mdash no capiacutetulo

4 depois no oitavo e assim por diante O mesmo vale para as trecircs idades que

formam com o ricorso os quatro lados desse percurso que natildeo se repetem

mas reaparecem distintos ainda que apareccedilam em ordem sempre esperada isto

eacute estejam alocados em trechos previsiacuteveis devidamente selecionados para eles

dentro da grande ordem de todas as fases O acesso entatildeo a depender de que

fragmento serviraacute como o iniacutecio pode se dar em um fragmento elaborado nos

moldes da Idade dos Deuses dos Heroacuteis ou dos Homens ou ainda do ricorso

mas seraacute sucedido de uma ordem invariaacutevel Que haveraacute diferenccedilas entre uma

leitura que se inicie em um capiacutetulo escrito de uma forma dentro de certa

estrutura basilar e uma que se inicie por outro que tenha outra estrutura natildeo

haacute duacutevidas se a leitura do todo do livro for possiacutevel de todos os fragmentos

poreacutem a circularidade estaraacute comprovada O livro que se lecirc entatildeo tem de ser o

mesmo somente acessado em outra ordem e portanto a partir de uma

30 ldquoUma conclusatildeo geral [o uacuteltimo capiacutetulo] e uma introduccedilatildeo geral [o primeiro] paralelas em funccedilatildeo demandam paralelismo em meacutetodordquo

90

sequecircncia distinta de leitura mas que permita concluir a leitura assim como a

tentativa que comeccedila do fragmento 1 tambeacutem propicia

A figura espectral se mostra deveras pertinente Wake se diferencia

tambeacutem pela formaccedilatildeo de uma polifonia especial que nos confunde natildeo apenas

em termos de natildeo saber que personagem estaacute falando agora mas ainda de

trazer as vozes dos mortos para se misturarem agraves dos vivos sem que se

intercalem mas efetivamente convivam mdash o que tambeacutem exige uma

compreensatildeo temporal absolutamente uacutenica em que em meio ainda a

possibilidades de porvir natildeo haacute separaccedilatildeo espaccedilo-temporal entre um suposto

agora e um suposto antes No livro James Joyce and the difference of language

Laurent Milesi diz

This evolution is thus inseparable from an increasing dissolution or ar leat problematization of neat entities like character and voice as well as the boundaries between them and consequently from the emergence of more polyphonic voices which in the lsquopollyloguersquo (FW 4709) or lsquodrama parapolylogicrsquo (FW 4745) of Finnegans wake will ultimately combine with shifting enunciative poles and a pliable linguistic medium to create erring discursive effects ascribable to a lsquosidersquo or lsquorolersquo ina many-faceted lsquocharacter complexrsquo (MILESI 2003 p 91)31

A estrutura circular e a referecircncia a figuras de diversos momentos

histoacutericos bem como a livros como o Livro dos mortos egiacutepcio ou o Livro de Kells

irlandecircs unem-se na dissoluccedilatildeo de fronteiras temporais Finnegans wake

certamente natildeo tem nem poderia pretender ter um momento (mesmo externo

histoacuterico) definido nem mesmo um tempo psicoloacutegico definido mdash que assumiria

a perspectiva da consciecircncia de uma personagem como sobressalente ditando

voz perspectiva contexto

31 ldquoEssa evoluccedilatildeo eacute entatildeo inseparaacutevel da crescente dissoluccedilatildeo ou ao menos problematizaccedilatildeo de entidades precisas como personagem e voz bem como das fronteiras entre elas e consequentemente da emergecircncia de mais vozes polifocircnicas que no lsquopollyloguersquo (FW 4709 ou lsquodrama parapolylogicrsquo (FW 4745) de Finnegans wake vatildeo por fim combinar com poacutelos enunciativos instaacuteveis e um meio linguiacutestico elaacutestico para criar efeitos discursivos errantes atribuiacuteveis a uma lsquofronteirarsquo ou lsquopapelrsquo em um mil-faces lsquocomplexo de personagemrsquordquo

91

Faz-se espectro ainda o todo da obra literaacuteria na medida em que natildeo se

sabe como ela seraacute executada pelo leitor que se depara com ela Como uma

partitura sem indicaccedilotildees precisas trazendo meras sugestotildees e portanto

inuacutemeras possibilidades de trocas Wake precisa ser executado mas pode secirc-lo

de diversas maneiras em diversas ordens Assim natildeo se tem uma imagem

niacutetida do que eacute o Finnegans wake mas primordialmente sabe-se o que ele pode

vir a ser em mais de uma possibilidade

A isso como jaacute foi exposto estaacute ligada uma temporalidade que poderaacute

operar diferentemente em cada execuccedilatildeo da partitura wakiana Uma oposiccedilatildeo

entre o tempo linear e o tempo ciacuteclico pode mostrar como a estrutura basilar do

Wake que se afasta da linearidade possibilita essa diversidade e o que isso

pode significar na tessitura textual e para uma leitura atenta ao escritural do

texto Explicando a diferenccedila entre tempo ciacuteclico e tempo linear o filoacutesofo Karl

Jaspers (1883-1969) diz

O ciclo do tempo visto como recorrecircncia eacute a imortalidade do que em tal ciclo se produz () A todo instante estaacute ligando o fim ao comeccedilo Vive no ciclo do eterno retorno Pode ocorrer que a distacircncia a separar o fim (morte) do comeccedilo (novo nascimento) seja imensa mas reduz-se a nada se a vida eacute revivida de maneira infinitamente repetitiva fazendo-se em tal sentido imortal () Inteiramente diverso eacute o que se passa com o tempo linear Tudo que eacute temporal eacute levado pelo tempo linear a um fim irremediaacutevel (JASPERS 2011 p 146)

A estrutura circular de Finnegans wake faz mais do que nos prender ao

livro-sem-fim traduz uma possibilidade de existecircncia fora do andamento do

tempo na pura temporalidade isto eacute naquilo que natildeo ultrapassa um presente

mas permanece nele Obriga-nos a estar no presente da leitura sem nos

desviarmos e sem conclusatildeo relendo e relendo e relendo Joyce nos obriga

mantendo-nos na atividade da leitura que nunca termina a cumprir a exigecircncia

que faz ao seu leitor Instalando o texto num eterno retorno transforma-se nessa

afirmaccedilatildeo da vida em que a morte jaacute natildeo ocupa o espaccedilo do esquecimento a

voz dos mortos ecoa entre os vivos sua presenccedila faz-se material a morte de

certa maneira aiacute jaacute natildeo existe

92

O tempo absoluto da concepccedilatildeo ciacuteclica que natildeo pode ser transposto se

opotildee ao tempo linear em que haacute resoluccedilatildeo transposiccedilatildeo um acontecimento

ultrapassa o outro um momento sucede o seguinte O apagamento do que fica

no passado soacute pode ser modificado pela soluccedilatildeo de decidir o que se grava na

histoacuteria Mesmo assim natildeo se recupera nada por inteiro sendo impossiacutevel uma

volta ao passado a memoacuteria evoca as reminiscecircncias que ocupam o tempo

presente apenas como resto incorpoacutereo como espectro O tempo absoluto se

faz de maneira inteiramente distinta Nas palavras de Jaspers nele ldquofaz-se aquilo

que se repete infinitamente mdash e permanece temporal () Tempo linear e tempo

ciacuteclico satildeo enigmas incompatiacuteveis () O tempo ciacuteclico torna possiacutevel a ideia do

lsquouma vez maisrsquo por meio do eterno retornordquo (Ibid p 147)

O tempo ciacuteclico do retorno tambeacutem se faz em espectros o retorno eacute

sempre o ldquouma vez maisrdquo poreacutem sempre singular jamais uma repeticcedilatildeo idecircntica

senatildeo recairia em uma simples hipoteacutetica volta ao passado do tempo

cronoloacutegico como uma espeacutecie de maacutequina do tempo construiacuteda no tempo

linear O retorno do tempo ciacuteclico natildeo se faz dessa maneira eacute um novo

acontecimento mas que se relaciona com algo jaacute ocorrido Se lermos o Wake

circularmente isto eacute repetidamente obedecendo agrave continuaccedilatildeo do uacuteltimo

fragmento no primeiro natildeo estaremos rebobinando nosso tempo mas tatildeo

somente fazendo uma nova leitura de uma mesma coisa um mesmo texto que

natildeo se alterou enquanto natildeo estaacutevamos olhando Haacute assim uma diferenccedila um

assombro do que se leu antes percorrendo o momento da releitura O tempo

ciacuteclico se faz entatildeo no seu retorno eterno de fantasmas

A palavra retorno no portuguecircs talvez natildeo seja tatildeo adequada justamente

por apagar essa diferenccedila ldquoretornarrdquo pressupotildee que se foi a algum lugar ao qual

se estaacute voltando indica entatildeo mais imediatamente o movimento do tempo

linear de maneira que se imagine uma volta na linha do tempo ao tempo

passado estanque em seu lugar No entanto ricorso termo de Giambattista Vico

se relaciona a curso agravequilo que flui parecendo entatildeo mais adequado agrave ideia do

tempo ciacuteclico em que as repeticcedilotildees satildeo novos acontecimentos Justifica-se aqui

a expressatildeo criada para intitular este trabalho que conjuga ldquofluirrdquo e ldquoricorsordquo para

explicitar esse caraacuteter no termo italiano de Vico

93

A maneira como esse engendramento ciacuteclico foi relido na filosofia

moderna com o eterno retorno de Friedrich Nietzsche indica ainda a

positividade dessa estrutura Como o fim de Ulysses eacute o ldquosimrdquo mdash e Joyce queria

que assim ele se mantivesse mesmo traduzido como a correspondecircncia a

respeito da traduccedilatildeo para o francecircs comprova em que Joyce pede para que o

fim seja tatildeo somente a palavra ldquosimrdquo mdash o ciclo coacutesmico reafirma o sim para o

mundo o cada vez novamente o novo deacutejagrave Eacute a accedilatildeo que natildeo se direciona a

uma finalizaccedilatildeo natildeo tende ao teacutermino mas agrave atividade plena contiacutenua ldquoO

mundo afirma-se por si tambeacutem na sua uniformidade que permanece a mesma

no decurso dos anos bendiz-se por si mesmo porque eacute aquilo que deve voltar

eternamente porque eacute o devir que natildeo conhece saciedade teacutedio nem fadigardquo

(Wille zur Macht ed 1901 sect 385)

A entrada na narrativa de Finnegans wake isto eacute o contato inaugural do

leitor com os acontecimentos narrativos eacute anunciada por uma queda ldquoThe fall bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhoun

awnskawntoohoohoordenenthurnukldquo Queda reverberante com repeticcedilotildees

silaacutebicas misturadas e a formaccedilatildeo desse conjunto de fonemas que natildeo eacute verbete

em nenhum idioma mas comporta idiomas diversos natildeo eacute um ponto de partida

da narrativa ndash natildeo haacute um primeiro acontecimento ou accedilatildeo mdash mas a queda na

narrativa que jaacute estaacute em curso como uma queda drsquoaacutegua anunciada no riverrun

a palavra de abertura da obra Assim a narrativa inicia-se jaacute iniciada

Apoacutes o riverrun diz-se ldquopast Eve and Adamrsquosrdquo Pode-se ler tendo em

mente que estamos passando em frente a Eve and Adamrsquos catedral em Dublin

ou que aquilo que seraacute narrado se situa temporalmente apoacutes Adatildeo e Eva ou

mesmo no passado do casal primaacuterio em tempos inefaacuteveis O tempo eacute fluido

talvez aparentemente caoacutetico mas apenas repensado reimaginado mdash

mudanccedilas de paracircmetros que pedem uma revisatildeo radical Isso tambeacutem

podemos dissecar no tiacutetulo que comporta o fim (fin no francecircs e finis no latim)

e a sua repeticcedilatildeo (-egan again mdash o proacuteprio eterno retorno) ou o fim de encontro

ao despertar (fin-egans (la) fin against + (the) Wake relacionando tambeacutem ao

nome do personagem Earwicker que em alematildeo eacute erwecker ldquoaquele que

despertardquo) ou ainda contra outro fim o veloacuterio outra traduccedilatildeo para wake

94

substantivo Como aponta Donaldo Schuumller ldquoA circularidade viconiana gira no

geral e nos detalhesrdquo (SCHUumlLER 2004 p 17)

Para William York Tindall o tempo eacute a mais importante mateacuteria desse

ldquoensaio sobre o homemrdquo de James Joyce ldquoRise and fall and rise again sleeping

and waking death and ressurrection sin and redemption conflict and

appeasement and above all time itself mdash saecula saeculorum mdash are the matter

of Joycersquos essay on manrdquo32 (TINDALL 1969 p 4) Tambeacutem caracteriza a obra

como a comeacutedia humana de Joyce ldquoNot only his essay on man the Wake is his

human comedyrdquo33 (Ibid p 7) Ao final de sua introduccedilatildeo Tindall afirma que seu

livro natildeo visa a uma apreensatildeo completa nem a ultimatos sobre a obra mas sim

a ser um suplemento dos estudos preacutevios ldquoAfter all what authority on the Wake

knows half of it Which half is the critical questionrdquo34 (Ibid pp 25-26)

O tempo em Finnegans wake destacado por Tindall cumpre papel vital

em toda a organizaccedilatildeo da obra aleacutem da estrutura circular em quatro partes que

Joyce emprega livremente das Idades do filoacutesofo Giambattista Vico mdash assim

como a Odisseia de Homero serve de base para Ulysses o Wake tem

correspondente nesse uacuteltimo caso no entanto Joyce parte de fonte filosoacutefica

em vez de literaacuteria Ainda no iniacutecio quando Harriet Weaver pareceu natildeo entender

e natildeo gostar do que leu do Work in progress Joyce ldquoinsistiu com ela para que

lesse a Scienza Nuova de Vico como com o Ulisses insistira em que lesse a

Odisseiardquo (ELLMANN 1989 p 695) Natildeo eacute soacute no cerne estrutural poreacutem que

podemos perceber a especificidade do tempo de um romancepoema plotless mdash

que se natildeo possui enredo natildeo possui portanto linha cronoloacutegica expliacutecita

Tindall pretende e tende a extrair o plot concatenando as cenas sempre com

uma possiacutevel visatildeo de causa e consequecircncia pontuando as personagens

nomeando-as e definindo-as Eventualmente sua tentativa recai contudo na

incontornaacutevel indefiniccedilatildeo

32 ldquoAscender e cair e ascender novamente dormir e despertar morte e ressureiccedilatildeo pecado e redenccedilatildeo conflito e conciliaccedilatildeo e acima de tudo o proacuteprio tempo mdash saecula saeculorum mdash satildeo a mateacuteria do ensaio de Joyce sobre o homemrdquo 33 ldquoNatildeo apenas seu ensaio sobre o ser humano o Wake eacute sua comeacutedia humanardquo 34 ldquoAfinal de contas que autoridade no Wake sabe metade do que se tem a saber sobre ele Qual metade eacute a pergunta fundamentalrdquo

95

Percebemos a dificuldade no exemplo do segundo capiacutetulo que eacute um dos

mais claros em termos de composiccedilatildeo de cena ou ao menos quanto ao

desenrolar das accedilotildees e seus agentes o que Tindall atribui ao fato de ter sido um

dos primeiros que Joyce escreveu ldquoMaybe he did not have time going over it to

complicate it according to his habitrdquo35 (Ibid p 57) Quanto a tempo e espaccedilo

contudo permanecemos na pluralidade mdash ou mais pertinente dizer na

ubiquidade Tomemos um entendimento primaacuterio da cena com o qual

poderiacuteamos depreender o enredo geral temos Earwicker (a essa altura jaacute

tivemos esclarecimentos sobre sua alcunha) no Phoenix Park em Dublin

surpreendido por um jovem que lhe pergunta as horas O garoto portava um

cilindro o que pode justificar que Earwicker (aqui lembramos Wecker alematildeo

para despertador ndash aquilo que daacute as horas) se sentiu ameaccedilado Defende-se

demonstrando culpa e natildeo responde com a precisatildeo que a pergunta

demandaria O deslocamento no tempo e no espaccedilo poreacutem ocorre em diversos

pontos no paralelo de Earwicker com Adatildeo na culpa em comum por terem

cometido algum pecado mdash Adatildeo no Jardim do Eacuteden nosso protagonista no

parque em questatildeo

They tell the story (an amalgam as absorbing as calzium chloereydes and hydrophobe sponges could make it) how one happygogusty Ides-of-April morning (the anniversary as it fell out of his first assumption of his mirthday suit and rights in appurtenance to the confusioning of human races) ages and ages after the alleged misdemeanour when the tried friend of all creation tigerwood roadstaff to his stay was billowing across the wide expanse o four greatest park in his caoutchouc kepi and great belt and hideinsacks and his blaufunx fustian and ironsides jackboots and Bhagafat gaiters and his rubberised inverness he met a cad with a pipe (FW 351-11)36

35 ldquoTalvez ele natildeo tenha tido tempo ao percorrecirc-lo [o texto] de complicaacute-lo como de haacutebitordquo 36 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2000) ldquoContam a estoacuteria (uma amaacutelgama tatildeo absorvente quanto caacutelcio clorado e esponja hidroacutefoba poderiam performaacute-la) como numa letagostosa idos-de-abril manhatilde (o aniversaacuterio como se soube da primeira assunccedilatildeo do nascimento costumes e direitos em pertinecircncia agrave confusatildeo das raccedilas humanas) idades e idades apoacutes a alegada delonga quando o amigo comprovado de toda criaccedilatildeo begala de pau-marfim para seu equiliacutebrio ondulava atraveacutes do vasto territoacuterio do nosso mais esplecircndido parque com seu kepi caucho e imenso cinturatildeo cota de ferro humor faacutesutico botas de cavalaria inglesa espirituralidade hindu e c apa de chuva ele encontrou um cadete com um cilindrordquo

96

Tindall abre a possibilidade de a cena se ampliar e se desdobrar no

espaccedilo e no tempo relacionando a cena ao pecado original ldquoMaybe it is any sin

of every man or every sin of any manrdquo37 (TINDALL 1969 p58) O que Earwicker

fez de errado no entanto permanece em suspenso para o leitor em meio aos

tantos boatos que se reproduzem aparentemente de maneira incessante

Aparecem ainda outros paralelos espaccedilo-temporais como aparece na

expressatildeo ldquoIdes-of-April morningrdquo que lembra os Idos de Marccedilo (o dia 15 desse

mecircs data do assassinato de Juacutelio Ceacutesar) O jovem vai embora e os rumores se

desdobram cada vez mais fazendo de Earwicker desde um homem que se sente

abstratamente culpado ateacute um reacuteu efetivo de um crime indefinido

Chamar essas referecircncias de ldquoparalelosrdquo no entanto como faz Tindall

pode ser uma forma de suprimir a funccedilatildeo delas na amaacutelgama (an amalgam as

absorbing as calzium chloereydes and hydrophobe sponges could make it) do

texto Uma cena simples como a supracitada que parece poder ser posta com

clareza e ter seus elementos narrativos devidamente pontuados desdobra-se

em ambiguidades e referecircncias a outros tempos e espaccedilos que natildeo satildeo externos

e comparados a ela mas que a compotildeem tanto quanto os fatos que

apresentamos como primaacuterios o culpado Earwicker ou HCE estaacute no Phoenix

Park mas ele eacute tambeacutem Adatildeo no Eacuteden (e natildeo estaacute no primeiro parque assim

como Adatildeo esteve um dia no Eacuteden) Estaacute em Roma e eacute tambeacutem viacutetima de

conspiraccedilatildeo assassinado por Brutus Finnegans wake trata como afirma

Tindall da humanidade do universal mas em acontecimentos vividos por

indiviacuteduos em suas realidades microscoacutepicas como um enredo que se desfaz

em meio a numerosas e esparsas superposiccedilotildees assim se forma a amaacutelgama

wakiana

Apoacutes ser julgado Earwicker eacute preso e posteriormente morto Tindall

contrariamente a suas pretensotildees de sumarizar o enredo e determinar a

ordenaccedilatildeo dos acontecimentos novamente natildeo pode evitar alguma hesitaccedilatildeo

ao tentar descrever os ocorridos do capiacutetulo IV ldquoEarwicker dead Anyhow they

took the liberty of burying himrdquo (Ibid p 85) Assim notamos que por mais que

37 Traduccedilatildeo nossa ldquoTalvez seja qualquer pecado de todo homem ou todo pecado de qualquer homemrdquo

97

se tente concatenar as cenas natildeo se pode fazecirc-lo sem interrogaccedilotildees

parecircnteses bifurcaccedilotildees multiplicaccedilotildees A duacutevida quanto agrave morte da

personagem vem pelo motivo de que simplesmente natildeo temos a morte factual

mdash como ocorreu onde se foi homiciacutedio mdash assim como o delito de Earwicker se

apaga ao se multiplicar satildeo tantas as conjecturas que nem se pode mais lidar

com o fato Aleacutem disso Earwicker continua presente na narrativa mesmo finado

Natildeo temos o acontecimento concreto de sua morte seguido pelo relato de como

seguiram as outras personagens em vez disso temos referecircncias aos que

compareceram ou natildeo a seu enterro agrave tumba ao processo de sepultamento no

rio e outras evidecircncias de que ele estaria morto tudo enquanto o morto

permanece ali natildeo como assombraccedilatildeo mas duplicado entre os presentes e os

ausentes

Com essa duacutevida entatildeo a questatildeo do tempo novamente se coloca como

pode haver a vivecircncia da morte tatildeo essencialmente temporal mdash marco

cronoloacutegico do fim vivecircncia humana de uma temporalidade do luto mdash sem sua

determinaccedilatildeo A hesitaccedilatildeo na afirmaccedilatildeo da morte da personagem anula que se

possa viver sua ausecircncia e portanto o luto Isso engendra natildeo somente mais

uma quebra na narrativa mas ainda uma dinacircmica proacutepria do processo de perda

Assim como observamos na cena do Phoenix Park o que ocorre natildeo eacute uma

divisatildeo do enredo em duas realidades paralelas ou dois enredos paralelos em

que um contempla a morte e o outro lida com a vida mas de uma soacute situaccedilatildeo

Se a morte natildeo eacute fato pontual fechado uniacutessono do enredo o trabalho

do luto natildeo teraacute uma origem propriamente estabelecida mdash ou tendo como

origem uma perda que se fez em presenccedila e em ausecircncia simultaneamente teraacute

uma outra formaccedilatildeo e dinacircmica A narrativa entatildeo natildeo teraacute suas implicaccedilotildees

de consequecircncia uma vez que a causa natildeo eacute certa Se tomarmos para pensar

o luto a exposiccedilatildeo de Sigmund Freud em Trauer und Melancholie de 1915 em

que o luto e a melancolia satildeo comparados a partir do ldquoquadro geral desses dois

estadosrdquo (FREUD 2010 p 128) de forma que ambos os quadros se aproximam

em todas as descriccedilotildees cliacutenicas e se diferenciam apenas pela afetaccedilatildeo da

autoestima teremos a seguinte definiccedilatildeo do luto

98

Via de regra luto eacute a reaccedilatildeo agrave perda de uma pessoa amada ou de uma abstraccedilatildeo que ocupa seu lugar como paacutetria liberdade um ideal etc () Confiamos que seraacute superado apoacutes certo tempo e achamos que perturbaacute-lo eacute inapropriado ateacute mesmo prejudicial () O luto profundo a reaccedilatildeo agrave perda de um ente amado comporta o mesmo doloroso abatimento a perda de interesse pelo mundo externo ndash na medida em que natildeo lembra o falecido ndash a perda da capacidade de eleger um novo objeto de amor ndash o que significaria substituir o pranteado ndash o afastamento de toda atividade que natildeo se ligue agrave memoacuteria do falecido (Ibid pp 128-129)

Ora se a personagem eacute enterrada mas natildeo eacute de todo perdida natildeo se vai

por completo do plano onde estatildeo as personagens vivas como estabelecer a

perda que se tem como premissa imprescindiacutevel do luto A perda engendra o

que Freud chama de trabalho do luto toda a libido relacionada ao objeto perdido

precisa ser redirecionada mas a resistecircncia ao abandono dessa libido eacute

desconfortaacutevel podendo gerar ateacute distanciamento da realidade mdash muito dura

para se suportar mdash e psicose de desejo Todo esse processo poreacutem tem um

resultado ldquoMas o fato eacute que apoacutes a consumaccedilatildeo do luto o Eu fica novamente

livre e desimpedidordquo (Ibid p 130)

De toda a explanaccedilatildeo de Freud a respeito do luto natildeo podemos deixar de

concluir que seu tempo mdash e ao que tudo indica tambeacutem o da melancolia mdash eacute

alterado Com a perda desestabilizadora o indiviacuteduo se vecirc imerso na

necessidade de uma mudanccedila de paracircmetros para seu conforto habitual na

busca pela substituiccedilatildeo do ente perdido e no caminho de redirecionamento da

libido cuja origem se perdeu Assim seria seguro dizer que o trabalho do luto

racionalizado por Freud pressupotildee um tempo de luto diferenciado do tempo

normal da vida No Wake o texto ressoa esse trabalho de luto e seu tempo

proacuteprio o remordimento da morte e do morto em meio a descriccedilotildees que abarcam

homenagens seu enterro e seu descanso

Any number of conservative public bodies through a number of select and other committees having power to add to their number before voting themselves and himself town port and garrison by a fit and proper resolution following a koorts order of the groundwet once for all out of plotty existence as a forescut so you maateskippey might to you cuttirunner on a new pack of klerds made him while his body still persisted their present of a protem grave in Moyelta of the best Lough

99

Neagh pattern then as much in demand among misonesans as the Isle of Man today among limniphobes Wacht even It was in a fairly fishy kettlekerry after the Fiannarsquos foreman had taken his handful enriched with ancient woods and dear dutchy deep-linns mid which were na old knoll and a troutbeck vainyvain of her osiery and a chatty sally with any Wilt or Walt who would ongle her as Izaak did to the tickle of his rod and watch her waters of her sillying waters of and there now brown peater arripple (may their guilt lightly over his somnolulutent form) Whoforyou lies his last by the wrath of Bog like the erst curst Hun in the bed of his treubleu Donawhu (FW 7614)38

Poderiacuteamos compreender muito a respeito dessa morte no Wake partindo

apenas do fato de que o trecho do capiacutetulo IV em que se anuncia o enterro

subaquaacutetico da personagem Humphrey Chimpden Earwicker parodia os textos

egiacutepcios que chamamos de forma abrangente de Livro dos Mortos coletivo do

que era registrado sobre as tumbas para auxiliar os defuntos em seus caminhos

poacutes-morte sem distinccedilatildeo de nobreza mas que envolviam julgamentos morais

de merecimento e davam diversas orientaccedilotildees para a superaccedilatildeo de obstaacuteculos

que porventura surgiriam para o morto nessa transiccedilatildeo Esses escritos eram

chamados pelos egiacutepcios de ldquotextos para irvoltar agrave luzrdquo o que jaacute nos indica que

haveria um caminho a ser traccedilado por Humphrey de maneira que a sua morte

experiecircncia mais radical de finalizaccedilatildeo natildeo seria para ele o ponto final do

percurso Em vez de seguir para ldquoo aleacutemrdquo ou para o mundo dos mortos muito ao

contraacuterio o morto submerso segue para a luz que haacute na superfiacutecie em um

caminho de volta agrave vida A passagem natildeo eacute encarada como uma superaccedilatildeo de

barreiras ou uma peripeacutecia narrativa surpreendente ao inveacutes disso tem-se na

verdades quase uma ausecircncia de barreiras entre os dois aspectos da existecircncia

38 Como traduziu Donaldo Schuumller (2000) ldquoQualquer nuacutemero de corpos puacuteblicos conservadores atraveacutes de um nuacutemero de seletos de outros comitecircs com poder de adicionar a seu nuacutemero antes de votar em si mesmos e nele urbe porto e guarniccedilatildeo por adequada e proacutepria resoluccedilatildeo seguindo uma ordem judicial da constituiccedilatildeo uma vez por todas fora de existecircncia narrativa como um pitoco assim podes cortar tudo o que te incomoda num novo baralho de panos quanto a ele enquanto seu corpo ainda persistiu presente deles um sepulcro pro tempore na planiacutecie de Moryelta do melhor modelo dos defuntos sob o Lough Neagh entatildeo tatildeo em demanda entre os misoneacutesios quanto a Ilha de Man agora entre os limnoacutefobos Un momentito Foi em fabulosa caccedila piscosa depois ki Finn proacute-homem tinharrancado um punhado de turfa enriquecido com bosques antigos e bem postos pantanos dos baixos paiacuteses nos quais havia picos e bicos de truta vivamente vaidosos de suas ramadas e dos salgueiros no bleblablaacute de Blaacute a Bleacute que iria fisga-la como fez Izaak para excitar sua raiz e contemplar suas aacuteguas de suas indefesas aacuteguas e agora os brunos arrepios de sua pele pedrosa (queira seu vestido vestir levemente sua sonululante forma) Queporti jaz no seu derradeiro jazigo pela rabia de Dioacutes como o remoto reacuteprobo Huno no leito azul de seu Tunobiasalrdquo

100

No capiacutetulo referente ao enterro e posterior ressurreiccedilatildeo de Humphrey

Chimpden Earwicker as intrusotildees em referecircncias ao tempo e a temporalidade

satildeo numerosas

Best This wastohavebeen underground heaven or molersquos paradise which is probably also an inversion of a phallopharos (FW 7633-34)39

all differing as clocks from keys since nobody appeared to have the same time of beard some saying by their Oorlog it was Sygstryggs to nine more holding with the Ryan vogt it was Dane to pfife (FW 7711-14)40

But abide Zeitrsquos sumonserving rise afterfall (FW 787)41

As tantas alusotildees indicam como formas ou visotildees do tempo permeiam

tudo o que estaacute sendo narrado mas vemos que natildeo haacute indicaccedilotildees precisas fala-

se repetidamente do tempo sem no entanto estabelecer marcos cronoloacutegicos

divisotildees concretas ou definiccedilotildees temporais para a narrativa Se o tempo no Wake

natildeo eacute vetorial e nem busca mediccedilotildees tambeacutem natildeo pode secirc-lo na morte ou no

luto por mais marcados e marcantes que esses eventos fossem em outras

realidades No lugar do sonho tudo muda ateacute mesmo as mais radicais

ocorrecircncias presenccedilas satildeo eteacutereas espectros convivem cenas e marcos se

dissolvem

O tempo dissolvido nas multiplicidades em vez de apreendido e

entendido linearmente corrobora o que dissemos a respeito da impossibilidade

de escolher uma linha enrediacutestica em detrimento de outra ao menos sem que

isso fira a tessitura conjunta que a diversidade espaccedilo-temporal oferece Assim

como estamos em diversos tempos e (em um parque de Dublin na Roma antiga

39 Tambeacutem segundo a traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2000) ldquoBem Este subterracircneo foi-para-haver-de-ser ceacuteu ou o paraiacuteso dos molhes que provavelmente foi tambeacutem uma inversatildeo de um phallofarol ()rdquo 40 Idem ldquodiferindo tudo como sinos diferem de chaves visto que ningueacutem parecia ter o mesmo horaacuterio agrave barba alguns queriam por seu Horloacutegio que era Sixtriques pras nove outros apegados agrave Ira Landa diziam que era Dane-se para as cincordquo 41 Idem ldquoMas aguardemos o requerimento do tempo despertar apoacutes-quedardquo

101

no Eacuteden e assim por diante) tudo ocorre ao mesmo tempo (o pecado de Adatildeo eacute

o de HCE e seu sentimento de conspiraccedilatildeo que culmina em assassinato eacute o

mesmo de Juacutelio Ceacutesar) Temos todo o texto como o tropo Natildeo havendo escolha

de linha cronoloacutegica ou de espaccedilo natildeo haacute accedilatildeo pontual que se possa eleger

Em um niacutevel mais microscoacutepico do texto wakiano o mesmo acontece no

que concerne aos tatildeo numerosos neologismos Natildeo haacute como escolher um

significado ou outro satildeo simultacircneos e quase sempre autorreferenciais

Poderiacuteamos entatildeo compreender a fama de ilegibilidade se a leitura deve

considerar que tudo eacute deslocado e que nada se consolida sem grandes perdas

eacute vaacutelido ver tamanha dificuldade em Finnegans wake Eacute exigido do leitor que

diversos textos em um sejam lidos mdash portanto ler os diversos textos sem separaacute-

los Em Derridabase Geoffrey Bennington discorre com o pensamento de

Jacques Derrida a respeito do entendimento de significante e de significado

partindo da noccedilatildeo de signo estabelecida por Ferdinand de Saussure

No sistema de diferenccedilas que eacute a liacutengua todo significante funciona remetendo a outros significantes sem que se chegue nunca a um significado Procurem no dicionaacuterio o significado de um significante desconhecido vocecircs encontraratildeo outros significantes nunca significados Jaacute foi dito um significado natildeo eacute mais do que um significante posto numa certa posiccedilatildeo por outros significantes natildeo existe significado ou sentido soacute haacute lsquoefeitosrsquo (Positions p 90) Mas este privileacutegio concedido ao significante logo o destroacutei com efeito o significante lsquosignificantersquo soacute significa na sua relaccedilatildeo com (o significante) lsquosignificadorsquo que ele coloca de antematildeo em posiccedilatildeo de prioridade lsquoSignificantersquo e lsquosignificadorsquo se entreimplicam assim como eles implicam lsquosignorsquo e lsquoreferentersquo Eacute impossiacutevel para noacutes estipular (conforme um gesto que eacute agraves vezes o da filosofia analiacutetica) que lsquosignificantersquo daqui pra frente natildeo implicaraacute lsquosignificadorsquo como seu corolaacuterio sob pena como Humpty Dumpty de cair na ilusatildeo do convencionalismo e de esquecer que recebemos a liacutengua e suas sedimentaccedilotildees muito mais do que as criamos (BENNINGTON 1996 p 34)

Assim podemos compreender tambeacutem que em Finnegans wake existam

ldquoefeitos de significadordquo em vez de categorias soacutelidas a que pudeacutessemos recorrer

para a compreensatildeo do signo Talvez fique claro como um dicionaacuterio com

significados estanques dos termos da obra literaacuteria seria tatildeo ou ainda mais

102

parcial do que os dicionaacuterios comuns a que Bennington se refere Os efeitos satildeo

portanto aquilo que operam como fantasmas espectros que rondam a

materialidade do texto Esses espectros natildeo apenas perpassam alguns

momentos mas efetivamente habitam a tessitura textual

O filoacutesofo franco-argelino Jacques Derrida rompendo com uma

concepccedilatildeo de tempo exposta na obra do fenomenoacutelogo alematildeo Edmund

Husserl ultrapassa a noccedilatildeo tanto espacial quanto temporal de um percorrer

regido unidirecionalmente bem como substitui essa dada noccedilatildeo circular ou

ciacuteclica que perigosamente remete ao risco de uma redundacircncia por uma ideia

de elipse em que nunca se alcanccedila verdadeiramente o objeto nem se recupera

as condiccedilotildees preacutevias do caminho percorrido O movimento eliacuteptico pode ser aqui

invocado natildeo para substituir a ideia do ciacuterculo que aparece em James Joyce

uma vez consideradas todas as nuances dessa circularidade aqui expostas mas

para acrescentar uma espeacutecie de nuance eliacuteptica dessa circularidade que natildeo

produz redundacircncia ou repeticcedilatildeo mas singularidade e mesmo inovaccedilatildeo Tendo

seu centro deslocado um trecho percorrido na leitura impede terminantemente

que o passado da leitura seja revisitado da forma como foi lido em seu presente

irrecuperaacutevel

Citado por Joanna Hodge em Derrida on time Jacques Derrida em seu

ensaio ldquoForm and meaning a note on the phenomenology of languagerdquo datado

de 1967 propotildee um pensamento que poderia valer para o Finnegans wake ao

menos dentro da discussatildeo aqui proposta a respeito do formato estrutural da

obra final de James Joyce A respeito do que natildeo poderia ser apreensiacutevel por

uma dialeacutetica per se mdash algo que veremos distancia-se daquilo que conjectura

o escritor irlandecircs em suas obras mdash diz Jacques Derrida

Thus one does not have to choose between two lines of thought Rather one has to meditate upon the circularity which makes them pass into one another indefinitely And also by rigorously repeating this circle in its proper historical possibility perhaps to let some elliptical displacement be produced in the difference of repetition a deficient displacement doubtless but deficient in a way that is not yet --- or is no longer --- absence negativity non-Being lack silence Neither matter

103

nor form nothing that could be recast by some philosopheme that is by some dialectics in whatever sense dialectics may be determined An ellipsis both of meaning and of form neither full speech nor a perfect circle More a less neither more nor less Perhaps an entirely other question (DERRIDA apud HODGE 2007 p 11)42

A descriccedilatildeo do percurso eliacuteptico em Derrida acrescenta aqui ao princiacutepio

de natildeo redundacircncia como supracitado quanto agrave circularidade de Finnegans

wake No entanto uma espeacutecie de dialeacutetica ocupa as preocupaccedilotildees do escritor

irlandecircs Joyce foi influenciado pela ideia de atraccedilatildeo de contraacuterios exposta no

The Marriage of Heaven and Hell do inglecircs William Blake e da antecipaccedilatildeo da

dialeacutetica hegeliana de Giordano Bruno de Nola filoacutesofo italiano em que ldquoall is in

allrdquo como em Finnegans wake

Desde uma de suas primeiras publicaccedilotildees Gramatologia Jacques

Derrida aponta uma espeacutecie de condescendecircncia mdash ou como ele diz

solidariedade mdash entre uma concepccedilatildeo histoacuterico-metafiacutesica calcada no linear

portanto calcada na estruturaccedilatildeo de presente apoacutes presente tempo apoacutes tempo

em que haacute sequecircncias e possiacuteveis iniacutecios meios e fins com um modelo

discursivo tradicional eacutepico Denuncia igualmente que ldquoa lsquolinharsquo representa

apenas um modelo particularrdquo (DERRIDA 2011 p 107) e que esse modelo por

mais que tenha marcado uma norma imperante natildeo prescinde do conceito

mundano da temporalidade ndash o conceito de homogeneidade e continuidade seja

reto seja circular que Heidegger aborda como derivado da ontologia Esse

modelo passa a deixar de imperar pela gradual ineficiecircncia na economia dos

textos cientiacuteficos e na mesma medida problematiza-se contudo Derrida afirma

ldquoO fim da escritura linear eacute efetivamente o fim do livrordquo (Ibid 108) A ressalva

42 ldquoPortanto natildeo eacute necessaacuterio fazer uma escolha entre duas linhas de pensamento Preferencialmente se deve meditar sobre a circularidade que as faz uma passar pela outra indefinidamente Inclusive rigorosamente repetindo esse ciacuterculo em sua proacutepria possibilidade histoacuterica talvez para deixar algum deslocamento eliacuteptico ser produzido na diferenciaccedilatildeo da repeticcedilatildeo um deslocamento deficiente sem duacutevidas mas deficiente de maneira que natildeo eacute ainda mdash ou natildeo mais mdash ausecircncia negatividade natildeo-Ser falta silecircncio Nem mateacuteria nem forma nada que possa ser refeito por um filosofema isto eacute por alguma dialeacutetica em qualquer que seja o sentido que determina a dialeacutetica Uma elipse tanto de sentido quanto de forma nem discurso completo nem um ciacuterculo perfeito Mais um menos nem mais nem menos Talvez uma questatildeo inteiramente outrardquo

104

vem do proacuteprio filoacutesofo quanto ao fato de que nos nossos dias ainda novas

escrituras satildeo desdobradas nas focircrmas dos livros literaacuterias ou teoacutericas A

conclusatildeo desses processos e desvios eacute absolutamente contundente ldquoPorque

comeccedilamos a escrever a escrever de outra maneira devemos reler de outra

maneirardquo (Ibid)

Essas dimensotildees de uma espeacutecie de inadequaccedilatildeo da escritura ao

sistema linear e o lanccedilar-se agraves dimensotildees temporais plurais e natildeo lineares satildeo

fatos natildeo concernentes aos problemas modernos lembra Derrida mas fazem-

se evidentes nos dias atuais Teriacuteamos de dizer a partir disso que Finnegans

wake natildeo eacute um livro ou que o que faz dele um livro eacute o formato numerado e

organizado para uma ediccedilatildeo que lhe impotildee linearidade especiacutefica O que pensar

dessa imposiccedilatildeo de focircrma a um livro circular e efetivamente acessiacutevel de

qualquer ponto mdash portanto avesso a qualquer ordenaccedilatildeo especialmente a uma

numeraccedilatildeo que tanto especifica e prende Talvez isso deva nos levar ao

desprendimento dessa numeraccedilatildeo por mais uacutetil que seja em termos de citaccedilatildeo

e compartilhamento Ou em vez de um desprendimento uma atitude avessa a

certa escravizaccedilatildeo que pode decorrer desse sistema que em vez de pretensioso

arranjo traz desarranjo da estrutura circular que se deve perceber na obra

Em seu Seminaacuterio de nuacutemero 23 denominado O sinthoma ou Le

sinthome mdash ou ainda ldquoo santo homemrdquo mdash dedicado a James Joyce Jacques

Lacan parece atravessar tambeacutem algo proacuteximo agrave questatildeo que aqui trazemos

Antes de citaacute-lo talvez seja interessante remeter ainda especialmente no que

diz respeito ao comeccedilo da citaccedilatildeo do psicanalista agrave ceacutelebre frase de Samuel

Beckett a respeito do Finnegans wake que eacute um livro natildeo sobre alguma coisa

mas eacute a coisa em si Lacan em seu Seminaacuterio diz

Leiam as paacuteginas de Finnegans wake sem procurar compreender Isso se lecirc () Eacute uma sorte que haja uma uacutenica ediccedilatildeo o que permite designar ao fazermos uma citaccedilatildeo a linha na paacutegina certa isto eacute na paacutegina que sempre teraacute o mesmo nuacutemero Se como acontece com os outros livros fosse preciso editar Finnegans wake com diversas paginaccedilotildees como iriacuteamos nos orientar (LACAN 2005 p 161)

105

Finnegans wake entatildeo soacute natildeo eacute o fim do livro porque foi encaixado em

uma estrutura linear a despeito de sua natureza Mas eacute o fim das barreiras

linguiacutesticas como estudadas historicamente mdash e novamente a ponte

supracitada com Derrida em ldquoGecircnese e escritura do Essai sur lrsquooriginerdquo se faz

profiacutecua lembrando o que diz a partir de Jean-Jacques Rousseau ldquoNatildeo haveraacute

nem uma linha histoacuterica nem um quadro imoacutevel das liacutenguas () As liacutenguas satildeo

semeadasrdquo (DERRIDA 2011 p 263) O dinamismo babeacutelico que como foi dito

alguns capiacutetulos atraacutes transpassa para a traduccedilatildeo afeta o leitor de maneiras

distintas e desestabiliza a interaccedilatildeo leitor-obra de uma maneira que tem certa

medida de imprevisibilidade O fim da barreira linguiacutestica se relaciona ao fim de

uma barreira temporal

Ainda sobre Rousseau nesse mesmo texto Derrida aponta a vontade do

iluminista francecircs de esgotar todos os recursos da escritura buscando

univocidade clareza e precisatildeo indicando a pontuaccedilatildeo como ldquoo melhor exemplo

de uma marca natildeo-foneacutetica no interior da escriturardquo (Ibid p 277) Rousseau

chega a dizer que seriam necessaacuterias novas invenccedilotildees em pontuaccedilatildeo para que

se extraiacutesse o melhor da escritura seu maacuteximo como pontos que indicassem

por exemplo ironia e vocativo este uacuteltimo com a intenccedilatildeo de diferenciar na

escrita o homem que se proclama daquele homem que eacute convocado na

linguagem Podemos vislumbrar uma semelhanccedila curiosamente em sentido

diametralmente oposto entre Rousseau e o iacutempeto joyciano ao inveacutes da busca

por univocidade e precisatildeo Joyce parece buscar alcanccedilar ou extrair tambeacutem o

maacuteximo do trabalho que realiza no campo da palavra escrita explorando no

entanto o que se constroacutei em desbravamento de disseminaccedilatildeo a partir do

alcance do plural linguiacutestico isto eacute daquilo que natildeo proiacutebe ambiguidade mas se

farta dela

Em muitos pontos do texto o proacuteprio Finnegans wake praticamente diz ao

leitor ou ao menos lhe indica formas de se debruccedilar sobre ele dando pistas de

suas premissas O excerto que mostraremos aqui traz a sugestatildeo de que fatores

como o tempo mdash plural mdash a inflexatildeopronuacutencia e as maneiras de se comunicar

algo tecircm o poder de afetar diretamente no processo comunicativo que envolveria

idealmente emissor mensagem coacutedigo receptor como postulado pelo

106

estruturalismo de Roman Jakobson O proacuteprio texto se anuncia em apelos a uma

Babel ou mais especificamente a um processo de babelizaccedilatildeo da(s) liacutengua(s)

e de deslocamento da emissatildeo de mensagens em um suposto procedimento de

comunicaccedilatildeo

Because Soferim Bebel if it goes to that (and dormerwindow gossip will cry it from the housetops no surelier than the writing on the wall will hue it to the mod of men that mote in the main street) every person place and thing in the chaosmos of Alle anyway connected with the gobblydumped turkery was moving and changing every part of the time the travelling inkhorn (possibly pot) the hare and turtle pen and paper the continually more and less intermisunderstanding minds of the anticollaborators the as time went on as it will variously inflected differetly pronounced otherwise spelled changeably meaning vocable scriptsigns (FW 11818-28)43

No proacuteprio texto de Finnegans wake portanto admite-se ou ateacute mesmo

assevera-se que a linguagem sob a dinacircmica de um caraacuteter mutaacutevel natildeo tem

um destino certo pontual no espaccedilo e tampouco no tempo seu remetimento

pode lidar com o extravio com a perda de seu destino Em se tratando do texto

literaacuterio em que o destinataacuterio natildeo eacute unitaacuterio essa possibilidade eacute ainda maior

especialmente em um texto como Finnegans wake que remete agrave conexatildeo entre

todas as coisas no caosmos de tudo mdash algo que cria uma possibilidade de cadeia

de remetimentos infinita

Para Jean-Jacques Rousseau o surgimento das liacutenguas se daacute na

passagem do grito natural indomado pela racionalidade ao som articulado Ao

mesmo tempo ele evoca o espectro de uma fala que se daacute puramente em

articulaccedilatildeo que seria uma liacutengua morta aacutelgebra ou escritura ou seja resultaria

na morte da fala Para Jacques Derrida ldquoa morte que natildeo eacute nem um presente

43 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoPorque Escritores de Babell sofridores se chega a isso (e conversas de soacutetatildeo o proclamaratildeo do talhado com mais probabilidade anoite-o que a escrita no muro haacute de calorir a mente dos mentantes moventes na via mestra) cada persona galgo ou algo no caosmo do Todo de alocuma forma conectado com o pingalim em piruetas do pingo movia-se e mundava em cada parte do tempo o estojo movente (possivelmente o tonteiro) o papel a tinta no pipel das fibulosas lebre e tortuga os constantes mal-entendidos dos descolaboradores mais ou menos entrementados enquanto o fluir do tempo seraacute variabilmente infletido diferentemente pronunciado riversamente ortografado grafissignos de vocaacutebulos de sentido cambianterdquo

107

por vir nem um presente passado trabalha o dentro da fala como o seu rastro

sua reserva sua diferecircncia interior e exterior seu suplementordquo (DERRIDA 2011

p 385)

Levando isso em consideraccedilatildeo e tambeacutem o sonho de Rousseau pela

liacutengua que por fim seria inarticulada Jacques Derrida questiona quase

concluindo a sua Gramatologia ldquoE se a cena do sonho for sempre uma cena de

escriturardquo (Ibid 386) Sigmund Freud apontava ser pertencente agrave escritura

talvez o mundo dos sonhos Finnegans wake sendo o proacuteprio livro da noite e

do sonho eacute entatildeo escritura na mais bem sucedida fuga da linearidade

CAPIacuteTULO IV

FLUIR E RETORNO

109

O problema estrutural em Finnegans wake eacute segundo afirmamos um

problema intrinsecamente constituiacutedo na questatildeo da dimensatildeo temporal da

existecircncia a comeccedilar por abranger o tempo da leitura da ficccedilatildeo mdash ateacute alcanccedilar

as explicaccedilotildees do tempo do sonho e outras analogias Para aleacutem do tempo do

sonho podemos pensar contrariamente a certa concepccedilatildeo temporal aristoteacutelica

de momento fugidio de linearidade e homogeneidade a concepccedilatildeo temporal da

tradiccedilatildeo semita que trata de simultaneidade assim como uma concepccedilatildeo vinda

de Bergson ou de Heidegger Nessa tradiccedilatildeo hebraica ao inveacutes da

mensurabilidade que secciona a vivecircncia haacute a concepccedilatildeo cairoloacutegica se

podemos assim colocar relacionando-a ao tempo do καιρός (em vez da

cronoloacutegica isto eacute o tempo na loacutegica de κρόνος)

110

Para considerar essa visatildeo procedente no entanto dificilmente seria

profiacutecuo simplesmente apontar momentos especiacuteficos do livro em que isso

aconteccedila sem considerar tambeacutem o todo em recortes que ilustrem afirmaccedilotildees

O entendimento de aspectos estruturais do Wake relacionados a concepccedilotildees de

temporalidade eacute bastante visiacutevel considerando os paradigmas viquianos de que

Joyce partiu ou simplesmente observando o iniacutecio do livro conter uma frase

cortada indicando uma estrutura in media res especialmente expliacutecita mais do

que se especula em Ulysses por exemplo Os caminhos que o texto segue

poreacutem em termos de tempo ultrapassam os aspectos mais pulsantes e chegam

a ser tortuosos uma vez que mudam a todo tempo desde o tratamento dado a

personagens ateacute a ambientaccedilatildeo passando pelo vocabulaacuterio sempre mutante mdash

que remete tambeacutem linguisticamente a outros tempos com usos anacrocircnicos ou

deslocados na diacronia dos idiomas entremeados ao contraacuterio do que uma

pretensatildeo naturalista teria de reproduzir um tempo e espaccedilo pontuais da

realidade mdash e claro pela narrativa desmantelada Assim ainda que seja difiacutecil

ilustrar certas afirmaccedilotildees sobre Finnegans wake pontualmente podemos

rememorar passagens e buscar e alguns destaques possiacuteveis

No quinto capiacutetulo do livro I que se inicia com um paraacutegrafo

surpreendentemente curto mdash apoacutes uma seacuterie de paraacutegrafos longos desde as

primeiras paacuteginas da obra mdash temos uma espeacutecie de apresentaccedilatildeo mais formal

e direta de uma das personagens principais da obra Anna Livia Plurabelle a

mulherrio O documento envolve diferentes personagens no entanto no que diz

respeito tanto agrave sua redaccedilatildeo quanto ao seu envio Diz o trecho

In the name of Annah the Allmaziful the Everliving the Bringer of Plurabilities haloed be her eve her singtime sung her rill be run unhemmed as it is uneven (FW 1041-3)44

44 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller em que o tradutor evoca a religiosidade da fala de oraccedilatildeo ldquoEm nome de Annah a Allmissassombrosa a Sempreviva a Portadora de Plurabilidades santificada seja sua evigiacutelia venha o reino de seu canto ritmem suas rumas sem peias assim na terra como no ceacuteurdquo

111

O que esse paraacutegrafo apresenta em verdade eacute a vinda de sua voz sua

chegada ao leitor por meio de uma carta-manifesto (ldquomamafestardquo) sem tiacutetulo que

seraacute mostrada em seguida aos leitores nesse mesmo capiacutetulo Desenha seu

lugar de inscriccedilatildeo aquele onde poderaacute se despir em transluacutecida sinceridade e

apelo No entanto ainda que seja introduzida sua carta e portanto sua voz e

sua presenccedila o paraacutegrafo se inicia com ldquoin the name ofrdquo isto eacute ldquoem nome

derdquo A expressatildeo natildeo serve aiacute para transferir a fala a algueacutem que a represente

como se houvesse um outro personagem que falasse em seu nome em seu

lugar forjando sua assinatura serve para sobrepor outras vozes agrave sua na

medida em que Anna Livia natildeo se ausenta para que falem por ela mas haacute uma

comunhatildeo de outras vozes que tomam o lugar da fala concomitantemente Natildeo

haacute uma passagem da voz de uma pessoa para outra mas uma assinalaccedilatildeo de

polifonia isto eacute de multiplicidade em simultaneidade

Primordialmente diversos indiacutecios nos levam agrave leitura de Anna Livia como

uma divindade aiacute evocada As referecircncias nesse trecho satildeo basicamente

islacircmicas Essa evocaccedilatildeo natildeo deixa de lembrar em referecircncia paralela agrave

antiguidade ocidental a forma como todo poema eacutepico deve se abrir evocando

e pedindo auxiacutelio agraves musas para fazer o texto acontecer surgir fluir mas

podemos vislumbrar aquela religiatildeo abraacircmica jaacute ao vermos o nome de Anna

Livia ao lado de um epiacuteteto de tamanha imponecircncia ldquothe Allmazifulrdquo que remete

a ldquoall-mercifulrdquo e por conseguinte tambeacutem agrave maneira consagrada de se referir a

Alaacute ldquoAllah the All-mercifulrdquo

A abertura desse paraacutegrafo ecoa ainda tanto em similaridade foneacutetica

quanto nas relaccedilotildees intertextuais que permite o termo ldquoBismillahrdquo que

reaparece a cada sura (cada capiacutetulo do Coratildeo) geralmente nessa mesma

posiccedilatildeo dando iniacutecio ao texto ali contido O eco aqui eacute efetivamente de

repeticcedilatildeo uma vez que ldquoBismillahrdquo significa exatamente ldquoIn the name of Allah

the All-mercifulrdquo Por maior que possa ser a importacircncia das repeticcedilotildees de

termos temas e referecircncias no Wake devemos ter o cuidado de natildeo acreditar

que elas soacute existem se perceptiacuteveis digamos a olho nu mesmo que sob a oacuteptica

meticulosa de quem procura as reproduccedilotildees explicitamente visiacuteveis

112

Jacques Derrida a respeito de estrutura textual diz na seccedilatildeo intitulada ldquoA

fita de maacutequina de escreverrdquo integrante da coletacircnea Papel-maacutequina que ldquoa

loacutegica do acontecimento textual como inscriccedilatildeo materialrdquo impede uma regulaccedilatildeo

com progressatildeo e regressatildeo isto eacute com ldquoo processo temporal como

habitualmente se pensardquo mas sim regulado pelo proacuteprio acontecimento ou

ocorrecircncia do texto ldquoportanto pela singularidade de uma uacutenica vezrdquo (DERRIDA

2009 p 86) Eacute caracterizada portanto uma forma proacutepria de experiecircncia de

maneira que somente uma visatildeo fenomenoloacutegica respeitaria tamanha

especificidade

No esteio desse raciociacutenio faz-se necessaacuterio reafirmarmos que tal tempo

relacionado ao escritural bem como agraves accedilotildees propriamente de escrita e de

leitura tem peculiaridades proacuteprias e por isso uma dinacircmica de consequecircncias

tanto variaacuteveis quanto incontrolaacuteveis A escrita prevecirc o que seraacute do que jorrou

dela e tambeacutem como chegaraacute ao leitor mas sabendo que deve falhar nessa

previsatildeo O tempo da leitura eacute um presente inescapaacutevel que tem de lidar com o

passado irrecuperaacutevel da leitura da linha anterior ainda que se volte e leia

novamente o que jaacute se leu a experiecircncia eacute outra O deparar-se com o texto

matriz de estranhamento frente agrave liacutengua ocorre sempre na singularidade

Derrida traz ainda afirmaccedilotildees a respeito do acontecimento na literatura

remetendo a certa categoria de materialidade do texto mdash materialidade de um

acircmbito metafiacutesico enquanto conceito filosoacutefico diferente portanto de mateacuteria

mdash que determina o conceito de acontecimento (ou a acontecimentalidade)

textual associado agrave desconstruccedilatildeo Essa conjectura eacute pertinente na medida em

que essa operaccedilatildeo desconstrutiva para Derrida tem sempre como alvo ou

ldquoimplica sempre um processo de desmetaforizaccedilatildeordquo (Ibid 131) em que se

revela a existecircncia de articulaccedilotildees ocultas em totalidades antes aparentemente

monaacutedicas Assim o que repousa sob o texto quase silenciosamente mas eacute

visiacutevel em sua superfiacutecie mdash em sua sintaxe em sua estrutura narrativa em seus

processos metoniacutemicos mais evidentes mdash eacute o que uma leitura desse formato

alcanccedila e eacute a abordagem que se propotildee aqui na leitura de Finnegans wake

considerando as disseminaccedilotildees de sentido pelo texto

113

Retornando ao Wake uma seacuterie de epiacutetetos se segue todos com inicial

maiuacutescula indicando que o paraacutegrafo se refere a uma autoridade amarrando os

adjetivos ao nome proacuteprio como corolaacuterios de um pronome de tratamento

especial ldquothe Everliving the Bringer of Plurabilitiesrdquo O restante do capiacutetulo natildeo

conteacutem mais referecircncias islacircmicas O que apareceu no primeiro paraacutegrafo natildeo

foi uma chave para a leitura do que viria depois mas referencias que se

entrecruzaram dentro do mesmo paraacutegrafo e depois aparentemente natildeo nos

servem para nada podendo imaginar que um leitor natildeo as perceba eou as

ignore e continue sua leitura sem prejuiacutezo Anna Livia natildeo eacute Allah nem lhe eacute

equivalente ou consiste em uma paroacutedia dele mas a figura de Allah surge por

detraacutes da mulher-Liffey

A expressatildeo ldquoin the name ofrdquo aleacutem de engendrar a referecircncia agrave fala

islacircmica (e agrave fala catoacutelica com o ldquoem nome do Pai do Filho e do Espiacuterito

Santordquo) aponta fatos narrativos Eacute notaacutevel no paraacutegrafo que essa expressatildeo

natildeo consiste em uma transmissatildeo naquele momento do poder de enunciaccedilatildeo

da proacutepria Plurabelle a outrem a partir desse ponto Lembra de maneira bem

humorada no entanto um anuacutencio real ou oficial sobre alguma questatildeo decidida

pela instacircncia maior de uma hierarquia Nesse sentido haacute uma intermediaccedilatildeo

nesse anuacutencio Haacute ainda uma interposiccedilatildeo de duas outras personagens da obra

quando a carta-mamafesta nos aparece a de seus filhos Shem e Shaun Shem

the penman escreve a carta cujo conteuacutedo lhe eacute transmitido por Anna Livia e

Shaun the postman encarrega-se de entregaacute-la funcionando como

mensageiro

Com o personagem de Shaun e especialmente quando lhe eacute atribuiacuteda

essa tarefa eacute inevitaacutevel lembrarmo-nos da relaccedilatildeo entre mensageiro e

hermenecircutica vislumbrada etimologicamente Tomamos a explicaccedilatildeo de

Heidegger a respeito do termo neste caso didaacutetica e objetiva Do diaacutelogo com

professor Tezuka da Universidade Real de Toacutequio nasce o texto ldquoDe uma

conversa sobre a linguagem entre um japonecircs e um pensadorrdquo de 19531954

publicado em A caminho da linguagem Questionado por Tezuka a respeito do

uso dos termos ldquohermenecircuticardquo e ldquofenomenologiardquo em Sein und Zeit ambos

114

posteriormente abandonados por Heidegger o filoacutesofo alematildeo responde a seu

interlocutor

A palavra ldquohermenecircuticordquo vem do verbo grego ἑρμηνεύειν Refere-se ao substantivo que se pode articular com o nome do deus Hermes Ἑρμής num jogo de pensamento mais rigoroso do que a exatidatildeo filoloacutegica Hermes eacute o mensageiro dos deuses Traz a mensagem do destino ἑρμηνεύειν eacute a exposiccedilatildeo que daacute notiacutecia agrave medida que consegue escutar uma mensagem Esta proposiccedilatildeo se transforma em interpretaccedilatildeo da mensagem dos poetas que nas palavras de Soacutecrates no diaacutelogo Iacuteon (534e) ldquosatildeo mensageiros dos deusesrdquo ἑρμηνῆς εἰσιν τῶν θεῶν () Assim hermenecircutico natildeo diz interpretar mas trazer mensagem e dar notiacutecia (HEIDEGGER 2011 pp96-97)

Shem the penman cujo epiacuteteto prova o quanto assumidamente eacute a

encarnaccedilatildeo do poeta tem em Shaun assim seu correspondente mensageiro e

essa esquemaacutetica fica ainda mais clara na dinacircmica da carta da matildee Anna Livia

espeacutecie de musa inspiradora evocada para a realizaccedilatildeo da escrita O ldquoin the

name ofrdquo opera na marcaccedilatildeo dessa impureza de voz da personagem matildee

deixando expliacutecito para o leitor que o conteuacutedo expresso ali percorre um caminho

indireto Faz-se necessaacuterio duvidar do acesso que podemos ter agrave voz que nos

remete o conteuacutedo do que lemos ateacute a chegada de seu monoacutelogo fluvialmente

verborraacutegico Poder-se-ia afirmar que a voz de Anna Livia soacute realmente toma seu

lugar e domina o texto tomando suas reacutedeas ao fim do livro IV sem

mensageiros tramitando mensagens em seu lugar ainda que aparentes

intromissotildees eventuais sempre aconteccedilam Certamente poreacutem a duacutevida que

Finnegans wake impotildee segundo traccedilamos a respeito de voz discursiva

possibilita uma teorizaccedilatildeo a respeito da impossibilidade de se destilar a sincronia

de uma voz uma fala uma entidade ou personagem A improbabilidade desse

isolamento ou dessa purificaccedilatildeo de categorias e instacircncias narrativas nos lanccedila

em aporias textuais diversas confirmando a compreensatildeo de que a leitura dos

capiacutetulos natildeo cumpra expectativas de clareza e de unidade mas que sejamos

sempre obrigados a questionar o que mudou e que nova polifonia em aparente

caotizaccedilatildeo estaacute sendo desenvolvida

115

Outros exemplos dessas simultaneidades diversas estatildeo no capiacutetulo 11

em que vimos a mesma indefiniccedilatildeo entre falas tempos e espaccedilos unindo a fala

embolada coletiva das pessoas ocupando o pub agrave do raacutedio e agrave de uma narraccedilatildeo

de histoacuteria aparentemente nem do pub nem do raacutedio entre as elucubraccedilotildees das

lavadeiras no capiacutetulo de ALP com a sonoridade dos ecos e a presentificaccedilatildeo

de uma seacuterie de falas que ouviram e reproduzem de diversas maneiras as

sessotildees de julgamento de HCE permeadas por intromissotildees os diversos

devaneios oniacutericos que colocam HCE em situaccedilotildees insoacutelitas espalhados por

muitos capiacutetulos e passando pelas metamorfoses das personagens em outras

pessoas e elementos da natureza as margens no capiacutetulo 10 que colocam no

mesmo espaccedilo de paacutegina vozes completamente distintas em origem conteuacutedo

e forma em que cada espaccedilo das margens se destina a um dos irmatildeos Isolda

ocupa as notas de rodapeacute e circundando todo o texto Shem e Shaun Mesmo

nessa divisatildeo de espaccedilo as vozes natildeo estatildeo isoladas as margens laterais

eventualmente se trocam e comentando-se intercaladamente misturam

assuntos e referecircncias desestabilizando a verdade ou a unidade do que seria

tradicionalmente a voz narrativa central

A dita correspondecircncia dicotocircmica entre Shem e Shaun se explicita ainda

na relaccedilatildeo de Shaun como o mensageiro com o deus Hermes Como eacute dito na

citaccedilatildeo de Heidegger o miacutetico Hermes tem uma relaccedilatildeo com a origem da

hermenecircutica ainda que por vias etimoloacutegicas indiretas (passando pelo verbo

ἑρμηνεύειν) Por outro lado Shem o poeta se opotildee a Shaun ainda nesse

quesito um irmatildeo estaacute aberto ao ambiacuteguo enquanto outro se concentra na

interpretaccedilatildeo una Sendo um mensageiro assim como Hermes era mensageiro

dos deuses Shaun se preocupa com a emissatildeo da mensagem com fazecirc-la

alcanccedilar o destinataacuterio exatamente como deve chegar sem extravio ou desvio

Shaun busca verdades ironizando a existecircncia do proacuteprio Wake enquanto

Shem se instala no terreno das possibilidades inclusive da possibilidade de que

o proacuteprio livro se faccedila No livro II capiacutetulo 9 mdash capiacutetulo 1 na divisatildeo de Campbell

e Robinson (2013) ldquoA hora das crianccedilasrdquo mdash os irmatildeos se separam entre as

luzes (Shaun) e as trevas (Shem) caoso caminho confuso do perder-se (Shem)

e a redenccedilatildeo e autocontemplaccedilatildeo (Shaun) isso eacute assinalado como uma

116

separaccedilatildeo quase chocante como de Dom Quixote e Sancho Panccedila de

possibilidade remota

A dicotomia entre os irmatildeos no entanto eacute transgredida na medida em

que se completam na divisatildeo de tarefas materializada pela carta de Anna Livia

Plurabelle O que se daria como uma pura oposiccedilatildeo se dissolve em uma espeacutecie

de paralelismo cada um dos irmatildeos tem seus preceitos seus caminhos que natildeo

se tocam mas seguem lado a lado e ainda que tenham nuances proacuteprias satildeo

dotados de caracteriacutesticas que operam por contraste O que os separa e

diferencia eacute muacutetuo em suas respectivas caracterizaccedilotildees havendo uma uniatildeo

maior que a meramente consanguiacutenea ainda que definitivamente natildeo sejam

personagens intercambiaacuteveis Operam na verdade como as relaccedilotildees entre

todos os familiares do nuacutecleo de Finnegans wake por similaridade e

diferenciaccedilatildeo com a caracterizaccedilatildeo de cada um deles sempre interligada e

passando pelas relaccedilotildees de parentesco mdash seja no incesto seja na continuidade

geracional que gera espelhamento e desdobramento seja nos pares

complementares e assim por diante O tempo do parentesco assim pode

caotizar uma linearidade cronoloacutegica eacute um anacronismo de cruzamentos

diversos mais do que uma uniatildeo ou intersecccedilatildeo de sincronias unitaacuterias mdash de

tempos individuais mdash nem a diacronia familiar como seria se interpretaacutessemos

o coletivo como histoacuteria e memoacuteria

A carta-mamafesta de Anna Livia portanto tem o seu caminho

anticircularizado tornado eliacuteptico com um ldquoretorno deslocadordquo da compreensatildeo

de Jacques Derrida e isso ocorre mesmo antes da chegada da mensagem jaacute

havendo a problematizaccedilatildeo de seu remetente atraveacutes de Anna Livia a

mensagem desloca-se por seus filhos em desvios natildeo rastreaacuteveis Eacute

desintegrada a noccedilatildeo de unidade nesse percurso bem como a possiacutevel

centralidade do emissor Estando a noccedilatildeo de presenccedila e a noccedilatildeo de centro

intimamente ligadas ambas se esfarelam simultaneamente Os espaccedilos de voz

em que os remetimentos se interseccionam seriam no Wake repensados

Finnegans wake entatildeo sendo o proacuteprio livro da noite e do sonho eacute escritura em

fuga do linear que natildeo soacute desvia como se estranha e se exila do terreno comum

117

da centralidade e dos eixos estaacuteveis das repeticcedilotildees criadoras de identidade da

mensagem enviada em linha reta mdash em uma potente polifonia

A distacircncia entre diferentes vozes implica que existam diferentes

temporalidades O filoacutesofo franco-lituano Emmanuel Levinas discorre sobre o

tempo partindo de sua investigaccedilatildeo central a dicotomia do mesmo e do Outro

(que em verdade se estabelecem em relaccedilotildees eacuteticas complexas superando um

caraacuteter meramente dicotocircmico) Em Autrement qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence

(1974) diferencia trecircs possibilidades de leitura temporal sendo a primeira delas

o tempo do mesmo a pura sincronia de um eu que vive seu tempo de um ponto

de vista determinado ateacute o ponto em que natildeo afetado por alteridades paralelas

O estabelecimento de uma diacronia soacute se daacute com a intromissatildeo desse outro

intromissatildeo em geral inevitaacutevel de maneira que natildeo haacute mais um soacute passado

nem uma perspectiva unificada do tempo presente A uacuteltima instacircncia seria o

ponto do anacronismo em que a dualidade eu-outro como duas entidades

paralelas ou entrecruzadas se multiplica em uma diversidade de passados

futuros e uma impossibilidade de presente uacutenico e de uma perspectiva solitaacuteria

intocada

Uma obra literaacuteria apresenta em princiacutepio uma sincronia haacute o texto uma

porccedilatildeo de enunciados congelados prontos a serem evocados num presente

qualquer de um leitor que com ele se depare Soacute pode ser lido em um presente

um instante na linearidade de cada letra que sucede outra cada palavra e linha

em ordem inertes Nessa interaccedilatildeo haacute o cruzamento de outro tempo apenas a

partir da abordagem leitor um mesmo um eu que vai com sua sincronia proacutepria

seu tempo presente agrave abordagem do texto No entanto a sincronia que se

apresenta natildeo eacute ativada senatildeo no contato com ele na leitura por algueacutem Ao

inveacutes de um cruzamento entatildeo poder-se-ia pensar na retirada do texto de uma

suspensatildeo temporal A obra ocupa um lugar de nenhum tempo ateacute que eacute

chamada a ocupar um presente de algueacutem cuja temporalidade lhe eacute imposta e

domina a interaccedilatildeo leitor-texto Se pensarmos tempo de maneira contiacutegua a

espaccedilo a obra ocuparia assim um natildeo-lugar A sincronia do texto acompanha

a linha do tempo de quem quer que seja o centro dessa conduccedilatildeo seja um

118

narrador personagem seja um narrador onisciente que nos guia pelo trilho dos

fatos seja fluxo de consciecircncia e o tempo do monoacutelogo interior

Isso nos impotildee o problema que sincronia eacute inerente ao Wake Haacute uma

incompatibilidade ainda entre o tempo presente do leitor e a natildeo-sincronia do

texto com que se depara Havendo uma sincronia na obra o leitor e seu tempo

se relacionam de um para um com o tempo do outro no entanto natildeo se pode

definir com precisatildeo (ou mesmo sem) a linearidade do Wake menos ainda

definir um personagem que detenha essa perspectiva de quem parte a

temporalidade No monoacutelogo poderiacuteamos afirmar que haveria a sincronia de

Anna Livia no entanto as intromissotildees satildeo tantas que vemos claramente um

cruzamento de temporalidades diversas Isso eacute favorecido pela forma do

monoacutelogo por seu proacuteprio modo assim como seria em qualquer tentativa de se

trabalhar a partir de um fluxo de consciecircncia e transformaacute-lo em teacutecnica natildeo eacute

poreacutem justificado por ele uma vez que haacute a possibilidade de que um monoacutelogo

interior narrado tenha uma temporalidade sincrocircnica absolutamente palpaacutevel O

final (se podemos assim dizer) de Finnegans wake no entanto sugere um

continuum que aponta a um futuro agrave substituiccedilatildeo da geraccedilatildeo anterior pela que

a sucede O capiacutetulo se inicia com ldquoSandhyasrdquo que lembra tanto Sunday (o Sol

que estaacute nascendo na manhatilde indica o novo dia jaacute que o sonho de Earwicker

pode ter se passado em uma noite de saacutebado) quanto um saṃdhiacute (सधि) termo

sacircnscrito que significa ldquojunccedilatildeordquo ou ldquoarticulaccedilatildeordquo e remete agrave cosmologia do

Bramanismo em que se denominam os intervalos entre as yugas (as quatro

idades satya treta dwapar e kali yuga) de sandhyā e sandhyānsa Assim o

encaminhamento para o final mdash do sonho do livro de uma idadefase mdash se daacute

de maneira prismaacutetica sem encaminhar pontualmente um fechamento temporal

especiacutefico pois natildeo se limita agrave cronologia hindu nem agrave da narrativa Os tempos

verbais satildeo claramente confusos dizem-se anulando-se ldquoThe child a natural

child thenown by the mnames of (aya aya) wouldbewas kidnapped at na age

of recent probably possibly remoterrdquo (FW 59534-36)45 A incerteza se explicita

45 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoUm menino filho natural entatildeo conhecido pelos mnomes de (aya aya) podequefoi raptado em data recente provavelmente tambeacutem pode que mais remotardquo

119

ldquowould berdquo e ldquowasrdquo se unem no que eacute passado e ao mesmo tempo possibilidade

a hesitaccedilatildeo confirma um ldquoprovavelmenterdquo recente mas tambeacutem possivelmente

ldquoremotordquo Natildeo haacute apenas duacutevida entre um ou outro tempo como garantir que o

passado de fato passou

Se concebermos o Wake todo como um livro de sonho seja do Humphrey

seja de Anna Livia talvez a consciecircncia de quem sonha seja essa figura

centralizadora A temporalidade do sonho poreacutem se instalaria como outro oacutebice

a essa definiccedilatildeo jaacute que natildeo possui um tempo cronometraacutevel e portanto sua

calculabilidade se dissipa de qualquer maneira Sem evocaacute-las

conscientemente memoacuterias compotildeem qualquer sonho mas podem ser

distorcidas constituindo devaneios que satildeo na verdade nada aleacutem de

conjecturas ficcionais Imiscuem-se desejos que vislumbram um certo futuro do

acircmbito do previsiacutevel e ainda o presente do sonhador que dorme em sono leve

ou pesado em algum lugar calmo ou barulhento confortaacutevel ou natildeo apoacutes ter

tido um dia bom ou ruim agitado ou tedioso Se pensaacutessemos no sonho fora da

ficccedilatildeo portanto muito haveria de ser considerado na ficccedilatildeo se eacute concebido um

personagem que sonha a narrativa ou que sonha uma escritura mdash para falarmos

junto com Freud mdash certamente natildeo se partiria do princiacutepio de que haacute uma

sincronia pois o tempo dessa produccedilatildeo oniacuterica natildeo seraacute uno mas antes de

aspecto muacuteltiplo

Citamos sincronia anacronismo termos previsiacuteveis em uma abordagem

sobre o tempo Podemos no entanto empregaacute-los de uma maneira mais

especiacutefica a partir de alguns apontamentos levinasianos que perpassam a

questatildeo da temporalidade pela via eacutetica e ontoloacutegica A eacutetica metafiacutesica de

Emmanuel Levinas eacute pautada em investigaccedilotildees fenomenoloacutegicas cuidadosas e

no olhar sobre as exigecircncias morais a alteridade e a justiccedila mdash que constituem

o ser humano desde o face a face um-Outro ateacute o todo da vida em sociedade

Um desdobramento do tiacutetulo de uma de suas obras Autrement qursquoecirctre ou au-

delagrave de lrsquoessence isto eacute aleacutem do ser outramente que ser outro que (no sentido

negativo) ser indica a intenccedilatildeo de ultrapassar o ser como concebido ateacute entatildeo

nas discussotildees da ontologia remetendo indubitavelmente ao legado daquele

que resgatou a questatildeo-do-ser (Seinsfrage) ateacute entatildeo esquecida Martin

120

Heidegger Em Sein und Zeit (1927 2012) Ser e tempo o filoacutesofo de Meszligkirch

retoma o ser das trevas em que este estava envolto apontando resumidamente

trecircs preconceitos que imperavam como entraves de sua investigaccedilatildeo a saber

sua suposta inerente universalidade o atravanco inevitaacutevel em qualquer

tentativa de definiccedilatildeo e por fim sua totalidade em si autossuficiecircncia

Aquilo que de modo fragmentaacuterio e numa primeira investida foi um dia arrancado dos fenocircmenos pelo supremo esforccedilo do pensamento de haacute muito se trivializou () Sobre a base dos pontos-de-partida gregos da interpretaccedilatildeo do ser construiu-se um dogma que natildeo soacute declara supeacuterflua a pergunta pelo sentido de ser mas aleacutem disso sanciona sua omissatildeo Diz-se ldquoserrdquo eacute o conceito mais universal e o mais vazio e como tal resiste a toda tentativa de definiccedilatildeo (HEIDEGGER 2012 p 33)

Estabelece jaacute na introduccedilatildeo de seu tratado que o objetivo eacute ldquoa elaboraccedilatildeo

concreta da pergunta pelo sentido de lsquoserrsquordquo e que o tempo assim como aparece

em segundo lugar no tiacutetulo constitui no conteuacutedo de toda a obra apenas uma

ldquometa provisoacuteriardquo no que for pertinente para direcionar ldquoo horizonte possiacutevel de

todo entendimento-do-ser em geralrdquo (Ibid p 31) O tempo eacute um caminho

interpretativo para o ser este sim o centro da investigaccedilatildeo de Heidegger Assim

partindo da revisitaccedilatildeo do que a ontologia relegou como terras infeacuterteis

desenvolveu seu Dasein matriz do entendimento-do-ser o ente cuja maior

possibilidade-de-ser eacute a de perguntar (Frager perguntante) Esse retorno agrave

ontologia agrave maacutexima pergunta ontoloacutegica primordial eacute acompanhado entatildeo pela

temporalidade sentido do ser do Dasein na medida em que se constitui como

aquilo a partir de que ele eacute capaz de entender e processar um algo

Assim como a Seinsfrage permaneceu intocada Heidegger destaca que

o conceito de tempo se manteve praticamente inalterado desde Aristoacuteteles

mesmo passando por Henri Bergson (dizendo que o filoacutesofo francecircs eacute mais

aristoteacutelico do que pensa) e reteve tambeacutem o preconceito de um entendimento

vulgar da funccedilatildeo ontoloacutegica autossustentaacutevel Natildeo se pode poreacutem escapar

desse outro resgate Direciona-se assim agrave ldquodestruiccedilatildeo do conteuacutedo transmitido

pela ontologia antiga tarefa a ser levada a cabo pelo fio-condutor da questatildeo-

do-serrdquo (Ibid p 87) mas uma destruiccedilatildeo (Destruktion) que ldquonatildeo quer sepultar o

121

passado no nadardquo pois ldquoela tem um propoacutesito positivo e sua funccedilatildeo negativa

permanece inexpressa e indiretardquo (Ibid p 89) Toda essa necessidade eacute

justificada

Porque o ser soacute pode ser apreendido cada vez na perspectiva do tempo a resposta agrave questatildeo-do-ser natildeo pode residir numa proposiccedilatildeo isolada e cega A resposta natildeo eacute entendida na mera reiteraccedilatildeo do que eacute enunciado em proposiccedilatildeo sobretudo se eacute posta em circulaccedilatildeo como resultado flutuando no ar para mero registro de uma informaccedilatildeo sobre um ldquoponto-de-vistardquo que talvez se afaste do modo de tratamento ateacute agora usual (Ibid p 79)

O tempo como horizonte interpretativo do ser natildeo eacute uma escolha

heideggeriana por assim dizer em termos fundantes A ontologia antiga

interpretando o ser a partir e atraveacutes do mundo isto eacute da natureza acaba por

fazecirc-lo a partir do tempo O sentido de ser asism eacute παρουσία ou ουσία

presenccedila Heidegger cita brevemente que a tese ontoloacutegica de Parmecircnides de

Eleia influenciou diretamente Tomaacutes de Aquino que a absorveu no que diz

respeito agrave alma do ser humano e do νοεῖν o perceber que guiam a questatildeo-do-

ser e colaboram para caracterizar o Dasein em sua precedecircncia ocircntico-

ontoloacutegica No poema fragmentado ldquoSobre a naturezardquo ou ldquoDa naturezardquo de

Parmecircnides uacutenica obra considerada sobrevivente do filoacutesofo preacute-socraacutetico

encontra-se um eixo que se disseminou por toda a praacutetica filosoacutefica do ocidente

pois o mesmo eacute pensar e ser

[] τὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι

(Frag III)

Para Parmecircnides o ser estaacute no que aparece e eacute inuacutetil tentar conceber o

natildeo-ser de maneira que se faz necessaacuterio para a definiccedilatildeo do ser pensando

nos termos do que se daacute agrave apariccedilatildeo e portanto no tempo presente Os dois

termos-chave gregos aqui assinalados παρουσία e νοεῖν respectivamente

presenccedila e perceber levam a um outro intimamente ligado ao modo da

122

discussatildeo de Heidegger bem como a Levinas e outros filoacutesofos preocupados

com questotildees proacuteximas o substantivo φαινόμενον e seu verbo correlacionado

φαίνεσθαι respectivamente ldquoaquilo que aparecerdquo e ldquoaparecerrdquo

O trecho da obra remanescente de Parmecircnides explica poeticamente a

sua ontologia calcada nas relaccedilotildees que apontamos como envolvidas nessa teia

vocabular

Vamos vou dizer-te ndash e tu escuta e fixa o relato que ouviste ndash

quais os uacutenicos caminhos de investigaccedilatildeo que haacute para pensar

um que eacute que natildeo eacute para natildeo ser

eacute caminho de confianccedila (pois acompanha a verdade)

o outro que natildeo eacute que tem de natildeo ser

esse te indico ser caminho em tudo ignoto

pois natildeo poderaacutes conhecer o que natildeo eacute natildeo eacute consumaacutevel

nem mostraacute-lo []

Εἰ δ΄ ἄγ΄ ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας

αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι

ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

Πειθοῦς ἐστι κέλευθος - Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ -

[5] ἡ δ΄ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι

τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν

οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν - οὐ γὰρ ἀνυστόν -

οὔτε φράσαις[]

(Frag II)46

O brilho da aparecircncia natildeo significa aiacute apenas um clarificar das coisas no

momento do mostrar pois de alguma maneira acaba por esconder o ser ainda

assim somente a presenccedila pode definir sua existecircncia Como dissemos essa

necessidade funda uma relaccedilatildeo forccedilosa com o tempo presente que se

estabelece como referecircncia para qualquer ente Justifica-se aiacute que Heidegger

46 A traduccedilatildeo de Joseacute Gabriel Trindade Santos de 2002 eacute pautada no texto original (como tambeacutem citamos aqui) estabelecido pelo filoacutelogo claacutessico escocecircs John Burnet na ocasiatildeo de sua traduccedilatildeo para o inglecircs feita em 1892 Todas as citaccedilotildees de Parmecircnides inclusive a da paacutegina anterior pertencem a essa mesma traduccedilatildeo

123

tenha se dedicado tambeacutem ao tema do tempo era necessaacuterio discorrer sobre

ele para falar do ser especialmente tendo a intenccedilatildeo de desmontar essa

ontologia claacutessica por ldquoserrdquo e ldquotempordquo serem de fato inseparaacuteveis nessa

definiccedilatildeo ontoloacutegica tradicional

Tamanho paradigma resulta em um dito ldquoprivileacutegio do presenterdquo nas

investigaccedilotildees filosoacuteficas a esse respeito sobre o qual discorre Jacques Derrida

em Marges de la philosophie (1972 1991)

O privileacutegio do presente (Gegenwart) teria jaacute marcado o Poema de Parmecircnides O legein e o noein deviam apreender um presente sob a espeacutecie daquilo que permanece e persiste proacuteximo e disponiacutevel exposto diante do olhar ou ao alcance da matildeo um presente na forma da Vorhandenheit Essa presenccedila apresenta-se eacute apreendida no legein ou no noein segundo um processo estrutura temporal eacute de pura apresentaccedilatildeo de pura permanecircncia (reinen ldquoGegenwiirtigensrdquo) (DERRIDA 1991 p 66)

Derrida natildeo aponta e ateacute reitera um certo reducionismo linguiacutestico que

Heidegger comete ao considerar οὐσία exatamente o mesmo que presenccedila que

seria a παρουσία repetindo essa mesma relaccedilatildeo Heidegger afirma diversas

vezes ldquoa determinaccedilatildeo do sentido do ser como παρουσία ou como οὐσία o que

ontoloacutegico-temporalmente significa lsquopresenccedilarsquordquo (HEIDEGGER 2012 p 95) ldquoO

ente que nele [no ser] e para ele se mostra e eacute entendido como o propriamente

ente recebe portanto sua interpretaccedilatildeo em referecircncia ao pre-sente (Gegen-wart)

isto eacute concebido como presenccedila (οὐσία)rdquo (Ibid p 97) A palavra παρουσία

significa de fato presenccedila tanto temporal quanto espacial natildeo sendo mero

sinocircnimo de seu termo formante οὐσία particiacutepio presente do verbo ldquoserrdquo na

forma feminina (o que o aproxima da traduccedilatildeo consagrada para ldquosubstacircnciardquo

que Heidegger critica ou algo que se aproxime de aquilo que vem sendo) que

forma tambeacutem ἀπουσία aquilo que natildeo eacute que natildeo vem sendo (por analogia

ausecircncia)

A rigor esse termo em grego eacute composto por uma dupla maneira de dizer o ser a essecircncia diz o ser no sentido ldquodo que eacute a coisardquo e a existecircncia no sentido ldquode que a coisa eacuterdquo () Mesmo levando em conta

124

que eacute esse segundo sentido [o que excede a referecircncia existencial] que prevalece ele natildeo eacute o uacutenico motivo pelo qual Heidegger traduz ousiacutea por Seiendheit em um claro esforccedilo para imprimir uma adaptaccedilatildeo literal dessa ambiguidade do termo em grego () Ousiacutea fazia parte do vocabulaacuterio corrente entre os gregos e indicava e caracterizava bens imobiliaacuterios propriedades e riquezas () Nesse sentido o ser equivale a um bem que deve sempre ser presente e constante ousiacutea eacute em primeiro lugar o que permance (para) eacute parousiacutea uma presenccedila constante (BOUTOT apud NASSER 2006 pp 117-118)

Essa polissemia entatildeo natildeo pode ser reduzida a uma equivalecircncia pura

entre οὐσία e παρουσία Haacute ainda a possibilidade de que οὐσία seja ainda em

certos contextos filosoacuteficos essecircncia A relaccedilatildeo do tempo com a ontologia tanto

de Platatildeo quanto no que diz Parmecircnides em seu poema fragmentado eacute inegaacutevel

e permanece intacta de maneira que o ser seja um permanecer no presente

permanecer na presenccedila estar no presente

Jacques Derrida traz a aporia de Aristoacuteteles na Fiacutesica IV mostrando que

o paradigma trazido mdash o dito privileacutegio do presente mdash jaacute era conhecido natildeo soacute

por Heidegger mas em toda a histoacuteria das investigaccedilotildees ontoloacutegicas desde a

Antiguidade O presente como tempo padratildeo caracteriza o tempo na metafiacutesica

Todo outro tempo passado ou futuro eacute tomado a partir desse conceito central

No entanto ldquoo tempo eacute o nome da impossiacutevel possibilidaderdquo de maneira que um

agora eacute o mesmo e outronovo ao mesmo tempo

O sentido do tempo eacute pensado a partir do presente como natildeo-tempo E natildeo pode secirc-lo de outro modo nenhum sentido (qualquer que seja o sentido em que o entendamos como essecircncia como significaccedilatildeo do discurso como orientaccedilatildeo do movimento entre uma arquia e um telos) pocircde jamais ser pensado na histoacuteria da metafiacutesica de outro modo senatildeo a partir da presenccedila e como presenccedila (Ibid p 87)

No monoacutelogo de Anna Livia vecirc-se talvez pela uacutenica vez em todo o livro

uma supremacia do tempo presente se instaurando com o despertar mdash ainda

que o sonho precise de uma pessoa dormindo em um dado tempo ldquopresenterdquo o

sonhador se ausenta desse tempo em direccedilatildeo ao tempo do sonho que se

caotiza Com o anuacutencio do fim da noite no entanto vemos uma recuperaccedilatildeo

125

gradual de um tempo como o trecho a seguir em que uma contagem intercalada

entre as frases faz espeacutecie de escansatildeo

Passing One We are passing Two From sleep we are passing Three Into the wikewades warld from sleep we are passing Four Come hours be ours But still Ah diar ah diar And stay (FW 60833-36)47

Como os passos de um baleacute ou de uma danccedila que indica o tempo da

coreografia e finalmente o fim dos movimentos (com ldquostayrdquo) e em meio a suspiros

de Anna Livia (ah dear) encaminhamo-nos para longe do breu das sombras

que natildeo progridem no tempo mas pairam entre fases fluidas Anna Livia natildeo

instaura no entanto com a chegada do dia sincronia ou diacronia puras ldquoYet

no body is presente here which was not there before Only is order othered

Nought is nulled Fuitfiat (FW 61313-14)48 Apesar de estar sendo instaurada

uma espeacutecie de nova etapa externa ao oniacuterico Anna Livia nos afirma que soacute o

que muda eacute a ordem mas nada estaacute sendo efetivamente deixado para traacutes

relegado ao ostracismo de um tempo passado nada eacute nulo ldquoFuitfiatrdquo tem o fuit

que lembra ldquofugirrdquo do francecircs e fiat o latim de fez-se feito estaacute feito indica que

algo foge mas algo tambeacutem se faz aparece (fiat lux)

Haacute passagem sim como ela anuncia reiteradas vezes do sonho para o

despertar da noite para o dia para a claridade no entanto o passado natildeo se

cristaliza como antecedente que nada mais tem de relaccedilatildeo com o que vem uma

vez que as reminiscecircncias natildeo se afastam O que eacute ciacuteclico pode instaurar uma

espeacutecie de privileacutegio do presente na medida em que com o estatuto do ricorso

tudo retornar significa se fazer presente novamente Natildeo haacute rememoraccedilatildeo de

algo que ficou no passado e cuja presenccedila foi substituiacuteda por plena ausecircncia

Ao contraacuterio o que haacute eacute uma eterna (re)presentificaccedilatildeo do que se passou seja

47 ldquoPassagem Um Passamos Dois Do sono estamos passando Trecircs Ao vasto visto mundo do sono passamos Quatro Venham eras a nossas horas Silente Ah dea ah dia E staacuterdquo 48 ldquoPoreacutem aqui natildeo tem ningueacutem que jaacute caacute natildeo esteve antes Soacute que a ordem foi outrada Nada se anulou Fuitfiatrdquo

126

com o caraacuteter espectral do que sempre ronda do que resta em caraacuteter

fantasmaacutetico e fantasmagoacuterico seja do efeitvo retorno de acontecimentos

reiterados O tempo se reinventa de maneira que o conceito de lembranccedila e ideia

de memoacuteria se redefinam diante do fim que se aproxima ao mesmo tempo em

que anuncia uma revinda

What has gone How it ends Begin to forget it It will remember itself from every sides with all gestures in each our word Todayrsquos truth tomorrowrsquos trend Forget remember Have we cherished expectations Are we for liberty of perusiveness Whyafter what forewhere A plainplanned liffeyism assemblements Eblaniarsquos conglomerate horde By dim delty Deva Forget (FW 61419-22)49

No livro XI de suas Confissotildees (398 dC 1987) Agostinho de Hipona

reiterou a supremacia do presente ao afirmar a definiccedilatildeo da (anti)temporalidade

do eterno ldquoNa eternidade nada passa tudo eacute presente ao passo que o tempo

nunca eacute todo presenterdquo (AGOSTINHO 1987 216) Periacuteodos anteriores agrave criaccedilatildeo

divina recaem nessa problemaacutetica ldquoPoreacutem se antes da criaccedilatildeo do ceacuteu e da terra

natildeo havia tempo para que perguntar o que faziacuteeis entatildeo Natildeo podia haver

lsquoentatildeorsquo onde natildeo havia tempordquo (Ibid 1987 217) Agostinho define a

temporalidade a partir do presente pois define o passado e o futuro por contraste

e diferenciaccedilatildeo no entanto Agostinho tambeacutem traz a possibilidade do natildeo-

tempo e desloca o centro ainda do aparecimentopresenccedila para o

desaparecimentoausecircncia

49 ldquoO que se passou Como haacute de terminar Comeccedila a deslembraacute-lo Isso haacute de se remembrar de todos os lados com todos os gestos em cada uma de nossas palavras Verdade hoje verso amanhatilde Desmembra remembra Afagamos expectativa Somos pela liberdade de investigaccedilatildeo Por que apoacutes o que eacute prassempre Plenos planos de liffeyismo nas assembleias da horda conglomerada de Eblacircnia Junto agrave turva dialeacutetica Diva Olovidiarrdquo

127

Quanto ao presente se fosse sempre presente jaacute natildeo seria tempo mas eternidade Mas se o presente para ser tempo tem necessariamente de passar para o preteacuterito como podemos afirmar que ele existe se a causa da sua existecircncia eacute a mesma pela qual deixaraacute de existir Para que digamos que o tempo verdadeiramente existe porque tende a natildeo ser (Ibid p 218)

Sendo uma abordagem natildeo necessariamente do acircmbito da investigaccedilatildeo

ontoloacutegica Agostinho natildeo busca a definiccedilatildeo do tempo em si pois volta-se agrave

percepccedilatildeo Isso se evidencia quando ele faz efetivamente a pergunta

especiacutefica do tempo

O que eacute por conseguinte o tempo Se ningueacutem mo perguntar eu sei se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta jaacute natildeo sei Poreacutem atrevo-me a declarar sem receio de contestaccedilatildeo que se nada sobreviesse natildeo haveria tempo futuro e se agora nada houvesse natildeo existiria o tempo presente (Id)

Sua resposta deixa claro que saber o que eacute o tempo significa aiacute estar na condiccedilatildeo

de um ser que pode vivecirc-lo percebendo suas mudanccedilas Agostinho diz os

termos ldquotempo futurordquo e ldquotempo presenterdquo uma divisatildeo que evidencia o fato de a

sua pergunta pelo ser do tempo natildeo buscar de fato uma investigaccedilatildeo mais que

perceptiva da temporalidade lidando com sua vivecircncia em vez de buscar sua

definiccedilatildeo ou conceituaccedilatildeo Talvez fosse a resposta mais indicada para o tempo

do Finnegans wake sem questionamentos ao nos depararmos sabemos algo

sobre pois vivemos a temporalidade do texto jaacute se tivermos de explicaacute-la eacute que

os problemas se iniciam

A relaccedilatildeo entre uma consciecircncia de temporalidade e a dificuldade de bem

compreender o tempo tambeacutem se mostra textualmente O capiacutetulo 13 que

Campbell e Robinson denominam Shaun before the people (ldquoShaun diante do

povordquo) lembra Agostinho ou um diaacutelogo socraacutetico com a forma de perguntas e

respostas em que Shaun vai respondendo a quatorze perguntas uma a uma

Com uma abertura no capiacutetulo que se preocupa em situar as horas o que abala

o apego ao presente (aleacutem de esse apego existir no proacuteprio meacutetodo de

128

questionamentos e reacuteplicas imediatas) eacute a consciecircncia de uma sombra ou algo

de uma meia-noite que se aproxima ldquoCome not here Black Switch outrdquo (FW

40317)50 A consciecircncia que no caso eacute a consciecircncia de uma outra dimensatildeo

atraveacutes de medo e receio abala o terreno temporal de bases fixas no tempo

presente ainda que o ciclo e o ricorso tambeacutem afirmem essas bases

O tempo do texto caso coincida com o tempo da leitura mdash que o faz

reviver como a execuccedilatildeo da partitura faz com a composiccedilatildeo musical mdash eacute o

presente puro da experiecircncia O tempo narrativo mdash se deixarmos de lado

temporariamente a concepccedilatildeo de Finnegans wake como livro que descarta a

narrativa e desmantela seus elementos mdash poderia ser entendido em uma

primeira tentativa de imediato como tempo circular dada a sua estrutura e a

inspiraccedilatildeo nas Idades da teoria de Giambattista Vico Isso seria adequado para

pensarmos a relaccedilatildeo entre esse tempo presente da leitura e a dada circularidade

textual mdash o que se faz em ciclo sendo um eterno retorno teria necessariamente

de engendrar por conseguinte um eterno presente no esteio do que afirma

Agostinho pois eacute a continuidade que desconhece iniacutecio e fim divisatildeo que

seccione ou corte o que tem por definiccedilatildeo a fluidez Isso leva agrave aporia de que

fala Agostinho entre considerar que o ciclo engendra um presente supremo mas

por outro lado se soacute houvesse presente natildeo haveria tempo e sim eternidade

No entanto se o texto jaacute natildeo eacute em si ciacuteclico e como vimos com Derrida

tem seu centro deslocado e uma caracterizaccedilatildeo possivelmente eliacuteptica mdash ainda

que em verdade o ciclo seja viquiano seja joyciano seja nietzschiano natildeo eacute

simplesmente repeticcedilatildeo pura e simples mas sim retorno com diferenciaccedilatildeo isto

eacute natildeo soacute passiacutevel como obrigatoriamente submetido a mudanccedila e a renovaccedilatildeo

mdash essa relaccedilatildeo de presente se quebraria A isso se relaciona intrinsecamente

o fato de que o texto escritural reinvocando Derrida lida com o porvir diferente

do futuro Essa outra qualidade temporal modifica toda a dinacircmica textual na

medida em que o porvir eacute o tempo do acontecimento daquilo que vem sem

espera que surge do vazio da ausecircncia por outro lado o texto que lida com

futuro calculaacutevel iniacutecio-meio-fim e sequecircncia narrativa eacute o que lida com a

50 ldquoNatildeo te quero nero Sombra sumardquo

129

presenccedila e a previsibilidade Somente o porvir deixa rastros espectrais daquilo

que natildeo se previu mdash e eacute disso que todo a leitura do texto literaacuterio estaacute

inevitavelmente permeada

Emmanuel Levinas filoacutesofo que compreende a histoacuteria como

escatoloacutegica natildeo como progressista e que afirma sua eacutetica metafiacutesica a partir

da existecircncia do Outro tem compreensatildeo temporal que pode nos ajudar a

compreender a dificuldade de se enxergar uma sincronia no texto de Finnegans

wake Para Levinas a tradiccedilatildeo que supotildee a existecircncia do tempo de um eu estaacute

equivocada por desconsiderar o face a face desconsiderar o Outro Assim uma

sincronia isto eacute a assunccedilatildeo de um uacutenico presente natildeo passa como tempo da

subjetividade de um indiviacuteduo de mera presunccedilatildeo por entender o tempo

objetivamente (por mais inicialmente contraditoacuterio que isso possa soar) Isso

poderia ser resolvido pela adiccedilatildeo do tempo diacrocircnico que passa a existir na

relaccedilatildeo com o outro e instaura um tempo que eu subjetividade individual natildeo

vivi Haveria uma disjunccedilatildeo anacrocircnica entre sincronia e diacronia como

princiacutepio da descontinuidade que provaria a impossibilidade de um tempo

objetivo ou de uma compreensatildeo objetiva do tempo reduzindo isso a mera

pretensatildeo A sincronia eacute uma temporalidade insular enquanto a diacronia

expandiria esse isolamento A futuridade do futuro natildeo vem como porvir no meu

horizonte e natildeo posso reduzir o tempo do Outro ao meu o tempo do Outro eacute o

Outro do meu tempo

Eacute a terceira categoria sobre a qual discorre Levinas na supracitada obra

Autrement qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence contudo que mais nos interessa e

que complementa fundamentalmente as noccedilotildees expostas anteriormente Eacute

somente no reconhecimento de que haacute na verdade muitos presentes e de que

nem mesmo o proacuteprio eu sendo um eu ordinaacuterio deteacutem o seu presente mdash

menos ainda seu passado reduzido a lembranccedilas embaccediladas e seu futuro

incerto mdash que se poderia compreender verdadeiramente o tempo Isso porque

somente um eu ideal ou melhor o ser real que dita o que o presente eacute poderia

ser premissa de sua existecircncia e efetivamente deter ou reter o presente O

reconhecimento dessa impossibilidade aliado ao reconhecimento essencial de

que existe o face a face de que existe o Outro cujo tempo me eacute tatildeo inapreensiacutevel

130

quanto ele mesmo o eacute haveria o reconhecimento de que sincronia e diacronia

portanto satildeo maneiras ainda defeituosas de se compreender o tempo para o

humano A terceira categoria fundamental que adveacutem dessas reflexotildees eacute o

tempo do anacronismo Reconhecendo-se a existecircncia de muitos presentes o

anacronismo reconhece ainda que o surgimento de um Outro abre natildeo soacute o meu

tempo para o delea mas tambeacutem haacute tempos de muitos outros de muitos tempos

mortos ou ainda por virem a nascer O tempo consiste em uma relaccedilatildeo com o

que natildeo pode ser assimilado com aponta Levinas natildeo se trata de ter boa

memoacuteria ou natildeo mesmo que suas limitaccedilotildees tenham importacircncia nisso tudo

mas o central eacute a impossibilidade de que toda a dispersatildeo do tempo pudesse se

juntar em um soacute presente Por isso sincronia e diacronia satildeo insuficientes para

essa compreensatildeo enquanto o anacronismo respeita a existecircncia das nuances

variadas dos aspectos temporais da existecircncia

Essa compreensatildeo levinasiana eacute ao que nos parece brilhantemente

adequada para a compreensatildeo do tempo no texto do Wake justamente sendo

uma obra que reuacutene simultaneamente mortos e vivos remorrentes e

ressuscitantes mdash e aqui se faz mister evocarmos o revenant de que fala

tambeacutem Derrida evocando novamente o caraacuteter espectral de presenccedila-

ausecircncia simultacircnea e vinda inesperada isto eacute cuja chegada se faz somente no

porvir como o fantasma de um autor que retorna e se faz presente de alguma

outra forma por meio de sua obra O tempo como concebido por Giambattista

Vico como paradigma natildeo anula a pluralidade do anacronismo sobre o qual

Emmanuel Levinas discorre ao contraacuterio compreende-se que as Idades

viquianas abarquem presentes diversos e natildeo partam de uma consciecircncia

temporal uacutenica Poderiacuteamos falar em caotizaccedilatildeo mas em verdade caotiza-se

na medida em que se foge do linear cronoloacutegico sincrocircnico uno sem que a

caracterizaccedilatildeo necessariamente se reduza de maneira especiacutefica a pura e

simplesmente caos

Na caracterizaccedilatildeo de onde reside Shem o irmatildeo que pode ser o alterego

do artista (e ateacute do proacuteprio Joyce) onde convive com passado morte alteridades

diversas assim como na prisatildeo morte e ressurreiccedilatildeo de Humphrey Chimpden

Earwicker pai de Shaun Shem e Isobel e marido de Anna Livia vemos essa

131

fusatildeo de vida e morte que natildeo controla o tempo em fases imisciacuteveis Shem estaacute

em meio a ldquofresh horrors from Hadesrdquo (FW 18335)51 e por ldquoTumult son of

thunder self exiled in upon his ego a nightlong a shaking betwixtween White or

reddr hawrors noondayterrorised to skin and bone by na ineluctable phantomrdquo

(FW 1846-9)52 trecho em que inevitavelmente nos lembramos da inelutaacutevel

modalidade do visiacutevel de Ulysses que aqui se transformou em fantasma como

visiacutevel

Interessante notar como o capiacutetulo imediatamente posterior ao de Shem

que seraacute o Anna Livia Plurabelle em que lavadeiras confabulam sobre fatos e

fofocas termina com a noite caindo em cada vez mais escuridatildeo e menos

informaccedilatildeo factual menos visatildeo clara como se a cena fosse se apagando e

perdendo a forccedila a cada vez que se repete a palavra ldquonightrdquo Em meio a

paranoias e sensaccedilatildeo de adormecimento ldquonightrdquo daacute o tom de queda gradual mdash

natildeo como a queda monumental de Earwicker no primeiro fragmento que

tambeacutem se repete pelo livro mas uma quebra branda Em vez de pontuar um

momento o efeito principal eacute com ldquonightrdquo prosseguir evocando a escuridatildeo e

ao mesmo tempo mantendo-se progressivamente suspensos os ecos dessas

conversas

Dark hawks hear us Night Night My ho head halls I feel as heavy as yonder stone Tell me of John or Shaun Who were Shem and Shaun the living sons and daughters of Night now Tell me tell me tell me elm Night night Telmetale of stem or stone Beside the rivering waters of hitherandthithering waters of Night (FW 21536-2165)53

Sendo todo um livro da noite como se coloca usualmente e como o

proacuteprio Joyce jaacute pontuou em oposiccedilatildeo a Ulysses as misturas de escuridatildeo noite

quebra de fala e silecircncio seriam naturalmente recorrentes Ainda assim elas

acontecem de maneira especialmente controlada em momentos cruciais e

51 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2003) ldquonovos horrores do Hadesrdquo 52 ldquoTumulto filho do trovatildeo auto-exilado no seu ego tremores da noite inteira entre horrores brancos e rubros aterrorizado ao meio-dia da pele aos ossos por um fantasma inelutaacutevelrdquo (idem) 53 ldquoNoturnos falcotildees nos escutam Noite Noite Tomba a testa Pende pesada qual pedra aquela Que me falas de John ou de Shaun Shem e Shaun viventes filhos ou filhas foram de quem A noite noita Fala-me fala-me fala-me carvelha Noite noite Conta-me contos de Stem ou Stone Junto agraves rio-revantes aacuteguas de correntes-e-recorrentes aacuteguas De Noiterdquo (idem)

132

especiacuteficos no Wake como que desestabilizando a noccedilatildeo temporal de noite mdash

ou de uma noite ou de noite como algo definido temporal e ateacute espacialmente

mdash em vez de partirem para o que seria uma caracterizaccedilatildeo temporal A noite

funciona como algo que subverte a ineacutercia do tempo presente sendo uma noite

sem duraccedilatildeo reverberando ainda em uma seacuterie de evocaccedilotildees de ldquonightrdquo como

se ela natildeo estivesse presente mas invadisse aos poucos agrave medida que o apelo

acontece A palavra ldquoNightrdquo caracteriza o indefinido em vez de definir (seja uma

ou seja qualquer) noite especiacutefica

Aquilo que natildeo eacute definido pontualmente natildeo pode consequentemente

fazer parte de uma evoluccedilatildeo temporal da ordem do linear com cenas

consecutivas que se somam sem se sobreporem progredindo do passado para

o futuro Isso natildeo deve necessariamente acontecer somente na hipoacutetese da

eternidade pura como disse Agostinho a respeito do tempo presente que natildeo

tem passado e futuro como constrastes o que retorna sempre em ciacuterculos pode

tambeacutem ter como corolaacuterios antesagoradepois ao mesmo tempo em que natildeo

teria iniacutecio fundadororiginaacuterio nem fim escatoloacutegico Retornando a Autrement

qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence para caracterizar a oposiccedilatildeo do anacronismo

que reuacutene essas vozes e ausecircncias-presentes em relaccedilatildeo agrave ideia de linearidade

que uma sincronia necessariamente conteacutem Emmanuel Levinas cita a tradiccedilatildeo

fenomenoloacutegica como caracterizadora da unidade de sincronia que natildeo

considera a alteridade e a eacutetica citando Edmund Husserl Com esse gancho

esclarecedor entatildeo Levinas explica

Chez Husserl la conscience interne du temps et la conscience tout court se deacutecrivent dans la temporaliteacute de la sensation ldquosentir crsquoest lagrave ce que nous tenons pour la conscience originaire du tempsrdquo et ldquola conscience nrsquoest rien sans lrsquoimpressionrdquo Temps impression sensible et conscience se conjuguent () Parler conscience crsquoest parler temps (LEVINAS 1978 pp 56-57)54

54 ldquoEm Husserl a consciecircncia interna do tempo e a consciecircncia em si se descrevem na temporalidade da sensaccedilatildeo ldquoeacute no sentir que podemos ter a consciecircncia originaacuteria do tempordquo e ldquoa consciecircncia natildeo eacute nada sem a impressatildeordquo Tempo impressatildeo sensiacutevel e consciecircncia se conjugam () Falar de consciecircncia eacute falar de tempordquo

133

Emmanuel Levinas considera entatildeo uma temporalidade especiacutefica para

a fenomenologia que considera a consciecircncia de um indiviacuteduo como premissa

para qualquer investigaccedilatildeo eacute essa temporalidade o que resulta em uma

sincronia natildeo atravessada pela alteridade Ao contraacuterio dessa concepccedilatildeo

Levinas descreve o ldquoAnachronisme qui ateste une temporaliteacute diffeacuterente de celle

qui scande la consciencerdquo (Ibid p 141)55 A isso podemos contrapor uma outra

ponte com o Ser e tempo de Martin Heidegger quanto ao aspecto do ente como

ldquodentro do tempordquo Heidegger interfere com o apontamento da historicidade

como um modo-de-ser temporal do Dasein Nessa abordagem o tempo ou o

tempo presente tambeacutem deixa de ser isolado pela experiecircncia sincrocircnica

individual

A determinaccedilatildeo da historicidade eacute anterior ao que se chama de histoacuteria (o acontecer de-histoacuteria-universal) Historicidade significa a constituiccedilatildeo-de-ser do ldquogestar-serdquo do Dasein como tal sobre cujo fundamento eacute unicamente possiacutevel algo assim como a ldquohistoacuteria universalrdquo e o histoacuterico a ela pertencente O Dasein em seu ser factual eacute cada vez como jaacute era e ldquoo querdquo jaacute era Expressamente ou natildeo ele eacute seu passado E natildeo soacute no sentido de que seu passado como que desliza ldquoatraacutesrdquo dele possuindo ele o passado como se fosse uma propriedade subsistente que por vezes volta a ter efeito sobre ele (HEIDEGGER 2012 p 81)

Assim o privileacutegio do presente que citamos anteriormente como foi

apontado por Derrida em referecircncia ainda a Aristoacuteteles perde seu aspecto de

vivecircncia possiacutevel como sendo algo puramente nodo instante algo

complementando pelo que acrescenta Heidegger no excerto acima de Ser e

tempo o passado integra o presente (como o revenant) e natildeo se encerra atraacutes

dele ou antes dele intacto e passiacutevel de retorno somente por

rememoraccedilatildeorecordaccedilatildeo (entendida como espeacutecie de movimento de lembranccedila

feito intencionalmente) Uma suposta divisatildeo temporal entre as fases entatildeo que

separe o passado do presente natildeo eacute possiacutevel considerando o passado como

essa historicidade que reveacutem O presente no entanto ainda eacute o tempo central

55 ldquoAnacronismo que atesta uma temporalidade diferente daquela que mede a consciecircnciardquo

134

da leitura Em Escritura do retorno Mallarmeacute Joyce e o meta-signo Piero Eyben

relaciona o que propotildee ser o resultado da empreitada de Joyce mdash ldquodestruiccedilatildeo

do signordquo mdash com uma ldquoagoridade da letrardquo ldquo() a experiecircncia joyceana da

destruiccedilatildeo do signo deve ser compreendida como um limite da experiecircncia do

agora () a significacircncia eacute sua uacutenica respostardquo (EYBEN 2012 pp 650-651) A

marca do presente natildeo eacute pura nem pode ser destilada em uma fase temporal

solitaacuteria

Nessa des-fundaccedilatildeo de toda origem podemos ver a proacutepria cena da presenccedila enquanto elemento presente que se relaciona com outra coisa que natildeo ele mesmo guardando em si a marca do elemento passado e deixando-se jaacute moldar pela marca de sua relaccedilatildeo com o elemento futuro () Todo rastro eacute sem presente e sem arquia uma vez que se constroacutei como a siacutentese de ldquomarcasrdquo que se estabelecem em um espaccedilamento (devir-tempo do espaccedilo) (Ibid p 651)

No capiacutetulo 9 do livro II livro das crianccedilas temos uma espeacutecie de

encenaccedilatildeo teatral Satildeo situados personagens e ainda o tempo ldquoTime the

pressantrdquo (FW 22117)56 O presente mais parece um verbo no geruacutendio ou uma

forma nominal de um verbo indicando uma accedilatildeo que remete ao presente

movimentado em movimento natildeo inerte e recortado Mesmo na ficccedilatildeo dentro

da ficccedilatildeo eacute o tempo dinacircmico que se faz Nas palavras do tradutor do Wake

Donaldo Schuumller ldquoO fixo dissolve-se no que flui Cultura do presente Qual se

tudo se embala em vir-a-serrdquo (2003 p 96) Aqui o presente natildeo se faz em

eternidade pura e ciacuteclica mas no porvir que se instala a expectativa do que pode

vir eacute diferente da futuridade do futuro certo previsto mdash e portanto calcado no

tempo presente que o planeja O porvir ao contraacuterio faz do presente uma pura

expectacircncia naquilo que se tece como limiar de ausente e presente por ser a

expectativa do que natildeo se pode de fato esperar Se o futuro no escapa pelos

dedos e o passado resta o presente soacute pode ser uma contaminaccedilatildeo geral dessa

fludez de ricorso torrencial

56 ldquoTempo o pressanterdquo (traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller 2003)

135

Finnegans wake muito mais questiona do que afirma seu proacuteprio tempo

em vias expliacutecitas Mesmo no fim do livro quando se encaminharia para um

fechamento e portanto para o teacutermino a sutura a closure Anna Livia nos

encaminha para o desembocar do rio mdash no mar no retorno ao seu curso no

ricorso na fluidez que eacute seu destino em repeticcedilatildeo mas repeticcedilatildeo em sempre

inovaccedilatildeo mdash que natildeo se situa com precisatildeo temporal O livro IV se abre com

ldquoSandhyas Sandyas Sandhyasrdquo (FW 5931) Segundo Donaldo Schuumller haacute aiacute

referecircncia a Sanctus Sanctus Sanctus (que aparece tambeacutem em ldquoXanthos

Xanthos Xanthosrdquo mdash FW 2359) e a sandhi palavra do sacircnscrito que significa

paz ou crepuacutesculo Muito mais pode ser dito sobre essa abertura aleacutem da

saudaccedilatildeo latina religiosa o que vem do sacircnscrito pesa sua presenccedila em um

significado riquiacutessimo

O termo do sacircnscrito sandhyā como pode ser transliterado de सनधया

pode significar uniatildeo ao mesmo tempo em que eacute diferenciaccedilatildeo divisatildeo eacute o

crepuacutesculo ou o nascer do sol ao mesmo tempo em que eacute a escuridatildeo da

madrugada ou da manhatilde eacute transiccedilatildeo uniatildeo e impossibilidade de uniatildeo de dois

opostos claro e escuro dia e noite comeccedilo e fim Eacute justamente a articulaccedilatildeo

entre aquele instante do meio que natildeo se pode chamar somente de iniacutecio nem

somente de fim eacute ambos ao mesmo tempo Eacute o momento de reiniacutecio e portanto

de redenccedilatildeo e renovaccedilatildeo assim como de fim de enterrar de sumir de natildeo ver

Tem-se um dia todo pela frente concomitantemente poreacutem natildeo se tem mais

um dia que acaba de findar A palavra eacute absolutamente adequada indica tanto

iniacutecio quanto fim e ainda significa intervalo entremeio fase que antecede uma

e sucede outra As relaccedilotildees possiacuteveis satildeo muitas Lidar com a morte por

exemplo eacute lidar com algo que se inicia povoado por uma ausecircncia Luto se faz

em elipse Natildeo se supera um passado mas se convive com ele ateacute que ele

povoe o presente de maneira cada vez mais transluacutecida e menos materialmente

formada e visiacutevel como o presente pode nos parecer na imediaticidade

fenomecircnica do instante

136

Direcionando-se ao fim no mesmo livro dotado de um soacute capiacutetulo Anna

Livia diz ldquoLike almost now Howrdquo (FW 62629-30)57 Em inglecircs pode-se

compreender ldquolike almost nowrdquo como o mesmo que ldquocomo quase agorardquo de

maneira que eseja sendo indicado ou referenciado um ldquoagorardquo natildeo pontual ou

natildeo pontuado talvez fluido por ser indefiniacutevel o agora o eacute quase agrave medida que

o presente escapa Logo ela anuncia mais contundentemente a substituiccedilatildeo de

geraccedilotildees com a passagem do tempo

And can it be itrsquos nnow fforvell Illas I wisht I had better glances to peer to you through this baylightrsquos growing But yoursquore changing alcoosha yoursquore changing from me I can feel Or is it me is Irsquom getting mixed Brightening up and tightening down Yes yoursquore changing sonhusband and yoursquore turning I can feel you for a daughterwife from the hills again (FW 62633-36 6271-3)58

Anna Livia daacute lugar agrave filha Isobel na ordem natural familoar e aos filhos

Shem e Shaun assim como seu marido seraacute substituiacutedo O espaccedilo das

memoacuterias (ldquoAnd let her rain now if she likes Gently or strongly as she likes

Anyway let her rain now if she likes I done my best when I was letrdquo --- FW 62711-

1359) Isobel Isabel Issy que eacute tambeacutem Nuvoletta a nuvem que chove e

preenche o rio mas eacute formada a partir dele Anna Livia abre espaccedilo ao

protagonismo da filha que a sucede no fluir e o ricorso eacute fechado no ciclo natural

que metaforiza o das relaccedilotildees familiares

O fluir-ricorso eacute mais que o fechamento do ciclo que realiza o movimento

circular e repete o mesmo percurso em cadeia eacute primordialmente a

impossibilidade de diferir o fechamento da (re)abertura em momento-iacutenterim

entre a morte e a vida que unem em Finnegans wake o anacronismo daquilo que

natildeo se unitariza em tempo vivido por uma consciecircncia agrave diferenciaccedilatildeo que se

faz com o ciclo que se modifica com as geraccedilotildees com as reverberaccedilotildees do que

57 ldquoQuase como agora Comordquo na traduccedilatildeo de Schuumller (2003) 58 ldquoSeraacute que eacute agora nnossrsquouacuteltimo adeus Illaacutes Oxalaacute eu tivesse melhores vistas para te contemplar agrave luz alvorecente da Bahia Mas tu jaacute natildeo bates meupulso tu te abates de mim bem o sinto Ou isto eacute eu eacute Estou confusa Illo minando-me estou me dilu indo Sim estaacutes mudando filhemarido posso sentir-te para uma filhesposa dos montes outravezrdquo (idem) 59 ldquoChovela agora se eacute isso que adora Chovisco ou trombada como lhe agrada Chova no entanto visto que vinda eacute minhrsquohora Dei meu recado enquanto me foi dadordquo (idem)

137

se vatildeo ainda ecoando no futuro com as singularidades O desmantelamento

desse presente puro o transforma em algo contaminado de porvir ainda

permeado do rastro do passado e acima de tudo indefiniacutevel como tempo palpaacutevel

a natildeo ser se emoldurado em conjunturas ficcionalizantes

A continuidade eacute assegurada por meio da evocaccedilatildeo de Anna Livia dos

que a seguiratildeo apelo e chamamento que fazem a anunciaccedilatildeo da chuva de

NuvolettaIsobel A matildee de certa maneira dando a sua permissatildeo mas sendo

antes forccedilada pelas circunstacircncias do tempo que natildeo para daacute lugar sem

desaparecer por completo A temporalidade essencial de todo o Wake eacute a da

substituiccedilatildeo que natildeo substitui pois manteacutem o que perpetua mas tambeacutem

aniquila da mesma maneira como o crepuacutesculo pode ser confundido com o

nascer do Sol

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

139

Foi reafirmado o quanto defendemos o afastamento da compreensatildeo una

de literatura seja com Finnegans wake seja com qualquer outra obra escritural

Isso pode ser natildeo uma saiacuteda sagaz que se esquivaria de questionamentos

importantes sobre a estrutura e os desdobramentos semacircnticos do texto

intrincado de Joyce mas sim uma abertura ao perigoso desfrutar dos problemas

Em vez de uma estrateacutegia uma compreensatildeo de que eacute da incompreensatildeo que

podem surgir boas leituras inclusive acadecircmicas Para partir da incompreensatildeo

aiacute sim nada mais adequado desafiador e divertido do que o Finnegans wake

Em vez de resolver os problemas responder os questionamentos e fechar o livro

com a certeza veemente de que se compreendeu e jaacute se pode dizer ldquotermineirdquo

abre-se o livro novamente E novamente E incessantemente

140

Isso natildeo eacute necessariamente preocupante restaria talvez saber se o

problema eacute conosco com o texto ou se consiste na impossiacutevel acomodaccedilatildeo a

uma teoria literaacuteria que demanda explicaccedilotildees que natildeo podemos dar Ou ateacute

possamos talvez mas necessariamente optando por um caminho que reduz a

uma interpretaccedilatildeo mdash um trabalho hermenecircutico que busca o dogma ao inveacutes de

lidar por que natildeo com mais de uma possibilidade simultacircnea Foi instaurada a

heranccedila de lidar com a literatura como lidamos com as escrituras sagradas que

podem oferecer uma poeacutetica que abre para a fruiccedilatildeo mas acima de tudo pautam

ensinamentos que devem ser objetivos pelo bem do funcionamento de um

sistema externo ao texto Literatura poreacutem natildeo eacute o que diremos dela Como os

guias para o Finnegans wake dizem em geral desculpando-se

antecipadamente isto mdash esta dissertaccedilatildeo esta pesquisa mdash natildeo pretende

abarcar uma leitura totalizadora Talvez jaacute fosse a hora de isso natildeo precisar ser

dito apenas para o Wake mas sobre qualquer livro de literatura Eacute claro que haacute

uma dificuldade em abrirmos matildeo do status de ldquoautoridade emrdquo mas a literatura

precisa dessa distacircncia O cuidado cientiacutefico dela eacute esse

Considerando contudo as demandas de ensino baacutesico de literatura nas

escolas por exemplo ou mesmo as demandas acadecircmicas que exigem

porventura uma produtividade que se possa comprovar como acomodar o

Finnegans wake ao que a teoria ou a leitura hermenecircutica teorizada demandam

Aliaacutes como mdash e por que mdash acomodar qualquer obra literaacuteria a uma

sistematizaccedilatildeo que esquematiza seus elementos de maneira engessada O

ponto sequer eacute uma recusa natildeo mais tatildeo inovadora ou a reforma do sistema de

qualquer teoria de qualquer aporte mas o entendimento claro de como isso

afeta uma leitura e da hierarquia entre essas instacircncias se determina o que um

livro pode ter para funcionar e o que seu gecircnero permite que se pressuponha a

seu respeito Nesse sentido o questionamento do tempo tatildeo filosoacutefico e

abstrato tornar-se-ia praacutetico quando pensaacutessemos no impacto das concepccedilotildees

de histoacuteria da literatura cacircnone sistema O tempo feito em uma diacronia das

obras-primas o tempo sobre o qual repousam as obras que importam e o tempo

do ostracismo das relegadas agrave margem Esse tempo nos importa somente para

ser questionado

141

O manual tradicional e didaacutetico Teoria literaacuteria de Hecircnio Tavares traz o

excerto ldquoO objeto da ciecircncia da literaturardquo de Fundamentos da interpretaccedilatildeo e

da anaacutelise literaacuteria (1948) de Wolfgang Kayser que por sua vez cita a

separaccedilatildeo severa entre poesia e literatura feita pelo italiano Benedetto Croce

A poesia estaria fora da literatura Natildeo seria no entanto facilmente classificada

pelos criteacuterios formais de versos e estrofes mas sim um termo valorativo

qualitativo Dessa maneira ateacute mesmo Os Lusiacuteadas ficariam de fora de Poesia

(Dichtung) nessa classificaccedilatildeo e ldquodela separado por um abismordquo (KAYSER in

TAVARES 2002 p 42) Citamos essa curiosa e incisiva classificaccedilatildeo em

tentativa de delimitar o que eacute digno de ser apreciado como Poesia e o que natildeo

eacute para apontar a ironia se essa classificaccedilatildeo aparentemente excessivamente

limitante natildeo pressupotildee que Poesia seja tatildeo somente forma oposta agrave prosa

talvez Finnegans wake entrasse para o rol da Poesia e de fora da literatura

tivesse sua qualidade canonicamente reconhecida

No texto ldquoChe cosrsquoegrave la poesiardquo Jacques Derrida toma outros rumos na

problematizaccedilatildeo do que eacute literatura e do que eacute poesia A figura do ouriccedilo surge

para apontar uma experiecircncia que jamais eacute inofensiva de maneira que uma

relaccedilatildeo com o texto literaacuterio eacute uma relaccedilatildeo da qual nunca se pode sair incoacutelume

Natildeo se lecirc sem apelo e aqui evocamos novamente a carta mamafesta de Anna

Livia como momento condensador desse apelo ou sua posterior anaacutelise no

capiacutetulo 6 em que o meacutetodo de perguntas e respostas lanccedila o questionamento

e a demanda inevitavelmente tambeacutem ao leitor ou mesmo o de Shaun iniciando

o capiacutetulo 13 dizendo ldquoHark () Horkrdquo (FW 40313)60 Em Escritura do retorno

assinala-se que

Derrida inicia sua problemaacutetica () com a renuacutencia com certo desligamento do saber Saber em termos de poemaacutetica eacute saber renunciar o que se sabe Nesse sentido a poesia exige outra forma de conhecer que talvez seria aquela do ditado que se pode ldquover como ditadordquo A poesia natildeo eacute uma aparecircncia mdash ou ainda natildeo eacute uma ldquoparecenccedilardquo sua accedilatildeo eacute daquilo que se vecirc fora do parecido mas dentro de uma representabilidade que eacute sua proacutepria reflexatildeo (EYBEN 2012 p 259)

60 ldquoEscuta () Escuchardquo (2003)

142

Como dissemos uma necessidade de autenticaccedilatildeo do texto por um

sistema literaacuterio que forja sua histoacuteria e seu cacircnone natildeo nos preocupa (o apego

ao sistema que sobrevive e mutila experiecircncias literaacuterias talvez sim) Tambeacutem

citado por Hecircnio Tavares diz Afracircnio Peixoto ldquoO gecircnero das obras-primas em

geral eacute pessoal e privativo delasrdquo (PEIXOTO in TAVARES 2002 p 158)

exemplificando sua afirmaccedilatildeo citando Rabelais Quixote Montesquieu Mesmo

que fosse relativamente possiacutevel de se definirem as classificaccedilotildees ainda assim

permanecem dispensaacuteveis no lanccedilar-se ao texto e lanccedilando-nos deparamo-nos

com o segredo indiziacutevel proacuteprio do escritural

Se indiziacutevel evidentemente tambeacutem inclassificaacutevel sem que isso seja um

defeito e distante de ser uma abertura a qualquer coisa a uma leitura tatildeo frouxa

que fosse vazia ou esvaziada por uma relativizaccedilatildeo desmedida Finnegans wake

eacute aberto e amplo mas cheio e povoado de caminhos sem que tenha reacutedeas

apertadas demais para direcionar uma soacute leitura ou uma rota preferencial como

todo texto escritural tem entradas diversas e a literatura natildeo se faz em

hierarquias atraveacutes das quais nos prestamos a buscar a verdade do texto que

estaraacute no fim do caminho percorrido Se houvesse uma linha reta a ser seguida

ou mesmo um labirinto desse tipo natildeo haveria segredo no texto mdash ou haveria

um segredo que se perderia sendo revelado e nesse caso deixaria de existir o

que desmoronaria o entendimento de segredo do texto literaacuterio como aquilo que

se manteacutem secreto mesmo apoacutes repetidas leituras e mergulhos no texto por

mais profundos que possam ser Em Gecircneses genealogias gecircneros e o gecircnio

em que fala de Heacutelegravene Cixous Jacques Derrida assevera sobre o segredo da

literatura

Laacute se encontra como segredo da literatura o poder infinito de manter indecidiacutevel e portanto irrevelaacutevel o segredo do que ela diz ela a literatura ou ela Cixous () O segredo da literatura eacute pois o proacuteprio segredo Eacute o lugar secreto onde ela se institui como a possibilidade mesma do segredo o lugar de sua gecircnese ou de sua genealogia proacutepria Isto eacute verdade em todos os gecircneros literaacuterios (DERRIDA 2005 p 22)

143

Tambeacutem pertinente eacute o que nesse mesmo lugar Derrida diz a respeito

ainda de Cixous e de uma escrita que desperta do oniacuterico ldquopalavra escrita ao

despertar endereccedilada e destinada ao despertar Como se o despertar ao sair

do sonho em seu wake estivesse ainda na vigiacutelia do sonhordquo (Ibid p 45) e ldquoo

proacuteprio sonho eacute o que interrompe o sono O sonho desperta O sonho vela e ele

vela a endereccedilar injunccedilotildees inflexiacuteveis agrave vigiacuteliardquo (Ibid p 43) Ainda que essas

palavras de Derrida natildeo sejam expliacutecita e diretamente sobre o Wake nelas o

sonho natildeo eacute anestesia e no Wake tambeacutem natildeo ocorre ateacute o oposto o sonho se

mescla ao despertar e agrave ressureiccedilatildeo O sonho para Derrida e para Joyce em

nada inerte e tambeacutem nada linear como a vida real eacute o terreno das maiores e

multiplicadas possibilidades bem como da atividade de certa maneira caoacutetica e

do tempo do anacronismo do entrecruzamento de alteridades e dos ecos

polifocircnicos

Encaminhamos este fim mdash que certamente nos faz retornar retornar ao

texto ao Wake a Joyce agrave literatura mdash lembrando que a temporalidade da leitura

eacute a materialidade do tempo da literatura eacute o tempo efetivamente vivido na

ressureiccedilatildeo do texto mas eacute tambeacutem temporalidade significativamente esquiva

a tentativas de definiccedilatildeo O presente da (de uma e de qualquer) leitura eacute

constantemente desestabilizado (e em Wake isso se faz sem misericoacuterdia) e

nunca se tem uma base fixa na qual se agarrar a natildeo ser o proacuteprio abismo

escritural

Em termos joyceanos natildeo temos um rio de significado mas sim o rio como rasura da chuva que eacute em si uma forma de conduccedilatildeo dos significantes como respostas mdash reacuteplicas mdash ainda textuais O sujeito que lecirc tambeacutem eacute perdido rasurado pois sua referecircncia deve ater-se apenas agrave escritura uacutenica satisfaccedilatildeo exigida O sujeito cavado na aparecircncia eacute soterrado pelo barranco chuvoso dos sintagmas deslocados (EYBEN 2012 pp 258-259)

Em termos de temporalidade textual buscamos entender relaccedilotildees

diversas aleacutem da temporalidade da leitura ou da literatura lidavivida entraram

aqui o tempo do ausente do morto que se faz espectro (aleacutem do que acontece

com HCE o proacuteprio morto ressuscitado como Tim Finnegan o eacute na balada

irlandesa a que Joyce se remete) presenccedila e ausecircncia como dispositivos de

144

uma temporalidade do anacronismo presenccedilas que se fazem tambeacutem no

chamamento no apelo e na demanda A estrutura paradigmaacutetica viquiana

oferece subsiacutedios jaacute trabalhados mas o Wake com seu caraacuteter oniacuterico acoberta

uma seacuterie de cruzamentos e noacutes que se vistos mais de perto enriquecem a

leitura Pode ser que anaacutelises de textos de escritura de literatura em vez do

senso comum de que sejam elucidativas e iluminadoras sejam natildeo somente

dispensaacuteveis mas tambeacutem excessivas produzindo mesmo interferecircncias

tornando a jaacute difiacutecil leitura por si soacute ainda mais barroca e excessivamente pesada

de detalhes a serem enxergados Caminhos mais interessantes por

conseguinte seriam os da teorizaccedilatildeo que interesse por si soacute que possam

acompanhar a leitura do Wake sem causar ruiacutedos nela tampouco pretendendo

clarificaacute-la em objetivaccedilatildeo pretensiosa

Finnegans wake se estabelece no entremeio da verdadeira oposiccedilatildeo entre

circularidade e linearidade em que o ciacuterculo pode ser pensado se percorrido nos

moldes da demeure nomade derridiana e natildeo em ciclos de revisitaccedilatildeo Se

tomarmos o Wake a partir do tempo mensurado que se insere no caraacuteter circular

do sentido homogecircneo e infinito teremos de pensaacute-lo sublinhe-se em seu

caraacuteter precisamente literaacuterio de forma distinta de pensarmos essa mesma obra

a partir do tempo de simultaneidade que considere a estrutura circular sem

redundacircncia sem repeticcedilatildeo e sem divisotildees de linearidade

145

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Page 5: O FLUIR-RICORSO E OS TEMPOS DE FINNEGANS WAKE...O fluir-ricorso e os tempos de Finnegans wake. Dissertação de Mestrado. Orientador Piero Luis Zanetti Eyben. Brasília: Universidade

AGRADECIMENTOS

Satildeo 23 anos de agradecimentos diversos Vamos laacute paciecircncia aos meus pais que haacute tanto tempo reforccedilam os valores que sempre me passaram minha matildee linda fonte de amor na sua forma mais pura mulher que mais admiro no mundo e que sintetiza comprometimento devoccedilatildeo e moral meu pai minha referecircncia maacutexima cuja paixatildeo e eacutetica tanto admiro e que sempre me influenciaram aleacutem de ser certamente a mais incriacutevel combinaccedilatildeo de compositor escritor e professor que possa existir aos meus queridos avoacutes que descansam em paz em algum lugar e agrave minha avoacute wanda por quem meu amor eacute absolutamente infinito aos meus dois irmatildeos e agraves minhas duas irmatildes camila irmatilde mais velha para quem ainda olho com olhar de crianccedila tamanha eacute minha admiraccedilatildeo por seu talento sensibilidade e forccedila felipe maninho mais velho em quem por toda a infacircncia me espelhei mdash e de quem tanto peguei discos e bonecos do power rangers sem permissatildeo miguel que desde que veio ao mundo se mostra cada vez mais como um grande ser humano julinha que tornou nossas vidas mais doces e mais risonhas mdash e do jeito que o tempo passa em breve vai estar lendo ela mesma esta frase estendo isto aqui ainda aos meus irmatildeos de consideraccedilatildeo (nada de meios irmatildeos mdash tenho somente irmatildeos inteiros) tia sandra e e meus tantos familiares todos que provam que amor natildeo se divide mas se multiplica agravequele que estaacute sempre laacute para mim haacute sete anos e a quem tanto amo marcos oliveira agrave isabella carrazza que desempenha o papel primordial de amiga inseparaacutevel desde 2001 ao igor versiani e ao henrique barbosa os melhores amigos que os uacuteltimos anos me deram e que espero ter sempre por perto natildeo importa em que lugar do mundo estejam porque temos natildeo um cantinho mas verdadeiros latifuacutendios no coraccedilatildeo uns dos outros agrave joana melo que me ofereceu sua amizade tatildeo especial por toda a graduaccedilatildeoampaleacutem e a quem soacute posso agradecer por isso e fazer jus a essa troca agrave stephanie winkler pela sua amizade tatildeo profunda e inigualaacutevel ao pedro couto meu grande amigo com quem tenho a sintonia sagitta em tantos niacuteveis ao lucas lyra que agraves vezes me entende como poucos e a quem quero tatildeo bem agrave raquel campos amiga-irmatilde de companheirismo tatildeo vasto fez desse tempo de mestrado algo muito melhor agrave ludimila menezes amiga-em-forma-bruta enche meus dias de beleza com sua enorme sinceridade de alma que me enche de forccedila e alegria

ao rafael machado que se desdobra em mil e eu tanto admiro por seu apoio incomensuraacutevel e pelo conviacutevio agrave sarah jeanne cujo companheirismo fez toda a diferenccedila e por quem nutro o maior carinho possiacutevel e tambeacutem ao victor fialho e agrave sayuri hirako queridos que coloriram esse tempo junto conosco agraves feministas-realmente-amigas-queer-poacutes-modernxs-pan-normativxs grupo no qual a mariana ferreira me incluiu e cujo nome jaacute define a genialidade amanda quadrado ana paula jacob liacuteria nogueira lorena figueiredo luciana torres marcella fernandes thauana tavares cada uma de vocecircs tem um espaccedilo de carinho e amor dentro de mim ao joyce e agrave sua filha que o inspirou lucia mas tambeacutem ao proust ao dante agrave emily dickinson ao truffaut e agrave sofia coppola agrave fiona apple agrave brody dalle e ao rufus wainwright ao georges bizet e ao giacomo puccini agraves cidades brasiacutelia com sua vastidatildeo e belo horizonte com seu acolhimento agrave muacutesica a arte que tanto quanto literatura e filosofia me manteacutem viva e manteacutem em mim o interesse por me manter viva ao prof piero eyben mais do que orientador desta dissertaccedilatildeo modificou para sempre minha relaccedilatildeo com a graduaccedilatildeo em Letras e com a academia e cujas aulas nunca mais quis parar de frequentar desde 2011 pelos tantos ensinamentos pelo acolhimento e pela capacidade de redefinir esse meu percurso obrigada minha gratidatildeo natildeo tem limites e este trabalho natildeo existiria sem tudo isso agrave Capes pelo apoio financeiro agrave Universidade de Brasiacutelia pela importacircncia que ganha mais espaccedilo em mim desde 2009 a todos que passaram pela minha vida deixando alguma marca e que natildeo nomeei aqui certamente me tornei outra depois de vocecircs digo seus nomes em silecircncio obrigada

First we feel Then we fall

(FW 62711)

Now follow we out by Starloe

(FW 38230)

Resumo

FREITAS Luiacutesa O fluir-ricorso e os tempos de Finnegans wake Dissertaccedilatildeo de Mestrado

Orientador Piero Luis Zanetti Eyben Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 2014 151 p

Esta dissertaccedilatildeo percorre investigaccedilotildees acerca do tempo tanto como instacircncia narrativa tanto

como conceito de teorias filosoacuteficas a partir da obra uacuteltima do escritor irlandecircs James Joyce

(1882-1941) Finnegans wake (1939) O aporte teoacuterico perpassa a fenomenologia e em especial

a filosofia de Jacques Derrida (1930-2004) O ricorso termo que proveacutem da obra do filoacutesofo

Giambattista Vico (1668-1744) eacute aqui relido como fluir-ricorso em uma ampliaccedilatildeo das

investigaccedilotildees sobre o tempo no Finnegans wake para aleacutem da Scienza nuova (1725) seu

paradigma central O tempo como tambeacutem formador de memoacuteria diacronia coletiva

compartilhada traz agrave tona o questionamento da inserccedilatildeo ou exclusatildeo de certos textos no cacircnone

da histoacuteria da literatura e como esse sistema pocircde lidar com as peculiaridades do texto de

Finnegans wake desde a recepccedilatildeo de seus contemporacircneos modernistas Sobre o tempo do

proacuteprio texto suas relaccedilotildees com muacutesica e outras artes outro importante filoacutesofo para o trabalho

eacute Emmanuel Levinas (1906-1995) Lidando com sincronia diacronia e anacronismo traccedilamos

as possibilidades de entender o tempo do texto do Wake com o apoio desses termos como

abordados pelo filoacutesofo Ainda nesse acircmbito eacute tambeacutem discutido em parte deste trabalho o

tempo da traduccedilatildeo mdash ou seus tempos mdash e apontadas as traduccedilotildees brasileiras para o texto de

James Joyce A leitura das traduccedilotildees eacute feita sempre no esteio das discussotildees do tempo bem

como o questionamento sobre o cacircnone literaacuterio e a histoacuteria da literatura que partem igualmente

dessas noccedilotildees passando tambeacutem por Agostinho Martin Heidegger e Paul Ricoeur

Palavras-chave James Joyce Finnegans wake Tempo Jacques Derrida Fenomenologia

Abstract

FREITAS Luiacutesa The flowing-ricorso and the times of Finnegans wake Masterrsquos dissertation

Supervised by Piero Luis Zanetti Eyben Brasiacutelia University of Brasiacutelia 2014 151 p

This dissertation investigates different notions of time considered as a narrative concept as well

as a philosophical concept and center of philosophical theories from the last work by the Irish

author James Joyce (1882-1941) Finnegans wake (1939) The theoretical framework goes

through phenomenology and especially the philosophy of Jacques Derrida (1930-2004) The

ricorso term we take from the works of the Italian philosopher Giambattista Vico (1668-1744) is

reinterpreted here as a flowing-ricorso invoking the movement of a river broadening the

investigations on time concerning Finnegans wake beyond what we can see with Scienza nuova

(1725) its central paradigm The notion of time also as a memory a shared collective diachronic

vision elicits the questioning of the insertion or exclusion of some texts among the canonical ones

in the history of literature and how this system can deal with the peculiarities of Finnegans wake

ever since its first reception by the contemporary modernists About the time within the text itself

its relations with music and other forms of art another important philosopher here is Emmanuel

Levinas (1906-1995) Dealing with synchronic diachronic and anachronism we find the

possibilities of understanding the time of the text in the case of Finnegans Wake with the support

of Levinasrsquo approach of these terms Still concerning those themes the time of a translation is

also brought to this analysis mdash or its sundry times mdash and the different Brazilian translations for

James Joycersquos text are indicated The approach of this analysis of translations is based on the

investigation of the concept of time and the questions concerning the literary canon and the history

of literature all of these being connected notions also reading the works of Agostinho Martin

Heidegger and Paul Ricoeur

Keywords James Joyce Finnegans wake Time Jacques Derrida Phenomenology

Sumaacuterio

INTRODUCcedilAtildeO ndash Wake e environs11

CAPIacuteTULO I ndash Wake em pauta30

1 Algo parecido com nada 31

2 Sui generis38

3 Fluidez vida-morte46

4 Paralelos psicanaacutelise teoria da relatividade muacutesica51

CAPIacuteTULO II ndash Finnegans wake e o tempo da traduccedilatildeo64

CAPIacuteTULO III ndash Leitura luto elipse82

CAPIacuteTULO IV ndash Fluir e retorno108

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS138

BIBLIOGRAFIA145

INTRODUCcedilAtildeO WAKE E ENVIRONS

Hightime is ups be it down into outs according

Premente eacute o tempo que seja feito do teu jeito1

(FW 23916)

1 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2002) O mesmo valeraacute para as proacuteximas citaccedilotildees de Finnegans wake em portuguecircs exceto quando indicado de resto citaccedilotildees diversas desacompanhadas da indicaccedilatildeo de autoria satildeo traduccedilotildees livres feitas por mim

12

Decidir ler Finnegans wake eacute decidir por lanccedilar-se ao texto

Ainda que sua escrita tenha sido iniciada pouco tempo apoacutes a publicaccedilatildeo

de Ulysses (1922) que jaacute despertara uma recepccedilatildeo que ia de manifestaccedilotildees de

repuacutedio a grandes elogios passando por problemas com censura e acusaccedilotildees

de obscenidade Finnegans wake (1939) foi publicado mais de dezesseis anos

depois de o dublinense James Augustine Aloysius Joyce (1882-1941) comeccedilaacute-

lo e por volta de dois anos antes de seu falecimento em Zurique no dia 13 de

janeiro de 1941 Nesse iacutenterim acabou por ficar ofuscada a publicaccedilatildeo de

Pomes Penyeach (1927) livro que tambeacutem foi escrito em um longo intervalo de

tempo de 1904 a 1924 apesar de mdash bem ao contraacuterio das duas obras entre as

quais estaacute intercalado mdash consistir em treze curtos poemas

13

O contexto em que Finnegans wake foi produzido eacute permeado por

algumas peculiaridades aleacutem do longo tempo de escrita e reescrita a publicaccedilatildeo

de fragmentos do que ateacute entatildeo se chamava Work in progress possibilitou que

Joyce jaacute tivesse enquanto ainda escrevia concreta noccedilatildeo do impacto que sua

produccedilatildeo final poderia causar mdash fosse entre quem a lesse fosse entre quem

natildeo leu mas ouviu falar fosse entre quem comeccedilou a ler e desistiu ateacute os que

leram mas tiveram a sensaccedilatildeo de natildeo terem lido (talvez a mais comum no

primeiro contato com o Wake)

Soma-se a isso o problema de visatildeo de Joyce decorrente de um quadro

de glaucoma que se agravava cada vez mais obrigando-o a passar por mais de

dez cirurgias e a buscar consultas com meacutedicos de diferentes lugares em busca

de alguma melhora Chegou ao ponto de natildeo conseguir mais ler nada impresso

passando a ter de escrever em uma caligrafia enorme para conseguir enxergar

melhor usar um tapa-olho que ficou famoso em algumas de suas fotografias e

ditar alguns trechos de fragmentos do Finnegans wake O entatildeo jovem escritor

Samuel Beckett chegou a fazer esse trabalho algumas vezes ouvindo a citaccedilatildeo

de Joyce com apreccedilo pela tarefa especial que executava Aleacutem de ser uma das

figuras mais proacuteximas do jaacute ceacutelebre conterracircneo de quem recebeu alguns

elogios especiais e chegou a ser tratado com rara intimidade foi um de seus

mais sinceros admiradores e mais ativos defensores Os dois ficaram afastados

por um periacuteodo de cerca de um ano apoacutes um mal entendido que envolvia a filha

de Joyce Lucia Anna Joyce que parecia ter se apaixonado pelo jovem irlandecircs

que visitava seu pai mas a relaccedilatildeo dos dois escritores acabou por sobreviver ao

ocorrido

Joyce teve em vida numerosos admiradores que como Beckett

apoiaram ativamente sua produccedilatildeo Entre os nomes mais importantes daqueles

que estiverem em alguma medida presentes na fase final de sua vida estaacute o de

sua mecenas a inglesa Harriet Shaw Weaver (1876-1961) que se tornaria

editora da revista The Egoist (anteriormente chamada de The Freewoman e The

New Freewoman) Weaver estudou na London School of Economics e participou

ativamente do maior movimento pelos direitos das mulheres no Reino Unido

Womenrsquos social and political union que reivindicou o sufraacutegio universal direito

14

concedido somente em 1928 (deacutecadas depois da fundaccedilatildeo do grupo em 1903

e mais de um seacuteculo depois das primeiras reivindicaccedilotildees na Inglaterra desde o

iniacutecio endossadas publicamente por alguns homens ceacutelebres) A revista The

Egoist contava com Ezra Pound na seccedilatildeo literaacuteria e nela foram publicados

Pheacutenomenologie de la perceptiontrechos de Ulysses Pound por um tempo

teceu diversos elogios aos trabalhos de Joyce e tambeacutem o apoiou antes que

comeccedilasse a mudar suas opiniotildees a respeito das empreitadas literaacuterias do

irlandecircs exilado especificamente na fase final de suas obras em especial diante

de Finnegans wake que lhe pareceu um material por demais indigesto

Outro importante nome eacute o de Sylvia Beach (1887-1962) proprietaacuteria da

Shakespeare and Company mdash fundada em 1919 e apelidada por Joyce de

Stratford-on-Odeacuteon em referecircncia a Stratford-upon-Avon cidade natal de

Shakespeare e agrave rue de l`Odeacuteon onde ficava a livraria mdash que publicou a

primeira ediccedilatildeo de Ulysses em 1922 e Pomes Penyeach em 1927 aleacutem da

coletacircnea de ensaios sobre o Wake que ainda estava em construccedilatildeo em 1929

Our exagmination round his factification for incamination of Work in progress

Beach apoiou e acompanhou boa parte da carreira de Joyce ainda que algumas

das empreitadas tenham lhe acarretado problemas ldquoI understood from the first

that working with or for Mr Joyce the pleasure was mine mdash an infinite pleasure

the profits were for himrdquo2 (FLANNER 1972 apud HALFORD 2010) Os anos

1930 marcaram dificuldades econocircmicas apesar da ajuda de amigos e

simpatizantes da livraria que formaram um grupo para ajudar a reerguecirc-la o Les

amis de Shakespeare and company Em 1941 poreacutem com a invasatildeo da Franccedila

pelo Terceiro Reich agravando a Segunda Guerra Mundial os problemas se

somaram e levaram-na agrave falecircncia Apesar de a relaccedilatildeo entre Joyce e Beach ter

se tornado ceacutelebre e a livraria ter sido centro de muitos encontros conta-se que

ironicamente o fechamento da livraria aconteceu pouco depois de Sylvia Beach

se recusar a vender a uacuteltima coacutepia de Finnegans wake a um oficial do

totalitarismo nazista

2 ldquoCompreendi desde o iniacutecio que trabalhar com ou para o Sr Joyce o prazer era todo meu ndash um infinito prazer os lucros eram delerdquo

15

In late 1941 Shakespeare and company was forced to close shortly after Beach refused to sell her last personal copy of Finnegans wake to a Nazi officer It was symbolically ldquoliberatedrdquo in 1944 by Ernest Hemingway but in fact the bookstore never reopened though in the 1950s Beach gave an American named Whitman permission to open a bookstore under that name (FARGNOLI 2006 p 352)3

Foram figuras importantes na fase final vida de Joyce o casal Eugene

Jolas (1894-1952) e Maria McDonald (1893-1987) americanos residentes em

Paris que editavam a revista literaacuteria experimental Transition fundada por eles

em 1927 em que foram publicados excertos de Finnegans wake ainda sob seu

tiacutetulo provisoacuterio anterior Work in progress aleacutem de artigos sobre a obra de

James Joyce Conheceram-se por Sylvia Beach A revista de ares inovadores e

artisticamente progressistas se estabeleceu como referecircncia na capital francesa

especialmente entre os angloacutefonos desterrados A seguinte descriccedilatildeo de Eugene

Jolas encontra-se na premiada biografia James Joyce (1959 1989)4 escrita pelo

norte-americano Richard Ellmann

Homem sensiacutevel procurava uma teoria da arte que tambeacutem fosse uma filosofia de vid pensava tecirc-la encontrado numa ldquoreligiatildeo da palavrardquo cujo ritual ele saturava com termos como ldquofantaacutesticordquo ldquomacircnticordquo e seu neologismo ldquoparamitordquo Soacute na arte se podia confiar e confiar apenas se se abjurasse do externo em nome da imaginaccedilatildeo (p 725)

Eugene Jolas foi um daqueles que mais apoiaram e defenderam a obra

de James Joyce em sua eacutepoca tendo visto em Finnegans wake uma obra que

seria forte e consistente acircncora para o manifesto que publicou em 1929 na

proacutepria revista Transition denominado ldquoRevolution of the wordrdquo no qual discorria

sobre novas formas de linguagem literaacuteria Durante a deacutecada de 1960 jaacute viuacuteva

Maria se tornaria ceacutelebre ainda como presidenta do Comitecirc Americano de Paris

3 ldquoNo fim de 1941 Shakespeare and company foi obrigatoriamente fechada pouco tempo depois de Beach ter se recusado a vender sua uacuteltima coacutepia pessoa de Finnegans wake a um oficial nazista Foi simbolicamente ldquoliberadardquo em 1944 por Ernest Hemingway mas a livraria nunca foi reaberta de fato apesar de nos anos 1950 Beach ter permitido que um americano chamado Whitman abrisse uma livraria usando o mesmo nomerdquo 4 Em 1982 Richard Ellmann recebeu o James Tait Black Memorial Prize na categoria biografia um dos mais tradicionais precircmios literaacuterios britacircnicos

16

contra a Guerra do Vietnatilde que foi censurado pelo governo francecircs poucos anos

depois de sua fundaccedilatildeo em 1968

Adrienne Monnier (1892-1955) foi mais uma das maiores apoiadoras de

James Joyce em Paris Abriu a livraria La maison des amis des livres em 1915

que ficava proacutexima de um dos endereccedilos da Shakespeare and company (o da

rue de lrsquoOdeacuteon que originou o jaacute citado apelido de Joyce de ldquoStratford-on-

Odeacuteonrdquo) Adrienne Monnier difundiu na Franccedila a obra literaacuteria do escritor norte-

americano Ernest Hemingway em traduccedilotildees para liacutengua francesa e publicou por

um tempo o perioacutedico literaacuterio Le navire drsquoargent que contava com Jean Preacutevost

em sua equipe editorial Uma das primeiras mulheres a ser dona de uma livraria

especialmente fundada por ela mesma isto eacute sem que tivesse sido herdada de

famiacutelia ou de um falecido marido Monnier foi referecircncia para Sylvia Beach que

abriu seu negoacutecio quatro anos depois construindo-se entre elas uma vasta

parceria

Ford Madox Ford (1873-1939) literato inglecircs proacuteximo de Ezra Pound que

tambeacutem residiu em Paris e que inspirou um capiacutetulo do autobiograacutefico A

moveable feast de Ernest Hemingway foi outra fonte de apoio com que Joyce

contou Ford editava a revista literaacuteria The transatlantic review em Paris e a

publicava em Londres pela editora independente Gerald Duckworth Overlook

(hoje tatildeo somente Duckworth Overlook cujo slogan eacute ldquoindependente desde

1898rdquo) Inicialmente os financiadores da Transatlantic exigiram que nada escrito

por Joyce fosse publicado na revista mas acabaram abrindo matildeo da proibiccedilatildeo

quando Ford ameaccedilou recusar o cargo de editor Com doze ediccedilotildees mensais

durante o ano de 1924 foi a primeira publicaccedilatildeo a conter excertos do entatildeo Work

in progress mdash tiacutetulo virtualmente sugerido por Ford em seu suplemento literaacuterio

depois adotado por Joyce mdash que soacute mais tarde apareceriam tambeacutem na

Transition do casal Jolas Ford que tambeacutem publicou Hemingway e Tristan

Tzara chegou a temer que sua revista fosse prejudicada se houvesse alguma

acusaccedilatildeo de obscenidade do que Joyce escreveu Por outro lado a princiacutepio o

proacuteprio Joyce se recusou publicar assim trechos de sua obra em andamento por

acreditar que natildeo seria bom tecirc-la fragmentada (apesar de Ulysses ter sido

17

publicado dessa maneira em outra revista a Little review) tendo negado outros

convites anteriores mas acabou cedendo

Tanto as vaacuterias publicaccedilotildees dos excertos em progresso quanto

posteriormente a publicaccedilatildeo de Finnegans wake poreacutem fizeram com que ateacute

alguns de seus admiradores mais contundentes se manifestassem

negativamente Ateacute mesmo Nora a esposa de Joyce criticou o texto do Wake

pejorativamente um ldquochop sueyrdquo questionando a qualidade a partir da

ininteligibilidade Reiterava assim a opiniatildeo expressa por Harriet Shaw Weaver

que tambeacutem se posicionou desfavoraacutevel ao que Joyce estava produzindo no fim

de sua vida distanciando-se consideravelmente dele na fase em que estava

escrevendo o Wake Em uma carta a Joyce disse abertamente natildeo se interessar

pela ldquoproduccedilatildeo de seu Atacado de Trocadilhos de Seguranccedila nem pelas

escuridotildees e ininteligibilidades do seu sistema de linguagem deliberadamente

emaranhado Parece-me que vocecirc desperdiccedila seu gecircniordquo (ELLMANN 1989 p

728) Ainda que natildeo tenha havido grande rancor entre os dois na ocasiatildeo da

morte de Joyce em Zurique ela teria arcado com as despesas de seu funeral mdash

que natildeo teve refinamentos e nem qualquer homenagem ou contribuiccedilatildeo vinda

da Irlanda

Ezra Pound (1885-1972) foi quem possivelmente fez o comentaacuterio mais

aacutecido O escritor norte-americano comeccedilou a tecer criacuteticas desde os capiacutetulos

finais de Ulysses e quanto a Finnegans wake ao receber de Joyce o manuscrito

do livro de Shaun para que lesse e comentasse respondeu a ele que soacute lhe

restava desejar sucesso mas natildeo sabia o que pensar Na mesma carta chegou

a dizer que aquele texto soacute valeria a pena se apresentasse uma visatildeo divina ou

a cura para a gonorreia (ldquothe claprdquo) ldquoNothing short of divine vision or a new cure

for the clapp [sic] can possibly be worth all that circumambient peripherisationrdquo5

(READ 1970 p 228) Vale lembrar que anteriormente na ocasiatildeo de uma

tentativa de angariar fundos para Joyce a partir do Royal Literary Fund Pound

se referiu a Joyce escrevendo a Yeats e George Moore de maneira muito

5 A traduccedilatildeo feita por Lya Luft da biografia de Joyce escrita por Richard Ellmann traz a seguinte versatildeo do trecho ldquoNada ateacute onde eu possa ver nada sem visatildeo divina ou uma nova cura da gonorreia valeraacute possivelmente a peripatetizaccedilatildeo circunambienterdquo (1989 p 721)

18

elogiosa tendo expressado esses elogios tambeacutem ao proacuteprio Joyce em outras

ocasiotildees ldquostill it gives me a certain satisfaction to state that I consider Joyce a

good poet and without exception the best of the younger prose writers His style

has the hard clarity of a Stendhal or a Flaubert He has also the richness of

erudition which differentiates him from certain able and vigorous but rather

overloaded impressionist writersrdquo6 (ELLMANN apud DENNING 1997 p 10)

A primeira publicaccedilatildeo sobre Finnegans wake surgiu antes mesmo que a

obra fosse concluiacuteda Alguns apoiadores de Joyce se reuniram em torno da obra

coletiva Our exagmination round his factification for incamination of Work in

progress7 (1929) quando ainda havia apenas os fragmentos denominados Work

in progress com o intuito de atenuar a recepccedilatildeo que ateacute entatildeo oscilava

nebulosamente O tiacutetulo circular sugestivo e bem-humorado foi sugerido por

Joyce A coletacircnea foi publicada pela Faber and Faber a mesma editora que

publicou a primeira ediccedilatildeo de Finnegans wake quase dez anos mais tarde em 4

de maio de 1939 Reunia ensaios criacuteticos de doze autores Samuel Beckett

Stuart Gilbert Eugene Jolas Marcel Brion Frank Budgen Victor Llona Elliot

Paul Robert McAlmon Thomas MacGreevy John Rodker Robert Sage e

William Carlos Williams O proacuteprio Joyce desejava que essa publicaccedilatildeo natildeo

contivesse apenas textos elogiosos mas tambeacutem que se expressasse algo de

negativo a respeito de seus escritos Aleacutem dos doze artigos houve dois textos

extras denominados ldquocartas de protestordquo (letters of protest) e ambos trouxeram

criacuteticas o de uma jornalista que assinou sob o pseudocircnimo de G V L Slingsby

e outro assinado por um poeta russo chamado Vladimir Dixon O texto de Dixon

ldquoA litter do James Joycerdquo denomina seu destinataacuterio ora de senhor Germs

Choice ora de senhor Shamersquos Voice trocadilhos que fizeram Stuart Gilbert e

Sylvia Beach cogitarem que essa criacutetica negativa tivesse sido escrita pelo proacuteprio

Joyce A hipoacutetese poreacutem permanece natildeo confirmada

6 Traduccedilatildeo livre ldquoainda assim me daacute certa satisfaccedilatildeo afirmar que considero Joyce um bom poeta e sem exceccedilatildeo o melhor dos jovens prosadores Seu estilo tem claridade dura de um Stendhal ou de um Flaubert Ele tem ainda a riqueza da erudiccedilatildeo que o diferencia de alguns haacutebeis e vigorosos poreacutem excessivos escritores impressionistasrdquo 7 A mesma traduccedilatildeo supracitada propotildee o tiacutetulo traduzido Nosso Exagme em torno da sua factificaccedilatildeo da incaminaccedilatildeo de Obra em realizaccedilatildeo (Ibid p 755)

19

O tradutor inglecircs Stuart Gilbert (1883-1969) um dos nomes envolvidos na

publicaccedilatildeo era um dos assiacuteduos e atentos leitores contemporacircneos de Joyce

Foi quem publicou James Joyces Ulysses A Study (1930) livro ainda hoje uacutetil

para consulta na leitura da obra que precedeu Finnegans wake elucidando

numerosas referecircncias um tanto obscuras por todos os capiacutetulos e incluindo

ainda a famigerada tabela comparativa entre Ulysses e a Odisseia de Homero

Stuart Gilbert foi apresentado a Joyce por Sylvia Beach assim como Maria e

Eugene Jolas

Apesar de conterracircneos Samuel Beckett (1906-1989) e James Joyce se

conheceram somente em Paris no exiacutelio da terra-matildee compartilhada e logo se

estabeleceu a rotina de que Beckett o visitasse sempre que estivesse na cidade

Por ter acompanhado boa parte do processo de criaccedilatildeo de Finnegans wake

especialmente na ajuda que deu a Joyce por seus problemas de visatildeo podemos

imaginar que Samuel Beckett era grande candidato a uma espeacutecie de leitor ideal

o mais proacuteximo do texto aleacutem do proacuteprio autor Suas observaccedilotildees sobre o livro

de Joyce satildeo brilhantes Eacute sabido que foi Beckett o primeiro (ou ao menos

certamente um dos primeiros) a notar verdadeiramente que a incompreensatildeo

mais comum se traduz antes mesmo de a leitura ser iniciada isto eacute ainda ali

nas expectativas perante o livro mdash como poderiacuteamos ldquoentenderrdquo o Finnegans

wake esperando uma leitura tradicional

You cannot complain that this stuff is not written in English It is not written at all It is not to be read It is to be looked at and listened to () Here form is content content is form () His writing is not about something it is that something itself When the sense is sleep the words go to sleephellip When the sense is dancing the words dance (BECKETT 1964 p14)8

8 ldquoNatildeo se pode reclamar que esse material natildeo esteja escrito em inglecircs Simplesmente natildeo eacute um material escrito Natildeo existe para ser lido Existe para ser olhado e ouvido () Aqui forma eacute conteuacutedo conteuacutedo eacute forma () Sua escrita [de Joyce] natildeo eacute sobre alguma coisa eacute a proacutepria coisa Quando o sentido eacute adormecido as palavras vatildeo dormir Quando o sentido eacute danccedilar as palavras danccedilamrdquo

20

O que Beckett muito cedo percebeu e acaba por nos confirmar eacute que a

linguagem em Finnegans wake natildeo se presta a meramente servir ao

remetimento agrave descriccedilatildeo nem a contar um ocorrido prefere trazer nela em vez

de apresentar por meio dela intenta tecirc-la como ambiente proacuteprio do

acontecimento natildeo como ferramenta siacutegnica para dizecirc-lo representativamente

ou dizecirc-lo a distacircncia Levando essa tentativa em consideraccedilatildeo nada mais

coerente do que dispensar a escolha de um idioma para produzir o texto tecendo

sua literariedade de maneira anaacuterquica em relaccedilatildeo a regras de formaccedilatildeo de

palavras ou quaisquer outras normatividades de um idioma e suas limitaccedilotildees a

ponto de se poder dizer que o Finnegans wake natildeo estaacute escrito em inglecircs nem

em irlandecircs mas sim em uma liacutengua proacutepria babeacutelica mdash ainda que se possa

argumentar que a base dessa subversatildeo eacute a liacutengua inglesa de maneira que

Joyce tanto escreve no inglecircs quanto contra ele como jaacute foi dito nas palavras do

estudioso Seamus Deane

Joyce involves himself and us in an extremely complex series of translations that are endless because there is no original and no target language () the original language is the target language The book is written in the English language and also against the English language it converts itself into English and perverts itself from English (DEANE 2000 p viii)9

Lendo uma obra que natildeo pode oferecer certezas ou linearidades

estamos em uacuteltima instacircncia simplesmente nos entregando a ela sem indiacutecios

que possibilitem saber ou prever minimamente no que tudo aquilo vai dar O

leitor soacute pode continuar sua empreitada se estiver ciente dessa ausecircncia de

sentidos pontuais e de sequecircncias narrativas agraves quais normalmente buscaria se

prender Natildeo haacute uma sequecircncia de cenas causando a sensaccedilatildeo de suspense

ou de fluidez narrativa que nos faz virar as paacuteginas em prosa comum Ao inveacutes

disso o livro todo eacute espeacutecie de puro e constante suspense (uma descriccedilatildeo em

si impossiacutevel para o significado de ldquosuspenserdquo) como se o caminho de seu texto

9 ldquoJoyce se envolve e nos envolve em uma complexa seacuterie de traduccedilotildees que satildeo infinitas porque natildeo haacute liacutengua de origem e liacutengua-alvo () a liacutengua de origem eacute a liacutengua-alvo O livro eacute escrito em liacutengua inglesa e tambeacutem contra a liacutengua inglesa ele se converte em inglecircs e se perverte do inglecircsrdquo

21

virasse esquinas que os leitores nem mesmo tinham visto que existiam Cada

termo cada linha do Wake conteacutem diversas camadas semacircnticas que podem

ser absorvidas em diferentes niacuteveis e assim a leitura se realiza de uma forma

uacutenica de acordo com as referecircncias que o leitor captou Essa configuraccedilatildeo

textual potencializa mdash ou polemiza mdash as diferenccedilas que existiratildeo entre leituras

por pessoas diferentes ou entre as releituras de um mesmo indiviacuteduo

Por isso decidir ler Finnegans wake eacute decidir por lanccedilar-se ao texto Lecirc-

lo eacute uma experiecircncia fenomecircnica per se

Mesmo para alguns leitores que dedicaram parte de suas vidas a lecirc-lo e

relecirc-lo o texto natildeo se ausenta de dificuldades Uma das primeiras publicaccedilotildees

oferecendo uma leitura ampla e aprofundada da totalidade do Wake que se

propusesse a ter alguma didaacutetica em sua abordagem foi A Skeleton key to

Finnegans wake dos pioneiros Joseph Campbell e Henry Morton Robinson em

1944 O inglecircs Anthony Burgess lembrado por sua famigerada ficccedilatildeo distoacutepica

A Clockwork Orange (1962) e o acadecircmico americano William York Tindall

tambeacutem foram alguns dos primeiros a publicarem guias completos para a leitura

do Wake aleacutem de Robinson e Campbell Burgess publicou Here Comes

Everybody an introduction to James Joyce for the ordinary reader (1965) pela

proacutepria Faber and Faber A shorter Finnegans wake (1967) que traz o texto de

Joyce consideravelmente reduzido por Burgess e Joysprick na introduction to

the language of James Joyce (1973) Tindall publicou A readerrsquos guide to

Finnegans wake (1969) que sucedeu seu outro estudo didaacutetico de escopo mais

amplo A readerrsquos guide to James Joyce (1955)

William York Tindall tenta tornar o processo de leitura o mais didaacutetico e

facilitado possiacutevel indicando as referecircncias em cada capiacutetulo do Wake Ao final

de sua introduccedilatildeo em A readerrsquos guide to Finnegans wake Tindall afirma que

seu guia natildeo visa a uma apreensatildeo completa nem a ultimatos sobre a obra mas

sim a ser um suplemento de estudos preacutevios e acompanhar a leitura de uma

maneira relativamente independente isto eacute livremente ldquoAfter all what authority

on the Wake knows half of it Which half is the critical questionrdquo (TINDALL 1969

22

pp 25-26)10 Ironizar a possibilidade de que se saiba afirmar algo sobre

Finnegans wake talvez se aplique em verdade a qualquer texto literaacuterio mas

William York Tindall se resguarda claro especificamente em sua condiccedilatildeo de

joyciano e de redator de um guia para o Finnegans wake Diz ainda nessa

mesma introduccedilatildeo

Surely the Wake abounds in farcical materials () But farce is a category of drama and except from dream maybe the Wake evades categories Therersquos lsquolots of fun at Finneganrsquos wakersquo says the poet in his ballad of Tim Finnegan Taking my clue from this distrusting categories as I distrust earnestness I content myself with calling the Wake a very funny book (Ibid p 20)11

De fato o humor eacute uma das caracteriacutesticas sobressalentes em Finnegans

wake Os puns frequentemente carregam uma ironia inevitavelmente risiacutevel

Entre absurdos e alfinetadas a coletacircnea de trocadilhos ruma ao riso Uma das

comparaccedilotildees mais acertadas mdash ainda que comparaccedilotildees sejam sempre

perigosas mdash foi feita pelo escritor francecircs Valery Larbaud falando de Ulysses

ldquoeacute tatildeo grande e abrangente e humano quanto Rabelaisrdquo (ELLMANN 1989 p

617) Esse algo de rabelaisiano povoa ainda mais o sucedente Finnegans wake

que pretende tudo abarcar trabalha sobre o aparente exagero mdash que perde a

caracteriacutestica de excesso ao se fazer produtivo O exagero leva ao humor o

inacreditaacutevel e inverossiacutemil levam agrave quebra imediata e incontornaacutevel da

seriedade O que Wake tem de excessivo pode ser para nos fazer rir mais do

que para impressionar presunccedilosamente ou para meramente dificultar o texto ou

adornaacute-lo mais que isso o que o texto faz eacute lotar a si proacuteprio isto eacute se estufar

de conteuacutedo com um barroquismo que se autoironiza

10 ldquoAfinal de contas qual autoridade no Wake conhece sequer metade dele Qual metade eacute a questatildeo criacuteticardquo 11 ldquoCertamente o Wake se aproxima de materiais farsescos () Mas a farsa eacute uma categoria do drama e exceto por sonho talvez o Wake se esquiva de categorias Haacute lsquomuita diversatildeo no funeral do Finneganrsquo diz o poeta em sua balada sobre Tim Finnegan Tirando daiacute uma pista desconfiando de categorias como desconfio de seriedade eu me contento com chamar o Wake de um livro muito engraccediladordquo

23

Em artigo de 1955 ldquoA obra de arte abertardquo posteriormente publicado em

Teoria da poesia concreta (1965) Haroldo de Campos buscou compreender as

direccedilotildees para as quais apontavam as obras de arte modernas e para percorrer

esse caminho partiu de Finnegans wake e de obras de diversos autores mdash

Mallarmeacute Ezra Pound Cummings Pierre Boulez Deacutecio Pignatari e outros Em

Opera aperta (1962) Umberto Eco aborda o tema de maneira similar tambeacutem

fundamentou seu paradigma de obra de arte aberta a partir de Finnegans wake

e outras obras12 Havia uma seccedilatildeo toda dedicada a Joyce na primeira ediccedilatildeo

que depois passou a ser editada separadamente e consistia em uma

primeira tentativa pessoal de acompanhar o desenvolvimento de um artista no qual o projeto de uma obra aberta manifesta em transparecircncia ao niacutevel da pesquisa das estruturas operacionais toda uma aventura cultural a soluccedilatildeo de um problema ideoloacutegico a morte e o nascimento de dois universos morais e filosoacuteficos (ECO 1988 p 22)

Haroldo de Campos e Umberto Eco falando da ldquoobra de arte abertardquo natildeo

foram os uacutenicos a derivar do Finnegans wake de Joyce compreensotildees e

premissas de um grande paradigma teoacuterico Joseph Campbell (1904-1987)

teoacuterico estadunidense elaborou o ceacutelebre conceito de monomito segundo o qual

a jornada de um heroacutei eacute ciacuteclica e essa caracteriacutestica poderia ser notada em todas

as mitologias em diferentes graus tomando como exemplos mitos que

compotildeem a mitologia hindu egiacutepcia grega e cristatilde Joseph Campbell parte da

tese de que todos esses mitos satildeo variaccedilotildees de uma mesma narrativa una Um

dos padrotildees que Campbell estudou nessas variaccedilotildees foi a jornada do heroacutei

descrito em The hero of a thousand faces (1949) A primeira publicaccedilatildeo de

impacto de Joseph Campbell foi justamente jaacute citado estudo pioneiro entre as

12 Natildeo satildeo necessariamente abordagens idecircnticas apesar da grande coincidecircncia entre ambas inclusive terminoloacutegicas O proacuteprio Umberto Eco em introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo brasileira diz ldquoEacute mesmo curioso que alguns anos antes de eu escrever Obra Aberta Haroldo de Campos num pequeno artigo lhe antecipasse os temas de modo assombroso como se ele tivesse resenhado o livro que eu ainda natildeo tinha escrito e que iria escrever sem ter lido seu artigo Mas isso significa que certos problemas se manifestam de maneira imperiosa num dado momento histoacuterico deduzem-se quase que automaticamente do estado das pesquisas em cursordquo (ECO 1988 p 17)

24

publicaccedilotildees sobre o Wake A skeleton key to Finnegans wake (1944) escrito por

ele em parceria com Henry Morton Robinson e publicado pela editora Harcourt

entatildeo Harcourt Brace Foi certamente o primeiro estudo completo e que se

propunha a servir como guia de leitura mais de duas deacutecadas antes de Tindall

publicar o seu famoso A readerrsquos guide A obra de James Joyce gerou inspiraccedilatildeo

para Campbell ateacute mesmo na escolha do termo ldquoAnd his monomyth Ah hordquo

(FW 58124) As ideias desenvolvidas no conceito satildeo bastante caras ao

Finnegans wake muitas variaccedilotildees temaacuteticas reunidas formando uma unidade

um caleidoscoacutepio dos grandes mitos em que as narrativas histoacuterias se

entrelaccedilam ao inveacutes de somente se diferenciarem entre si Apagam-se as linhas

que delimitam a identidade cultural o idioma a liacutengua nacional ou regional o

momento histoacuterico ou qualquer porccedilatildeo isolada de tempo e espaccedilo tudo age em

prol da compreensatildeo do todo e do que nos une atraveacutes dos seacuteculos e das

fronteiras

No Brasil a recepccedilatildeo de Finnegans wake e sua influecircncia no trabalho de

grandes intelectuais tambeacutem natildeo tardou a se explicitar mdash e com grandes

leitoresleituras alguns fragmentos foram traduzidos por Augusto de Campos e

Haroldo de Campos em Panaroma do Finnegans wake (1962) Essa publicaccedilatildeo

foi de enorme importacircncia na difusatildeo do texto no Brasil em uma via de matildeo

dupla tanto Joyce influenciou intelectuais ligados agrave poesia concreta quanto os

irmatildeos Campos contribuiacuteram para difundir ainda mais a sua obra Felizmente

natildeo houve grande impacto negativo que afastasse leitores e parecesse invalidar

a qualidade do Wake ao contraacuterio a recepccedilatildeo foi natildeo soacute positiva como

especialmente produtiva em especial graccedilas agrave publicaccedilatildeo do Panaroma do

Finnegans wake que encorajou certa inspiraccedilatildeo e aproximaccedilatildeo da obra com o

que se fazia no Brasil em termos de poesia traduccedilatildeo e ateacute mesmo muacutesica13 jaacute

nos anos 1960

13 Eacute relativamente desconhecido o fato de que Peacutericles Cavalcanti musicou um trecho do Panaroma do Finnegans wake traduzido por Augusto de Campos ldquoNuvoletardquo mas essa bela versatildeo pode ser conhecida online numa performance com Regina Caseacute de 1983 no Sesc Pompeia para o programa Faacutebrica de Som

25

Haacute ainda poucas (ou talvez seja um nuacutemero surpreendentemente alto)

traduccedilotildees extensas de Finnegans wake publicadas mundo afora mdash francecircs

alematildeo mandarim polonecircs japonecircs (haacute duas) coreano italiano galego

contam-se nos dedos mdash e o portuguecircs haacute poucos anos foi incluiacutedo entre os

poucos idiomas que possuem traduccedilatildeo integral graccedilas a Donaldo Schuumller que

traduziu o texto do Wake para o portuguecircs brasileiro (se eacute que seria coerente

dizer dessa maneira enquadrando em um idioma) no decorrer de quatro anos

A traduccedilatildeo cujo primeiro volume data de 2001 foi publicada aos poucos e trouxe

consigo o tiacutetulo cunhado pelos irmatildeos Campos Finniacutecius reveacutem Com notas de

leitura a cada capiacutetulo que comentam aspectos gerais do texto Schuumller realizou

essa tarefa hercuacutelea com vasto meacuterito e deixou sua contribuiccedilatildeo criacutetica unida ao

seu trabalho de traduccedilatildeo

Houve em especial nos anos 2000 uma revisitaccedilatildeo de toda a tradiccedilatildeo

de Joyce e uma espeacutecie de nova recepccedilatildeo sua no Brasil com muitas traduccedilotildees

e trabalhos diversos sendo publicados Uma terceira via de traduccedilatildeo foi

executada com Ulysses (2012) por Caetano W Galindo que tambeacutem traduziu

Finnrsquos Hotel (2014) Este uacuteltimo se trata de textos que antecederam a finalizaccedilatildeo

do Work in progress que se tornaria o Finnegans wake Permaneceu em

suspenso se o Finnrsquos hotel de Joyce deveria ser um livro independente e ele

acabou por descartaacute-lo ou se eram rascunhos ensaios tentativas ou algo

semelhante do que planejava fazer em sua obra final jaacute que o livro abarca muitos

elementos do Wake Recentemente tambeacutem alguns dos escritos esparsos de

James Joyce foram editados em De santos e saacutebios escritos esteacuteticos e poliacuteticos

(2012) organizado a partir de The critical writings por Dirce Waltrick do Amarante

e Seacutergio Medeiros ambos fizeram tambeacutem a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo de Cartas

a Nora (2012) que possuem traduccedilatildeo portuguesa editada no mesmo ano feita

por Joseacute Miguel Silva ainda no mesmo ano foram publicadas tambeacutem as

Epifanias (2012) de Joyce traduzidas por Piero Eyben anteriores ainda satildeo o

livro-guia Para ler o Finnegans wake de James Joyce (2009) de Dirce Waltrick

do Amarante que traz tambeacutem uma traduccedilatildeo do fragmento Anna Livia

Plurabelle e O efeito da letra Lacan leitor de Joyce (2003) de Ram Mandil

26

Expusemos entatildeo de maneira breviacutessima a recepccedilatildeo de Finnegans

wake da maneira como se deu inicialmente em especial no seu impacto entre

as figuras centrais da vida de James Joyce como escritor mdash que contrasta como

pontuamos com a maneira como o Wake chegou ao Brasil se estabelecendo

natildeo muito tardiamente como referecircncia e influecircncia tanto para alguns de nossos

maiores intelectuais quanto para um puacuteblico geral e de diversas aacutereas A

intenccedilatildeo de uma maneira ou de outra natildeo eacute sublinhe-se a de reiterar as

dificuldades de acesso ao texto jaacute que muitas das objeccedilotildees citadas por

contemporacircneos de Joyce partem do argumento de uma suposta profunda e

contraproducente inteligibilidade bem como da noccedilatildeo de que sua obra final seria

um jogo louco ou inuacutetil de palavras e sons

Ao contraacuterio pode ser relevante conhecermos ao menos alguns dados

sobre a recepccedilatildeo turbulenta para sabermos enfrentar esses argumentos jaacute

velhos enferrujados que intentam justificar por que natildeo ler Finnegans wake e

ainda surgem com espantosa frequecircncia Como respondecirc-los hoje Ainda se

acredita que Finnegans wake eacute uma piada um sarro um jogo intelectual banal

e mais pretensioso do que primoroso Ainda eacute visto como um texto

impenetraacutevel Por quecirc Ateacute quando Quais as consequecircncias de uma obra

como essas ser considerada ldquoum livro que ningueacutem leulecircrdquo considerando ainda

os avisos ou receios dos que dizem que em geral lecirc-se cada vez menos

literatura Como Finnegans wake eacute considerado claacutessico (se o for) se eacute ilegiacutevel

e impenetraacutevel eou uma peccedila de chacota intelectual O que seria um claacutessico

e de que vale essa classificaccedilatildeo valorativa

Eacute claro que natildeo faria sentido negar as peculiaridades inerentes ao texto e

agrave sua construccedilatildeo e nem pretendemos fazecirc-lo pretendemos o exato oposto

desse reducionismo que eacute enxergaacute-las e enfrentaacute-las da maneira mais

destemida possiacutevel mdash destemida no sentido de natildeo criar diferenciaccedilotildees entre

literatura ldquofaacutecilrdquo e ldquodifiacutecilrdquo leia-se sem criar uma categoria especial para a leitura

do Finnegans wake Natildeo se trata de afirmarmos que seja um texto ldquofaacutecilrdquo nem

que seja um texto impenetraacutevel Ideal eacute que o encaremos como o que ele eacute mdash

um texto literaacuterio um texto escritural como quisermos chamaacute-lo eacute um texto

Demanda-nos a leitura De noacutes leitores quaisquer que sejamos Se olhamos

27

para o Wake e questionamos o que conteacutem jaacute somos grandes candidatos a

percorrer seus caminhos Natildeo satildeo muitos os dispostos Natildeo porque devam ser

selecionados mas porque os preconceitos talvez afastem os desinteressados

Ulysses jaacute carrega tambeacutem certo estigma mas parece figurar como uma obra

um tanto mais simpaacutetica ou atraente quiccedilaacute mais receptiva ainda que

considerada tambeacutem difiacutecil extensa complexa Ulysses tem trecircs traduccedilotildees

brasileiras14 de trecircs intelectuais de diferentes eacutepocas de meacuterito e de peso de

fundos distintos e consequentemente trabalhos tradutoacuterios tambeacutem (felizmente)

diferentes entre si o que tambeacutem colabora para multiplicar nossas possibilidades

de fontes e referecircncias durante a leitura Sua dificuldade parece ser menos alvo

de piadas do tipo ldquomas ningueacutem lecircrdquo ainda que curiosamente natildeo haja guias

elaborados e nem mesmo traduccedilotildees brasileiras de guias de leitura

especificamente voltados para Ulysses ainda enquanto jaacute temos Para ler o

Finnegans wake de James Joyce (2009)

Apontar problemas ou tecer criacuteticas diversas agrave construccedilatildeo textual de

Finnegans wake como foi mostrado natildeo foi exclusividade dos absolutamente

conservadores ao menos artisticamente falando Diante da radicalidade do texto

e da aparente incompreensibilidade era como se um estranhamento

imediatamente tomasse o possiacutevel leitor mesmo que este fosse algueacutem

relativamente (ou mesmo bastante) aberto Como vimos os exemplos satildeo

muitos de artistas como Ezra Pound (ldquoA receptividade de Pound agrave inovaccedilatildeo

tinha seus limites como Joyce agora sabiardquo ELLMANN 1989 p 722) de sua

parceira proacutexima Sylvia Beach ateacute mesmo de alguns parentes como sua

esposa Nora sempre fonte de apoio e companheirismo e seu irmatildeo que

tambeacutem era escritor Foram variadas as reaccedilotildees mas especialmente numerosas

as reaccedilotildees negativas chegando a atingir emocionalmente Joyce em alguns

momentos

14 A saber a de Antocircnio Houaiss (1966) a de Bernardina da Silveira Pinheiro (2005) e a mais recente de Caetano Galindo (2012) premiada pela Academia Brasileira de Letras e pela Associaccedilatildeo Paulista de Criacuteticos de Arte aleacutem de ter recebido o Precircmio Jabuti de melhor traduccedilatildeo do mesmo ano

28

A fama de Finnegans wake que se espalhou pelo mundo (e permanece

ateacute os dias de hoje contaminando a visatildeo que normalmente se tem do livro de

preconceitos uma vez que quase sempre precedem a sua leitura) de que eacute um

livro impenetraacutevel eou uma grande piada de James Joyce ou de que eacute nada

aleacutem de um livro propositalmente dificiacutelimo e insano natildeo acabaraacute de repente O

que preocupa eacute o ldquonada aleacutemrdquo Que se tome Wake como paradigma de livro

complexo eacute aceitaacutevel e ateacute pertinente que se deixe de lecirc-lo tendo em conta esse

tipo de estigma poreacutem passa a ser uma subestimaccedilatildeo e pode ser de alguma

maneira uma perda real Felizmente no Brasil como vimos existe cada vez

mais um nuacutemero de publicaccedilotildees sobre Joyce que vem crescendo e se ampliando

tanto quanto vem se aprofundando com diferentes leituras A recepccedilatildeo

atribulada de que fizemos um panorama no entanto desde as primeiras reaccedilotildees

agrave obra final de James Joyce mesmo entre aqueles que o admiravam e

acompanhavam seu trabalho aponta para algo que estaacute no cerne das

consideraccedilotildees desta pesquisa o que o Wake tem de tatildeo deslocado tatildeo

marginal sendo ao mesmo tempo tatildeo ceacutelebre O objetivo eacute fazer dessa

compreensatildeo algo produtivo

Pois bem se eacute um livro ilegiacutevel natildeo se poderia escrever um trabalho

acadecircmico sobre ele (ou em algumas visotildees do que eacute um trabalho sobre

literatura justamente por isso fazecirc-lo seria necessaacuterio e sugerido

ironicamente) A concepccedilatildeo de legiacutevel eacute a que deve ser posta em xeque aiacute em

primeiro lugar ou ao menos antes de se questionar se Finnegans wake o eacute ou

natildeo Isso se faz especialmente necessaacuterio se falamos de legiacutevel referindo-nos agrave

literatura como se houvesse um processo de alfabetizaccedilatildeo especiacutefico No

entanto mesmo que se pare de olhar para o Wake apenas observando esse seu

caraacuteter superficial arriscamo-nos a dizer que sua impenetrabilidade por si soacute

diz alguma coisa A maneira como se encara a conceituaccedilatildeo de obra literaacuteria mdash

desde a assunccedilatildeo dessa possibilidade ateacute o processo de efetivamente

conceituaacute-la mdash certamente tem implicaccedilotildees no processo de aceitaccedilatildeo ou de

recusa diante de uma obra especiacutefica bem como na accedilatildeo criacutetica de valorar e de

julgar

29

Ora se uma coisa natildeo se encaixa no que se espera dela algo natildeo estaacute

nas medidas esperadas ou a coisa ou o molde isto eacute a focircrma com suas

medidas limitadas e exigecircncias de enquadramento Se a obra eacute algo que se deva

encaixar em uma concepccedilatildeo de literatura que a antecede e normatiza as

produccedilotildees literaacuterias em uma hierarquia duvidosa que cria uma governanccedila de

cima para baixo do molde para a coisa eacute compreensiacutevel toda a resistecircncia que

foi criada frente ao Finnegans wake

O que essa maacute recepccedilatildeo que ecoa ateacute hoje em estigmas diversos

normalmente aponta portanto eacute que o problema ou o defeito estaacute na obra de

Joyce levando em conta esse procedimento normativo de interpretaccedilatildeo e de

julgamento e critica da literatura O que propomos eacute que o problema esteja

talvez no molde

CAPIacuteTULO I

WAKE EM PAUTA

31

1 Algo parecido com nada

A recepccedilatildeo negativa ou perplexa diante de Finnegans wake como vimos

foi ampla a ponto de certa maacute reputaccedilatildeo ultrapassar o teste do tempo permitindo

que sobrevivessem estigmas relacionados agrave obra ateacute os dias de hoje causando

ranccedilo mesmo entre literatos e afastando possiacuteveis leitores por entre as deacutecadas

Ulysses foi um (anti)romance aclamado ainda que tambeacutem tenha tido uma

recepccedilatildeo controversa e resultado poucos anos depois de sua publicaccedilatildeo em

uma seacuterie de processos contra Joyce e na proibiccedilatildeo de sua circulaccedilatildeo nos

Estados Unidos e no Reino Unido sob a acusaccedilatildeo (hoje risiacutevel) de conter

pornografia Tambeacutem significou uma reviravolta naquilo a partir de que se definia

mesmo um ldquoromancerdquo suscitando hesitaccedilatildeo impaciecircncia e reprovaccedilatildeo mas

acabou por selar a fama de Joyce em vida traduzida inclusive em alguma

seguranccedila financeira mesmo que temporaacuteria

32

No caso de Finnegans wake no entanto a sua fama paradoxalmente foi

o motivo de seu relativo ostracismo Quando jaacute estava viuacuteva Nora Barnacle que

natildeo se interessava tanto por literatura e natildeo se sentia exatamente atraiacuteda pela

convivecircncia com artistas tampouco por conversas literaacuterias aleacutem de

eventualmente deixar Joyce magoado por natildeo ler o que ele escrevia chegou a

perguntar a Maria Jolas ldquoPor que falam tanto no Ulysses O Finnegans wake eacute

o livro importante Quando eacute que vocecirc e Eugene vatildeo escrever sobre elerdquo

(ELLMANN 1989 p 912) Como eacute sabido ateacute mesmo contemporacircneos

entusiastas da obra joyciana que natildeo lhe poupavam elogios tiveram opiniotildees

controversas a respeito da obra de maacutexima radicalidade na qual Joyce teria

conseguido engendrar uma inovaccedilatildeo tanto formal quanto de conteuacutedo ainda

maiores do que em suas produccedilotildees anteriores

Seu irmatildeo mais novo Stanislaus Joyce (1884-1955) com quem mantinha

contato e se correspondia mesmo com as constantes mudanccedilas de residecircncia

entre paiacuteses escreveu-lhe em 1924 dizendo que havia lido ldquoseu romance ainda

sem nome na transatlantic reviewrdquo (Ibid p 712) Reitera que em geral gosta

muito do predecessor Ulysses ainda que natildeo tenha paciecircncia nem humor para

alguns trechos mas aponta que haacute uma ou outra parte ldquoinesperadamente ternardquo

e comovente Sobre o Finnegans wake no entanto a impressatildeo eacute outra e lhe

parece que muitos agora o elogiam por bajulaccedilatildeo deixando Joyce mimado

demais Cita um artigo de Ford Madox Ford cuja leitura foi indicada a ele pelo

irmatildeo em que Ford sugere que se encare o Work in progress ldquocomo um ritmo

nonsense e que o leitor deveria abandonar-se ao seu balanccedilordquo No entanto

Stanislaus natildeo parece se convencer ldquoTenho certeza embora o artigo pareccedila ter

a sua aprovaccedilatildeo de que ele fala sem saber o que dizrdquo (Ibid p 713) Por sua

vez afirma que natildeo entendeu muito do que leu tampouco se interessou

verdadeiramente Citando a publicaccedilatildeo de Herbert Gorman James Joyce The

first forty years (1924) que atribui a Joyce ldquoa uacuteltima palavra em literatura

modernardquo elucubra que isso talvez signifique algo mais literal e escatoloacutegico

para a literatura

33

Pode ser a uacuteltima palavra noutro sentido a insensata erracircncia da literatura antes de sua extinccedilatildeo final Natildeo que eu imagine que a literatura vaacute morrer algum dia enquanto os homens falarem e escreverem Mas podem cessar de ler ou pelo menos de ler tais coisas Eu de minha parte natildeo leria mais que um paraacutegrafo daquilo se natildeo conhecesse vocecirc () Por que vocecirc continua inteligiacutevel e sincero nos versos Se a literatura deve se desenvolver ao longo das linhas de sua obra mais recente ela certamente se tornaraacute como Shakespeare aludiu haacute seacuteculos passados algo parecido com nada (Ibid pp 712-713)

Aleacutem da jaacute exposta incompreensatildeo eou desinteresse que os excertos de

Finnegans wake causaram nos leitores mesmo naqueles que eram proacuteximos de

James Joyce e que jaacute nutriam admiraccedilatildeo por seu trabalho o que nos chama a

atenccedilatildeo eacute a reflexatildeo direta de Stanislaus mdash que era assim como o irmatildeo mais

velho um literato mantinha anotaccedilotildees sobre literatura e arte e escreveu trecircs

livros sobre Joyce Dublin e literatura dois deles publicados postumamente mdash

ao deparar-se com a existecircncia daquele texto sobre o proacuteprio destino da

literatura A maneira como ele enxerga a radicalidade de Finnegans wake lhe diz

que se ela passasse a ser constituiacuteda cada vez mais por obras como essa

poderia ter a sua existecircncia ameaccedilada ou ao menos os seus pilares fortemente

balanccedilados Levantando a hipoacutetese de que o nuacutemero de leitores diminuiria cada

vez mais atribui a culpa da ldquotendecircncia ao nadardquo ao proacuteprio texto afastando as

pessoas por sua aridez Natildeo se trata simplesmente de uma mudanccedila no

entendimento de gecircnero nem de inovaccedilotildees estruturais e formais (que

demonstrariam uma contribuiccedilatildeo ou uma destruiccedilatildeo parcial ainda dentro da

literatura) de alguma maneira Finnegans wake ou acabaria com a literatura ou

ficaria agrave margem dela

Joyce poreacutem tinha a consciecircncia de que seu projeto inevitavelmente

envolvia um caraacuteter em algum niacutevel obscuro ou embaccedilado certamente de difiacutecil

compreensatildeo imediata mas confiava com algum otimismo na possibilidade de

que os leitores atravessariam as dificuldades do texto e admirariam o que ele

sistematizou Dizia claramente que ldquoo mundo da noite natildeo pode ser representado

na linguagem diurnardquo e ldquoPara Claud Sykes insistiu ldquoEacute tudo tatildeo simples Se

algueacutem natildeo entende uma passagem tudo o que precisa eacute ler em voz altardquo (Ibid

p 729)

34

Natildeo parecia concordar portanto com a preocupaccedilatildeo que alguns lhe

expressavam a respeito do caraacuteter ou mais ou menos literaacuterio de sua obra Ao

contraacuterio parecia entender que sim era uma obra muitiacutessimo distinta mas que

trazia consigo algo de grandioso por si e em si natildeo necessariamente grandioso

pela razatildeo de quebrar paradigmas muito menos o iniacutecio de uma ldquonovardquo literatura

toda pautada em seu estilo Augusto de Campos em ldquoOutras palavras sobre

Finnegans wakerdquo aponta a reaccedilatildeo do escritor irlandecircs a essas provavelmente

inesperadas criacuteticas de seu digamos ex-admirador (termo um tanto forte poreacutem

relativamente fiel ao que aconteceu) Ezra Pound bem como sua defesa diante

das acusaccedilotildees de ininteligibilidade

Mas Joyce natildeo se deixou desencorajar pelas objeccedilotildees de Pound (ao qual replicou obliquamente com trocadilhos e alusotildees no proacuteprio Finnegans wake) ldquoEacute possiacutevel que Pound tenha razatildeordquo escreveu a Harriet Shaw Weaver em 1927 ldquomas eu natildeo posso voltar atraacutesrdquo Como esclarece Forrest Read o escritor se defendia das acusaccedilotildees de obscuridade que lhe faziam agrave eacutepoca argumentando ldquoUma grande parte da existecircncia dos seres humanos se passa em um estado que natildeo pode ser tornado sensiacutevel pelo uso da linguagem lsquode olhos abertosrdquo uma gramaacutetica preacute-fabricada um enredo linear (CAMPOS 2001 p 195)

Por mais complexo que seja o texto de Joyce e por mais controversa que

tenha sido a sua recepccedilatildeo o supracitado guia A skeleton key de Joseph

Campbell e Henry Morton Robinson foi publicado apenas cinco anos depois da

publicaccedilatildeo integral de Finnegans wake demonstrando leitura de consideraacutevel

aprofundamento vertical e a percepccedilatildeo de inuacutemeras referecircncias presentes na

obra em um periacuteodo relativamente curto de tempo Na introduccedilatildeo denominada

ldquoIntroduccedilatildeo a um assunto estranhordquo (que foi traduzida para o portuguecircs por

Augusto de Campos e publicada na ediccedilatildeo mais recente do Panaroma do

Finnegans wake de 2001) os autores de A skeleton key alertam o leitor ingecircnuo

ou temeroso a respeito do que se encontraraacute na obra magna de Joyce sem

negar a existecircncia de algumas dificuldades nesse percurso Apontam

explicitamente para o terreno aacuterido com que se defrontaraacute o leitor conseguem

fazecirc-lo poreacutem de forma que apesar da honestidade ao dizer e ao pesar os

35

obstaacuteculos prevaleccedila um tom positivo e mesmo uma espeacutecie de convite direto

a essa jornada literaacuteria incomparaacutevel sobre a qual escolheram desenvolver um

estudo de alguma maneira democratizador

O vasto desiacutegnio e a intrincada estrutura de Finnegans wake datildeo ao livro um aspecto proibitivo de impenetrabiidade Agrave primeira vista parecemo-nos defrontar com uma selva densa e enganosa iacutenvia e recoberta por luxuriantes perversidades de forma e linguagem () Empreita a imaginaccedilatildeo exige disciplina e tenacidade dos que querem segui-lo na aventura Contudo algumas das dificuldades desaparecem desde que um leitor bem disposto encontre alguns pontos cardeais e acerte o rumo Entatildeo o imenso mapa de Finnegans wake comeccedila lentamente a desdobrar-se emergem as figuras e os motivos os temas tornam-se reconheciacuteveis e o ouvido vai-se familiarizando cada vez mais com o vocabulaacuterio de Joyce Natildeo se espere alcanccedilar um entendimento completo num primeiro e aacutevido embate na verdade pode-se natildeo lograacute-lo nunca (CAMPBELL ROBINSON 2001 p 152)

Joyce ouviu mais de uma vez que sua obra final natildeo era ou natildeo fazia parte

da literatura Pelo menos duas dessas ocorrecircncias estatildeo documentadas em sua

biografia como duas ocasiotildees em que o parecer foi quase idecircntico A primeira

foi na leitura de um fragmento frente a um grupo pequeno de amigos em que

tendo sua opiniatildeo requisitada por Joyce a irlandesa Mary Colum respondeu

ldquoJoyce eu acho que isso estaacute fora da literaturardquo (ELLMANN 1989 p 782) Na

outra ocasiatildeo figura uma inglesa que nos permanece anocircnima Ela ouviu Joyce

lendo um trecho e supostamente disse apenas ldquoIsso natildeo eacute literaturardquo Segundo

registra o bioacutegrafo Richard Ellmann Joyce respondeu ldquoFoirdquo ldquoquerendo dizer que

fora enquanto ela escutavardquo (Ibid p 865)

O problema natildeo estaacute no texto de James Joyce mas no que se espera de

um texto literaacuterio Propor uma nova focircrma no entanto parece-nos inuacutetil porque

natildeo estamos pensando somente no que abarcaria Finnegans wake afinal que

formatos abarcam a literatura Se inventaacutessemos os moldes sob medida apoacutes

uma extensa pesquisa e numerosas releituras natildeo teriacuteamos nada aleacutem de um

molde natildeo para ldquoliteraturardquo mas para o Wake Quando nos propuseacutessemos a ler

qualquer outra obra literaacuteria eacute certo que nos deparariacuteamos com outras

36

dificuldades e entatildeo o molde jaacute estaria inutilizado novamente Tentaremos

entatildeo operar a leitura que natildeo busca generalidades ou padrotildees nem constroacutei

guias idealmente universais Eacute claro que produzindo uma dissertaccedilatildeo e

investigando a relaccedilatildeo entre o que a teoria espera do livro e o que o livro entrega

agrave teoria esse intercacircmbio seraacute em alguma medida necessaacuterio no entanto o

ponto central natildeo eacute ler o Wake a partir de alguma teoria ou a partir de algueacutem O

meacutetodo aqui parte do lanccedilar-se ao texto ler Finnegans wake Ponto Meacutetodo

antimetoacutedico

Conta-se que James Joyce disse ldquocom um sorriso cacircndidordquo para o poeta

e ativista americano Max Eastman (1883-1969) ldquoA exigecircncia que faccedilo para o

meu leitor eacute que ele devote sua vida inteira a ler meus livrosrdquo (ELLMANN 1989

p 865) Relevando-se o possiacutevel exagero da expressatildeo ldquodevote sua vida inteirardquo

ainda que se referisse certamente agrave crescente complexidade que suas obras

apresentavam Joyce gostava mais de saber que era lido do que de

necessariamente ser elogiado ainda que a incompreensatildeo o desanimasse (e

que ser lido por mais pessoas significasse um risco maior de ser

incompreendido) Outra frase ainda mais hiperboacutelica eacute a famosa definiccedilatildeo de

leitor ideal que seja aquele que ldquosofra de uma insocircnia idealrdquo (Id)

Um possiacutevel pedantismo por traacutes do tom jocoso eacute anulado por diversas

outras declaraccedilotildees como as que se referem a Finnegans wake como tatildeo

somente um livro divertido mdash o oposto do que a famosa declaraccedilatildeo de que foi

escrito ldquopara manter os criacuteticos ocupados por trezentos anosrdquo (Id) ldquoEu sou

apenas um palhaccedilo irlandecircs um grande piadista do universordquo disse certa vez

ao escritor francecircs Jacques Mercanton (1910-1996) e respondendo a uma

pergunta de Terence White Gervais (1913-1968) sobre o Wake ter niacuteveis de

significado disse ldquoNatildeo natildeo Eacute feito para fazer vocecirc rirrdquo (Id) Qualquer que seja

a funccedilatildeo proeminente no Wake seja a de divertir seja a de ocupar criacuteticos mdash ou

ambas mdash parece-nos absolutamente incogitaacutevel que qualquer autor que

trabalhe por anos a fio em uma obra prefira natildeo ser lido e eacute acima de tudo o

compromisso de lermos Finnegans wake aquilo com que nos comprometemos

aqui

37

O ponto central dessa tentativa se desenlaccedila em torno da questatildeo do

tempo tomando-o natildeo apenas como instacircncia literaacuteria mas tambeacutem filosoacutefica

perpassando discussotildees da metafiacutesica de diversas eacutepocas tambeacutem sem a

concentraccedilatildeo no conceito de tempo para algum filoacutesofo especiacutefico A escolha

desse tema se justifica facilmente para aqueles que sabem um pouco sobre

como Joyce concebeu sua uacuteltima obra sabendo da relevacircncia da filosofia do

italiano Giambattista Vico em sua construccedilatildeo com a ideia de temporalidade

constituiacuteda pela divisatildeo de trecircs Idades mais o ricorso bem como sobre a

problemaacutetica de se entender a cronologia da narrativa (ainda veremos se eacute

possiacutevel falar em ldquocronologiardquo e mesmo em ldquonarrativardquo) Ainda assim

pretendemos investigar para aleacutem do paradigma de Vico talvez vislumbrando o

que impede afinal que Finnegans wake seja encarado como qualquer outra

obra literaacuteria ou apenas como mais uma obra literaacuteria difiacutecil como outras

tambeacutem o satildeo Note-se aqui a diferenccedila entre um livro qualquer e um livro como

qualquer outro natildeo eacute que o desejado seja considerar Finnegans wake como um

livro qualquer eacute claro Mas que seja considerado pelo menos legiacutevel e divertido

como Joyce o considerou e tantos leitores tambeacutem o consideram ao inveacutes de se

perpetuar como um mito de livro que nunca eacute lido e pior como um livro

defeituoso jaacute que natildeo facilmente compreendido segundo os moldes da teoria

literaacuteria O que percebemos eacute que talvez ele seja considerado de difiacutecil

compreensatildeo especialmente nos casos em que o leitor o encara tendo uma seacuterie

de expectativas relacionadas a uma visatildeo tradicional de literatura assim como

acontece tambeacutem de uma outra maneira com Ulysses

Se confirmamos a hipoacutetese de que seja possiacutevel e ateacute mesmo desejaacutevel

uma ruptura dessas expectativas ou ao menos uma maior libertaccedilatildeo delas pode

ser que se torne finalmente possiacutevel que mais leitores ganhem um novo desafio

de leitura que poderatildeo constatar como efetivamente repleto de fruiccedilatildeo natildeo

apenas de operaccedilatildeo cognitiva casmurra e tediosa A isso se combina a ideia de

literatura concebida por Maurice Blanchot evocada em Escritura do retorno

Mallarmeacute Joyce e o meta-signo a respeito dela como experiecircncia-limite ldquoLer

no espaccedilo literaacuterio blanchotiano eacute compreender as variaccedilotildees de um devir mdash

sempre futuro do leitor mdash como uma vicissitude do tempo que eacute a proacutepria obrardquo

38

(EYBEN 2012 p 242) Nessa concepccedilatildeo a leitura eacute ldquouma escritura

interminaacutevel vertigem da noccedilatildeo de espaccedilordquo (Ibid p 243) A leitura com a qual

afirmamos assumir um compromisso eacute inscrita nesse entendimento escritural

em que ler natildeo eacute simplesmente decodificar evidentemente mas tambeacutem natildeo eacute

realizar uma hermenecircutica uma busca por verdade do texto e nem uma

facilitaccedilatildeo do desbravamento do texto joyciano que se apresenta de uma forma

especiacutefica a cada leitora mdash e inclusive a cada leitura no sentido de fazer-se

sempre novo

2 Sui generis

O questionamento sobre o gecircnero que muito recorrentemente se impotildee

constitui uma problemaacutetica jaacute levantada desde Ulysses e seu tal caraacuteter de

antirromance15 A dificuldade de inserir Finnegans wake em uma definiccedilatildeo desse

tipo eacute absolutamente clara e redundantemente lembrada O ponto mais perigoso

das investigaccedilotildees dessa natureza eacute o fato de que esse alhures inominado em

que se insere a obra final joyciana pode induzir o candidato a leitor agrave armadilha

de rejeitaacute-la ou diminui-la pelo que ela tem de avesso agraves possibilidades de

categorizaccedilatildeo mdash assumindo absurdamente a teoria como a entidade regente

superior agrave mateacuteria sobre a qual se teoriza Com esse entendimento natildeo raro

consideram-se as obras meros objetos que se natildeo se sujeitam a alguma focircrma

e nem satildeo capazes de gerar novas categorias devem por essa loacutegica ter algo

de mal estruturado ou tecircm melhor destino sendo ignoradas Isso

ocasionalmente se daacute entre teoacutericos da literatura de forma relativamente

anaacuteloga ao que acontece quando gramaacuteticos consideram o conjunto de regras

da gramaacutetica normativa de um idioma como aquilo que rege e direciona o que

deve ser levado em conta na liacutengua ignorando que esse conjunto de regras eacute

na verdade obviamente restrito e derivado em percurso convencional da mateacuteria

15 O termo que aqui usamos pela segunda vez (a primeira com o prefixo entre parecircnteses) parece ser posterior a Joyce Deriva de anti-roman (francecircs)anti-novel (inglecircs) De qualquer maneira soacute sintetiza o que jaacute se dizia sobre o romance ter acabado com Ulysses Joyce natildeo deve ter sido o primeiro autor a suscitar esse tipo de comentaacuterio o mesmo se disse de outras maneiras de Gustave Flaubert e Henry James

39

que o precede Sendo uma liacutengua algo mais amplo variado e mutaacutevel do que a

gramaacutetica normativa jamais conseguiraacute abarcar mesmo em seus mais

longamente descritivos iacutempetos eacute uma insanidade sobrepor a ela a

normatizaccedilatildeo assim como tambeacutem eacute insensato desconsiderar Finnegans wake

pelo que tem de inclassificaacutevel mdash ou dir-se-ia de indomaacutevel incompreensiacutevel

inacessiacutevel mdash algo que muito frequentemente se deu desde o iniacutecio da

publicaccedilatildeo de seus fragmentos como Work in progress

Enquanto Ulysses eacute o livro do dia Finnegans wake eacute o livro da noite com

sua linguagem oniacuterica permeada de ambiguidades e incertezas e seus

caminhos tortuosos Como Joyce dizia ldquoEacute natural que as coisas natildeo sejam tatildeo

claras agrave noite natildeo eacuterdquo (CAMPOS 2001 p 196) Como uma consequecircncia

inevitaacutevel classificar o Wake em um gecircnero literaacuterio mostra-se um desafio mdash ou

talvez um esforccedilo dispensaacutevel que nada acrescentaria agrave compreensatildeo da obra

Haroldo de Campos lanccedila possibilidades criativas de referecircncia classificatoacuteria

com os termos ldquoprosapoesiardquo (CAMPOS 2001 p 29) e ldquoromance-riordquo (Id p 27)

tambeacutem usado por Donaldo Schuumller ldquoPor flores e por floras por faunos e por

faunas por vidas e por vias flui Finnegans wake o romance e o rio o romance-

riordquo (SCHUumlLER 2004 p 15) (Eacute curioso notar uma outra possibilidade de grafia

para esse uacuteltimo termo inventado considerando que a opccedilatildeo pela duplicaccedilatildeo da

letra ldquorrdquo poderia remeter mais imediatamente agrave bela palavra que abre o fragmento

nuacutemero 1 de Finnegans wake optando por como Joyce fazia quase sempre

dispensar o uso de hifens mdash riverrun ou riocorrente na traduccedilatildeo feita por

Augusto de Campos e rolarriuanna na de Schuumller)

Respostas a essa problemaacutetica satildeo dadas no proacuteprio texto de James

Joyce mdash e devem ser entendidas sempre nesse mesmo lugar Uma possiacutevel

afirmaccedilatildeo concisa a respeito de tantos questionamentos entre eles o de gecircnero

o de literatura e o de cacircnone estaacute em uma frase relativamente curta ldquothis is nat

language at any sinse of the worldrdquo (FW 8312)16 Joyce condensou aiacute tanto a

afirmaccedilatildeo de que ldquoistordquo natildeo eacute linguagem em nenhum sentido do termo quanto a

de que natildeo eacute linguagem em parte nenhuma do mundo e ainda de que eacute

16 ldquoIsso eacute linguagem-noite em qualquer sentido do univerbordquo

40

linguagem noturna com ldquonatrdquo lembrando ldquonoiterdquo night (inglecircs) nacht (alematildeo)

ldquoworldrdquo entre palavra e mundo foi genialmente traduzido por Donaldo Schuumller

como ldquouniverbordquo Confirma-se assim tanto o estatuto noturno que acompanha

uma incerteza da escuridatildeo mdash vemos significantes como vemos silhuetas e

sombras que nos situam gerando incerteza mdash quanto a temporalidade da noite

que se resvala em madrugada indefinida que eacute a vastidatildeo do breu em que tanto

espaccedilo quanto tempo satildeo dotados dessa qualidade vasta e ao mesmo tempo

fosca confirma-se ainda a linguagem que natildeo eacute a linguagem que se espera em

nenhum sentido do univerbo o proacuteprio livro se afirma como uma suposta natildeo-

linguagem que eacute simplesmente uma linguagem de caraacuteter proacuteprio afirmado

como algo noturno que se contamina e se faz pelas possibilidades de labirintos

oniacutericos

De forma geral esse desprezo do cacircnone ou espeacutecie de pouco caso com

Finnegans wake eacute carregado de conclusotildees precipitadas e diga-se desistecircncias

raacutepidas Os leitores minguam como se o texto natildeo merecesse atenccedilatildeo natildeo

merecesse leitura Hipoacuteteses de que seja uma grande piada ainda se mantecircm

Como afirmaram em 1944 os pioneiros Joseph Campbell e Henry Morton

Robinson quando Finnegans wake foi publicado integralmente isto eacute cinco

anos antes

lsquoWhat does it all meanrsquo rsquoWhy should we bother about a book so hard to readrsquo were questions quite generally asked Even normally responsive readers dismissed the book as a perverse triumph of the unintelligible17 (CAMPBELL ROBINSON 2005 p xxi)

No entanto ainda que somente mais de vinte anos depois o estudioso norte-

americano tambeacutem pioneiro na incursatildeo profunda ao Finnegans wake William

York Tindall afirma ldquoEverything in the Wake has meaning definite limited by a

frame or immediate context and discoverable Our danger (hellip) Is too much

17 ldquolsquoO que isso tudo significarsquo lsquoPor que deveriacuteamos nos ocupar com um livro tatildeo difiacutecil de ser lidorsquo eram perguntas feitas frequentemente Ateacute mesmo os leitores normalmente interessados desprezaram o livro como um triunfo perverso do ininteligiacutevelrdquo (CAMPBELL ROBINSON 2005 p xxi)

41

ingenuityrdquo18 (TINDALL 1969 p 22) James Joyce engendra uma obra calcada

em racionalidade e enquadramento meticuloso de cada detalhe em uma

estrutura com criatividade ininterrupta e esse controle eacute visiacutevel ainda que resulte

em uma obra inclassificaacutevel e ainda que o resultado gere comentaacuterios que a

relacionem ao completo caos e a uma ideia de puro nonsense O que Tindall

aponta como o risco maior natildeo eacute note-se que o leitor talvez natildeo entenda o livro

ou natildeo veja alguma referecircncia mas sim que seja ingecircnuo diante da existecircncia

de possibilidades no texto e o tome por puro fingimento de quebra-cabeccedila

As dificuldades satildeo evidentes o susto ou a antipatia causada pelo Wake

ultrapassou o passar dos anos Mesmo os leitores mais proacuteximos de entendecirc-lo

tiveram suas dificuldades resistecircncias e uma infinidade de criacuteticas diante dele

Como ler entatildeo hoje uma obra como Finnegans wake Estaacute aiacute para ser lida ou

para ser rejeitada tida como uma piada para manter criacuteticos ocupados ou como

exemplo do funcionamento da linguagem em uma mente esquizoide Exige-nos

uma postura diferenciada Estaacute dentro ou fora da literatura mdash ou eacute na verdade

sua ameaccedila

Haacute talvez um grande conjunto de duas maneiras grosso modo de se

encarar o texto literaacuterio ou uma obra de arte qualquer primeiro sentindo que

conseguimos extrair uma finalizaccedilatildeo de nossa leitura ou ao contraacuterio na

segunda maneira sentimo-nos grave e verdadeiramente impotentes ao sequer

cogitar essa possibilidade De forma geral haveria assim uma bifurcaccedilatildeo de

duas distintas e abrangentes escolas ou caminhos sendo aquela que daacute uma

interpretaccedilatildeo fixa considerada correta ou superior a vertente mais obsoleta Os

perigos da segunda no entanto satildeo tambeacutem apontados com frequecircncia natildeo se

pode dizer tudo e qualquer coisa dizem O receio de uma espeacutecie de perigosa

autotelia que desestabiliza o mais tradicional corpus hermenecircutico se instala

entre as duas extremidades bifurcadas pontas de diferentes abordagens que

natildeo somente lidam com o texto de maneiras antagocircnicas mas ainda e por isso

mesmo partem de noccedilotildees igualmente opostas da proacutepria ontologia de uma obra

18 Traduccedilatildeo livre do trecho de Tindall ldquoTudo no Wake tem um significado definido limitado por uma moldura ou contexto imediato e passiacutevel de ser descoberto Nosso risco eacute o excesso de ingenuidaderdquo

42

de arte Sendo a primeira vertente bastante autoexplicativa esgotando-se

facilmente qualquer tentativa de discorrer sobre ela poderiacuteamos abordar direto

o problema indicado na segunda de que tudo poderia ser dito na abertura

absoluta e desgovernada que descentraliza as interpretaccedilotildees da obra em uma

descentralizaccedilatildeo e horizontalidade total (e vejamos se eacute isso mesmo o que

ocorre) considerando no caso o texto literaacuterio e especificamente o Wake

aquele que poderia ser acusado de ser um dos textos mais anaacuterquicos e

ameaccediladores do seacuteculo XX

Em primeiro lugar dir-se-ia que o texto natildeo se termina

O texto que natildeo se termina significa tanto um texto que natildeo acaba quanto

um texto que noacutes natildeo terminamos de ler e ainda um texto que natildeo finalizamos

sendo impossiacutevel dar-lhe qualquer ultimato interpretativo Isso natildeo se reduz a

um caraacuteter interminaacutevel condicionado pela leitura uacutenica que cada leitor com seu

aparato psicoloacutegico e experiecircncia que lhe satildeo inerentes executa ao se deparar

com o texto Tampouco diz respeito somente a uma seacuterie de releituras feitas em

diferentes momentos histoacutericos de modo que Machado de Assis tenha sido

reinterpretado com o passar do tempo etc A infinitude de que se trata aqui natildeo

se refere a esse tipo de desdobramento ainda que natildeo os anule nem os negue

como processos naturais da presenccedila do texto em diferentes eacutepocas e sob

diferentes olhos

Se natildeo eacute entatildeo um desses fatores externos o que insere o texto no tempo

da infinitude poderiacuteamos inferir que seja assim alguma caracteriacutestica interna

No entanto faltam-nos dados mdash ou pior evidecircncias mdash de que seja possiacutevel a

separaccedilatildeo como se faria digamos entre textos primaacuterios e secundaacuterios ou

qualquer procedimento semelhante Soacute que isso potencialmente nos colocaria

sob o constrangimento de admitir que natildeo haacute obras de arte pois elas estariam

por toda a parte potencialmente tudo conteria a infinitude Tudo seria arte como

lidar com essa possibilidade que parece destruir as fronteiras de definiccedilatildeo entre

aquilo que eacute e o que natildeo eacute um objeto de apreciaccedilatildeo ou de estudo

43

Desfaccedilamos alguns passos Se natildeo considerarmos o texto em sua

projeccedilatildeo ao infinito isto eacute se admitirmos entatildeo que ele desemboca em uma

interpretaccedilatildeo e assim deteacutem atinente uma exegese fechada somos obrigados

a exploraacute-lo em busca de sua verdade Cada leitura investigativa seria como um

caminho para fora da caverna platocircnica estariacuteamos cada vez mais proacuteximos das

ideias Da mesma maneira que o caminho de acesso agrave episteacuteme natildeo rejeita o

mundo do familiar e da doacutexa mas em verdade confronta-se com as sombras

para nelas alcanccedilar a luz o contato com o texto de uma maneira insistente e

atenta desvelaria eventualmente sua verdade a despeito de qualquer aparato

teoacuterico-criacutetico com que qualquer leitor pudesse contar nessa varredura Nesse

sentido uma experiecircncia com o texto seria suficiente

Sabemos no entanto que interpretaccedilotildees unas natildeo nascem assim De

forma geral vecircm de fora para dentro de cima para baixo de maneira imposta e

consagrada por convenccedilotildees ou argumentos de autoridade A experiecircncia com o

texto traz agrave tona em geral alguns poucos consensos uma dose de subjetividade

e havendo consonacircncia teoacuterico-critica eventuais conclusotildees convergentes

quanto aos aspectos mais superficiais do texto em especial aqueles

relacionados agraves categorias mais estanques da forma Ainda assim nem sempre

haacute consenso mesmo nesse campo Gecircneros textuais podem parecer categorias

fortemente imisciacuteveis mas frequentemente natildeo satildeo facilmente definidas

Finnegans wake eacute justamente uma obra cujo gecircnero jamais foi definido mdash

ou (in)definido como sui generis mdash que sequer traz consigo roacutetulo evidente de

prosa ou de poesia Augusto de Campos expressa esse dilema de maneira

sinteacutetica com os neologismos ldquoprosoemardquo ldquoromance-riordquo ldquoromancepoemardquo

Esse noacute se alastra considerando que Wake natildeo se encaixa em um gecircnero uma

seacuterie de assunccedilotildees a seu respeito natildeo pode ser feita tatildeo facilmente e

possivelmente caem por terra A fuga de um conceito fechado assim em efeito

dominoacute acaba por impossibilitar uma seacuterie de inferecircncias que dele naturalmente

decorreriam assim como o contraacuterio tambeacutem se daacute com a fixaccedilatildeo de uma

categoria que consequentemente baliza tantas outras de imediato seja a

respeito da extensatildeo da forma da qualidade das potencialidades sonoras e

semacircnticas etc Se um texto eacute composto de versos eacute certamente um poema

44

tem estrofes possivelmente um esquema de rimas controlado se for um soneto

temos ainda mais inferecircncias prontas para serem testadas inclusive a respeito

do conteuacutedo se eacute conto eacute menor do que se for romance e assim por diante

Um texto inclassificaacutevel se apresenta dessa maneira jaacute de partida como

um problema em si uma fonte de inquietaccedilatildeo interminaacutevel ou que natildeo cessa

tatildeo rapidamente Mateacuteria para manter criacuteticos ocupados por anos como

profetizou o proacuteprio Joyce Corre o risco certamente de ser condenado para

fora da literatura mdash por natildeo caber nela natildeo ser contemplado em suas barreiras

Se o esquema existente natildeo o conteacutem comumente se supotildee a existecircncia de

defeito no texto natildeo uma possiacutevel limitaccedilatildeo das categorias que se consolidaram

para sua interpretaccedilatildeo O conservadorismo expulsa o que ameaccedila a tradiccedilatildeo por

preferir deixar de lado uma obra a implodir um sistema que abarca tantas outras

com seguranccedila e conforto Eacute instaurada uma problemaacutetica mesmo a partir do

ponto de confronto que eacute uma leitura na medida em que o leitor se espanta

diante do texto literaacuterio como discorre Piero Eyben em Escritura do retorno

Antes o texto joyceano torna-se pela falta repulsivo em sua intransitividade Natildeo haacute leitor que se veja nele identificado como completude Sua estrutura inacabada faz da verdade identitaacuteria uma falaacutecia De modo que o desvio o reveacutes de sua leitura nos leva a uma significacircncia zeroloacutegica na qual todo sujeito se anula e torna-se apenas membro da obra que este interpreta como significantes () A linguagem do inacabamento seria uma linguagem da falta pois coloca no caput o sem-cabeccedila (EYBEN 2012 p 610)

Rejeita-se o texto por saber que lhe impor uma interpretaccedilatildeo qualquer

seria gritantemente descabido Uma leitura de Finnegans wake que busque e

defina sua trama por exemplo encaixando no tempo no espaccedilo nos

personagens (protagonistas antagonistas) nos narradores e em todas as

categorias da narrativa uma seacuterie de respostas imutaacuteveis necessariamente

berraria sua artificialidade Para que se leia o texto como eacute sem distorcecirc-lo com

planificaccedilotildees simplificaccedilotildees e cerceamentos deve-se despi-lo das forccedilas que o

comprimem Somente assim se pode ler o texto como ele se apresenta

45

respeitando sua integridade Deve-se entatildeo ir agrave leitura esperando nada menos

que o infinito

Lembramos aqui o que diz Jacques Derrida em ldquoDuas palavras por Joycerdquo

Eacute com este sentimento poderia dizer com este ressentimento que devo estar lendo Joyce haacute muito tempo () Mas natildeo sei se podemos dizer ldquoeu leio Joycerdquo como acabei de fazer Naturalmente soacute podemos ler Joyce quer saibamos disto ou natildeo Eacute a sua forccedila Mas os enunciados do tipo ldquoleio Joycerdquo ldquoleiam Joycerdquo ldquovocecirc jaacute leu Joycerdquo sempre me pareceram cocircmicos irresistivelmente (DERRIDA 1992 p 21)

Nessa mesma palestra de 1982 Derrida tambeacutem faz uma ldquosimplificaccedilatildeo

descabidardquo em duas grandezas Refere-se agraves maneiras de o autor deixar-se nos

arquivos de sua obra apagando-se quanto mais ela se faccedila presente Apesar de

ter sido proposto aqui o exame da outra ponta dessa relaccedilatildeo mdash a do leitor mdash a

primeira atitude de autor descrita por Derrida pode ser vista como anaacuteloga agrave

maneira de leitura que expusemos ligada a certezas e fincada em uma ideia de

verdade textual consiste naquele que ldquoescreve para darrdquo de maneira que a obra

se decirc a ponto de poder ser valorada ldquogostaacutevelrdquo ldquoamaacutevelrdquo (Ibid pp 19-20) e

diriacuteamos ainda acessiacutevel e possiacutevel A segunda atitude que Jacques Derrida

considera semelhante agrave de Joyce eacute a de hipermneacutesia em vez de acessarmos

uma materialidade pura de texto no esquecimento do autor vivemos em funccedilatildeo

de sua memoacuteria em meio a sua presenccedila

Se o texto se nos apresenta dessa maneira precisamos estar dispostos

a entender que ele nos escapa Fugidio se transforma em espectro Sair da

caverna natildeo eacute ir aleacutem dela nem deixaacute-la para traacutes no percurso o caminho

platocircnico eacute um modo de estar que adentra mais como o movimento que

pretende mergulhar no texto literaacuterio natildeo se trata de ultrapassaacute-lo mas de estar

cada vez mais inteiramente nele Nesse sentido confessa-nos Derrida ldquoSim a

cada vez que escrevo e mesmo nas coisas da academia um fantasma de Joyce

estaacute presente em minha abordagemrdquo (Ibid p 23) O entendimento de Jacques

Derrida de um caraacuteter espectral que ronde o texto atraveacutes da escritura eacute profiacutecuo

46

em uma seacuterie de anaacutelises aqui podemos ensaiar aproximaacute-lo de uma ideia de

temporalidade que pode ser retirada do proacuteprio Finnegans wake

3 Fluidez vida-morte

A mitologia egiacutepcia estaacute presente em quase todos os capiacutetulos de

Finnegans wake agraves vezes escondida entre nomes que assinalam muacuteltiplas

assinaturas mdash desfazendo portanto a proacutepria ideia de nome mdash- e engendrando

numerosas rasgaduras temporais No capiacutetulo 4 do livro I o ldquolivro dos paisrdquo

denominado por Campbell e Robinson ldquoHis demise and resurrectionrdquo o

desmantelamento dos nomes eacute especialmente profiacutecuo Em meio a isso

segundo Donaldo Schuumller ldquoO tempo cronoloacutegico se anula em favor de um tempo

natildeo medido por aparelhos tempo feito soacute de fluxos () Em julgamento estaacute

nossa cultura nossas certezas nosso vocabulaacuterio nossa maneira de dizer e de

narrarrdquo (2003 p 169) HCE eacute preso e logo o rio Nilo eacute evocado aproximando-o

de Osiacuteris logo torna-se personagem morto ldquoonce and for all out of plotty

existencerdquo (FW 7618) fora da ldquoexistecircncia narradardquo como aponta Schuumller

Podemos apontar aiacute uma espeacutecie de resumo de toda a literariedade de

Finnegans wake HCE eacute capturado e morre de certa forma para sempre se

morrer significa estar fora de uma certa narrativa natildeo estaraacute ausente poreacutem

por toda a eternidade O lugar onde jaz eacute construiacutedo por um arquiteto com nome

de cemiteacuterio parisiense Peurelachasse (Pegravere Lachaise) que condensa la peur

(medo em francecircs) e la chasse (a caccedila) pois natildeo eacute um natildeo-lugar dos mortos

ao contraacuterio a morte aqui eacute acontecimento que desemboca em diluacutevio que

retoma a forccedila vital O que seria um par de oposiccedilatildeo se (con)funde e tem sua

ambivalecircncia transformada (ou transtornada) vida e morte dia e noite paimatildee

e filho(a)(s) os irmatildeos Shem e Shaun (ao contraacuterio de oposiccedilotildees riacutegidas como

Caim e Abel Rocircmulo e Remo)

Como dissemos o capiacutetulo eacute rico em temporalidade despedaccedilada o

tempo eacute indicado de maneira antirrepresentativa sem que se possa calcular ou

mapear um momento a partir de suas referecircncias ldquoBest This wastohavebeen

47

underground heavenrdquo (FW 7633)19 Diferentes tempos verbais intercalados natildeo

somente plantam uma duacutevida mas efetivamente explicitam a impossibilidade de

definiccedilatildeo a fluidez entre os periacuteodos A morte mdash especialmente aquela que seraacute

seguida de ressureiccedilatildeo mdash perambula por presente passado e futuro ldquoBut abide

Zeitrsquos sumonserving rise afterfallrdquo (FW 787)20 Nesse excerto o tempo parece

ser espeacutecie de entidade burocraacutetica que controla o universo de Finnegans wake

garantindo que um ciclo seja cumprido A morte de Humphrey Chimpden

Earwicker bem como todos os seus corolaacuterios natildeo satildeo controlaacuteveis por seres

que controlem seu tempo e a sucessatildeo de acontecimentos de suas vidas o ciclo

mdash como nas disposiccedilotildees de Giambattista Vico mdash eacute inelutaacutevel e forccedila sua

continuidade a despeito das vontades Elucubraccedilotildees natildeo mudam as

necessidades do Zeit A fluidez eacute como a correnteza do rio que natildeo escolhe seu

direcionamento

Se frente ao texto um periacuteodo sequer puder ser lido de apenas duas

maneiras diferentes jaacute teriacuteamos aiacute dois textos inteiros tambeacutem completamente

distintos A semacircntica natildeo pode se encerrar a cada frase nem a cada termo

nem a cada trecho ou capiacutetulo ou seja o que for lemos o todo considerando que

todos os trechos estejam incessantemente interligados e interdependentes de

maneira que a totalidade do texto seja um organismo indissoluacutevel Quais as

chances assim de que um texto qualquer seja absolutamente riacutegido com

significados puramente literais que alcanccedilam seus alvos pontualmente sem

nenhuma borda nem fenda de significaccedilatildeo seja ele concebido como texto

literaacuterio desde o berccedilo ou natildeo

Em vez de concluir que haacute certos textos que rebeldes fogem das reacutedeas

do sistema literaacuterio e suas classificaccedilotildees determinantes tendemos muito mais a

enxergar que todo texto tem uma faiacutesca disseminativa dentro de si que

frequentemente eacute ignorada em leituras que o planificam em uma sequecircncia

palpaacutevel para as classificaccedilotildees agraves quais estamos acostumados que nos

aparecem como urgecircncias quando na verdade a urgecircncia eacute o proacuteprio texto Ele

demanda nossa leitura urge que nos deparemos com os textos como satildeo e que

19 ldquoBem Este subterracircneo foi-para-haver-de-ser-ceacuteu ()rdquo 20 ldquoMas aguardemos o requerimento do tempo despertar apoacutes-quedardquo

48

rejeitemos distorccedilotildees que parecem visotildees transluacutecidas e por isso nos mantecircm

confortaacuteveis O que o texto faz eacute nos tirar do conforto de nossa liacutengua e nos

lanccedilar a uma outra proacutepria dele mesmo se nos lanccedilamos agrave leitura sem buscar

categorias estanques podemos finalmente conseguir sair do que julgamos

concreto em direccedilatildeo ao que nos vem de espectral prismaacutetico ndash aquilo que natildeo

pode existir num tempo que natildeo seja o do porvir Qualquer presentificaccedilatildeo

estanque negaria essa situaccedilatildeo de promessa do futuro promessa que

permanece messianismo sem previsatildeo pois caso se concretize o porvir se

desmantela no cumprimento da promessa que eacute seu desaparecimento

Apaga-se por inteiro o suposto perigo de que no infinito qualquer coisa

que nada tem a ver com o texto possa ser dita ou acusaccedilatildeo da leviandade de

que assim tudo seja arte indiscriminadamente receios fraacutegeis e superficiais que

nos limitam a concepccedilotildees especiacuteficas de arte e nos afastam normativamente de

leituras que sejam um modo de estar no texto mdash e portanto efetivamente o

contraacuterio de sair dele ou de excedecirc-lo O problema na verdade reside em

subestimar as possibilidades de um texto muito mais do que em superestimar

qualquer rastro ou sombra do espectro escritural esvaindo-se aiacute a proacutepria

essecircncia do texto em troca de uma carapuccedila que o defina

Um porvir desfigurado e desfigurante faz do texto uma mateacuteria de

instabilidade nas matildeos do leitor O caraacuteter fantasmagoacuterico latente povoa a escrita

de escritura O caraacuteter espaccedilo-temporal do Wake nos leva para o caminho do

intertexto do subtexto de tudo que estaacute contido e condensado no uacutenico texto

que chamamos de Finnegans wake O que desmantela as certezas estaacute

anunciado desde o tiacutetulo haacute um veloacuterio um luto e um tempo da eternidade da

morte mas haacute o movimento de despertar acordar o reiniacutecio o ciclo se faz

novamente no sim que responde pela continuaccedilatildeo eterna natildeo pela finalizaccedilatildeo

Desde o tiacutetulo portanto temos a postura de leitura definida ler e reler Finnegans

wake sem cronograma sob o espectro de Joyce e da babelizaccedilatildeo das liacutenguas

sem delimitaccedilatildeo espaccedilo-temporal

O espectro tem relaccedilatildeo ainda com o que natildeo se materializa e por isso

natildeo pode ser visto com clareza Entre tantos temas e motivos recorrentes

49

recirculando por todo o Finnegans wake a visatildeo eacute um dos sentidos amplamente

explorados como tema e fonte de trocadilhos A elaboraccedilatildeo altamente

perfeccionista do aspecto foneacutetico de Wake eacute atribuiacuteda tambeacutem agrave apuraccedilatildeo da

audiccedilatildeo inevitaacutevel consequecircncia da cegueira causada pelo glaucoma e nos faz

recordar a recomendaccedilatildeo de Joyce de que se lessem os fragmentos em voz

alta para uma experiecircncia outra de leitura (ou para a experiecircncia) A gravaccedilatildeo

da reacutecita feita pelo proacuteprio autor do episoacutedio ldquoAnna Livia Plurabellerdquo ou ldquoALPrdquo

como ele chamava eacute uma reliacutequia de grandioso valor para estudiosos de sua

exiacutemia obra Em texto composto por tantos neologismos e em meio agrave

simultaneidade de idiomas de diversos troncos linguiacutesticos haacute diversos

caminhos e muacuteltiplas escolhas para a entonaccedilatildeo o ritmo e a pronuacutencia do texto

de Finnegans wake e essas satildeo decisotildees que devem ser feitas pelo leitor capaz

de vislumbrar a polissemia de cada sintagma por meio da leitura em voz alta

A necessidade de envolvimento do leitor ouvinte instrumentista ou

espectador na arte caracterizada como moderna eacute sempre decorrente de uma

autonomia que lhe eacute conferida propositalmente ou natildeo em certa medida frente

agrave obra que se mostra maleaacutevel e porosa a esse envolvimento O fato de que

Finnegans wake eacute uma obra que deliberadamente proporciona autonomia ao

leitor transparece em sua estrutura inclusive se considerarmos a decisatildeo

primeira de por onde comeccedilar pois o livro pode ser acessado a partir de qualquer

um de seus fragmentos a despeito da numeraccedilatildeo neles embutida Esta facilita

certamente a citaccedilatildeo o compartilhamento etc mas a ordem de leitura eacute lanccedilada

ao leitor mdash um engendramento crsquoest agrave vous de sobreposiccedilatildeo de estados natildeo

comunicaacuteveis de simultaneidade de possibilidades no engendrar de um

multiverso em detrimento de um universo

Em Obra aberta o teoacuterico italiano Umberto Eco estabelece fronteiras

fundamentais entre obras tradicionais e obras modernas referindo-se

propriamente a suas formas e concepccedilotildees fugindo de definiccedilotildees de cunho

meramente histoacuterico-diacrocircnico O ponto de partida basilar para essa divisatildeo eacute

o fator da ambiguidade como ausente no caso das obras claacutessicas ou moldadas

tradicionalmente ou presente no caso das obras de arte modernas Citando

Finnegans wake obra uacuteltima de James Joyce como paradigma de obra moderna

50

caracterizada como aberta segundo seus preceitos isso fica mais claro se for

colocada a seguinte pergunta relativamente simples de que trata o referido livro

ou dir-se-ia ldquosobre o querdquo eacute Finnegans wake

No caso de obras jaacute haacute muito tempo consideradas claacutessicas a resposta

pontual a essa pergunta eacute possiacutevel ao menos segundo Umberto Eco sem

acarretar muitos questionamentos estruturais No caso de uma opera aperta

como Finnegans wake no entanto a resposta pontual eacute impossiacutevel mdash ou melhor

eacute possiacutevel poreacutem sempre parcial e funcionando como gatilho para outros pontos-

problema que devem ser alinhados com a resposta escolhida Podemos ensaiar

possibilidades sobre o Wake afirmando por exemplo que o livro trata de luto ou

que eacute sobre julgamento ou sobre uma famiacutelia dublinense ou a respeito de sonho

e inconsciente ou que eacute um sonho do protagonista haacute diversas respostas e

nenhuma parece vir como satisfatoacuteria Cada uma delas deve implicar uma seacuterie

de definiccedilotildees estruturais mdash se a narrativa eacute um sonho deve haver algueacutem que

sonha se eacute o (possiacutevel) protagonista HCE quem sonha temos entatildeo um foco

narrativo definido Estabelecer poreacutem um foco narrativo cuja fonte se

estabelece no plano mental inconsciente tem implicaccedilotildees outras a respeito de

como defini-lo em seu estatuto de narrador e de personagem Assim eacute

necessaacuterio atentar-se ao fato de que cada afirmaccedilatildeo acarreta uma seacuterie de

outras consequecircncias

A indefiniccedilatildeo de elementos estruturantes da narrativa no entanto natildeo eacute

vaacutelida somente para uma obra extrema como Finnegans wake mas para

qualquer obra que se aplique ao paradigma estabelecido por Umberto Eco

Ademais destaca-se o papel do leitor na projeccedilatildeo semacircntica da obra natildeo do

ponto de vista do senso comum de que a subjetividade confere certo empirismo

interpretativo aberto a uma relatividade sem horizonte definido mas em sentido

um tanto mais fleumaacutetico de que a manipulaccedilatildeo do objeto interfere no resultado

do mesmo mdash quase como um experimento de Erwin Schroumldinger Satildeo por

conseguinte cabiacuteveis as analogias com o Livre de Steacutephane Mallarmeacute

(poe)moacutebiles a muacutesica aleatoacuteria de Luciano Berio (que produziu muacutesica

inspirada no livro Chamber music ou Muacutesica de cacircmara de Joyce) e de

Karlheinz Stockhausen A diferenccedila do envolvimento necessaacuterio do puacuteblico

51

apareceria para Eco portanto em um grau consideravelmente maior na obra de

arte moderna

Lembrando o que diz Samuel Beckett sobre o texto de Joyce o que

podemos destacar a respeito da maneira como se apresentaria um

acontecimento ao leitor em Finnegans wake eacute que isso na verdade

simplesmente natildeo ocorre ou ao menos natildeo em termos de uma cena contada

narrada como conhecemos A narrativa como a conhecemos em que uma cena

eacute mostrada contada ao leitor eacute substituiacuteda aqui pela proacutepria experiecircncia da cena

ou da coisa que seria descrita Ao inveacutes de contar uma cena daacute-se a mesma ao

leitor Natildeo se trata apenas de se desapegar do tipo de descriccedilatildeo realista

objetiva que presume distanciamento pois tambeacutem natildeo se trata do relato em

primeira pessoa subjetivo e por isso duacutebio na tentativa de explorar a psique

de uma personagem especiacutefica em suas contradiccedilotildees internas tentando acessar

a complexidade de sua consciecircncia Nenhuma dessas abordagens opostas seria

possiacutevel no Wake pois nele nem sempre se pode diferenciar as vozes do texto

mdash e nem sempre eacute preciso uma vez que natildeo haacute enredo que dependa desse

acompanhamento

4 Paralelos psicanaacutelise teoria da relatividade muacutesica

A disposiccedilatildeo estrutural de Finnegans wake em circularidade eacute o que

permite o acesso a partir de qualquer paacutegina e o leitor por sua vez tem

autonomia explicitamente garantida impelido a tomar uma decisatildeo no primeiro

acesso ao livro A circularidade no entanto e a numeraccedilatildeo dos fragmentos

sugerem uma ordem taacutecita mdash que natildeo pode ser simplesmente ignorada mas

natildeo deve ser vista tambeacutem como a uacutenica forma de leitura assim se engendra

o niacutevel de ambiguidade da obra Como em Ulysses a presenccedila da Odisseia na

concepccedilatildeo de cada um dos capiacutetulos eacute uma possiacutevel referecircncia de leitura mas

natildeo a linha central isto eacute natildeo eacute um necessaacuterio paralelismo agrave incursatildeo ao livro

de Joyce Ler literatura eacute dispor-se a um caminho que natildeo busca certezas ao

contraacuterio do que o apego a anaacutelises literaacuterias demasiado pragmaacuteticas ainda que

52

o neguem possa sugerir Mesmo em um livro de cunho bastante tradicionalista

como A Anaacutelise literaacuteria de Massaud Moiseacutes o lembrete eacute claro

A leitura com profundidade pressupotildee sempre que o texto literaacuterio sendo composto de metaacuteforas eacute ambiacuteguo por natureza ou seja guarda uma multiplicidade de sentidos Ler mal significa natildeo perceber a extensatildeo dessa ambiguidade ou apenas percebecirc-la sem poder compreendecirc-la ou justificaacute-la (MOISEacuteS 1969 p 24)

Exigir uma explicaccedilatildeo para cada noacute morfoloacutegico ou sintaacutetico que se

vislumbra no texto ou acusa-lo de impor dificuldades ao acompanhamento do

enredo satildeo acusaccedilotildees a Finnegans wake que partem de uma concepccedilatildeo

possivelmente questionaacutevel de literatura eou lidam com uma ideia redutora e

limitante de exegese ignorando a alta voltagem do cociente conotativo que o

texto oferece e a riqueza de leituras e possibilidades mdash que estatildeo longe de

formar um todo incoerente ou um texto composto de nonsense ao contraacuterio

Finnegans wake foi concebido de forma comprovadamente calculada e o humor

do texto estaacute distante de ser tatildeo hermeacutetico quanto se pensa Campbell e

Robinson utilizam um galicismo bastante peculiar para caracterizar Finnegans

wake cauchemar Derivado de cauquemaire termo registrado a partir do seacuteculo

XV pode definir simplesmente uma espeacutecie de sonho incocircmodo no limiar do

que seria um pesadelo No dicionaacuterio Larousse21 eacute precisamente uma

ldquomanifestaccedilatildeo oniacuterica que pode causar uma forte resposta emocional negativa

na mente de medo ou de horrorrdquo Sua formaccedilatildeo se deu a partir do termo picardo

cauchier que significa ldquopressionarrdquo ou ldquoempurrarrdquo e do termo germacircnico

proveniente do holandecircs mare que significa ldquoespectrordquo ldquofantasmardquo O campo

semacircntico em que se enquadra o termo envolve da anguacutestia ao desespero O

leitor portanto estaraacute avisado natildeo se trata de um sonho planificado e agradaacutevel

mas de um percurso sinuoso de que se deve duvidar e ao qual nos entregamos

sem reservas O leitor deve se dispor ao obscuro em vez de exigir clareza como

em um sonho caracterizado por Freud em que objetos satildeo siacutembolos e o que

21 Larousse 2013 ldquoCauchemar nom masculin Recircve peacutenible avec sensation doppression dangoisse Ideacutee chose ou personne qui importune ou cause du tourment Ce professeur est mon cauchemar Synonymes Hantise obsession tourmentrdquo

53

aparenta ser apenas um fato que se explica por si pode natildeo secirc-lo A isso se

acrescenta o que diz Freud sobre o reflexo (como ato involuntaacuterio automaacutetico

natildeo uma decisatildeo consciente) da negaccedilatildeo e a pulsatildeo de destruiccedilatildeo ldquoO texto [da

negativa] pode negar-se agrave interpretaccedilatildeo como meio de reagir agraves palavras de um

outro significante da proacutepria enunciaccedilatildeordquo (EYBEN 2012 p 283) A negaccedilatildeo

que vem do estranhamento produz afirmaccedilatildeo soacute se enxerga em Finnegans

wake o estranho a partir de noccedilotildees como narrativa e tempo linear negando-se

o estabelecido em direccedilatildeo a uma (nova) resposta

A referecircncia a Sigmund Freud natildeo vem apenas dos dados biograacuteficos em

afirmaccedilotildees do proacuteprio autor de que o livro eacute configurado como um sonho Joyce

dizia natildeo ser nada simpatizante da psicanaacutelise Apesar disso Lucia sua filha

tinha distuacuterbios mentais que ficaram mais graves com o passar do tempo e

chegou a se consultar com Carl Jung colega de Freud nos primeiros estudos

psicanaliacuteticos com quem ela se deu inicialmente muito bem Em Finnegans

wake Joyce cita tanto Freud quanto Jung maiores referecircncias no nascimento

da psicanaacutelise um tanto sardonicamente No fragmento 115 como destaca

Lenita Esteves em sua tese lecirc-se ldquoold Sykos who have done our unsmiling bit

on rsquoalices when they were yung and easily freudenedrdquo (FW 11521-23) Como

muito do que aparece no Wake (e muito do que aparece em nossos sonhos) a

citaccedilatildeo natildeo eacute clara e direta estando escondida poreacutem possiacutevel de ser

encontrada (ldquoyung and freudenedrdquo) com o termo ldquosykos on lsquoalicesrdquo separado em

duas partes como uma ldquocadeia truncadardquo (ESTEVES 1999 p 86) formando

ldquopsychoanalysisrdquo e a referecircncia agrave Alice de Lewis Carroll mdash autor cuja obra

sabemos ter influenciado Joyce e que aparece no trecho aqui referido como ldquoold

sykordquo (ldquoold psychordquo um ldquovelho loucordquo) O poeta e criacutetico dinamarquecircs Kristensen

certa vez perguntou se Joyce acreditava na Ciecircncia nova de Giambattista Vico

ao receber a sugestatildeo de Joyce que a lesse para ler Finnegans wake Joyce

respondeu ldquoNatildeo creio em nenhuma ciecircncia mas minha imaginaccedilatildeo cresce

quando leio Vico como natildeo aconteceu quando li Freud ou Jungrdquo (ELLMANN

1989 p 853)

Carl Jung chegou a ler Joyce e tambeacutem natildeo abrira caminhos para uma

simpatia maior entre eles ldquoJung garantiu que algumas de suas palavras

54

ldquoportmanteaurdquo e neologismos eram notaacuteveis mas disse que eram acasos ela

[Lucia] e seu pai comentaria ele mais tarde eram como duas pessoas descendo

ao fundo de um rio uma caindo outra mergulhandordquo (Ibid p 837) A metaacutefora

do rio para a linguagem esquizofrecircnica pelo menos certamente teria agradado

Joyce se natildeo viesse nessa ocasiatildeo Especialmente vindo de algueacutem que havia

percebido em sua produccedilatildeo literaacuteria (e na de Lucia ao ler alguns de seus

poemas e apontar que havia ali indicaccedilotildees de problemas mentais) uma

exemplificaccedilatildeo de insanidade

Uma possiacutevel analogia entre uma obra como Finnegans wake e a

Interpretaccedilatildeo de Muitos Mundos (IMM) formulaccedilatildeo de estados relativos

elaborada pelo fiacutesico quacircntico Hugh Everett encontra-se no esteio da afirmaccedilatildeo

de Umberto Eco a respeito dessa mesma obra fazendo um paralelo entre a

relatividade de Einstein e as possibilidades diversas de tempos e espaccedilos

distintos e simultacircneos na obra de Joyce

Em Finnegans wake encontramo-nos enfim verdadeiramente na presenccedila de um cosmo einsteiniano curvado sobre si mesmo mdash a palavra inicial une-se agrave palavra final mdash e portanto acabado mas por isso mesmo ilimitado Todo acontecimento toda palavra encontra-se numa relaccedilatildeo possiacutevel com todos os outros e eacute da escolha semacircntica efetuada em presenccedila de um termo que depende o modo de entender todos os demais Isso natildeo significa que a obra natildeo tenha um sentido se Joyce introduz nela certas chaves eacute justamente por desejar que a obra seja lida num sentido determinado Mas esse ldquosentidordquo tem a riqueza do cosmo e o autor quer ambiciosamente que ele implique a totalidade do espaccedilo e do tempo mdash dos espaccedilos e dos tempos possiacuteveis O instrumento-mor dessa ambiguidade integral eacute o pun o calembour (ECO 1989 p 48)

Jaacute no iniacutecio de seu livro ao citar a obra de James Joyce como ldquoexemplo

maacuteximo de obra lsquoabertarsquordquo (Ibid p 47) Umberto Eco traccedila uma referecircncia com

Albert Einstein por meio de Edmund Wilson a respeito tambeacutem da obra anterior

Ulysses

Sua forccedila ao inveacutes de acompanhar uma linha expande-se a si mesma em todas as dimensotildees (inclusive a do Tempo) (hellip) Joyce desenvolveu consideraacutevel maestria teacutecnica para apresentar-nos os elementos de sua histoacutera numa ordem tal que nos torne capazes de encontrar sozinhos os nossos caminhos (Ibid p 48)

55

Como sabemos a dita circularidade do Wake eacute construiacuteda de tal forma

que daacute margem a diferentes formas de acesso e leitura Isso gera diversas

possibilidades paralelas e igualmente aceitaacuteveis dentro da estrutura se

entendermos que de fato qualquer paacutegina pode ser a primeira e qualquer

paacutegina pode ser a uacuteltima Essas possibilidades diferem natildeo apenas em suas

caracteriacutesticas mas tambeacutem em suas implicaccedilotildees Assim coexistem

paralelamente essas possibilidades a partir das ordens de leitura efetivamente

disponiacuteveis e a obra permanece una Ateacute mesmo dentro de um capiacutetulo pode

ser que pouco importe a ordem de onde se comeccedila a ler De um paraacutegrafo para

outro o assunto pode mudar drasticamente Tomemos como exemplo o capiacutetulo

III do terceiro livro em que a primeira paacutegina fala dos Four Old Men a segunda

inicia uma ode a Isobel a filha discorrendo sobre toda a sua beleza e

ingenuidade e o paraacutegrafo seguinte salta nada menos para Humphrey

Chimpden Earwicker becircbado no chatildeo de seu pub

Em artigo intitulado ldquoThe Finnecies of music wed poetry A muacutesica e o

Finnegans Wakerdquo Caetano Galindo tradutor da mais recente versatildeo em

portuguecircs de Ulysses (2012) e da uacutenica de Finnrsquos hotel (2014) parte da ideia

desenvolvida por Walter Pater de que ldquoToda a arte constantemente aspira agrave

condiccedilatildeo da muacutesicardquo (PATER apud GALINDO 2010 p 286 traduccedilatildeo do trecho

feita por Caetano Galindo) Frequentemente se afirma percorrendo a fortuna

criacutetica de Finnegans wake que essa obra eacute o resultado de suposto projeto

formalista de extrema acuidade em que a semacircntica eacute absolutamente preterida

em relaccedilatildeo agrave forma agrave esteacutetica focada na materialidade do significante No

entanto natildeo haacute possibilidade de falar de significante sem significado sendo esse

um par indissoluacutevel e acusar Joyce de se apoiar na pura materialidade do signo

para construir um texto de conteuacutedo calcado no nonsense e portanto

ldquoincompreensiacutevelrdquo mdash ou mais especificamente um texto que efetivamente nada

tenha a dizer mdash e puramente sonoro se mostra descabida a qualquer leitor atento

do Wake

A aproximaccedilatildeo entre a literatura joyciana e a arte musical eacute contudo

bastante profiacutecua Aleacutem de a sonoridade como dissemos ser aspecto de suma

importacircncia nos textos de Joyce segundo ele proacuteprio essa proeminecircncia eacute

56

expliacutecita na leitura observando-se os jogos linguiacutesticos riacutetmicos e o papel do

aspecto foneacutetico na compreensatildeo de muitos dos trocadilhos (puns) Ainda que

os fatores biograacuteficos nada determinem a respeito da produccedilatildeo literaacuteria cabe

apontar tambeacutem a tiacutetulo de curiosidade para a relaccedilatildeo estreita de Joyce com a

muacutesica queria ser cantor e sua matildee foi cantora e integrou coros de igrejas A

aproximaccedilatildeo entre experiecircncias literaacuterias e muacutesica natildeo seria algo novo para o

autor irlandecircs que demonstrava esse interesse desde os poemas de Chamber

Music mdash admirados por Ezra Pound mdash passando por trechos eminentemente

meloacutedicos de A Portrait of the artist as a young man ateacute o episoacutedio das Sereias

(como eacute conhecido) de Ulysses

Richard Ellmann afirma que diante de algumas das criacuteticas frequentes a

respeito do caraacuteter literaacuterio de Finnegans wake ldquoo aspecto musical do livro era

uma de suas justificativasrdquo (ELLMANN 1989 p 865) Questionado por Terence

White Gervais ldquose o livro era uma mistura de muacutesica e literaturardquo ldquoJoyce

respondeu laconicamente lsquoNatildeo eacute pura muacutesicarsquordquo (Id) A variedade de formas de

entonaccedilatildeo e pronuacutencia aproximam o Finnegans wake do que seria uma

composiccedilatildeo musical que precisa ser executada lida como se lecirc a partirura em

muacutesica mdash conferindo vida agraves indicaccedilotildees que o papel traz O leitor se vecirc dessa

forma no exato centro dessa demanda sendo-lhe exigidas seguidas decisotildees

persecutoacuterias Nem Ulysses nem Finnegans wake satildeo obras para serem lidas

de forma passiva apenas acompanhando a narrativa que se desenha sozinha

recostando-se acomodando-se em leitura plaacutecida eacute preciso lecirc-los de maneira

executiva

O capiacutetulo 11 (considerado na divisatildeo de Campbell e Robinson o capiacutetulo

3 do livro II mdash que chamam de ldquolivro dos filhosrdquo mdash denominado ldquoTavernry in

feastrdquo) reuacutene sensaccedilotildees diversas com destaque ao sentido da audiccedilatildeo em

cenas de festejo e bebedeira no pub da famiacutelia dublinense As cenas (ou

sensaccedilotildees) se assemelham ao que seria um sonho de HCE tendo contudo

tambeacutem a sua participaccedilatildeo Na nota preliminar de Donaldo Schuumller ldquoA

identificaccedilatildeo chega a extremos HCE sonha e eacute sonhado () Recolhem-se

fragmentos espalhados no tempo e no espaccedilordquo (2003 p 215) Em meio a

57

transformaccedilotildees de HCE em Raacute deus egiacutepcio do Sol histoacuterias ouvidas pelo raacutedio

que envolvem visitas de um norueguecircs a Dublin em busca de um alfaiate

casamento quedas e um seacutetimo trovatildeo faz-se musicalidade no ambiente

barulhento

Snip snap snoody Noo err historyend goody Of a lil trip trap and a big treesnooker (hellip) (FW 3321-2)22

For hanigen with hunugen still haunt ahunt to find their hinnigen where Pappappapparrassannuaragheallachnatullaghmonganmacmacmacwhackfalltherdebblenonthedubblandaddydoodled and anruly person creeked a jest (FW 3324-7)23

Such was the act of goth stepping the tolk of Doolin drain and plantage wattle and daub with yoursquoll peel as Irsquoll pale and wersquoll pull the boath toground togutter testies touchwood and shenstone unto pop and puma calf and condor under all the gaauspices (incorporated) the chal and his chi their roammerin over gribgrobgrab reining trippetytrappty (so fore shault thou flow else thy cavern hair) to whom she (anit likenand please-thee) Till sealump becamedump to bumpslump a lifflebed (altolagrave allamarsch O gueacute O gueacute) (FW 33214-18)24

Joyce controla o ritmo do texto de forma que pulsem frases com tocircnicas

bem definidas formando o que ambienta o burburinho da noite no bar cheio e de

pessoas em festa Aleacutem das evidentes e numerosas aliteraccedilotildees ao unir

palavras como em ldquobecamedump to bumpslumprdquo eacute criado todo um novo ritmo

do iniacutecio ao fim das enunciaccedilotildees Aleacutem do forte impacto sonoro a semacircntica eacute

consequentemente modificada deslocando-se o que seria um significado

22 ldquoPirlimpimpim Da estorieta este eacute o fim De uma pequerrucha hip e de um grande triscunardquo (na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller 2003) 23 ldquoPois essazim e essezim ainda andam por aiacute a procura de Finn onde Pappappapparrassannuaragheallachnatullaghmonganmacmacmacwhackfalltherdebblenonthedubblandaddydoodled e uma personalidade ilegal largou um gracejordquo (idem) 24 ldquoTal foi o ato deusassombrado pra deter a fala do palanquim drenagem e plantaccedilatildeo vime e barro tua eacute a repulsa meu eacute o pulso nosso eacute o impulso do barco agrave terra dos aterrados testemunhas de madeira sapiencial e de pedra filosofal ateacute pupa e puma o bov hino e o condor sob todos os gaauspiacutecios (incorporados) o cujo e seu ela perroeirando caraagoraagarra reinando o trotedatropa (ateacute aqui fluiraacutes ou te arrastaratildeo pelos cabelos como na caverna) a quem ela (natildeo se assemelha praza-te) Ateacute que marulho se converta em entulho o brusco baque no liacuteffido leito (altolaacute allamarcha O quecirc o quecirc)rdquo (idem)

58

previsiacutevel para um neologismo que natildeo se fixa como neologismo uma vez que

continua podendo ser reinventado Do trovatildeo que possivelmente eacute o mais

musical de todos passamos ateacute mesmo por Shakespeare (ldquoshenstonerdquo) aqui

unido a Shem

Retornando ao texto de Caetano Galindo a aproximaccedilatildeo entre Finnegans

wake e muacutesica daacute-se entatildeo pela possibilidade de pensar essa obra literaacuteria

como uma partitura lembrando ainda a sugestatildeo do proacuteprio Joyce de que a

leitura de sua obra era diferenciada se fosse feita em voz alta mdash executada como

muacutesica escrita sobre as pautas de uma obra musical Isso se relaciona

diretamente a um certo papel atribuiacutedo ao leitor nessa interaccedilatildeo menos passiva

e mais ativamente investigativa ou analiacutetica em um sentido que eacute certamente

mais inventivo do que interpretativo Em vez de linhas pautas Sobre essa

comparaccedilatildeo diz Caetano Galindo

Uma partitura por outro lado jamais seraacute vista como a ldquoinauguraccedilatildeordquo de uma obra privileacutegio que cabe a sua primeira execuccedilatildeo puacuteblica A partitura afinal eacute muito menos ldquoa obrardquo que um detalhado conjunto de instruccedilotildees para a realizaccedilatildeo da obra que passa a existir apenas quando executada que tem a capacidade de existir como tal e de afetar mesmo pessoas ldquoanalfabetasrdquo no sistema de signos em que se escreve que manteacutem com aquele autoacutegrafo uma relaccedilatildeo portanto necessariamente de maior independecircncia Hierarquicamente superior E jaacute naqueles primeiros poucos exemplos de ldquobrincadeirasrdquo sonoras do Wake junto da constataccedilatildeo de que se trata de uma obra em que a leitura e a leitura em voz alta tem um papel completamente diferente na atribuiccedilatildeo na criaccedilatildeo de seu sentido fazem com que de diversas maneiras se possa sim pensar no livro como mais proacuteximo de uma partitura (GALINDO 2010 p 298)

A multiplicidade proporcionada por essa abertura natildeo prejudica portanto

a unidade da obra nem significa abertura a qualquer interpretaccedilatildeo a abertura

em questatildeo eacute efetivamente de autonomia e participaccedilatildeo do leitor tomando

decisotildees que efetivamente afetam sua experiecircncia com a obra natildeo por sua

evidente subjetividade como pessoa mas em seu papel como destinataacuterio mdash e

natildeo mero receptor de uma obra fechada cuja significaccedilatildeo estaacute dada inerte A

essa abertura poderiacuteamos entatildeo comparar a da muacutesica e seu efeito que parte

59

de um ldquodesdeacutem com o sentidordquo para usar expressatildeo de Caetano Galindo Mais

do que relaccedilotildees de sonoridade com o uso de aliteraccedilotildees assonacircncias rimas

que comumente relacionamos a uma certa qualidade musical (mas que satildeo

aspectos em geral inerentes a quaisquer textos literaacuterios) o texto tem um

princiacutepio estruturante diferenciado que assim o assemelha agrave muacutesica

Essa aproximaccedilatildeo diz respeito agrave maneira de interaccedilatildeo que existe entre a

obra e um inteacuterprete de uma composiccedilatildeo musical mais do que entre a obra e o

seu ouvinte Assim nos remetemos agrave aproximaccedilatildeo feita por Eco entre o texto

joyciano e a muacutesica moderna que se justifica em diversos aspectos entre os

quais destacamos aqui o da necessaacuteria execuccedilatildeo em uma certa sequecircncia

temporal como fundamento inerente agraves duas artes muacutesica e literatura Ambas

satildeo elaboradas a partir de uma ordenaccedilatildeo que se alterada modifica-se ao

contraacuterio de obras de arte com entrada livre O componente temporal tem

destaque de maneira evidente tambeacutem no cinema tem possibilidades diversas

de entendimento na fotografia e nas artes plaacutesticas a partitura no entanto assim

como o texto teatral de outra maneira tambeacutem o eacute faz parte do rol de peccedilas

executaacuteveis Eacute das obras de arte que se escrevem e inscritas permanecem na

promessa de que se deem em um novo tempo em um acontecimento fora do

papel

Natildeo falamos portanto tatildeo somente de um texto literaacuterio musical mas dos

fundamentos compartilhados entre as duas artes em termos fundamentais de

elaboraccedilatildeo e de acessoexecuccedilatildeorecepccedilatildeo dentro da plasticidade de cada uma

delas A problemaacutetica inescapaacutevel que concerne agrave sucessatildeo temporal como fator

inato da obra natildeo se refere no texto literaacuterio simplesmente agrave sequecircncia de sons

mas a toda a mateacuteria da obra Como em certas obras musicais o compositor

deixa a possibilidade de o(s) instrumentista(s) ou mesmo o(s) ouvinte(s)

intercambiarem partes do todo de forma entatildeo prevista e deliberada pelo autor

em todas as suas consequecircncias temos em Finnegans wake a possibilidade de

entrada por qualquer trecho No entanto assim como na obra musical as

consequecircncias satildeo medidas tambeacutem no Wake existe eacute claro uma ordem

subjacente ainda que se possa ignoraacute-la no processo de leitura e iniciar de

60

qualquer paacutegina A leitura ainda que executiva eacute feita em cima de indicaccedilotildees

preacute-existentes

O leitor ideal do Wake por conseguinte deve ser aquele indiviacuteduo aberto

a uma renovaccedilatildeo inesgotaacutevel de processos cognitivos aquele que natildeo executa

sua leitura preso a seus horizontes mas estaacute disposto a expandi-los a cada linha

A fluidez em Finnegans wake se deve ao natildeo estabelecimento de uma voz que

tenha lugar proacuteprio Como diz Derrida em ldquoDuas palavras por Joycerdquo haacute livros

que terminamos de ler assim que iniciamos a leitura enquanto James Joyce nos

faz encarar a leitura que nunca parece ter fim Muito frequentemente Finnegans

wake eacute lembrado por ser um livro circular sendo essa uma das mais evidentes

caracteriacutesticas da estrutura elaborada por Joyce Podemos lembrar ainda a

figura eliacuteptica como Derrida a concebe para atestarmos que a circularidade

wakiana natildeo se engendra em reiteraccedilatildeo ciacuteclica em regressos a pontos

iniciaacuteticos nem em repeticcedilotildees de processos idecircnticos Ao contraacuterio a

circularidade do Wake efetivamente se aproxima da viconiana que inspirou

Joyce temos um processo de retorno que soacute eacute previsiacutevel ateacute certo ponto pois

engendra acima de tudo a renovaccedilatildeo de seus elementos Assim ateacute nas

repeticcedilotildees de um mesmo termo pela obra podemos perceber como o que

acontece natildeo eacute a retomada pura e simples mas a operaccedilatildeo de uma diffeacuterance

com ldquoardquo uma vez que o termo eacute aparentemente duplicado mas natildeo ocorre da

mesma forma e portanto jaacute natildeo eacute idecircntico em significado

A relaccedilatildeo com muacutesica novamente se faz proveitosa por uma outra via de

relaccedilatildeo Em um paralelismo bastante coerente a respeito de como eacute possiacutevel a

operaccedilatildeo de leitura de uma obra como Finnegans wake Umberto Eco tece

comparaccedilotildees citando o compositor belga Henri Pousseur um dos nomes da

nouvelle musique junto tambeacutem de Luciano Berio Pierre Boulez e Karlheinz

Stockhausen

Para definirmos a situaccedilatildeo do leitor de Finnegans wake parece-nos servir perfeitamente a descriccedilatildeo dada por Pousseur da situaccedilatildeo do indiviacuteduo que ouve uma composiccedilatildeo serial poacutes-dodecafocircnica ldquoJaacute que os fenocircmenos natildeo mais estatildeo concatenados uns aos outros segundo um determinismo consequente cabe ao ouvinte colocar-se

61

voluntariamente no centro de uma rede de relaccedilotildees inexauriacuteveis escolhendo por assim dizer ele proacuteprio (embora ciente de que sua escolha eacute condicionada pelo objeto visado) seus graus de aproximaccedilatildeo seus pontos de encontro sua escala de referecircncias eacute ele agora que se dispotildee a utilizar simultaneamente a maior quantidade de graduaccedilotildees e de dimensotildees possiacuteveis a dinamizar a multiplicar a estender ao maacuteximo seus instrumentos de assimilaccedilatildeordquo E com essa citaccedilatildeo fica sublinhada como se disto houvesse necessidade a convergecircncia de todo o nosso discurso para um ponto uacutenico de interesse e a unidade da problemaacutetica da obra ldquoabertardquo no mundo contemporacircneo (ECO 1989 p 49)

Assim a postura ativa se faz natildeo somente numa via extra de interaccedilatildeo

obra-receptor mas eacute efetivamente uma demanda necessaacuteria para que essa

interaccedilatildeo possa se viabilizar Ainda que ambiguidade e polissemia sejam

evidentemente traccedilos inerentes a quaisquer textos literaacuterios em geral haacute uma

oferta disseminativa especiacutefica onde se engendra diffeacuterance A interaccedilatildeo

receptor-obra na qual a participaccedilatildeo e as escolhas do leitor eacute uma necessidade

tem uma dinacircmica operacionalizante que natildeo somente ressuscita o texto morto

na leitura mas o faz quase podendo daacute-lo agrave luz Em consonacircncia com o que eacute

dito por Haroldo de Campos em A arte no horizonte do provaacutevel voltamos agrave

Escritura do retorno ldquoA arte joycena circular e em aberto natildeo possui como

operador a figura autoral mandataacuteria Antes a informaccedilatildeo esteacutetica mdash como

transmissatildeo de sensaccedilatildeo da forma mdash eacute gerada pelo interpretante que assume a

posiccedilatildeo de operadorrdquo (EYBEN 2012 p 616)

Isso natildeo implica no entanto eacute bom que lembremos uma abertura

semacircntica total e desgovernada que nos leve a aquiescer para as suposiccedilotildees

de que Finnegans wake seja uma grande piada sem qualquer indiacutecio de que sua

leitura valha a pena Aleacutem de rascunhos e arquivos de Joyce apontarem

fortemente para o contraacuterio com esquematizaccedilotildees da estrutura e registros das

formulaccedilotildees de trechos reescritos e reeditados com precisatildeo vimos que natildeo

foram poucos os leitores que se dedicaram agrave incursatildeo por essa obra ainda que

seja tatildeo mal falada quanto se diz que eacute incompreensiacutevel Natildeo se trata apenas de

frases compostas de um puro trava-liacutengua sucedendo o outro que natildeo remetem

a nada e tecircm seus significados encerrados em si mesmos de forma que somente

o significante seja manipulado em brincadeiras linguiacutesticas mdash ainda que a

62

comparaccedilatildeo inicial seja relativamente cabiacutevel no que diz respeito aos jogos

foneacuteticos e trocadilhos que compotildeem a obra joyciana O recurso natildeo resulta em

uma anulaccedilatildeo da unidade significativa ao contraacuterio temos sua expansatildeo Haacute

criacuteticos que traccedilam a sequecircncia da intriga na obra e a analisam sob essa oacuteptica

ainda assim sabemos natildeo haver linearidade narrativa na concepccedilatildeo tradicional

de enredo uma vez que o Wake traz o que se caracteriza pelo adjetivo plotless25

Como lembra o proacuteprio Eco mais agrave frente poreacutem ldquoEssa pluralidade

semacircntica natildeo determina ainda o valor esteacuteticordquo (ECO 1989 p 91) Fosse essa

a mateacuteria-prima de Finnegans wake natildeo seria composto entatildeo por mais que

jogos intelectuais e tantos criacuteticos assim o julgaram Se pluralidade semacircntica

implica uma seacuterie definida de possibilidades a b ou c para uma frase expressatildeo

capiacutetulo ou para a obra toda estaacute mais longe de Finnegans wake do que supotildee

Eco Polissemia subentende a possibilidade de visualizar nas palavras as

possibilidades para as quais elas se abrem como na ambiguidade em geral

tambeacutem se tem a consciecircncia dos sentidos que povoam o mesmo territoacuterio Por

mais contraditoacuterio que possa soar isso ainda pode integrar poreacutem uma leitura

hermenecircutica substitui-se a noccedilatildeo de verdade contida em uma unidade pela de

um espectro de verdades simultacircneas ainda controladas detidas nos limites do

horizonte que nossa visatildeo alcanccedila com nitidez

Em vez disso poderiacuteamos mdash podemos mdash ler Finnegans wake sem

necessariamente buscar conter em diagramas mentais os pontos semacircnticos

oferecidos em cada expressatildeo natildeo somente porque esse seria um trabalho

cansativo mas tambeacutem porque natildeo nos ofereceria garantias de ser esta a

melhor maneira de intimidade com o texto Da mesma maneira ler com fluidez

ainda que uma ou outra referecircncia possa nos escapar pelos dedos natildeo eacute

necessariamente uma forma menos integrada de se deparar com a obra em

questatildeo Fluidez aqui sublinhe-se natildeo se refere agrave suposiccedilatildeo de que se tenha

diante das paacuteginas do livro um leitor passando por elas uma a uma de maneira

25 O termo vem do inglecircs plot que se refere especificamente a enredo ou trama O Wake natildeo possui um enredo que mova a leitura e seja separaacutevel em situaccedilatildeo inicial cliacutemax e desfecho e mesmo os elementos baacutesicos da narrativa ndash personagens narradores tempo e espaccedilo ndash se modificam todo o tempo

63

homogecircnea sem que se detenha em nada de especiacutefico avanccedilando

ininterruptamente pelo texto em um ritmo padronizado meramente

decodificando palavras lendo o texto somente no sentido mais simploacuterio de

assunccedilatildeo da existecircncia e de certa compreensibilidade de um dado coacutedigo

Referimo-nos ao contraacuterio ao caso de um leitor qualquer se se lance agrave leitura

do livro mdash de modo que detenha um tempo singular de sua proacutepria leitura que

flui em seu ritmo proacuteprio individual variaacutevel e incalculaacutevel

Pelo fato de que o texto como eacute tecido exige do leitor a tomada de

algumas decisotildees jaacute haacute demanda suficiente de uma postura ativa que natildeo

precisa ser a tradicional postura de identificar todos os componentes e assim

destrinchar todos os elementos do texto por mais que isso eventualmente possa

ser de grande ajuda Talvez a noccedilatildeo do todo seja mais importante e mais difiacutecil

de ser alcanccedilada fora dessa anaacutelise a que estamos acostumados Muito do

texto por mais hercuacuteleo que o trabalho possa parecer pode ser forccedilosamente

colocado em diagramas e planilhas mentais com divisotildees e classificaccedilotildees

criadas a partir de moldes teoacutericos preacute-existentes mas lidar com o texto em sua

complexidade eacute respeitaacute-lo na sua porccedilatildeo de problemaacutetica indecifraacutevel

CAPIacuteTULO II

FINNEGANS WAKE E O TEMPO DA TRADUCcedilAtildeO

65

No prefaacutecio agrave traduccedilatildeo dos poemas de Charles Baudelaire reunidos na

seccedilatildeo Tableaux parisiens publicada em 1923 denominado ldquoDie Aufgabe des

Uumlbersetzersrdquo Walter Benjamin apresenta nas palavras de Haroldo de Campos

a sua ldquometafiacutesica antes do que uma fiacutesica da traduccedilatildeordquo (CAMPOS 2008 p

179) Ao encetar sua exposiccedilatildeo a respeito da ldquotarefa-renuacutencia do tradutorrdquo como

traduziu Susana Kampff Lages Benjamin questiona qual o destino do texto

traduzido apoacutes afirmar o que aqui se traz como epiacutegrafe a compreensatildeo mdash ou

a tentativa de engendrar alguma mdash das obras de arte natildeo deve se pautar pelo

receptor Enseja lembrar que se costuma entender a traduccedilatildeo limitando-se agrave

visatildeo corriqueira de que teria o objetivo preciacutepuo ou mesmo uacutenico de facilitadora

do acesso ao texto o que recairia justamente no problema de ter no destinataacuterio

sua justificativa focando na recepccedilatildeo do texto toda a necessidade de sua

existecircncia mdash ou mais gravemente a sua utilidade mdash e portanto tirar dessa

relaccedilatildeo suas premissas e direcionamentos

66

A existecircncia de um problema em considerar a traduccedilatildeo como algo

produzido tatildeo somente para atender agravequeles privados da compreensatildeo do

idioma do texto de partida antecede contudo qualquer afirmativa contra a

exegese que se paute pela recepccedilatildeo ou a favor de qualquer fantasiologia em

detrimento de uma investigaccedilatildeo do pateacutetico schlegeliano ou do empiacuterico em

literatura Eacute possiacutevel perceber esse problema no apontamento do fato um tanto

expliacutecito de que o leitor da traduccedilatildeo que visa substituir o texto de partida

inevitavelmente a leraacute como texto original (no sentido de primeiro

evidentemente) As relaccedilotildees entre o texto de partida e suas traduccedilotildees eacute

perigosamente apagada no caso do leitor cujo contato com a obra se daacute somente

por uma traduccedilatildeo especialmente entre aquelas que natildeo contecircm comentaacuterios

notas ou recursos similares por meio dos quais o tradutor aponte seus dilemas

e exprima as dificuldades pelas quais passou remetendo ao texto de partida

bem como que criteacuterios utilizou em suas escolhas e renuacutencias lexicais ou

sintaacuteticas

Aleacutem das peculiaridades inescapaacuteveis da leitura de uma obra de traduccedilatildeo

sem o concomitante acesso ao texto traduzido existem ainda os problemas

inerentes ao texto Tradutores que se incumbem da tarefa de transmitir algum

ato comunicativo a ser detectado no texto de partida transportando uma

mensagem mdash por vezes artificialmente construiacuteda ou forccedilosamente encontrada

em uma leitura enviesada ou mesmo forjada mdash a outro idioma por meio do labor

tradutoacuterio estariam prestes a falhar de certa maneira ao menos segundo o que

assevera Benjamin ao recaiacuterem na ldquotraduccedilatildeo inexata de um conteuacutedo

inessencialrdquo (BENJAMIN 2008 p 66) A falha tem eacute claro nesse caso um

sentido especiacutefico que parte da concepccedilatildeo que Benjamin traz de traduccedilatildeo Seria

demasiadamente penoso declarar ou apontar fracassos tradutoacuterios completos a

qualquer que seja a tentativa ao menos em literatura de traduzir algum texto

Como a Benjamin poreacutem a compreensatildeo do que significa ou qual a intenccedilatildeo do

ato de traduzir literatura parece-nos primordial ao labor tradutoacuterio e tambeacutem agrave

leitura de traduccedilotildees pois esclarecer o ponto de que partimos ao olhar o texto

se eacute o mesmo ou se jaacute eacute outro que medidas haacute de ldquomesmordquo e de ldquooutrordquo ou de

67

ldquoinovaccedilatildeordquo algo que compreendemos por processos de diferenciaccedilatildeo e

similaridade

ldquoDie Aufgabe des Uumlbersetzersrdquo eacute um texto frequentemente referido como

ensaio a despeito de ser mais loacutegico e afirmativo do que essa classificaccedilatildeo

poderia implicar (isso talvez ocorra pela obsessatildeo proacutepria do seacuteculo XX de

enxergar Essayismus em variadas formas textuais e em alguns autores

Moumlglichkeitsmenschen ou ldquopossibilitaacuteriosrdquo nos termos do escritor modernista

austriacuteaco Robert Musil contemporacircneo de Joyce) Benjamin transparece certo

idealismo em seu conceito de liacutengua pura e transita entre a construccedilatildeo desse

conceito eteacutereo agrave medida que o texto avanccedila e nuances de uma tradiccedilatildeo

platocircnica um tanto menos hesitante mais soacutelida Ainda assim eacute clara a

ratificaccedilatildeo buscada pelo autor de afirmar a traduccedilatildeo da arte tatildeo dignificante

quanto a criaccedilatildeo artiacutestica per se

Considerando-se um texto classificado como ldquoliteraacuteriordquo o dilema de como

traduzir se torna especificamente (poreacutem natildeo necessariamente mais) complexo

Poder-se-ia considerar que a abertura do texto facilita a tarefa tradutoacuteria uma

vez que expande as possibilidades de escolhas em vez de reduzir a

correspondecircncia de uma palavra a uma entrada dicionarizada ou opccedilatildeo lexical

mais imediata Traduzir literatura demanda meditar sobre um termo mas

tambeacutem sobre a frase a estrutura e o todo da obra A expansatildeo lexical

engendrada em arte eacute contudo sinteacutetica natildeo haacute possibilidades quaisquer de

consequecircncias equivalentes mas ao contraacuterio as consequecircncias de uma

escolha ou outra devem ser drasticamente distintas A necessidade do mot juste

do labor artiacutestico literaacuterio permanece sendo uma demanda da tarefa tradutoacuteria e

nesse sentido o tradutor em um entendimento radical de sua praacutetica de alguma

forma reescreve o texto de partida tomando emprestadas a estrutura e as ideias

do que traduz

Esse eacute o princiacutepio levado agrave risca com o termo transcriaccedilatildeo ainda que natildeo

se restrinja agrave modalidade concebida pelos irmatildeos Campos que envolve ainda

outros argumentos A despeito da conaccedilatildeo ou vocaccedilatildeo artiacutestica putativa do

tradutor ou seu esforccedilo em ser tambeacutem poeta a traduccedilatildeo de literatura lida com

68

o fenocircmeno potencializado de cada termo ter alto impacto seja o mot juste

procurado pelo tradutor criativamente seja buscado em metodologia que

percorra caminho teacutecnico-investigativo Haroldo de Campos afirma a respeito

das traduccedilotildees do Panaroma do Finnegans wake (2001) ldquo() o que interessa

natildeo eacute a literalidade do texto mas sobretudo a fidelidade ao espiacuterito ao lsquoclimarsquo

joyciano frente ao diverso feixe de possibilidades do material verbal manipuladordquo

(CAMPOS 2001 pp 27-28) Essa fidelidade pode ser entendida como anaacuteloga

agrave que Benjamin defende que se engendra sendo fiel agrave forma do texto

destituindo-o da fidelidade ipsis litteris isto eacute daquela realizada de maneira

literal de vocaacutebulo em vocaacutebulo apoiada na suposta funccedilatildeo tradutoacuteria de

transpor a mensagem comunicativa considerada ldquoinessencialrdquo Em seu texto

ldquoTransluciferaccedilatildeo mefistofaacuteusticardquo Haroldo afirma que ldquoNatildeo seria descabido

ultimar a teoria benjaminiana da traduccedilatildeo como portadora da mensagem lsquointerrsquo

(ou lsquotransrsquo) semioacutetica da liacutengua pura orientada pelo lema rebelionaacuterio do non

serviamrdquo (CAMPOS 2008 p 180)

Natildeo haacute nem deve haver por conseguinte expectativa de transposiccedilatildeo

entre planos em resultado tradutoacuterio calculaacutevel desde que se admita que a

traduccedilatildeo como o texto de partida natildeo significa o mesmo que ele mas eacute mdash deve

ser em sua tautologia como propotildee Albercht Fabri Se vemos o tangenciamento

de Benjamin devemos vislumbrar no processo tradutoacuterio cerebral o ponto a ser

tocado entre a infinidade de pontos natildeo obstante isso soacute pode permitir a

deduccedilatildeo do horizonte da liacutengua pura se for mantido o espaccedilamento da ldquopulsatildeo

dionisiacuteaca que eacute capaz de dissolver a diamantizaccedilatildeo apoliacutenea do original preacute-

formado em nova festa siacutegnicardquo pondo a ldquocristalografia em ebuliccedilatildeo de lavardquo

(CAMPOS 2008 p 180) Revela-se prejudicial o uso de termos similares a

ldquomensagemrdquo ldquomensageirordquo pois afirma um binarismo de espaccedilos em que dois

planos coexistem e entre eles ocorre o intercacircmbio Falar em ldquoportadora de

mensagemrdquo soacute eacute cabiacutevel nesse contexto se referindo agrave ldquointer (ou trans)

semioacutetica da liacutengua purardquo da fala de Haroldo mas natildeo ao que remete de forma

mais imediata o conteuacutedo inessencial mdash ao inveacutes da categoria da forma que

caracteriza a traduccedilatildeo na teoria benjaminiana

69

Admitiriacuteamos assim a possibilidade de o receptor da traduccedilatildeo ser um

leitor capaz de acessar o original de forma que a traduccedilatildeo seja um texto

adicional ao inveacutes de atuar como um usurpador do estatuto de texto primeiro

Mais do que uma possibilidade o leitor ideal da traduccedilatildeo seria esse que pode

vecirc-la como fonte de variantes interpretativas provenientes de leitura singular do

texto feita pelo tradutor (um leitor ideal sob essa oacuteptica) A palavra para

ldquotraduccedilatildeordquo na liacutengua alematilde eacute Uumlbersetzung junccedilatildeo do prefixo (do tipo que tem

valor semacircntico tambeacutem por si soacute) uumlber com a palavra setzung significando uma

sobreposiccedilatildeo sobreaplicaccedilatildeo Indica uma sobre-escrit(ur)a uma sobrevivecircncia

O leitor da traduccedilatildeo que tem acesso ao original mdash o que definimos como o leitor

ideal da traduccedilatildeo mdash e sua leitura do texto de partida e do que lhe foi sobre-escrito

eacute outro argumento a favor da traduccedilatildeo criativa e ratifica a possibilidade de o labor

tradutoacuterio poder e dever ser executado como arte conferindo ao tradutor natildeo

somente status mas responsabilidade Natildeo soacute pode se dedicar agrave busca do mot

juste como se incumbe desse dever ao se prestar agrave traduccedilatildeo

Walter Benjamin afirma o estatuto da traduccedilatildeo como forma que natildeo se

rende ao papel de transpor significados de um idioma a outro libertando-a de

qualquer caraacuteter submisso ao texto traduzido No entanto isso natildeo significa

forccedilar uma desvinculaccedilatildeo Ao contraacuterio afirma que ldquoeacute preciso retornar ao

originalrdquo (BENJAMIN 2008 p 67) Os quatro tradutores do texto de Benjamin mdash

Fernando Camacho Karlheinz Barck (e equipe natildeo nomeada) Susana Kampff

Lages e Joatildeo Barrento mdash optam pelos termos ldquoretornarrdquo ou ldquoregressarrdquo ldquoo

regressordquo No entanto pensar em voltar-se ao que eacute o texto original explicitaria

como isso significa o ato literal de como leitor do texto de partida debruccedilar-se

considerando como o tradutor deve eacute oacutebvio ir a ele natildeo somente em um

regresso simboacutelico mas tambeacutem como parte efetiva do processo de traduccedilatildeo A

concisa expressatildeo do movimento de voltar-se aponta tambeacutem para a

necessidade de evocaacute-lo no texto resultante da traduccedilatildeo ainda que natildeo seja

servil a ele e por uacuteltimo aponta para o retorno agrave liacutengua pura una babeacutelica

aquela em que natildeo haacute a categoria do enunciado e que ultrapassa as liacutenguas

nacionais

70

A traduccedilatildeo para Walter Benjamin eacute intraduziacutevel Esse fato confirma sua

autotelia O tradutor eacute fiel na medida em que produz devir em seu idioma de

forma fiel agrave que o escritor do texto de partida o fez em sua liacutengua Se pensarmos

que uma obra literaacuteria pode ter como qualidade inerente a ela segundo

Benjamin sua traduzibilidade a observaccedilatildeo tatildeo comum a respeito de Finnegans

wake vem agrave tona essa obra considerada atraveacutes dos tempos de ilegiacutevel a

intraduziacutevel teria que niacutevel de traduzibilidade Como questiona Lenita Esteves

no terceiro capiacutetulo de sua tese ldquoMas da mesma forma que Derrida aponta para

um certo aspecto risiacutevel da pergunta lsquoVocecirc jaacute leu Joycersquo podemos achar

engraccedilada a pergunta lsquoAlgueacutem jaacute traduziu Finnegans Wakersquordquo (ESTEVES

1999 p 83) Frequentemente se afirma que o idioma dessa obra de James

Joyce natildeo eacute o inglecircs mas um outro limitado ao livro e nele desenvolvido

elaborado pelo autor a partir de idiomas diversos Consideremos entatildeo que

Finnegans wake (1939) possui mdash ou melhor produz engendra uma liacutengua da

proacutepria obra Isso significaria natildeo apenas que a traduccedilatildeo deve fazer o mesmo

mas tambeacutem que esse idioma proacuteprio tem no texto as definiccedilotildees de suas

especificidades as diretrizes de seus paracircmetros e a que princiacutepios estaacute

submetido

Natildeo poderiacuteamos afirmar o mesmo no entanto a respeito de todo e

qualquer texto literaacuterio Finnegans wake apresenta de forma radicalmente

expliacutecita e elaborada com extrema acuidade o que toda a Literatura todo e

qualquer texto-arte traz intacto em sua essecircncia uma liacutengua proacutepria um dizer

que natildeo se repete no linguajar cotidiano tampouco em outros autores ainda

menos em textos teacutecnicos dissertativos cientiacuteficos Podemos entender

destarte a essecircncia antiteacutetica da tarefa de traduzir literatura cujos alicerces satildeo

os dois fatos concorrentes de que o texto literaacuterio recusa-se a uma transposiccedilatildeo

de seus significados a uma traduccedilatildeo entendida como produtora de alguma

equivalecircncia e o de que tambeacutem demanda que seja traduzido em tendo

traduzibilidade inerente de maneira diferente ou em outro grau que natildeo pertence

a uma traduzibilidade de sentido de mensagem de comunicaccedilatildeo A traduccedilatildeo de

literatura portanto de texto que produza em sua tessitura uma linguagem

proacutepria enquadrada em sua focircrma exige efetivamente a criaccedilatildeo de mais uma

71

liacutengua proacutepria tecida textualmente jaacute que existiraacute outro texto ou nova versatildeo do

texto que se intenta traduzir Esse fator inescapaacutevel por conseguinte faz

necessaacuterio que inspirando-se no ldquoidioma proacuteprio do textordquo de partida o tradutor

se lance a realizar alguma espeacutecie de criaccedilatildeo no idioma para o qual traduz ainda

que natildeo seja um seguidor dos caminhos de liberdade apontados pela

transcriaccedilatildeo

A traduccedilatildeo de literatura difere-se ainda por outro fator que natildeo diz respeito

a sua feitura mas reside no que excede sua elaboraccedilatildeo o acometimento de

certa direccedilatildeo na recepccedilatildeo e na criacutetica do texto em distintas heranccedilas escolhidas

Eacute niacutetido em Finnegans wake o quanto seus principais tradutores brasileiros mdash

Augusto de Campos Haroldo de Campos e o professor Donaldo Schuumller mdash

encaram a obra como radical aleacutem de efetivamente concordarem com o fato de

que sua complexidade torna a traduccedilatildeo tanto mais difiacutecil quanto profiacutecua

ldquoFinnegans wake eacute 100 de inovaccedilatildeo linguiacutestica Nenhuma concessatildeo Nenhum

recuordquo (CAMPOS 2001 p 21) Na introduccedilatildeo do primeiro volume de sua

traduccedilatildeo Donaldo Schuumller ldquoDistanciamo-nos com frequecircncia da literalidade

para captar efeitos que ultrapassam significados () Num discurso

deliberadamente oniacuterico luminosidade intensa natildeo se atingiraacute nuncardquo

(SCHUumlLER 2004 p 25) Em texto publicado no Panaroma e tambeacutem na

coletacircnea Teoria da poesia concreta Haroldo de Campos afirma ldquoTraduzir

James Joyce especialmente fragmentos de Finnegans wake eacute uma ginaacutestica

com a palavra um trabalho de perfeccionismo Algo que nunca assume o

aparato estaacutetico do definitivordquo (CAMPOS 2001 p 27)

Apesar das semelhanccedilas ambas as traduccedilotildees tanto a de Panaroma do

Finnegans wake cuja primeira ediccedilatildeo data de 1962 quanto a de Finnegans

wakeFinnicius reveacutem (2004) implicam recepccedilotildees (preacute e poacutes-traduccedilatildeo) distintas

e empregam diferentes instrumentos para lidar com as possibilidades do texto

de partida Os irmatildeos Campos optam pela traduccedilatildeo que chamam de intensiva

(ao inveacutes de extensiva) colhendo trechos que demonstrem o potencial radical

do texto como um todo ldquoO nosso objetivo sempre foi o de trabalhar e lapidar

alguns dos momentos maacutegicos do livro e somente dar a puacuteblico aqueles que

em nosso entender oferecessem em portuguecircs um estatuto equivalente agrave alta

72

voltagem de invenccedilatildeo e criatividade do original Trabalho de concentraccedilatildeordquo

(CAMPOS 2001 p 21)

Schuumller por outro lado algumas deacutecadas depois opta pela traduccedilatildeo

integral e portanto por aquela que tenderia ao que Augusto de Campos e

Haroldo de Campos entatildeo denominaram extensiva ainda que o labor de

Donaldo Schuumller natildeo deixe de ser tambeacutem de intensidade sobre o texto

debruccedilou-se sobre cada fragmento dedicando-se a cada um separadamente

gradualmente como uma obra por si Alerta ldquoPara se fazer entendido o texto

oferece muitas versotildees do mesmo coacutedigo cifradordquo (SCHUumlLER 2008 p 24)

Como Joyce nas palavras dos irmatildeos Campos natildeo faz concessotildees o tradutor

afirma seguir o mesmo caminho de natildeo simplificar e recomenda leitura que se

submeta aos mesmos riscos ldquoVencida a vertigem ante frequentes abismos

somos estimulados a criar roteiros proacuteprios () Natildeo se espere assim

inteligibilidade completa do textordquo (Ibid p 25)

Se a traduccedilatildeo intensiva portanto daacute a entender a potenciaccedilatildeo de um

esforccedilo vertical de imersatildeo aplica-se tambeacutem agrave metodologia de Donaldo que

percorre fragmento a fragmento traduzindo criativamente Cumpre a missatildeo

predita por Lenita Esteves em sua tese anos antes da publicaccedilatildeo completa da

traduccedilatildeo de Schuumller ldquoMas da mesma forma que Derrida aponta para um certo

aspecto risiacutevel da pergunta lsquoVocecirc jaacute leu Joycersquo podemos achar engraccedilada a

pergunta ldquoAlgueacutem jaacute traduziu Finnegans wakerdquo Traduziu de que liacutengua para

que outra Se como afirmam alguns autores Joyce fragmentou quebrou

desmantelou a liacutengua inglesa o tradutor teraacute tambeacutem que compor um texto

desmantelando sua liacutenguardquo (ESTEVES 1999 p 83) A liacutengua portuguesa eacute

entatildeo invadida mdash natildeo invalidada mas povoada mdash- por um texto wakiano em

vez de prestar-se ao trabalho de verter de caacute para laacute eacute tambeacutem como o inglecircs

o foi alterada habitada pela literatura que a torce e a desorienta Uma enxurrada

invade com correnteza violenta a liacutengua para a qual se verte enquanto a

linguagem segue o fluxo que natildeo eacute margeado por delimitaccedilotildees gramaticais mas

ao contraacuterio gera a erosatildeo dessas fronteiras

73

Comparando as duas traduccedilotildees do primeiro fragmento de Finnegans

wake das ediccedilotildees supracitadas podemos perceber como versotildees de um texto

tatildeo radical que optam por soluccedilotildees tradutoacuterias distintas resultam em dois textos

consideravelmente diferentes entre si ainda que ambas partam do princiacutepio de

serem traduccedilotildees para a liacutengua portuguesa e que tenham sido feitas por

brasileiros Na primeira linha por exemplo

riverrun past Eve and Adamrsquos (FW 31)

Observa-se que ldquopast _____rdquo (o termo past seguido de um complemento

direto portanto) pode significar algo como ldquoapoacutesrdquo em portuguecircs poreacutem tanto

temporalmente referindo-se a uma sequecircncia cronoloacutegica quanto

espacialmente indicando uma passagem no caso pela igreja Adam and Eve

em Dublin A inversatildeo no nome do local indica uma subversatildeo e portanto uma

impossibilidade de se decidir entre o sentido de passar pela igreja ou de passar

o tempo de Adatildeo e Eva indicado tambeacutem pelo termo ldquopastrdquo que carrega traccedilos

semacircnticos relacionados a tempo A demanda da coexistecircncia dessas duas

possibilidades portanto eacute um desafio tradutoacuterio que se impotildee jaacute no primeiro

periacuteodo da obra A traduccedilatildeo de Augusto de Campos opta por direcionar o olhar

agrave ideia temporal

riocorrente depois de Eva e Adatildeo (CAMPOS 2001 p 41)

Aleacutem do uso do termo ldquodepoisrdquo tambeacutem relacionado a tempo

prioritariamente como o ldquopastrdquo do texto de partida mas tambeacutem possiacutevel de se

referir ao deslocamento no espaccedilo a ausecircncia de artigo antes de ldquoEva e Adatildeordquo

esconderia a possibilidade de pensar no local na construccedilatildeo mdash na igreja

especiacutefica (algo que em inglecircs jaacute que natildeo admitiria artigo eacute indicado pelo uso

de apoacutestrofe + ldquosrdquo do possessivo) Assim poderia ser talvez mais imediato

74

pensar em ldquoEva e Adatildeordquo como algo que seja mais que somente os dois

personagens biacuteblicos se estivesse escrito digamos ldquodepois da Eva e Adatildeordquo de

forma que o artigo indicasse haver uma elipse (funccedilatildeo que eacute cumprida no texto

de Joyce pelo possessivo marcado com lsquos)

Quanto agrave opccedilatildeo posterior de Donaldo Schuumller (2002) perlustrando uma

outra via tradutoacuteria pode-se dizer que visa explicitar essa possibilidade de leitura

mais difiacutecil de ser captada mdash especialmente pelo leitor natildeo irlandecircs que natildeo teraacute

a referecircncia do nome dessa igreja em mente e tirando a viacutergula

rolarriuanna e passa por Nossenhora drsquoOhmemrsquos

Manteve-se entatildeo na traduccedilatildeo de Schuumller a referecircncia ao catolicismo

ainda que agora seja agrave Nossa Senhora do Oacute A opccedilatildeo aqui trazendo agrave sentenccedila

uma imagem relacionada agrave praacutetica religiosa na Peniacutensula Ibeacuterica e no Brasil foi

a de ser fiel ao ldquoespiacuteritordquo joyciano mdash no termo dos irmatildeos Campos herdado da

ideia de Ezra Pound mdash no que se refere agrave proposta de universalidade a despeito

das referecircncias a uma cidade especiacutefica Finnegans wake faz do mapa de Dublin

uma referecircncia a tudo aquilo que ultrapassa quaisquer limites geograacuteficos Haacute

em Salvador no bairro de Paripe uma Igreja de Nossa Senhora do Oacute uma das

primeiras paroacutequias fundadas na colocircnia portuguesa data do seacuteculo XVI O

marco iniciaacutetico de Adatildeo e Eva isto eacute a semacircntica do ab initio se reverbera

nessa marcaccedilatildeo histoacuterica em territoacuterio brasileiro Deve-se lembrar que a

traduccedilatildeo por ldquoNossenhora d`Ohmemrsquosrdquo natildeo se amarra a esse ponto geograacutefico

uma vez que existem diversas paroacutequias dedicadas a essa mesma Santa por

todo o Brasil em Portugal e na Espanha Podemos perceber ademais nessa

mesma expressatildeo que traduziria a princiacutepio um mero nome de igreja mdash em

Joyce nada eacute meramente um nome mdash a presenccedila do personagem HCE todos

os homens Here Comes Everybody (entre tantos outros arrolamentos) mostra-

se na aglutinaccedilatildeo de Oacute com Homem = Ohmem que reverbera ainda um

possiacutevel ldquoameacutemrdquo A viacutergula apoacutes riverrun foi trocada pela conjunccedilatildeo aditiva mas

75

a viacutergula apoacutes Adamrsquos manteve-se a mesma apoacutes Ohmemrsquos que foi grafado com

ldquomrdquo no final e apoacutestrofe + s assim como eacute o nome masculino o de Adatildeo em

inglecircs

A respeito das referecircncias presentes na obra do escritor irlandecircs Donaldo

Schuumller diz ldquoNatildeo haacute paacutegina em FW sem evocaccedilotildees literaacuterias mdash as biacuteblicas

superam todas mdash como se Joyce quisesse abarcar tudo o que se escreveu

fazendo de todos os textos um livro soacuterdquo (SCHUumlLER 2004 p 20) Esse ideal

extremo de condensaccedilatildeo traz uma possibilidade ou um anseio de superaccedilatildeo do

tempo reunindo todas as obras jaacute escritas em uma soacute supera-se o que o tempo

apaga o que a distacircncia cronoloacutegica segrega A literatura pode ser pensada

entatildeo em seu caraacuteter trans-histoacuterico como afirma o fenomenoacutelogo francecircs Paul

Ricoeur em Tempo e narrativa na medida em que se eleva sobre as divisotildees do

tempo histoacuterico e cronoloacutegico de modo que se faz de toda a histoacuteria da literatura

um acontecimento contemporacircneo discorrendo sobre o tempo do calendaacuterio

ldquoentre o tempo vivido e o tempo universalrdquo com Benveniste a partir das noccedilotildees

de tempo linguiacutestico

Contudo embora a contagem do tempo do calendaacuterio esteja apoiada nos fenocircmenos astronocircmicos que datildeo sentido agrave noccedilatildeo de tempo fiacutesico o princiacutepio da divisatildeo do tempo do calendaacuterio escapa agrave fiacutesica e agrave astronomia () A originalidade que o tempo axial confere ao tempo do calendaacuterio autoriza a declarar este uacuteltimo ldquoexteriorrdquo tanto ao tempo fiacutesico como ao tempo vivido Por um lado todos os instantes satildeo candidatos legiacutetimos ao papel de momento axial Por outro natildeo haacute nada que diga que determinado dia do calendaacuterio tomado em si mesmo eacute passado presente ou futuro () Para ter presente como tambeacutem aprendemos com Benveniste eacute preciso que algueacutem fale o presente eacute o discurso que o enuncia para chegar ao tempo vivido a partir do tempo crocircnico eacute portanto preciso passar pelo tempo linguiacutestico referido ao discurso eacute por isso que determinada data completa e expliacutecita natildeo pode ser dita nem futura nem passada se ignorarmos a data da enunciaccedilatildeo que a pronuncia (RICOEUR 2012 pp182-184)

De alguma maneira a Odisseia de Homero eacute passiacutevel de ser entendida

contiguamente ao Ulysses de Joyce assim como ocorreria entatildeo com as

referecircncias contidas em Finnegans wake desde as biacuteblicas passando por

Tristatildeo e Isolda lendas irlandesas e tantas outras referecircncias histoacuterico-culturais

76

Um eterno retorno na literatura em vez de uma histoacuteria literaacuteria linear ou

perioacutedica os efeitos de uma obra natildeo tecircm iniacutecio ou fim mas engendram um

impacto que se espirala alastra-se atraveacutes do tempo sem uma chegada

O texto lanccedilado agrave traduccedilatildeo atinge em concretude a possibilidade de seu

desdobramento multiplicado agrave medida que vaacuterias traduccedilotildees coexistam Haver

mais de uma traduccedilatildeo para um mesmo fragmento de Finnegans wake ou para

qualquer outro texto literaacuterio soacute adiciona em vez de se anularem ou se

contradizerem muito mais provavelmente se complementam Seratildeo distintas por

mais parecidas que sejam transformando o texto de partida em variados outros

que natildeo lhe satildeo alheios tampouco lhe equivalem Traduzir eacute frequentemente

entendida em senso comum como uma atividade verbal geradora de equidade

como o transportar das letras de um idioma a outro Intercambiar idiomas no

entanto implica a mudanccedila de paradigmas mdash natildeo apenas pela existecircncia de

fenocircmenos linguiacutesticos relacionados a certa constituiccedilatildeo social e cultural que

existem e variam mesmo em um soacute idioma mas tambeacutem de acordo com os

diferentes paracircmetros (no sentido chomskyano) isto eacute possibilidades efetivas

de expressatildeo que a organizaccedilatildeo de determinado sistema verbal proporciona

Paralelamente ao ipsis litteris portanto compreendemos a traduccedilatildeo como uma

(tentativa de) equivalecircncia imperfeita a priori mdash ou em vez de equidade como

uma renovaccedilatildeo ou um desdobramento em tese infinito Isso sem que perda de

vista que haacute como diz Benjamin uma tangecircncia na qual a relaccedilatildeo entre o texto

de partida e a sua traduccedilatildeo se relacionam sem que haja uma transparecircncia ou

um espelhamento entre os dois um sobre o outro ou um frente ao outro mas

sim uma uniatildeo tangencial de dois textos distintos

Tendo em mente esses procedimentos e o exemplo dos brilhantes

resultados do trabalho dos irmatildeos Campos e do de Schuumller ensejaria a

pergunta uma boa traduccedilatildeo deve entender o ato tradutoacuterio dessa forma

disseminadora para produzir algo tatildeo rico quanto se afirma que uma traduccedilatildeo

pode alcanccedilar devendo ansiar por tal resultado Ou em outras palavras a

traduccedilatildeo eacute tudo isso ou sob certas condiccedilotildees demarcadas concernentes a uma

metodologia e a uma postura diante de sua feitura pode secirc-lo A mesma

pergunta permanece pairando a respeito da arte e da definiccedilatildeo de texto literaacuterio

77

A busca por saber que texto eacute ldquoboardquo literatura e que texto sequer eacute ldquoliteraacuteriordquo

afora a prova do tempo que inclui ou exclui obras de um cacircnone atrai diversas

respostas O que podemos ratificar eacute que as traduccedilotildees que partam da noccedilatildeo de

ato comunicativo de exegese una de uma interpretaccedilatildeo fechada do texto ainda

que natildeo tenham como objetivo transparecer algo de incomunicaacutevel do texto

literaacuterio poderatildeo porventura fazecirc-lo mdash como que carregando algo do texto de

partida sem nem perceber Ou se pensarmos de maneira um tanto mais

pessimista apenas destruiratildeo a relaccedilatildeo ideal eteacuterea e fugitiva com o texto de

partida natildeo sendo fiel a seu espiacuterito e ao que faz dele uma peccedila de arte e

funcionaratildeo como exerciacutecio de traduccedilatildeo intentando sinoniacutemia impossiacutevel e

concretizando mera paraacutefrase que talvez extirpe o caraacuteter literaacuterio artiacutestico que

havia outrora no texto de partida

Em ldquoUntranslatable yourdquo Shireen Patell sintetiza um caraacuteter duplo do

trabalho de traduccedilatildeo ldquoThe task of the translator () is at once an act of mourning

and na ethical practice because it is a task dictated by an absolute alterity that

signals both loss and law without calculusrdquo (PATELL 2005 p 899)26 Patell

lembra ainda Derrida no que diz respeito ao fato de que a traduccedilatildeo natildeo eacute uma

relaccedilatildeo intersubjetiva ou interpessoal mas grafemaacutetica Haacute uma diferenccedila entre

a assinatura e quem assina no caso da traduccedilatildeo essa diferenccedila se explicita na

distacircncia entre o tradutor e aquilo com o que se compromete em nome de algo

o texto e a assinatura tecircm sobrevida Ainda que haja uma dificuldade em

determinar a autoria de um texto traduzido se autor ou tradutor ou se uma

combinaccedilatildeo emerge uma assinatura nova

As mesmas perguntas a respeito da ilegibilidade de Finnegans wake se

fazem quanto agrave sua traduzibilidade ou agraves possibilidades tradutoacuterias que pode

oferecer O fato eacute que o texto possui uma riqueza nesse sentido tendo sido

produzidas excelentes traduccedilotildees e havendo ainda uma proficuidade para novas

tentativas Traduzido por Augusto de Campos Haroldo de Campos Donaldo

Schuumller e tantos outros mais que possam ter se aventurado bem como

tangencialmente por Caetano Galindo que traduziu Finnrsquos Hotel texto de Joyce

26 ldquoA tarefa doa tradutora eacute ao mesmo tempo um ato de luto e uma praacutetica eacutetica porque eacute uma tarefa comandada por uma alteridade absoluta que assinala tanto perda quanto lei sem caacutelculordquo

78

escrito entre Finnegans wake e Ulysses que parece ter sido uma espeacutecie de

rascunho do que seria o Wake ou talvez uma obra independente com algumas

pontes ou treinos ou inspiraccedilotildees de Joyce sobre o trabalho de traduzir Joyce

em Finnrsquos hotel (2014) diz Galindo ldquo[Joyce] Cobra que vocecirc fuce em cantos do

portuguecircs que normalmente ficam ali soacute pegando poacute Eacute em suma um imenso

prazer para quem tem esse tipo de perversatildeordquo (p 11) mdash e aqui lembramos o que

diz Seamus Deane excerto jaacute citado em capiacutetulo anterior ldquo[The book] converts

itself into English and perverts itself from Englishrdquo (DEANE 2000 p viii) Tanto

a escrita de Joyce quanto a traduccedilatildeo de seu texto sendo perversotildees do idioma

(ou de idiomas) natildeo poderiam caber em definiccedilotildees de traduccedilatildeo como

reproduccedilatildeo exata pois exige torccedilotildees para que se exprima ldquoconteuacutedo essencialrdquo

Assim como os exemplos tradutoacuterios aqui citados podem relativizar certas

afirmaccedilotildees se considerarmos em vez deles traduccedilotildees que natildeo tenham sido

executadas com o mesmo esmero o texto literaacuterio de partida aqui referenciado

tem a mesma consequecircncia Finnegans wake se caracteriza como uma literatura

considerada radical mdash por vezes foi considerado texto ilegiacutevel e subestimado

como mera brincadeira intelectual mdash e dessa forma eacute paradigma ideal para

exemplificar o caraacuteter eteacutereo que propomos como o que um texto tem de

intraduziacutevel No entanto como dito anteriormente o que se entende por literaacuterio

em Finnegans wake vale para todo e qualquer texto-arte poesia romancepoema

etc independentemente do gecircnero literaacuterio

A problemaacutetica dos nomes proacuteprios em Finnegans wake pontua uma

dificuldade peculiar em sua traduccedilatildeo Os nomes das personagens mudam a todo

o tempo sem haver qualquer previsibilidade ainda que sempre haja pistas para

que o leitor reconheccedila as relaccedilotildees Poder-se-ia dizer que natildeo somente os nomes

sofrem mutaccedilotildees mas os proacuteprios seres HCE e ALP aparecem em siglas em

frases diversas enquanto Isobel tem sua vogal trocada ou eacute chamada por

variaccedilotildees diversas de seu apelido Issy ou na forma de Nuvoletta Shem e

Shaun mudam para combinaccedilotildees ainda mais distantes como Mutt e Jute Burrus

e Caseous Mercius e Justius Dolph e Kev sempre na reminiscecircncia do duplo

ambivalente Essas mudanccedilas de assinaturas reverberam a condiccedilatildeo mesma

das personagens no que estiver acontecendo a cada momento

79

Traduzir eacute natildeo solidificar mdash natildeo haacute traduccedilatildeo uacuteltima ainda que possa haver

uma melhor que outra(s) mdash mas lanccedilar jogar um jogo de azar aposta-se em

uma possibilidade existente entre infindas outras e se destrinccedila o resultado

Seraacute acertado eacute provaacutevel ainda que natildeo seja Poderia ser 1 mas foi 2 Seria

igual se fosse 3 mdash igual mas diferente Tal entendimento natildeo resolve a traduccedilatildeo

natildeo a define de forma a esquecermos os problemas que acarreta Ao contraacuterio

entendecirc-la como um enredamento problemaacutetico antes de tudo permite fundaacute-la

como texto-fonte de discussatildeo tanto quanto seu texto de partida Os noacutes

tradutoacuterios deixam de secirc-lo exclusivamente para em vez disso enriquecerem

toda a constelaccedilatildeo do texto (o texto de partida e suas traduccedilotildees coexistentes)

especialmente se literaacuterio filosoacutefico ou de forma geral ensaiacutestico adicionando

discussatildeo no proacuteprio corpus do que eacute posto em pauta Pode-se ler a traduccedilatildeo

como criacutetica como ensaio como resenha como resumo como paraacutefrase ela

pode transparecer todas essas formas de expressatildeo de um texto sendo ela

mesma outro texto em vez de gecircnero objetivo Uma (boa) traduccedilatildeo condensa

uma paideuma espremendo uma impressatildeo ao mesmo tempo em que exprime

uma compreensatildeo A eventual dificuldade existente em se valorar uma obra

literaacuteria como boa (ou mesmo como literaacuteria) pode ser a mesma de se valorar a

traduccedilatildeo mas seus valores podem variar de acordo com as pautas que propotildee

com as suas premissas aleacutem de ela mesma transparecer uma certa leitura ou

visatildeo do texto de partida atraveacutes das decisotildees tradutoacuterias e das criaccedilotildees que oa

tradutora possa se permitir ao trabalhar (sobre) o texto

Sem desconsiderar dificuldades especiacuteficas inerentes e inegaacuteveis ao texto

de James Joyce dilemas tradutoacuterios no Wake podem ser dilemas tradutoacuterios

compartilhados em geral por toda e qualquer empreitada de traduccedilatildeo de textos

escriturais A literatura em geral parecendo mais ou menos complexa mais ou

menos legiacutevel e compreensiacutevel demanda o cuidado detalhado e rigoroso e por

isso impotildee dificuldades incontornaacuteveis e em verdade sem soluccedilatildeo que as

extermine por mais que se tente traduzir de diversas maneiras e por mais notas

de rodapeacute que se preencham Referindo-nos especificamente ao proacuteprio

Finnegans wake citamos novamente o texto de Shireen Patell mdash em que ela fala

sobre todo e qualquer texto possivelmente intraduziacutevel

80

What cannot be translated calls for the future translations that perpetually reach toward but can only trace an oblique if missed touch () Absolute untranslatability is the silent articulation of the absent ideality of translation that nonetheless inspires translation figuration writing This absolute translatability is in and of the language itself (PATELL 2005 p 901)27

Ademais mesmo admitindo certa dificuldade especiacutefica inerente ao

Finnegans wake seja entre a traduccedilatildeo de nomes de personagens seja na dos

trovotildees de cem letras que povoam todo o livro mdash e que frequentemente satildeo

mantidos sem traduccedilatildeo mdash defende-se aqui uma postura necessaacuteria diante de

qualquer obra literaacuteria Pode-se evocar aqui um trecho de Jacques Derrida em

seu livro De la grammatologie discorrendo sobre as afirmaccedilotildees a respeito da

linguagem de Jean-Jacques Rousseau no texto ldquoGecircnese e escritura do Essai sur

lrsquooriginerdquo ldquoNatildeo haveraacute nem uma linha histoacuterica nem um quadro imoacutevel das

liacutenguas () As liacutenguas satildeo semeadasrdquo (DERRIDA 2011 p 263) Essa citaccedilatildeo

pode contribuir aqui como uma explicaccedilatildeo do dinamismo babeacutelico do proacuteprio

Wake que lida com liacutenguas sem delimitaccedilatildeo suficientemente inseridas em

fluidez de hibridizaccedilatildeo e fusatildeo sendo semeadas e assim portanto germinando

no feacutertil suporte terreno do texto Estende-se poreacutem a qualquer escritura que

contenha em si uma gagueira para falar com Gilles Deleuze ou qualquer texto

feito a partir de uma liacutengua contendo algum niacutevel de estranhamento diante da

proacutepria liacutengua atuando na sua fronteira Ainda que natildeo haja o trabalho de

confronto ou um fenocircmeno de clash entre diferentes idiomas uma liacutengua jamais

estaacute ausente de relaccedilotildees com outras liacutenguas que vieram antes depois que

ocuparam terras proacuteximas ou distantes Mesmo que natildeo sejam fundidos

explicitamente dezenas de diferentes idiomas como faz Joyce no Wake

nenhum texto eacute isolado em sua liacutengua

27 ldquoO que natildeo pode ser traduzido demanda futuras traduccedilotildees que perpetuamente se direcionam mas soacute podem rastrear um obliacutequo ou mesmo perdido toque () Intraduzibilidade absoluta eacute a articulaccedilatildeo silenciosa que inspira poreacutem traduccedilatildeo figuraccedilatildeo escrita Essa absoluta intraduzibilidade estaacute na e eacute da liacutengua ela mesmardquo

81

Tal postura tradutoacuteria jaacute seria suficiente para nos apartar do labor braccedilal

de buscar definiccedilotildees dicionarizadas como sinocircnimo de traduccedilatildeo Essa maneira

de ida ao texto se relaciona natildeo somente com o resultado que surgiraacute da

traduccedilatildeo mas comeccedila na forma de leitura do texto de partida na maneira como

eacute abordado pela primeira vez mdash natildeo somente pelo leitor que lecirc com intenccedilatildeo e

olhos de tradutor mas por qualquer outro Se o que se busca eacute a univocidade a

definiccedilatildeo a anaacutelise estrutural perfeita com blocos conceituais relacionados a

cada porccedilatildeo do texto e metaacuteforas delineadas a serem circuladas a babelizaccedilatildeo

do texto seraacute entatildeo deixada de lado A traduccedilatildeo pautada por uma simplificaccedilatildeo

ou univocidade semacircntica por reestruturaccedilatildeo deriva de uma leitura

hermenecircutica Se a gagueira do texto de partida eacute ignorada certamente natildeo

apareceraacute nem transpareceraacute qualquer tipo de gagueira no texto derivado

ldquotraduzidordquo a gagueira que habita a traduccedilatildeo eacute resultado da relaccedilatildeo primaacuteria mdash

no sentido de primeira mdash do tradutor com o texto que se propotildee a traduzir recriar

ou transcriar em uma postura de leitor disposto a vivecirc-lo em vez de entendecirc-lo

Disposto a ter uma experiecircncia com sua linguagem muito antes de tencionar

destrinchaacute-lo

CAPIacuteTULO III

LEITURA LUTO ELIPSE

83

Ao pensarmos em Finnegans wake seja tendo um conhecimento distante

fragmentado ou superficial a seu respeito seja apoacutes tentativas de aproximaccedilatildeo

da obra uma seacuterie de questotildees inevitavelmente nos consomem em verdade

continuam a aparecer mesmo durante a entrega a uma leitura profunda desse

texto impossiacutevel de se explorar de forma acelerada ou submetida a prazos

dados os obstaacuteculos que nos prendem por um tempo sempre maior que o

previsto em um paraacutegrafo em uma linha ou em uma soacute enigmaacutetica palavra Uma

leitura ceacutelere ainda que permita terminar de ler o livro integralmente eacute uma

leitura desperdiccedilada Em se tratando de Finnegans wake a concepccedilatildeo do livro

eacute clara quanto a mais valer o deter-se sobre uma linha que se mostre inebriante

do que o impaciente passar de paacuteginas insistentemente evocando uma leitura

fluida em velocidade que provavelmente teraacute sido forccedilada e pouco proveitosa

84

Essa escolha de Joyce aponta como sabemos e logicamente podemos

supor a estrutura circular do livro No entanto essa expressatildeo natildeo pode se

findar em si mesma sendo banalizada significando nada para aleacutem dela

Devemos antes de tudo questionar a esse respeito a fim de investigar o que

algumas anaacutelises afirmam como verdades que se apresentam integrais quando

de fato satildeo geradoras de problemas diversos Pergunta-se entatildeo quais as

implicaccedilotildees de uma estrutura circular Essa estrutura eacute verdadeiramente

possiacutevel em todos os aspectos que seriam forccedilosamente decorrentes de sua

concepccedilatildeo

Eacute oportuno relembrar aqui Umberto Eco citando Henri Pousseur que

indica caber ldquoao ouvinte colocar-se voluntariamente no centro de uma rede de

relaccedilotildees inexauriacuteveisrdquo (ECO 1989 p 49) natildeo havendo amarras que

determinem o caminho da leitura Uma espeacutecie de maior livre-arbiacutetrio se instala

necessariamente diante da falta de um caminho fechado como se em vez de

percorrer um corredor o leitor se encontrasse em um labirinto Esse labirinto eacute

claro foi projetado de modo que suas curvas e becos foram pelo menos ateacute

certo ponto tranquilamente previstos Com a multiplicidade de caminhos

oferecida nessa arquitetura no entanto em oposiccedilatildeo agrave unidade do caminho

linear haacute uma medida de imprevisibilidade por mais meticulosamente planejado

que esse labirinto seja a ordem de cada escolha do indiviacuteduo que vai percorrer

seu terreno

Outras referecircncias feitas por Umberto Eco se fazem necessaacuterias no que

concerne agrave porccedilatildeo fenomenoloacutegica de toda essa problemaacutetica Em uma leitura

desse tipo podemos considerar uma esquemaacutetica que envolva a consciecircncia do

sujeito-leitor diante da obra que aiacute eacute o que percebe como fenocircmeno mdash

consciecircncia que por ser instaacutevel isto eacute no sentido de uma consciecircncia natildeo-ideal

natildeo ser plenamente preacute-delimitada mas sim aberta a mutaccedilotildees imprevisiacuteveis e

que portanto natildeo nos permitiria calcular previamente todas as possibilidades de

interaccedilatildeo com a obra em um quadro finito e fechado Umberto Eco desenvolve

esse ponto com as seguintes observaccedilotildees

85

Assim um objeto natildeo somente apresenta diversas Abschattungen (ou perfis) mas satildeo possiacuteveis diversos pontos de vista sobre uma uacutenica Abschattung O objeto para ser definido deve ser transcendido em direccedilatildeo agrave seacuterie total da qual ele enquanto uma das possiacuteveis apariccedilotildees eacute membro Nesse sentido ao dualismo tradicional ser e parecer substitui-se uma bipolaridade de finito e infinito de tal modo que o infinito se potildee no proacuteprio coraccedilatildeo do finito () O problema da relaccedilatildeo do fenocircmeno com seu fundamento ontoloacutegico dentro de uma perspectiva de abertura perceptiva transforma-se no problema de relaccedilatildeo do fenocircmeno com a plurivalecircncia das percepccedilotildees que dele podemos ter (Ibid pp 58-59)

Dessa maneira no esteio dessas afirmaccedilotildees se noacutes tomarmos em

consideraccedilatildeo as possibilidades de que uma obra como Finnegans wake

demande natildeo somente uma apreciaccedilatildeo passiva decodificando primariamente o

texto mas acima de tudo uma interaccedilatildeo de caraacuteter ateacute mesmo mais executivo

se assim pudeacutessemos dizer seria necessaacuterio no miacutenimo considerar que essa

posiccedilatildeo ativa seraacute ocupada por um leitor que tem sua proacutepria bagagem subjetiva

Natildeo colocamos em questatildeo aqui uma bagagem de conhecimento objetivo

necessaacuterio para um entendimento de leitura nem nada nesse esteio ao

contraacuterio ao inveacutes de uma espeacutecie de elitizaccedilatildeo um acesso democraacutetico permite

que qualquer indiviacuteduo se ponha agrave fruiccedilatildeo da literatura da maneira como puder

acessaacute-la O que levamos em conta eacute o caraacuteter fenomenoloacutegico dessa interaccedilatildeo

observando que essa interaccedilatildeo com a obra teraacute algo de uacutenico para cada

consciecircncia que a perceba e que tome atitudes frente a ela Umberto Eco

continuando seu raciociacutenio a respeito desse fundamento ontoloacutegico na abertura

perceptiva cita excerto de Pheacutenomenologie de la perception de Maurice

Merleau-Ponty

A contradiccedilatildeo que encontramos entre a realidade do mundo e seu inacabamento eacute a proacutepria contradiccedilatildeo entre a ubiquidade da consciecircncia e seu engajar-se num campo de presenccedila () A consciecircncia que passa pelo lugar da clareza eacute ao contraacuterio o proacuteprio lugar do equiacutevoco () Eacute portanto essencial agrave coisa e ao mundo apresentarem-se como ldquoabertosrdquo prometer sempre ldquoalgo mais a verrdquo (MERLEAU-PONTY apud ECO 1989 p 59)

86

Estruturalmente poderiacuteamos entatildeo esquematizar trecircs possibilidades de

leitura do Finnegans wake todas coerentes com a consideraccedilatildeo de uma

estrutura circular A primeira eacute a despeito da assunccedilatildeo da circularidade a que

se pode fazer seguindo a ordem da numeraccedilatildeo dos fragmentos Essa eacute uma

leitura linear tanto quanto uma segunda possibilidade em que se acessaria a

obra de qualquer fragmento ignorando a determinaccedilatildeo do iniacutecio do livro com o

nuacutemero 1 e se seguiria a leitura a partir da paacutegina escolhida na ordem colocada

ndash escolhendo por exemplo o fragmento 429 para ser o primeiro e seguir a leitura

ateacute o de nuacutemero 628 em seguida do nuacutemero 1 ateacute o nuacutemero 428 Essas duas

possibilidades diferem radicalmente de uma terceira que seria a de ler os

fragmentos em qualquer ordem anarquizando completamente a obra e tirando

dela boa parte do sentido Ler Finnegans wake fora de ordem eacute o mesmo que ler

qualquer outro livro de que se tem conhecimento fora de ordem assim como eacute

o mesmo que percorrer um ciacuterculo dando passos adiante voltando seguindo

desviando eacute uma leitura anaacuterquica que extermina o que a obra tem a oferecer

como obra una e total

Excluindo entatildeo a terceira forma de leitura esclarecemos que os

fragmentos natildeo satildeo absolutamente isolados entre si e nem intercambiaacuteveis mdash

ao menos natildeo sem seacuterias consequecircncias para a coerecircncia da obra e para o

acesso a ela como foi concebida em sua integridade Os fragmentos guardam

tanta independecircncia entre si quanto as paacuteginas do romance mais tradicional o

fazem quase nenhuma Eacute possiacutevel ler uma paacutegina do Wake e dar-se por

satisfeito tanto quanto eacute possiacutevel ler uma paacutegina de qualquer livro e saber que

aquilo eacute apenas uma amostra um pedaccedilo uma parte separada do todo que lhe

confere coerecircncia como obra

As duas primeiras formas de leitura portanto parecem-nos similares No

entanto acessar uma obra a partir de uma paacutegina ou a partir de outra paacutegina

ainda que seja uma obra circular isto eacute sem iniacutecio meio e fim definidos resulta

em duas leituras absolutamente diferentes No entanto aqui tem-se a diferenccedila

crucial entre o Wake e qualquer outro livro uma estrutura circular implica

necessariamente na diluiccedilatildeo do segmento temporal fechado isto eacute numa

abertura em que qualquer paacutegina do livro pode ser parte de um iniacutecio de um

87

meio ou de um fim Afinal o livro pode ser livre dessas divisotildees em sua estrutura

mas o tempo da leitura jamais seraacute Sempre temos de ler em alguma ordem e

algum trecho inicia esse processo algum se faz no meio e algum trecho conclui

nosso percurso como leitores Caso pensemos portanto em multiplicar as

possibilidades de acesso ao Finnegans wake ateacute que sejam consideradas todas

as possibilidades de leitura teriacuteamos de lidar com nada menos que seiscentas

e vinte e oito formas de acesso agrave obra no miacutenimo

Mostra-se impossiacutevel eacute evidente experimentar todas essas formas de

acesso Considerando que houvesse o tempo necessaacuterio deveriacuteamos levar em

conta ainda a contaminaccedilatildeo inevitaacutevel no processo isto eacute a certo ponto jaacute se

saberia o que esperar e a mudanccedila na ordem natildeo teria o mesmo efeito que teria

se acessada em uma primeira leitura Uma vez lido em uma certa ordem o livro

jamais seraacute redescoberto atraveacutes de outra ao menos natildeo como se nunca tivesse

sido lindo anteriormente qualquer que seja a nova ordem

O que nos eacute possiacutevel questionar eacute ateacute que ponto essa circularidade existe

de fato tentando expor natildeo apenas a forma como ela eacute concebida e a partir de

que modelos mas tambeacutem as consequecircncias de seu uso e se a circularidade se

daacute apenas idealmente ou se eacute de fato executada isto eacute temos de investigar se

eacute perceptiacutevel e constataacutevel considerando o acesso ao livro por qualquer uma de

suas paacuteginas O que origina a elaboraccedilatildeo dessa estrutura em Finnegans wake

eacute como se sabe ldquoVicorsquos recurrent cycle at once repetitious and various mdash like

the Wake itselfrdquo e Tindall nos chama a atenccedilatildeo ainda para o fato de que ldquoJoycersquos

hieroglyph for the Wake and its title is a square its sides no doubt the quadrants

a little squashed of Vicorsquos wheelrdquo28 (TINDALL 1969 p 10) Mesmo que a forma

geomeacutetrica escolhida por Joyce em seus desenhos na elaboraccedilatildeo do Wake

tenha sido natildeo o ciacuterculo mas o quadrado isso se explica pela escolha por quatro

partes e ainda assim se relaciona agrave circularidade viconiana Nesse caso a forma

geomeacutetrica ter veacutertices ou natildeo eacute irrelevante mdash Joyce chega a preferir um cubo

28 ldquoO ciclo recorrente de Vico concomitantemente repetitivo e variado ndash como o proacuteprio Wakerdquo e ldquoo hieroacuteglifo de Joyce para o Wake e seu tiacutetulo eacute um quadrado ainda que seus lados sem duacutevidas satildeo os quadrantes um pouco distorcidos da da roda de Vicordquo

88

em alguns momentos mdash uma vez que se poderia observar uma espeacutecie de

ldquocircularidaderdquo tambeacutem nessas outras formas ao circundaacute-las especialmente

enfatizando um periacutemetro percorrido em repeticcedilatildeo ciacuteclica que retorna a um

ponto

A ideia desse retorno a um ponto eacute outro problema basilar derivado da

aceitaccedilatildeo do princiacutepio da circularidade de Finnegans wake Deve-se lembrar que

nem o ricorso de Vico nem a circularidade da obra de Joyce resultam no retorno

ao mesmo ponto pois em ambos os casos o ponto original eacute irrecuperaacutevel

Depois de ler todas as sentenccedilas de Finnegans wake a continuaccedilatildeo da uacuteltima

frase (dizendo aqui ldquouacuteltimardquo eacute claro deixando de lado a relativizaccedilatildeo da ordem

que acabamos de engendrar e tomando portanto a ordem linear numeacuterica)

retorna ao mesmo ponto se pensarmos que retorna agrave paacutegina 1 essa paacutegina no

entanto jaacute natildeo eacute mais a mesma que se tinha quando se iniciou a leitura Assim

se daacute tambeacutem com o ciclo das idades proposto por Vico que serviu como

modelo para o Wake apoacutes o fim da Idade dos Deuses dos Heroacuteis e dos Homens

haacute um ricorso agrave Idade dos Deuses mdash no entanto eacute outra Idade dos Deuses que

estaacute se formando com aspectos gerais que a definem mas que natildeo estaacute

retrocedendo a uma mera repeticcedilatildeo Natildeo se tem uma maacutequina do tempo que vai

e vem atravessando as mesmas fases mas uma evoluccedilatildeo que evoca

circularidades heterogecircneas Uma figura recorrente eacute a do eco que remete ao

movimento de repeticcedilatildeo ciacuteclica e eacute executado tanto na sonoridade do proacuteprio

texto com rimas e aliteraccedilotildeesassonacircncias quanto tambeacutem por vezes citado

explicitamente ldquoThe echo is where in the back of the wodes callhim forthrdquo (FW

1263)29 O formato circular que natildeo supotildee repeticcedilatildeo eacute perceptiacutevel em outras

obras de Joyce Em Retrato Stephen frequentemente se apresenta preso em

linhas de raciociacutenio que parecem recair sobre si mesmas ou sobre um ponto

originaacuterio mas que engendram ainda assim deslocamento Mesmo em

Ulysses haacute evidentes formas de circularidade a comeccedilar pela jornada diaacuteria do

protagonista Leopold Bloom mas que natildeo insinua dias sempre iguais ateacute a

estrutura do monoacutelogo de Molly que reitera termos agrave medida que avanccedila

29 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoO eco eacute onde no fundo da florode que venhardquo

89

Apesar de a estruturaccedilatildeo circular ser aceita a priori por William York

Tindall como a base de Finnegans wake o estudioso estadunidense natildeo parece

considerar de fato as implicaccedilotildees desse ciacuterculo tomando apenas as suas

causas ou origens mas natildeo as consequecircncias de afirmaccedilatildeo dessa estrutura

Tindall afirma que o primeiro capiacutetulo eacute visivelmente uma introduccedilatildeo geral e o

uacuteltimo uma conclusatildeo com o diferencial de que abarca ainda a funccedilatildeo de aticcedilar

o leitor para ao retorno agrave primeira paacutegina Vemos entatildeo o problema loacutegico em

sua afirmaccedilatildeo se o trecho ldquofinalrdquo de Wake serve para levar o leitor ao fragmento

de nuacutemero 1 temos um trecho incumbido de algo que se parece com uma

espeacutecie de introduccedilatildeo a esse retorno ou que certamente tem alguma funccedilatildeo

muito distinta da de concluir York Tindall provavelmente entrevendo a

incoerecircncia no que afirma explica ldquoA general conclusion [the last chapter] and

a general introduction [the first one] parallel in function demand parallel

methodsrdquo30 (TINDALL 1969 p 305)

No entanto o que Tindall afirma haver de similar entre o primeiro e o

uacuteltimo capiacutetulos existe por todo o livro Haacute sequecircncias de retornos mdash no capiacutetulo

4 depois no oitavo e assim por diante O mesmo vale para as trecircs idades que

formam com o ricorso os quatro lados desse percurso que natildeo se repetem

mas reaparecem distintos ainda que apareccedilam em ordem sempre esperada isto

eacute estejam alocados em trechos previsiacuteveis devidamente selecionados para eles

dentro da grande ordem de todas as fases O acesso entatildeo a depender de que

fragmento serviraacute como o iniacutecio pode se dar em um fragmento elaborado nos

moldes da Idade dos Deuses dos Heroacuteis ou dos Homens ou ainda do ricorso

mas seraacute sucedido de uma ordem invariaacutevel Que haveraacute diferenccedilas entre uma

leitura que se inicie em um capiacutetulo escrito de uma forma dentro de certa

estrutura basilar e uma que se inicie por outro que tenha outra estrutura natildeo

haacute duacutevidas se a leitura do todo do livro for possiacutevel de todos os fragmentos

poreacutem a circularidade estaraacute comprovada O livro que se lecirc entatildeo tem de ser o

mesmo somente acessado em outra ordem e portanto a partir de uma

30 ldquoUma conclusatildeo geral [o uacuteltimo capiacutetulo] e uma introduccedilatildeo geral [o primeiro] paralelas em funccedilatildeo demandam paralelismo em meacutetodordquo

90

sequecircncia distinta de leitura mas que permita concluir a leitura assim como a

tentativa que comeccedila do fragmento 1 tambeacutem propicia

A figura espectral se mostra deveras pertinente Wake se diferencia

tambeacutem pela formaccedilatildeo de uma polifonia especial que nos confunde natildeo apenas

em termos de natildeo saber que personagem estaacute falando agora mas ainda de

trazer as vozes dos mortos para se misturarem agraves dos vivos sem que se

intercalem mas efetivamente convivam mdash o que tambeacutem exige uma

compreensatildeo temporal absolutamente uacutenica em que em meio ainda a

possibilidades de porvir natildeo haacute separaccedilatildeo espaccedilo-temporal entre um suposto

agora e um suposto antes No livro James Joyce and the difference of language

Laurent Milesi diz

This evolution is thus inseparable from an increasing dissolution or ar leat problematization of neat entities like character and voice as well as the boundaries between them and consequently from the emergence of more polyphonic voices which in the lsquopollyloguersquo (FW 4709) or lsquodrama parapolylogicrsquo (FW 4745) of Finnegans wake will ultimately combine with shifting enunciative poles and a pliable linguistic medium to create erring discursive effects ascribable to a lsquosidersquo or lsquorolersquo ina many-faceted lsquocharacter complexrsquo (MILESI 2003 p 91)31

A estrutura circular e a referecircncia a figuras de diversos momentos

histoacutericos bem como a livros como o Livro dos mortos egiacutepcio ou o Livro de Kells

irlandecircs unem-se na dissoluccedilatildeo de fronteiras temporais Finnegans wake

certamente natildeo tem nem poderia pretender ter um momento (mesmo externo

histoacuterico) definido nem mesmo um tempo psicoloacutegico definido mdash que assumiria

a perspectiva da consciecircncia de uma personagem como sobressalente ditando

voz perspectiva contexto

31 ldquoEssa evoluccedilatildeo eacute entatildeo inseparaacutevel da crescente dissoluccedilatildeo ou ao menos problematizaccedilatildeo de entidades precisas como personagem e voz bem como das fronteiras entre elas e consequentemente da emergecircncia de mais vozes polifocircnicas que no lsquopollyloguersquo (FW 4709 ou lsquodrama parapolylogicrsquo (FW 4745) de Finnegans wake vatildeo por fim combinar com poacutelos enunciativos instaacuteveis e um meio linguiacutestico elaacutestico para criar efeitos discursivos errantes atribuiacuteveis a uma lsquofronteirarsquo ou lsquopapelrsquo em um mil-faces lsquocomplexo de personagemrsquordquo

91

Faz-se espectro ainda o todo da obra literaacuteria na medida em que natildeo se

sabe como ela seraacute executada pelo leitor que se depara com ela Como uma

partitura sem indicaccedilotildees precisas trazendo meras sugestotildees e portanto

inuacutemeras possibilidades de trocas Wake precisa ser executado mas pode secirc-lo

de diversas maneiras em diversas ordens Assim natildeo se tem uma imagem

niacutetida do que eacute o Finnegans wake mas primordialmente sabe-se o que ele pode

vir a ser em mais de uma possibilidade

A isso como jaacute foi exposto estaacute ligada uma temporalidade que poderaacute

operar diferentemente em cada execuccedilatildeo da partitura wakiana Uma oposiccedilatildeo

entre o tempo linear e o tempo ciacuteclico pode mostrar como a estrutura basilar do

Wake que se afasta da linearidade possibilita essa diversidade e o que isso

pode significar na tessitura textual e para uma leitura atenta ao escritural do

texto Explicando a diferenccedila entre tempo ciacuteclico e tempo linear o filoacutesofo Karl

Jaspers (1883-1969) diz

O ciclo do tempo visto como recorrecircncia eacute a imortalidade do que em tal ciclo se produz () A todo instante estaacute ligando o fim ao comeccedilo Vive no ciclo do eterno retorno Pode ocorrer que a distacircncia a separar o fim (morte) do comeccedilo (novo nascimento) seja imensa mas reduz-se a nada se a vida eacute revivida de maneira infinitamente repetitiva fazendo-se em tal sentido imortal () Inteiramente diverso eacute o que se passa com o tempo linear Tudo que eacute temporal eacute levado pelo tempo linear a um fim irremediaacutevel (JASPERS 2011 p 146)

A estrutura circular de Finnegans wake faz mais do que nos prender ao

livro-sem-fim traduz uma possibilidade de existecircncia fora do andamento do

tempo na pura temporalidade isto eacute naquilo que natildeo ultrapassa um presente

mas permanece nele Obriga-nos a estar no presente da leitura sem nos

desviarmos e sem conclusatildeo relendo e relendo e relendo Joyce nos obriga

mantendo-nos na atividade da leitura que nunca termina a cumprir a exigecircncia

que faz ao seu leitor Instalando o texto num eterno retorno transforma-se nessa

afirmaccedilatildeo da vida em que a morte jaacute natildeo ocupa o espaccedilo do esquecimento a

voz dos mortos ecoa entre os vivos sua presenccedila faz-se material a morte de

certa maneira aiacute jaacute natildeo existe

92

O tempo absoluto da concepccedilatildeo ciacuteclica que natildeo pode ser transposto se

opotildee ao tempo linear em que haacute resoluccedilatildeo transposiccedilatildeo um acontecimento

ultrapassa o outro um momento sucede o seguinte O apagamento do que fica

no passado soacute pode ser modificado pela soluccedilatildeo de decidir o que se grava na

histoacuteria Mesmo assim natildeo se recupera nada por inteiro sendo impossiacutevel uma

volta ao passado a memoacuteria evoca as reminiscecircncias que ocupam o tempo

presente apenas como resto incorpoacutereo como espectro O tempo absoluto se

faz de maneira inteiramente distinta Nas palavras de Jaspers nele ldquofaz-se aquilo

que se repete infinitamente mdash e permanece temporal () Tempo linear e tempo

ciacuteclico satildeo enigmas incompatiacuteveis () O tempo ciacuteclico torna possiacutevel a ideia do

lsquouma vez maisrsquo por meio do eterno retornordquo (Ibid p 147)

O tempo ciacuteclico do retorno tambeacutem se faz em espectros o retorno eacute

sempre o ldquouma vez maisrdquo poreacutem sempre singular jamais uma repeticcedilatildeo idecircntica

senatildeo recairia em uma simples hipoteacutetica volta ao passado do tempo

cronoloacutegico como uma espeacutecie de maacutequina do tempo construiacuteda no tempo

linear O retorno do tempo ciacuteclico natildeo se faz dessa maneira eacute um novo

acontecimento mas que se relaciona com algo jaacute ocorrido Se lermos o Wake

circularmente isto eacute repetidamente obedecendo agrave continuaccedilatildeo do uacuteltimo

fragmento no primeiro natildeo estaremos rebobinando nosso tempo mas tatildeo

somente fazendo uma nova leitura de uma mesma coisa um mesmo texto que

natildeo se alterou enquanto natildeo estaacutevamos olhando Haacute assim uma diferenccedila um

assombro do que se leu antes percorrendo o momento da releitura O tempo

ciacuteclico se faz entatildeo no seu retorno eterno de fantasmas

A palavra retorno no portuguecircs talvez natildeo seja tatildeo adequada justamente

por apagar essa diferenccedila ldquoretornarrdquo pressupotildee que se foi a algum lugar ao qual

se estaacute voltando indica entatildeo mais imediatamente o movimento do tempo

linear de maneira que se imagine uma volta na linha do tempo ao tempo

passado estanque em seu lugar No entanto ricorso termo de Giambattista Vico

se relaciona a curso agravequilo que flui parecendo entatildeo mais adequado agrave ideia do

tempo ciacuteclico em que as repeticcedilotildees satildeo novos acontecimentos Justifica-se aqui

a expressatildeo criada para intitular este trabalho que conjuga ldquofluirrdquo e ldquoricorsordquo para

explicitar esse caraacuteter no termo italiano de Vico

93

A maneira como esse engendramento ciacuteclico foi relido na filosofia

moderna com o eterno retorno de Friedrich Nietzsche indica ainda a

positividade dessa estrutura Como o fim de Ulysses eacute o ldquosimrdquo mdash e Joyce queria

que assim ele se mantivesse mesmo traduzido como a correspondecircncia a

respeito da traduccedilatildeo para o francecircs comprova em que Joyce pede para que o

fim seja tatildeo somente a palavra ldquosimrdquo mdash o ciclo coacutesmico reafirma o sim para o

mundo o cada vez novamente o novo deacutejagrave Eacute a accedilatildeo que natildeo se direciona a

uma finalizaccedilatildeo natildeo tende ao teacutermino mas agrave atividade plena contiacutenua ldquoO

mundo afirma-se por si tambeacutem na sua uniformidade que permanece a mesma

no decurso dos anos bendiz-se por si mesmo porque eacute aquilo que deve voltar

eternamente porque eacute o devir que natildeo conhece saciedade teacutedio nem fadigardquo

(Wille zur Macht ed 1901 sect 385)

A entrada na narrativa de Finnegans wake isto eacute o contato inaugural do

leitor com os acontecimentos narrativos eacute anunciada por uma queda ldquoThe fall bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhoun

awnskawntoohoohoordenenthurnukldquo Queda reverberante com repeticcedilotildees

silaacutebicas misturadas e a formaccedilatildeo desse conjunto de fonemas que natildeo eacute verbete

em nenhum idioma mas comporta idiomas diversos natildeo eacute um ponto de partida

da narrativa ndash natildeo haacute um primeiro acontecimento ou accedilatildeo mdash mas a queda na

narrativa que jaacute estaacute em curso como uma queda drsquoaacutegua anunciada no riverrun

a palavra de abertura da obra Assim a narrativa inicia-se jaacute iniciada

Apoacutes o riverrun diz-se ldquopast Eve and Adamrsquosrdquo Pode-se ler tendo em

mente que estamos passando em frente a Eve and Adamrsquos catedral em Dublin

ou que aquilo que seraacute narrado se situa temporalmente apoacutes Adatildeo e Eva ou

mesmo no passado do casal primaacuterio em tempos inefaacuteveis O tempo eacute fluido

talvez aparentemente caoacutetico mas apenas repensado reimaginado mdash

mudanccedilas de paracircmetros que pedem uma revisatildeo radical Isso tambeacutem

podemos dissecar no tiacutetulo que comporta o fim (fin no francecircs e finis no latim)

e a sua repeticcedilatildeo (-egan again mdash o proacuteprio eterno retorno) ou o fim de encontro

ao despertar (fin-egans (la) fin against + (the) Wake relacionando tambeacutem ao

nome do personagem Earwicker que em alematildeo eacute erwecker ldquoaquele que

despertardquo) ou ainda contra outro fim o veloacuterio outra traduccedilatildeo para wake

94

substantivo Como aponta Donaldo Schuumller ldquoA circularidade viconiana gira no

geral e nos detalhesrdquo (SCHUumlLER 2004 p 17)

Para William York Tindall o tempo eacute a mais importante mateacuteria desse

ldquoensaio sobre o homemrdquo de James Joyce ldquoRise and fall and rise again sleeping

and waking death and ressurrection sin and redemption conflict and

appeasement and above all time itself mdash saecula saeculorum mdash are the matter

of Joycersquos essay on manrdquo32 (TINDALL 1969 p 4) Tambeacutem caracteriza a obra

como a comeacutedia humana de Joyce ldquoNot only his essay on man the Wake is his

human comedyrdquo33 (Ibid p 7) Ao final de sua introduccedilatildeo Tindall afirma que seu

livro natildeo visa a uma apreensatildeo completa nem a ultimatos sobre a obra mas sim

a ser um suplemento dos estudos preacutevios ldquoAfter all what authority on the Wake

knows half of it Which half is the critical questionrdquo34 (Ibid pp 25-26)

O tempo em Finnegans wake destacado por Tindall cumpre papel vital

em toda a organizaccedilatildeo da obra aleacutem da estrutura circular em quatro partes que

Joyce emprega livremente das Idades do filoacutesofo Giambattista Vico mdash assim

como a Odisseia de Homero serve de base para Ulysses o Wake tem

correspondente nesse uacuteltimo caso no entanto Joyce parte de fonte filosoacutefica

em vez de literaacuteria Ainda no iniacutecio quando Harriet Weaver pareceu natildeo entender

e natildeo gostar do que leu do Work in progress Joyce ldquoinsistiu com ela para que

lesse a Scienza Nuova de Vico como com o Ulisses insistira em que lesse a

Odisseiardquo (ELLMANN 1989 p 695) Natildeo eacute soacute no cerne estrutural poreacutem que

podemos perceber a especificidade do tempo de um romancepoema plotless mdash

que se natildeo possui enredo natildeo possui portanto linha cronoloacutegica expliacutecita

Tindall pretende e tende a extrair o plot concatenando as cenas sempre com

uma possiacutevel visatildeo de causa e consequecircncia pontuando as personagens

nomeando-as e definindo-as Eventualmente sua tentativa recai contudo na

incontornaacutevel indefiniccedilatildeo

32 ldquoAscender e cair e ascender novamente dormir e despertar morte e ressureiccedilatildeo pecado e redenccedilatildeo conflito e conciliaccedilatildeo e acima de tudo o proacuteprio tempo mdash saecula saeculorum mdash satildeo a mateacuteria do ensaio de Joyce sobre o homemrdquo 33 ldquoNatildeo apenas seu ensaio sobre o ser humano o Wake eacute sua comeacutedia humanardquo 34 ldquoAfinal de contas que autoridade no Wake sabe metade do que se tem a saber sobre ele Qual metade eacute a pergunta fundamentalrdquo

95

Percebemos a dificuldade no exemplo do segundo capiacutetulo que eacute um dos

mais claros em termos de composiccedilatildeo de cena ou ao menos quanto ao

desenrolar das accedilotildees e seus agentes o que Tindall atribui ao fato de ter sido um

dos primeiros que Joyce escreveu ldquoMaybe he did not have time going over it to

complicate it according to his habitrdquo35 (Ibid p 57) Quanto a tempo e espaccedilo

contudo permanecemos na pluralidade mdash ou mais pertinente dizer na

ubiquidade Tomemos um entendimento primaacuterio da cena com o qual

poderiacuteamos depreender o enredo geral temos Earwicker (a essa altura jaacute

tivemos esclarecimentos sobre sua alcunha) no Phoenix Park em Dublin

surpreendido por um jovem que lhe pergunta as horas O garoto portava um

cilindro o que pode justificar que Earwicker (aqui lembramos Wecker alematildeo

para despertador ndash aquilo que daacute as horas) se sentiu ameaccedilado Defende-se

demonstrando culpa e natildeo responde com a precisatildeo que a pergunta

demandaria O deslocamento no tempo e no espaccedilo poreacutem ocorre em diversos

pontos no paralelo de Earwicker com Adatildeo na culpa em comum por terem

cometido algum pecado mdash Adatildeo no Jardim do Eacuteden nosso protagonista no

parque em questatildeo

They tell the story (an amalgam as absorbing as calzium chloereydes and hydrophobe sponges could make it) how one happygogusty Ides-of-April morning (the anniversary as it fell out of his first assumption of his mirthday suit and rights in appurtenance to the confusioning of human races) ages and ages after the alleged misdemeanour when the tried friend of all creation tigerwood roadstaff to his stay was billowing across the wide expanse o four greatest park in his caoutchouc kepi and great belt and hideinsacks and his blaufunx fustian and ironsides jackboots and Bhagafat gaiters and his rubberised inverness he met a cad with a pipe (FW 351-11)36

35 ldquoTalvez ele natildeo tenha tido tempo ao percorrecirc-lo [o texto] de complicaacute-lo como de haacutebitordquo 36 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2000) ldquoContam a estoacuteria (uma amaacutelgama tatildeo absorvente quanto caacutelcio clorado e esponja hidroacutefoba poderiam performaacute-la) como numa letagostosa idos-de-abril manhatilde (o aniversaacuterio como se soube da primeira assunccedilatildeo do nascimento costumes e direitos em pertinecircncia agrave confusatildeo das raccedilas humanas) idades e idades apoacutes a alegada delonga quando o amigo comprovado de toda criaccedilatildeo begala de pau-marfim para seu equiliacutebrio ondulava atraveacutes do vasto territoacuterio do nosso mais esplecircndido parque com seu kepi caucho e imenso cinturatildeo cota de ferro humor faacutesutico botas de cavalaria inglesa espirituralidade hindu e c apa de chuva ele encontrou um cadete com um cilindrordquo

96

Tindall abre a possibilidade de a cena se ampliar e se desdobrar no

espaccedilo e no tempo relacionando a cena ao pecado original ldquoMaybe it is any sin

of every man or every sin of any manrdquo37 (TINDALL 1969 p58) O que Earwicker

fez de errado no entanto permanece em suspenso para o leitor em meio aos

tantos boatos que se reproduzem aparentemente de maneira incessante

Aparecem ainda outros paralelos espaccedilo-temporais como aparece na

expressatildeo ldquoIdes-of-April morningrdquo que lembra os Idos de Marccedilo (o dia 15 desse

mecircs data do assassinato de Juacutelio Ceacutesar) O jovem vai embora e os rumores se

desdobram cada vez mais fazendo de Earwicker desde um homem que se sente

abstratamente culpado ateacute um reacuteu efetivo de um crime indefinido

Chamar essas referecircncias de ldquoparalelosrdquo no entanto como faz Tindall

pode ser uma forma de suprimir a funccedilatildeo delas na amaacutelgama (an amalgam as

absorbing as calzium chloereydes and hydrophobe sponges could make it) do

texto Uma cena simples como a supracitada que parece poder ser posta com

clareza e ter seus elementos narrativos devidamente pontuados desdobra-se

em ambiguidades e referecircncias a outros tempos e espaccedilos que natildeo satildeo externos

e comparados a ela mas que a compotildeem tanto quanto os fatos que

apresentamos como primaacuterios o culpado Earwicker ou HCE estaacute no Phoenix

Park mas ele eacute tambeacutem Adatildeo no Eacuteden (e natildeo estaacute no primeiro parque assim

como Adatildeo esteve um dia no Eacuteden) Estaacute em Roma e eacute tambeacutem viacutetima de

conspiraccedilatildeo assassinado por Brutus Finnegans wake trata como afirma

Tindall da humanidade do universal mas em acontecimentos vividos por

indiviacuteduos em suas realidades microscoacutepicas como um enredo que se desfaz

em meio a numerosas e esparsas superposiccedilotildees assim se forma a amaacutelgama

wakiana

Apoacutes ser julgado Earwicker eacute preso e posteriormente morto Tindall

contrariamente a suas pretensotildees de sumarizar o enredo e determinar a

ordenaccedilatildeo dos acontecimentos novamente natildeo pode evitar alguma hesitaccedilatildeo

ao tentar descrever os ocorridos do capiacutetulo IV ldquoEarwicker dead Anyhow they

took the liberty of burying himrdquo (Ibid p 85) Assim notamos que por mais que

37 Traduccedilatildeo nossa ldquoTalvez seja qualquer pecado de todo homem ou todo pecado de qualquer homemrdquo

97

se tente concatenar as cenas natildeo se pode fazecirc-lo sem interrogaccedilotildees

parecircnteses bifurcaccedilotildees multiplicaccedilotildees A duacutevida quanto agrave morte da

personagem vem pelo motivo de que simplesmente natildeo temos a morte factual

mdash como ocorreu onde se foi homiciacutedio mdash assim como o delito de Earwicker se

apaga ao se multiplicar satildeo tantas as conjecturas que nem se pode mais lidar

com o fato Aleacutem disso Earwicker continua presente na narrativa mesmo finado

Natildeo temos o acontecimento concreto de sua morte seguido pelo relato de como

seguiram as outras personagens em vez disso temos referecircncias aos que

compareceram ou natildeo a seu enterro agrave tumba ao processo de sepultamento no

rio e outras evidecircncias de que ele estaria morto tudo enquanto o morto

permanece ali natildeo como assombraccedilatildeo mas duplicado entre os presentes e os

ausentes

Com essa duacutevida entatildeo a questatildeo do tempo novamente se coloca como

pode haver a vivecircncia da morte tatildeo essencialmente temporal mdash marco

cronoloacutegico do fim vivecircncia humana de uma temporalidade do luto mdash sem sua

determinaccedilatildeo A hesitaccedilatildeo na afirmaccedilatildeo da morte da personagem anula que se

possa viver sua ausecircncia e portanto o luto Isso engendra natildeo somente mais

uma quebra na narrativa mas ainda uma dinacircmica proacutepria do processo de perda

Assim como observamos na cena do Phoenix Park o que ocorre natildeo eacute uma

divisatildeo do enredo em duas realidades paralelas ou dois enredos paralelos em

que um contempla a morte e o outro lida com a vida mas de uma soacute situaccedilatildeo

Se a morte natildeo eacute fato pontual fechado uniacutessono do enredo o trabalho

do luto natildeo teraacute uma origem propriamente estabelecida mdash ou tendo como

origem uma perda que se fez em presenccedila e em ausecircncia simultaneamente teraacute

uma outra formaccedilatildeo e dinacircmica A narrativa entatildeo natildeo teraacute suas implicaccedilotildees

de consequecircncia uma vez que a causa natildeo eacute certa Se tomarmos para pensar

o luto a exposiccedilatildeo de Sigmund Freud em Trauer und Melancholie de 1915 em

que o luto e a melancolia satildeo comparados a partir do ldquoquadro geral desses dois

estadosrdquo (FREUD 2010 p 128) de forma que ambos os quadros se aproximam

em todas as descriccedilotildees cliacutenicas e se diferenciam apenas pela afetaccedilatildeo da

autoestima teremos a seguinte definiccedilatildeo do luto

98

Via de regra luto eacute a reaccedilatildeo agrave perda de uma pessoa amada ou de uma abstraccedilatildeo que ocupa seu lugar como paacutetria liberdade um ideal etc () Confiamos que seraacute superado apoacutes certo tempo e achamos que perturbaacute-lo eacute inapropriado ateacute mesmo prejudicial () O luto profundo a reaccedilatildeo agrave perda de um ente amado comporta o mesmo doloroso abatimento a perda de interesse pelo mundo externo ndash na medida em que natildeo lembra o falecido ndash a perda da capacidade de eleger um novo objeto de amor ndash o que significaria substituir o pranteado ndash o afastamento de toda atividade que natildeo se ligue agrave memoacuteria do falecido (Ibid pp 128-129)

Ora se a personagem eacute enterrada mas natildeo eacute de todo perdida natildeo se vai

por completo do plano onde estatildeo as personagens vivas como estabelecer a

perda que se tem como premissa imprescindiacutevel do luto A perda engendra o

que Freud chama de trabalho do luto toda a libido relacionada ao objeto perdido

precisa ser redirecionada mas a resistecircncia ao abandono dessa libido eacute

desconfortaacutevel podendo gerar ateacute distanciamento da realidade mdash muito dura

para se suportar mdash e psicose de desejo Todo esse processo poreacutem tem um

resultado ldquoMas o fato eacute que apoacutes a consumaccedilatildeo do luto o Eu fica novamente

livre e desimpedidordquo (Ibid p 130)

De toda a explanaccedilatildeo de Freud a respeito do luto natildeo podemos deixar de

concluir que seu tempo mdash e ao que tudo indica tambeacutem o da melancolia mdash eacute

alterado Com a perda desestabilizadora o indiviacuteduo se vecirc imerso na

necessidade de uma mudanccedila de paracircmetros para seu conforto habitual na

busca pela substituiccedilatildeo do ente perdido e no caminho de redirecionamento da

libido cuja origem se perdeu Assim seria seguro dizer que o trabalho do luto

racionalizado por Freud pressupotildee um tempo de luto diferenciado do tempo

normal da vida No Wake o texto ressoa esse trabalho de luto e seu tempo

proacuteprio o remordimento da morte e do morto em meio a descriccedilotildees que abarcam

homenagens seu enterro e seu descanso

Any number of conservative public bodies through a number of select and other committees having power to add to their number before voting themselves and himself town port and garrison by a fit and proper resolution following a koorts order of the groundwet once for all out of plotty existence as a forescut so you maateskippey might to you cuttirunner on a new pack of klerds made him while his body still persisted their present of a protem grave in Moyelta of the best Lough

99

Neagh pattern then as much in demand among misonesans as the Isle of Man today among limniphobes Wacht even It was in a fairly fishy kettlekerry after the Fiannarsquos foreman had taken his handful enriched with ancient woods and dear dutchy deep-linns mid which were na old knoll and a troutbeck vainyvain of her osiery and a chatty sally with any Wilt or Walt who would ongle her as Izaak did to the tickle of his rod and watch her waters of her sillying waters of and there now brown peater arripple (may their guilt lightly over his somnolulutent form) Whoforyou lies his last by the wrath of Bog like the erst curst Hun in the bed of his treubleu Donawhu (FW 7614)38

Poderiacuteamos compreender muito a respeito dessa morte no Wake partindo

apenas do fato de que o trecho do capiacutetulo IV em que se anuncia o enterro

subaquaacutetico da personagem Humphrey Chimpden Earwicker parodia os textos

egiacutepcios que chamamos de forma abrangente de Livro dos Mortos coletivo do

que era registrado sobre as tumbas para auxiliar os defuntos em seus caminhos

poacutes-morte sem distinccedilatildeo de nobreza mas que envolviam julgamentos morais

de merecimento e davam diversas orientaccedilotildees para a superaccedilatildeo de obstaacuteculos

que porventura surgiriam para o morto nessa transiccedilatildeo Esses escritos eram

chamados pelos egiacutepcios de ldquotextos para irvoltar agrave luzrdquo o que jaacute nos indica que

haveria um caminho a ser traccedilado por Humphrey de maneira que a sua morte

experiecircncia mais radical de finalizaccedilatildeo natildeo seria para ele o ponto final do

percurso Em vez de seguir para ldquoo aleacutemrdquo ou para o mundo dos mortos muito ao

contraacuterio o morto submerso segue para a luz que haacute na superfiacutecie em um

caminho de volta agrave vida A passagem natildeo eacute encarada como uma superaccedilatildeo de

barreiras ou uma peripeacutecia narrativa surpreendente ao inveacutes disso tem-se na

verdades quase uma ausecircncia de barreiras entre os dois aspectos da existecircncia

38 Como traduziu Donaldo Schuumller (2000) ldquoQualquer nuacutemero de corpos puacuteblicos conservadores atraveacutes de um nuacutemero de seletos de outros comitecircs com poder de adicionar a seu nuacutemero antes de votar em si mesmos e nele urbe porto e guarniccedilatildeo por adequada e proacutepria resoluccedilatildeo seguindo uma ordem judicial da constituiccedilatildeo uma vez por todas fora de existecircncia narrativa como um pitoco assim podes cortar tudo o que te incomoda num novo baralho de panos quanto a ele enquanto seu corpo ainda persistiu presente deles um sepulcro pro tempore na planiacutecie de Moryelta do melhor modelo dos defuntos sob o Lough Neagh entatildeo tatildeo em demanda entre os misoneacutesios quanto a Ilha de Man agora entre os limnoacutefobos Un momentito Foi em fabulosa caccedila piscosa depois ki Finn proacute-homem tinharrancado um punhado de turfa enriquecido com bosques antigos e bem postos pantanos dos baixos paiacuteses nos quais havia picos e bicos de truta vivamente vaidosos de suas ramadas e dos salgueiros no bleblablaacute de Blaacute a Bleacute que iria fisga-la como fez Izaak para excitar sua raiz e contemplar suas aacuteguas de suas indefesas aacuteguas e agora os brunos arrepios de sua pele pedrosa (queira seu vestido vestir levemente sua sonululante forma) Queporti jaz no seu derradeiro jazigo pela rabia de Dioacutes como o remoto reacuteprobo Huno no leito azul de seu Tunobiasalrdquo

100

No capiacutetulo referente ao enterro e posterior ressurreiccedilatildeo de Humphrey

Chimpden Earwicker as intrusotildees em referecircncias ao tempo e a temporalidade

satildeo numerosas

Best This wastohavebeen underground heaven or molersquos paradise which is probably also an inversion of a phallopharos (FW 7633-34)39

all differing as clocks from keys since nobody appeared to have the same time of beard some saying by their Oorlog it was Sygstryggs to nine more holding with the Ryan vogt it was Dane to pfife (FW 7711-14)40

But abide Zeitrsquos sumonserving rise afterfall (FW 787)41

As tantas alusotildees indicam como formas ou visotildees do tempo permeiam

tudo o que estaacute sendo narrado mas vemos que natildeo haacute indicaccedilotildees precisas fala-

se repetidamente do tempo sem no entanto estabelecer marcos cronoloacutegicos

divisotildees concretas ou definiccedilotildees temporais para a narrativa Se o tempo no Wake

natildeo eacute vetorial e nem busca mediccedilotildees tambeacutem natildeo pode secirc-lo na morte ou no

luto por mais marcados e marcantes que esses eventos fossem em outras

realidades No lugar do sonho tudo muda ateacute mesmo as mais radicais

ocorrecircncias presenccedilas satildeo eteacutereas espectros convivem cenas e marcos se

dissolvem

O tempo dissolvido nas multiplicidades em vez de apreendido e

entendido linearmente corrobora o que dissemos a respeito da impossibilidade

de escolher uma linha enrediacutestica em detrimento de outra ao menos sem que

isso fira a tessitura conjunta que a diversidade espaccedilo-temporal oferece Assim

como estamos em diversos tempos e (em um parque de Dublin na Roma antiga

39 Tambeacutem segundo a traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2000) ldquoBem Este subterracircneo foi-para-haver-de-ser ceacuteu ou o paraiacuteso dos molhes que provavelmente foi tambeacutem uma inversatildeo de um phallofarol ()rdquo 40 Idem ldquodiferindo tudo como sinos diferem de chaves visto que ningueacutem parecia ter o mesmo horaacuterio agrave barba alguns queriam por seu Horloacutegio que era Sixtriques pras nove outros apegados agrave Ira Landa diziam que era Dane-se para as cincordquo 41 Idem ldquoMas aguardemos o requerimento do tempo despertar apoacutes-quedardquo

101

no Eacuteden e assim por diante) tudo ocorre ao mesmo tempo (o pecado de Adatildeo eacute

o de HCE e seu sentimento de conspiraccedilatildeo que culmina em assassinato eacute o

mesmo de Juacutelio Ceacutesar) Temos todo o texto como o tropo Natildeo havendo escolha

de linha cronoloacutegica ou de espaccedilo natildeo haacute accedilatildeo pontual que se possa eleger

Em um niacutevel mais microscoacutepico do texto wakiano o mesmo acontece no

que concerne aos tatildeo numerosos neologismos Natildeo haacute como escolher um

significado ou outro satildeo simultacircneos e quase sempre autorreferenciais

Poderiacuteamos entatildeo compreender a fama de ilegibilidade se a leitura deve

considerar que tudo eacute deslocado e que nada se consolida sem grandes perdas

eacute vaacutelido ver tamanha dificuldade em Finnegans wake Eacute exigido do leitor que

diversos textos em um sejam lidos mdash portanto ler os diversos textos sem separaacute-

los Em Derridabase Geoffrey Bennington discorre com o pensamento de

Jacques Derrida a respeito do entendimento de significante e de significado

partindo da noccedilatildeo de signo estabelecida por Ferdinand de Saussure

No sistema de diferenccedilas que eacute a liacutengua todo significante funciona remetendo a outros significantes sem que se chegue nunca a um significado Procurem no dicionaacuterio o significado de um significante desconhecido vocecircs encontraratildeo outros significantes nunca significados Jaacute foi dito um significado natildeo eacute mais do que um significante posto numa certa posiccedilatildeo por outros significantes natildeo existe significado ou sentido soacute haacute lsquoefeitosrsquo (Positions p 90) Mas este privileacutegio concedido ao significante logo o destroacutei com efeito o significante lsquosignificantersquo soacute significa na sua relaccedilatildeo com (o significante) lsquosignificadorsquo que ele coloca de antematildeo em posiccedilatildeo de prioridade lsquoSignificantersquo e lsquosignificadorsquo se entreimplicam assim como eles implicam lsquosignorsquo e lsquoreferentersquo Eacute impossiacutevel para noacutes estipular (conforme um gesto que eacute agraves vezes o da filosofia analiacutetica) que lsquosignificantersquo daqui pra frente natildeo implicaraacute lsquosignificadorsquo como seu corolaacuterio sob pena como Humpty Dumpty de cair na ilusatildeo do convencionalismo e de esquecer que recebemos a liacutengua e suas sedimentaccedilotildees muito mais do que as criamos (BENNINGTON 1996 p 34)

Assim podemos compreender tambeacutem que em Finnegans wake existam

ldquoefeitos de significadordquo em vez de categorias soacutelidas a que pudeacutessemos recorrer

para a compreensatildeo do signo Talvez fique claro como um dicionaacuterio com

significados estanques dos termos da obra literaacuteria seria tatildeo ou ainda mais

102

parcial do que os dicionaacuterios comuns a que Bennington se refere Os efeitos satildeo

portanto aquilo que operam como fantasmas espectros que rondam a

materialidade do texto Esses espectros natildeo apenas perpassam alguns

momentos mas efetivamente habitam a tessitura textual

O filoacutesofo franco-argelino Jacques Derrida rompendo com uma

concepccedilatildeo de tempo exposta na obra do fenomenoacutelogo alematildeo Edmund

Husserl ultrapassa a noccedilatildeo tanto espacial quanto temporal de um percorrer

regido unidirecionalmente bem como substitui essa dada noccedilatildeo circular ou

ciacuteclica que perigosamente remete ao risco de uma redundacircncia por uma ideia

de elipse em que nunca se alcanccedila verdadeiramente o objeto nem se recupera

as condiccedilotildees preacutevias do caminho percorrido O movimento eliacuteptico pode ser aqui

invocado natildeo para substituir a ideia do ciacuterculo que aparece em James Joyce

uma vez consideradas todas as nuances dessa circularidade aqui expostas mas

para acrescentar uma espeacutecie de nuance eliacuteptica dessa circularidade que natildeo

produz redundacircncia ou repeticcedilatildeo mas singularidade e mesmo inovaccedilatildeo Tendo

seu centro deslocado um trecho percorrido na leitura impede terminantemente

que o passado da leitura seja revisitado da forma como foi lido em seu presente

irrecuperaacutevel

Citado por Joanna Hodge em Derrida on time Jacques Derrida em seu

ensaio ldquoForm and meaning a note on the phenomenology of languagerdquo datado

de 1967 propotildee um pensamento que poderia valer para o Finnegans wake ao

menos dentro da discussatildeo aqui proposta a respeito do formato estrutural da

obra final de James Joyce A respeito do que natildeo poderia ser apreensiacutevel por

uma dialeacutetica per se mdash algo que veremos distancia-se daquilo que conjectura

o escritor irlandecircs em suas obras mdash diz Jacques Derrida

Thus one does not have to choose between two lines of thought Rather one has to meditate upon the circularity which makes them pass into one another indefinitely And also by rigorously repeating this circle in its proper historical possibility perhaps to let some elliptical displacement be produced in the difference of repetition a deficient displacement doubtless but deficient in a way that is not yet --- or is no longer --- absence negativity non-Being lack silence Neither matter

103

nor form nothing that could be recast by some philosopheme that is by some dialectics in whatever sense dialectics may be determined An ellipsis both of meaning and of form neither full speech nor a perfect circle More a less neither more nor less Perhaps an entirely other question (DERRIDA apud HODGE 2007 p 11)42

A descriccedilatildeo do percurso eliacuteptico em Derrida acrescenta aqui ao princiacutepio

de natildeo redundacircncia como supracitado quanto agrave circularidade de Finnegans

wake No entanto uma espeacutecie de dialeacutetica ocupa as preocupaccedilotildees do escritor

irlandecircs Joyce foi influenciado pela ideia de atraccedilatildeo de contraacuterios exposta no

The Marriage of Heaven and Hell do inglecircs William Blake e da antecipaccedilatildeo da

dialeacutetica hegeliana de Giordano Bruno de Nola filoacutesofo italiano em que ldquoall is in

allrdquo como em Finnegans wake

Desde uma de suas primeiras publicaccedilotildees Gramatologia Jacques

Derrida aponta uma espeacutecie de condescendecircncia mdash ou como ele diz

solidariedade mdash entre uma concepccedilatildeo histoacuterico-metafiacutesica calcada no linear

portanto calcada na estruturaccedilatildeo de presente apoacutes presente tempo apoacutes tempo

em que haacute sequecircncias e possiacuteveis iniacutecios meios e fins com um modelo

discursivo tradicional eacutepico Denuncia igualmente que ldquoa lsquolinharsquo representa

apenas um modelo particularrdquo (DERRIDA 2011 p 107) e que esse modelo por

mais que tenha marcado uma norma imperante natildeo prescinde do conceito

mundano da temporalidade ndash o conceito de homogeneidade e continuidade seja

reto seja circular que Heidegger aborda como derivado da ontologia Esse

modelo passa a deixar de imperar pela gradual ineficiecircncia na economia dos

textos cientiacuteficos e na mesma medida problematiza-se contudo Derrida afirma

ldquoO fim da escritura linear eacute efetivamente o fim do livrordquo (Ibid 108) A ressalva

42 ldquoPortanto natildeo eacute necessaacuterio fazer uma escolha entre duas linhas de pensamento Preferencialmente se deve meditar sobre a circularidade que as faz uma passar pela outra indefinidamente Inclusive rigorosamente repetindo esse ciacuterculo em sua proacutepria possibilidade histoacuterica talvez para deixar algum deslocamento eliacuteptico ser produzido na diferenciaccedilatildeo da repeticcedilatildeo um deslocamento deficiente sem duacutevidas mas deficiente de maneira que natildeo eacute ainda mdash ou natildeo mais mdash ausecircncia negatividade natildeo-Ser falta silecircncio Nem mateacuteria nem forma nada que possa ser refeito por um filosofema isto eacute por alguma dialeacutetica em qualquer que seja o sentido que determina a dialeacutetica Uma elipse tanto de sentido quanto de forma nem discurso completo nem um ciacuterculo perfeito Mais um menos nem mais nem menos Talvez uma questatildeo inteiramente outrardquo

104

vem do proacuteprio filoacutesofo quanto ao fato de que nos nossos dias ainda novas

escrituras satildeo desdobradas nas focircrmas dos livros literaacuterias ou teoacutericas A

conclusatildeo desses processos e desvios eacute absolutamente contundente ldquoPorque

comeccedilamos a escrever a escrever de outra maneira devemos reler de outra

maneirardquo (Ibid)

Essas dimensotildees de uma espeacutecie de inadequaccedilatildeo da escritura ao

sistema linear e o lanccedilar-se agraves dimensotildees temporais plurais e natildeo lineares satildeo

fatos natildeo concernentes aos problemas modernos lembra Derrida mas fazem-

se evidentes nos dias atuais Teriacuteamos de dizer a partir disso que Finnegans

wake natildeo eacute um livro ou que o que faz dele um livro eacute o formato numerado e

organizado para uma ediccedilatildeo que lhe impotildee linearidade especiacutefica O que pensar

dessa imposiccedilatildeo de focircrma a um livro circular e efetivamente acessiacutevel de

qualquer ponto mdash portanto avesso a qualquer ordenaccedilatildeo especialmente a uma

numeraccedilatildeo que tanto especifica e prende Talvez isso deva nos levar ao

desprendimento dessa numeraccedilatildeo por mais uacutetil que seja em termos de citaccedilatildeo

e compartilhamento Ou em vez de um desprendimento uma atitude avessa a

certa escravizaccedilatildeo que pode decorrer desse sistema que em vez de pretensioso

arranjo traz desarranjo da estrutura circular que se deve perceber na obra

Em seu Seminaacuterio de nuacutemero 23 denominado O sinthoma ou Le

sinthome mdash ou ainda ldquoo santo homemrdquo mdash dedicado a James Joyce Jacques

Lacan parece atravessar tambeacutem algo proacuteximo agrave questatildeo que aqui trazemos

Antes de citaacute-lo talvez seja interessante remeter ainda especialmente no que

diz respeito ao comeccedilo da citaccedilatildeo do psicanalista agrave ceacutelebre frase de Samuel

Beckett a respeito do Finnegans wake que eacute um livro natildeo sobre alguma coisa

mas eacute a coisa em si Lacan em seu Seminaacuterio diz

Leiam as paacuteginas de Finnegans wake sem procurar compreender Isso se lecirc () Eacute uma sorte que haja uma uacutenica ediccedilatildeo o que permite designar ao fazermos uma citaccedilatildeo a linha na paacutegina certa isto eacute na paacutegina que sempre teraacute o mesmo nuacutemero Se como acontece com os outros livros fosse preciso editar Finnegans wake com diversas paginaccedilotildees como iriacuteamos nos orientar (LACAN 2005 p 161)

105

Finnegans wake entatildeo soacute natildeo eacute o fim do livro porque foi encaixado em

uma estrutura linear a despeito de sua natureza Mas eacute o fim das barreiras

linguiacutesticas como estudadas historicamente mdash e novamente a ponte

supracitada com Derrida em ldquoGecircnese e escritura do Essai sur lrsquooriginerdquo se faz

profiacutecua lembrando o que diz a partir de Jean-Jacques Rousseau ldquoNatildeo haveraacute

nem uma linha histoacuterica nem um quadro imoacutevel das liacutenguas () As liacutenguas satildeo

semeadasrdquo (DERRIDA 2011 p 263) O dinamismo babeacutelico que como foi dito

alguns capiacutetulos atraacutes transpassa para a traduccedilatildeo afeta o leitor de maneiras

distintas e desestabiliza a interaccedilatildeo leitor-obra de uma maneira que tem certa

medida de imprevisibilidade O fim da barreira linguiacutestica se relaciona ao fim de

uma barreira temporal

Ainda sobre Rousseau nesse mesmo texto Derrida aponta a vontade do

iluminista francecircs de esgotar todos os recursos da escritura buscando

univocidade clareza e precisatildeo indicando a pontuaccedilatildeo como ldquoo melhor exemplo

de uma marca natildeo-foneacutetica no interior da escriturardquo (Ibid p 277) Rousseau

chega a dizer que seriam necessaacuterias novas invenccedilotildees em pontuaccedilatildeo para que

se extraiacutesse o melhor da escritura seu maacuteximo como pontos que indicassem

por exemplo ironia e vocativo este uacuteltimo com a intenccedilatildeo de diferenciar na

escrita o homem que se proclama daquele homem que eacute convocado na

linguagem Podemos vislumbrar uma semelhanccedila curiosamente em sentido

diametralmente oposto entre Rousseau e o iacutempeto joyciano ao inveacutes da busca

por univocidade e precisatildeo Joyce parece buscar alcanccedilar ou extrair tambeacutem o

maacuteximo do trabalho que realiza no campo da palavra escrita explorando no

entanto o que se constroacutei em desbravamento de disseminaccedilatildeo a partir do

alcance do plural linguiacutestico isto eacute daquilo que natildeo proiacutebe ambiguidade mas se

farta dela

Em muitos pontos do texto o proacuteprio Finnegans wake praticamente diz ao

leitor ou ao menos lhe indica formas de se debruccedilar sobre ele dando pistas de

suas premissas O excerto que mostraremos aqui traz a sugestatildeo de que fatores

como o tempo mdash plural mdash a inflexatildeopronuacutencia e as maneiras de se comunicar

algo tecircm o poder de afetar diretamente no processo comunicativo que envolveria

idealmente emissor mensagem coacutedigo receptor como postulado pelo

106

estruturalismo de Roman Jakobson O proacuteprio texto se anuncia em apelos a uma

Babel ou mais especificamente a um processo de babelizaccedilatildeo da(s) liacutengua(s)

e de deslocamento da emissatildeo de mensagens em um suposto procedimento de

comunicaccedilatildeo

Because Soferim Bebel if it goes to that (and dormerwindow gossip will cry it from the housetops no surelier than the writing on the wall will hue it to the mod of men that mote in the main street) every person place and thing in the chaosmos of Alle anyway connected with the gobblydumped turkery was moving and changing every part of the time the travelling inkhorn (possibly pot) the hare and turtle pen and paper the continually more and less intermisunderstanding minds of the anticollaborators the as time went on as it will variously inflected differetly pronounced otherwise spelled changeably meaning vocable scriptsigns (FW 11818-28)43

No proacuteprio texto de Finnegans wake portanto admite-se ou ateacute mesmo

assevera-se que a linguagem sob a dinacircmica de um caraacuteter mutaacutevel natildeo tem

um destino certo pontual no espaccedilo e tampouco no tempo seu remetimento

pode lidar com o extravio com a perda de seu destino Em se tratando do texto

literaacuterio em que o destinataacuterio natildeo eacute unitaacuterio essa possibilidade eacute ainda maior

especialmente em um texto como Finnegans wake que remete agrave conexatildeo entre

todas as coisas no caosmos de tudo mdash algo que cria uma possibilidade de cadeia

de remetimentos infinita

Para Jean-Jacques Rousseau o surgimento das liacutenguas se daacute na

passagem do grito natural indomado pela racionalidade ao som articulado Ao

mesmo tempo ele evoca o espectro de uma fala que se daacute puramente em

articulaccedilatildeo que seria uma liacutengua morta aacutelgebra ou escritura ou seja resultaria

na morte da fala Para Jacques Derrida ldquoa morte que natildeo eacute nem um presente

43 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoPorque Escritores de Babell sofridores se chega a isso (e conversas de soacutetatildeo o proclamaratildeo do talhado com mais probabilidade anoite-o que a escrita no muro haacute de calorir a mente dos mentantes moventes na via mestra) cada persona galgo ou algo no caosmo do Todo de alocuma forma conectado com o pingalim em piruetas do pingo movia-se e mundava em cada parte do tempo o estojo movente (possivelmente o tonteiro) o papel a tinta no pipel das fibulosas lebre e tortuga os constantes mal-entendidos dos descolaboradores mais ou menos entrementados enquanto o fluir do tempo seraacute variabilmente infletido diferentemente pronunciado riversamente ortografado grafissignos de vocaacutebulos de sentido cambianterdquo

107

por vir nem um presente passado trabalha o dentro da fala como o seu rastro

sua reserva sua diferecircncia interior e exterior seu suplementordquo (DERRIDA 2011

p 385)

Levando isso em consideraccedilatildeo e tambeacutem o sonho de Rousseau pela

liacutengua que por fim seria inarticulada Jacques Derrida questiona quase

concluindo a sua Gramatologia ldquoE se a cena do sonho for sempre uma cena de

escriturardquo (Ibid 386) Sigmund Freud apontava ser pertencente agrave escritura

talvez o mundo dos sonhos Finnegans wake sendo o proacuteprio livro da noite e

do sonho eacute entatildeo escritura na mais bem sucedida fuga da linearidade

CAPIacuteTULO IV

FLUIR E RETORNO

109

O problema estrutural em Finnegans wake eacute segundo afirmamos um

problema intrinsecamente constituiacutedo na questatildeo da dimensatildeo temporal da

existecircncia a comeccedilar por abranger o tempo da leitura da ficccedilatildeo mdash ateacute alcanccedilar

as explicaccedilotildees do tempo do sonho e outras analogias Para aleacutem do tempo do

sonho podemos pensar contrariamente a certa concepccedilatildeo temporal aristoteacutelica

de momento fugidio de linearidade e homogeneidade a concepccedilatildeo temporal da

tradiccedilatildeo semita que trata de simultaneidade assim como uma concepccedilatildeo vinda

de Bergson ou de Heidegger Nessa tradiccedilatildeo hebraica ao inveacutes da

mensurabilidade que secciona a vivecircncia haacute a concepccedilatildeo cairoloacutegica se

podemos assim colocar relacionando-a ao tempo do καιρός (em vez da

cronoloacutegica isto eacute o tempo na loacutegica de κρόνος)

110

Para considerar essa visatildeo procedente no entanto dificilmente seria

profiacutecuo simplesmente apontar momentos especiacuteficos do livro em que isso

aconteccedila sem considerar tambeacutem o todo em recortes que ilustrem afirmaccedilotildees

O entendimento de aspectos estruturais do Wake relacionados a concepccedilotildees de

temporalidade eacute bastante visiacutevel considerando os paradigmas viquianos de que

Joyce partiu ou simplesmente observando o iniacutecio do livro conter uma frase

cortada indicando uma estrutura in media res especialmente expliacutecita mais do

que se especula em Ulysses por exemplo Os caminhos que o texto segue

poreacutem em termos de tempo ultrapassam os aspectos mais pulsantes e chegam

a ser tortuosos uma vez que mudam a todo tempo desde o tratamento dado a

personagens ateacute a ambientaccedilatildeo passando pelo vocabulaacuterio sempre mutante mdash

que remete tambeacutem linguisticamente a outros tempos com usos anacrocircnicos ou

deslocados na diacronia dos idiomas entremeados ao contraacuterio do que uma

pretensatildeo naturalista teria de reproduzir um tempo e espaccedilo pontuais da

realidade mdash e claro pela narrativa desmantelada Assim ainda que seja difiacutecil

ilustrar certas afirmaccedilotildees sobre Finnegans wake pontualmente podemos

rememorar passagens e buscar e alguns destaques possiacuteveis

No quinto capiacutetulo do livro I que se inicia com um paraacutegrafo

surpreendentemente curto mdash apoacutes uma seacuterie de paraacutegrafos longos desde as

primeiras paacuteginas da obra mdash temos uma espeacutecie de apresentaccedilatildeo mais formal

e direta de uma das personagens principais da obra Anna Livia Plurabelle a

mulherrio O documento envolve diferentes personagens no entanto no que diz

respeito tanto agrave sua redaccedilatildeo quanto ao seu envio Diz o trecho

In the name of Annah the Allmaziful the Everliving the Bringer of Plurabilities haloed be her eve her singtime sung her rill be run unhemmed as it is uneven (FW 1041-3)44

44 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller em que o tradutor evoca a religiosidade da fala de oraccedilatildeo ldquoEm nome de Annah a Allmissassombrosa a Sempreviva a Portadora de Plurabilidades santificada seja sua evigiacutelia venha o reino de seu canto ritmem suas rumas sem peias assim na terra como no ceacuteurdquo

111

O que esse paraacutegrafo apresenta em verdade eacute a vinda de sua voz sua

chegada ao leitor por meio de uma carta-manifesto (ldquomamafestardquo) sem tiacutetulo que

seraacute mostrada em seguida aos leitores nesse mesmo capiacutetulo Desenha seu

lugar de inscriccedilatildeo aquele onde poderaacute se despir em transluacutecida sinceridade e

apelo No entanto ainda que seja introduzida sua carta e portanto sua voz e

sua presenccedila o paraacutegrafo se inicia com ldquoin the name ofrdquo isto eacute ldquoem nome

derdquo A expressatildeo natildeo serve aiacute para transferir a fala a algueacutem que a represente

como se houvesse um outro personagem que falasse em seu nome em seu

lugar forjando sua assinatura serve para sobrepor outras vozes agrave sua na

medida em que Anna Livia natildeo se ausenta para que falem por ela mas haacute uma

comunhatildeo de outras vozes que tomam o lugar da fala concomitantemente Natildeo

haacute uma passagem da voz de uma pessoa para outra mas uma assinalaccedilatildeo de

polifonia isto eacute de multiplicidade em simultaneidade

Primordialmente diversos indiacutecios nos levam agrave leitura de Anna Livia como

uma divindade aiacute evocada As referecircncias nesse trecho satildeo basicamente

islacircmicas Essa evocaccedilatildeo natildeo deixa de lembrar em referecircncia paralela agrave

antiguidade ocidental a forma como todo poema eacutepico deve se abrir evocando

e pedindo auxiacutelio agraves musas para fazer o texto acontecer surgir fluir mas

podemos vislumbrar aquela religiatildeo abraacircmica jaacute ao vermos o nome de Anna

Livia ao lado de um epiacuteteto de tamanha imponecircncia ldquothe Allmazifulrdquo que remete

a ldquoall-mercifulrdquo e por conseguinte tambeacutem agrave maneira consagrada de se referir a

Alaacute ldquoAllah the All-mercifulrdquo

A abertura desse paraacutegrafo ecoa ainda tanto em similaridade foneacutetica

quanto nas relaccedilotildees intertextuais que permite o termo ldquoBismillahrdquo que

reaparece a cada sura (cada capiacutetulo do Coratildeo) geralmente nessa mesma

posiccedilatildeo dando iniacutecio ao texto ali contido O eco aqui eacute efetivamente de

repeticcedilatildeo uma vez que ldquoBismillahrdquo significa exatamente ldquoIn the name of Allah

the All-mercifulrdquo Por maior que possa ser a importacircncia das repeticcedilotildees de

termos temas e referecircncias no Wake devemos ter o cuidado de natildeo acreditar

que elas soacute existem se perceptiacuteveis digamos a olho nu mesmo que sob a oacuteptica

meticulosa de quem procura as reproduccedilotildees explicitamente visiacuteveis

112

Jacques Derrida a respeito de estrutura textual diz na seccedilatildeo intitulada ldquoA

fita de maacutequina de escreverrdquo integrante da coletacircnea Papel-maacutequina que ldquoa

loacutegica do acontecimento textual como inscriccedilatildeo materialrdquo impede uma regulaccedilatildeo

com progressatildeo e regressatildeo isto eacute com ldquoo processo temporal como

habitualmente se pensardquo mas sim regulado pelo proacuteprio acontecimento ou

ocorrecircncia do texto ldquoportanto pela singularidade de uma uacutenica vezrdquo (DERRIDA

2009 p 86) Eacute caracterizada portanto uma forma proacutepria de experiecircncia de

maneira que somente uma visatildeo fenomenoloacutegica respeitaria tamanha

especificidade

No esteio desse raciociacutenio faz-se necessaacuterio reafirmarmos que tal tempo

relacionado ao escritural bem como agraves accedilotildees propriamente de escrita e de

leitura tem peculiaridades proacuteprias e por isso uma dinacircmica de consequecircncias

tanto variaacuteveis quanto incontrolaacuteveis A escrita prevecirc o que seraacute do que jorrou

dela e tambeacutem como chegaraacute ao leitor mas sabendo que deve falhar nessa

previsatildeo O tempo da leitura eacute um presente inescapaacutevel que tem de lidar com o

passado irrecuperaacutevel da leitura da linha anterior ainda que se volte e leia

novamente o que jaacute se leu a experiecircncia eacute outra O deparar-se com o texto

matriz de estranhamento frente agrave liacutengua ocorre sempre na singularidade

Derrida traz ainda afirmaccedilotildees a respeito do acontecimento na literatura

remetendo a certa categoria de materialidade do texto mdash materialidade de um

acircmbito metafiacutesico enquanto conceito filosoacutefico diferente portanto de mateacuteria

mdash que determina o conceito de acontecimento (ou a acontecimentalidade)

textual associado agrave desconstruccedilatildeo Essa conjectura eacute pertinente na medida em

que essa operaccedilatildeo desconstrutiva para Derrida tem sempre como alvo ou

ldquoimplica sempre um processo de desmetaforizaccedilatildeordquo (Ibid 131) em que se

revela a existecircncia de articulaccedilotildees ocultas em totalidades antes aparentemente

monaacutedicas Assim o que repousa sob o texto quase silenciosamente mas eacute

visiacutevel em sua superfiacutecie mdash em sua sintaxe em sua estrutura narrativa em seus

processos metoniacutemicos mais evidentes mdash eacute o que uma leitura desse formato

alcanccedila e eacute a abordagem que se propotildee aqui na leitura de Finnegans wake

considerando as disseminaccedilotildees de sentido pelo texto

113

Retornando ao Wake uma seacuterie de epiacutetetos se segue todos com inicial

maiuacutescula indicando que o paraacutegrafo se refere a uma autoridade amarrando os

adjetivos ao nome proacuteprio como corolaacuterios de um pronome de tratamento

especial ldquothe Everliving the Bringer of Plurabilitiesrdquo O restante do capiacutetulo natildeo

conteacutem mais referecircncias islacircmicas O que apareceu no primeiro paraacutegrafo natildeo

foi uma chave para a leitura do que viria depois mas referencias que se

entrecruzaram dentro do mesmo paraacutegrafo e depois aparentemente natildeo nos

servem para nada podendo imaginar que um leitor natildeo as perceba eou as

ignore e continue sua leitura sem prejuiacutezo Anna Livia natildeo eacute Allah nem lhe eacute

equivalente ou consiste em uma paroacutedia dele mas a figura de Allah surge por

detraacutes da mulher-Liffey

A expressatildeo ldquoin the name ofrdquo aleacutem de engendrar a referecircncia agrave fala

islacircmica (e agrave fala catoacutelica com o ldquoem nome do Pai do Filho e do Espiacuterito

Santordquo) aponta fatos narrativos Eacute notaacutevel no paraacutegrafo que essa expressatildeo

natildeo consiste em uma transmissatildeo naquele momento do poder de enunciaccedilatildeo

da proacutepria Plurabelle a outrem a partir desse ponto Lembra de maneira bem

humorada no entanto um anuacutencio real ou oficial sobre alguma questatildeo decidida

pela instacircncia maior de uma hierarquia Nesse sentido haacute uma intermediaccedilatildeo

nesse anuacutencio Haacute ainda uma interposiccedilatildeo de duas outras personagens da obra

quando a carta-mamafesta nos aparece a de seus filhos Shem e Shaun Shem

the penman escreve a carta cujo conteuacutedo lhe eacute transmitido por Anna Livia e

Shaun the postman encarrega-se de entregaacute-la funcionando como

mensageiro

Com o personagem de Shaun e especialmente quando lhe eacute atribuiacuteda

essa tarefa eacute inevitaacutevel lembrarmo-nos da relaccedilatildeo entre mensageiro e

hermenecircutica vislumbrada etimologicamente Tomamos a explicaccedilatildeo de

Heidegger a respeito do termo neste caso didaacutetica e objetiva Do diaacutelogo com

professor Tezuka da Universidade Real de Toacutequio nasce o texto ldquoDe uma

conversa sobre a linguagem entre um japonecircs e um pensadorrdquo de 19531954

publicado em A caminho da linguagem Questionado por Tezuka a respeito do

uso dos termos ldquohermenecircuticardquo e ldquofenomenologiardquo em Sein und Zeit ambos

114

posteriormente abandonados por Heidegger o filoacutesofo alematildeo responde a seu

interlocutor

A palavra ldquohermenecircuticordquo vem do verbo grego ἑρμηνεύειν Refere-se ao substantivo que se pode articular com o nome do deus Hermes Ἑρμής num jogo de pensamento mais rigoroso do que a exatidatildeo filoloacutegica Hermes eacute o mensageiro dos deuses Traz a mensagem do destino ἑρμηνεύειν eacute a exposiccedilatildeo que daacute notiacutecia agrave medida que consegue escutar uma mensagem Esta proposiccedilatildeo se transforma em interpretaccedilatildeo da mensagem dos poetas que nas palavras de Soacutecrates no diaacutelogo Iacuteon (534e) ldquosatildeo mensageiros dos deusesrdquo ἑρμηνῆς εἰσιν τῶν θεῶν () Assim hermenecircutico natildeo diz interpretar mas trazer mensagem e dar notiacutecia (HEIDEGGER 2011 pp96-97)

Shem the penman cujo epiacuteteto prova o quanto assumidamente eacute a

encarnaccedilatildeo do poeta tem em Shaun assim seu correspondente mensageiro e

essa esquemaacutetica fica ainda mais clara na dinacircmica da carta da matildee Anna Livia

espeacutecie de musa inspiradora evocada para a realizaccedilatildeo da escrita O ldquoin the

name ofrdquo opera na marcaccedilatildeo dessa impureza de voz da personagem matildee

deixando expliacutecito para o leitor que o conteuacutedo expresso ali percorre um caminho

indireto Faz-se necessaacuterio duvidar do acesso que podemos ter agrave voz que nos

remete o conteuacutedo do que lemos ateacute a chegada de seu monoacutelogo fluvialmente

verborraacutegico Poder-se-ia afirmar que a voz de Anna Livia soacute realmente toma seu

lugar e domina o texto tomando suas reacutedeas ao fim do livro IV sem

mensageiros tramitando mensagens em seu lugar ainda que aparentes

intromissotildees eventuais sempre aconteccedilam Certamente poreacutem a duacutevida que

Finnegans wake impotildee segundo traccedilamos a respeito de voz discursiva

possibilita uma teorizaccedilatildeo a respeito da impossibilidade de se destilar a sincronia

de uma voz uma fala uma entidade ou personagem A improbabilidade desse

isolamento ou dessa purificaccedilatildeo de categorias e instacircncias narrativas nos lanccedila

em aporias textuais diversas confirmando a compreensatildeo de que a leitura dos

capiacutetulos natildeo cumpra expectativas de clareza e de unidade mas que sejamos

sempre obrigados a questionar o que mudou e que nova polifonia em aparente

caotizaccedilatildeo estaacute sendo desenvolvida

115

Outros exemplos dessas simultaneidades diversas estatildeo no capiacutetulo 11

em que vimos a mesma indefiniccedilatildeo entre falas tempos e espaccedilos unindo a fala

embolada coletiva das pessoas ocupando o pub agrave do raacutedio e agrave de uma narraccedilatildeo

de histoacuteria aparentemente nem do pub nem do raacutedio entre as elucubraccedilotildees das

lavadeiras no capiacutetulo de ALP com a sonoridade dos ecos e a presentificaccedilatildeo

de uma seacuterie de falas que ouviram e reproduzem de diversas maneiras as

sessotildees de julgamento de HCE permeadas por intromissotildees os diversos

devaneios oniacutericos que colocam HCE em situaccedilotildees insoacutelitas espalhados por

muitos capiacutetulos e passando pelas metamorfoses das personagens em outras

pessoas e elementos da natureza as margens no capiacutetulo 10 que colocam no

mesmo espaccedilo de paacutegina vozes completamente distintas em origem conteuacutedo

e forma em que cada espaccedilo das margens se destina a um dos irmatildeos Isolda

ocupa as notas de rodapeacute e circundando todo o texto Shem e Shaun Mesmo

nessa divisatildeo de espaccedilo as vozes natildeo estatildeo isoladas as margens laterais

eventualmente se trocam e comentando-se intercaladamente misturam

assuntos e referecircncias desestabilizando a verdade ou a unidade do que seria

tradicionalmente a voz narrativa central

A dita correspondecircncia dicotocircmica entre Shem e Shaun se explicita ainda

na relaccedilatildeo de Shaun como o mensageiro com o deus Hermes Como eacute dito na

citaccedilatildeo de Heidegger o miacutetico Hermes tem uma relaccedilatildeo com a origem da

hermenecircutica ainda que por vias etimoloacutegicas indiretas (passando pelo verbo

ἑρμηνεύειν) Por outro lado Shem o poeta se opotildee a Shaun ainda nesse

quesito um irmatildeo estaacute aberto ao ambiacuteguo enquanto outro se concentra na

interpretaccedilatildeo una Sendo um mensageiro assim como Hermes era mensageiro

dos deuses Shaun se preocupa com a emissatildeo da mensagem com fazecirc-la

alcanccedilar o destinataacuterio exatamente como deve chegar sem extravio ou desvio

Shaun busca verdades ironizando a existecircncia do proacuteprio Wake enquanto

Shem se instala no terreno das possibilidades inclusive da possibilidade de que

o proacuteprio livro se faccedila No livro II capiacutetulo 9 mdash capiacutetulo 1 na divisatildeo de Campbell

e Robinson (2013) ldquoA hora das crianccedilasrdquo mdash os irmatildeos se separam entre as

luzes (Shaun) e as trevas (Shem) caoso caminho confuso do perder-se (Shem)

e a redenccedilatildeo e autocontemplaccedilatildeo (Shaun) isso eacute assinalado como uma

116

separaccedilatildeo quase chocante como de Dom Quixote e Sancho Panccedila de

possibilidade remota

A dicotomia entre os irmatildeos no entanto eacute transgredida na medida em

que se completam na divisatildeo de tarefas materializada pela carta de Anna Livia

Plurabelle O que se daria como uma pura oposiccedilatildeo se dissolve em uma espeacutecie

de paralelismo cada um dos irmatildeos tem seus preceitos seus caminhos que natildeo

se tocam mas seguem lado a lado e ainda que tenham nuances proacuteprias satildeo

dotados de caracteriacutesticas que operam por contraste O que os separa e

diferencia eacute muacutetuo em suas respectivas caracterizaccedilotildees havendo uma uniatildeo

maior que a meramente consanguiacutenea ainda que definitivamente natildeo sejam

personagens intercambiaacuteveis Operam na verdade como as relaccedilotildees entre

todos os familiares do nuacutecleo de Finnegans wake por similaridade e

diferenciaccedilatildeo com a caracterizaccedilatildeo de cada um deles sempre interligada e

passando pelas relaccedilotildees de parentesco mdash seja no incesto seja na continuidade

geracional que gera espelhamento e desdobramento seja nos pares

complementares e assim por diante O tempo do parentesco assim pode

caotizar uma linearidade cronoloacutegica eacute um anacronismo de cruzamentos

diversos mais do que uma uniatildeo ou intersecccedilatildeo de sincronias unitaacuterias mdash de

tempos individuais mdash nem a diacronia familiar como seria se interpretaacutessemos

o coletivo como histoacuteria e memoacuteria

A carta-mamafesta de Anna Livia portanto tem o seu caminho

anticircularizado tornado eliacuteptico com um ldquoretorno deslocadordquo da compreensatildeo

de Jacques Derrida e isso ocorre mesmo antes da chegada da mensagem jaacute

havendo a problematizaccedilatildeo de seu remetente atraveacutes de Anna Livia a

mensagem desloca-se por seus filhos em desvios natildeo rastreaacuteveis Eacute

desintegrada a noccedilatildeo de unidade nesse percurso bem como a possiacutevel

centralidade do emissor Estando a noccedilatildeo de presenccedila e a noccedilatildeo de centro

intimamente ligadas ambas se esfarelam simultaneamente Os espaccedilos de voz

em que os remetimentos se interseccionam seriam no Wake repensados

Finnegans wake entatildeo sendo o proacuteprio livro da noite e do sonho eacute escritura em

fuga do linear que natildeo soacute desvia como se estranha e se exila do terreno comum

117

da centralidade e dos eixos estaacuteveis das repeticcedilotildees criadoras de identidade da

mensagem enviada em linha reta mdash em uma potente polifonia

A distacircncia entre diferentes vozes implica que existam diferentes

temporalidades O filoacutesofo franco-lituano Emmanuel Levinas discorre sobre o

tempo partindo de sua investigaccedilatildeo central a dicotomia do mesmo e do Outro

(que em verdade se estabelecem em relaccedilotildees eacuteticas complexas superando um

caraacuteter meramente dicotocircmico) Em Autrement qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence

(1974) diferencia trecircs possibilidades de leitura temporal sendo a primeira delas

o tempo do mesmo a pura sincronia de um eu que vive seu tempo de um ponto

de vista determinado ateacute o ponto em que natildeo afetado por alteridades paralelas

O estabelecimento de uma diacronia soacute se daacute com a intromissatildeo desse outro

intromissatildeo em geral inevitaacutevel de maneira que natildeo haacute mais um soacute passado

nem uma perspectiva unificada do tempo presente A uacuteltima instacircncia seria o

ponto do anacronismo em que a dualidade eu-outro como duas entidades

paralelas ou entrecruzadas se multiplica em uma diversidade de passados

futuros e uma impossibilidade de presente uacutenico e de uma perspectiva solitaacuteria

intocada

Uma obra literaacuteria apresenta em princiacutepio uma sincronia haacute o texto uma

porccedilatildeo de enunciados congelados prontos a serem evocados num presente

qualquer de um leitor que com ele se depare Soacute pode ser lido em um presente

um instante na linearidade de cada letra que sucede outra cada palavra e linha

em ordem inertes Nessa interaccedilatildeo haacute o cruzamento de outro tempo apenas a

partir da abordagem leitor um mesmo um eu que vai com sua sincronia proacutepria

seu tempo presente agrave abordagem do texto No entanto a sincronia que se

apresenta natildeo eacute ativada senatildeo no contato com ele na leitura por algueacutem Ao

inveacutes de um cruzamento entatildeo poder-se-ia pensar na retirada do texto de uma

suspensatildeo temporal A obra ocupa um lugar de nenhum tempo ateacute que eacute

chamada a ocupar um presente de algueacutem cuja temporalidade lhe eacute imposta e

domina a interaccedilatildeo leitor-texto Se pensarmos tempo de maneira contiacutegua a

espaccedilo a obra ocuparia assim um natildeo-lugar A sincronia do texto acompanha

a linha do tempo de quem quer que seja o centro dessa conduccedilatildeo seja um

118

narrador personagem seja um narrador onisciente que nos guia pelo trilho dos

fatos seja fluxo de consciecircncia e o tempo do monoacutelogo interior

Isso nos impotildee o problema que sincronia eacute inerente ao Wake Haacute uma

incompatibilidade ainda entre o tempo presente do leitor e a natildeo-sincronia do

texto com que se depara Havendo uma sincronia na obra o leitor e seu tempo

se relacionam de um para um com o tempo do outro no entanto natildeo se pode

definir com precisatildeo (ou mesmo sem) a linearidade do Wake menos ainda

definir um personagem que detenha essa perspectiva de quem parte a

temporalidade No monoacutelogo poderiacuteamos afirmar que haveria a sincronia de

Anna Livia no entanto as intromissotildees satildeo tantas que vemos claramente um

cruzamento de temporalidades diversas Isso eacute favorecido pela forma do

monoacutelogo por seu proacuteprio modo assim como seria em qualquer tentativa de se

trabalhar a partir de um fluxo de consciecircncia e transformaacute-lo em teacutecnica natildeo eacute

poreacutem justificado por ele uma vez que haacute a possibilidade de que um monoacutelogo

interior narrado tenha uma temporalidade sincrocircnica absolutamente palpaacutevel O

final (se podemos assim dizer) de Finnegans wake no entanto sugere um

continuum que aponta a um futuro agrave substituiccedilatildeo da geraccedilatildeo anterior pela que

a sucede O capiacutetulo se inicia com ldquoSandhyasrdquo que lembra tanto Sunday (o Sol

que estaacute nascendo na manhatilde indica o novo dia jaacute que o sonho de Earwicker

pode ter se passado em uma noite de saacutebado) quanto um saṃdhiacute (सधि) termo

sacircnscrito que significa ldquojunccedilatildeordquo ou ldquoarticulaccedilatildeordquo e remete agrave cosmologia do

Bramanismo em que se denominam os intervalos entre as yugas (as quatro

idades satya treta dwapar e kali yuga) de sandhyā e sandhyānsa Assim o

encaminhamento para o final mdash do sonho do livro de uma idadefase mdash se daacute

de maneira prismaacutetica sem encaminhar pontualmente um fechamento temporal

especiacutefico pois natildeo se limita agrave cronologia hindu nem agrave da narrativa Os tempos

verbais satildeo claramente confusos dizem-se anulando-se ldquoThe child a natural

child thenown by the mnames of (aya aya) wouldbewas kidnapped at na age

of recent probably possibly remoterrdquo (FW 59534-36)45 A incerteza se explicita

45 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoUm menino filho natural entatildeo conhecido pelos mnomes de (aya aya) podequefoi raptado em data recente provavelmente tambeacutem pode que mais remotardquo

119

ldquowould berdquo e ldquowasrdquo se unem no que eacute passado e ao mesmo tempo possibilidade

a hesitaccedilatildeo confirma um ldquoprovavelmenterdquo recente mas tambeacutem possivelmente

ldquoremotordquo Natildeo haacute apenas duacutevida entre um ou outro tempo como garantir que o

passado de fato passou

Se concebermos o Wake todo como um livro de sonho seja do Humphrey

seja de Anna Livia talvez a consciecircncia de quem sonha seja essa figura

centralizadora A temporalidade do sonho poreacutem se instalaria como outro oacutebice

a essa definiccedilatildeo jaacute que natildeo possui um tempo cronometraacutevel e portanto sua

calculabilidade se dissipa de qualquer maneira Sem evocaacute-las

conscientemente memoacuterias compotildeem qualquer sonho mas podem ser

distorcidas constituindo devaneios que satildeo na verdade nada aleacutem de

conjecturas ficcionais Imiscuem-se desejos que vislumbram um certo futuro do

acircmbito do previsiacutevel e ainda o presente do sonhador que dorme em sono leve

ou pesado em algum lugar calmo ou barulhento confortaacutevel ou natildeo apoacutes ter

tido um dia bom ou ruim agitado ou tedioso Se pensaacutessemos no sonho fora da

ficccedilatildeo portanto muito haveria de ser considerado na ficccedilatildeo se eacute concebido um

personagem que sonha a narrativa ou que sonha uma escritura mdash para falarmos

junto com Freud mdash certamente natildeo se partiria do princiacutepio de que haacute uma

sincronia pois o tempo dessa produccedilatildeo oniacuterica natildeo seraacute uno mas antes de

aspecto muacuteltiplo

Citamos sincronia anacronismo termos previsiacuteveis em uma abordagem

sobre o tempo Podemos no entanto empregaacute-los de uma maneira mais

especiacutefica a partir de alguns apontamentos levinasianos que perpassam a

questatildeo da temporalidade pela via eacutetica e ontoloacutegica A eacutetica metafiacutesica de

Emmanuel Levinas eacute pautada em investigaccedilotildees fenomenoloacutegicas cuidadosas e

no olhar sobre as exigecircncias morais a alteridade e a justiccedila mdash que constituem

o ser humano desde o face a face um-Outro ateacute o todo da vida em sociedade

Um desdobramento do tiacutetulo de uma de suas obras Autrement qursquoecirctre ou au-

delagrave de lrsquoessence isto eacute aleacutem do ser outramente que ser outro que (no sentido

negativo) ser indica a intenccedilatildeo de ultrapassar o ser como concebido ateacute entatildeo

nas discussotildees da ontologia remetendo indubitavelmente ao legado daquele

que resgatou a questatildeo-do-ser (Seinsfrage) ateacute entatildeo esquecida Martin

120

Heidegger Em Sein und Zeit (1927 2012) Ser e tempo o filoacutesofo de Meszligkirch

retoma o ser das trevas em que este estava envolto apontando resumidamente

trecircs preconceitos que imperavam como entraves de sua investigaccedilatildeo a saber

sua suposta inerente universalidade o atravanco inevitaacutevel em qualquer

tentativa de definiccedilatildeo e por fim sua totalidade em si autossuficiecircncia

Aquilo que de modo fragmentaacuterio e numa primeira investida foi um dia arrancado dos fenocircmenos pelo supremo esforccedilo do pensamento de haacute muito se trivializou () Sobre a base dos pontos-de-partida gregos da interpretaccedilatildeo do ser construiu-se um dogma que natildeo soacute declara supeacuterflua a pergunta pelo sentido de ser mas aleacutem disso sanciona sua omissatildeo Diz-se ldquoserrdquo eacute o conceito mais universal e o mais vazio e como tal resiste a toda tentativa de definiccedilatildeo (HEIDEGGER 2012 p 33)

Estabelece jaacute na introduccedilatildeo de seu tratado que o objetivo eacute ldquoa elaboraccedilatildeo

concreta da pergunta pelo sentido de lsquoserrsquordquo e que o tempo assim como aparece

em segundo lugar no tiacutetulo constitui no conteuacutedo de toda a obra apenas uma

ldquometa provisoacuteriardquo no que for pertinente para direcionar ldquoo horizonte possiacutevel de

todo entendimento-do-ser em geralrdquo (Ibid p 31) O tempo eacute um caminho

interpretativo para o ser este sim o centro da investigaccedilatildeo de Heidegger Assim

partindo da revisitaccedilatildeo do que a ontologia relegou como terras infeacuterteis

desenvolveu seu Dasein matriz do entendimento-do-ser o ente cuja maior

possibilidade-de-ser eacute a de perguntar (Frager perguntante) Esse retorno agrave

ontologia agrave maacutexima pergunta ontoloacutegica primordial eacute acompanhado entatildeo pela

temporalidade sentido do ser do Dasein na medida em que se constitui como

aquilo a partir de que ele eacute capaz de entender e processar um algo

Assim como a Seinsfrage permaneceu intocada Heidegger destaca que

o conceito de tempo se manteve praticamente inalterado desde Aristoacuteteles

mesmo passando por Henri Bergson (dizendo que o filoacutesofo francecircs eacute mais

aristoteacutelico do que pensa) e reteve tambeacutem o preconceito de um entendimento

vulgar da funccedilatildeo ontoloacutegica autossustentaacutevel Natildeo se pode poreacutem escapar

desse outro resgate Direciona-se assim agrave ldquodestruiccedilatildeo do conteuacutedo transmitido

pela ontologia antiga tarefa a ser levada a cabo pelo fio-condutor da questatildeo-

do-serrdquo (Ibid p 87) mas uma destruiccedilatildeo (Destruktion) que ldquonatildeo quer sepultar o

121

passado no nadardquo pois ldquoela tem um propoacutesito positivo e sua funccedilatildeo negativa

permanece inexpressa e indiretardquo (Ibid p 89) Toda essa necessidade eacute

justificada

Porque o ser soacute pode ser apreendido cada vez na perspectiva do tempo a resposta agrave questatildeo-do-ser natildeo pode residir numa proposiccedilatildeo isolada e cega A resposta natildeo eacute entendida na mera reiteraccedilatildeo do que eacute enunciado em proposiccedilatildeo sobretudo se eacute posta em circulaccedilatildeo como resultado flutuando no ar para mero registro de uma informaccedilatildeo sobre um ldquoponto-de-vistardquo que talvez se afaste do modo de tratamento ateacute agora usual (Ibid p 79)

O tempo como horizonte interpretativo do ser natildeo eacute uma escolha

heideggeriana por assim dizer em termos fundantes A ontologia antiga

interpretando o ser a partir e atraveacutes do mundo isto eacute da natureza acaba por

fazecirc-lo a partir do tempo O sentido de ser asism eacute παρουσία ou ουσία

presenccedila Heidegger cita brevemente que a tese ontoloacutegica de Parmecircnides de

Eleia influenciou diretamente Tomaacutes de Aquino que a absorveu no que diz

respeito agrave alma do ser humano e do νοεῖν o perceber que guiam a questatildeo-do-

ser e colaboram para caracterizar o Dasein em sua precedecircncia ocircntico-

ontoloacutegica No poema fragmentado ldquoSobre a naturezardquo ou ldquoDa naturezardquo de

Parmecircnides uacutenica obra considerada sobrevivente do filoacutesofo preacute-socraacutetico

encontra-se um eixo que se disseminou por toda a praacutetica filosoacutefica do ocidente

pois o mesmo eacute pensar e ser

[] τὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι

(Frag III)

Para Parmecircnides o ser estaacute no que aparece e eacute inuacutetil tentar conceber o

natildeo-ser de maneira que se faz necessaacuterio para a definiccedilatildeo do ser pensando

nos termos do que se daacute agrave apariccedilatildeo e portanto no tempo presente Os dois

termos-chave gregos aqui assinalados παρουσία e νοεῖν respectivamente

presenccedila e perceber levam a um outro intimamente ligado ao modo da

122

discussatildeo de Heidegger bem como a Levinas e outros filoacutesofos preocupados

com questotildees proacuteximas o substantivo φαινόμενον e seu verbo correlacionado

φαίνεσθαι respectivamente ldquoaquilo que aparecerdquo e ldquoaparecerrdquo

O trecho da obra remanescente de Parmecircnides explica poeticamente a

sua ontologia calcada nas relaccedilotildees que apontamos como envolvidas nessa teia

vocabular

Vamos vou dizer-te ndash e tu escuta e fixa o relato que ouviste ndash

quais os uacutenicos caminhos de investigaccedilatildeo que haacute para pensar

um que eacute que natildeo eacute para natildeo ser

eacute caminho de confianccedila (pois acompanha a verdade)

o outro que natildeo eacute que tem de natildeo ser

esse te indico ser caminho em tudo ignoto

pois natildeo poderaacutes conhecer o que natildeo eacute natildeo eacute consumaacutevel

nem mostraacute-lo []

Εἰ δ΄ ἄγ΄ ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας

αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι

ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

Πειθοῦς ἐστι κέλευθος - Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ -

[5] ἡ δ΄ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι

τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν

οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν - οὐ γὰρ ἀνυστόν -

οὔτε φράσαις[]

(Frag II)46

O brilho da aparecircncia natildeo significa aiacute apenas um clarificar das coisas no

momento do mostrar pois de alguma maneira acaba por esconder o ser ainda

assim somente a presenccedila pode definir sua existecircncia Como dissemos essa

necessidade funda uma relaccedilatildeo forccedilosa com o tempo presente que se

estabelece como referecircncia para qualquer ente Justifica-se aiacute que Heidegger

46 A traduccedilatildeo de Joseacute Gabriel Trindade Santos de 2002 eacute pautada no texto original (como tambeacutem citamos aqui) estabelecido pelo filoacutelogo claacutessico escocecircs John Burnet na ocasiatildeo de sua traduccedilatildeo para o inglecircs feita em 1892 Todas as citaccedilotildees de Parmecircnides inclusive a da paacutegina anterior pertencem a essa mesma traduccedilatildeo

123

tenha se dedicado tambeacutem ao tema do tempo era necessaacuterio discorrer sobre

ele para falar do ser especialmente tendo a intenccedilatildeo de desmontar essa

ontologia claacutessica por ldquoserrdquo e ldquotempordquo serem de fato inseparaacuteveis nessa

definiccedilatildeo ontoloacutegica tradicional

Tamanho paradigma resulta em um dito ldquoprivileacutegio do presenterdquo nas

investigaccedilotildees filosoacuteficas a esse respeito sobre o qual discorre Jacques Derrida

em Marges de la philosophie (1972 1991)

O privileacutegio do presente (Gegenwart) teria jaacute marcado o Poema de Parmecircnides O legein e o noein deviam apreender um presente sob a espeacutecie daquilo que permanece e persiste proacuteximo e disponiacutevel exposto diante do olhar ou ao alcance da matildeo um presente na forma da Vorhandenheit Essa presenccedila apresenta-se eacute apreendida no legein ou no noein segundo um processo estrutura temporal eacute de pura apresentaccedilatildeo de pura permanecircncia (reinen ldquoGegenwiirtigensrdquo) (DERRIDA 1991 p 66)

Derrida natildeo aponta e ateacute reitera um certo reducionismo linguiacutestico que

Heidegger comete ao considerar οὐσία exatamente o mesmo que presenccedila que

seria a παρουσία repetindo essa mesma relaccedilatildeo Heidegger afirma diversas

vezes ldquoa determinaccedilatildeo do sentido do ser como παρουσία ou como οὐσία o que

ontoloacutegico-temporalmente significa lsquopresenccedilarsquordquo (HEIDEGGER 2012 p 95) ldquoO

ente que nele [no ser] e para ele se mostra e eacute entendido como o propriamente

ente recebe portanto sua interpretaccedilatildeo em referecircncia ao pre-sente (Gegen-wart)

isto eacute concebido como presenccedila (οὐσία)rdquo (Ibid p 97) A palavra παρουσία

significa de fato presenccedila tanto temporal quanto espacial natildeo sendo mero

sinocircnimo de seu termo formante οὐσία particiacutepio presente do verbo ldquoserrdquo na

forma feminina (o que o aproxima da traduccedilatildeo consagrada para ldquosubstacircnciardquo

que Heidegger critica ou algo que se aproxime de aquilo que vem sendo) que

forma tambeacutem ἀπουσία aquilo que natildeo eacute que natildeo vem sendo (por analogia

ausecircncia)

A rigor esse termo em grego eacute composto por uma dupla maneira de dizer o ser a essecircncia diz o ser no sentido ldquodo que eacute a coisardquo e a existecircncia no sentido ldquode que a coisa eacuterdquo () Mesmo levando em conta

124

que eacute esse segundo sentido [o que excede a referecircncia existencial] que prevalece ele natildeo eacute o uacutenico motivo pelo qual Heidegger traduz ousiacutea por Seiendheit em um claro esforccedilo para imprimir uma adaptaccedilatildeo literal dessa ambiguidade do termo em grego () Ousiacutea fazia parte do vocabulaacuterio corrente entre os gregos e indicava e caracterizava bens imobiliaacuterios propriedades e riquezas () Nesse sentido o ser equivale a um bem que deve sempre ser presente e constante ousiacutea eacute em primeiro lugar o que permance (para) eacute parousiacutea uma presenccedila constante (BOUTOT apud NASSER 2006 pp 117-118)

Essa polissemia entatildeo natildeo pode ser reduzida a uma equivalecircncia pura

entre οὐσία e παρουσία Haacute ainda a possibilidade de que οὐσία seja ainda em

certos contextos filosoacuteficos essecircncia A relaccedilatildeo do tempo com a ontologia tanto

de Platatildeo quanto no que diz Parmecircnides em seu poema fragmentado eacute inegaacutevel

e permanece intacta de maneira que o ser seja um permanecer no presente

permanecer na presenccedila estar no presente

Jacques Derrida traz a aporia de Aristoacuteteles na Fiacutesica IV mostrando que

o paradigma trazido mdash o dito privileacutegio do presente mdash jaacute era conhecido natildeo soacute

por Heidegger mas em toda a histoacuteria das investigaccedilotildees ontoloacutegicas desde a

Antiguidade O presente como tempo padratildeo caracteriza o tempo na metafiacutesica

Todo outro tempo passado ou futuro eacute tomado a partir desse conceito central

No entanto ldquoo tempo eacute o nome da impossiacutevel possibilidaderdquo de maneira que um

agora eacute o mesmo e outronovo ao mesmo tempo

O sentido do tempo eacute pensado a partir do presente como natildeo-tempo E natildeo pode secirc-lo de outro modo nenhum sentido (qualquer que seja o sentido em que o entendamos como essecircncia como significaccedilatildeo do discurso como orientaccedilatildeo do movimento entre uma arquia e um telos) pocircde jamais ser pensado na histoacuteria da metafiacutesica de outro modo senatildeo a partir da presenccedila e como presenccedila (Ibid p 87)

No monoacutelogo de Anna Livia vecirc-se talvez pela uacutenica vez em todo o livro

uma supremacia do tempo presente se instaurando com o despertar mdash ainda

que o sonho precise de uma pessoa dormindo em um dado tempo ldquopresenterdquo o

sonhador se ausenta desse tempo em direccedilatildeo ao tempo do sonho que se

caotiza Com o anuacutencio do fim da noite no entanto vemos uma recuperaccedilatildeo

125

gradual de um tempo como o trecho a seguir em que uma contagem intercalada

entre as frases faz espeacutecie de escansatildeo

Passing One We are passing Two From sleep we are passing Three Into the wikewades warld from sleep we are passing Four Come hours be ours But still Ah diar ah diar And stay (FW 60833-36)47

Como os passos de um baleacute ou de uma danccedila que indica o tempo da

coreografia e finalmente o fim dos movimentos (com ldquostayrdquo) e em meio a suspiros

de Anna Livia (ah dear) encaminhamo-nos para longe do breu das sombras

que natildeo progridem no tempo mas pairam entre fases fluidas Anna Livia natildeo

instaura no entanto com a chegada do dia sincronia ou diacronia puras ldquoYet

no body is presente here which was not there before Only is order othered

Nought is nulled Fuitfiat (FW 61313-14)48 Apesar de estar sendo instaurada

uma espeacutecie de nova etapa externa ao oniacuterico Anna Livia nos afirma que soacute o

que muda eacute a ordem mas nada estaacute sendo efetivamente deixado para traacutes

relegado ao ostracismo de um tempo passado nada eacute nulo ldquoFuitfiatrdquo tem o fuit

que lembra ldquofugirrdquo do francecircs e fiat o latim de fez-se feito estaacute feito indica que

algo foge mas algo tambeacutem se faz aparece (fiat lux)

Haacute passagem sim como ela anuncia reiteradas vezes do sonho para o

despertar da noite para o dia para a claridade no entanto o passado natildeo se

cristaliza como antecedente que nada mais tem de relaccedilatildeo com o que vem uma

vez que as reminiscecircncias natildeo se afastam O que eacute ciacuteclico pode instaurar uma

espeacutecie de privileacutegio do presente na medida em que com o estatuto do ricorso

tudo retornar significa se fazer presente novamente Natildeo haacute rememoraccedilatildeo de

algo que ficou no passado e cuja presenccedila foi substituiacuteda por plena ausecircncia

Ao contraacuterio o que haacute eacute uma eterna (re)presentificaccedilatildeo do que se passou seja

47 ldquoPassagem Um Passamos Dois Do sono estamos passando Trecircs Ao vasto visto mundo do sono passamos Quatro Venham eras a nossas horas Silente Ah dea ah dia E staacuterdquo 48 ldquoPoreacutem aqui natildeo tem ningueacutem que jaacute caacute natildeo esteve antes Soacute que a ordem foi outrada Nada se anulou Fuitfiatrdquo

126

com o caraacuteter espectral do que sempre ronda do que resta em caraacuteter

fantasmaacutetico e fantasmagoacuterico seja do efeitvo retorno de acontecimentos

reiterados O tempo se reinventa de maneira que o conceito de lembranccedila e ideia

de memoacuteria se redefinam diante do fim que se aproxima ao mesmo tempo em

que anuncia uma revinda

What has gone How it ends Begin to forget it It will remember itself from every sides with all gestures in each our word Todayrsquos truth tomorrowrsquos trend Forget remember Have we cherished expectations Are we for liberty of perusiveness Whyafter what forewhere A plainplanned liffeyism assemblements Eblaniarsquos conglomerate horde By dim delty Deva Forget (FW 61419-22)49

No livro XI de suas Confissotildees (398 dC 1987) Agostinho de Hipona

reiterou a supremacia do presente ao afirmar a definiccedilatildeo da (anti)temporalidade

do eterno ldquoNa eternidade nada passa tudo eacute presente ao passo que o tempo

nunca eacute todo presenterdquo (AGOSTINHO 1987 216) Periacuteodos anteriores agrave criaccedilatildeo

divina recaem nessa problemaacutetica ldquoPoreacutem se antes da criaccedilatildeo do ceacuteu e da terra

natildeo havia tempo para que perguntar o que faziacuteeis entatildeo Natildeo podia haver

lsquoentatildeorsquo onde natildeo havia tempordquo (Ibid 1987 217) Agostinho define a

temporalidade a partir do presente pois define o passado e o futuro por contraste

e diferenciaccedilatildeo no entanto Agostinho tambeacutem traz a possibilidade do natildeo-

tempo e desloca o centro ainda do aparecimentopresenccedila para o

desaparecimentoausecircncia

49 ldquoO que se passou Como haacute de terminar Comeccedila a deslembraacute-lo Isso haacute de se remembrar de todos os lados com todos os gestos em cada uma de nossas palavras Verdade hoje verso amanhatilde Desmembra remembra Afagamos expectativa Somos pela liberdade de investigaccedilatildeo Por que apoacutes o que eacute prassempre Plenos planos de liffeyismo nas assembleias da horda conglomerada de Eblacircnia Junto agrave turva dialeacutetica Diva Olovidiarrdquo

127

Quanto ao presente se fosse sempre presente jaacute natildeo seria tempo mas eternidade Mas se o presente para ser tempo tem necessariamente de passar para o preteacuterito como podemos afirmar que ele existe se a causa da sua existecircncia eacute a mesma pela qual deixaraacute de existir Para que digamos que o tempo verdadeiramente existe porque tende a natildeo ser (Ibid p 218)

Sendo uma abordagem natildeo necessariamente do acircmbito da investigaccedilatildeo

ontoloacutegica Agostinho natildeo busca a definiccedilatildeo do tempo em si pois volta-se agrave

percepccedilatildeo Isso se evidencia quando ele faz efetivamente a pergunta

especiacutefica do tempo

O que eacute por conseguinte o tempo Se ningueacutem mo perguntar eu sei se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta jaacute natildeo sei Poreacutem atrevo-me a declarar sem receio de contestaccedilatildeo que se nada sobreviesse natildeo haveria tempo futuro e se agora nada houvesse natildeo existiria o tempo presente (Id)

Sua resposta deixa claro que saber o que eacute o tempo significa aiacute estar na condiccedilatildeo

de um ser que pode vivecirc-lo percebendo suas mudanccedilas Agostinho diz os

termos ldquotempo futurordquo e ldquotempo presenterdquo uma divisatildeo que evidencia o fato de a

sua pergunta pelo ser do tempo natildeo buscar de fato uma investigaccedilatildeo mais que

perceptiva da temporalidade lidando com sua vivecircncia em vez de buscar sua

definiccedilatildeo ou conceituaccedilatildeo Talvez fosse a resposta mais indicada para o tempo

do Finnegans wake sem questionamentos ao nos depararmos sabemos algo

sobre pois vivemos a temporalidade do texto jaacute se tivermos de explicaacute-la eacute que

os problemas se iniciam

A relaccedilatildeo entre uma consciecircncia de temporalidade e a dificuldade de bem

compreender o tempo tambeacutem se mostra textualmente O capiacutetulo 13 que

Campbell e Robinson denominam Shaun before the people (ldquoShaun diante do

povordquo) lembra Agostinho ou um diaacutelogo socraacutetico com a forma de perguntas e

respostas em que Shaun vai respondendo a quatorze perguntas uma a uma

Com uma abertura no capiacutetulo que se preocupa em situar as horas o que abala

o apego ao presente (aleacutem de esse apego existir no proacuteprio meacutetodo de

128

questionamentos e reacuteplicas imediatas) eacute a consciecircncia de uma sombra ou algo

de uma meia-noite que se aproxima ldquoCome not here Black Switch outrdquo (FW

40317)50 A consciecircncia que no caso eacute a consciecircncia de uma outra dimensatildeo

atraveacutes de medo e receio abala o terreno temporal de bases fixas no tempo

presente ainda que o ciclo e o ricorso tambeacutem afirmem essas bases

O tempo do texto caso coincida com o tempo da leitura mdash que o faz

reviver como a execuccedilatildeo da partitura faz com a composiccedilatildeo musical mdash eacute o

presente puro da experiecircncia O tempo narrativo mdash se deixarmos de lado

temporariamente a concepccedilatildeo de Finnegans wake como livro que descarta a

narrativa e desmantela seus elementos mdash poderia ser entendido em uma

primeira tentativa de imediato como tempo circular dada a sua estrutura e a

inspiraccedilatildeo nas Idades da teoria de Giambattista Vico Isso seria adequado para

pensarmos a relaccedilatildeo entre esse tempo presente da leitura e a dada circularidade

textual mdash o que se faz em ciclo sendo um eterno retorno teria necessariamente

de engendrar por conseguinte um eterno presente no esteio do que afirma

Agostinho pois eacute a continuidade que desconhece iniacutecio e fim divisatildeo que

seccione ou corte o que tem por definiccedilatildeo a fluidez Isso leva agrave aporia de que

fala Agostinho entre considerar que o ciclo engendra um presente supremo mas

por outro lado se soacute houvesse presente natildeo haveria tempo e sim eternidade

No entanto se o texto jaacute natildeo eacute em si ciacuteclico e como vimos com Derrida

tem seu centro deslocado e uma caracterizaccedilatildeo possivelmente eliacuteptica mdash ainda

que em verdade o ciclo seja viquiano seja joyciano seja nietzschiano natildeo eacute

simplesmente repeticcedilatildeo pura e simples mas sim retorno com diferenciaccedilatildeo isto

eacute natildeo soacute passiacutevel como obrigatoriamente submetido a mudanccedila e a renovaccedilatildeo

mdash essa relaccedilatildeo de presente se quebraria A isso se relaciona intrinsecamente

o fato de que o texto escritural reinvocando Derrida lida com o porvir diferente

do futuro Essa outra qualidade temporal modifica toda a dinacircmica textual na

medida em que o porvir eacute o tempo do acontecimento daquilo que vem sem

espera que surge do vazio da ausecircncia por outro lado o texto que lida com

futuro calculaacutevel iniacutecio-meio-fim e sequecircncia narrativa eacute o que lida com a

50 ldquoNatildeo te quero nero Sombra sumardquo

129

presenccedila e a previsibilidade Somente o porvir deixa rastros espectrais daquilo

que natildeo se previu mdash e eacute disso que todo a leitura do texto literaacuterio estaacute

inevitavelmente permeada

Emmanuel Levinas filoacutesofo que compreende a histoacuteria como

escatoloacutegica natildeo como progressista e que afirma sua eacutetica metafiacutesica a partir

da existecircncia do Outro tem compreensatildeo temporal que pode nos ajudar a

compreender a dificuldade de se enxergar uma sincronia no texto de Finnegans

wake Para Levinas a tradiccedilatildeo que supotildee a existecircncia do tempo de um eu estaacute

equivocada por desconsiderar o face a face desconsiderar o Outro Assim uma

sincronia isto eacute a assunccedilatildeo de um uacutenico presente natildeo passa como tempo da

subjetividade de um indiviacuteduo de mera presunccedilatildeo por entender o tempo

objetivamente (por mais inicialmente contraditoacuterio que isso possa soar) Isso

poderia ser resolvido pela adiccedilatildeo do tempo diacrocircnico que passa a existir na

relaccedilatildeo com o outro e instaura um tempo que eu subjetividade individual natildeo

vivi Haveria uma disjunccedilatildeo anacrocircnica entre sincronia e diacronia como

princiacutepio da descontinuidade que provaria a impossibilidade de um tempo

objetivo ou de uma compreensatildeo objetiva do tempo reduzindo isso a mera

pretensatildeo A sincronia eacute uma temporalidade insular enquanto a diacronia

expandiria esse isolamento A futuridade do futuro natildeo vem como porvir no meu

horizonte e natildeo posso reduzir o tempo do Outro ao meu o tempo do Outro eacute o

Outro do meu tempo

Eacute a terceira categoria sobre a qual discorre Levinas na supracitada obra

Autrement qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence contudo que mais nos interessa e

que complementa fundamentalmente as noccedilotildees expostas anteriormente Eacute

somente no reconhecimento de que haacute na verdade muitos presentes e de que

nem mesmo o proacuteprio eu sendo um eu ordinaacuterio deteacutem o seu presente mdash

menos ainda seu passado reduzido a lembranccedilas embaccediladas e seu futuro

incerto mdash que se poderia compreender verdadeiramente o tempo Isso porque

somente um eu ideal ou melhor o ser real que dita o que o presente eacute poderia

ser premissa de sua existecircncia e efetivamente deter ou reter o presente O

reconhecimento dessa impossibilidade aliado ao reconhecimento essencial de

que existe o face a face de que existe o Outro cujo tempo me eacute tatildeo inapreensiacutevel

130

quanto ele mesmo o eacute haveria o reconhecimento de que sincronia e diacronia

portanto satildeo maneiras ainda defeituosas de se compreender o tempo para o

humano A terceira categoria fundamental que adveacutem dessas reflexotildees eacute o

tempo do anacronismo Reconhecendo-se a existecircncia de muitos presentes o

anacronismo reconhece ainda que o surgimento de um Outro abre natildeo soacute o meu

tempo para o delea mas tambeacutem haacute tempos de muitos outros de muitos tempos

mortos ou ainda por virem a nascer O tempo consiste em uma relaccedilatildeo com o

que natildeo pode ser assimilado com aponta Levinas natildeo se trata de ter boa

memoacuteria ou natildeo mesmo que suas limitaccedilotildees tenham importacircncia nisso tudo

mas o central eacute a impossibilidade de que toda a dispersatildeo do tempo pudesse se

juntar em um soacute presente Por isso sincronia e diacronia satildeo insuficientes para

essa compreensatildeo enquanto o anacronismo respeita a existecircncia das nuances

variadas dos aspectos temporais da existecircncia

Essa compreensatildeo levinasiana eacute ao que nos parece brilhantemente

adequada para a compreensatildeo do tempo no texto do Wake justamente sendo

uma obra que reuacutene simultaneamente mortos e vivos remorrentes e

ressuscitantes mdash e aqui se faz mister evocarmos o revenant de que fala

tambeacutem Derrida evocando novamente o caraacuteter espectral de presenccedila-

ausecircncia simultacircnea e vinda inesperada isto eacute cuja chegada se faz somente no

porvir como o fantasma de um autor que retorna e se faz presente de alguma

outra forma por meio de sua obra O tempo como concebido por Giambattista

Vico como paradigma natildeo anula a pluralidade do anacronismo sobre o qual

Emmanuel Levinas discorre ao contraacuterio compreende-se que as Idades

viquianas abarquem presentes diversos e natildeo partam de uma consciecircncia

temporal uacutenica Poderiacuteamos falar em caotizaccedilatildeo mas em verdade caotiza-se

na medida em que se foge do linear cronoloacutegico sincrocircnico uno sem que a

caracterizaccedilatildeo necessariamente se reduza de maneira especiacutefica a pura e

simplesmente caos

Na caracterizaccedilatildeo de onde reside Shem o irmatildeo que pode ser o alterego

do artista (e ateacute do proacuteprio Joyce) onde convive com passado morte alteridades

diversas assim como na prisatildeo morte e ressurreiccedilatildeo de Humphrey Chimpden

Earwicker pai de Shaun Shem e Isobel e marido de Anna Livia vemos essa

131

fusatildeo de vida e morte que natildeo controla o tempo em fases imisciacuteveis Shem estaacute

em meio a ldquofresh horrors from Hadesrdquo (FW 18335)51 e por ldquoTumult son of

thunder self exiled in upon his ego a nightlong a shaking betwixtween White or

reddr hawrors noondayterrorised to skin and bone by na ineluctable phantomrdquo

(FW 1846-9)52 trecho em que inevitavelmente nos lembramos da inelutaacutevel

modalidade do visiacutevel de Ulysses que aqui se transformou em fantasma como

visiacutevel

Interessante notar como o capiacutetulo imediatamente posterior ao de Shem

que seraacute o Anna Livia Plurabelle em que lavadeiras confabulam sobre fatos e

fofocas termina com a noite caindo em cada vez mais escuridatildeo e menos

informaccedilatildeo factual menos visatildeo clara como se a cena fosse se apagando e

perdendo a forccedila a cada vez que se repete a palavra ldquonightrdquo Em meio a

paranoias e sensaccedilatildeo de adormecimento ldquonightrdquo daacute o tom de queda gradual mdash

natildeo como a queda monumental de Earwicker no primeiro fragmento que

tambeacutem se repete pelo livro mas uma quebra branda Em vez de pontuar um

momento o efeito principal eacute com ldquonightrdquo prosseguir evocando a escuridatildeo e

ao mesmo tempo mantendo-se progressivamente suspensos os ecos dessas

conversas

Dark hawks hear us Night Night My ho head halls I feel as heavy as yonder stone Tell me of John or Shaun Who were Shem and Shaun the living sons and daughters of Night now Tell me tell me tell me elm Night night Telmetale of stem or stone Beside the rivering waters of hitherandthithering waters of Night (FW 21536-2165)53

Sendo todo um livro da noite como se coloca usualmente e como o

proacuteprio Joyce jaacute pontuou em oposiccedilatildeo a Ulysses as misturas de escuridatildeo noite

quebra de fala e silecircncio seriam naturalmente recorrentes Ainda assim elas

acontecem de maneira especialmente controlada em momentos cruciais e

51 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2003) ldquonovos horrores do Hadesrdquo 52 ldquoTumulto filho do trovatildeo auto-exilado no seu ego tremores da noite inteira entre horrores brancos e rubros aterrorizado ao meio-dia da pele aos ossos por um fantasma inelutaacutevelrdquo (idem) 53 ldquoNoturnos falcotildees nos escutam Noite Noite Tomba a testa Pende pesada qual pedra aquela Que me falas de John ou de Shaun Shem e Shaun viventes filhos ou filhas foram de quem A noite noita Fala-me fala-me fala-me carvelha Noite noite Conta-me contos de Stem ou Stone Junto agraves rio-revantes aacuteguas de correntes-e-recorrentes aacuteguas De Noiterdquo (idem)

132

especiacuteficos no Wake como que desestabilizando a noccedilatildeo temporal de noite mdash

ou de uma noite ou de noite como algo definido temporal e ateacute espacialmente

mdash em vez de partirem para o que seria uma caracterizaccedilatildeo temporal A noite

funciona como algo que subverte a ineacutercia do tempo presente sendo uma noite

sem duraccedilatildeo reverberando ainda em uma seacuterie de evocaccedilotildees de ldquonightrdquo como

se ela natildeo estivesse presente mas invadisse aos poucos agrave medida que o apelo

acontece A palavra ldquoNightrdquo caracteriza o indefinido em vez de definir (seja uma

ou seja qualquer) noite especiacutefica

Aquilo que natildeo eacute definido pontualmente natildeo pode consequentemente

fazer parte de uma evoluccedilatildeo temporal da ordem do linear com cenas

consecutivas que se somam sem se sobreporem progredindo do passado para

o futuro Isso natildeo deve necessariamente acontecer somente na hipoacutetese da

eternidade pura como disse Agostinho a respeito do tempo presente que natildeo

tem passado e futuro como constrastes o que retorna sempre em ciacuterculos pode

tambeacutem ter como corolaacuterios antesagoradepois ao mesmo tempo em que natildeo

teria iniacutecio fundadororiginaacuterio nem fim escatoloacutegico Retornando a Autrement

qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence para caracterizar a oposiccedilatildeo do anacronismo

que reuacutene essas vozes e ausecircncias-presentes em relaccedilatildeo agrave ideia de linearidade

que uma sincronia necessariamente conteacutem Emmanuel Levinas cita a tradiccedilatildeo

fenomenoloacutegica como caracterizadora da unidade de sincronia que natildeo

considera a alteridade e a eacutetica citando Edmund Husserl Com esse gancho

esclarecedor entatildeo Levinas explica

Chez Husserl la conscience interne du temps et la conscience tout court se deacutecrivent dans la temporaliteacute de la sensation ldquosentir crsquoest lagrave ce que nous tenons pour la conscience originaire du tempsrdquo et ldquola conscience nrsquoest rien sans lrsquoimpressionrdquo Temps impression sensible et conscience se conjuguent () Parler conscience crsquoest parler temps (LEVINAS 1978 pp 56-57)54

54 ldquoEm Husserl a consciecircncia interna do tempo e a consciecircncia em si se descrevem na temporalidade da sensaccedilatildeo ldquoeacute no sentir que podemos ter a consciecircncia originaacuteria do tempordquo e ldquoa consciecircncia natildeo eacute nada sem a impressatildeordquo Tempo impressatildeo sensiacutevel e consciecircncia se conjugam () Falar de consciecircncia eacute falar de tempordquo

133

Emmanuel Levinas considera entatildeo uma temporalidade especiacutefica para

a fenomenologia que considera a consciecircncia de um indiviacuteduo como premissa

para qualquer investigaccedilatildeo eacute essa temporalidade o que resulta em uma

sincronia natildeo atravessada pela alteridade Ao contraacuterio dessa concepccedilatildeo

Levinas descreve o ldquoAnachronisme qui ateste une temporaliteacute diffeacuterente de celle

qui scande la consciencerdquo (Ibid p 141)55 A isso podemos contrapor uma outra

ponte com o Ser e tempo de Martin Heidegger quanto ao aspecto do ente como

ldquodentro do tempordquo Heidegger interfere com o apontamento da historicidade

como um modo-de-ser temporal do Dasein Nessa abordagem o tempo ou o

tempo presente tambeacutem deixa de ser isolado pela experiecircncia sincrocircnica

individual

A determinaccedilatildeo da historicidade eacute anterior ao que se chama de histoacuteria (o acontecer de-histoacuteria-universal) Historicidade significa a constituiccedilatildeo-de-ser do ldquogestar-serdquo do Dasein como tal sobre cujo fundamento eacute unicamente possiacutevel algo assim como a ldquohistoacuteria universalrdquo e o histoacuterico a ela pertencente O Dasein em seu ser factual eacute cada vez como jaacute era e ldquoo querdquo jaacute era Expressamente ou natildeo ele eacute seu passado E natildeo soacute no sentido de que seu passado como que desliza ldquoatraacutesrdquo dele possuindo ele o passado como se fosse uma propriedade subsistente que por vezes volta a ter efeito sobre ele (HEIDEGGER 2012 p 81)

Assim o privileacutegio do presente que citamos anteriormente como foi

apontado por Derrida em referecircncia ainda a Aristoacuteteles perde seu aspecto de

vivecircncia possiacutevel como sendo algo puramente nodo instante algo

complementando pelo que acrescenta Heidegger no excerto acima de Ser e

tempo o passado integra o presente (como o revenant) e natildeo se encerra atraacutes

dele ou antes dele intacto e passiacutevel de retorno somente por

rememoraccedilatildeorecordaccedilatildeo (entendida como espeacutecie de movimento de lembranccedila

feito intencionalmente) Uma suposta divisatildeo temporal entre as fases entatildeo que

separe o passado do presente natildeo eacute possiacutevel considerando o passado como

essa historicidade que reveacutem O presente no entanto ainda eacute o tempo central

55 ldquoAnacronismo que atesta uma temporalidade diferente daquela que mede a consciecircnciardquo

134

da leitura Em Escritura do retorno Mallarmeacute Joyce e o meta-signo Piero Eyben

relaciona o que propotildee ser o resultado da empreitada de Joyce mdash ldquodestruiccedilatildeo

do signordquo mdash com uma ldquoagoridade da letrardquo ldquo() a experiecircncia joyceana da

destruiccedilatildeo do signo deve ser compreendida como um limite da experiecircncia do

agora () a significacircncia eacute sua uacutenica respostardquo (EYBEN 2012 pp 650-651) A

marca do presente natildeo eacute pura nem pode ser destilada em uma fase temporal

solitaacuteria

Nessa des-fundaccedilatildeo de toda origem podemos ver a proacutepria cena da presenccedila enquanto elemento presente que se relaciona com outra coisa que natildeo ele mesmo guardando em si a marca do elemento passado e deixando-se jaacute moldar pela marca de sua relaccedilatildeo com o elemento futuro () Todo rastro eacute sem presente e sem arquia uma vez que se constroacutei como a siacutentese de ldquomarcasrdquo que se estabelecem em um espaccedilamento (devir-tempo do espaccedilo) (Ibid p 651)

No capiacutetulo 9 do livro II livro das crianccedilas temos uma espeacutecie de

encenaccedilatildeo teatral Satildeo situados personagens e ainda o tempo ldquoTime the

pressantrdquo (FW 22117)56 O presente mais parece um verbo no geruacutendio ou uma

forma nominal de um verbo indicando uma accedilatildeo que remete ao presente

movimentado em movimento natildeo inerte e recortado Mesmo na ficccedilatildeo dentro

da ficccedilatildeo eacute o tempo dinacircmico que se faz Nas palavras do tradutor do Wake

Donaldo Schuumller ldquoO fixo dissolve-se no que flui Cultura do presente Qual se

tudo se embala em vir-a-serrdquo (2003 p 96) Aqui o presente natildeo se faz em

eternidade pura e ciacuteclica mas no porvir que se instala a expectativa do que pode

vir eacute diferente da futuridade do futuro certo previsto mdash e portanto calcado no

tempo presente que o planeja O porvir ao contraacuterio faz do presente uma pura

expectacircncia naquilo que se tece como limiar de ausente e presente por ser a

expectativa do que natildeo se pode de fato esperar Se o futuro no escapa pelos

dedos e o passado resta o presente soacute pode ser uma contaminaccedilatildeo geral dessa

fludez de ricorso torrencial

56 ldquoTempo o pressanterdquo (traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller 2003)

135

Finnegans wake muito mais questiona do que afirma seu proacuteprio tempo

em vias expliacutecitas Mesmo no fim do livro quando se encaminharia para um

fechamento e portanto para o teacutermino a sutura a closure Anna Livia nos

encaminha para o desembocar do rio mdash no mar no retorno ao seu curso no

ricorso na fluidez que eacute seu destino em repeticcedilatildeo mas repeticcedilatildeo em sempre

inovaccedilatildeo mdash que natildeo se situa com precisatildeo temporal O livro IV se abre com

ldquoSandhyas Sandyas Sandhyasrdquo (FW 5931) Segundo Donaldo Schuumller haacute aiacute

referecircncia a Sanctus Sanctus Sanctus (que aparece tambeacutem em ldquoXanthos

Xanthos Xanthosrdquo mdash FW 2359) e a sandhi palavra do sacircnscrito que significa

paz ou crepuacutesculo Muito mais pode ser dito sobre essa abertura aleacutem da

saudaccedilatildeo latina religiosa o que vem do sacircnscrito pesa sua presenccedila em um

significado riquiacutessimo

O termo do sacircnscrito sandhyā como pode ser transliterado de सनधया

pode significar uniatildeo ao mesmo tempo em que eacute diferenciaccedilatildeo divisatildeo eacute o

crepuacutesculo ou o nascer do sol ao mesmo tempo em que eacute a escuridatildeo da

madrugada ou da manhatilde eacute transiccedilatildeo uniatildeo e impossibilidade de uniatildeo de dois

opostos claro e escuro dia e noite comeccedilo e fim Eacute justamente a articulaccedilatildeo

entre aquele instante do meio que natildeo se pode chamar somente de iniacutecio nem

somente de fim eacute ambos ao mesmo tempo Eacute o momento de reiniacutecio e portanto

de redenccedilatildeo e renovaccedilatildeo assim como de fim de enterrar de sumir de natildeo ver

Tem-se um dia todo pela frente concomitantemente poreacutem natildeo se tem mais

um dia que acaba de findar A palavra eacute absolutamente adequada indica tanto

iniacutecio quanto fim e ainda significa intervalo entremeio fase que antecede uma

e sucede outra As relaccedilotildees possiacuteveis satildeo muitas Lidar com a morte por

exemplo eacute lidar com algo que se inicia povoado por uma ausecircncia Luto se faz

em elipse Natildeo se supera um passado mas se convive com ele ateacute que ele

povoe o presente de maneira cada vez mais transluacutecida e menos materialmente

formada e visiacutevel como o presente pode nos parecer na imediaticidade

fenomecircnica do instante

136

Direcionando-se ao fim no mesmo livro dotado de um soacute capiacutetulo Anna

Livia diz ldquoLike almost now Howrdquo (FW 62629-30)57 Em inglecircs pode-se

compreender ldquolike almost nowrdquo como o mesmo que ldquocomo quase agorardquo de

maneira que eseja sendo indicado ou referenciado um ldquoagorardquo natildeo pontual ou

natildeo pontuado talvez fluido por ser indefiniacutevel o agora o eacute quase agrave medida que

o presente escapa Logo ela anuncia mais contundentemente a substituiccedilatildeo de

geraccedilotildees com a passagem do tempo

And can it be itrsquos nnow fforvell Illas I wisht I had better glances to peer to you through this baylightrsquos growing But yoursquore changing alcoosha yoursquore changing from me I can feel Or is it me is Irsquom getting mixed Brightening up and tightening down Yes yoursquore changing sonhusband and yoursquore turning I can feel you for a daughterwife from the hills again (FW 62633-36 6271-3)58

Anna Livia daacute lugar agrave filha Isobel na ordem natural familoar e aos filhos

Shem e Shaun assim como seu marido seraacute substituiacutedo O espaccedilo das

memoacuterias (ldquoAnd let her rain now if she likes Gently or strongly as she likes

Anyway let her rain now if she likes I done my best when I was letrdquo --- FW 62711-

1359) Isobel Isabel Issy que eacute tambeacutem Nuvoletta a nuvem que chove e

preenche o rio mas eacute formada a partir dele Anna Livia abre espaccedilo ao

protagonismo da filha que a sucede no fluir e o ricorso eacute fechado no ciclo natural

que metaforiza o das relaccedilotildees familiares

O fluir-ricorso eacute mais que o fechamento do ciclo que realiza o movimento

circular e repete o mesmo percurso em cadeia eacute primordialmente a

impossibilidade de diferir o fechamento da (re)abertura em momento-iacutenterim

entre a morte e a vida que unem em Finnegans wake o anacronismo daquilo que

natildeo se unitariza em tempo vivido por uma consciecircncia agrave diferenciaccedilatildeo que se

faz com o ciclo que se modifica com as geraccedilotildees com as reverberaccedilotildees do que

57 ldquoQuase como agora Comordquo na traduccedilatildeo de Schuumller (2003) 58 ldquoSeraacute que eacute agora nnossrsquouacuteltimo adeus Illaacutes Oxalaacute eu tivesse melhores vistas para te contemplar agrave luz alvorecente da Bahia Mas tu jaacute natildeo bates meupulso tu te abates de mim bem o sinto Ou isto eacute eu eacute Estou confusa Illo minando-me estou me dilu indo Sim estaacutes mudando filhemarido posso sentir-te para uma filhesposa dos montes outravezrdquo (idem) 59 ldquoChovela agora se eacute isso que adora Chovisco ou trombada como lhe agrada Chova no entanto visto que vinda eacute minhrsquohora Dei meu recado enquanto me foi dadordquo (idem)

137

se vatildeo ainda ecoando no futuro com as singularidades O desmantelamento

desse presente puro o transforma em algo contaminado de porvir ainda

permeado do rastro do passado e acima de tudo indefiniacutevel como tempo palpaacutevel

a natildeo ser se emoldurado em conjunturas ficcionalizantes

A continuidade eacute assegurada por meio da evocaccedilatildeo de Anna Livia dos

que a seguiratildeo apelo e chamamento que fazem a anunciaccedilatildeo da chuva de

NuvolettaIsobel A matildee de certa maneira dando a sua permissatildeo mas sendo

antes forccedilada pelas circunstacircncias do tempo que natildeo para daacute lugar sem

desaparecer por completo A temporalidade essencial de todo o Wake eacute a da

substituiccedilatildeo que natildeo substitui pois manteacutem o que perpetua mas tambeacutem

aniquila da mesma maneira como o crepuacutesculo pode ser confundido com o

nascer do Sol

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

139

Foi reafirmado o quanto defendemos o afastamento da compreensatildeo una

de literatura seja com Finnegans wake seja com qualquer outra obra escritural

Isso pode ser natildeo uma saiacuteda sagaz que se esquivaria de questionamentos

importantes sobre a estrutura e os desdobramentos semacircnticos do texto

intrincado de Joyce mas sim uma abertura ao perigoso desfrutar dos problemas

Em vez de uma estrateacutegia uma compreensatildeo de que eacute da incompreensatildeo que

podem surgir boas leituras inclusive acadecircmicas Para partir da incompreensatildeo

aiacute sim nada mais adequado desafiador e divertido do que o Finnegans wake

Em vez de resolver os problemas responder os questionamentos e fechar o livro

com a certeza veemente de que se compreendeu e jaacute se pode dizer ldquotermineirdquo

abre-se o livro novamente E novamente E incessantemente

140

Isso natildeo eacute necessariamente preocupante restaria talvez saber se o

problema eacute conosco com o texto ou se consiste na impossiacutevel acomodaccedilatildeo a

uma teoria literaacuteria que demanda explicaccedilotildees que natildeo podemos dar Ou ateacute

possamos talvez mas necessariamente optando por um caminho que reduz a

uma interpretaccedilatildeo mdash um trabalho hermenecircutico que busca o dogma ao inveacutes de

lidar por que natildeo com mais de uma possibilidade simultacircnea Foi instaurada a

heranccedila de lidar com a literatura como lidamos com as escrituras sagradas que

podem oferecer uma poeacutetica que abre para a fruiccedilatildeo mas acima de tudo pautam

ensinamentos que devem ser objetivos pelo bem do funcionamento de um

sistema externo ao texto Literatura poreacutem natildeo eacute o que diremos dela Como os

guias para o Finnegans wake dizem em geral desculpando-se

antecipadamente isto mdash esta dissertaccedilatildeo esta pesquisa mdash natildeo pretende

abarcar uma leitura totalizadora Talvez jaacute fosse a hora de isso natildeo precisar ser

dito apenas para o Wake mas sobre qualquer livro de literatura Eacute claro que haacute

uma dificuldade em abrirmos matildeo do status de ldquoautoridade emrdquo mas a literatura

precisa dessa distacircncia O cuidado cientiacutefico dela eacute esse

Considerando contudo as demandas de ensino baacutesico de literatura nas

escolas por exemplo ou mesmo as demandas acadecircmicas que exigem

porventura uma produtividade que se possa comprovar como acomodar o

Finnegans wake ao que a teoria ou a leitura hermenecircutica teorizada demandam

Aliaacutes como mdash e por que mdash acomodar qualquer obra literaacuteria a uma

sistematizaccedilatildeo que esquematiza seus elementos de maneira engessada O

ponto sequer eacute uma recusa natildeo mais tatildeo inovadora ou a reforma do sistema de

qualquer teoria de qualquer aporte mas o entendimento claro de como isso

afeta uma leitura e da hierarquia entre essas instacircncias se determina o que um

livro pode ter para funcionar e o que seu gecircnero permite que se pressuponha a

seu respeito Nesse sentido o questionamento do tempo tatildeo filosoacutefico e

abstrato tornar-se-ia praacutetico quando pensaacutessemos no impacto das concepccedilotildees

de histoacuteria da literatura cacircnone sistema O tempo feito em uma diacronia das

obras-primas o tempo sobre o qual repousam as obras que importam e o tempo

do ostracismo das relegadas agrave margem Esse tempo nos importa somente para

ser questionado

141

O manual tradicional e didaacutetico Teoria literaacuteria de Hecircnio Tavares traz o

excerto ldquoO objeto da ciecircncia da literaturardquo de Fundamentos da interpretaccedilatildeo e

da anaacutelise literaacuteria (1948) de Wolfgang Kayser que por sua vez cita a

separaccedilatildeo severa entre poesia e literatura feita pelo italiano Benedetto Croce

A poesia estaria fora da literatura Natildeo seria no entanto facilmente classificada

pelos criteacuterios formais de versos e estrofes mas sim um termo valorativo

qualitativo Dessa maneira ateacute mesmo Os Lusiacuteadas ficariam de fora de Poesia

(Dichtung) nessa classificaccedilatildeo e ldquodela separado por um abismordquo (KAYSER in

TAVARES 2002 p 42) Citamos essa curiosa e incisiva classificaccedilatildeo em

tentativa de delimitar o que eacute digno de ser apreciado como Poesia e o que natildeo

eacute para apontar a ironia se essa classificaccedilatildeo aparentemente excessivamente

limitante natildeo pressupotildee que Poesia seja tatildeo somente forma oposta agrave prosa

talvez Finnegans wake entrasse para o rol da Poesia e de fora da literatura

tivesse sua qualidade canonicamente reconhecida

No texto ldquoChe cosrsquoegrave la poesiardquo Jacques Derrida toma outros rumos na

problematizaccedilatildeo do que eacute literatura e do que eacute poesia A figura do ouriccedilo surge

para apontar uma experiecircncia que jamais eacute inofensiva de maneira que uma

relaccedilatildeo com o texto literaacuterio eacute uma relaccedilatildeo da qual nunca se pode sair incoacutelume

Natildeo se lecirc sem apelo e aqui evocamos novamente a carta mamafesta de Anna

Livia como momento condensador desse apelo ou sua posterior anaacutelise no

capiacutetulo 6 em que o meacutetodo de perguntas e respostas lanccedila o questionamento

e a demanda inevitavelmente tambeacutem ao leitor ou mesmo o de Shaun iniciando

o capiacutetulo 13 dizendo ldquoHark () Horkrdquo (FW 40313)60 Em Escritura do retorno

assinala-se que

Derrida inicia sua problemaacutetica () com a renuacutencia com certo desligamento do saber Saber em termos de poemaacutetica eacute saber renunciar o que se sabe Nesse sentido a poesia exige outra forma de conhecer que talvez seria aquela do ditado que se pode ldquover como ditadordquo A poesia natildeo eacute uma aparecircncia mdash ou ainda natildeo eacute uma ldquoparecenccedilardquo sua accedilatildeo eacute daquilo que se vecirc fora do parecido mas dentro de uma representabilidade que eacute sua proacutepria reflexatildeo (EYBEN 2012 p 259)

60 ldquoEscuta () Escuchardquo (2003)

142

Como dissemos uma necessidade de autenticaccedilatildeo do texto por um

sistema literaacuterio que forja sua histoacuteria e seu cacircnone natildeo nos preocupa (o apego

ao sistema que sobrevive e mutila experiecircncias literaacuterias talvez sim) Tambeacutem

citado por Hecircnio Tavares diz Afracircnio Peixoto ldquoO gecircnero das obras-primas em

geral eacute pessoal e privativo delasrdquo (PEIXOTO in TAVARES 2002 p 158)

exemplificando sua afirmaccedilatildeo citando Rabelais Quixote Montesquieu Mesmo

que fosse relativamente possiacutevel de se definirem as classificaccedilotildees ainda assim

permanecem dispensaacuteveis no lanccedilar-se ao texto e lanccedilando-nos deparamo-nos

com o segredo indiziacutevel proacuteprio do escritural

Se indiziacutevel evidentemente tambeacutem inclassificaacutevel sem que isso seja um

defeito e distante de ser uma abertura a qualquer coisa a uma leitura tatildeo frouxa

que fosse vazia ou esvaziada por uma relativizaccedilatildeo desmedida Finnegans wake

eacute aberto e amplo mas cheio e povoado de caminhos sem que tenha reacutedeas

apertadas demais para direcionar uma soacute leitura ou uma rota preferencial como

todo texto escritural tem entradas diversas e a literatura natildeo se faz em

hierarquias atraveacutes das quais nos prestamos a buscar a verdade do texto que

estaraacute no fim do caminho percorrido Se houvesse uma linha reta a ser seguida

ou mesmo um labirinto desse tipo natildeo haveria segredo no texto mdash ou haveria

um segredo que se perderia sendo revelado e nesse caso deixaria de existir o

que desmoronaria o entendimento de segredo do texto literaacuterio como aquilo que

se manteacutem secreto mesmo apoacutes repetidas leituras e mergulhos no texto por

mais profundos que possam ser Em Gecircneses genealogias gecircneros e o gecircnio

em que fala de Heacutelegravene Cixous Jacques Derrida assevera sobre o segredo da

literatura

Laacute se encontra como segredo da literatura o poder infinito de manter indecidiacutevel e portanto irrevelaacutevel o segredo do que ela diz ela a literatura ou ela Cixous () O segredo da literatura eacute pois o proacuteprio segredo Eacute o lugar secreto onde ela se institui como a possibilidade mesma do segredo o lugar de sua gecircnese ou de sua genealogia proacutepria Isto eacute verdade em todos os gecircneros literaacuterios (DERRIDA 2005 p 22)

143

Tambeacutem pertinente eacute o que nesse mesmo lugar Derrida diz a respeito

ainda de Cixous e de uma escrita que desperta do oniacuterico ldquopalavra escrita ao

despertar endereccedilada e destinada ao despertar Como se o despertar ao sair

do sonho em seu wake estivesse ainda na vigiacutelia do sonhordquo (Ibid p 45) e ldquoo

proacuteprio sonho eacute o que interrompe o sono O sonho desperta O sonho vela e ele

vela a endereccedilar injunccedilotildees inflexiacuteveis agrave vigiacuteliardquo (Ibid p 43) Ainda que essas

palavras de Derrida natildeo sejam expliacutecita e diretamente sobre o Wake nelas o

sonho natildeo eacute anestesia e no Wake tambeacutem natildeo ocorre ateacute o oposto o sonho se

mescla ao despertar e agrave ressureiccedilatildeo O sonho para Derrida e para Joyce em

nada inerte e tambeacutem nada linear como a vida real eacute o terreno das maiores e

multiplicadas possibilidades bem como da atividade de certa maneira caoacutetica e

do tempo do anacronismo do entrecruzamento de alteridades e dos ecos

polifocircnicos

Encaminhamos este fim mdash que certamente nos faz retornar retornar ao

texto ao Wake a Joyce agrave literatura mdash lembrando que a temporalidade da leitura

eacute a materialidade do tempo da literatura eacute o tempo efetivamente vivido na

ressureiccedilatildeo do texto mas eacute tambeacutem temporalidade significativamente esquiva

a tentativas de definiccedilatildeo O presente da (de uma e de qualquer) leitura eacute

constantemente desestabilizado (e em Wake isso se faz sem misericoacuterdia) e

nunca se tem uma base fixa na qual se agarrar a natildeo ser o proacuteprio abismo

escritural

Em termos joyceanos natildeo temos um rio de significado mas sim o rio como rasura da chuva que eacute em si uma forma de conduccedilatildeo dos significantes como respostas mdash reacuteplicas mdash ainda textuais O sujeito que lecirc tambeacutem eacute perdido rasurado pois sua referecircncia deve ater-se apenas agrave escritura uacutenica satisfaccedilatildeo exigida O sujeito cavado na aparecircncia eacute soterrado pelo barranco chuvoso dos sintagmas deslocados (EYBEN 2012 pp 258-259)

Em termos de temporalidade textual buscamos entender relaccedilotildees

diversas aleacutem da temporalidade da leitura ou da literatura lidavivida entraram

aqui o tempo do ausente do morto que se faz espectro (aleacutem do que acontece

com HCE o proacuteprio morto ressuscitado como Tim Finnegan o eacute na balada

irlandesa a que Joyce se remete) presenccedila e ausecircncia como dispositivos de

144

uma temporalidade do anacronismo presenccedilas que se fazem tambeacutem no

chamamento no apelo e na demanda A estrutura paradigmaacutetica viquiana

oferece subsiacutedios jaacute trabalhados mas o Wake com seu caraacuteter oniacuterico acoberta

uma seacuterie de cruzamentos e noacutes que se vistos mais de perto enriquecem a

leitura Pode ser que anaacutelises de textos de escritura de literatura em vez do

senso comum de que sejam elucidativas e iluminadoras sejam natildeo somente

dispensaacuteveis mas tambeacutem excessivas produzindo mesmo interferecircncias

tornando a jaacute difiacutecil leitura por si soacute ainda mais barroca e excessivamente pesada

de detalhes a serem enxergados Caminhos mais interessantes por

conseguinte seriam os da teorizaccedilatildeo que interesse por si soacute que possam

acompanhar a leitura do Wake sem causar ruiacutedos nela tampouco pretendendo

clarificaacute-la em objetivaccedilatildeo pretensiosa

Finnegans wake se estabelece no entremeio da verdadeira oposiccedilatildeo entre

circularidade e linearidade em que o ciacuterculo pode ser pensado se percorrido nos

moldes da demeure nomade derridiana e natildeo em ciclos de revisitaccedilatildeo Se

tomarmos o Wake a partir do tempo mensurado que se insere no caraacuteter circular

do sentido homogecircneo e infinito teremos de pensaacute-lo sublinhe-se em seu

caraacuteter precisamente literaacuterio de forma distinta de pensarmos essa mesma obra

a partir do tempo de simultaneidade que considere a estrutura circular sem

redundacircncia sem repeticcedilatildeo e sem divisotildees de linearidade

145

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Page 6: O FLUIR-RICORSO E OS TEMPOS DE FINNEGANS WAKE...O fluir-ricorso e os tempos de Finnegans wake. Dissertação de Mestrado. Orientador Piero Luis Zanetti Eyben. Brasília: Universidade

ao rafael machado que se desdobra em mil e eu tanto admiro por seu apoio incomensuraacutevel e pelo conviacutevio agrave sarah jeanne cujo companheirismo fez toda a diferenccedila e por quem nutro o maior carinho possiacutevel e tambeacutem ao victor fialho e agrave sayuri hirako queridos que coloriram esse tempo junto conosco agraves feministas-realmente-amigas-queer-poacutes-modernxs-pan-normativxs grupo no qual a mariana ferreira me incluiu e cujo nome jaacute define a genialidade amanda quadrado ana paula jacob liacuteria nogueira lorena figueiredo luciana torres marcella fernandes thauana tavares cada uma de vocecircs tem um espaccedilo de carinho e amor dentro de mim ao joyce e agrave sua filha que o inspirou lucia mas tambeacutem ao proust ao dante agrave emily dickinson ao truffaut e agrave sofia coppola agrave fiona apple agrave brody dalle e ao rufus wainwright ao georges bizet e ao giacomo puccini agraves cidades brasiacutelia com sua vastidatildeo e belo horizonte com seu acolhimento agrave muacutesica a arte que tanto quanto literatura e filosofia me manteacutem viva e manteacutem em mim o interesse por me manter viva ao prof piero eyben mais do que orientador desta dissertaccedilatildeo modificou para sempre minha relaccedilatildeo com a graduaccedilatildeo em Letras e com a academia e cujas aulas nunca mais quis parar de frequentar desde 2011 pelos tantos ensinamentos pelo acolhimento e pela capacidade de redefinir esse meu percurso obrigada minha gratidatildeo natildeo tem limites e este trabalho natildeo existiria sem tudo isso agrave Capes pelo apoio financeiro agrave Universidade de Brasiacutelia pela importacircncia que ganha mais espaccedilo em mim desde 2009 a todos que passaram pela minha vida deixando alguma marca e que natildeo nomeei aqui certamente me tornei outra depois de vocecircs digo seus nomes em silecircncio obrigada

First we feel Then we fall

(FW 62711)

Now follow we out by Starloe

(FW 38230)

Resumo

FREITAS Luiacutesa O fluir-ricorso e os tempos de Finnegans wake Dissertaccedilatildeo de Mestrado

Orientador Piero Luis Zanetti Eyben Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 2014 151 p

Esta dissertaccedilatildeo percorre investigaccedilotildees acerca do tempo tanto como instacircncia narrativa tanto

como conceito de teorias filosoacuteficas a partir da obra uacuteltima do escritor irlandecircs James Joyce

(1882-1941) Finnegans wake (1939) O aporte teoacuterico perpassa a fenomenologia e em especial

a filosofia de Jacques Derrida (1930-2004) O ricorso termo que proveacutem da obra do filoacutesofo

Giambattista Vico (1668-1744) eacute aqui relido como fluir-ricorso em uma ampliaccedilatildeo das

investigaccedilotildees sobre o tempo no Finnegans wake para aleacutem da Scienza nuova (1725) seu

paradigma central O tempo como tambeacutem formador de memoacuteria diacronia coletiva

compartilhada traz agrave tona o questionamento da inserccedilatildeo ou exclusatildeo de certos textos no cacircnone

da histoacuteria da literatura e como esse sistema pocircde lidar com as peculiaridades do texto de

Finnegans wake desde a recepccedilatildeo de seus contemporacircneos modernistas Sobre o tempo do

proacuteprio texto suas relaccedilotildees com muacutesica e outras artes outro importante filoacutesofo para o trabalho

eacute Emmanuel Levinas (1906-1995) Lidando com sincronia diacronia e anacronismo traccedilamos

as possibilidades de entender o tempo do texto do Wake com o apoio desses termos como

abordados pelo filoacutesofo Ainda nesse acircmbito eacute tambeacutem discutido em parte deste trabalho o

tempo da traduccedilatildeo mdash ou seus tempos mdash e apontadas as traduccedilotildees brasileiras para o texto de

James Joyce A leitura das traduccedilotildees eacute feita sempre no esteio das discussotildees do tempo bem

como o questionamento sobre o cacircnone literaacuterio e a histoacuteria da literatura que partem igualmente

dessas noccedilotildees passando tambeacutem por Agostinho Martin Heidegger e Paul Ricoeur

Palavras-chave James Joyce Finnegans wake Tempo Jacques Derrida Fenomenologia

Abstract

FREITAS Luiacutesa The flowing-ricorso and the times of Finnegans wake Masterrsquos dissertation

Supervised by Piero Luis Zanetti Eyben Brasiacutelia University of Brasiacutelia 2014 151 p

This dissertation investigates different notions of time considered as a narrative concept as well

as a philosophical concept and center of philosophical theories from the last work by the Irish

author James Joyce (1882-1941) Finnegans wake (1939) The theoretical framework goes

through phenomenology and especially the philosophy of Jacques Derrida (1930-2004) The

ricorso term we take from the works of the Italian philosopher Giambattista Vico (1668-1744) is

reinterpreted here as a flowing-ricorso invoking the movement of a river broadening the

investigations on time concerning Finnegans wake beyond what we can see with Scienza nuova

(1725) its central paradigm The notion of time also as a memory a shared collective diachronic

vision elicits the questioning of the insertion or exclusion of some texts among the canonical ones

in the history of literature and how this system can deal with the peculiarities of Finnegans wake

ever since its first reception by the contemporary modernists About the time within the text itself

its relations with music and other forms of art another important philosopher here is Emmanuel

Levinas (1906-1995) Dealing with synchronic diachronic and anachronism we find the

possibilities of understanding the time of the text in the case of Finnegans Wake with the support

of Levinasrsquo approach of these terms Still concerning those themes the time of a translation is

also brought to this analysis mdash or its sundry times mdash and the different Brazilian translations for

James Joycersquos text are indicated The approach of this analysis of translations is based on the

investigation of the concept of time and the questions concerning the literary canon and the history

of literature all of these being connected notions also reading the works of Agostinho Martin

Heidegger and Paul Ricoeur

Keywords James Joyce Finnegans wake Time Jacques Derrida Phenomenology

Sumaacuterio

INTRODUCcedilAtildeO ndash Wake e environs11

CAPIacuteTULO I ndash Wake em pauta30

1 Algo parecido com nada 31

2 Sui generis38

3 Fluidez vida-morte46

4 Paralelos psicanaacutelise teoria da relatividade muacutesica51

CAPIacuteTULO II ndash Finnegans wake e o tempo da traduccedilatildeo64

CAPIacuteTULO III ndash Leitura luto elipse82

CAPIacuteTULO IV ndash Fluir e retorno108

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS138

BIBLIOGRAFIA145

INTRODUCcedilAtildeO WAKE E ENVIRONS

Hightime is ups be it down into outs according

Premente eacute o tempo que seja feito do teu jeito1

(FW 23916)

1 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2002) O mesmo valeraacute para as proacuteximas citaccedilotildees de Finnegans wake em portuguecircs exceto quando indicado de resto citaccedilotildees diversas desacompanhadas da indicaccedilatildeo de autoria satildeo traduccedilotildees livres feitas por mim

12

Decidir ler Finnegans wake eacute decidir por lanccedilar-se ao texto

Ainda que sua escrita tenha sido iniciada pouco tempo apoacutes a publicaccedilatildeo

de Ulysses (1922) que jaacute despertara uma recepccedilatildeo que ia de manifestaccedilotildees de

repuacutedio a grandes elogios passando por problemas com censura e acusaccedilotildees

de obscenidade Finnegans wake (1939) foi publicado mais de dezesseis anos

depois de o dublinense James Augustine Aloysius Joyce (1882-1941) comeccedilaacute-

lo e por volta de dois anos antes de seu falecimento em Zurique no dia 13 de

janeiro de 1941 Nesse iacutenterim acabou por ficar ofuscada a publicaccedilatildeo de

Pomes Penyeach (1927) livro que tambeacutem foi escrito em um longo intervalo de

tempo de 1904 a 1924 apesar de mdash bem ao contraacuterio das duas obras entre as

quais estaacute intercalado mdash consistir em treze curtos poemas

13

O contexto em que Finnegans wake foi produzido eacute permeado por

algumas peculiaridades aleacutem do longo tempo de escrita e reescrita a publicaccedilatildeo

de fragmentos do que ateacute entatildeo se chamava Work in progress possibilitou que

Joyce jaacute tivesse enquanto ainda escrevia concreta noccedilatildeo do impacto que sua

produccedilatildeo final poderia causar mdash fosse entre quem a lesse fosse entre quem

natildeo leu mas ouviu falar fosse entre quem comeccedilou a ler e desistiu ateacute os que

leram mas tiveram a sensaccedilatildeo de natildeo terem lido (talvez a mais comum no

primeiro contato com o Wake)

Soma-se a isso o problema de visatildeo de Joyce decorrente de um quadro

de glaucoma que se agravava cada vez mais obrigando-o a passar por mais de

dez cirurgias e a buscar consultas com meacutedicos de diferentes lugares em busca

de alguma melhora Chegou ao ponto de natildeo conseguir mais ler nada impresso

passando a ter de escrever em uma caligrafia enorme para conseguir enxergar

melhor usar um tapa-olho que ficou famoso em algumas de suas fotografias e

ditar alguns trechos de fragmentos do Finnegans wake O entatildeo jovem escritor

Samuel Beckett chegou a fazer esse trabalho algumas vezes ouvindo a citaccedilatildeo

de Joyce com apreccedilo pela tarefa especial que executava Aleacutem de ser uma das

figuras mais proacuteximas do jaacute ceacutelebre conterracircneo de quem recebeu alguns

elogios especiais e chegou a ser tratado com rara intimidade foi um de seus

mais sinceros admiradores e mais ativos defensores Os dois ficaram afastados

por um periacuteodo de cerca de um ano apoacutes um mal entendido que envolvia a filha

de Joyce Lucia Anna Joyce que parecia ter se apaixonado pelo jovem irlandecircs

que visitava seu pai mas a relaccedilatildeo dos dois escritores acabou por sobreviver ao

ocorrido

Joyce teve em vida numerosos admiradores que como Beckett

apoiaram ativamente sua produccedilatildeo Entre os nomes mais importantes daqueles

que estiverem em alguma medida presentes na fase final de sua vida estaacute o de

sua mecenas a inglesa Harriet Shaw Weaver (1876-1961) que se tornaria

editora da revista The Egoist (anteriormente chamada de The Freewoman e The

New Freewoman) Weaver estudou na London School of Economics e participou

ativamente do maior movimento pelos direitos das mulheres no Reino Unido

Womenrsquos social and political union que reivindicou o sufraacutegio universal direito

14

concedido somente em 1928 (deacutecadas depois da fundaccedilatildeo do grupo em 1903

e mais de um seacuteculo depois das primeiras reivindicaccedilotildees na Inglaterra desde o

iniacutecio endossadas publicamente por alguns homens ceacutelebres) A revista The

Egoist contava com Ezra Pound na seccedilatildeo literaacuteria e nela foram publicados

Pheacutenomenologie de la perceptiontrechos de Ulysses Pound por um tempo

teceu diversos elogios aos trabalhos de Joyce e tambeacutem o apoiou antes que

comeccedilasse a mudar suas opiniotildees a respeito das empreitadas literaacuterias do

irlandecircs exilado especificamente na fase final de suas obras em especial diante

de Finnegans wake que lhe pareceu um material por demais indigesto

Outro importante nome eacute o de Sylvia Beach (1887-1962) proprietaacuteria da

Shakespeare and Company mdash fundada em 1919 e apelidada por Joyce de

Stratford-on-Odeacuteon em referecircncia a Stratford-upon-Avon cidade natal de

Shakespeare e agrave rue de l`Odeacuteon onde ficava a livraria mdash que publicou a

primeira ediccedilatildeo de Ulysses em 1922 e Pomes Penyeach em 1927 aleacutem da

coletacircnea de ensaios sobre o Wake que ainda estava em construccedilatildeo em 1929

Our exagmination round his factification for incamination of Work in progress

Beach apoiou e acompanhou boa parte da carreira de Joyce ainda que algumas

das empreitadas tenham lhe acarretado problemas ldquoI understood from the first

that working with or for Mr Joyce the pleasure was mine mdash an infinite pleasure

the profits were for himrdquo2 (FLANNER 1972 apud HALFORD 2010) Os anos

1930 marcaram dificuldades econocircmicas apesar da ajuda de amigos e

simpatizantes da livraria que formaram um grupo para ajudar a reerguecirc-la o Les

amis de Shakespeare and company Em 1941 poreacutem com a invasatildeo da Franccedila

pelo Terceiro Reich agravando a Segunda Guerra Mundial os problemas se

somaram e levaram-na agrave falecircncia Apesar de a relaccedilatildeo entre Joyce e Beach ter

se tornado ceacutelebre e a livraria ter sido centro de muitos encontros conta-se que

ironicamente o fechamento da livraria aconteceu pouco depois de Sylvia Beach

se recusar a vender a uacuteltima coacutepia de Finnegans wake a um oficial do

totalitarismo nazista

2 ldquoCompreendi desde o iniacutecio que trabalhar com ou para o Sr Joyce o prazer era todo meu ndash um infinito prazer os lucros eram delerdquo

15

In late 1941 Shakespeare and company was forced to close shortly after Beach refused to sell her last personal copy of Finnegans wake to a Nazi officer It was symbolically ldquoliberatedrdquo in 1944 by Ernest Hemingway but in fact the bookstore never reopened though in the 1950s Beach gave an American named Whitman permission to open a bookstore under that name (FARGNOLI 2006 p 352)3

Foram figuras importantes na fase final vida de Joyce o casal Eugene

Jolas (1894-1952) e Maria McDonald (1893-1987) americanos residentes em

Paris que editavam a revista literaacuteria experimental Transition fundada por eles

em 1927 em que foram publicados excertos de Finnegans wake ainda sob seu

tiacutetulo provisoacuterio anterior Work in progress aleacutem de artigos sobre a obra de

James Joyce Conheceram-se por Sylvia Beach A revista de ares inovadores e

artisticamente progressistas se estabeleceu como referecircncia na capital francesa

especialmente entre os angloacutefonos desterrados A seguinte descriccedilatildeo de Eugene

Jolas encontra-se na premiada biografia James Joyce (1959 1989)4 escrita pelo

norte-americano Richard Ellmann

Homem sensiacutevel procurava uma teoria da arte que tambeacutem fosse uma filosofia de vid pensava tecirc-la encontrado numa ldquoreligiatildeo da palavrardquo cujo ritual ele saturava com termos como ldquofantaacutesticordquo ldquomacircnticordquo e seu neologismo ldquoparamitordquo Soacute na arte se podia confiar e confiar apenas se se abjurasse do externo em nome da imaginaccedilatildeo (p 725)

Eugene Jolas foi um daqueles que mais apoiaram e defenderam a obra

de James Joyce em sua eacutepoca tendo visto em Finnegans wake uma obra que

seria forte e consistente acircncora para o manifesto que publicou em 1929 na

proacutepria revista Transition denominado ldquoRevolution of the wordrdquo no qual discorria

sobre novas formas de linguagem literaacuteria Durante a deacutecada de 1960 jaacute viuacuteva

Maria se tornaria ceacutelebre ainda como presidenta do Comitecirc Americano de Paris

3 ldquoNo fim de 1941 Shakespeare and company foi obrigatoriamente fechada pouco tempo depois de Beach ter se recusado a vender sua uacuteltima coacutepia pessoa de Finnegans wake a um oficial nazista Foi simbolicamente ldquoliberadardquo em 1944 por Ernest Hemingway mas a livraria nunca foi reaberta de fato apesar de nos anos 1950 Beach ter permitido que um americano chamado Whitman abrisse uma livraria usando o mesmo nomerdquo 4 Em 1982 Richard Ellmann recebeu o James Tait Black Memorial Prize na categoria biografia um dos mais tradicionais precircmios literaacuterios britacircnicos

16

contra a Guerra do Vietnatilde que foi censurado pelo governo francecircs poucos anos

depois de sua fundaccedilatildeo em 1968

Adrienne Monnier (1892-1955) foi mais uma das maiores apoiadoras de

James Joyce em Paris Abriu a livraria La maison des amis des livres em 1915

que ficava proacutexima de um dos endereccedilos da Shakespeare and company (o da

rue de lrsquoOdeacuteon que originou o jaacute citado apelido de Joyce de ldquoStratford-on-

Odeacuteonrdquo) Adrienne Monnier difundiu na Franccedila a obra literaacuteria do escritor norte-

americano Ernest Hemingway em traduccedilotildees para liacutengua francesa e publicou por

um tempo o perioacutedico literaacuterio Le navire drsquoargent que contava com Jean Preacutevost

em sua equipe editorial Uma das primeiras mulheres a ser dona de uma livraria

especialmente fundada por ela mesma isto eacute sem que tivesse sido herdada de

famiacutelia ou de um falecido marido Monnier foi referecircncia para Sylvia Beach que

abriu seu negoacutecio quatro anos depois construindo-se entre elas uma vasta

parceria

Ford Madox Ford (1873-1939) literato inglecircs proacuteximo de Ezra Pound que

tambeacutem residiu em Paris e que inspirou um capiacutetulo do autobiograacutefico A

moveable feast de Ernest Hemingway foi outra fonte de apoio com que Joyce

contou Ford editava a revista literaacuteria The transatlantic review em Paris e a

publicava em Londres pela editora independente Gerald Duckworth Overlook

(hoje tatildeo somente Duckworth Overlook cujo slogan eacute ldquoindependente desde

1898rdquo) Inicialmente os financiadores da Transatlantic exigiram que nada escrito

por Joyce fosse publicado na revista mas acabaram abrindo matildeo da proibiccedilatildeo

quando Ford ameaccedilou recusar o cargo de editor Com doze ediccedilotildees mensais

durante o ano de 1924 foi a primeira publicaccedilatildeo a conter excertos do entatildeo Work

in progress mdash tiacutetulo virtualmente sugerido por Ford em seu suplemento literaacuterio

depois adotado por Joyce mdash que soacute mais tarde apareceriam tambeacutem na

Transition do casal Jolas Ford que tambeacutem publicou Hemingway e Tristan

Tzara chegou a temer que sua revista fosse prejudicada se houvesse alguma

acusaccedilatildeo de obscenidade do que Joyce escreveu Por outro lado a princiacutepio o

proacuteprio Joyce se recusou publicar assim trechos de sua obra em andamento por

acreditar que natildeo seria bom tecirc-la fragmentada (apesar de Ulysses ter sido

17

publicado dessa maneira em outra revista a Little review) tendo negado outros

convites anteriores mas acabou cedendo

Tanto as vaacuterias publicaccedilotildees dos excertos em progresso quanto

posteriormente a publicaccedilatildeo de Finnegans wake poreacutem fizeram com que ateacute

alguns de seus admiradores mais contundentes se manifestassem

negativamente Ateacute mesmo Nora a esposa de Joyce criticou o texto do Wake

pejorativamente um ldquochop sueyrdquo questionando a qualidade a partir da

ininteligibilidade Reiterava assim a opiniatildeo expressa por Harriet Shaw Weaver

que tambeacutem se posicionou desfavoraacutevel ao que Joyce estava produzindo no fim

de sua vida distanciando-se consideravelmente dele na fase em que estava

escrevendo o Wake Em uma carta a Joyce disse abertamente natildeo se interessar

pela ldquoproduccedilatildeo de seu Atacado de Trocadilhos de Seguranccedila nem pelas

escuridotildees e ininteligibilidades do seu sistema de linguagem deliberadamente

emaranhado Parece-me que vocecirc desperdiccedila seu gecircniordquo (ELLMANN 1989 p

728) Ainda que natildeo tenha havido grande rancor entre os dois na ocasiatildeo da

morte de Joyce em Zurique ela teria arcado com as despesas de seu funeral mdash

que natildeo teve refinamentos e nem qualquer homenagem ou contribuiccedilatildeo vinda

da Irlanda

Ezra Pound (1885-1972) foi quem possivelmente fez o comentaacuterio mais

aacutecido O escritor norte-americano comeccedilou a tecer criacuteticas desde os capiacutetulos

finais de Ulysses e quanto a Finnegans wake ao receber de Joyce o manuscrito

do livro de Shaun para que lesse e comentasse respondeu a ele que soacute lhe

restava desejar sucesso mas natildeo sabia o que pensar Na mesma carta chegou

a dizer que aquele texto soacute valeria a pena se apresentasse uma visatildeo divina ou

a cura para a gonorreia (ldquothe claprdquo) ldquoNothing short of divine vision or a new cure

for the clapp [sic] can possibly be worth all that circumambient peripherisationrdquo5

(READ 1970 p 228) Vale lembrar que anteriormente na ocasiatildeo de uma

tentativa de angariar fundos para Joyce a partir do Royal Literary Fund Pound

se referiu a Joyce escrevendo a Yeats e George Moore de maneira muito

5 A traduccedilatildeo feita por Lya Luft da biografia de Joyce escrita por Richard Ellmann traz a seguinte versatildeo do trecho ldquoNada ateacute onde eu possa ver nada sem visatildeo divina ou uma nova cura da gonorreia valeraacute possivelmente a peripatetizaccedilatildeo circunambienterdquo (1989 p 721)

18

elogiosa tendo expressado esses elogios tambeacutem ao proacuteprio Joyce em outras

ocasiotildees ldquostill it gives me a certain satisfaction to state that I consider Joyce a

good poet and without exception the best of the younger prose writers His style

has the hard clarity of a Stendhal or a Flaubert He has also the richness of

erudition which differentiates him from certain able and vigorous but rather

overloaded impressionist writersrdquo6 (ELLMANN apud DENNING 1997 p 10)

A primeira publicaccedilatildeo sobre Finnegans wake surgiu antes mesmo que a

obra fosse concluiacuteda Alguns apoiadores de Joyce se reuniram em torno da obra

coletiva Our exagmination round his factification for incamination of Work in

progress7 (1929) quando ainda havia apenas os fragmentos denominados Work

in progress com o intuito de atenuar a recepccedilatildeo que ateacute entatildeo oscilava

nebulosamente O tiacutetulo circular sugestivo e bem-humorado foi sugerido por

Joyce A coletacircnea foi publicada pela Faber and Faber a mesma editora que

publicou a primeira ediccedilatildeo de Finnegans wake quase dez anos mais tarde em 4

de maio de 1939 Reunia ensaios criacuteticos de doze autores Samuel Beckett

Stuart Gilbert Eugene Jolas Marcel Brion Frank Budgen Victor Llona Elliot

Paul Robert McAlmon Thomas MacGreevy John Rodker Robert Sage e

William Carlos Williams O proacuteprio Joyce desejava que essa publicaccedilatildeo natildeo

contivesse apenas textos elogiosos mas tambeacutem que se expressasse algo de

negativo a respeito de seus escritos Aleacutem dos doze artigos houve dois textos

extras denominados ldquocartas de protestordquo (letters of protest) e ambos trouxeram

criacuteticas o de uma jornalista que assinou sob o pseudocircnimo de G V L Slingsby

e outro assinado por um poeta russo chamado Vladimir Dixon O texto de Dixon

ldquoA litter do James Joycerdquo denomina seu destinataacuterio ora de senhor Germs

Choice ora de senhor Shamersquos Voice trocadilhos que fizeram Stuart Gilbert e

Sylvia Beach cogitarem que essa criacutetica negativa tivesse sido escrita pelo proacuteprio

Joyce A hipoacutetese poreacutem permanece natildeo confirmada

6 Traduccedilatildeo livre ldquoainda assim me daacute certa satisfaccedilatildeo afirmar que considero Joyce um bom poeta e sem exceccedilatildeo o melhor dos jovens prosadores Seu estilo tem claridade dura de um Stendhal ou de um Flaubert Ele tem ainda a riqueza da erudiccedilatildeo que o diferencia de alguns haacutebeis e vigorosos poreacutem excessivos escritores impressionistasrdquo 7 A mesma traduccedilatildeo supracitada propotildee o tiacutetulo traduzido Nosso Exagme em torno da sua factificaccedilatildeo da incaminaccedilatildeo de Obra em realizaccedilatildeo (Ibid p 755)

19

O tradutor inglecircs Stuart Gilbert (1883-1969) um dos nomes envolvidos na

publicaccedilatildeo era um dos assiacuteduos e atentos leitores contemporacircneos de Joyce

Foi quem publicou James Joyces Ulysses A Study (1930) livro ainda hoje uacutetil

para consulta na leitura da obra que precedeu Finnegans wake elucidando

numerosas referecircncias um tanto obscuras por todos os capiacutetulos e incluindo

ainda a famigerada tabela comparativa entre Ulysses e a Odisseia de Homero

Stuart Gilbert foi apresentado a Joyce por Sylvia Beach assim como Maria e

Eugene Jolas

Apesar de conterracircneos Samuel Beckett (1906-1989) e James Joyce se

conheceram somente em Paris no exiacutelio da terra-matildee compartilhada e logo se

estabeleceu a rotina de que Beckett o visitasse sempre que estivesse na cidade

Por ter acompanhado boa parte do processo de criaccedilatildeo de Finnegans wake

especialmente na ajuda que deu a Joyce por seus problemas de visatildeo podemos

imaginar que Samuel Beckett era grande candidato a uma espeacutecie de leitor ideal

o mais proacuteximo do texto aleacutem do proacuteprio autor Suas observaccedilotildees sobre o livro

de Joyce satildeo brilhantes Eacute sabido que foi Beckett o primeiro (ou ao menos

certamente um dos primeiros) a notar verdadeiramente que a incompreensatildeo

mais comum se traduz antes mesmo de a leitura ser iniciada isto eacute ainda ali

nas expectativas perante o livro mdash como poderiacuteamos ldquoentenderrdquo o Finnegans

wake esperando uma leitura tradicional

You cannot complain that this stuff is not written in English It is not written at all It is not to be read It is to be looked at and listened to () Here form is content content is form () His writing is not about something it is that something itself When the sense is sleep the words go to sleephellip When the sense is dancing the words dance (BECKETT 1964 p14)8

8 ldquoNatildeo se pode reclamar que esse material natildeo esteja escrito em inglecircs Simplesmente natildeo eacute um material escrito Natildeo existe para ser lido Existe para ser olhado e ouvido () Aqui forma eacute conteuacutedo conteuacutedo eacute forma () Sua escrita [de Joyce] natildeo eacute sobre alguma coisa eacute a proacutepria coisa Quando o sentido eacute adormecido as palavras vatildeo dormir Quando o sentido eacute danccedilar as palavras danccedilamrdquo

20

O que Beckett muito cedo percebeu e acaba por nos confirmar eacute que a

linguagem em Finnegans wake natildeo se presta a meramente servir ao

remetimento agrave descriccedilatildeo nem a contar um ocorrido prefere trazer nela em vez

de apresentar por meio dela intenta tecirc-la como ambiente proacuteprio do

acontecimento natildeo como ferramenta siacutegnica para dizecirc-lo representativamente

ou dizecirc-lo a distacircncia Levando essa tentativa em consideraccedilatildeo nada mais

coerente do que dispensar a escolha de um idioma para produzir o texto tecendo

sua literariedade de maneira anaacuterquica em relaccedilatildeo a regras de formaccedilatildeo de

palavras ou quaisquer outras normatividades de um idioma e suas limitaccedilotildees a

ponto de se poder dizer que o Finnegans wake natildeo estaacute escrito em inglecircs nem

em irlandecircs mas sim em uma liacutengua proacutepria babeacutelica mdash ainda que se possa

argumentar que a base dessa subversatildeo eacute a liacutengua inglesa de maneira que

Joyce tanto escreve no inglecircs quanto contra ele como jaacute foi dito nas palavras do

estudioso Seamus Deane

Joyce involves himself and us in an extremely complex series of translations that are endless because there is no original and no target language () the original language is the target language The book is written in the English language and also against the English language it converts itself into English and perverts itself from English (DEANE 2000 p viii)9

Lendo uma obra que natildeo pode oferecer certezas ou linearidades

estamos em uacuteltima instacircncia simplesmente nos entregando a ela sem indiacutecios

que possibilitem saber ou prever minimamente no que tudo aquilo vai dar O

leitor soacute pode continuar sua empreitada se estiver ciente dessa ausecircncia de

sentidos pontuais e de sequecircncias narrativas agraves quais normalmente buscaria se

prender Natildeo haacute uma sequecircncia de cenas causando a sensaccedilatildeo de suspense

ou de fluidez narrativa que nos faz virar as paacuteginas em prosa comum Ao inveacutes

disso o livro todo eacute espeacutecie de puro e constante suspense (uma descriccedilatildeo em

si impossiacutevel para o significado de ldquosuspenserdquo) como se o caminho de seu texto

9 ldquoJoyce se envolve e nos envolve em uma complexa seacuterie de traduccedilotildees que satildeo infinitas porque natildeo haacute liacutengua de origem e liacutengua-alvo () a liacutengua de origem eacute a liacutengua-alvo O livro eacute escrito em liacutengua inglesa e tambeacutem contra a liacutengua inglesa ele se converte em inglecircs e se perverte do inglecircsrdquo

21

virasse esquinas que os leitores nem mesmo tinham visto que existiam Cada

termo cada linha do Wake conteacutem diversas camadas semacircnticas que podem

ser absorvidas em diferentes niacuteveis e assim a leitura se realiza de uma forma

uacutenica de acordo com as referecircncias que o leitor captou Essa configuraccedilatildeo

textual potencializa mdash ou polemiza mdash as diferenccedilas que existiratildeo entre leituras

por pessoas diferentes ou entre as releituras de um mesmo indiviacuteduo

Por isso decidir ler Finnegans wake eacute decidir por lanccedilar-se ao texto Lecirc-

lo eacute uma experiecircncia fenomecircnica per se

Mesmo para alguns leitores que dedicaram parte de suas vidas a lecirc-lo e

relecirc-lo o texto natildeo se ausenta de dificuldades Uma das primeiras publicaccedilotildees

oferecendo uma leitura ampla e aprofundada da totalidade do Wake que se

propusesse a ter alguma didaacutetica em sua abordagem foi A Skeleton key to

Finnegans wake dos pioneiros Joseph Campbell e Henry Morton Robinson em

1944 O inglecircs Anthony Burgess lembrado por sua famigerada ficccedilatildeo distoacutepica

A Clockwork Orange (1962) e o acadecircmico americano William York Tindall

tambeacutem foram alguns dos primeiros a publicarem guias completos para a leitura

do Wake aleacutem de Robinson e Campbell Burgess publicou Here Comes

Everybody an introduction to James Joyce for the ordinary reader (1965) pela

proacutepria Faber and Faber A shorter Finnegans wake (1967) que traz o texto de

Joyce consideravelmente reduzido por Burgess e Joysprick na introduction to

the language of James Joyce (1973) Tindall publicou A readerrsquos guide to

Finnegans wake (1969) que sucedeu seu outro estudo didaacutetico de escopo mais

amplo A readerrsquos guide to James Joyce (1955)

William York Tindall tenta tornar o processo de leitura o mais didaacutetico e

facilitado possiacutevel indicando as referecircncias em cada capiacutetulo do Wake Ao final

de sua introduccedilatildeo em A readerrsquos guide to Finnegans wake Tindall afirma que

seu guia natildeo visa a uma apreensatildeo completa nem a ultimatos sobre a obra mas

sim a ser um suplemento de estudos preacutevios e acompanhar a leitura de uma

maneira relativamente independente isto eacute livremente ldquoAfter all what authority

on the Wake knows half of it Which half is the critical questionrdquo (TINDALL 1969

22

pp 25-26)10 Ironizar a possibilidade de que se saiba afirmar algo sobre

Finnegans wake talvez se aplique em verdade a qualquer texto literaacuterio mas

William York Tindall se resguarda claro especificamente em sua condiccedilatildeo de

joyciano e de redator de um guia para o Finnegans wake Diz ainda nessa

mesma introduccedilatildeo

Surely the Wake abounds in farcical materials () But farce is a category of drama and except from dream maybe the Wake evades categories Therersquos lsquolots of fun at Finneganrsquos wakersquo says the poet in his ballad of Tim Finnegan Taking my clue from this distrusting categories as I distrust earnestness I content myself with calling the Wake a very funny book (Ibid p 20)11

De fato o humor eacute uma das caracteriacutesticas sobressalentes em Finnegans

wake Os puns frequentemente carregam uma ironia inevitavelmente risiacutevel

Entre absurdos e alfinetadas a coletacircnea de trocadilhos ruma ao riso Uma das

comparaccedilotildees mais acertadas mdash ainda que comparaccedilotildees sejam sempre

perigosas mdash foi feita pelo escritor francecircs Valery Larbaud falando de Ulysses

ldquoeacute tatildeo grande e abrangente e humano quanto Rabelaisrdquo (ELLMANN 1989 p

617) Esse algo de rabelaisiano povoa ainda mais o sucedente Finnegans wake

que pretende tudo abarcar trabalha sobre o aparente exagero mdash que perde a

caracteriacutestica de excesso ao se fazer produtivo O exagero leva ao humor o

inacreditaacutevel e inverossiacutemil levam agrave quebra imediata e incontornaacutevel da

seriedade O que Wake tem de excessivo pode ser para nos fazer rir mais do

que para impressionar presunccedilosamente ou para meramente dificultar o texto ou

adornaacute-lo mais que isso o que o texto faz eacute lotar a si proacuteprio isto eacute se estufar

de conteuacutedo com um barroquismo que se autoironiza

10 ldquoAfinal de contas qual autoridade no Wake conhece sequer metade dele Qual metade eacute a questatildeo criacuteticardquo 11 ldquoCertamente o Wake se aproxima de materiais farsescos () Mas a farsa eacute uma categoria do drama e exceto por sonho talvez o Wake se esquiva de categorias Haacute lsquomuita diversatildeo no funeral do Finneganrsquo diz o poeta em sua balada sobre Tim Finnegan Tirando daiacute uma pista desconfiando de categorias como desconfio de seriedade eu me contento com chamar o Wake de um livro muito engraccediladordquo

23

Em artigo de 1955 ldquoA obra de arte abertardquo posteriormente publicado em

Teoria da poesia concreta (1965) Haroldo de Campos buscou compreender as

direccedilotildees para as quais apontavam as obras de arte modernas e para percorrer

esse caminho partiu de Finnegans wake e de obras de diversos autores mdash

Mallarmeacute Ezra Pound Cummings Pierre Boulez Deacutecio Pignatari e outros Em

Opera aperta (1962) Umberto Eco aborda o tema de maneira similar tambeacutem

fundamentou seu paradigma de obra de arte aberta a partir de Finnegans wake

e outras obras12 Havia uma seccedilatildeo toda dedicada a Joyce na primeira ediccedilatildeo

que depois passou a ser editada separadamente e consistia em uma

primeira tentativa pessoal de acompanhar o desenvolvimento de um artista no qual o projeto de uma obra aberta manifesta em transparecircncia ao niacutevel da pesquisa das estruturas operacionais toda uma aventura cultural a soluccedilatildeo de um problema ideoloacutegico a morte e o nascimento de dois universos morais e filosoacuteficos (ECO 1988 p 22)

Haroldo de Campos e Umberto Eco falando da ldquoobra de arte abertardquo natildeo

foram os uacutenicos a derivar do Finnegans wake de Joyce compreensotildees e

premissas de um grande paradigma teoacuterico Joseph Campbell (1904-1987)

teoacuterico estadunidense elaborou o ceacutelebre conceito de monomito segundo o qual

a jornada de um heroacutei eacute ciacuteclica e essa caracteriacutestica poderia ser notada em todas

as mitologias em diferentes graus tomando como exemplos mitos que

compotildeem a mitologia hindu egiacutepcia grega e cristatilde Joseph Campbell parte da

tese de que todos esses mitos satildeo variaccedilotildees de uma mesma narrativa una Um

dos padrotildees que Campbell estudou nessas variaccedilotildees foi a jornada do heroacutei

descrito em The hero of a thousand faces (1949) A primeira publicaccedilatildeo de

impacto de Joseph Campbell foi justamente jaacute citado estudo pioneiro entre as

12 Natildeo satildeo necessariamente abordagens idecircnticas apesar da grande coincidecircncia entre ambas inclusive terminoloacutegicas O proacuteprio Umberto Eco em introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo brasileira diz ldquoEacute mesmo curioso que alguns anos antes de eu escrever Obra Aberta Haroldo de Campos num pequeno artigo lhe antecipasse os temas de modo assombroso como se ele tivesse resenhado o livro que eu ainda natildeo tinha escrito e que iria escrever sem ter lido seu artigo Mas isso significa que certos problemas se manifestam de maneira imperiosa num dado momento histoacuterico deduzem-se quase que automaticamente do estado das pesquisas em cursordquo (ECO 1988 p 17)

24

publicaccedilotildees sobre o Wake A skeleton key to Finnegans wake (1944) escrito por

ele em parceria com Henry Morton Robinson e publicado pela editora Harcourt

entatildeo Harcourt Brace Foi certamente o primeiro estudo completo e que se

propunha a servir como guia de leitura mais de duas deacutecadas antes de Tindall

publicar o seu famoso A readerrsquos guide A obra de James Joyce gerou inspiraccedilatildeo

para Campbell ateacute mesmo na escolha do termo ldquoAnd his monomyth Ah hordquo

(FW 58124) As ideias desenvolvidas no conceito satildeo bastante caras ao

Finnegans wake muitas variaccedilotildees temaacuteticas reunidas formando uma unidade

um caleidoscoacutepio dos grandes mitos em que as narrativas histoacuterias se

entrelaccedilam ao inveacutes de somente se diferenciarem entre si Apagam-se as linhas

que delimitam a identidade cultural o idioma a liacutengua nacional ou regional o

momento histoacuterico ou qualquer porccedilatildeo isolada de tempo e espaccedilo tudo age em

prol da compreensatildeo do todo e do que nos une atraveacutes dos seacuteculos e das

fronteiras

No Brasil a recepccedilatildeo de Finnegans wake e sua influecircncia no trabalho de

grandes intelectuais tambeacutem natildeo tardou a se explicitar mdash e com grandes

leitoresleituras alguns fragmentos foram traduzidos por Augusto de Campos e

Haroldo de Campos em Panaroma do Finnegans wake (1962) Essa publicaccedilatildeo

foi de enorme importacircncia na difusatildeo do texto no Brasil em uma via de matildeo

dupla tanto Joyce influenciou intelectuais ligados agrave poesia concreta quanto os

irmatildeos Campos contribuiacuteram para difundir ainda mais a sua obra Felizmente

natildeo houve grande impacto negativo que afastasse leitores e parecesse invalidar

a qualidade do Wake ao contraacuterio a recepccedilatildeo foi natildeo soacute positiva como

especialmente produtiva em especial graccedilas agrave publicaccedilatildeo do Panaroma do

Finnegans wake que encorajou certa inspiraccedilatildeo e aproximaccedilatildeo da obra com o

que se fazia no Brasil em termos de poesia traduccedilatildeo e ateacute mesmo muacutesica13 jaacute

nos anos 1960

13 Eacute relativamente desconhecido o fato de que Peacutericles Cavalcanti musicou um trecho do Panaroma do Finnegans wake traduzido por Augusto de Campos ldquoNuvoletardquo mas essa bela versatildeo pode ser conhecida online numa performance com Regina Caseacute de 1983 no Sesc Pompeia para o programa Faacutebrica de Som

25

Haacute ainda poucas (ou talvez seja um nuacutemero surpreendentemente alto)

traduccedilotildees extensas de Finnegans wake publicadas mundo afora mdash francecircs

alematildeo mandarim polonecircs japonecircs (haacute duas) coreano italiano galego

contam-se nos dedos mdash e o portuguecircs haacute poucos anos foi incluiacutedo entre os

poucos idiomas que possuem traduccedilatildeo integral graccedilas a Donaldo Schuumller que

traduziu o texto do Wake para o portuguecircs brasileiro (se eacute que seria coerente

dizer dessa maneira enquadrando em um idioma) no decorrer de quatro anos

A traduccedilatildeo cujo primeiro volume data de 2001 foi publicada aos poucos e trouxe

consigo o tiacutetulo cunhado pelos irmatildeos Campos Finniacutecius reveacutem Com notas de

leitura a cada capiacutetulo que comentam aspectos gerais do texto Schuumller realizou

essa tarefa hercuacutelea com vasto meacuterito e deixou sua contribuiccedilatildeo criacutetica unida ao

seu trabalho de traduccedilatildeo

Houve em especial nos anos 2000 uma revisitaccedilatildeo de toda a tradiccedilatildeo

de Joyce e uma espeacutecie de nova recepccedilatildeo sua no Brasil com muitas traduccedilotildees

e trabalhos diversos sendo publicados Uma terceira via de traduccedilatildeo foi

executada com Ulysses (2012) por Caetano W Galindo que tambeacutem traduziu

Finnrsquos Hotel (2014) Este uacuteltimo se trata de textos que antecederam a finalizaccedilatildeo

do Work in progress que se tornaria o Finnegans wake Permaneceu em

suspenso se o Finnrsquos hotel de Joyce deveria ser um livro independente e ele

acabou por descartaacute-lo ou se eram rascunhos ensaios tentativas ou algo

semelhante do que planejava fazer em sua obra final jaacute que o livro abarca muitos

elementos do Wake Recentemente tambeacutem alguns dos escritos esparsos de

James Joyce foram editados em De santos e saacutebios escritos esteacuteticos e poliacuteticos

(2012) organizado a partir de The critical writings por Dirce Waltrick do Amarante

e Seacutergio Medeiros ambos fizeram tambeacutem a traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo de Cartas

a Nora (2012) que possuem traduccedilatildeo portuguesa editada no mesmo ano feita

por Joseacute Miguel Silva ainda no mesmo ano foram publicadas tambeacutem as

Epifanias (2012) de Joyce traduzidas por Piero Eyben anteriores ainda satildeo o

livro-guia Para ler o Finnegans wake de James Joyce (2009) de Dirce Waltrick

do Amarante que traz tambeacutem uma traduccedilatildeo do fragmento Anna Livia

Plurabelle e O efeito da letra Lacan leitor de Joyce (2003) de Ram Mandil

26

Expusemos entatildeo de maneira breviacutessima a recepccedilatildeo de Finnegans

wake da maneira como se deu inicialmente em especial no seu impacto entre

as figuras centrais da vida de James Joyce como escritor mdash que contrasta como

pontuamos com a maneira como o Wake chegou ao Brasil se estabelecendo

natildeo muito tardiamente como referecircncia e influecircncia tanto para alguns de nossos

maiores intelectuais quanto para um puacuteblico geral e de diversas aacutereas A

intenccedilatildeo de uma maneira ou de outra natildeo eacute sublinhe-se a de reiterar as

dificuldades de acesso ao texto jaacute que muitas das objeccedilotildees citadas por

contemporacircneos de Joyce partem do argumento de uma suposta profunda e

contraproducente inteligibilidade bem como da noccedilatildeo de que sua obra final seria

um jogo louco ou inuacutetil de palavras e sons

Ao contraacuterio pode ser relevante conhecermos ao menos alguns dados

sobre a recepccedilatildeo turbulenta para sabermos enfrentar esses argumentos jaacute

velhos enferrujados que intentam justificar por que natildeo ler Finnegans wake e

ainda surgem com espantosa frequecircncia Como respondecirc-los hoje Ainda se

acredita que Finnegans wake eacute uma piada um sarro um jogo intelectual banal

e mais pretensioso do que primoroso Ainda eacute visto como um texto

impenetraacutevel Por quecirc Ateacute quando Quais as consequecircncias de uma obra

como essas ser considerada ldquoum livro que ningueacutem leulecircrdquo considerando ainda

os avisos ou receios dos que dizem que em geral lecirc-se cada vez menos

literatura Como Finnegans wake eacute considerado claacutessico (se o for) se eacute ilegiacutevel

e impenetraacutevel eou uma peccedila de chacota intelectual O que seria um claacutessico

e de que vale essa classificaccedilatildeo valorativa

Eacute claro que natildeo faria sentido negar as peculiaridades inerentes ao texto e

agrave sua construccedilatildeo e nem pretendemos fazecirc-lo pretendemos o exato oposto

desse reducionismo que eacute enxergaacute-las e enfrentaacute-las da maneira mais

destemida possiacutevel mdash destemida no sentido de natildeo criar diferenciaccedilotildees entre

literatura ldquofaacutecilrdquo e ldquodifiacutecilrdquo leia-se sem criar uma categoria especial para a leitura

do Finnegans wake Natildeo se trata de afirmarmos que seja um texto ldquofaacutecilrdquo nem

que seja um texto impenetraacutevel Ideal eacute que o encaremos como o que ele eacute mdash

um texto literaacuterio um texto escritural como quisermos chamaacute-lo eacute um texto

Demanda-nos a leitura De noacutes leitores quaisquer que sejamos Se olhamos

27

para o Wake e questionamos o que conteacutem jaacute somos grandes candidatos a

percorrer seus caminhos Natildeo satildeo muitos os dispostos Natildeo porque devam ser

selecionados mas porque os preconceitos talvez afastem os desinteressados

Ulysses jaacute carrega tambeacutem certo estigma mas parece figurar como uma obra

um tanto mais simpaacutetica ou atraente quiccedilaacute mais receptiva ainda que

considerada tambeacutem difiacutecil extensa complexa Ulysses tem trecircs traduccedilotildees

brasileiras14 de trecircs intelectuais de diferentes eacutepocas de meacuterito e de peso de

fundos distintos e consequentemente trabalhos tradutoacuterios tambeacutem (felizmente)

diferentes entre si o que tambeacutem colabora para multiplicar nossas possibilidades

de fontes e referecircncias durante a leitura Sua dificuldade parece ser menos alvo

de piadas do tipo ldquomas ningueacutem lecircrdquo ainda que curiosamente natildeo haja guias

elaborados e nem mesmo traduccedilotildees brasileiras de guias de leitura

especificamente voltados para Ulysses ainda enquanto jaacute temos Para ler o

Finnegans wake de James Joyce (2009)

Apontar problemas ou tecer criacuteticas diversas agrave construccedilatildeo textual de

Finnegans wake como foi mostrado natildeo foi exclusividade dos absolutamente

conservadores ao menos artisticamente falando Diante da radicalidade do texto

e da aparente incompreensibilidade era como se um estranhamento

imediatamente tomasse o possiacutevel leitor mesmo que este fosse algueacutem

relativamente (ou mesmo bastante) aberto Como vimos os exemplos satildeo

muitos de artistas como Ezra Pound (ldquoA receptividade de Pound agrave inovaccedilatildeo

tinha seus limites como Joyce agora sabiardquo ELLMANN 1989 p 722) de sua

parceira proacutexima Sylvia Beach ateacute mesmo de alguns parentes como sua

esposa Nora sempre fonte de apoio e companheirismo e seu irmatildeo que

tambeacutem era escritor Foram variadas as reaccedilotildees mas especialmente numerosas

as reaccedilotildees negativas chegando a atingir emocionalmente Joyce em alguns

momentos

14 A saber a de Antocircnio Houaiss (1966) a de Bernardina da Silveira Pinheiro (2005) e a mais recente de Caetano Galindo (2012) premiada pela Academia Brasileira de Letras e pela Associaccedilatildeo Paulista de Criacuteticos de Arte aleacutem de ter recebido o Precircmio Jabuti de melhor traduccedilatildeo do mesmo ano

28

A fama de Finnegans wake que se espalhou pelo mundo (e permanece

ateacute os dias de hoje contaminando a visatildeo que normalmente se tem do livro de

preconceitos uma vez que quase sempre precedem a sua leitura) de que eacute um

livro impenetraacutevel eou uma grande piada de James Joyce ou de que eacute nada

aleacutem de um livro propositalmente dificiacutelimo e insano natildeo acabaraacute de repente O

que preocupa eacute o ldquonada aleacutemrdquo Que se tome Wake como paradigma de livro

complexo eacute aceitaacutevel e ateacute pertinente que se deixe de lecirc-lo tendo em conta esse

tipo de estigma poreacutem passa a ser uma subestimaccedilatildeo e pode ser de alguma

maneira uma perda real Felizmente no Brasil como vimos existe cada vez

mais um nuacutemero de publicaccedilotildees sobre Joyce que vem crescendo e se ampliando

tanto quanto vem se aprofundando com diferentes leituras A recepccedilatildeo

atribulada de que fizemos um panorama no entanto desde as primeiras reaccedilotildees

agrave obra final de James Joyce mesmo entre aqueles que o admiravam e

acompanhavam seu trabalho aponta para algo que estaacute no cerne das

consideraccedilotildees desta pesquisa o que o Wake tem de tatildeo deslocado tatildeo

marginal sendo ao mesmo tempo tatildeo ceacutelebre O objetivo eacute fazer dessa

compreensatildeo algo produtivo

Pois bem se eacute um livro ilegiacutevel natildeo se poderia escrever um trabalho

acadecircmico sobre ele (ou em algumas visotildees do que eacute um trabalho sobre

literatura justamente por isso fazecirc-lo seria necessaacuterio e sugerido

ironicamente) A concepccedilatildeo de legiacutevel eacute a que deve ser posta em xeque aiacute em

primeiro lugar ou ao menos antes de se questionar se Finnegans wake o eacute ou

natildeo Isso se faz especialmente necessaacuterio se falamos de legiacutevel referindo-nos agrave

literatura como se houvesse um processo de alfabetizaccedilatildeo especiacutefico No

entanto mesmo que se pare de olhar para o Wake apenas observando esse seu

caraacuteter superficial arriscamo-nos a dizer que sua impenetrabilidade por si soacute

diz alguma coisa A maneira como se encara a conceituaccedilatildeo de obra literaacuteria mdash

desde a assunccedilatildeo dessa possibilidade ateacute o processo de efetivamente

conceituaacute-la mdash certamente tem implicaccedilotildees no processo de aceitaccedilatildeo ou de

recusa diante de uma obra especiacutefica bem como na accedilatildeo criacutetica de valorar e de

julgar

29

Ora se uma coisa natildeo se encaixa no que se espera dela algo natildeo estaacute

nas medidas esperadas ou a coisa ou o molde isto eacute a focircrma com suas

medidas limitadas e exigecircncias de enquadramento Se a obra eacute algo que se deva

encaixar em uma concepccedilatildeo de literatura que a antecede e normatiza as

produccedilotildees literaacuterias em uma hierarquia duvidosa que cria uma governanccedila de

cima para baixo do molde para a coisa eacute compreensiacutevel toda a resistecircncia que

foi criada frente ao Finnegans wake

O que essa maacute recepccedilatildeo que ecoa ateacute hoje em estigmas diversos

normalmente aponta portanto eacute que o problema ou o defeito estaacute na obra de

Joyce levando em conta esse procedimento normativo de interpretaccedilatildeo e de

julgamento e critica da literatura O que propomos eacute que o problema esteja

talvez no molde

CAPIacuteTULO I

WAKE EM PAUTA

31

1 Algo parecido com nada

A recepccedilatildeo negativa ou perplexa diante de Finnegans wake como vimos

foi ampla a ponto de certa maacute reputaccedilatildeo ultrapassar o teste do tempo permitindo

que sobrevivessem estigmas relacionados agrave obra ateacute os dias de hoje causando

ranccedilo mesmo entre literatos e afastando possiacuteveis leitores por entre as deacutecadas

Ulysses foi um (anti)romance aclamado ainda que tambeacutem tenha tido uma

recepccedilatildeo controversa e resultado poucos anos depois de sua publicaccedilatildeo em

uma seacuterie de processos contra Joyce e na proibiccedilatildeo de sua circulaccedilatildeo nos

Estados Unidos e no Reino Unido sob a acusaccedilatildeo (hoje risiacutevel) de conter

pornografia Tambeacutem significou uma reviravolta naquilo a partir de que se definia

mesmo um ldquoromancerdquo suscitando hesitaccedilatildeo impaciecircncia e reprovaccedilatildeo mas

acabou por selar a fama de Joyce em vida traduzida inclusive em alguma

seguranccedila financeira mesmo que temporaacuteria

32

No caso de Finnegans wake no entanto a sua fama paradoxalmente foi

o motivo de seu relativo ostracismo Quando jaacute estava viuacuteva Nora Barnacle que

natildeo se interessava tanto por literatura e natildeo se sentia exatamente atraiacuteda pela

convivecircncia com artistas tampouco por conversas literaacuterias aleacutem de

eventualmente deixar Joyce magoado por natildeo ler o que ele escrevia chegou a

perguntar a Maria Jolas ldquoPor que falam tanto no Ulysses O Finnegans wake eacute

o livro importante Quando eacute que vocecirc e Eugene vatildeo escrever sobre elerdquo

(ELLMANN 1989 p 912) Como eacute sabido ateacute mesmo contemporacircneos

entusiastas da obra joyciana que natildeo lhe poupavam elogios tiveram opiniotildees

controversas a respeito da obra de maacutexima radicalidade na qual Joyce teria

conseguido engendrar uma inovaccedilatildeo tanto formal quanto de conteuacutedo ainda

maiores do que em suas produccedilotildees anteriores

Seu irmatildeo mais novo Stanislaus Joyce (1884-1955) com quem mantinha

contato e se correspondia mesmo com as constantes mudanccedilas de residecircncia

entre paiacuteses escreveu-lhe em 1924 dizendo que havia lido ldquoseu romance ainda

sem nome na transatlantic reviewrdquo (Ibid p 712) Reitera que em geral gosta

muito do predecessor Ulysses ainda que natildeo tenha paciecircncia nem humor para

alguns trechos mas aponta que haacute uma ou outra parte ldquoinesperadamente ternardquo

e comovente Sobre o Finnegans wake no entanto a impressatildeo eacute outra e lhe

parece que muitos agora o elogiam por bajulaccedilatildeo deixando Joyce mimado

demais Cita um artigo de Ford Madox Ford cuja leitura foi indicada a ele pelo

irmatildeo em que Ford sugere que se encare o Work in progress ldquocomo um ritmo

nonsense e que o leitor deveria abandonar-se ao seu balanccedilordquo No entanto

Stanislaus natildeo parece se convencer ldquoTenho certeza embora o artigo pareccedila ter

a sua aprovaccedilatildeo de que ele fala sem saber o que dizrdquo (Ibid p 713) Por sua

vez afirma que natildeo entendeu muito do que leu tampouco se interessou

verdadeiramente Citando a publicaccedilatildeo de Herbert Gorman James Joyce The

first forty years (1924) que atribui a Joyce ldquoa uacuteltima palavra em literatura

modernardquo elucubra que isso talvez signifique algo mais literal e escatoloacutegico

para a literatura

33

Pode ser a uacuteltima palavra noutro sentido a insensata erracircncia da literatura antes de sua extinccedilatildeo final Natildeo que eu imagine que a literatura vaacute morrer algum dia enquanto os homens falarem e escreverem Mas podem cessar de ler ou pelo menos de ler tais coisas Eu de minha parte natildeo leria mais que um paraacutegrafo daquilo se natildeo conhecesse vocecirc () Por que vocecirc continua inteligiacutevel e sincero nos versos Se a literatura deve se desenvolver ao longo das linhas de sua obra mais recente ela certamente se tornaraacute como Shakespeare aludiu haacute seacuteculos passados algo parecido com nada (Ibid pp 712-713)

Aleacutem da jaacute exposta incompreensatildeo eou desinteresse que os excertos de

Finnegans wake causaram nos leitores mesmo naqueles que eram proacuteximos de

James Joyce e que jaacute nutriam admiraccedilatildeo por seu trabalho o que nos chama a

atenccedilatildeo eacute a reflexatildeo direta de Stanislaus mdash que era assim como o irmatildeo mais

velho um literato mantinha anotaccedilotildees sobre literatura e arte e escreveu trecircs

livros sobre Joyce Dublin e literatura dois deles publicados postumamente mdash

ao deparar-se com a existecircncia daquele texto sobre o proacuteprio destino da

literatura A maneira como ele enxerga a radicalidade de Finnegans wake lhe diz

que se ela passasse a ser constituiacuteda cada vez mais por obras como essa

poderia ter a sua existecircncia ameaccedilada ou ao menos os seus pilares fortemente

balanccedilados Levantando a hipoacutetese de que o nuacutemero de leitores diminuiria cada

vez mais atribui a culpa da ldquotendecircncia ao nadardquo ao proacuteprio texto afastando as

pessoas por sua aridez Natildeo se trata simplesmente de uma mudanccedila no

entendimento de gecircnero nem de inovaccedilotildees estruturais e formais (que

demonstrariam uma contribuiccedilatildeo ou uma destruiccedilatildeo parcial ainda dentro da

literatura) de alguma maneira Finnegans wake ou acabaria com a literatura ou

ficaria agrave margem dela

Joyce poreacutem tinha a consciecircncia de que seu projeto inevitavelmente

envolvia um caraacuteter em algum niacutevel obscuro ou embaccedilado certamente de difiacutecil

compreensatildeo imediata mas confiava com algum otimismo na possibilidade de

que os leitores atravessariam as dificuldades do texto e admirariam o que ele

sistematizou Dizia claramente que ldquoo mundo da noite natildeo pode ser representado

na linguagem diurnardquo e ldquoPara Claud Sykes insistiu ldquoEacute tudo tatildeo simples Se

algueacutem natildeo entende uma passagem tudo o que precisa eacute ler em voz altardquo (Ibid

p 729)

34

Natildeo parecia concordar portanto com a preocupaccedilatildeo que alguns lhe

expressavam a respeito do caraacuteter ou mais ou menos literaacuterio de sua obra Ao

contraacuterio parecia entender que sim era uma obra muitiacutessimo distinta mas que

trazia consigo algo de grandioso por si e em si natildeo necessariamente grandioso

pela razatildeo de quebrar paradigmas muito menos o iniacutecio de uma ldquonovardquo literatura

toda pautada em seu estilo Augusto de Campos em ldquoOutras palavras sobre

Finnegans wakerdquo aponta a reaccedilatildeo do escritor irlandecircs a essas provavelmente

inesperadas criacuteticas de seu digamos ex-admirador (termo um tanto forte poreacutem

relativamente fiel ao que aconteceu) Ezra Pound bem como sua defesa diante

das acusaccedilotildees de ininteligibilidade

Mas Joyce natildeo se deixou desencorajar pelas objeccedilotildees de Pound (ao qual replicou obliquamente com trocadilhos e alusotildees no proacuteprio Finnegans wake) ldquoEacute possiacutevel que Pound tenha razatildeordquo escreveu a Harriet Shaw Weaver em 1927 ldquomas eu natildeo posso voltar atraacutesrdquo Como esclarece Forrest Read o escritor se defendia das acusaccedilotildees de obscuridade que lhe faziam agrave eacutepoca argumentando ldquoUma grande parte da existecircncia dos seres humanos se passa em um estado que natildeo pode ser tornado sensiacutevel pelo uso da linguagem lsquode olhos abertosrdquo uma gramaacutetica preacute-fabricada um enredo linear (CAMPOS 2001 p 195)

Por mais complexo que seja o texto de Joyce e por mais controversa que

tenha sido a sua recepccedilatildeo o supracitado guia A skeleton key de Joseph

Campbell e Henry Morton Robinson foi publicado apenas cinco anos depois da

publicaccedilatildeo integral de Finnegans wake demonstrando leitura de consideraacutevel

aprofundamento vertical e a percepccedilatildeo de inuacutemeras referecircncias presentes na

obra em um periacuteodo relativamente curto de tempo Na introduccedilatildeo denominada

ldquoIntroduccedilatildeo a um assunto estranhordquo (que foi traduzida para o portuguecircs por

Augusto de Campos e publicada na ediccedilatildeo mais recente do Panaroma do

Finnegans wake de 2001) os autores de A skeleton key alertam o leitor ingecircnuo

ou temeroso a respeito do que se encontraraacute na obra magna de Joyce sem

negar a existecircncia de algumas dificuldades nesse percurso Apontam

explicitamente para o terreno aacuterido com que se defrontaraacute o leitor conseguem

fazecirc-lo poreacutem de forma que apesar da honestidade ao dizer e ao pesar os

35

obstaacuteculos prevaleccedila um tom positivo e mesmo uma espeacutecie de convite direto

a essa jornada literaacuteria incomparaacutevel sobre a qual escolheram desenvolver um

estudo de alguma maneira democratizador

O vasto desiacutegnio e a intrincada estrutura de Finnegans wake datildeo ao livro um aspecto proibitivo de impenetrabiidade Agrave primeira vista parecemo-nos defrontar com uma selva densa e enganosa iacutenvia e recoberta por luxuriantes perversidades de forma e linguagem () Empreita a imaginaccedilatildeo exige disciplina e tenacidade dos que querem segui-lo na aventura Contudo algumas das dificuldades desaparecem desde que um leitor bem disposto encontre alguns pontos cardeais e acerte o rumo Entatildeo o imenso mapa de Finnegans wake comeccedila lentamente a desdobrar-se emergem as figuras e os motivos os temas tornam-se reconheciacuteveis e o ouvido vai-se familiarizando cada vez mais com o vocabulaacuterio de Joyce Natildeo se espere alcanccedilar um entendimento completo num primeiro e aacutevido embate na verdade pode-se natildeo lograacute-lo nunca (CAMPBELL ROBINSON 2001 p 152)

Joyce ouviu mais de uma vez que sua obra final natildeo era ou natildeo fazia parte

da literatura Pelo menos duas dessas ocorrecircncias estatildeo documentadas em sua

biografia como duas ocasiotildees em que o parecer foi quase idecircntico A primeira

foi na leitura de um fragmento frente a um grupo pequeno de amigos em que

tendo sua opiniatildeo requisitada por Joyce a irlandesa Mary Colum respondeu

ldquoJoyce eu acho que isso estaacute fora da literaturardquo (ELLMANN 1989 p 782) Na

outra ocasiatildeo figura uma inglesa que nos permanece anocircnima Ela ouviu Joyce

lendo um trecho e supostamente disse apenas ldquoIsso natildeo eacute literaturardquo Segundo

registra o bioacutegrafo Richard Ellmann Joyce respondeu ldquoFoirdquo ldquoquerendo dizer que

fora enquanto ela escutavardquo (Ibid p 865)

O problema natildeo estaacute no texto de James Joyce mas no que se espera de

um texto literaacuterio Propor uma nova focircrma no entanto parece-nos inuacutetil porque

natildeo estamos pensando somente no que abarcaria Finnegans wake afinal que

formatos abarcam a literatura Se inventaacutessemos os moldes sob medida apoacutes

uma extensa pesquisa e numerosas releituras natildeo teriacuteamos nada aleacutem de um

molde natildeo para ldquoliteraturardquo mas para o Wake Quando nos propuseacutessemos a ler

qualquer outra obra literaacuteria eacute certo que nos deparariacuteamos com outras

36

dificuldades e entatildeo o molde jaacute estaria inutilizado novamente Tentaremos

entatildeo operar a leitura que natildeo busca generalidades ou padrotildees nem constroacutei

guias idealmente universais Eacute claro que produzindo uma dissertaccedilatildeo e

investigando a relaccedilatildeo entre o que a teoria espera do livro e o que o livro entrega

agrave teoria esse intercacircmbio seraacute em alguma medida necessaacuterio no entanto o

ponto central natildeo eacute ler o Wake a partir de alguma teoria ou a partir de algueacutem O

meacutetodo aqui parte do lanccedilar-se ao texto ler Finnegans wake Ponto Meacutetodo

antimetoacutedico

Conta-se que James Joyce disse ldquocom um sorriso cacircndidordquo para o poeta

e ativista americano Max Eastman (1883-1969) ldquoA exigecircncia que faccedilo para o

meu leitor eacute que ele devote sua vida inteira a ler meus livrosrdquo (ELLMANN 1989

p 865) Relevando-se o possiacutevel exagero da expressatildeo ldquodevote sua vida inteirardquo

ainda que se referisse certamente agrave crescente complexidade que suas obras

apresentavam Joyce gostava mais de saber que era lido do que de

necessariamente ser elogiado ainda que a incompreensatildeo o desanimasse (e

que ser lido por mais pessoas significasse um risco maior de ser

incompreendido) Outra frase ainda mais hiperboacutelica eacute a famosa definiccedilatildeo de

leitor ideal que seja aquele que ldquosofra de uma insocircnia idealrdquo (Id)

Um possiacutevel pedantismo por traacutes do tom jocoso eacute anulado por diversas

outras declaraccedilotildees como as que se referem a Finnegans wake como tatildeo

somente um livro divertido mdash o oposto do que a famosa declaraccedilatildeo de que foi

escrito ldquopara manter os criacuteticos ocupados por trezentos anosrdquo (Id) ldquoEu sou

apenas um palhaccedilo irlandecircs um grande piadista do universordquo disse certa vez

ao escritor francecircs Jacques Mercanton (1910-1996) e respondendo a uma

pergunta de Terence White Gervais (1913-1968) sobre o Wake ter niacuteveis de

significado disse ldquoNatildeo natildeo Eacute feito para fazer vocecirc rirrdquo (Id) Qualquer que seja

a funccedilatildeo proeminente no Wake seja a de divertir seja a de ocupar criacuteticos mdash ou

ambas mdash parece-nos absolutamente incogitaacutevel que qualquer autor que

trabalhe por anos a fio em uma obra prefira natildeo ser lido e eacute acima de tudo o

compromisso de lermos Finnegans wake aquilo com que nos comprometemos

aqui

37

O ponto central dessa tentativa se desenlaccedila em torno da questatildeo do

tempo tomando-o natildeo apenas como instacircncia literaacuteria mas tambeacutem filosoacutefica

perpassando discussotildees da metafiacutesica de diversas eacutepocas tambeacutem sem a

concentraccedilatildeo no conceito de tempo para algum filoacutesofo especiacutefico A escolha

desse tema se justifica facilmente para aqueles que sabem um pouco sobre

como Joyce concebeu sua uacuteltima obra sabendo da relevacircncia da filosofia do

italiano Giambattista Vico em sua construccedilatildeo com a ideia de temporalidade

constituiacuteda pela divisatildeo de trecircs Idades mais o ricorso bem como sobre a

problemaacutetica de se entender a cronologia da narrativa (ainda veremos se eacute

possiacutevel falar em ldquocronologiardquo e mesmo em ldquonarrativardquo) Ainda assim

pretendemos investigar para aleacutem do paradigma de Vico talvez vislumbrando o

que impede afinal que Finnegans wake seja encarado como qualquer outra

obra literaacuteria ou apenas como mais uma obra literaacuteria difiacutecil como outras

tambeacutem o satildeo Note-se aqui a diferenccedila entre um livro qualquer e um livro como

qualquer outro natildeo eacute que o desejado seja considerar Finnegans wake como um

livro qualquer eacute claro Mas que seja considerado pelo menos legiacutevel e divertido

como Joyce o considerou e tantos leitores tambeacutem o consideram ao inveacutes de se

perpetuar como um mito de livro que nunca eacute lido e pior como um livro

defeituoso jaacute que natildeo facilmente compreendido segundo os moldes da teoria

literaacuteria O que percebemos eacute que talvez ele seja considerado de difiacutecil

compreensatildeo especialmente nos casos em que o leitor o encara tendo uma seacuterie

de expectativas relacionadas a uma visatildeo tradicional de literatura assim como

acontece tambeacutem de uma outra maneira com Ulysses

Se confirmamos a hipoacutetese de que seja possiacutevel e ateacute mesmo desejaacutevel

uma ruptura dessas expectativas ou ao menos uma maior libertaccedilatildeo delas pode

ser que se torne finalmente possiacutevel que mais leitores ganhem um novo desafio

de leitura que poderatildeo constatar como efetivamente repleto de fruiccedilatildeo natildeo

apenas de operaccedilatildeo cognitiva casmurra e tediosa A isso se combina a ideia de

literatura concebida por Maurice Blanchot evocada em Escritura do retorno

Mallarmeacute Joyce e o meta-signo a respeito dela como experiecircncia-limite ldquoLer

no espaccedilo literaacuterio blanchotiano eacute compreender as variaccedilotildees de um devir mdash

sempre futuro do leitor mdash como uma vicissitude do tempo que eacute a proacutepria obrardquo

38

(EYBEN 2012 p 242) Nessa concepccedilatildeo a leitura eacute ldquouma escritura

interminaacutevel vertigem da noccedilatildeo de espaccedilordquo (Ibid p 243) A leitura com a qual

afirmamos assumir um compromisso eacute inscrita nesse entendimento escritural

em que ler natildeo eacute simplesmente decodificar evidentemente mas tambeacutem natildeo eacute

realizar uma hermenecircutica uma busca por verdade do texto e nem uma

facilitaccedilatildeo do desbravamento do texto joyciano que se apresenta de uma forma

especiacutefica a cada leitora mdash e inclusive a cada leitura no sentido de fazer-se

sempre novo

2 Sui generis

O questionamento sobre o gecircnero que muito recorrentemente se impotildee

constitui uma problemaacutetica jaacute levantada desde Ulysses e seu tal caraacuteter de

antirromance15 A dificuldade de inserir Finnegans wake em uma definiccedilatildeo desse

tipo eacute absolutamente clara e redundantemente lembrada O ponto mais perigoso

das investigaccedilotildees dessa natureza eacute o fato de que esse alhures inominado em

que se insere a obra final joyciana pode induzir o candidato a leitor agrave armadilha

de rejeitaacute-la ou diminui-la pelo que ela tem de avesso agraves possibilidades de

categorizaccedilatildeo mdash assumindo absurdamente a teoria como a entidade regente

superior agrave mateacuteria sobre a qual se teoriza Com esse entendimento natildeo raro

consideram-se as obras meros objetos que se natildeo se sujeitam a alguma focircrma

e nem satildeo capazes de gerar novas categorias devem por essa loacutegica ter algo

de mal estruturado ou tecircm melhor destino sendo ignoradas Isso

ocasionalmente se daacute entre teoacutericos da literatura de forma relativamente

anaacuteloga ao que acontece quando gramaacuteticos consideram o conjunto de regras

da gramaacutetica normativa de um idioma como aquilo que rege e direciona o que

deve ser levado em conta na liacutengua ignorando que esse conjunto de regras eacute

na verdade obviamente restrito e derivado em percurso convencional da mateacuteria

15 O termo que aqui usamos pela segunda vez (a primeira com o prefixo entre parecircnteses) parece ser posterior a Joyce Deriva de anti-roman (francecircs)anti-novel (inglecircs) De qualquer maneira soacute sintetiza o que jaacute se dizia sobre o romance ter acabado com Ulysses Joyce natildeo deve ter sido o primeiro autor a suscitar esse tipo de comentaacuterio o mesmo se disse de outras maneiras de Gustave Flaubert e Henry James

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que o precede Sendo uma liacutengua algo mais amplo variado e mutaacutevel do que a

gramaacutetica normativa jamais conseguiraacute abarcar mesmo em seus mais

longamente descritivos iacutempetos eacute uma insanidade sobrepor a ela a

normatizaccedilatildeo assim como tambeacutem eacute insensato desconsiderar Finnegans wake

pelo que tem de inclassificaacutevel mdash ou dir-se-ia de indomaacutevel incompreensiacutevel

inacessiacutevel mdash algo que muito frequentemente se deu desde o iniacutecio da

publicaccedilatildeo de seus fragmentos como Work in progress

Enquanto Ulysses eacute o livro do dia Finnegans wake eacute o livro da noite com

sua linguagem oniacuterica permeada de ambiguidades e incertezas e seus

caminhos tortuosos Como Joyce dizia ldquoEacute natural que as coisas natildeo sejam tatildeo

claras agrave noite natildeo eacuterdquo (CAMPOS 2001 p 196) Como uma consequecircncia

inevitaacutevel classificar o Wake em um gecircnero literaacuterio mostra-se um desafio mdash ou

talvez um esforccedilo dispensaacutevel que nada acrescentaria agrave compreensatildeo da obra

Haroldo de Campos lanccedila possibilidades criativas de referecircncia classificatoacuteria

com os termos ldquoprosapoesiardquo (CAMPOS 2001 p 29) e ldquoromance-riordquo (Id p 27)

tambeacutem usado por Donaldo Schuumller ldquoPor flores e por floras por faunos e por

faunas por vidas e por vias flui Finnegans wake o romance e o rio o romance-

riordquo (SCHUumlLER 2004 p 15) (Eacute curioso notar uma outra possibilidade de grafia

para esse uacuteltimo termo inventado considerando que a opccedilatildeo pela duplicaccedilatildeo da

letra ldquorrdquo poderia remeter mais imediatamente agrave bela palavra que abre o fragmento

nuacutemero 1 de Finnegans wake optando por como Joyce fazia quase sempre

dispensar o uso de hifens mdash riverrun ou riocorrente na traduccedilatildeo feita por

Augusto de Campos e rolarriuanna na de Schuumller)

Respostas a essa problemaacutetica satildeo dadas no proacuteprio texto de James

Joyce mdash e devem ser entendidas sempre nesse mesmo lugar Uma possiacutevel

afirmaccedilatildeo concisa a respeito de tantos questionamentos entre eles o de gecircnero

o de literatura e o de cacircnone estaacute em uma frase relativamente curta ldquothis is nat

language at any sinse of the worldrdquo (FW 8312)16 Joyce condensou aiacute tanto a

afirmaccedilatildeo de que ldquoistordquo natildeo eacute linguagem em nenhum sentido do termo quanto a

de que natildeo eacute linguagem em parte nenhuma do mundo e ainda de que eacute

16 ldquoIsso eacute linguagem-noite em qualquer sentido do univerbordquo

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linguagem noturna com ldquonatrdquo lembrando ldquonoiterdquo night (inglecircs) nacht (alematildeo)

ldquoworldrdquo entre palavra e mundo foi genialmente traduzido por Donaldo Schuumller

como ldquouniverbordquo Confirma-se assim tanto o estatuto noturno que acompanha

uma incerteza da escuridatildeo mdash vemos significantes como vemos silhuetas e

sombras que nos situam gerando incerteza mdash quanto a temporalidade da noite

que se resvala em madrugada indefinida que eacute a vastidatildeo do breu em que tanto

espaccedilo quanto tempo satildeo dotados dessa qualidade vasta e ao mesmo tempo

fosca confirma-se ainda a linguagem que natildeo eacute a linguagem que se espera em

nenhum sentido do univerbo o proacuteprio livro se afirma como uma suposta natildeo-

linguagem que eacute simplesmente uma linguagem de caraacuteter proacuteprio afirmado

como algo noturno que se contamina e se faz pelas possibilidades de labirintos

oniacutericos

De forma geral esse desprezo do cacircnone ou espeacutecie de pouco caso com

Finnegans wake eacute carregado de conclusotildees precipitadas e diga-se desistecircncias

raacutepidas Os leitores minguam como se o texto natildeo merecesse atenccedilatildeo natildeo

merecesse leitura Hipoacuteteses de que seja uma grande piada ainda se mantecircm

Como afirmaram em 1944 os pioneiros Joseph Campbell e Henry Morton

Robinson quando Finnegans wake foi publicado integralmente isto eacute cinco

anos antes

lsquoWhat does it all meanrsquo rsquoWhy should we bother about a book so hard to readrsquo were questions quite generally asked Even normally responsive readers dismissed the book as a perverse triumph of the unintelligible17 (CAMPBELL ROBINSON 2005 p xxi)

No entanto ainda que somente mais de vinte anos depois o estudioso norte-

americano tambeacutem pioneiro na incursatildeo profunda ao Finnegans wake William

York Tindall afirma ldquoEverything in the Wake has meaning definite limited by a

frame or immediate context and discoverable Our danger (hellip) Is too much

17 ldquolsquoO que isso tudo significarsquo lsquoPor que deveriacuteamos nos ocupar com um livro tatildeo difiacutecil de ser lidorsquo eram perguntas feitas frequentemente Ateacute mesmo os leitores normalmente interessados desprezaram o livro como um triunfo perverso do ininteligiacutevelrdquo (CAMPBELL ROBINSON 2005 p xxi)

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ingenuityrdquo18 (TINDALL 1969 p 22) James Joyce engendra uma obra calcada

em racionalidade e enquadramento meticuloso de cada detalhe em uma

estrutura com criatividade ininterrupta e esse controle eacute visiacutevel ainda que resulte

em uma obra inclassificaacutevel e ainda que o resultado gere comentaacuterios que a

relacionem ao completo caos e a uma ideia de puro nonsense O que Tindall

aponta como o risco maior natildeo eacute note-se que o leitor talvez natildeo entenda o livro

ou natildeo veja alguma referecircncia mas sim que seja ingecircnuo diante da existecircncia

de possibilidades no texto e o tome por puro fingimento de quebra-cabeccedila

As dificuldades satildeo evidentes o susto ou a antipatia causada pelo Wake

ultrapassou o passar dos anos Mesmo os leitores mais proacuteximos de entendecirc-lo

tiveram suas dificuldades resistecircncias e uma infinidade de criacuteticas diante dele

Como ler entatildeo hoje uma obra como Finnegans wake Estaacute aiacute para ser lida ou

para ser rejeitada tida como uma piada para manter criacuteticos ocupados ou como

exemplo do funcionamento da linguagem em uma mente esquizoide Exige-nos

uma postura diferenciada Estaacute dentro ou fora da literatura mdash ou eacute na verdade

sua ameaccedila

Haacute talvez um grande conjunto de duas maneiras grosso modo de se

encarar o texto literaacuterio ou uma obra de arte qualquer primeiro sentindo que

conseguimos extrair uma finalizaccedilatildeo de nossa leitura ou ao contraacuterio na

segunda maneira sentimo-nos grave e verdadeiramente impotentes ao sequer

cogitar essa possibilidade De forma geral haveria assim uma bifurcaccedilatildeo de

duas distintas e abrangentes escolas ou caminhos sendo aquela que daacute uma

interpretaccedilatildeo fixa considerada correta ou superior a vertente mais obsoleta Os

perigos da segunda no entanto satildeo tambeacutem apontados com frequecircncia natildeo se

pode dizer tudo e qualquer coisa dizem O receio de uma espeacutecie de perigosa

autotelia que desestabiliza o mais tradicional corpus hermenecircutico se instala

entre as duas extremidades bifurcadas pontas de diferentes abordagens que

natildeo somente lidam com o texto de maneiras antagocircnicas mas ainda e por isso

mesmo partem de noccedilotildees igualmente opostas da proacutepria ontologia de uma obra

18 Traduccedilatildeo livre do trecho de Tindall ldquoTudo no Wake tem um significado definido limitado por uma moldura ou contexto imediato e passiacutevel de ser descoberto Nosso risco eacute o excesso de ingenuidaderdquo

42

de arte Sendo a primeira vertente bastante autoexplicativa esgotando-se

facilmente qualquer tentativa de discorrer sobre ela poderiacuteamos abordar direto

o problema indicado na segunda de que tudo poderia ser dito na abertura

absoluta e desgovernada que descentraliza as interpretaccedilotildees da obra em uma

descentralizaccedilatildeo e horizontalidade total (e vejamos se eacute isso mesmo o que

ocorre) considerando no caso o texto literaacuterio e especificamente o Wake

aquele que poderia ser acusado de ser um dos textos mais anaacuterquicos e

ameaccediladores do seacuteculo XX

Em primeiro lugar dir-se-ia que o texto natildeo se termina

O texto que natildeo se termina significa tanto um texto que natildeo acaba quanto

um texto que noacutes natildeo terminamos de ler e ainda um texto que natildeo finalizamos

sendo impossiacutevel dar-lhe qualquer ultimato interpretativo Isso natildeo se reduz a

um caraacuteter interminaacutevel condicionado pela leitura uacutenica que cada leitor com seu

aparato psicoloacutegico e experiecircncia que lhe satildeo inerentes executa ao se deparar

com o texto Tampouco diz respeito somente a uma seacuterie de releituras feitas em

diferentes momentos histoacutericos de modo que Machado de Assis tenha sido

reinterpretado com o passar do tempo etc A infinitude de que se trata aqui natildeo

se refere a esse tipo de desdobramento ainda que natildeo os anule nem os negue

como processos naturais da presenccedila do texto em diferentes eacutepocas e sob

diferentes olhos

Se natildeo eacute entatildeo um desses fatores externos o que insere o texto no tempo

da infinitude poderiacuteamos inferir que seja assim alguma caracteriacutestica interna

No entanto faltam-nos dados mdash ou pior evidecircncias mdash de que seja possiacutevel a

separaccedilatildeo como se faria digamos entre textos primaacuterios e secundaacuterios ou

qualquer procedimento semelhante Soacute que isso potencialmente nos colocaria

sob o constrangimento de admitir que natildeo haacute obras de arte pois elas estariam

por toda a parte potencialmente tudo conteria a infinitude Tudo seria arte como

lidar com essa possibilidade que parece destruir as fronteiras de definiccedilatildeo entre

aquilo que eacute e o que natildeo eacute um objeto de apreciaccedilatildeo ou de estudo

43

Desfaccedilamos alguns passos Se natildeo considerarmos o texto em sua

projeccedilatildeo ao infinito isto eacute se admitirmos entatildeo que ele desemboca em uma

interpretaccedilatildeo e assim deteacutem atinente uma exegese fechada somos obrigados

a exploraacute-lo em busca de sua verdade Cada leitura investigativa seria como um

caminho para fora da caverna platocircnica estariacuteamos cada vez mais proacuteximos das

ideias Da mesma maneira que o caminho de acesso agrave episteacuteme natildeo rejeita o

mundo do familiar e da doacutexa mas em verdade confronta-se com as sombras

para nelas alcanccedilar a luz o contato com o texto de uma maneira insistente e

atenta desvelaria eventualmente sua verdade a despeito de qualquer aparato

teoacuterico-criacutetico com que qualquer leitor pudesse contar nessa varredura Nesse

sentido uma experiecircncia com o texto seria suficiente

Sabemos no entanto que interpretaccedilotildees unas natildeo nascem assim De

forma geral vecircm de fora para dentro de cima para baixo de maneira imposta e

consagrada por convenccedilotildees ou argumentos de autoridade A experiecircncia com o

texto traz agrave tona em geral alguns poucos consensos uma dose de subjetividade

e havendo consonacircncia teoacuterico-critica eventuais conclusotildees convergentes

quanto aos aspectos mais superficiais do texto em especial aqueles

relacionados agraves categorias mais estanques da forma Ainda assim nem sempre

haacute consenso mesmo nesse campo Gecircneros textuais podem parecer categorias

fortemente imisciacuteveis mas frequentemente natildeo satildeo facilmente definidas

Finnegans wake eacute justamente uma obra cujo gecircnero jamais foi definido mdash

ou (in)definido como sui generis mdash que sequer traz consigo roacutetulo evidente de

prosa ou de poesia Augusto de Campos expressa esse dilema de maneira

sinteacutetica com os neologismos ldquoprosoemardquo ldquoromance-riordquo ldquoromancepoemardquo

Esse noacute se alastra considerando que Wake natildeo se encaixa em um gecircnero uma

seacuterie de assunccedilotildees a seu respeito natildeo pode ser feita tatildeo facilmente e

possivelmente caem por terra A fuga de um conceito fechado assim em efeito

dominoacute acaba por impossibilitar uma seacuterie de inferecircncias que dele naturalmente

decorreriam assim como o contraacuterio tambeacutem se daacute com a fixaccedilatildeo de uma

categoria que consequentemente baliza tantas outras de imediato seja a

respeito da extensatildeo da forma da qualidade das potencialidades sonoras e

semacircnticas etc Se um texto eacute composto de versos eacute certamente um poema

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tem estrofes possivelmente um esquema de rimas controlado se for um soneto

temos ainda mais inferecircncias prontas para serem testadas inclusive a respeito

do conteuacutedo se eacute conto eacute menor do que se for romance e assim por diante

Um texto inclassificaacutevel se apresenta dessa maneira jaacute de partida como

um problema em si uma fonte de inquietaccedilatildeo interminaacutevel ou que natildeo cessa

tatildeo rapidamente Mateacuteria para manter criacuteticos ocupados por anos como

profetizou o proacuteprio Joyce Corre o risco certamente de ser condenado para

fora da literatura mdash por natildeo caber nela natildeo ser contemplado em suas barreiras

Se o esquema existente natildeo o conteacutem comumente se supotildee a existecircncia de

defeito no texto natildeo uma possiacutevel limitaccedilatildeo das categorias que se consolidaram

para sua interpretaccedilatildeo O conservadorismo expulsa o que ameaccedila a tradiccedilatildeo por

preferir deixar de lado uma obra a implodir um sistema que abarca tantas outras

com seguranccedila e conforto Eacute instaurada uma problemaacutetica mesmo a partir do

ponto de confronto que eacute uma leitura na medida em que o leitor se espanta

diante do texto literaacuterio como discorre Piero Eyben em Escritura do retorno

Antes o texto joyceano torna-se pela falta repulsivo em sua intransitividade Natildeo haacute leitor que se veja nele identificado como completude Sua estrutura inacabada faz da verdade identitaacuteria uma falaacutecia De modo que o desvio o reveacutes de sua leitura nos leva a uma significacircncia zeroloacutegica na qual todo sujeito se anula e torna-se apenas membro da obra que este interpreta como significantes () A linguagem do inacabamento seria uma linguagem da falta pois coloca no caput o sem-cabeccedila (EYBEN 2012 p 610)

Rejeita-se o texto por saber que lhe impor uma interpretaccedilatildeo qualquer

seria gritantemente descabido Uma leitura de Finnegans wake que busque e

defina sua trama por exemplo encaixando no tempo no espaccedilo nos

personagens (protagonistas antagonistas) nos narradores e em todas as

categorias da narrativa uma seacuterie de respostas imutaacuteveis necessariamente

berraria sua artificialidade Para que se leia o texto como eacute sem distorcecirc-lo com

planificaccedilotildees simplificaccedilotildees e cerceamentos deve-se despi-lo das forccedilas que o

comprimem Somente assim se pode ler o texto como ele se apresenta

45

respeitando sua integridade Deve-se entatildeo ir agrave leitura esperando nada menos

que o infinito

Lembramos aqui o que diz Jacques Derrida em ldquoDuas palavras por Joycerdquo

Eacute com este sentimento poderia dizer com este ressentimento que devo estar lendo Joyce haacute muito tempo () Mas natildeo sei se podemos dizer ldquoeu leio Joycerdquo como acabei de fazer Naturalmente soacute podemos ler Joyce quer saibamos disto ou natildeo Eacute a sua forccedila Mas os enunciados do tipo ldquoleio Joycerdquo ldquoleiam Joycerdquo ldquovocecirc jaacute leu Joycerdquo sempre me pareceram cocircmicos irresistivelmente (DERRIDA 1992 p 21)

Nessa mesma palestra de 1982 Derrida tambeacutem faz uma ldquosimplificaccedilatildeo

descabidardquo em duas grandezas Refere-se agraves maneiras de o autor deixar-se nos

arquivos de sua obra apagando-se quanto mais ela se faccedila presente Apesar de

ter sido proposto aqui o exame da outra ponta dessa relaccedilatildeo mdash a do leitor mdash a

primeira atitude de autor descrita por Derrida pode ser vista como anaacuteloga agrave

maneira de leitura que expusemos ligada a certezas e fincada em uma ideia de

verdade textual consiste naquele que ldquoescreve para darrdquo de maneira que a obra

se decirc a ponto de poder ser valorada ldquogostaacutevelrdquo ldquoamaacutevelrdquo (Ibid pp 19-20) e

diriacuteamos ainda acessiacutevel e possiacutevel A segunda atitude que Jacques Derrida

considera semelhante agrave de Joyce eacute a de hipermneacutesia em vez de acessarmos

uma materialidade pura de texto no esquecimento do autor vivemos em funccedilatildeo

de sua memoacuteria em meio a sua presenccedila

Se o texto se nos apresenta dessa maneira precisamos estar dispostos

a entender que ele nos escapa Fugidio se transforma em espectro Sair da

caverna natildeo eacute ir aleacutem dela nem deixaacute-la para traacutes no percurso o caminho

platocircnico eacute um modo de estar que adentra mais como o movimento que

pretende mergulhar no texto literaacuterio natildeo se trata de ultrapassaacute-lo mas de estar

cada vez mais inteiramente nele Nesse sentido confessa-nos Derrida ldquoSim a

cada vez que escrevo e mesmo nas coisas da academia um fantasma de Joyce

estaacute presente em minha abordagemrdquo (Ibid p 23) O entendimento de Jacques

Derrida de um caraacuteter espectral que ronde o texto atraveacutes da escritura eacute profiacutecuo

46

em uma seacuterie de anaacutelises aqui podemos ensaiar aproximaacute-lo de uma ideia de

temporalidade que pode ser retirada do proacuteprio Finnegans wake

3 Fluidez vida-morte

A mitologia egiacutepcia estaacute presente em quase todos os capiacutetulos de

Finnegans wake agraves vezes escondida entre nomes que assinalam muacuteltiplas

assinaturas mdash desfazendo portanto a proacutepria ideia de nome mdash- e engendrando

numerosas rasgaduras temporais No capiacutetulo 4 do livro I o ldquolivro dos paisrdquo

denominado por Campbell e Robinson ldquoHis demise and resurrectionrdquo o

desmantelamento dos nomes eacute especialmente profiacutecuo Em meio a isso

segundo Donaldo Schuumller ldquoO tempo cronoloacutegico se anula em favor de um tempo

natildeo medido por aparelhos tempo feito soacute de fluxos () Em julgamento estaacute

nossa cultura nossas certezas nosso vocabulaacuterio nossa maneira de dizer e de

narrarrdquo (2003 p 169) HCE eacute preso e logo o rio Nilo eacute evocado aproximando-o

de Osiacuteris logo torna-se personagem morto ldquoonce and for all out of plotty

existencerdquo (FW 7618) fora da ldquoexistecircncia narradardquo como aponta Schuumller

Podemos apontar aiacute uma espeacutecie de resumo de toda a literariedade de

Finnegans wake HCE eacute capturado e morre de certa forma para sempre se

morrer significa estar fora de uma certa narrativa natildeo estaraacute ausente poreacutem

por toda a eternidade O lugar onde jaz eacute construiacutedo por um arquiteto com nome

de cemiteacuterio parisiense Peurelachasse (Pegravere Lachaise) que condensa la peur

(medo em francecircs) e la chasse (a caccedila) pois natildeo eacute um natildeo-lugar dos mortos

ao contraacuterio a morte aqui eacute acontecimento que desemboca em diluacutevio que

retoma a forccedila vital O que seria um par de oposiccedilatildeo se (con)funde e tem sua

ambivalecircncia transformada (ou transtornada) vida e morte dia e noite paimatildee

e filho(a)(s) os irmatildeos Shem e Shaun (ao contraacuterio de oposiccedilotildees riacutegidas como

Caim e Abel Rocircmulo e Remo)

Como dissemos o capiacutetulo eacute rico em temporalidade despedaccedilada o

tempo eacute indicado de maneira antirrepresentativa sem que se possa calcular ou

mapear um momento a partir de suas referecircncias ldquoBest This wastohavebeen

47

underground heavenrdquo (FW 7633)19 Diferentes tempos verbais intercalados natildeo

somente plantam uma duacutevida mas efetivamente explicitam a impossibilidade de

definiccedilatildeo a fluidez entre os periacuteodos A morte mdash especialmente aquela que seraacute

seguida de ressureiccedilatildeo mdash perambula por presente passado e futuro ldquoBut abide

Zeitrsquos sumonserving rise afterfallrdquo (FW 787)20 Nesse excerto o tempo parece

ser espeacutecie de entidade burocraacutetica que controla o universo de Finnegans wake

garantindo que um ciclo seja cumprido A morte de Humphrey Chimpden

Earwicker bem como todos os seus corolaacuterios natildeo satildeo controlaacuteveis por seres

que controlem seu tempo e a sucessatildeo de acontecimentos de suas vidas o ciclo

mdash como nas disposiccedilotildees de Giambattista Vico mdash eacute inelutaacutevel e forccedila sua

continuidade a despeito das vontades Elucubraccedilotildees natildeo mudam as

necessidades do Zeit A fluidez eacute como a correnteza do rio que natildeo escolhe seu

direcionamento

Se frente ao texto um periacuteodo sequer puder ser lido de apenas duas

maneiras diferentes jaacute teriacuteamos aiacute dois textos inteiros tambeacutem completamente

distintos A semacircntica natildeo pode se encerrar a cada frase nem a cada termo

nem a cada trecho ou capiacutetulo ou seja o que for lemos o todo considerando que

todos os trechos estejam incessantemente interligados e interdependentes de

maneira que a totalidade do texto seja um organismo indissoluacutevel Quais as

chances assim de que um texto qualquer seja absolutamente riacutegido com

significados puramente literais que alcanccedilam seus alvos pontualmente sem

nenhuma borda nem fenda de significaccedilatildeo seja ele concebido como texto

literaacuterio desde o berccedilo ou natildeo

Em vez de concluir que haacute certos textos que rebeldes fogem das reacutedeas

do sistema literaacuterio e suas classificaccedilotildees determinantes tendemos muito mais a

enxergar que todo texto tem uma faiacutesca disseminativa dentro de si que

frequentemente eacute ignorada em leituras que o planificam em uma sequecircncia

palpaacutevel para as classificaccedilotildees agraves quais estamos acostumados que nos

aparecem como urgecircncias quando na verdade a urgecircncia eacute o proacuteprio texto Ele

demanda nossa leitura urge que nos deparemos com os textos como satildeo e que

19 ldquoBem Este subterracircneo foi-para-haver-de-ser-ceacuteu ()rdquo 20 ldquoMas aguardemos o requerimento do tempo despertar apoacutes-quedardquo

48

rejeitemos distorccedilotildees que parecem visotildees transluacutecidas e por isso nos mantecircm

confortaacuteveis O que o texto faz eacute nos tirar do conforto de nossa liacutengua e nos

lanccedilar a uma outra proacutepria dele mesmo se nos lanccedilamos agrave leitura sem buscar

categorias estanques podemos finalmente conseguir sair do que julgamos

concreto em direccedilatildeo ao que nos vem de espectral prismaacutetico ndash aquilo que natildeo

pode existir num tempo que natildeo seja o do porvir Qualquer presentificaccedilatildeo

estanque negaria essa situaccedilatildeo de promessa do futuro promessa que

permanece messianismo sem previsatildeo pois caso se concretize o porvir se

desmantela no cumprimento da promessa que eacute seu desaparecimento

Apaga-se por inteiro o suposto perigo de que no infinito qualquer coisa

que nada tem a ver com o texto possa ser dita ou acusaccedilatildeo da leviandade de

que assim tudo seja arte indiscriminadamente receios fraacutegeis e superficiais que

nos limitam a concepccedilotildees especiacuteficas de arte e nos afastam normativamente de

leituras que sejam um modo de estar no texto mdash e portanto efetivamente o

contraacuterio de sair dele ou de excedecirc-lo O problema na verdade reside em

subestimar as possibilidades de um texto muito mais do que em superestimar

qualquer rastro ou sombra do espectro escritural esvaindo-se aiacute a proacutepria

essecircncia do texto em troca de uma carapuccedila que o defina

Um porvir desfigurado e desfigurante faz do texto uma mateacuteria de

instabilidade nas matildeos do leitor O caraacuteter fantasmagoacuterico latente povoa a escrita

de escritura O caraacuteter espaccedilo-temporal do Wake nos leva para o caminho do

intertexto do subtexto de tudo que estaacute contido e condensado no uacutenico texto

que chamamos de Finnegans wake O que desmantela as certezas estaacute

anunciado desde o tiacutetulo haacute um veloacuterio um luto e um tempo da eternidade da

morte mas haacute o movimento de despertar acordar o reiniacutecio o ciclo se faz

novamente no sim que responde pela continuaccedilatildeo eterna natildeo pela finalizaccedilatildeo

Desde o tiacutetulo portanto temos a postura de leitura definida ler e reler Finnegans

wake sem cronograma sob o espectro de Joyce e da babelizaccedilatildeo das liacutenguas

sem delimitaccedilatildeo espaccedilo-temporal

O espectro tem relaccedilatildeo ainda com o que natildeo se materializa e por isso

natildeo pode ser visto com clareza Entre tantos temas e motivos recorrentes

49

recirculando por todo o Finnegans wake a visatildeo eacute um dos sentidos amplamente

explorados como tema e fonte de trocadilhos A elaboraccedilatildeo altamente

perfeccionista do aspecto foneacutetico de Wake eacute atribuiacuteda tambeacutem agrave apuraccedilatildeo da

audiccedilatildeo inevitaacutevel consequecircncia da cegueira causada pelo glaucoma e nos faz

recordar a recomendaccedilatildeo de Joyce de que se lessem os fragmentos em voz

alta para uma experiecircncia outra de leitura (ou para a experiecircncia) A gravaccedilatildeo

da reacutecita feita pelo proacuteprio autor do episoacutedio ldquoAnna Livia Plurabellerdquo ou ldquoALPrdquo

como ele chamava eacute uma reliacutequia de grandioso valor para estudiosos de sua

exiacutemia obra Em texto composto por tantos neologismos e em meio agrave

simultaneidade de idiomas de diversos troncos linguiacutesticos haacute diversos

caminhos e muacuteltiplas escolhas para a entonaccedilatildeo o ritmo e a pronuacutencia do texto

de Finnegans wake e essas satildeo decisotildees que devem ser feitas pelo leitor capaz

de vislumbrar a polissemia de cada sintagma por meio da leitura em voz alta

A necessidade de envolvimento do leitor ouvinte instrumentista ou

espectador na arte caracterizada como moderna eacute sempre decorrente de uma

autonomia que lhe eacute conferida propositalmente ou natildeo em certa medida frente

agrave obra que se mostra maleaacutevel e porosa a esse envolvimento O fato de que

Finnegans wake eacute uma obra que deliberadamente proporciona autonomia ao

leitor transparece em sua estrutura inclusive se considerarmos a decisatildeo

primeira de por onde comeccedilar pois o livro pode ser acessado a partir de qualquer

um de seus fragmentos a despeito da numeraccedilatildeo neles embutida Esta facilita

certamente a citaccedilatildeo o compartilhamento etc mas a ordem de leitura eacute lanccedilada

ao leitor mdash um engendramento crsquoest agrave vous de sobreposiccedilatildeo de estados natildeo

comunicaacuteveis de simultaneidade de possibilidades no engendrar de um

multiverso em detrimento de um universo

Em Obra aberta o teoacuterico italiano Umberto Eco estabelece fronteiras

fundamentais entre obras tradicionais e obras modernas referindo-se

propriamente a suas formas e concepccedilotildees fugindo de definiccedilotildees de cunho

meramente histoacuterico-diacrocircnico O ponto de partida basilar para essa divisatildeo eacute

o fator da ambiguidade como ausente no caso das obras claacutessicas ou moldadas

tradicionalmente ou presente no caso das obras de arte modernas Citando

Finnegans wake obra uacuteltima de James Joyce como paradigma de obra moderna

50

caracterizada como aberta segundo seus preceitos isso fica mais claro se for

colocada a seguinte pergunta relativamente simples de que trata o referido livro

ou dir-se-ia ldquosobre o querdquo eacute Finnegans wake

No caso de obras jaacute haacute muito tempo consideradas claacutessicas a resposta

pontual a essa pergunta eacute possiacutevel ao menos segundo Umberto Eco sem

acarretar muitos questionamentos estruturais No caso de uma opera aperta

como Finnegans wake no entanto a resposta pontual eacute impossiacutevel mdash ou melhor

eacute possiacutevel poreacutem sempre parcial e funcionando como gatilho para outros pontos-

problema que devem ser alinhados com a resposta escolhida Podemos ensaiar

possibilidades sobre o Wake afirmando por exemplo que o livro trata de luto ou

que eacute sobre julgamento ou sobre uma famiacutelia dublinense ou a respeito de sonho

e inconsciente ou que eacute um sonho do protagonista haacute diversas respostas e

nenhuma parece vir como satisfatoacuteria Cada uma delas deve implicar uma seacuterie

de definiccedilotildees estruturais mdash se a narrativa eacute um sonho deve haver algueacutem que

sonha se eacute o (possiacutevel) protagonista HCE quem sonha temos entatildeo um foco

narrativo definido Estabelecer poreacutem um foco narrativo cuja fonte se

estabelece no plano mental inconsciente tem implicaccedilotildees outras a respeito de

como defini-lo em seu estatuto de narrador e de personagem Assim eacute

necessaacuterio atentar-se ao fato de que cada afirmaccedilatildeo acarreta uma seacuterie de

outras consequecircncias

A indefiniccedilatildeo de elementos estruturantes da narrativa no entanto natildeo eacute

vaacutelida somente para uma obra extrema como Finnegans wake mas para

qualquer obra que se aplique ao paradigma estabelecido por Umberto Eco

Ademais destaca-se o papel do leitor na projeccedilatildeo semacircntica da obra natildeo do

ponto de vista do senso comum de que a subjetividade confere certo empirismo

interpretativo aberto a uma relatividade sem horizonte definido mas em sentido

um tanto mais fleumaacutetico de que a manipulaccedilatildeo do objeto interfere no resultado

do mesmo mdash quase como um experimento de Erwin Schroumldinger Satildeo por

conseguinte cabiacuteveis as analogias com o Livre de Steacutephane Mallarmeacute

(poe)moacutebiles a muacutesica aleatoacuteria de Luciano Berio (que produziu muacutesica

inspirada no livro Chamber music ou Muacutesica de cacircmara de Joyce) e de

Karlheinz Stockhausen A diferenccedila do envolvimento necessaacuterio do puacuteblico

51

apareceria para Eco portanto em um grau consideravelmente maior na obra de

arte moderna

Lembrando o que diz Samuel Beckett sobre o texto de Joyce o que

podemos destacar a respeito da maneira como se apresentaria um

acontecimento ao leitor em Finnegans wake eacute que isso na verdade

simplesmente natildeo ocorre ou ao menos natildeo em termos de uma cena contada

narrada como conhecemos A narrativa como a conhecemos em que uma cena

eacute mostrada contada ao leitor eacute substituiacuteda aqui pela proacutepria experiecircncia da cena

ou da coisa que seria descrita Ao inveacutes de contar uma cena daacute-se a mesma ao

leitor Natildeo se trata apenas de se desapegar do tipo de descriccedilatildeo realista

objetiva que presume distanciamento pois tambeacutem natildeo se trata do relato em

primeira pessoa subjetivo e por isso duacutebio na tentativa de explorar a psique

de uma personagem especiacutefica em suas contradiccedilotildees internas tentando acessar

a complexidade de sua consciecircncia Nenhuma dessas abordagens opostas seria

possiacutevel no Wake pois nele nem sempre se pode diferenciar as vozes do texto

mdash e nem sempre eacute preciso uma vez que natildeo haacute enredo que dependa desse

acompanhamento

4 Paralelos psicanaacutelise teoria da relatividade muacutesica

A disposiccedilatildeo estrutural de Finnegans wake em circularidade eacute o que

permite o acesso a partir de qualquer paacutegina e o leitor por sua vez tem

autonomia explicitamente garantida impelido a tomar uma decisatildeo no primeiro

acesso ao livro A circularidade no entanto e a numeraccedilatildeo dos fragmentos

sugerem uma ordem taacutecita mdash que natildeo pode ser simplesmente ignorada mas

natildeo deve ser vista tambeacutem como a uacutenica forma de leitura assim se engendra

o niacutevel de ambiguidade da obra Como em Ulysses a presenccedila da Odisseia na

concepccedilatildeo de cada um dos capiacutetulos eacute uma possiacutevel referecircncia de leitura mas

natildeo a linha central isto eacute natildeo eacute um necessaacuterio paralelismo agrave incursatildeo ao livro

de Joyce Ler literatura eacute dispor-se a um caminho que natildeo busca certezas ao

contraacuterio do que o apego a anaacutelises literaacuterias demasiado pragmaacuteticas ainda que

52

o neguem possa sugerir Mesmo em um livro de cunho bastante tradicionalista

como A Anaacutelise literaacuteria de Massaud Moiseacutes o lembrete eacute claro

A leitura com profundidade pressupotildee sempre que o texto literaacuterio sendo composto de metaacuteforas eacute ambiacuteguo por natureza ou seja guarda uma multiplicidade de sentidos Ler mal significa natildeo perceber a extensatildeo dessa ambiguidade ou apenas percebecirc-la sem poder compreendecirc-la ou justificaacute-la (MOISEacuteS 1969 p 24)

Exigir uma explicaccedilatildeo para cada noacute morfoloacutegico ou sintaacutetico que se

vislumbra no texto ou acusa-lo de impor dificuldades ao acompanhamento do

enredo satildeo acusaccedilotildees a Finnegans wake que partem de uma concepccedilatildeo

possivelmente questionaacutevel de literatura eou lidam com uma ideia redutora e

limitante de exegese ignorando a alta voltagem do cociente conotativo que o

texto oferece e a riqueza de leituras e possibilidades mdash que estatildeo longe de

formar um todo incoerente ou um texto composto de nonsense ao contraacuterio

Finnegans wake foi concebido de forma comprovadamente calculada e o humor

do texto estaacute distante de ser tatildeo hermeacutetico quanto se pensa Campbell e

Robinson utilizam um galicismo bastante peculiar para caracterizar Finnegans

wake cauchemar Derivado de cauquemaire termo registrado a partir do seacuteculo

XV pode definir simplesmente uma espeacutecie de sonho incocircmodo no limiar do

que seria um pesadelo No dicionaacuterio Larousse21 eacute precisamente uma

ldquomanifestaccedilatildeo oniacuterica que pode causar uma forte resposta emocional negativa

na mente de medo ou de horrorrdquo Sua formaccedilatildeo se deu a partir do termo picardo

cauchier que significa ldquopressionarrdquo ou ldquoempurrarrdquo e do termo germacircnico

proveniente do holandecircs mare que significa ldquoespectrordquo ldquofantasmardquo O campo

semacircntico em que se enquadra o termo envolve da anguacutestia ao desespero O

leitor portanto estaraacute avisado natildeo se trata de um sonho planificado e agradaacutevel

mas de um percurso sinuoso de que se deve duvidar e ao qual nos entregamos

sem reservas O leitor deve se dispor ao obscuro em vez de exigir clareza como

em um sonho caracterizado por Freud em que objetos satildeo siacutembolos e o que

21 Larousse 2013 ldquoCauchemar nom masculin Recircve peacutenible avec sensation doppression dangoisse Ideacutee chose ou personne qui importune ou cause du tourment Ce professeur est mon cauchemar Synonymes Hantise obsession tourmentrdquo

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aparenta ser apenas um fato que se explica por si pode natildeo secirc-lo A isso se

acrescenta o que diz Freud sobre o reflexo (como ato involuntaacuterio automaacutetico

natildeo uma decisatildeo consciente) da negaccedilatildeo e a pulsatildeo de destruiccedilatildeo ldquoO texto [da

negativa] pode negar-se agrave interpretaccedilatildeo como meio de reagir agraves palavras de um

outro significante da proacutepria enunciaccedilatildeordquo (EYBEN 2012 p 283) A negaccedilatildeo

que vem do estranhamento produz afirmaccedilatildeo soacute se enxerga em Finnegans

wake o estranho a partir de noccedilotildees como narrativa e tempo linear negando-se

o estabelecido em direccedilatildeo a uma (nova) resposta

A referecircncia a Sigmund Freud natildeo vem apenas dos dados biograacuteficos em

afirmaccedilotildees do proacuteprio autor de que o livro eacute configurado como um sonho Joyce

dizia natildeo ser nada simpatizante da psicanaacutelise Apesar disso Lucia sua filha

tinha distuacuterbios mentais que ficaram mais graves com o passar do tempo e

chegou a se consultar com Carl Jung colega de Freud nos primeiros estudos

psicanaliacuteticos com quem ela se deu inicialmente muito bem Em Finnegans

wake Joyce cita tanto Freud quanto Jung maiores referecircncias no nascimento

da psicanaacutelise um tanto sardonicamente No fragmento 115 como destaca

Lenita Esteves em sua tese lecirc-se ldquoold Sykos who have done our unsmiling bit

on rsquoalices when they were yung and easily freudenedrdquo (FW 11521-23) Como

muito do que aparece no Wake (e muito do que aparece em nossos sonhos) a

citaccedilatildeo natildeo eacute clara e direta estando escondida poreacutem possiacutevel de ser

encontrada (ldquoyung and freudenedrdquo) com o termo ldquosykos on lsquoalicesrdquo separado em

duas partes como uma ldquocadeia truncadardquo (ESTEVES 1999 p 86) formando

ldquopsychoanalysisrdquo e a referecircncia agrave Alice de Lewis Carroll mdash autor cuja obra

sabemos ter influenciado Joyce e que aparece no trecho aqui referido como ldquoold

sykordquo (ldquoold psychordquo um ldquovelho loucordquo) O poeta e criacutetico dinamarquecircs Kristensen

certa vez perguntou se Joyce acreditava na Ciecircncia nova de Giambattista Vico

ao receber a sugestatildeo de Joyce que a lesse para ler Finnegans wake Joyce

respondeu ldquoNatildeo creio em nenhuma ciecircncia mas minha imaginaccedilatildeo cresce

quando leio Vico como natildeo aconteceu quando li Freud ou Jungrdquo (ELLMANN

1989 p 853)

Carl Jung chegou a ler Joyce e tambeacutem natildeo abrira caminhos para uma

simpatia maior entre eles ldquoJung garantiu que algumas de suas palavras

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ldquoportmanteaurdquo e neologismos eram notaacuteveis mas disse que eram acasos ela

[Lucia] e seu pai comentaria ele mais tarde eram como duas pessoas descendo

ao fundo de um rio uma caindo outra mergulhandordquo (Ibid p 837) A metaacutefora

do rio para a linguagem esquizofrecircnica pelo menos certamente teria agradado

Joyce se natildeo viesse nessa ocasiatildeo Especialmente vindo de algueacutem que havia

percebido em sua produccedilatildeo literaacuteria (e na de Lucia ao ler alguns de seus

poemas e apontar que havia ali indicaccedilotildees de problemas mentais) uma

exemplificaccedilatildeo de insanidade

Uma possiacutevel analogia entre uma obra como Finnegans wake e a

Interpretaccedilatildeo de Muitos Mundos (IMM) formulaccedilatildeo de estados relativos

elaborada pelo fiacutesico quacircntico Hugh Everett encontra-se no esteio da afirmaccedilatildeo

de Umberto Eco a respeito dessa mesma obra fazendo um paralelo entre a

relatividade de Einstein e as possibilidades diversas de tempos e espaccedilos

distintos e simultacircneos na obra de Joyce

Em Finnegans wake encontramo-nos enfim verdadeiramente na presenccedila de um cosmo einsteiniano curvado sobre si mesmo mdash a palavra inicial une-se agrave palavra final mdash e portanto acabado mas por isso mesmo ilimitado Todo acontecimento toda palavra encontra-se numa relaccedilatildeo possiacutevel com todos os outros e eacute da escolha semacircntica efetuada em presenccedila de um termo que depende o modo de entender todos os demais Isso natildeo significa que a obra natildeo tenha um sentido se Joyce introduz nela certas chaves eacute justamente por desejar que a obra seja lida num sentido determinado Mas esse ldquosentidordquo tem a riqueza do cosmo e o autor quer ambiciosamente que ele implique a totalidade do espaccedilo e do tempo mdash dos espaccedilos e dos tempos possiacuteveis O instrumento-mor dessa ambiguidade integral eacute o pun o calembour (ECO 1989 p 48)

Jaacute no iniacutecio de seu livro ao citar a obra de James Joyce como ldquoexemplo

maacuteximo de obra lsquoabertarsquordquo (Ibid p 47) Umberto Eco traccedila uma referecircncia com

Albert Einstein por meio de Edmund Wilson a respeito tambeacutem da obra anterior

Ulysses

Sua forccedila ao inveacutes de acompanhar uma linha expande-se a si mesma em todas as dimensotildees (inclusive a do Tempo) (hellip) Joyce desenvolveu consideraacutevel maestria teacutecnica para apresentar-nos os elementos de sua histoacutera numa ordem tal que nos torne capazes de encontrar sozinhos os nossos caminhos (Ibid p 48)

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Como sabemos a dita circularidade do Wake eacute construiacuteda de tal forma

que daacute margem a diferentes formas de acesso e leitura Isso gera diversas

possibilidades paralelas e igualmente aceitaacuteveis dentro da estrutura se

entendermos que de fato qualquer paacutegina pode ser a primeira e qualquer

paacutegina pode ser a uacuteltima Essas possibilidades diferem natildeo apenas em suas

caracteriacutesticas mas tambeacutem em suas implicaccedilotildees Assim coexistem

paralelamente essas possibilidades a partir das ordens de leitura efetivamente

disponiacuteveis e a obra permanece una Ateacute mesmo dentro de um capiacutetulo pode

ser que pouco importe a ordem de onde se comeccedila a ler De um paraacutegrafo para

outro o assunto pode mudar drasticamente Tomemos como exemplo o capiacutetulo

III do terceiro livro em que a primeira paacutegina fala dos Four Old Men a segunda

inicia uma ode a Isobel a filha discorrendo sobre toda a sua beleza e

ingenuidade e o paraacutegrafo seguinte salta nada menos para Humphrey

Chimpden Earwicker becircbado no chatildeo de seu pub

Em artigo intitulado ldquoThe Finnecies of music wed poetry A muacutesica e o

Finnegans Wakerdquo Caetano Galindo tradutor da mais recente versatildeo em

portuguecircs de Ulysses (2012) e da uacutenica de Finnrsquos hotel (2014) parte da ideia

desenvolvida por Walter Pater de que ldquoToda a arte constantemente aspira agrave

condiccedilatildeo da muacutesicardquo (PATER apud GALINDO 2010 p 286 traduccedilatildeo do trecho

feita por Caetano Galindo) Frequentemente se afirma percorrendo a fortuna

criacutetica de Finnegans wake que essa obra eacute o resultado de suposto projeto

formalista de extrema acuidade em que a semacircntica eacute absolutamente preterida

em relaccedilatildeo agrave forma agrave esteacutetica focada na materialidade do significante No

entanto natildeo haacute possibilidade de falar de significante sem significado sendo esse

um par indissoluacutevel e acusar Joyce de se apoiar na pura materialidade do signo

para construir um texto de conteuacutedo calcado no nonsense e portanto

ldquoincompreensiacutevelrdquo mdash ou mais especificamente um texto que efetivamente nada

tenha a dizer mdash e puramente sonoro se mostra descabida a qualquer leitor atento

do Wake

A aproximaccedilatildeo entre a literatura joyciana e a arte musical eacute contudo

bastante profiacutecua Aleacutem de a sonoridade como dissemos ser aspecto de suma

importacircncia nos textos de Joyce segundo ele proacuteprio essa proeminecircncia eacute

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expliacutecita na leitura observando-se os jogos linguiacutesticos riacutetmicos e o papel do

aspecto foneacutetico na compreensatildeo de muitos dos trocadilhos (puns) Ainda que

os fatores biograacuteficos nada determinem a respeito da produccedilatildeo literaacuteria cabe

apontar tambeacutem a tiacutetulo de curiosidade para a relaccedilatildeo estreita de Joyce com a

muacutesica queria ser cantor e sua matildee foi cantora e integrou coros de igrejas A

aproximaccedilatildeo entre experiecircncias literaacuterias e muacutesica natildeo seria algo novo para o

autor irlandecircs que demonstrava esse interesse desde os poemas de Chamber

Music mdash admirados por Ezra Pound mdash passando por trechos eminentemente

meloacutedicos de A Portrait of the artist as a young man ateacute o episoacutedio das Sereias

(como eacute conhecido) de Ulysses

Richard Ellmann afirma que diante de algumas das criacuteticas frequentes a

respeito do caraacuteter literaacuterio de Finnegans wake ldquoo aspecto musical do livro era

uma de suas justificativasrdquo (ELLMANN 1989 p 865) Questionado por Terence

White Gervais ldquose o livro era uma mistura de muacutesica e literaturardquo ldquoJoyce

respondeu laconicamente lsquoNatildeo eacute pura muacutesicarsquordquo (Id) A variedade de formas de

entonaccedilatildeo e pronuacutencia aproximam o Finnegans wake do que seria uma

composiccedilatildeo musical que precisa ser executada lida como se lecirc a partirura em

muacutesica mdash conferindo vida agraves indicaccedilotildees que o papel traz O leitor se vecirc dessa

forma no exato centro dessa demanda sendo-lhe exigidas seguidas decisotildees

persecutoacuterias Nem Ulysses nem Finnegans wake satildeo obras para serem lidas

de forma passiva apenas acompanhando a narrativa que se desenha sozinha

recostando-se acomodando-se em leitura plaacutecida eacute preciso lecirc-los de maneira

executiva

O capiacutetulo 11 (considerado na divisatildeo de Campbell e Robinson o capiacutetulo

3 do livro II mdash que chamam de ldquolivro dos filhosrdquo mdash denominado ldquoTavernry in

feastrdquo) reuacutene sensaccedilotildees diversas com destaque ao sentido da audiccedilatildeo em

cenas de festejo e bebedeira no pub da famiacutelia dublinense As cenas (ou

sensaccedilotildees) se assemelham ao que seria um sonho de HCE tendo contudo

tambeacutem a sua participaccedilatildeo Na nota preliminar de Donaldo Schuumller ldquoA

identificaccedilatildeo chega a extremos HCE sonha e eacute sonhado () Recolhem-se

fragmentos espalhados no tempo e no espaccedilordquo (2003 p 215) Em meio a

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transformaccedilotildees de HCE em Raacute deus egiacutepcio do Sol histoacuterias ouvidas pelo raacutedio

que envolvem visitas de um norueguecircs a Dublin em busca de um alfaiate

casamento quedas e um seacutetimo trovatildeo faz-se musicalidade no ambiente

barulhento

Snip snap snoody Noo err historyend goody Of a lil trip trap and a big treesnooker (hellip) (FW 3321-2)22

For hanigen with hunugen still haunt ahunt to find their hinnigen where Pappappapparrassannuaragheallachnatullaghmonganmacmacmacwhackfalltherdebblenonthedubblandaddydoodled and anruly person creeked a jest (FW 3324-7)23

Such was the act of goth stepping the tolk of Doolin drain and plantage wattle and daub with yoursquoll peel as Irsquoll pale and wersquoll pull the boath toground togutter testies touchwood and shenstone unto pop and puma calf and condor under all the gaauspices (incorporated) the chal and his chi their roammerin over gribgrobgrab reining trippetytrappty (so fore shault thou flow else thy cavern hair) to whom she (anit likenand please-thee) Till sealump becamedump to bumpslump a lifflebed (altolagrave allamarsch O gueacute O gueacute) (FW 33214-18)24

Joyce controla o ritmo do texto de forma que pulsem frases com tocircnicas

bem definidas formando o que ambienta o burburinho da noite no bar cheio e de

pessoas em festa Aleacutem das evidentes e numerosas aliteraccedilotildees ao unir

palavras como em ldquobecamedump to bumpslumprdquo eacute criado todo um novo ritmo

do iniacutecio ao fim das enunciaccedilotildees Aleacutem do forte impacto sonoro a semacircntica eacute

consequentemente modificada deslocando-se o que seria um significado

22 ldquoPirlimpimpim Da estorieta este eacute o fim De uma pequerrucha hip e de um grande triscunardquo (na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller 2003) 23 ldquoPois essazim e essezim ainda andam por aiacute a procura de Finn onde Pappappapparrassannuaragheallachnatullaghmonganmacmacmacwhackfalltherdebblenonthedubblandaddydoodled e uma personalidade ilegal largou um gracejordquo (idem) 24 ldquoTal foi o ato deusassombrado pra deter a fala do palanquim drenagem e plantaccedilatildeo vime e barro tua eacute a repulsa meu eacute o pulso nosso eacute o impulso do barco agrave terra dos aterrados testemunhas de madeira sapiencial e de pedra filosofal ateacute pupa e puma o bov hino e o condor sob todos os gaauspiacutecios (incorporados) o cujo e seu ela perroeirando caraagoraagarra reinando o trotedatropa (ateacute aqui fluiraacutes ou te arrastaratildeo pelos cabelos como na caverna) a quem ela (natildeo se assemelha praza-te) Ateacute que marulho se converta em entulho o brusco baque no liacuteffido leito (altolaacute allamarcha O quecirc o quecirc)rdquo (idem)

58

previsiacutevel para um neologismo que natildeo se fixa como neologismo uma vez que

continua podendo ser reinventado Do trovatildeo que possivelmente eacute o mais

musical de todos passamos ateacute mesmo por Shakespeare (ldquoshenstonerdquo) aqui

unido a Shem

Retornando ao texto de Caetano Galindo a aproximaccedilatildeo entre Finnegans

wake e muacutesica daacute-se entatildeo pela possibilidade de pensar essa obra literaacuteria

como uma partitura lembrando ainda a sugestatildeo do proacuteprio Joyce de que a

leitura de sua obra era diferenciada se fosse feita em voz alta mdash executada como

muacutesica escrita sobre as pautas de uma obra musical Isso se relaciona

diretamente a um certo papel atribuiacutedo ao leitor nessa interaccedilatildeo menos passiva

e mais ativamente investigativa ou analiacutetica em um sentido que eacute certamente

mais inventivo do que interpretativo Em vez de linhas pautas Sobre essa

comparaccedilatildeo diz Caetano Galindo

Uma partitura por outro lado jamais seraacute vista como a ldquoinauguraccedilatildeordquo de uma obra privileacutegio que cabe a sua primeira execuccedilatildeo puacuteblica A partitura afinal eacute muito menos ldquoa obrardquo que um detalhado conjunto de instruccedilotildees para a realizaccedilatildeo da obra que passa a existir apenas quando executada que tem a capacidade de existir como tal e de afetar mesmo pessoas ldquoanalfabetasrdquo no sistema de signos em que se escreve que manteacutem com aquele autoacutegrafo uma relaccedilatildeo portanto necessariamente de maior independecircncia Hierarquicamente superior E jaacute naqueles primeiros poucos exemplos de ldquobrincadeirasrdquo sonoras do Wake junto da constataccedilatildeo de que se trata de uma obra em que a leitura e a leitura em voz alta tem um papel completamente diferente na atribuiccedilatildeo na criaccedilatildeo de seu sentido fazem com que de diversas maneiras se possa sim pensar no livro como mais proacuteximo de uma partitura (GALINDO 2010 p 298)

A multiplicidade proporcionada por essa abertura natildeo prejudica portanto

a unidade da obra nem significa abertura a qualquer interpretaccedilatildeo a abertura

em questatildeo eacute efetivamente de autonomia e participaccedilatildeo do leitor tomando

decisotildees que efetivamente afetam sua experiecircncia com a obra natildeo por sua

evidente subjetividade como pessoa mas em seu papel como destinataacuterio mdash e

natildeo mero receptor de uma obra fechada cuja significaccedilatildeo estaacute dada inerte A

essa abertura poderiacuteamos entatildeo comparar a da muacutesica e seu efeito que parte

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de um ldquodesdeacutem com o sentidordquo para usar expressatildeo de Caetano Galindo Mais

do que relaccedilotildees de sonoridade com o uso de aliteraccedilotildees assonacircncias rimas

que comumente relacionamos a uma certa qualidade musical (mas que satildeo

aspectos em geral inerentes a quaisquer textos literaacuterios) o texto tem um

princiacutepio estruturante diferenciado que assim o assemelha agrave muacutesica

Essa aproximaccedilatildeo diz respeito agrave maneira de interaccedilatildeo que existe entre a

obra e um inteacuterprete de uma composiccedilatildeo musical mais do que entre a obra e o

seu ouvinte Assim nos remetemos agrave aproximaccedilatildeo feita por Eco entre o texto

joyciano e a muacutesica moderna que se justifica em diversos aspectos entre os

quais destacamos aqui o da necessaacuteria execuccedilatildeo em uma certa sequecircncia

temporal como fundamento inerente agraves duas artes muacutesica e literatura Ambas

satildeo elaboradas a partir de uma ordenaccedilatildeo que se alterada modifica-se ao

contraacuterio de obras de arte com entrada livre O componente temporal tem

destaque de maneira evidente tambeacutem no cinema tem possibilidades diversas

de entendimento na fotografia e nas artes plaacutesticas a partitura no entanto assim

como o texto teatral de outra maneira tambeacutem o eacute faz parte do rol de peccedilas

executaacuteveis Eacute das obras de arte que se escrevem e inscritas permanecem na

promessa de que se deem em um novo tempo em um acontecimento fora do

papel

Natildeo falamos portanto tatildeo somente de um texto literaacuterio musical mas dos

fundamentos compartilhados entre as duas artes em termos fundamentais de

elaboraccedilatildeo e de acessoexecuccedilatildeorecepccedilatildeo dentro da plasticidade de cada uma

delas A problemaacutetica inescapaacutevel que concerne agrave sucessatildeo temporal como fator

inato da obra natildeo se refere no texto literaacuterio simplesmente agrave sequecircncia de sons

mas a toda a mateacuteria da obra Como em certas obras musicais o compositor

deixa a possibilidade de o(s) instrumentista(s) ou mesmo o(s) ouvinte(s)

intercambiarem partes do todo de forma entatildeo prevista e deliberada pelo autor

em todas as suas consequecircncias temos em Finnegans wake a possibilidade de

entrada por qualquer trecho No entanto assim como na obra musical as

consequecircncias satildeo medidas tambeacutem no Wake existe eacute claro uma ordem

subjacente ainda que se possa ignoraacute-la no processo de leitura e iniciar de

60

qualquer paacutegina A leitura ainda que executiva eacute feita em cima de indicaccedilotildees

preacute-existentes

O leitor ideal do Wake por conseguinte deve ser aquele indiviacuteduo aberto

a uma renovaccedilatildeo inesgotaacutevel de processos cognitivos aquele que natildeo executa

sua leitura preso a seus horizontes mas estaacute disposto a expandi-los a cada linha

A fluidez em Finnegans wake se deve ao natildeo estabelecimento de uma voz que

tenha lugar proacuteprio Como diz Derrida em ldquoDuas palavras por Joycerdquo haacute livros

que terminamos de ler assim que iniciamos a leitura enquanto James Joyce nos

faz encarar a leitura que nunca parece ter fim Muito frequentemente Finnegans

wake eacute lembrado por ser um livro circular sendo essa uma das mais evidentes

caracteriacutesticas da estrutura elaborada por Joyce Podemos lembrar ainda a

figura eliacuteptica como Derrida a concebe para atestarmos que a circularidade

wakiana natildeo se engendra em reiteraccedilatildeo ciacuteclica em regressos a pontos

iniciaacuteticos nem em repeticcedilotildees de processos idecircnticos Ao contraacuterio a

circularidade do Wake efetivamente se aproxima da viconiana que inspirou

Joyce temos um processo de retorno que soacute eacute previsiacutevel ateacute certo ponto pois

engendra acima de tudo a renovaccedilatildeo de seus elementos Assim ateacute nas

repeticcedilotildees de um mesmo termo pela obra podemos perceber como o que

acontece natildeo eacute a retomada pura e simples mas a operaccedilatildeo de uma diffeacuterance

com ldquoardquo uma vez que o termo eacute aparentemente duplicado mas natildeo ocorre da

mesma forma e portanto jaacute natildeo eacute idecircntico em significado

A relaccedilatildeo com muacutesica novamente se faz proveitosa por uma outra via de

relaccedilatildeo Em um paralelismo bastante coerente a respeito de como eacute possiacutevel a

operaccedilatildeo de leitura de uma obra como Finnegans wake Umberto Eco tece

comparaccedilotildees citando o compositor belga Henri Pousseur um dos nomes da

nouvelle musique junto tambeacutem de Luciano Berio Pierre Boulez e Karlheinz

Stockhausen

Para definirmos a situaccedilatildeo do leitor de Finnegans wake parece-nos servir perfeitamente a descriccedilatildeo dada por Pousseur da situaccedilatildeo do indiviacuteduo que ouve uma composiccedilatildeo serial poacutes-dodecafocircnica ldquoJaacute que os fenocircmenos natildeo mais estatildeo concatenados uns aos outros segundo um determinismo consequente cabe ao ouvinte colocar-se

61

voluntariamente no centro de uma rede de relaccedilotildees inexauriacuteveis escolhendo por assim dizer ele proacuteprio (embora ciente de que sua escolha eacute condicionada pelo objeto visado) seus graus de aproximaccedilatildeo seus pontos de encontro sua escala de referecircncias eacute ele agora que se dispotildee a utilizar simultaneamente a maior quantidade de graduaccedilotildees e de dimensotildees possiacuteveis a dinamizar a multiplicar a estender ao maacuteximo seus instrumentos de assimilaccedilatildeordquo E com essa citaccedilatildeo fica sublinhada como se disto houvesse necessidade a convergecircncia de todo o nosso discurso para um ponto uacutenico de interesse e a unidade da problemaacutetica da obra ldquoabertardquo no mundo contemporacircneo (ECO 1989 p 49)

Assim a postura ativa se faz natildeo somente numa via extra de interaccedilatildeo

obra-receptor mas eacute efetivamente uma demanda necessaacuteria para que essa

interaccedilatildeo possa se viabilizar Ainda que ambiguidade e polissemia sejam

evidentemente traccedilos inerentes a quaisquer textos literaacuterios em geral haacute uma

oferta disseminativa especiacutefica onde se engendra diffeacuterance A interaccedilatildeo

receptor-obra na qual a participaccedilatildeo e as escolhas do leitor eacute uma necessidade

tem uma dinacircmica operacionalizante que natildeo somente ressuscita o texto morto

na leitura mas o faz quase podendo daacute-lo agrave luz Em consonacircncia com o que eacute

dito por Haroldo de Campos em A arte no horizonte do provaacutevel voltamos agrave

Escritura do retorno ldquoA arte joycena circular e em aberto natildeo possui como

operador a figura autoral mandataacuteria Antes a informaccedilatildeo esteacutetica mdash como

transmissatildeo de sensaccedilatildeo da forma mdash eacute gerada pelo interpretante que assume a

posiccedilatildeo de operadorrdquo (EYBEN 2012 p 616)

Isso natildeo implica no entanto eacute bom que lembremos uma abertura

semacircntica total e desgovernada que nos leve a aquiescer para as suposiccedilotildees

de que Finnegans wake seja uma grande piada sem qualquer indiacutecio de que sua

leitura valha a pena Aleacutem de rascunhos e arquivos de Joyce apontarem

fortemente para o contraacuterio com esquematizaccedilotildees da estrutura e registros das

formulaccedilotildees de trechos reescritos e reeditados com precisatildeo vimos que natildeo

foram poucos os leitores que se dedicaram agrave incursatildeo por essa obra ainda que

seja tatildeo mal falada quanto se diz que eacute incompreensiacutevel Natildeo se trata apenas de

frases compostas de um puro trava-liacutengua sucedendo o outro que natildeo remetem

a nada e tecircm seus significados encerrados em si mesmos de forma que somente

o significante seja manipulado em brincadeiras linguiacutesticas mdash ainda que a

62

comparaccedilatildeo inicial seja relativamente cabiacutevel no que diz respeito aos jogos

foneacuteticos e trocadilhos que compotildeem a obra joyciana O recurso natildeo resulta em

uma anulaccedilatildeo da unidade significativa ao contraacuterio temos sua expansatildeo Haacute

criacuteticos que traccedilam a sequecircncia da intriga na obra e a analisam sob essa oacuteptica

ainda assim sabemos natildeo haver linearidade narrativa na concepccedilatildeo tradicional

de enredo uma vez que o Wake traz o que se caracteriza pelo adjetivo plotless25

Como lembra o proacuteprio Eco mais agrave frente poreacutem ldquoEssa pluralidade

semacircntica natildeo determina ainda o valor esteacuteticordquo (ECO 1989 p 91) Fosse essa

a mateacuteria-prima de Finnegans wake natildeo seria composto entatildeo por mais que

jogos intelectuais e tantos criacuteticos assim o julgaram Se pluralidade semacircntica

implica uma seacuterie definida de possibilidades a b ou c para uma frase expressatildeo

capiacutetulo ou para a obra toda estaacute mais longe de Finnegans wake do que supotildee

Eco Polissemia subentende a possibilidade de visualizar nas palavras as

possibilidades para as quais elas se abrem como na ambiguidade em geral

tambeacutem se tem a consciecircncia dos sentidos que povoam o mesmo territoacuterio Por

mais contraditoacuterio que possa soar isso ainda pode integrar poreacutem uma leitura

hermenecircutica substitui-se a noccedilatildeo de verdade contida em uma unidade pela de

um espectro de verdades simultacircneas ainda controladas detidas nos limites do

horizonte que nossa visatildeo alcanccedila com nitidez

Em vez disso poderiacuteamos mdash podemos mdash ler Finnegans wake sem

necessariamente buscar conter em diagramas mentais os pontos semacircnticos

oferecidos em cada expressatildeo natildeo somente porque esse seria um trabalho

cansativo mas tambeacutem porque natildeo nos ofereceria garantias de ser esta a

melhor maneira de intimidade com o texto Da mesma maneira ler com fluidez

ainda que uma ou outra referecircncia possa nos escapar pelos dedos natildeo eacute

necessariamente uma forma menos integrada de se deparar com a obra em

questatildeo Fluidez aqui sublinhe-se natildeo se refere agrave suposiccedilatildeo de que se tenha

diante das paacuteginas do livro um leitor passando por elas uma a uma de maneira

25 O termo vem do inglecircs plot que se refere especificamente a enredo ou trama O Wake natildeo possui um enredo que mova a leitura e seja separaacutevel em situaccedilatildeo inicial cliacutemax e desfecho e mesmo os elementos baacutesicos da narrativa ndash personagens narradores tempo e espaccedilo ndash se modificam todo o tempo

63

homogecircnea sem que se detenha em nada de especiacutefico avanccedilando

ininterruptamente pelo texto em um ritmo padronizado meramente

decodificando palavras lendo o texto somente no sentido mais simploacuterio de

assunccedilatildeo da existecircncia e de certa compreensibilidade de um dado coacutedigo

Referimo-nos ao contraacuterio ao caso de um leitor qualquer se se lance agrave leitura

do livro mdash de modo que detenha um tempo singular de sua proacutepria leitura que

flui em seu ritmo proacuteprio individual variaacutevel e incalculaacutevel

Pelo fato de que o texto como eacute tecido exige do leitor a tomada de

algumas decisotildees jaacute haacute demanda suficiente de uma postura ativa que natildeo

precisa ser a tradicional postura de identificar todos os componentes e assim

destrinchar todos os elementos do texto por mais que isso eventualmente possa

ser de grande ajuda Talvez a noccedilatildeo do todo seja mais importante e mais difiacutecil

de ser alcanccedilada fora dessa anaacutelise a que estamos acostumados Muito do

texto por mais hercuacuteleo que o trabalho possa parecer pode ser forccedilosamente

colocado em diagramas e planilhas mentais com divisotildees e classificaccedilotildees

criadas a partir de moldes teoacutericos preacute-existentes mas lidar com o texto em sua

complexidade eacute respeitaacute-lo na sua porccedilatildeo de problemaacutetica indecifraacutevel

CAPIacuteTULO II

FINNEGANS WAKE E O TEMPO DA TRADUCcedilAtildeO

65

No prefaacutecio agrave traduccedilatildeo dos poemas de Charles Baudelaire reunidos na

seccedilatildeo Tableaux parisiens publicada em 1923 denominado ldquoDie Aufgabe des

Uumlbersetzersrdquo Walter Benjamin apresenta nas palavras de Haroldo de Campos

a sua ldquometafiacutesica antes do que uma fiacutesica da traduccedilatildeordquo (CAMPOS 2008 p

179) Ao encetar sua exposiccedilatildeo a respeito da ldquotarefa-renuacutencia do tradutorrdquo como

traduziu Susana Kampff Lages Benjamin questiona qual o destino do texto

traduzido apoacutes afirmar o que aqui se traz como epiacutegrafe a compreensatildeo mdash ou

a tentativa de engendrar alguma mdash das obras de arte natildeo deve se pautar pelo

receptor Enseja lembrar que se costuma entender a traduccedilatildeo limitando-se agrave

visatildeo corriqueira de que teria o objetivo preciacutepuo ou mesmo uacutenico de facilitadora

do acesso ao texto o que recairia justamente no problema de ter no destinataacuterio

sua justificativa focando na recepccedilatildeo do texto toda a necessidade de sua

existecircncia mdash ou mais gravemente a sua utilidade mdash e portanto tirar dessa

relaccedilatildeo suas premissas e direcionamentos

66

A existecircncia de um problema em considerar a traduccedilatildeo como algo

produzido tatildeo somente para atender agravequeles privados da compreensatildeo do

idioma do texto de partida antecede contudo qualquer afirmativa contra a

exegese que se paute pela recepccedilatildeo ou a favor de qualquer fantasiologia em

detrimento de uma investigaccedilatildeo do pateacutetico schlegeliano ou do empiacuterico em

literatura Eacute possiacutevel perceber esse problema no apontamento do fato um tanto

expliacutecito de que o leitor da traduccedilatildeo que visa substituir o texto de partida

inevitavelmente a leraacute como texto original (no sentido de primeiro

evidentemente) As relaccedilotildees entre o texto de partida e suas traduccedilotildees eacute

perigosamente apagada no caso do leitor cujo contato com a obra se daacute somente

por uma traduccedilatildeo especialmente entre aquelas que natildeo contecircm comentaacuterios

notas ou recursos similares por meio dos quais o tradutor aponte seus dilemas

e exprima as dificuldades pelas quais passou remetendo ao texto de partida

bem como que criteacuterios utilizou em suas escolhas e renuacutencias lexicais ou

sintaacuteticas

Aleacutem das peculiaridades inescapaacuteveis da leitura de uma obra de traduccedilatildeo

sem o concomitante acesso ao texto traduzido existem ainda os problemas

inerentes ao texto Tradutores que se incumbem da tarefa de transmitir algum

ato comunicativo a ser detectado no texto de partida transportando uma

mensagem mdash por vezes artificialmente construiacuteda ou forccedilosamente encontrada

em uma leitura enviesada ou mesmo forjada mdash a outro idioma por meio do labor

tradutoacuterio estariam prestes a falhar de certa maneira ao menos segundo o que

assevera Benjamin ao recaiacuterem na ldquotraduccedilatildeo inexata de um conteuacutedo

inessencialrdquo (BENJAMIN 2008 p 66) A falha tem eacute claro nesse caso um

sentido especiacutefico que parte da concepccedilatildeo que Benjamin traz de traduccedilatildeo Seria

demasiadamente penoso declarar ou apontar fracassos tradutoacuterios completos a

qualquer que seja a tentativa ao menos em literatura de traduzir algum texto

Como a Benjamin poreacutem a compreensatildeo do que significa ou qual a intenccedilatildeo do

ato de traduzir literatura parece-nos primordial ao labor tradutoacuterio e tambeacutem agrave

leitura de traduccedilotildees pois esclarecer o ponto de que partimos ao olhar o texto

se eacute o mesmo ou se jaacute eacute outro que medidas haacute de ldquomesmordquo e de ldquooutrordquo ou de

67

ldquoinovaccedilatildeordquo algo que compreendemos por processos de diferenciaccedilatildeo e

similaridade

ldquoDie Aufgabe des Uumlbersetzersrdquo eacute um texto frequentemente referido como

ensaio a despeito de ser mais loacutegico e afirmativo do que essa classificaccedilatildeo

poderia implicar (isso talvez ocorra pela obsessatildeo proacutepria do seacuteculo XX de

enxergar Essayismus em variadas formas textuais e em alguns autores

Moumlglichkeitsmenschen ou ldquopossibilitaacuteriosrdquo nos termos do escritor modernista

austriacuteaco Robert Musil contemporacircneo de Joyce) Benjamin transparece certo

idealismo em seu conceito de liacutengua pura e transita entre a construccedilatildeo desse

conceito eteacutereo agrave medida que o texto avanccedila e nuances de uma tradiccedilatildeo

platocircnica um tanto menos hesitante mais soacutelida Ainda assim eacute clara a

ratificaccedilatildeo buscada pelo autor de afirmar a traduccedilatildeo da arte tatildeo dignificante

quanto a criaccedilatildeo artiacutestica per se

Considerando-se um texto classificado como ldquoliteraacuteriordquo o dilema de como

traduzir se torna especificamente (poreacutem natildeo necessariamente mais) complexo

Poder-se-ia considerar que a abertura do texto facilita a tarefa tradutoacuteria uma

vez que expande as possibilidades de escolhas em vez de reduzir a

correspondecircncia de uma palavra a uma entrada dicionarizada ou opccedilatildeo lexical

mais imediata Traduzir literatura demanda meditar sobre um termo mas

tambeacutem sobre a frase a estrutura e o todo da obra A expansatildeo lexical

engendrada em arte eacute contudo sinteacutetica natildeo haacute possibilidades quaisquer de

consequecircncias equivalentes mas ao contraacuterio as consequecircncias de uma

escolha ou outra devem ser drasticamente distintas A necessidade do mot juste

do labor artiacutestico literaacuterio permanece sendo uma demanda da tarefa tradutoacuteria e

nesse sentido o tradutor em um entendimento radical de sua praacutetica de alguma

forma reescreve o texto de partida tomando emprestadas a estrutura e as ideias

do que traduz

Esse eacute o princiacutepio levado agrave risca com o termo transcriaccedilatildeo ainda que natildeo

se restrinja agrave modalidade concebida pelos irmatildeos Campos que envolve ainda

outros argumentos A despeito da conaccedilatildeo ou vocaccedilatildeo artiacutestica putativa do

tradutor ou seu esforccedilo em ser tambeacutem poeta a traduccedilatildeo de literatura lida com

68

o fenocircmeno potencializado de cada termo ter alto impacto seja o mot juste

procurado pelo tradutor criativamente seja buscado em metodologia que

percorra caminho teacutecnico-investigativo Haroldo de Campos afirma a respeito

das traduccedilotildees do Panaroma do Finnegans wake (2001) ldquo() o que interessa

natildeo eacute a literalidade do texto mas sobretudo a fidelidade ao espiacuterito ao lsquoclimarsquo

joyciano frente ao diverso feixe de possibilidades do material verbal manipuladordquo

(CAMPOS 2001 pp 27-28) Essa fidelidade pode ser entendida como anaacuteloga

agrave que Benjamin defende que se engendra sendo fiel agrave forma do texto

destituindo-o da fidelidade ipsis litteris isto eacute daquela realizada de maneira

literal de vocaacutebulo em vocaacutebulo apoiada na suposta funccedilatildeo tradutoacuteria de

transpor a mensagem comunicativa considerada ldquoinessencialrdquo Em seu texto

ldquoTransluciferaccedilatildeo mefistofaacuteusticardquo Haroldo afirma que ldquoNatildeo seria descabido

ultimar a teoria benjaminiana da traduccedilatildeo como portadora da mensagem lsquointerrsquo

(ou lsquotransrsquo) semioacutetica da liacutengua pura orientada pelo lema rebelionaacuterio do non

serviamrdquo (CAMPOS 2008 p 180)

Natildeo haacute nem deve haver por conseguinte expectativa de transposiccedilatildeo

entre planos em resultado tradutoacuterio calculaacutevel desde que se admita que a

traduccedilatildeo como o texto de partida natildeo significa o mesmo que ele mas eacute mdash deve

ser em sua tautologia como propotildee Albercht Fabri Se vemos o tangenciamento

de Benjamin devemos vislumbrar no processo tradutoacuterio cerebral o ponto a ser

tocado entre a infinidade de pontos natildeo obstante isso soacute pode permitir a

deduccedilatildeo do horizonte da liacutengua pura se for mantido o espaccedilamento da ldquopulsatildeo

dionisiacuteaca que eacute capaz de dissolver a diamantizaccedilatildeo apoliacutenea do original preacute-

formado em nova festa siacutegnicardquo pondo a ldquocristalografia em ebuliccedilatildeo de lavardquo

(CAMPOS 2008 p 180) Revela-se prejudicial o uso de termos similares a

ldquomensagemrdquo ldquomensageirordquo pois afirma um binarismo de espaccedilos em que dois

planos coexistem e entre eles ocorre o intercacircmbio Falar em ldquoportadora de

mensagemrdquo soacute eacute cabiacutevel nesse contexto se referindo agrave ldquointer (ou trans)

semioacutetica da liacutengua purardquo da fala de Haroldo mas natildeo ao que remete de forma

mais imediata o conteuacutedo inessencial mdash ao inveacutes da categoria da forma que

caracteriza a traduccedilatildeo na teoria benjaminiana

69

Admitiriacuteamos assim a possibilidade de o receptor da traduccedilatildeo ser um

leitor capaz de acessar o original de forma que a traduccedilatildeo seja um texto

adicional ao inveacutes de atuar como um usurpador do estatuto de texto primeiro

Mais do que uma possibilidade o leitor ideal da traduccedilatildeo seria esse que pode

vecirc-la como fonte de variantes interpretativas provenientes de leitura singular do

texto feita pelo tradutor (um leitor ideal sob essa oacuteptica) A palavra para

ldquotraduccedilatildeordquo na liacutengua alematilde eacute Uumlbersetzung junccedilatildeo do prefixo (do tipo que tem

valor semacircntico tambeacutem por si soacute) uumlber com a palavra setzung significando uma

sobreposiccedilatildeo sobreaplicaccedilatildeo Indica uma sobre-escrit(ur)a uma sobrevivecircncia

O leitor da traduccedilatildeo que tem acesso ao original mdash o que definimos como o leitor

ideal da traduccedilatildeo mdash e sua leitura do texto de partida e do que lhe foi sobre-escrito

eacute outro argumento a favor da traduccedilatildeo criativa e ratifica a possibilidade de o labor

tradutoacuterio poder e dever ser executado como arte conferindo ao tradutor natildeo

somente status mas responsabilidade Natildeo soacute pode se dedicar agrave busca do mot

juste como se incumbe desse dever ao se prestar agrave traduccedilatildeo

Walter Benjamin afirma o estatuto da traduccedilatildeo como forma que natildeo se

rende ao papel de transpor significados de um idioma a outro libertando-a de

qualquer caraacuteter submisso ao texto traduzido No entanto isso natildeo significa

forccedilar uma desvinculaccedilatildeo Ao contraacuterio afirma que ldquoeacute preciso retornar ao

originalrdquo (BENJAMIN 2008 p 67) Os quatro tradutores do texto de Benjamin mdash

Fernando Camacho Karlheinz Barck (e equipe natildeo nomeada) Susana Kampff

Lages e Joatildeo Barrento mdash optam pelos termos ldquoretornarrdquo ou ldquoregressarrdquo ldquoo

regressordquo No entanto pensar em voltar-se ao que eacute o texto original explicitaria

como isso significa o ato literal de como leitor do texto de partida debruccedilar-se

considerando como o tradutor deve eacute oacutebvio ir a ele natildeo somente em um

regresso simboacutelico mas tambeacutem como parte efetiva do processo de traduccedilatildeo A

concisa expressatildeo do movimento de voltar-se aponta tambeacutem para a

necessidade de evocaacute-lo no texto resultante da traduccedilatildeo ainda que natildeo seja

servil a ele e por uacuteltimo aponta para o retorno agrave liacutengua pura una babeacutelica

aquela em que natildeo haacute a categoria do enunciado e que ultrapassa as liacutenguas

nacionais

70

A traduccedilatildeo para Walter Benjamin eacute intraduziacutevel Esse fato confirma sua

autotelia O tradutor eacute fiel na medida em que produz devir em seu idioma de

forma fiel agrave que o escritor do texto de partida o fez em sua liacutengua Se pensarmos

que uma obra literaacuteria pode ter como qualidade inerente a ela segundo

Benjamin sua traduzibilidade a observaccedilatildeo tatildeo comum a respeito de Finnegans

wake vem agrave tona essa obra considerada atraveacutes dos tempos de ilegiacutevel a

intraduziacutevel teria que niacutevel de traduzibilidade Como questiona Lenita Esteves

no terceiro capiacutetulo de sua tese ldquoMas da mesma forma que Derrida aponta para

um certo aspecto risiacutevel da pergunta lsquoVocecirc jaacute leu Joycersquo podemos achar

engraccedilada a pergunta lsquoAlgueacutem jaacute traduziu Finnegans Wakersquordquo (ESTEVES

1999 p 83) Frequentemente se afirma que o idioma dessa obra de James

Joyce natildeo eacute o inglecircs mas um outro limitado ao livro e nele desenvolvido

elaborado pelo autor a partir de idiomas diversos Consideremos entatildeo que

Finnegans wake (1939) possui mdash ou melhor produz engendra uma liacutengua da

proacutepria obra Isso significaria natildeo apenas que a traduccedilatildeo deve fazer o mesmo

mas tambeacutem que esse idioma proacuteprio tem no texto as definiccedilotildees de suas

especificidades as diretrizes de seus paracircmetros e a que princiacutepios estaacute

submetido

Natildeo poderiacuteamos afirmar o mesmo no entanto a respeito de todo e

qualquer texto literaacuterio Finnegans wake apresenta de forma radicalmente

expliacutecita e elaborada com extrema acuidade o que toda a Literatura todo e

qualquer texto-arte traz intacto em sua essecircncia uma liacutengua proacutepria um dizer

que natildeo se repete no linguajar cotidiano tampouco em outros autores ainda

menos em textos teacutecnicos dissertativos cientiacuteficos Podemos entender

destarte a essecircncia antiteacutetica da tarefa de traduzir literatura cujos alicerces satildeo

os dois fatos concorrentes de que o texto literaacuterio recusa-se a uma transposiccedilatildeo

de seus significados a uma traduccedilatildeo entendida como produtora de alguma

equivalecircncia e o de que tambeacutem demanda que seja traduzido em tendo

traduzibilidade inerente de maneira diferente ou em outro grau que natildeo pertence

a uma traduzibilidade de sentido de mensagem de comunicaccedilatildeo A traduccedilatildeo de

literatura portanto de texto que produza em sua tessitura uma linguagem

proacutepria enquadrada em sua focircrma exige efetivamente a criaccedilatildeo de mais uma

71

liacutengua proacutepria tecida textualmente jaacute que existiraacute outro texto ou nova versatildeo do

texto que se intenta traduzir Esse fator inescapaacutevel por conseguinte faz

necessaacuterio que inspirando-se no ldquoidioma proacuteprio do textordquo de partida o tradutor

se lance a realizar alguma espeacutecie de criaccedilatildeo no idioma para o qual traduz ainda

que natildeo seja um seguidor dos caminhos de liberdade apontados pela

transcriaccedilatildeo

A traduccedilatildeo de literatura difere-se ainda por outro fator que natildeo diz respeito

a sua feitura mas reside no que excede sua elaboraccedilatildeo o acometimento de

certa direccedilatildeo na recepccedilatildeo e na criacutetica do texto em distintas heranccedilas escolhidas

Eacute niacutetido em Finnegans wake o quanto seus principais tradutores brasileiros mdash

Augusto de Campos Haroldo de Campos e o professor Donaldo Schuumller mdash

encaram a obra como radical aleacutem de efetivamente concordarem com o fato de

que sua complexidade torna a traduccedilatildeo tanto mais difiacutecil quanto profiacutecua

ldquoFinnegans wake eacute 100 de inovaccedilatildeo linguiacutestica Nenhuma concessatildeo Nenhum

recuordquo (CAMPOS 2001 p 21) Na introduccedilatildeo do primeiro volume de sua

traduccedilatildeo Donaldo Schuumller ldquoDistanciamo-nos com frequecircncia da literalidade

para captar efeitos que ultrapassam significados () Num discurso

deliberadamente oniacuterico luminosidade intensa natildeo se atingiraacute nuncardquo

(SCHUumlLER 2004 p 25) Em texto publicado no Panaroma e tambeacutem na

coletacircnea Teoria da poesia concreta Haroldo de Campos afirma ldquoTraduzir

James Joyce especialmente fragmentos de Finnegans wake eacute uma ginaacutestica

com a palavra um trabalho de perfeccionismo Algo que nunca assume o

aparato estaacutetico do definitivordquo (CAMPOS 2001 p 27)

Apesar das semelhanccedilas ambas as traduccedilotildees tanto a de Panaroma do

Finnegans wake cuja primeira ediccedilatildeo data de 1962 quanto a de Finnegans

wakeFinnicius reveacutem (2004) implicam recepccedilotildees (preacute e poacutes-traduccedilatildeo) distintas

e empregam diferentes instrumentos para lidar com as possibilidades do texto

de partida Os irmatildeos Campos optam pela traduccedilatildeo que chamam de intensiva

(ao inveacutes de extensiva) colhendo trechos que demonstrem o potencial radical

do texto como um todo ldquoO nosso objetivo sempre foi o de trabalhar e lapidar

alguns dos momentos maacutegicos do livro e somente dar a puacuteblico aqueles que

em nosso entender oferecessem em portuguecircs um estatuto equivalente agrave alta

72

voltagem de invenccedilatildeo e criatividade do original Trabalho de concentraccedilatildeordquo

(CAMPOS 2001 p 21)

Schuumller por outro lado algumas deacutecadas depois opta pela traduccedilatildeo

integral e portanto por aquela que tenderia ao que Augusto de Campos e

Haroldo de Campos entatildeo denominaram extensiva ainda que o labor de

Donaldo Schuumller natildeo deixe de ser tambeacutem de intensidade sobre o texto

debruccedilou-se sobre cada fragmento dedicando-se a cada um separadamente

gradualmente como uma obra por si Alerta ldquoPara se fazer entendido o texto

oferece muitas versotildees do mesmo coacutedigo cifradordquo (SCHUumlLER 2008 p 24)

Como Joyce nas palavras dos irmatildeos Campos natildeo faz concessotildees o tradutor

afirma seguir o mesmo caminho de natildeo simplificar e recomenda leitura que se

submeta aos mesmos riscos ldquoVencida a vertigem ante frequentes abismos

somos estimulados a criar roteiros proacuteprios () Natildeo se espere assim

inteligibilidade completa do textordquo (Ibid p 25)

Se a traduccedilatildeo intensiva portanto daacute a entender a potenciaccedilatildeo de um

esforccedilo vertical de imersatildeo aplica-se tambeacutem agrave metodologia de Donaldo que

percorre fragmento a fragmento traduzindo criativamente Cumpre a missatildeo

predita por Lenita Esteves em sua tese anos antes da publicaccedilatildeo completa da

traduccedilatildeo de Schuumller ldquoMas da mesma forma que Derrida aponta para um certo

aspecto risiacutevel da pergunta lsquoVocecirc jaacute leu Joycersquo podemos achar engraccedilada a

pergunta ldquoAlgueacutem jaacute traduziu Finnegans wakerdquo Traduziu de que liacutengua para

que outra Se como afirmam alguns autores Joyce fragmentou quebrou

desmantelou a liacutengua inglesa o tradutor teraacute tambeacutem que compor um texto

desmantelando sua liacutenguardquo (ESTEVES 1999 p 83) A liacutengua portuguesa eacute

entatildeo invadida mdash natildeo invalidada mas povoada mdash- por um texto wakiano em

vez de prestar-se ao trabalho de verter de caacute para laacute eacute tambeacutem como o inglecircs

o foi alterada habitada pela literatura que a torce e a desorienta Uma enxurrada

invade com correnteza violenta a liacutengua para a qual se verte enquanto a

linguagem segue o fluxo que natildeo eacute margeado por delimitaccedilotildees gramaticais mas

ao contraacuterio gera a erosatildeo dessas fronteiras

73

Comparando as duas traduccedilotildees do primeiro fragmento de Finnegans

wake das ediccedilotildees supracitadas podemos perceber como versotildees de um texto

tatildeo radical que optam por soluccedilotildees tradutoacuterias distintas resultam em dois textos

consideravelmente diferentes entre si ainda que ambas partam do princiacutepio de

serem traduccedilotildees para a liacutengua portuguesa e que tenham sido feitas por

brasileiros Na primeira linha por exemplo

riverrun past Eve and Adamrsquos (FW 31)

Observa-se que ldquopast _____rdquo (o termo past seguido de um complemento

direto portanto) pode significar algo como ldquoapoacutesrdquo em portuguecircs poreacutem tanto

temporalmente referindo-se a uma sequecircncia cronoloacutegica quanto

espacialmente indicando uma passagem no caso pela igreja Adam and Eve

em Dublin A inversatildeo no nome do local indica uma subversatildeo e portanto uma

impossibilidade de se decidir entre o sentido de passar pela igreja ou de passar

o tempo de Adatildeo e Eva indicado tambeacutem pelo termo ldquopastrdquo que carrega traccedilos

semacircnticos relacionados a tempo A demanda da coexistecircncia dessas duas

possibilidades portanto eacute um desafio tradutoacuterio que se impotildee jaacute no primeiro

periacuteodo da obra A traduccedilatildeo de Augusto de Campos opta por direcionar o olhar

agrave ideia temporal

riocorrente depois de Eva e Adatildeo (CAMPOS 2001 p 41)

Aleacutem do uso do termo ldquodepoisrdquo tambeacutem relacionado a tempo

prioritariamente como o ldquopastrdquo do texto de partida mas tambeacutem possiacutevel de se

referir ao deslocamento no espaccedilo a ausecircncia de artigo antes de ldquoEva e Adatildeordquo

esconderia a possibilidade de pensar no local na construccedilatildeo mdash na igreja

especiacutefica (algo que em inglecircs jaacute que natildeo admitiria artigo eacute indicado pelo uso

de apoacutestrofe + ldquosrdquo do possessivo) Assim poderia ser talvez mais imediato

74

pensar em ldquoEva e Adatildeordquo como algo que seja mais que somente os dois

personagens biacuteblicos se estivesse escrito digamos ldquodepois da Eva e Adatildeordquo de

forma que o artigo indicasse haver uma elipse (funccedilatildeo que eacute cumprida no texto

de Joyce pelo possessivo marcado com lsquos)

Quanto agrave opccedilatildeo posterior de Donaldo Schuumller (2002) perlustrando uma

outra via tradutoacuteria pode-se dizer que visa explicitar essa possibilidade de leitura

mais difiacutecil de ser captada mdash especialmente pelo leitor natildeo irlandecircs que natildeo teraacute

a referecircncia do nome dessa igreja em mente e tirando a viacutergula

rolarriuanna e passa por Nossenhora drsquoOhmemrsquos

Manteve-se entatildeo na traduccedilatildeo de Schuumller a referecircncia ao catolicismo

ainda que agora seja agrave Nossa Senhora do Oacute A opccedilatildeo aqui trazendo agrave sentenccedila

uma imagem relacionada agrave praacutetica religiosa na Peniacutensula Ibeacuterica e no Brasil foi

a de ser fiel ao ldquoespiacuteritordquo joyciano mdash no termo dos irmatildeos Campos herdado da

ideia de Ezra Pound mdash no que se refere agrave proposta de universalidade a despeito

das referecircncias a uma cidade especiacutefica Finnegans wake faz do mapa de Dublin

uma referecircncia a tudo aquilo que ultrapassa quaisquer limites geograacuteficos Haacute

em Salvador no bairro de Paripe uma Igreja de Nossa Senhora do Oacute uma das

primeiras paroacutequias fundadas na colocircnia portuguesa data do seacuteculo XVI O

marco iniciaacutetico de Adatildeo e Eva isto eacute a semacircntica do ab initio se reverbera

nessa marcaccedilatildeo histoacuterica em territoacuterio brasileiro Deve-se lembrar que a

traduccedilatildeo por ldquoNossenhora d`Ohmemrsquosrdquo natildeo se amarra a esse ponto geograacutefico

uma vez que existem diversas paroacutequias dedicadas a essa mesma Santa por

todo o Brasil em Portugal e na Espanha Podemos perceber ademais nessa

mesma expressatildeo que traduziria a princiacutepio um mero nome de igreja mdash em

Joyce nada eacute meramente um nome mdash a presenccedila do personagem HCE todos

os homens Here Comes Everybody (entre tantos outros arrolamentos) mostra-

se na aglutinaccedilatildeo de Oacute com Homem = Ohmem que reverbera ainda um

possiacutevel ldquoameacutemrdquo A viacutergula apoacutes riverrun foi trocada pela conjunccedilatildeo aditiva mas

75

a viacutergula apoacutes Adamrsquos manteve-se a mesma apoacutes Ohmemrsquos que foi grafado com

ldquomrdquo no final e apoacutestrofe + s assim como eacute o nome masculino o de Adatildeo em

inglecircs

A respeito das referecircncias presentes na obra do escritor irlandecircs Donaldo

Schuumller diz ldquoNatildeo haacute paacutegina em FW sem evocaccedilotildees literaacuterias mdash as biacuteblicas

superam todas mdash como se Joyce quisesse abarcar tudo o que se escreveu

fazendo de todos os textos um livro soacuterdquo (SCHUumlLER 2004 p 20) Esse ideal

extremo de condensaccedilatildeo traz uma possibilidade ou um anseio de superaccedilatildeo do

tempo reunindo todas as obras jaacute escritas em uma soacute supera-se o que o tempo

apaga o que a distacircncia cronoloacutegica segrega A literatura pode ser pensada

entatildeo em seu caraacuteter trans-histoacuterico como afirma o fenomenoacutelogo francecircs Paul

Ricoeur em Tempo e narrativa na medida em que se eleva sobre as divisotildees do

tempo histoacuterico e cronoloacutegico de modo que se faz de toda a histoacuteria da literatura

um acontecimento contemporacircneo discorrendo sobre o tempo do calendaacuterio

ldquoentre o tempo vivido e o tempo universalrdquo com Benveniste a partir das noccedilotildees

de tempo linguiacutestico

Contudo embora a contagem do tempo do calendaacuterio esteja apoiada nos fenocircmenos astronocircmicos que datildeo sentido agrave noccedilatildeo de tempo fiacutesico o princiacutepio da divisatildeo do tempo do calendaacuterio escapa agrave fiacutesica e agrave astronomia () A originalidade que o tempo axial confere ao tempo do calendaacuterio autoriza a declarar este uacuteltimo ldquoexteriorrdquo tanto ao tempo fiacutesico como ao tempo vivido Por um lado todos os instantes satildeo candidatos legiacutetimos ao papel de momento axial Por outro natildeo haacute nada que diga que determinado dia do calendaacuterio tomado em si mesmo eacute passado presente ou futuro () Para ter presente como tambeacutem aprendemos com Benveniste eacute preciso que algueacutem fale o presente eacute o discurso que o enuncia para chegar ao tempo vivido a partir do tempo crocircnico eacute portanto preciso passar pelo tempo linguiacutestico referido ao discurso eacute por isso que determinada data completa e expliacutecita natildeo pode ser dita nem futura nem passada se ignorarmos a data da enunciaccedilatildeo que a pronuncia (RICOEUR 2012 pp182-184)

De alguma maneira a Odisseia de Homero eacute passiacutevel de ser entendida

contiguamente ao Ulysses de Joyce assim como ocorreria entatildeo com as

referecircncias contidas em Finnegans wake desde as biacuteblicas passando por

Tristatildeo e Isolda lendas irlandesas e tantas outras referecircncias histoacuterico-culturais

76

Um eterno retorno na literatura em vez de uma histoacuteria literaacuteria linear ou

perioacutedica os efeitos de uma obra natildeo tecircm iniacutecio ou fim mas engendram um

impacto que se espirala alastra-se atraveacutes do tempo sem uma chegada

O texto lanccedilado agrave traduccedilatildeo atinge em concretude a possibilidade de seu

desdobramento multiplicado agrave medida que vaacuterias traduccedilotildees coexistam Haver

mais de uma traduccedilatildeo para um mesmo fragmento de Finnegans wake ou para

qualquer outro texto literaacuterio soacute adiciona em vez de se anularem ou se

contradizerem muito mais provavelmente se complementam Seratildeo distintas por

mais parecidas que sejam transformando o texto de partida em variados outros

que natildeo lhe satildeo alheios tampouco lhe equivalem Traduzir eacute frequentemente

entendida em senso comum como uma atividade verbal geradora de equidade

como o transportar das letras de um idioma a outro Intercambiar idiomas no

entanto implica a mudanccedila de paradigmas mdash natildeo apenas pela existecircncia de

fenocircmenos linguiacutesticos relacionados a certa constituiccedilatildeo social e cultural que

existem e variam mesmo em um soacute idioma mas tambeacutem de acordo com os

diferentes paracircmetros (no sentido chomskyano) isto eacute possibilidades efetivas

de expressatildeo que a organizaccedilatildeo de determinado sistema verbal proporciona

Paralelamente ao ipsis litteris portanto compreendemos a traduccedilatildeo como uma

(tentativa de) equivalecircncia imperfeita a priori mdash ou em vez de equidade como

uma renovaccedilatildeo ou um desdobramento em tese infinito Isso sem que perda de

vista que haacute como diz Benjamin uma tangecircncia na qual a relaccedilatildeo entre o texto

de partida e a sua traduccedilatildeo se relacionam sem que haja uma transparecircncia ou

um espelhamento entre os dois um sobre o outro ou um frente ao outro mas

sim uma uniatildeo tangencial de dois textos distintos

Tendo em mente esses procedimentos e o exemplo dos brilhantes

resultados do trabalho dos irmatildeos Campos e do de Schuumller ensejaria a

pergunta uma boa traduccedilatildeo deve entender o ato tradutoacuterio dessa forma

disseminadora para produzir algo tatildeo rico quanto se afirma que uma traduccedilatildeo

pode alcanccedilar devendo ansiar por tal resultado Ou em outras palavras a

traduccedilatildeo eacute tudo isso ou sob certas condiccedilotildees demarcadas concernentes a uma

metodologia e a uma postura diante de sua feitura pode secirc-lo A mesma

pergunta permanece pairando a respeito da arte e da definiccedilatildeo de texto literaacuterio

77

A busca por saber que texto eacute ldquoboardquo literatura e que texto sequer eacute ldquoliteraacuteriordquo

afora a prova do tempo que inclui ou exclui obras de um cacircnone atrai diversas

respostas O que podemos ratificar eacute que as traduccedilotildees que partam da noccedilatildeo de

ato comunicativo de exegese una de uma interpretaccedilatildeo fechada do texto ainda

que natildeo tenham como objetivo transparecer algo de incomunicaacutevel do texto

literaacuterio poderatildeo porventura fazecirc-lo mdash como que carregando algo do texto de

partida sem nem perceber Ou se pensarmos de maneira um tanto mais

pessimista apenas destruiratildeo a relaccedilatildeo ideal eteacuterea e fugitiva com o texto de

partida natildeo sendo fiel a seu espiacuterito e ao que faz dele uma peccedila de arte e

funcionaratildeo como exerciacutecio de traduccedilatildeo intentando sinoniacutemia impossiacutevel e

concretizando mera paraacutefrase que talvez extirpe o caraacuteter literaacuterio artiacutestico que

havia outrora no texto de partida

Em ldquoUntranslatable yourdquo Shireen Patell sintetiza um caraacuteter duplo do

trabalho de traduccedilatildeo ldquoThe task of the translator () is at once an act of mourning

and na ethical practice because it is a task dictated by an absolute alterity that

signals both loss and law without calculusrdquo (PATELL 2005 p 899)26 Patell

lembra ainda Derrida no que diz respeito ao fato de que a traduccedilatildeo natildeo eacute uma

relaccedilatildeo intersubjetiva ou interpessoal mas grafemaacutetica Haacute uma diferenccedila entre

a assinatura e quem assina no caso da traduccedilatildeo essa diferenccedila se explicita na

distacircncia entre o tradutor e aquilo com o que se compromete em nome de algo

o texto e a assinatura tecircm sobrevida Ainda que haja uma dificuldade em

determinar a autoria de um texto traduzido se autor ou tradutor ou se uma

combinaccedilatildeo emerge uma assinatura nova

As mesmas perguntas a respeito da ilegibilidade de Finnegans wake se

fazem quanto agrave sua traduzibilidade ou agraves possibilidades tradutoacuterias que pode

oferecer O fato eacute que o texto possui uma riqueza nesse sentido tendo sido

produzidas excelentes traduccedilotildees e havendo ainda uma proficuidade para novas

tentativas Traduzido por Augusto de Campos Haroldo de Campos Donaldo

Schuumller e tantos outros mais que possam ter se aventurado bem como

tangencialmente por Caetano Galindo que traduziu Finnrsquos Hotel texto de Joyce

26 ldquoA tarefa doa tradutora eacute ao mesmo tempo um ato de luto e uma praacutetica eacutetica porque eacute uma tarefa comandada por uma alteridade absoluta que assinala tanto perda quanto lei sem caacutelculordquo

78

escrito entre Finnegans wake e Ulysses que parece ter sido uma espeacutecie de

rascunho do que seria o Wake ou talvez uma obra independente com algumas

pontes ou treinos ou inspiraccedilotildees de Joyce sobre o trabalho de traduzir Joyce

em Finnrsquos hotel (2014) diz Galindo ldquo[Joyce] Cobra que vocecirc fuce em cantos do

portuguecircs que normalmente ficam ali soacute pegando poacute Eacute em suma um imenso

prazer para quem tem esse tipo de perversatildeordquo (p 11) mdash e aqui lembramos o que

diz Seamus Deane excerto jaacute citado em capiacutetulo anterior ldquo[The book] converts

itself into English and perverts itself from Englishrdquo (DEANE 2000 p viii) Tanto

a escrita de Joyce quanto a traduccedilatildeo de seu texto sendo perversotildees do idioma

(ou de idiomas) natildeo poderiam caber em definiccedilotildees de traduccedilatildeo como

reproduccedilatildeo exata pois exige torccedilotildees para que se exprima ldquoconteuacutedo essencialrdquo

Assim como os exemplos tradutoacuterios aqui citados podem relativizar certas

afirmaccedilotildees se considerarmos em vez deles traduccedilotildees que natildeo tenham sido

executadas com o mesmo esmero o texto literaacuterio de partida aqui referenciado

tem a mesma consequecircncia Finnegans wake se caracteriza como uma literatura

considerada radical mdash por vezes foi considerado texto ilegiacutevel e subestimado

como mera brincadeira intelectual mdash e dessa forma eacute paradigma ideal para

exemplificar o caraacuteter eteacutereo que propomos como o que um texto tem de

intraduziacutevel No entanto como dito anteriormente o que se entende por literaacuterio

em Finnegans wake vale para todo e qualquer texto-arte poesia romancepoema

etc independentemente do gecircnero literaacuterio

A problemaacutetica dos nomes proacuteprios em Finnegans wake pontua uma

dificuldade peculiar em sua traduccedilatildeo Os nomes das personagens mudam a todo

o tempo sem haver qualquer previsibilidade ainda que sempre haja pistas para

que o leitor reconheccedila as relaccedilotildees Poder-se-ia dizer que natildeo somente os nomes

sofrem mutaccedilotildees mas os proacuteprios seres HCE e ALP aparecem em siglas em

frases diversas enquanto Isobel tem sua vogal trocada ou eacute chamada por

variaccedilotildees diversas de seu apelido Issy ou na forma de Nuvoletta Shem e

Shaun mudam para combinaccedilotildees ainda mais distantes como Mutt e Jute Burrus

e Caseous Mercius e Justius Dolph e Kev sempre na reminiscecircncia do duplo

ambivalente Essas mudanccedilas de assinaturas reverberam a condiccedilatildeo mesma

das personagens no que estiver acontecendo a cada momento

79

Traduzir eacute natildeo solidificar mdash natildeo haacute traduccedilatildeo uacuteltima ainda que possa haver

uma melhor que outra(s) mdash mas lanccedilar jogar um jogo de azar aposta-se em

uma possibilidade existente entre infindas outras e se destrinccedila o resultado

Seraacute acertado eacute provaacutevel ainda que natildeo seja Poderia ser 1 mas foi 2 Seria

igual se fosse 3 mdash igual mas diferente Tal entendimento natildeo resolve a traduccedilatildeo

natildeo a define de forma a esquecermos os problemas que acarreta Ao contraacuterio

entendecirc-la como um enredamento problemaacutetico antes de tudo permite fundaacute-la

como texto-fonte de discussatildeo tanto quanto seu texto de partida Os noacutes

tradutoacuterios deixam de secirc-lo exclusivamente para em vez disso enriquecerem

toda a constelaccedilatildeo do texto (o texto de partida e suas traduccedilotildees coexistentes)

especialmente se literaacuterio filosoacutefico ou de forma geral ensaiacutestico adicionando

discussatildeo no proacuteprio corpus do que eacute posto em pauta Pode-se ler a traduccedilatildeo

como criacutetica como ensaio como resenha como resumo como paraacutefrase ela

pode transparecer todas essas formas de expressatildeo de um texto sendo ela

mesma outro texto em vez de gecircnero objetivo Uma (boa) traduccedilatildeo condensa

uma paideuma espremendo uma impressatildeo ao mesmo tempo em que exprime

uma compreensatildeo A eventual dificuldade existente em se valorar uma obra

literaacuteria como boa (ou mesmo como literaacuteria) pode ser a mesma de se valorar a

traduccedilatildeo mas seus valores podem variar de acordo com as pautas que propotildee

com as suas premissas aleacutem de ela mesma transparecer uma certa leitura ou

visatildeo do texto de partida atraveacutes das decisotildees tradutoacuterias e das criaccedilotildees que oa

tradutora possa se permitir ao trabalhar (sobre) o texto

Sem desconsiderar dificuldades especiacuteficas inerentes e inegaacuteveis ao texto

de James Joyce dilemas tradutoacuterios no Wake podem ser dilemas tradutoacuterios

compartilhados em geral por toda e qualquer empreitada de traduccedilatildeo de textos

escriturais A literatura em geral parecendo mais ou menos complexa mais ou

menos legiacutevel e compreensiacutevel demanda o cuidado detalhado e rigoroso e por

isso impotildee dificuldades incontornaacuteveis e em verdade sem soluccedilatildeo que as

extermine por mais que se tente traduzir de diversas maneiras e por mais notas

de rodapeacute que se preencham Referindo-nos especificamente ao proacuteprio

Finnegans wake citamos novamente o texto de Shireen Patell mdash em que ela fala

sobre todo e qualquer texto possivelmente intraduziacutevel

80

What cannot be translated calls for the future translations that perpetually reach toward but can only trace an oblique if missed touch () Absolute untranslatability is the silent articulation of the absent ideality of translation that nonetheless inspires translation figuration writing This absolute translatability is in and of the language itself (PATELL 2005 p 901)27

Ademais mesmo admitindo certa dificuldade especiacutefica inerente ao

Finnegans wake seja entre a traduccedilatildeo de nomes de personagens seja na dos

trovotildees de cem letras que povoam todo o livro mdash e que frequentemente satildeo

mantidos sem traduccedilatildeo mdash defende-se aqui uma postura necessaacuteria diante de

qualquer obra literaacuteria Pode-se evocar aqui um trecho de Jacques Derrida em

seu livro De la grammatologie discorrendo sobre as afirmaccedilotildees a respeito da

linguagem de Jean-Jacques Rousseau no texto ldquoGecircnese e escritura do Essai sur

lrsquooriginerdquo ldquoNatildeo haveraacute nem uma linha histoacuterica nem um quadro imoacutevel das

liacutenguas () As liacutenguas satildeo semeadasrdquo (DERRIDA 2011 p 263) Essa citaccedilatildeo

pode contribuir aqui como uma explicaccedilatildeo do dinamismo babeacutelico do proacuteprio

Wake que lida com liacutenguas sem delimitaccedilatildeo suficientemente inseridas em

fluidez de hibridizaccedilatildeo e fusatildeo sendo semeadas e assim portanto germinando

no feacutertil suporte terreno do texto Estende-se poreacutem a qualquer escritura que

contenha em si uma gagueira para falar com Gilles Deleuze ou qualquer texto

feito a partir de uma liacutengua contendo algum niacutevel de estranhamento diante da

proacutepria liacutengua atuando na sua fronteira Ainda que natildeo haja o trabalho de

confronto ou um fenocircmeno de clash entre diferentes idiomas uma liacutengua jamais

estaacute ausente de relaccedilotildees com outras liacutenguas que vieram antes depois que

ocuparam terras proacuteximas ou distantes Mesmo que natildeo sejam fundidos

explicitamente dezenas de diferentes idiomas como faz Joyce no Wake

nenhum texto eacute isolado em sua liacutengua

27 ldquoO que natildeo pode ser traduzido demanda futuras traduccedilotildees que perpetuamente se direcionam mas soacute podem rastrear um obliacutequo ou mesmo perdido toque () Intraduzibilidade absoluta eacute a articulaccedilatildeo silenciosa que inspira poreacutem traduccedilatildeo figuraccedilatildeo escrita Essa absoluta intraduzibilidade estaacute na e eacute da liacutengua ela mesmardquo

81

Tal postura tradutoacuteria jaacute seria suficiente para nos apartar do labor braccedilal

de buscar definiccedilotildees dicionarizadas como sinocircnimo de traduccedilatildeo Essa maneira

de ida ao texto se relaciona natildeo somente com o resultado que surgiraacute da

traduccedilatildeo mas comeccedila na forma de leitura do texto de partida na maneira como

eacute abordado pela primeira vez mdash natildeo somente pelo leitor que lecirc com intenccedilatildeo e

olhos de tradutor mas por qualquer outro Se o que se busca eacute a univocidade a

definiccedilatildeo a anaacutelise estrutural perfeita com blocos conceituais relacionados a

cada porccedilatildeo do texto e metaacuteforas delineadas a serem circuladas a babelizaccedilatildeo

do texto seraacute entatildeo deixada de lado A traduccedilatildeo pautada por uma simplificaccedilatildeo

ou univocidade semacircntica por reestruturaccedilatildeo deriva de uma leitura

hermenecircutica Se a gagueira do texto de partida eacute ignorada certamente natildeo

apareceraacute nem transpareceraacute qualquer tipo de gagueira no texto derivado

ldquotraduzidordquo a gagueira que habita a traduccedilatildeo eacute resultado da relaccedilatildeo primaacuteria mdash

no sentido de primeira mdash do tradutor com o texto que se propotildee a traduzir recriar

ou transcriar em uma postura de leitor disposto a vivecirc-lo em vez de entendecirc-lo

Disposto a ter uma experiecircncia com sua linguagem muito antes de tencionar

destrinchaacute-lo

CAPIacuteTULO III

LEITURA LUTO ELIPSE

83

Ao pensarmos em Finnegans wake seja tendo um conhecimento distante

fragmentado ou superficial a seu respeito seja apoacutes tentativas de aproximaccedilatildeo

da obra uma seacuterie de questotildees inevitavelmente nos consomem em verdade

continuam a aparecer mesmo durante a entrega a uma leitura profunda desse

texto impossiacutevel de se explorar de forma acelerada ou submetida a prazos

dados os obstaacuteculos que nos prendem por um tempo sempre maior que o

previsto em um paraacutegrafo em uma linha ou em uma soacute enigmaacutetica palavra Uma

leitura ceacutelere ainda que permita terminar de ler o livro integralmente eacute uma

leitura desperdiccedilada Em se tratando de Finnegans wake a concepccedilatildeo do livro

eacute clara quanto a mais valer o deter-se sobre uma linha que se mostre inebriante

do que o impaciente passar de paacuteginas insistentemente evocando uma leitura

fluida em velocidade que provavelmente teraacute sido forccedilada e pouco proveitosa

84

Essa escolha de Joyce aponta como sabemos e logicamente podemos

supor a estrutura circular do livro No entanto essa expressatildeo natildeo pode se

findar em si mesma sendo banalizada significando nada para aleacutem dela

Devemos antes de tudo questionar a esse respeito a fim de investigar o que

algumas anaacutelises afirmam como verdades que se apresentam integrais quando

de fato satildeo geradoras de problemas diversos Pergunta-se entatildeo quais as

implicaccedilotildees de uma estrutura circular Essa estrutura eacute verdadeiramente

possiacutevel em todos os aspectos que seriam forccedilosamente decorrentes de sua

concepccedilatildeo

Eacute oportuno relembrar aqui Umberto Eco citando Henri Pousseur que

indica caber ldquoao ouvinte colocar-se voluntariamente no centro de uma rede de

relaccedilotildees inexauriacuteveisrdquo (ECO 1989 p 49) natildeo havendo amarras que

determinem o caminho da leitura Uma espeacutecie de maior livre-arbiacutetrio se instala

necessariamente diante da falta de um caminho fechado como se em vez de

percorrer um corredor o leitor se encontrasse em um labirinto Esse labirinto eacute

claro foi projetado de modo que suas curvas e becos foram pelo menos ateacute

certo ponto tranquilamente previstos Com a multiplicidade de caminhos

oferecida nessa arquitetura no entanto em oposiccedilatildeo agrave unidade do caminho

linear haacute uma medida de imprevisibilidade por mais meticulosamente planejado

que esse labirinto seja a ordem de cada escolha do indiviacuteduo que vai percorrer

seu terreno

Outras referecircncias feitas por Umberto Eco se fazem necessaacuterias no que

concerne agrave porccedilatildeo fenomenoloacutegica de toda essa problemaacutetica Em uma leitura

desse tipo podemos considerar uma esquemaacutetica que envolva a consciecircncia do

sujeito-leitor diante da obra que aiacute eacute o que percebe como fenocircmeno mdash

consciecircncia que por ser instaacutevel isto eacute no sentido de uma consciecircncia natildeo-ideal

natildeo ser plenamente preacute-delimitada mas sim aberta a mutaccedilotildees imprevisiacuteveis e

que portanto natildeo nos permitiria calcular previamente todas as possibilidades de

interaccedilatildeo com a obra em um quadro finito e fechado Umberto Eco desenvolve

esse ponto com as seguintes observaccedilotildees

85

Assim um objeto natildeo somente apresenta diversas Abschattungen (ou perfis) mas satildeo possiacuteveis diversos pontos de vista sobre uma uacutenica Abschattung O objeto para ser definido deve ser transcendido em direccedilatildeo agrave seacuterie total da qual ele enquanto uma das possiacuteveis apariccedilotildees eacute membro Nesse sentido ao dualismo tradicional ser e parecer substitui-se uma bipolaridade de finito e infinito de tal modo que o infinito se potildee no proacuteprio coraccedilatildeo do finito () O problema da relaccedilatildeo do fenocircmeno com seu fundamento ontoloacutegico dentro de uma perspectiva de abertura perceptiva transforma-se no problema de relaccedilatildeo do fenocircmeno com a plurivalecircncia das percepccedilotildees que dele podemos ter (Ibid pp 58-59)

Dessa maneira no esteio dessas afirmaccedilotildees se noacutes tomarmos em

consideraccedilatildeo as possibilidades de que uma obra como Finnegans wake

demande natildeo somente uma apreciaccedilatildeo passiva decodificando primariamente o

texto mas acima de tudo uma interaccedilatildeo de caraacuteter ateacute mesmo mais executivo

se assim pudeacutessemos dizer seria necessaacuterio no miacutenimo considerar que essa

posiccedilatildeo ativa seraacute ocupada por um leitor que tem sua proacutepria bagagem subjetiva

Natildeo colocamos em questatildeo aqui uma bagagem de conhecimento objetivo

necessaacuterio para um entendimento de leitura nem nada nesse esteio ao

contraacuterio ao inveacutes de uma espeacutecie de elitizaccedilatildeo um acesso democraacutetico permite

que qualquer indiviacuteduo se ponha agrave fruiccedilatildeo da literatura da maneira como puder

acessaacute-la O que levamos em conta eacute o caraacuteter fenomenoloacutegico dessa interaccedilatildeo

observando que essa interaccedilatildeo com a obra teraacute algo de uacutenico para cada

consciecircncia que a perceba e que tome atitudes frente a ela Umberto Eco

continuando seu raciociacutenio a respeito desse fundamento ontoloacutegico na abertura

perceptiva cita excerto de Pheacutenomenologie de la perception de Maurice

Merleau-Ponty

A contradiccedilatildeo que encontramos entre a realidade do mundo e seu inacabamento eacute a proacutepria contradiccedilatildeo entre a ubiquidade da consciecircncia e seu engajar-se num campo de presenccedila () A consciecircncia que passa pelo lugar da clareza eacute ao contraacuterio o proacuteprio lugar do equiacutevoco () Eacute portanto essencial agrave coisa e ao mundo apresentarem-se como ldquoabertosrdquo prometer sempre ldquoalgo mais a verrdquo (MERLEAU-PONTY apud ECO 1989 p 59)

86

Estruturalmente poderiacuteamos entatildeo esquematizar trecircs possibilidades de

leitura do Finnegans wake todas coerentes com a consideraccedilatildeo de uma

estrutura circular A primeira eacute a despeito da assunccedilatildeo da circularidade a que

se pode fazer seguindo a ordem da numeraccedilatildeo dos fragmentos Essa eacute uma

leitura linear tanto quanto uma segunda possibilidade em que se acessaria a

obra de qualquer fragmento ignorando a determinaccedilatildeo do iniacutecio do livro com o

nuacutemero 1 e se seguiria a leitura a partir da paacutegina escolhida na ordem colocada

ndash escolhendo por exemplo o fragmento 429 para ser o primeiro e seguir a leitura

ateacute o de nuacutemero 628 em seguida do nuacutemero 1 ateacute o nuacutemero 428 Essas duas

possibilidades diferem radicalmente de uma terceira que seria a de ler os

fragmentos em qualquer ordem anarquizando completamente a obra e tirando

dela boa parte do sentido Ler Finnegans wake fora de ordem eacute o mesmo que ler

qualquer outro livro de que se tem conhecimento fora de ordem assim como eacute

o mesmo que percorrer um ciacuterculo dando passos adiante voltando seguindo

desviando eacute uma leitura anaacuterquica que extermina o que a obra tem a oferecer

como obra una e total

Excluindo entatildeo a terceira forma de leitura esclarecemos que os

fragmentos natildeo satildeo absolutamente isolados entre si e nem intercambiaacuteveis mdash

ao menos natildeo sem seacuterias consequecircncias para a coerecircncia da obra e para o

acesso a ela como foi concebida em sua integridade Os fragmentos guardam

tanta independecircncia entre si quanto as paacuteginas do romance mais tradicional o

fazem quase nenhuma Eacute possiacutevel ler uma paacutegina do Wake e dar-se por

satisfeito tanto quanto eacute possiacutevel ler uma paacutegina de qualquer livro e saber que

aquilo eacute apenas uma amostra um pedaccedilo uma parte separada do todo que lhe

confere coerecircncia como obra

As duas primeiras formas de leitura portanto parecem-nos similares No

entanto acessar uma obra a partir de uma paacutegina ou a partir de outra paacutegina

ainda que seja uma obra circular isto eacute sem iniacutecio meio e fim definidos resulta

em duas leituras absolutamente diferentes No entanto aqui tem-se a diferenccedila

crucial entre o Wake e qualquer outro livro uma estrutura circular implica

necessariamente na diluiccedilatildeo do segmento temporal fechado isto eacute numa

abertura em que qualquer paacutegina do livro pode ser parte de um iniacutecio de um

87

meio ou de um fim Afinal o livro pode ser livre dessas divisotildees em sua estrutura

mas o tempo da leitura jamais seraacute Sempre temos de ler em alguma ordem e

algum trecho inicia esse processo algum se faz no meio e algum trecho conclui

nosso percurso como leitores Caso pensemos portanto em multiplicar as

possibilidades de acesso ao Finnegans wake ateacute que sejam consideradas todas

as possibilidades de leitura teriacuteamos de lidar com nada menos que seiscentas

e vinte e oito formas de acesso agrave obra no miacutenimo

Mostra-se impossiacutevel eacute evidente experimentar todas essas formas de

acesso Considerando que houvesse o tempo necessaacuterio deveriacuteamos levar em

conta ainda a contaminaccedilatildeo inevitaacutevel no processo isto eacute a certo ponto jaacute se

saberia o que esperar e a mudanccedila na ordem natildeo teria o mesmo efeito que teria

se acessada em uma primeira leitura Uma vez lido em uma certa ordem o livro

jamais seraacute redescoberto atraveacutes de outra ao menos natildeo como se nunca tivesse

sido lindo anteriormente qualquer que seja a nova ordem

O que nos eacute possiacutevel questionar eacute ateacute que ponto essa circularidade existe

de fato tentando expor natildeo apenas a forma como ela eacute concebida e a partir de

que modelos mas tambeacutem as consequecircncias de seu uso e se a circularidade se

daacute apenas idealmente ou se eacute de fato executada isto eacute temos de investigar se

eacute perceptiacutevel e constataacutevel considerando o acesso ao livro por qualquer uma de

suas paacuteginas O que origina a elaboraccedilatildeo dessa estrutura em Finnegans wake

eacute como se sabe ldquoVicorsquos recurrent cycle at once repetitious and various mdash like

the Wake itselfrdquo e Tindall nos chama a atenccedilatildeo ainda para o fato de que ldquoJoycersquos

hieroglyph for the Wake and its title is a square its sides no doubt the quadrants

a little squashed of Vicorsquos wheelrdquo28 (TINDALL 1969 p 10) Mesmo que a forma

geomeacutetrica escolhida por Joyce em seus desenhos na elaboraccedilatildeo do Wake

tenha sido natildeo o ciacuterculo mas o quadrado isso se explica pela escolha por quatro

partes e ainda assim se relaciona agrave circularidade viconiana Nesse caso a forma

geomeacutetrica ter veacutertices ou natildeo eacute irrelevante mdash Joyce chega a preferir um cubo

28 ldquoO ciclo recorrente de Vico concomitantemente repetitivo e variado ndash como o proacuteprio Wakerdquo e ldquoo hieroacuteglifo de Joyce para o Wake e seu tiacutetulo eacute um quadrado ainda que seus lados sem duacutevidas satildeo os quadrantes um pouco distorcidos da da roda de Vicordquo

88

em alguns momentos mdash uma vez que se poderia observar uma espeacutecie de

ldquocircularidaderdquo tambeacutem nessas outras formas ao circundaacute-las especialmente

enfatizando um periacutemetro percorrido em repeticcedilatildeo ciacuteclica que retorna a um

ponto

A ideia desse retorno a um ponto eacute outro problema basilar derivado da

aceitaccedilatildeo do princiacutepio da circularidade de Finnegans wake Deve-se lembrar que

nem o ricorso de Vico nem a circularidade da obra de Joyce resultam no retorno

ao mesmo ponto pois em ambos os casos o ponto original eacute irrecuperaacutevel

Depois de ler todas as sentenccedilas de Finnegans wake a continuaccedilatildeo da uacuteltima

frase (dizendo aqui ldquouacuteltimardquo eacute claro deixando de lado a relativizaccedilatildeo da ordem

que acabamos de engendrar e tomando portanto a ordem linear numeacuterica)

retorna ao mesmo ponto se pensarmos que retorna agrave paacutegina 1 essa paacutegina no

entanto jaacute natildeo eacute mais a mesma que se tinha quando se iniciou a leitura Assim

se daacute tambeacutem com o ciclo das idades proposto por Vico que serviu como

modelo para o Wake apoacutes o fim da Idade dos Deuses dos Heroacuteis e dos Homens

haacute um ricorso agrave Idade dos Deuses mdash no entanto eacute outra Idade dos Deuses que

estaacute se formando com aspectos gerais que a definem mas que natildeo estaacute

retrocedendo a uma mera repeticcedilatildeo Natildeo se tem uma maacutequina do tempo que vai

e vem atravessando as mesmas fases mas uma evoluccedilatildeo que evoca

circularidades heterogecircneas Uma figura recorrente eacute a do eco que remete ao

movimento de repeticcedilatildeo ciacuteclica e eacute executado tanto na sonoridade do proacuteprio

texto com rimas e aliteraccedilotildeesassonacircncias quanto tambeacutem por vezes citado

explicitamente ldquoThe echo is where in the back of the wodes callhim forthrdquo (FW

1263)29 O formato circular que natildeo supotildee repeticcedilatildeo eacute perceptiacutevel em outras

obras de Joyce Em Retrato Stephen frequentemente se apresenta preso em

linhas de raciociacutenio que parecem recair sobre si mesmas ou sobre um ponto

originaacuterio mas que engendram ainda assim deslocamento Mesmo em

Ulysses haacute evidentes formas de circularidade a comeccedilar pela jornada diaacuteria do

protagonista Leopold Bloom mas que natildeo insinua dias sempre iguais ateacute a

estrutura do monoacutelogo de Molly que reitera termos agrave medida que avanccedila

29 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoO eco eacute onde no fundo da florode que venhardquo

89

Apesar de a estruturaccedilatildeo circular ser aceita a priori por William York

Tindall como a base de Finnegans wake o estudioso estadunidense natildeo parece

considerar de fato as implicaccedilotildees desse ciacuterculo tomando apenas as suas

causas ou origens mas natildeo as consequecircncias de afirmaccedilatildeo dessa estrutura

Tindall afirma que o primeiro capiacutetulo eacute visivelmente uma introduccedilatildeo geral e o

uacuteltimo uma conclusatildeo com o diferencial de que abarca ainda a funccedilatildeo de aticcedilar

o leitor para ao retorno agrave primeira paacutegina Vemos entatildeo o problema loacutegico em

sua afirmaccedilatildeo se o trecho ldquofinalrdquo de Wake serve para levar o leitor ao fragmento

de nuacutemero 1 temos um trecho incumbido de algo que se parece com uma

espeacutecie de introduccedilatildeo a esse retorno ou que certamente tem alguma funccedilatildeo

muito distinta da de concluir York Tindall provavelmente entrevendo a

incoerecircncia no que afirma explica ldquoA general conclusion [the last chapter] and

a general introduction [the first one] parallel in function demand parallel

methodsrdquo30 (TINDALL 1969 p 305)

No entanto o que Tindall afirma haver de similar entre o primeiro e o

uacuteltimo capiacutetulos existe por todo o livro Haacute sequecircncias de retornos mdash no capiacutetulo

4 depois no oitavo e assim por diante O mesmo vale para as trecircs idades que

formam com o ricorso os quatro lados desse percurso que natildeo se repetem

mas reaparecem distintos ainda que apareccedilam em ordem sempre esperada isto

eacute estejam alocados em trechos previsiacuteveis devidamente selecionados para eles

dentro da grande ordem de todas as fases O acesso entatildeo a depender de que

fragmento serviraacute como o iniacutecio pode se dar em um fragmento elaborado nos

moldes da Idade dos Deuses dos Heroacuteis ou dos Homens ou ainda do ricorso

mas seraacute sucedido de uma ordem invariaacutevel Que haveraacute diferenccedilas entre uma

leitura que se inicie em um capiacutetulo escrito de uma forma dentro de certa

estrutura basilar e uma que se inicie por outro que tenha outra estrutura natildeo

haacute duacutevidas se a leitura do todo do livro for possiacutevel de todos os fragmentos

poreacutem a circularidade estaraacute comprovada O livro que se lecirc entatildeo tem de ser o

mesmo somente acessado em outra ordem e portanto a partir de uma

30 ldquoUma conclusatildeo geral [o uacuteltimo capiacutetulo] e uma introduccedilatildeo geral [o primeiro] paralelas em funccedilatildeo demandam paralelismo em meacutetodordquo

90

sequecircncia distinta de leitura mas que permita concluir a leitura assim como a

tentativa que comeccedila do fragmento 1 tambeacutem propicia

A figura espectral se mostra deveras pertinente Wake se diferencia

tambeacutem pela formaccedilatildeo de uma polifonia especial que nos confunde natildeo apenas

em termos de natildeo saber que personagem estaacute falando agora mas ainda de

trazer as vozes dos mortos para se misturarem agraves dos vivos sem que se

intercalem mas efetivamente convivam mdash o que tambeacutem exige uma

compreensatildeo temporal absolutamente uacutenica em que em meio ainda a

possibilidades de porvir natildeo haacute separaccedilatildeo espaccedilo-temporal entre um suposto

agora e um suposto antes No livro James Joyce and the difference of language

Laurent Milesi diz

This evolution is thus inseparable from an increasing dissolution or ar leat problematization of neat entities like character and voice as well as the boundaries between them and consequently from the emergence of more polyphonic voices which in the lsquopollyloguersquo (FW 4709) or lsquodrama parapolylogicrsquo (FW 4745) of Finnegans wake will ultimately combine with shifting enunciative poles and a pliable linguistic medium to create erring discursive effects ascribable to a lsquosidersquo or lsquorolersquo ina many-faceted lsquocharacter complexrsquo (MILESI 2003 p 91)31

A estrutura circular e a referecircncia a figuras de diversos momentos

histoacutericos bem como a livros como o Livro dos mortos egiacutepcio ou o Livro de Kells

irlandecircs unem-se na dissoluccedilatildeo de fronteiras temporais Finnegans wake

certamente natildeo tem nem poderia pretender ter um momento (mesmo externo

histoacuterico) definido nem mesmo um tempo psicoloacutegico definido mdash que assumiria

a perspectiva da consciecircncia de uma personagem como sobressalente ditando

voz perspectiva contexto

31 ldquoEssa evoluccedilatildeo eacute entatildeo inseparaacutevel da crescente dissoluccedilatildeo ou ao menos problematizaccedilatildeo de entidades precisas como personagem e voz bem como das fronteiras entre elas e consequentemente da emergecircncia de mais vozes polifocircnicas que no lsquopollyloguersquo (FW 4709 ou lsquodrama parapolylogicrsquo (FW 4745) de Finnegans wake vatildeo por fim combinar com poacutelos enunciativos instaacuteveis e um meio linguiacutestico elaacutestico para criar efeitos discursivos errantes atribuiacuteveis a uma lsquofronteirarsquo ou lsquopapelrsquo em um mil-faces lsquocomplexo de personagemrsquordquo

91

Faz-se espectro ainda o todo da obra literaacuteria na medida em que natildeo se

sabe como ela seraacute executada pelo leitor que se depara com ela Como uma

partitura sem indicaccedilotildees precisas trazendo meras sugestotildees e portanto

inuacutemeras possibilidades de trocas Wake precisa ser executado mas pode secirc-lo

de diversas maneiras em diversas ordens Assim natildeo se tem uma imagem

niacutetida do que eacute o Finnegans wake mas primordialmente sabe-se o que ele pode

vir a ser em mais de uma possibilidade

A isso como jaacute foi exposto estaacute ligada uma temporalidade que poderaacute

operar diferentemente em cada execuccedilatildeo da partitura wakiana Uma oposiccedilatildeo

entre o tempo linear e o tempo ciacuteclico pode mostrar como a estrutura basilar do

Wake que se afasta da linearidade possibilita essa diversidade e o que isso

pode significar na tessitura textual e para uma leitura atenta ao escritural do

texto Explicando a diferenccedila entre tempo ciacuteclico e tempo linear o filoacutesofo Karl

Jaspers (1883-1969) diz

O ciclo do tempo visto como recorrecircncia eacute a imortalidade do que em tal ciclo se produz () A todo instante estaacute ligando o fim ao comeccedilo Vive no ciclo do eterno retorno Pode ocorrer que a distacircncia a separar o fim (morte) do comeccedilo (novo nascimento) seja imensa mas reduz-se a nada se a vida eacute revivida de maneira infinitamente repetitiva fazendo-se em tal sentido imortal () Inteiramente diverso eacute o que se passa com o tempo linear Tudo que eacute temporal eacute levado pelo tempo linear a um fim irremediaacutevel (JASPERS 2011 p 146)

A estrutura circular de Finnegans wake faz mais do que nos prender ao

livro-sem-fim traduz uma possibilidade de existecircncia fora do andamento do

tempo na pura temporalidade isto eacute naquilo que natildeo ultrapassa um presente

mas permanece nele Obriga-nos a estar no presente da leitura sem nos

desviarmos e sem conclusatildeo relendo e relendo e relendo Joyce nos obriga

mantendo-nos na atividade da leitura que nunca termina a cumprir a exigecircncia

que faz ao seu leitor Instalando o texto num eterno retorno transforma-se nessa

afirmaccedilatildeo da vida em que a morte jaacute natildeo ocupa o espaccedilo do esquecimento a

voz dos mortos ecoa entre os vivos sua presenccedila faz-se material a morte de

certa maneira aiacute jaacute natildeo existe

92

O tempo absoluto da concepccedilatildeo ciacuteclica que natildeo pode ser transposto se

opotildee ao tempo linear em que haacute resoluccedilatildeo transposiccedilatildeo um acontecimento

ultrapassa o outro um momento sucede o seguinte O apagamento do que fica

no passado soacute pode ser modificado pela soluccedilatildeo de decidir o que se grava na

histoacuteria Mesmo assim natildeo se recupera nada por inteiro sendo impossiacutevel uma

volta ao passado a memoacuteria evoca as reminiscecircncias que ocupam o tempo

presente apenas como resto incorpoacutereo como espectro O tempo absoluto se

faz de maneira inteiramente distinta Nas palavras de Jaspers nele ldquofaz-se aquilo

que se repete infinitamente mdash e permanece temporal () Tempo linear e tempo

ciacuteclico satildeo enigmas incompatiacuteveis () O tempo ciacuteclico torna possiacutevel a ideia do

lsquouma vez maisrsquo por meio do eterno retornordquo (Ibid p 147)

O tempo ciacuteclico do retorno tambeacutem se faz em espectros o retorno eacute

sempre o ldquouma vez maisrdquo poreacutem sempre singular jamais uma repeticcedilatildeo idecircntica

senatildeo recairia em uma simples hipoteacutetica volta ao passado do tempo

cronoloacutegico como uma espeacutecie de maacutequina do tempo construiacuteda no tempo

linear O retorno do tempo ciacuteclico natildeo se faz dessa maneira eacute um novo

acontecimento mas que se relaciona com algo jaacute ocorrido Se lermos o Wake

circularmente isto eacute repetidamente obedecendo agrave continuaccedilatildeo do uacuteltimo

fragmento no primeiro natildeo estaremos rebobinando nosso tempo mas tatildeo

somente fazendo uma nova leitura de uma mesma coisa um mesmo texto que

natildeo se alterou enquanto natildeo estaacutevamos olhando Haacute assim uma diferenccedila um

assombro do que se leu antes percorrendo o momento da releitura O tempo

ciacuteclico se faz entatildeo no seu retorno eterno de fantasmas

A palavra retorno no portuguecircs talvez natildeo seja tatildeo adequada justamente

por apagar essa diferenccedila ldquoretornarrdquo pressupotildee que se foi a algum lugar ao qual

se estaacute voltando indica entatildeo mais imediatamente o movimento do tempo

linear de maneira que se imagine uma volta na linha do tempo ao tempo

passado estanque em seu lugar No entanto ricorso termo de Giambattista Vico

se relaciona a curso agravequilo que flui parecendo entatildeo mais adequado agrave ideia do

tempo ciacuteclico em que as repeticcedilotildees satildeo novos acontecimentos Justifica-se aqui

a expressatildeo criada para intitular este trabalho que conjuga ldquofluirrdquo e ldquoricorsordquo para

explicitar esse caraacuteter no termo italiano de Vico

93

A maneira como esse engendramento ciacuteclico foi relido na filosofia

moderna com o eterno retorno de Friedrich Nietzsche indica ainda a

positividade dessa estrutura Como o fim de Ulysses eacute o ldquosimrdquo mdash e Joyce queria

que assim ele se mantivesse mesmo traduzido como a correspondecircncia a

respeito da traduccedilatildeo para o francecircs comprova em que Joyce pede para que o

fim seja tatildeo somente a palavra ldquosimrdquo mdash o ciclo coacutesmico reafirma o sim para o

mundo o cada vez novamente o novo deacutejagrave Eacute a accedilatildeo que natildeo se direciona a

uma finalizaccedilatildeo natildeo tende ao teacutermino mas agrave atividade plena contiacutenua ldquoO

mundo afirma-se por si tambeacutem na sua uniformidade que permanece a mesma

no decurso dos anos bendiz-se por si mesmo porque eacute aquilo que deve voltar

eternamente porque eacute o devir que natildeo conhece saciedade teacutedio nem fadigardquo

(Wille zur Macht ed 1901 sect 385)

A entrada na narrativa de Finnegans wake isto eacute o contato inaugural do

leitor com os acontecimentos narrativos eacute anunciada por uma queda ldquoThe fall bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhoun

awnskawntoohoohoordenenthurnukldquo Queda reverberante com repeticcedilotildees

silaacutebicas misturadas e a formaccedilatildeo desse conjunto de fonemas que natildeo eacute verbete

em nenhum idioma mas comporta idiomas diversos natildeo eacute um ponto de partida

da narrativa ndash natildeo haacute um primeiro acontecimento ou accedilatildeo mdash mas a queda na

narrativa que jaacute estaacute em curso como uma queda drsquoaacutegua anunciada no riverrun

a palavra de abertura da obra Assim a narrativa inicia-se jaacute iniciada

Apoacutes o riverrun diz-se ldquopast Eve and Adamrsquosrdquo Pode-se ler tendo em

mente que estamos passando em frente a Eve and Adamrsquos catedral em Dublin

ou que aquilo que seraacute narrado se situa temporalmente apoacutes Adatildeo e Eva ou

mesmo no passado do casal primaacuterio em tempos inefaacuteveis O tempo eacute fluido

talvez aparentemente caoacutetico mas apenas repensado reimaginado mdash

mudanccedilas de paracircmetros que pedem uma revisatildeo radical Isso tambeacutem

podemos dissecar no tiacutetulo que comporta o fim (fin no francecircs e finis no latim)

e a sua repeticcedilatildeo (-egan again mdash o proacuteprio eterno retorno) ou o fim de encontro

ao despertar (fin-egans (la) fin against + (the) Wake relacionando tambeacutem ao

nome do personagem Earwicker que em alematildeo eacute erwecker ldquoaquele que

despertardquo) ou ainda contra outro fim o veloacuterio outra traduccedilatildeo para wake

94

substantivo Como aponta Donaldo Schuumller ldquoA circularidade viconiana gira no

geral e nos detalhesrdquo (SCHUumlLER 2004 p 17)

Para William York Tindall o tempo eacute a mais importante mateacuteria desse

ldquoensaio sobre o homemrdquo de James Joyce ldquoRise and fall and rise again sleeping

and waking death and ressurrection sin and redemption conflict and

appeasement and above all time itself mdash saecula saeculorum mdash are the matter

of Joycersquos essay on manrdquo32 (TINDALL 1969 p 4) Tambeacutem caracteriza a obra

como a comeacutedia humana de Joyce ldquoNot only his essay on man the Wake is his

human comedyrdquo33 (Ibid p 7) Ao final de sua introduccedilatildeo Tindall afirma que seu

livro natildeo visa a uma apreensatildeo completa nem a ultimatos sobre a obra mas sim

a ser um suplemento dos estudos preacutevios ldquoAfter all what authority on the Wake

knows half of it Which half is the critical questionrdquo34 (Ibid pp 25-26)

O tempo em Finnegans wake destacado por Tindall cumpre papel vital

em toda a organizaccedilatildeo da obra aleacutem da estrutura circular em quatro partes que

Joyce emprega livremente das Idades do filoacutesofo Giambattista Vico mdash assim

como a Odisseia de Homero serve de base para Ulysses o Wake tem

correspondente nesse uacuteltimo caso no entanto Joyce parte de fonte filosoacutefica

em vez de literaacuteria Ainda no iniacutecio quando Harriet Weaver pareceu natildeo entender

e natildeo gostar do que leu do Work in progress Joyce ldquoinsistiu com ela para que

lesse a Scienza Nuova de Vico como com o Ulisses insistira em que lesse a

Odisseiardquo (ELLMANN 1989 p 695) Natildeo eacute soacute no cerne estrutural poreacutem que

podemos perceber a especificidade do tempo de um romancepoema plotless mdash

que se natildeo possui enredo natildeo possui portanto linha cronoloacutegica expliacutecita

Tindall pretende e tende a extrair o plot concatenando as cenas sempre com

uma possiacutevel visatildeo de causa e consequecircncia pontuando as personagens

nomeando-as e definindo-as Eventualmente sua tentativa recai contudo na

incontornaacutevel indefiniccedilatildeo

32 ldquoAscender e cair e ascender novamente dormir e despertar morte e ressureiccedilatildeo pecado e redenccedilatildeo conflito e conciliaccedilatildeo e acima de tudo o proacuteprio tempo mdash saecula saeculorum mdash satildeo a mateacuteria do ensaio de Joyce sobre o homemrdquo 33 ldquoNatildeo apenas seu ensaio sobre o ser humano o Wake eacute sua comeacutedia humanardquo 34 ldquoAfinal de contas que autoridade no Wake sabe metade do que se tem a saber sobre ele Qual metade eacute a pergunta fundamentalrdquo

95

Percebemos a dificuldade no exemplo do segundo capiacutetulo que eacute um dos

mais claros em termos de composiccedilatildeo de cena ou ao menos quanto ao

desenrolar das accedilotildees e seus agentes o que Tindall atribui ao fato de ter sido um

dos primeiros que Joyce escreveu ldquoMaybe he did not have time going over it to

complicate it according to his habitrdquo35 (Ibid p 57) Quanto a tempo e espaccedilo

contudo permanecemos na pluralidade mdash ou mais pertinente dizer na

ubiquidade Tomemos um entendimento primaacuterio da cena com o qual

poderiacuteamos depreender o enredo geral temos Earwicker (a essa altura jaacute

tivemos esclarecimentos sobre sua alcunha) no Phoenix Park em Dublin

surpreendido por um jovem que lhe pergunta as horas O garoto portava um

cilindro o que pode justificar que Earwicker (aqui lembramos Wecker alematildeo

para despertador ndash aquilo que daacute as horas) se sentiu ameaccedilado Defende-se

demonstrando culpa e natildeo responde com a precisatildeo que a pergunta

demandaria O deslocamento no tempo e no espaccedilo poreacutem ocorre em diversos

pontos no paralelo de Earwicker com Adatildeo na culpa em comum por terem

cometido algum pecado mdash Adatildeo no Jardim do Eacuteden nosso protagonista no

parque em questatildeo

They tell the story (an amalgam as absorbing as calzium chloereydes and hydrophobe sponges could make it) how one happygogusty Ides-of-April morning (the anniversary as it fell out of his first assumption of his mirthday suit and rights in appurtenance to the confusioning of human races) ages and ages after the alleged misdemeanour when the tried friend of all creation tigerwood roadstaff to his stay was billowing across the wide expanse o four greatest park in his caoutchouc kepi and great belt and hideinsacks and his blaufunx fustian and ironsides jackboots and Bhagafat gaiters and his rubberised inverness he met a cad with a pipe (FW 351-11)36

35 ldquoTalvez ele natildeo tenha tido tempo ao percorrecirc-lo [o texto] de complicaacute-lo como de haacutebitordquo 36 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2000) ldquoContam a estoacuteria (uma amaacutelgama tatildeo absorvente quanto caacutelcio clorado e esponja hidroacutefoba poderiam performaacute-la) como numa letagostosa idos-de-abril manhatilde (o aniversaacuterio como se soube da primeira assunccedilatildeo do nascimento costumes e direitos em pertinecircncia agrave confusatildeo das raccedilas humanas) idades e idades apoacutes a alegada delonga quando o amigo comprovado de toda criaccedilatildeo begala de pau-marfim para seu equiliacutebrio ondulava atraveacutes do vasto territoacuterio do nosso mais esplecircndido parque com seu kepi caucho e imenso cinturatildeo cota de ferro humor faacutesutico botas de cavalaria inglesa espirituralidade hindu e c apa de chuva ele encontrou um cadete com um cilindrordquo

96

Tindall abre a possibilidade de a cena se ampliar e se desdobrar no

espaccedilo e no tempo relacionando a cena ao pecado original ldquoMaybe it is any sin

of every man or every sin of any manrdquo37 (TINDALL 1969 p58) O que Earwicker

fez de errado no entanto permanece em suspenso para o leitor em meio aos

tantos boatos que se reproduzem aparentemente de maneira incessante

Aparecem ainda outros paralelos espaccedilo-temporais como aparece na

expressatildeo ldquoIdes-of-April morningrdquo que lembra os Idos de Marccedilo (o dia 15 desse

mecircs data do assassinato de Juacutelio Ceacutesar) O jovem vai embora e os rumores se

desdobram cada vez mais fazendo de Earwicker desde um homem que se sente

abstratamente culpado ateacute um reacuteu efetivo de um crime indefinido

Chamar essas referecircncias de ldquoparalelosrdquo no entanto como faz Tindall

pode ser uma forma de suprimir a funccedilatildeo delas na amaacutelgama (an amalgam as

absorbing as calzium chloereydes and hydrophobe sponges could make it) do

texto Uma cena simples como a supracitada que parece poder ser posta com

clareza e ter seus elementos narrativos devidamente pontuados desdobra-se

em ambiguidades e referecircncias a outros tempos e espaccedilos que natildeo satildeo externos

e comparados a ela mas que a compotildeem tanto quanto os fatos que

apresentamos como primaacuterios o culpado Earwicker ou HCE estaacute no Phoenix

Park mas ele eacute tambeacutem Adatildeo no Eacuteden (e natildeo estaacute no primeiro parque assim

como Adatildeo esteve um dia no Eacuteden) Estaacute em Roma e eacute tambeacutem viacutetima de

conspiraccedilatildeo assassinado por Brutus Finnegans wake trata como afirma

Tindall da humanidade do universal mas em acontecimentos vividos por

indiviacuteduos em suas realidades microscoacutepicas como um enredo que se desfaz

em meio a numerosas e esparsas superposiccedilotildees assim se forma a amaacutelgama

wakiana

Apoacutes ser julgado Earwicker eacute preso e posteriormente morto Tindall

contrariamente a suas pretensotildees de sumarizar o enredo e determinar a

ordenaccedilatildeo dos acontecimentos novamente natildeo pode evitar alguma hesitaccedilatildeo

ao tentar descrever os ocorridos do capiacutetulo IV ldquoEarwicker dead Anyhow they

took the liberty of burying himrdquo (Ibid p 85) Assim notamos que por mais que

37 Traduccedilatildeo nossa ldquoTalvez seja qualquer pecado de todo homem ou todo pecado de qualquer homemrdquo

97

se tente concatenar as cenas natildeo se pode fazecirc-lo sem interrogaccedilotildees

parecircnteses bifurcaccedilotildees multiplicaccedilotildees A duacutevida quanto agrave morte da

personagem vem pelo motivo de que simplesmente natildeo temos a morte factual

mdash como ocorreu onde se foi homiciacutedio mdash assim como o delito de Earwicker se

apaga ao se multiplicar satildeo tantas as conjecturas que nem se pode mais lidar

com o fato Aleacutem disso Earwicker continua presente na narrativa mesmo finado

Natildeo temos o acontecimento concreto de sua morte seguido pelo relato de como

seguiram as outras personagens em vez disso temos referecircncias aos que

compareceram ou natildeo a seu enterro agrave tumba ao processo de sepultamento no

rio e outras evidecircncias de que ele estaria morto tudo enquanto o morto

permanece ali natildeo como assombraccedilatildeo mas duplicado entre os presentes e os

ausentes

Com essa duacutevida entatildeo a questatildeo do tempo novamente se coloca como

pode haver a vivecircncia da morte tatildeo essencialmente temporal mdash marco

cronoloacutegico do fim vivecircncia humana de uma temporalidade do luto mdash sem sua

determinaccedilatildeo A hesitaccedilatildeo na afirmaccedilatildeo da morte da personagem anula que se

possa viver sua ausecircncia e portanto o luto Isso engendra natildeo somente mais

uma quebra na narrativa mas ainda uma dinacircmica proacutepria do processo de perda

Assim como observamos na cena do Phoenix Park o que ocorre natildeo eacute uma

divisatildeo do enredo em duas realidades paralelas ou dois enredos paralelos em

que um contempla a morte e o outro lida com a vida mas de uma soacute situaccedilatildeo

Se a morte natildeo eacute fato pontual fechado uniacutessono do enredo o trabalho

do luto natildeo teraacute uma origem propriamente estabelecida mdash ou tendo como

origem uma perda que se fez em presenccedila e em ausecircncia simultaneamente teraacute

uma outra formaccedilatildeo e dinacircmica A narrativa entatildeo natildeo teraacute suas implicaccedilotildees

de consequecircncia uma vez que a causa natildeo eacute certa Se tomarmos para pensar

o luto a exposiccedilatildeo de Sigmund Freud em Trauer und Melancholie de 1915 em

que o luto e a melancolia satildeo comparados a partir do ldquoquadro geral desses dois

estadosrdquo (FREUD 2010 p 128) de forma que ambos os quadros se aproximam

em todas as descriccedilotildees cliacutenicas e se diferenciam apenas pela afetaccedilatildeo da

autoestima teremos a seguinte definiccedilatildeo do luto

98

Via de regra luto eacute a reaccedilatildeo agrave perda de uma pessoa amada ou de uma abstraccedilatildeo que ocupa seu lugar como paacutetria liberdade um ideal etc () Confiamos que seraacute superado apoacutes certo tempo e achamos que perturbaacute-lo eacute inapropriado ateacute mesmo prejudicial () O luto profundo a reaccedilatildeo agrave perda de um ente amado comporta o mesmo doloroso abatimento a perda de interesse pelo mundo externo ndash na medida em que natildeo lembra o falecido ndash a perda da capacidade de eleger um novo objeto de amor ndash o que significaria substituir o pranteado ndash o afastamento de toda atividade que natildeo se ligue agrave memoacuteria do falecido (Ibid pp 128-129)

Ora se a personagem eacute enterrada mas natildeo eacute de todo perdida natildeo se vai

por completo do plano onde estatildeo as personagens vivas como estabelecer a

perda que se tem como premissa imprescindiacutevel do luto A perda engendra o

que Freud chama de trabalho do luto toda a libido relacionada ao objeto perdido

precisa ser redirecionada mas a resistecircncia ao abandono dessa libido eacute

desconfortaacutevel podendo gerar ateacute distanciamento da realidade mdash muito dura

para se suportar mdash e psicose de desejo Todo esse processo poreacutem tem um

resultado ldquoMas o fato eacute que apoacutes a consumaccedilatildeo do luto o Eu fica novamente

livre e desimpedidordquo (Ibid p 130)

De toda a explanaccedilatildeo de Freud a respeito do luto natildeo podemos deixar de

concluir que seu tempo mdash e ao que tudo indica tambeacutem o da melancolia mdash eacute

alterado Com a perda desestabilizadora o indiviacuteduo se vecirc imerso na

necessidade de uma mudanccedila de paracircmetros para seu conforto habitual na

busca pela substituiccedilatildeo do ente perdido e no caminho de redirecionamento da

libido cuja origem se perdeu Assim seria seguro dizer que o trabalho do luto

racionalizado por Freud pressupotildee um tempo de luto diferenciado do tempo

normal da vida No Wake o texto ressoa esse trabalho de luto e seu tempo

proacuteprio o remordimento da morte e do morto em meio a descriccedilotildees que abarcam

homenagens seu enterro e seu descanso

Any number of conservative public bodies through a number of select and other committees having power to add to their number before voting themselves and himself town port and garrison by a fit and proper resolution following a koorts order of the groundwet once for all out of plotty existence as a forescut so you maateskippey might to you cuttirunner on a new pack of klerds made him while his body still persisted their present of a protem grave in Moyelta of the best Lough

99

Neagh pattern then as much in demand among misonesans as the Isle of Man today among limniphobes Wacht even It was in a fairly fishy kettlekerry after the Fiannarsquos foreman had taken his handful enriched with ancient woods and dear dutchy deep-linns mid which were na old knoll and a troutbeck vainyvain of her osiery and a chatty sally with any Wilt or Walt who would ongle her as Izaak did to the tickle of his rod and watch her waters of her sillying waters of and there now brown peater arripple (may their guilt lightly over his somnolulutent form) Whoforyou lies his last by the wrath of Bog like the erst curst Hun in the bed of his treubleu Donawhu (FW 7614)38

Poderiacuteamos compreender muito a respeito dessa morte no Wake partindo

apenas do fato de que o trecho do capiacutetulo IV em que se anuncia o enterro

subaquaacutetico da personagem Humphrey Chimpden Earwicker parodia os textos

egiacutepcios que chamamos de forma abrangente de Livro dos Mortos coletivo do

que era registrado sobre as tumbas para auxiliar os defuntos em seus caminhos

poacutes-morte sem distinccedilatildeo de nobreza mas que envolviam julgamentos morais

de merecimento e davam diversas orientaccedilotildees para a superaccedilatildeo de obstaacuteculos

que porventura surgiriam para o morto nessa transiccedilatildeo Esses escritos eram

chamados pelos egiacutepcios de ldquotextos para irvoltar agrave luzrdquo o que jaacute nos indica que

haveria um caminho a ser traccedilado por Humphrey de maneira que a sua morte

experiecircncia mais radical de finalizaccedilatildeo natildeo seria para ele o ponto final do

percurso Em vez de seguir para ldquoo aleacutemrdquo ou para o mundo dos mortos muito ao

contraacuterio o morto submerso segue para a luz que haacute na superfiacutecie em um

caminho de volta agrave vida A passagem natildeo eacute encarada como uma superaccedilatildeo de

barreiras ou uma peripeacutecia narrativa surpreendente ao inveacutes disso tem-se na

verdades quase uma ausecircncia de barreiras entre os dois aspectos da existecircncia

38 Como traduziu Donaldo Schuumller (2000) ldquoQualquer nuacutemero de corpos puacuteblicos conservadores atraveacutes de um nuacutemero de seletos de outros comitecircs com poder de adicionar a seu nuacutemero antes de votar em si mesmos e nele urbe porto e guarniccedilatildeo por adequada e proacutepria resoluccedilatildeo seguindo uma ordem judicial da constituiccedilatildeo uma vez por todas fora de existecircncia narrativa como um pitoco assim podes cortar tudo o que te incomoda num novo baralho de panos quanto a ele enquanto seu corpo ainda persistiu presente deles um sepulcro pro tempore na planiacutecie de Moryelta do melhor modelo dos defuntos sob o Lough Neagh entatildeo tatildeo em demanda entre os misoneacutesios quanto a Ilha de Man agora entre os limnoacutefobos Un momentito Foi em fabulosa caccedila piscosa depois ki Finn proacute-homem tinharrancado um punhado de turfa enriquecido com bosques antigos e bem postos pantanos dos baixos paiacuteses nos quais havia picos e bicos de truta vivamente vaidosos de suas ramadas e dos salgueiros no bleblablaacute de Blaacute a Bleacute que iria fisga-la como fez Izaak para excitar sua raiz e contemplar suas aacuteguas de suas indefesas aacuteguas e agora os brunos arrepios de sua pele pedrosa (queira seu vestido vestir levemente sua sonululante forma) Queporti jaz no seu derradeiro jazigo pela rabia de Dioacutes como o remoto reacuteprobo Huno no leito azul de seu Tunobiasalrdquo

100

No capiacutetulo referente ao enterro e posterior ressurreiccedilatildeo de Humphrey

Chimpden Earwicker as intrusotildees em referecircncias ao tempo e a temporalidade

satildeo numerosas

Best This wastohavebeen underground heaven or molersquos paradise which is probably also an inversion of a phallopharos (FW 7633-34)39

all differing as clocks from keys since nobody appeared to have the same time of beard some saying by their Oorlog it was Sygstryggs to nine more holding with the Ryan vogt it was Dane to pfife (FW 7711-14)40

But abide Zeitrsquos sumonserving rise afterfall (FW 787)41

As tantas alusotildees indicam como formas ou visotildees do tempo permeiam

tudo o que estaacute sendo narrado mas vemos que natildeo haacute indicaccedilotildees precisas fala-

se repetidamente do tempo sem no entanto estabelecer marcos cronoloacutegicos

divisotildees concretas ou definiccedilotildees temporais para a narrativa Se o tempo no Wake

natildeo eacute vetorial e nem busca mediccedilotildees tambeacutem natildeo pode secirc-lo na morte ou no

luto por mais marcados e marcantes que esses eventos fossem em outras

realidades No lugar do sonho tudo muda ateacute mesmo as mais radicais

ocorrecircncias presenccedilas satildeo eteacutereas espectros convivem cenas e marcos se

dissolvem

O tempo dissolvido nas multiplicidades em vez de apreendido e

entendido linearmente corrobora o que dissemos a respeito da impossibilidade

de escolher uma linha enrediacutestica em detrimento de outra ao menos sem que

isso fira a tessitura conjunta que a diversidade espaccedilo-temporal oferece Assim

como estamos em diversos tempos e (em um parque de Dublin na Roma antiga

39 Tambeacutem segundo a traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2000) ldquoBem Este subterracircneo foi-para-haver-de-ser ceacuteu ou o paraiacuteso dos molhes que provavelmente foi tambeacutem uma inversatildeo de um phallofarol ()rdquo 40 Idem ldquodiferindo tudo como sinos diferem de chaves visto que ningueacutem parecia ter o mesmo horaacuterio agrave barba alguns queriam por seu Horloacutegio que era Sixtriques pras nove outros apegados agrave Ira Landa diziam que era Dane-se para as cincordquo 41 Idem ldquoMas aguardemos o requerimento do tempo despertar apoacutes-quedardquo

101

no Eacuteden e assim por diante) tudo ocorre ao mesmo tempo (o pecado de Adatildeo eacute

o de HCE e seu sentimento de conspiraccedilatildeo que culmina em assassinato eacute o

mesmo de Juacutelio Ceacutesar) Temos todo o texto como o tropo Natildeo havendo escolha

de linha cronoloacutegica ou de espaccedilo natildeo haacute accedilatildeo pontual que se possa eleger

Em um niacutevel mais microscoacutepico do texto wakiano o mesmo acontece no

que concerne aos tatildeo numerosos neologismos Natildeo haacute como escolher um

significado ou outro satildeo simultacircneos e quase sempre autorreferenciais

Poderiacuteamos entatildeo compreender a fama de ilegibilidade se a leitura deve

considerar que tudo eacute deslocado e que nada se consolida sem grandes perdas

eacute vaacutelido ver tamanha dificuldade em Finnegans wake Eacute exigido do leitor que

diversos textos em um sejam lidos mdash portanto ler os diversos textos sem separaacute-

los Em Derridabase Geoffrey Bennington discorre com o pensamento de

Jacques Derrida a respeito do entendimento de significante e de significado

partindo da noccedilatildeo de signo estabelecida por Ferdinand de Saussure

No sistema de diferenccedilas que eacute a liacutengua todo significante funciona remetendo a outros significantes sem que se chegue nunca a um significado Procurem no dicionaacuterio o significado de um significante desconhecido vocecircs encontraratildeo outros significantes nunca significados Jaacute foi dito um significado natildeo eacute mais do que um significante posto numa certa posiccedilatildeo por outros significantes natildeo existe significado ou sentido soacute haacute lsquoefeitosrsquo (Positions p 90) Mas este privileacutegio concedido ao significante logo o destroacutei com efeito o significante lsquosignificantersquo soacute significa na sua relaccedilatildeo com (o significante) lsquosignificadorsquo que ele coloca de antematildeo em posiccedilatildeo de prioridade lsquoSignificantersquo e lsquosignificadorsquo se entreimplicam assim como eles implicam lsquosignorsquo e lsquoreferentersquo Eacute impossiacutevel para noacutes estipular (conforme um gesto que eacute agraves vezes o da filosofia analiacutetica) que lsquosignificantersquo daqui pra frente natildeo implicaraacute lsquosignificadorsquo como seu corolaacuterio sob pena como Humpty Dumpty de cair na ilusatildeo do convencionalismo e de esquecer que recebemos a liacutengua e suas sedimentaccedilotildees muito mais do que as criamos (BENNINGTON 1996 p 34)

Assim podemos compreender tambeacutem que em Finnegans wake existam

ldquoefeitos de significadordquo em vez de categorias soacutelidas a que pudeacutessemos recorrer

para a compreensatildeo do signo Talvez fique claro como um dicionaacuterio com

significados estanques dos termos da obra literaacuteria seria tatildeo ou ainda mais

102

parcial do que os dicionaacuterios comuns a que Bennington se refere Os efeitos satildeo

portanto aquilo que operam como fantasmas espectros que rondam a

materialidade do texto Esses espectros natildeo apenas perpassam alguns

momentos mas efetivamente habitam a tessitura textual

O filoacutesofo franco-argelino Jacques Derrida rompendo com uma

concepccedilatildeo de tempo exposta na obra do fenomenoacutelogo alematildeo Edmund

Husserl ultrapassa a noccedilatildeo tanto espacial quanto temporal de um percorrer

regido unidirecionalmente bem como substitui essa dada noccedilatildeo circular ou

ciacuteclica que perigosamente remete ao risco de uma redundacircncia por uma ideia

de elipse em que nunca se alcanccedila verdadeiramente o objeto nem se recupera

as condiccedilotildees preacutevias do caminho percorrido O movimento eliacuteptico pode ser aqui

invocado natildeo para substituir a ideia do ciacuterculo que aparece em James Joyce

uma vez consideradas todas as nuances dessa circularidade aqui expostas mas

para acrescentar uma espeacutecie de nuance eliacuteptica dessa circularidade que natildeo

produz redundacircncia ou repeticcedilatildeo mas singularidade e mesmo inovaccedilatildeo Tendo

seu centro deslocado um trecho percorrido na leitura impede terminantemente

que o passado da leitura seja revisitado da forma como foi lido em seu presente

irrecuperaacutevel

Citado por Joanna Hodge em Derrida on time Jacques Derrida em seu

ensaio ldquoForm and meaning a note on the phenomenology of languagerdquo datado

de 1967 propotildee um pensamento que poderia valer para o Finnegans wake ao

menos dentro da discussatildeo aqui proposta a respeito do formato estrutural da

obra final de James Joyce A respeito do que natildeo poderia ser apreensiacutevel por

uma dialeacutetica per se mdash algo que veremos distancia-se daquilo que conjectura

o escritor irlandecircs em suas obras mdash diz Jacques Derrida

Thus one does not have to choose between two lines of thought Rather one has to meditate upon the circularity which makes them pass into one another indefinitely And also by rigorously repeating this circle in its proper historical possibility perhaps to let some elliptical displacement be produced in the difference of repetition a deficient displacement doubtless but deficient in a way that is not yet --- or is no longer --- absence negativity non-Being lack silence Neither matter

103

nor form nothing that could be recast by some philosopheme that is by some dialectics in whatever sense dialectics may be determined An ellipsis both of meaning and of form neither full speech nor a perfect circle More a less neither more nor less Perhaps an entirely other question (DERRIDA apud HODGE 2007 p 11)42

A descriccedilatildeo do percurso eliacuteptico em Derrida acrescenta aqui ao princiacutepio

de natildeo redundacircncia como supracitado quanto agrave circularidade de Finnegans

wake No entanto uma espeacutecie de dialeacutetica ocupa as preocupaccedilotildees do escritor

irlandecircs Joyce foi influenciado pela ideia de atraccedilatildeo de contraacuterios exposta no

The Marriage of Heaven and Hell do inglecircs William Blake e da antecipaccedilatildeo da

dialeacutetica hegeliana de Giordano Bruno de Nola filoacutesofo italiano em que ldquoall is in

allrdquo como em Finnegans wake

Desde uma de suas primeiras publicaccedilotildees Gramatologia Jacques

Derrida aponta uma espeacutecie de condescendecircncia mdash ou como ele diz

solidariedade mdash entre uma concepccedilatildeo histoacuterico-metafiacutesica calcada no linear

portanto calcada na estruturaccedilatildeo de presente apoacutes presente tempo apoacutes tempo

em que haacute sequecircncias e possiacuteveis iniacutecios meios e fins com um modelo

discursivo tradicional eacutepico Denuncia igualmente que ldquoa lsquolinharsquo representa

apenas um modelo particularrdquo (DERRIDA 2011 p 107) e que esse modelo por

mais que tenha marcado uma norma imperante natildeo prescinde do conceito

mundano da temporalidade ndash o conceito de homogeneidade e continuidade seja

reto seja circular que Heidegger aborda como derivado da ontologia Esse

modelo passa a deixar de imperar pela gradual ineficiecircncia na economia dos

textos cientiacuteficos e na mesma medida problematiza-se contudo Derrida afirma

ldquoO fim da escritura linear eacute efetivamente o fim do livrordquo (Ibid 108) A ressalva

42 ldquoPortanto natildeo eacute necessaacuterio fazer uma escolha entre duas linhas de pensamento Preferencialmente se deve meditar sobre a circularidade que as faz uma passar pela outra indefinidamente Inclusive rigorosamente repetindo esse ciacuterculo em sua proacutepria possibilidade histoacuterica talvez para deixar algum deslocamento eliacuteptico ser produzido na diferenciaccedilatildeo da repeticcedilatildeo um deslocamento deficiente sem duacutevidas mas deficiente de maneira que natildeo eacute ainda mdash ou natildeo mais mdash ausecircncia negatividade natildeo-Ser falta silecircncio Nem mateacuteria nem forma nada que possa ser refeito por um filosofema isto eacute por alguma dialeacutetica em qualquer que seja o sentido que determina a dialeacutetica Uma elipse tanto de sentido quanto de forma nem discurso completo nem um ciacuterculo perfeito Mais um menos nem mais nem menos Talvez uma questatildeo inteiramente outrardquo

104

vem do proacuteprio filoacutesofo quanto ao fato de que nos nossos dias ainda novas

escrituras satildeo desdobradas nas focircrmas dos livros literaacuterias ou teoacutericas A

conclusatildeo desses processos e desvios eacute absolutamente contundente ldquoPorque

comeccedilamos a escrever a escrever de outra maneira devemos reler de outra

maneirardquo (Ibid)

Essas dimensotildees de uma espeacutecie de inadequaccedilatildeo da escritura ao

sistema linear e o lanccedilar-se agraves dimensotildees temporais plurais e natildeo lineares satildeo

fatos natildeo concernentes aos problemas modernos lembra Derrida mas fazem-

se evidentes nos dias atuais Teriacuteamos de dizer a partir disso que Finnegans

wake natildeo eacute um livro ou que o que faz dele um livro eacute o formato numerado e

organizado para uma ediccedilatildeo que lhe impotildee linearidade especiacutefica O que pensar

dessa imposiccedilatildeo de focircrma a um livro circular e efetivamente acessiacutevel de

qualquer ponto mdash portanto avesso a qualquer ordenaccedilatildeo especialmente a uma

numeraccedilatildeo que tanto especifica e prende Talvez isso deva nos levar ao

desprendimento dessa numeraccedilatildeo por mais uacutetil que seja em termos de citaccedilatildeo

e compartilhamento Ou em vez de um desprendimento uma atitude avessa a

certa escravizaccedilatildeo que pode decorrer desse sistema que em vez de pretensioso

arranjo traz desarranjo da estrutura circular que se deve perceber na obra

Em seu Seminaacuterio de nuacutemero 23 denominado O sinthoma ou Le

sinthome mdash ou ainda ldquoo santo homemrdquo mdash dedicado a James Joyce Jacques

Lacan parece atravessar tambeacutem algo proacuteximo agrave questatildeo que aqui trazemos

Antes de citaacute-lo talvez seja interessante remeter ainda especialmente no que

diz respeito ao comeccedilo da citaccedilatildeo do psicanalista agrave ceacutelebre frase de Samuel

Beckett a respeito do Finnegans wake que eacute um livro natildeo sobre alguma coisa

mas eacute a coisa em si Lacan em seu Seminaacuterio diz

Leiam as paacuteginas de Finnegans wake sem procurar compreender Isso se lecirc () Eacute uma sorte que haja uma uacutenica ediccedilatildeo o que permite designar ao fazermos uma citaccedilatildeo a linha na paacutegina certa isto eacute na paacutegina que sempre teraacute o mesmo nuacutemero Se como acontece com os outros livros fosse preciso editar Finnegans wake com diversas paginaccedilotildees como iriacuteamos nos orientar (LACAN 2005 p 161)

105

Finnegans wake entatildeo soacute natildeo eacute o fim do livro porque foi encaixado em

uma estrutura linear a despeito de sua natureza Mas eacute o fim das barreiras

linguiacutesticas como estudadas historicamente mdash e novamente a ponte

supracitada com Derrida em ldquoGecircnese e escritura do Essai sur lrsquooriginerdquo se faz

profiacutecua lembrando o que diz a partir de Jean-Jacques Rousseau ldquoNatildeo haveraacute

nem uma linha histoacuterica nem um quadro imoacutevel das liacutenguas () As liacutenguas satildeo

semeadasrdquo (DERRIDA 2011 p 263) O dinamismo babeacutelico que como foi dito

alguns capiacutetulos atraacutes transpassa para a traduccedilatildeo afeta o leitor de maneiras

distintas e desestabiliza a interaccedilatildeo leitor-obra de uma maneira que tem certa

medida de imprevisibilidade O fim da barreira linguiacutestica se relaciona ao fim de

uma barreira temporal

Ainda sobre Rousseau nesse mesmo texto Derrida aponta a vontade do

iluminista francecircs de esgotar todos os recursos da escritura buscando

univocidade clareza e precisatildeo indicando a pontuaccedilatildeo como ldquoo melhor exemplo

de uma marca natildeo-foneacutetica no interior da escriturardquo (Ibid p 277) Rousseau

chega a dizer que seriam necessaacuterias novas invenccedilotildees em pontuaccedilatildeo para que

se extraiacutesse o melhor da escritura seu maacuteximo como pontos que indicassem

por exemplo ironia e vocativo este uacuteltimo com a intenccedilatildeo de diferenciar na

escrita o homem que se proclama daquele homem que eacute convocado na

linguagem Podemos vislumbrar uma semelhanccedila curiosamente em sentido

diametralmente oposto entre Rousseau e o iacutempeto joyciano ao inveacutes da busca

por univocidade e precisatildeo Joyce parece buscar alcanccedilar ou extrair tambeacutem o

maacuteximo do trabalho que realiza no campo da palavra escrita explorando no

entanto o que se constroacutei em desbravamento de disseminaccedilatildeo a partir do

alcance do plural linguiacutestico isto eacute daquilo que natildeo proiacutebe ambiguidade mas se

farta dela

Em muitos pontos do texto o proacuteprio Finnegans wake praticamente diz ao

leitor ou ao menos lhe indica formas de se debruccedilar sobre ele dando pistas de

suas premissas O excerto que mostraremos aqui traz a sugestatildeo de que fatores

como o tempo mdash plural mdash a inflexatildeopronuacutencia e as maneiras de se comunicar

algo tecircm o poder de afetar diretamente no processo comunicativo que envolveria

idealmente emissor mensagem coacutedigo receptor como postulado pelo

106

estruturalismo de Roman Jakobson O proacuteprio texto se anuncia em apelos a uma

Babel ou mais especificamente a um processo de babelizaccedilatildeo da(s) liacutengua(s)

e de deslocamento da emissatildeo de mensagens em um suposto procedimento de

comunicaccedilatildeo

Because Soferim Bebel if it goes to that (and dormerwindow gossip will cry it from the housetops no surelier than the writing on the wall will hue it to the mod of men that mote in the main street) every person place and thing in the chaosmos of Alle anyway connected with the gobblydumped turkery was moving and changing every part of the time the travelling inkhorn (possibly pot) the hare and turtle pen and paper the continually more and less intermisunderstanding minds of the anticollaborators the as time went on as it will variously inflected differetly pronounced otherwise spelled changeably meaning vocable scriptsigns (FW 11818-28)43

No proacuteprio texto de Finnegans wake portanto admite-se ou ateacute mesmo

assevera-se que a linguagem sob a dinacircmica de um caraacuteter mutaacutevel natildeo tem

um destino certo pontual no espaccedilo e tampouco no tempo seu remetimento

pode lidar com o extravio com a perda de seu destino Em se tratando do texto

literaacuterio em que o destinataacuterio natildeo eacute unitaacuterio essa possibilidade eacute ainda maior

especialmente em um texto como Finnegans wake que remete agrave conexatildeo entre

todas as coisas no caosmos de tudo mdash algo que cria uma possibilidade de cadeia

de remetimentos infinita

Para Jean-Jacques Rousseau o surgimento das liacutenguas se daacute na

passagem do grito natural indomado pela racionalidade ao som articulado Ao

mesmo tempo ele evoca o espectro de uma fala que se daacute puramente em

articulaccedilatildeo que seria uma liacutengua morta aacutelgebra ou escritura ou seja resultaria

na morte da fala Para Jacques Derrida ldquoa morte que natildeo eacute nem um presente

43 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoPorque Escritores de Babell sofridores se chega a isso (e conversas de soacutetatildeo o proclamaratildeo do talhado com mais probabilidade anoite-o que a escrita no muro haacute de calorir a mente dos mentantes moventes na via mestra) cada persona galgo ou algo no caosmo do Todo de alocuma forma conectado com o pingalim em piruetas do pingo movia-se e mundava em cada parte do tempo o estojo movente (possivelmente o tonteiro) o papel a tinta no pipel das fibulosas lebre e tortuga os constantes mal-entendidos dos descolaboradores mais ou menos entrementados enquanto o fluir do tempo seraacute variabilmente infletido diferentemente pronunciado riversamente ortografado grafissignos de vocaacutebulos de sentido cambianterdquo

107

por vir nem um presente passado trabalha o dentro da fala como o seu rastro

sua reserva sua diferecircncia interior e exterior seu suplementordquo (DERRIDA 2011

p 385)

Levando isso em consideraccedilatildeo e tambeacutem o sonho de Rousseau pela

liacutengua que por fim seria inarticulada Jacques Derrida questiona quase

concluindo a sua Gramatologia ldquoE se a cena do sonho for sempre uma cena de

escriturardquo (Ibid 386) Sigmund Freud apontava ser pertencente agrave escritura

talvez o mundo dos sonhos Finnegans wake sendo o proacuteprio livro da noite e

do sonho eacute entatildeo escritura na mais bem sucedida fuga da linearidade

CAPIacuteTULO IV

FLUIR E RETORNO

109

O problema estrutural em Finnegans wake eacute segundo afirmamos um

problema intrinsecamente constituiacutedo na questatildeo da dimensatildeo temporal da

existecircncia a comeccedilar por abranger o tempo da leitura da ficccedilatildeo mdash ateacute alcanccedilar

as explicaccedilotildees do tempo do sonho e outras analogias Para aleacutem do tempo do

sonho podemos pensar contrariamente a certa concepccedilatildeo temporal aristoteacutelica

de momento fugidio de linearidade e homogeneidade a concepccedilatildeo temporal da

tradiccedilatildeo semita que trata de simultaneidade assim como uma concepccedilatildeo vinda

de Bergson ou de Heidegger Nessa tradiccedilatildeo hebraica ao inveacutes da

mensurabilidade que secciona a vivecircncia haacute a concepccedilatildeo cairoloacutegica se

podemos assim colocar relacionando-a ao tempo do καιρός (em vez da

cronoloacutegica isto eacute o tempo na loacutegica de κρόνος)

110

Para considerar essa visatildeo procedente no entanto dificilmente seria

profiacutecuo simplesmente apontar momentos especiacuteficos do livro em que isso

aconteccedila sem considerar tambeacutem o todo em recortes que ilustrem afirmaccedilotildees

O entendimento de aspectos estruturais do Wake relacionados a concepccedilotildees de

temporalidade eacute bastante visiacutevel considerando os paradigmas viquianos de que

Joyce partiu ou simplesmente observando o iniacutecio do livro conter uma frase

cortada indicando uma estrutura in media res especialmente expliacutecita mais do

que se especula em Ulysses por exemplo Os caminhos que o texto segue

poreacutem em termos de tempo ultrapassam os aspectos mais pulsantes e chegam

a ser tortuosos uma vez que mudam a todo tempo desde o tratamento dado a

personagens ateacute a ambientaccedilatildeo passando pelo vocabulaacuterio sempre mutante mdash

que remete tambeacutem linguisticamente a outros tempos com usos anacrocircnicos ou

deslocados na diacronia dos idiomas entremeados ao contraacuterio do que uma

pretensatildeo naturalista teria de reproduzir um tempo e espaccedilo pontuais da

realidade mdash e claro pela narrativa desmantelada Assim ainda que seja difiacutecil

ilustrar certas afirmaccedilotildees sobre Finnegans wake pontualmente podemos

rememorar passagens e buscar e alguns destaques possiacuteveis

No quinto capiacutetulo do livro I que se inicia com um paraacutegrafo

surpreendentemente curto mdash apoacutes uma seacuterie de paraacutegrafos longos desde as

primeiras paacuteginas da obra mdash temos uma espeacutecie de apresentaccedilatildeo mais formal

e direta de uma das personagens principais da obra Anna Livia Plurabelle a

mulherrio O documento envolve diferentes personagens no entanto no que diz

respeito tanto agrave sua redaccedilatildeo quanto ao seu envio Diz o trecho

In the name of Annah the Allmaziful the Everliving the Bringer of Plurabilities haloed be her eve her singtime sung her rill be run unhemmed as it is uneven (FW 1041-3)44

44 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller em que o tradutor evoca a religiosidade da fala de oraccedilatildeo ldquoEm nome de Annah a Allmissassombrosa a Sempreviva a Portadora de Plurabilidades santificada seja sua evigiacutelia venha o reino de seu canto ritmem suas rumas sem peias assim na terra como no ceacuteurdquo

111

O que esse paraacutegrafo apresenta em verdade eacute a vinda de sua voz sua

chegada ao leitor por meio de uma carta-manifesto (ldquomamafestardquo) sem tiacutetulo que

seraacute mostrada em seguida aos leitores nesse mesmo capiacutetulo Desenha seu

lugar de inscriccedilatildeo aquele onde poderaacute se despir em transluacutecida sinceridade e

apelo No entanto ainda que seja introduzida sua carta e portanto sua voz e

sua presenccedila o paraacutegrafo se inicia com ldquoin the name ofrdquo isto eacute ldquoem nome

derdquo A expressatildeo natildeo serve aiacute para transferir a fala a algueacutem que a represente

como se houvesse um outro personagem que falasse em seu nome em seu

lugar forjando sua assinatura serve para sobrepor outras vozes agrave sua na

medida em que Anna Livia natildeo se ausenta para que falem por ela mas haacute uma

comunhatildeo de outras vozes que tomam o lugar da fala concomitantemente Natildeo

haacute uma passagem da voz de uma pessoa para outra mas uma assinalaccedilatildeo de

polifonia isto eacute de multiplicidade em simultaneidade

Primordialmente diversos indiacutecios nos levam agrave leitura de Anna Livia como

uma divindade aiacute evocada As referecircncias nesse trecho satildeo basicamente

islacircmicas Essa evocaccedilatildeo natildeo deixa de lembrar em referecircncia paralela agrave

antiguidade ocidental a forma como todo poema eacutepico deve se abrir evocando

e pedindo auxiacutelio agraves musas para fazer o texto acontecer surgir fluir mas

podemos vislumbrar aquela religiatildeo abraacircmica jaacute ao vermos o nome de Anna

Livia ao lado de um epiacuteteto de tamanha imponecircncia ldquothe Allmazifulrdquo que remete

a ldquoall-mercifulrdquo e por conseguinte tambeacutem agrave maneira consagrada de se referir a

Alaacute ldquoAllah the All-mercifulrdquo

A abertura desse paraacutegrafo ecoa ainda tanto em similaridade foneacutetica

quanto nas relaccedilotildees intertextuais que permite o termo ldquoBismillahrdquo que

reaparece a cada sura (cada capiacutetulo do Coratildeo) geralmente nessa mesma

posiccedilatildeo dando iniacutecio ao texto ali contido O eco aqui eacute efetivamente de

repeticcedilatildeo uma vez que ldquoBismillahrdquo significa exatamente ldquoIn the name of Allah

the All-mercifulrdquo Por maior que possa ser a importacircncia das repeticcedilotildees de

termos temas e referecircncias no Wake devemos ter o cuidado de natildeo acreditar

que elas soacute existem se perceptiacuteveis digamos a olho nu mesmo que sob a oacuteptica

meticulosa de quem procura as reproduccedilotildees explicitamente visiacuteveis

112

Jacques Derrida a respeito de estrutura textual diz na seccedilatildeo intitulada ldquoA

fita de maacutequina de escreverrdquo integrante da coletacircnea Papel-maacutequina que ldquoa

loacutegica do acontecimento textual como inscriccedilatildeo materialrdquo impede uma regulaccedilatildeo

com progressatildeo e regressatildeo isto eacute com ldquoo processo temporal como

habitualmente se pensardquo mas sim regulado pelo proacuteprio acontecimento ou

ocorrecircncia do texto ldquoportanto pela singularidade de uma uacutenica vezrdquo (DERRIDA

2009 p 86) Eacute caracterizada portanto uma forma proacutepria de experiecircncia de

maneira que somente uma visatildeo fenomenoloacutegica respeitaria tamanha

especificidade

No esteio desse raciociacutenio faz-se necessaacuterio reafirmarmos que tal tempo

relacionado ao escritural bem como agraves accedilotildees propriamente de escrita e de

leitura tem peculiaridades proacuteprias e por isso uma dinacircmica de consequecircncias

tanto variaacuteveis quanto incontrolaacuteveis A escrita prevecirc o que seraacute do que jorrou

dela e tambeacutem como chegaraacute ao leitor mas sabendo que deve falhar nessa

previsatildeo O tempo da leitura eacute um presente inescapaacutevel que tem de lidar com o

passado irrecuperaacutevel da leitura da linha anterior ainda que se volte e leia

novamente o que jaacute se leu a experiecircncia eacute outra O deparar-se com o texto

matriz de estranhamento frente agrave liacutengua ocorre sempre na singularidade

Derrida traz ainda afirmaccedilotildees a respeito do acontecimento na literatura

remetendo a certa categoria de materialidade do texto mdash materialidade de um

acircmbito metafiacutesico enquanto conceito filosoacutefico diferente portanto de mateacuteria

mdash que determina o conceito de acontecimento (ou a acontecimentalidade)

textual associado agrave desconstruccedilatildeo Essa conjectura eacute pertinente na medida em

que essa operaccedilatildeo desconstrutiva para Derrida tem sempre como alvo ou

ldquoimplica sempre um processo de desmetaforizaccedilatildeordquo (Ibid 131) em que se

revela a existecircncia de articulaccedilotildees ocultas em totalidades antes aparentemente

monaacutedicas Assim o que repousa sob o texto quase silenciosamente mas eacute

visiacutevel em sua superfiacutecie mdash em sua sintaxe em sua estrutura narrativa em seus

processos metoniacutemicos mais evidentes mdash eacute o que uma leitura desse formato

alcanccedila e eacute a abordagem que se propotildee aqui na leitura de Finnegans wake

considerando as disseminaccedilotildees de sentido pelo texto

113

Retornando ao Wake uma seacuterie de epiacutetetos se segue todos com inicial

maiuacutescula indicando que o paraacutegrafo se refere a uma autoridade amarrando os

adjetivos ao nome proacuteprio como corolaacuterios de um pronome de tratamento

especial ldquothe Everliving the Bringer of Plurabilitiesrdquo O restante do capiacutetulo natildeo

conteacutem mais referecircncias islacircmicas O que apareceu no primeiro paraacutegrafo natildeo

foi uma chave para a leitura do que viria depois mas referencias que se

entrecruzaram dentro do mesmo paraacutegrafo e depois aparentemente natildeo nos

servem para nada podendo imaginar que um leitor natildeo as perceba eou as

ignore e continue sua leitura sem prejuiacutezo Anna Livia natildeo eacute Allah nem lhe eacute

equivalente ou consiste em uma paroacutedia dele mas a figura de Allah surge por

detraacutes da mulher-Liffey

A expressatildeo ldquoin the name ofrdquo aleacutem de engendrar a referecircncia agrave fala

islacircmica (e agrave fala catoacutelica com o ldquoem nome do Pai do Filho e do Espiacuterito

Santordquo) aponta fatos narrativos Eacute notaacutevel no paraacutegrafo que essa expressatildeo

natildeo consiste em uma transmissatildeo naquele momento do poder de enunciaccedilatildeo

da proacutepria Plurabelle a outrem a partir desse ponto Lembra de maneira bem

humorada no entanto um anuacutencio real ou oficial sobre alguma questatildeo decidida

pela instacircncia maior de uma hierarquia Nesse sentido haacute uma intermediaccedilatildeo

nesse anuacutencio Haacute ainda uma interposiccedilatildeo de duas outras personagens da obra

quando a carta-mamafesta nos aparece a de seus filhos Shem e Shaun Shem

the penman escreve a carta cujo conteuacutedo lhe eacute transmitido por Anna Livia e

Shaun the postman encarrega-se de entregaacute-la funcionando como

mensageiro

Com o personagem de Shaun e especialmente quando lhe eacute atribuiacuteda

essa tarefa eacute inevitaacutevel lembrarmo-nos da relaccedilatildeo entre mensageiro e

hermenecircutica vislumbrada etimologicamente Tomamos a explicaccedilatildeo de

Heidegger a respeito do termo neste caso didaacutetica e objetiva Do diaacutelogo com

professor Tezuka da Universidade Real de Toacutequio nasce o texto ldquoDe uma

conversa sobre a linguagem entre um japonecircs e um pensadorrdquo de 19531954

publicado em A caminho da linguagem Questionado por Tezuka a respeito do

uso dos termos ldquohermenecircuticardquo e ldquofenomenologiardquo em Sein und Zeit ambos

114

posteriormente abandonados por Heidegger o filoacutesofo alematildeo responde a seu

interlocutor

A palavra ldquohermenecircuticordquo vem do verbo grego ἑρμηνεύειν Refere-se ao substantivo que se pode articular com o nome do deus Hermes Ἑρμής num jogo de pensamento mais rigoroso do que a exatidatildeo filoloacutegica Hermes eacute o mensageiro dos deuses Traz a mensagem do destino ἑρμηνεύειν eacute a exposiccedilatildeo que daacute notiacutecia agrave medida que consegue escutar uma mensagem Esta proposiccedilatildeo se transforma em interpretaccedilatildeo da mensagem dos poetas que nas palavras de Soacutecrates no diaacutelogo Iacuteon (534e) ldquosatildeo mensageiros dos deusesrdquo ἑρμηνῆς εἰσιν τῶν θεῶν () Assim hermenecircutico natildeo diz interpretar mas trazer mensagem e dar notiacutecia (HEIDEGGER 2011 pp96-97)

Shem the penman cujo epiacuteteto prova o quanto assumidamente eacute a

encarnaccedilatildeo do poeta tem em Shaun assim seu correspondente mensageiro e

essa esquemaacutetica fica ainda mais clara na dinacircmica da carta da matildee Anna Livia

espeacutecie de musa inspiradora evocada para a realizaccedilatildeo da escrita O ldquoin the

name ofrdquo opera na marcaccedilatildeo dessa impureza de voz da personagem matildee

deixando expliacutecito para o leitor que o conteuacutedo expresso ali percorre um caminho

indireto Faz-se necessaacuterio duvidar do acesso que podemos ter agrave voz que nos

remete o conteuacutedo do que lemos ateacute a chegada de seu monoacutelogo fluvialmente

verborraacutegico Poder-se-ia afirmar que a voz de Anna Livia soacute realmente toma seu

lugar e domina o texto tomando suas reacutedeas ao fim do livro IV sem

mensageiros tramitando mensagens em seu lugar ainda que aparentes

intromissotildees eventuais sempre aconteccedilam Certamente poreacutem a duacutevida que

Finnegans wake impotildee segundo traccedilamos a respeito de voz discursiva

possibilita uma teorizaccedilatildeo a respeito da impossibilidade de se destilar a sincronia

de uma voz uma fala uma entidade ou personagem A improbabilidade desse

isolamento ou dessa purificaccedilatildeo de categorias e instacircncias narrativas nos lanccedila

em aporias textuais diversas confirmando a compreensatildeo de que a leitura dos

capiacutetulos natildeo cumpra expectativas de clareza e de unidade mas que sejamos

sempre obrigados a questionar o que mudou e que nova polifonia em aparente

caotizaccedilatildeo estaacute sendo desenvolvida

115

Outros exemplos dessas simultaneidades diversas estatildeo no capiacutetulo 11

em que vimos a mesma indefiniccedilatildeo entre falas tempos e espaccedilos unindo a fala

embolada coletiva das pessoas ocupando o pub agrave do raacutedio e agrave de uma narraccedilatildeo

de histoacuteria aparentemente nem do pub nem do raacutedio entre as elucubraccedilotildees das

lavadeiras no capiacutetulo de ALP com a sonoridade dos ecos e a presentificaccedilatildeo

de uma seacuterie de falas que ouviram e reproduzem de diversas maneiras as

sessotildees de julgamento de HCE permeadas por intromissotildees os diversos

devaneios oniacutericos que colocam HCE em situaccedilotildees insoacutelitas espalhados por

muitos capiacutetulos e passando pelas metamorfoses das personagens em outras

pessoas e elementos da natureza as margens no capiacutetulo 10 que colocam no

mesmo espaccedilo de paacutegina vozes completamente distintas em origem conteuacutedo

e forma em que cada espaccedilo das margens se destina a um dos irmatildeos Isolda

ocupa as notas de rodapeacute e circundando todo o texto Shem e Shaun Mesmo

nessa divisatildeo de espaccedilo as vozes natildeo estatildeo isoladas as margens laterais

eventualmente se trocam e comentando-se intercaladamente misturam

assuntos e referecircncias desestabilizando a verdade ou a unidade do que seria

tradicionalmente a voz narrativa central

A dita correspondecircncia dicotocircmica entre Shem e Shaun se explicita ainda

na relaccedilatildeo de Shaun como o mensageiro com o deus Hermes Como eacute dito na

citaccedilatildeo de Heidegger o miacutetico Hermes tem uma relaccedilatildeo com a origem da

hermenecircutica ainda que por vias etimoloacutegicas indiretas (passando pelo verbo

ἑρμηνεύειν) Por outro lado Shem o poeta se opotildee a Shaun ainda nesse

quesito um irmatildeo estaacute aberto ao ambiacuteguo enquanto outro se concentra na

interpretaccedilatildeo una Sendo um mensageiro assim como Hermes era mensageiro

dos deuses Shaun se preocupa com a emissatildeo da mensagem com fazecirc-la

alcanccedilar o destinataacuterio exatamente como deve chegar sem extravio ou desvio

Shaun busca verdades ironizando a existecircncia do proacuteprio Wake enquanto

Shem se instala no terreno das possibilidades inclusive da possibilidade de que

o proacuteprio livro se faccedila No livro II capiacutetulo 9 mdash capiacutetulo 1 na divisatildeo de Campbell

e Robinson (2013) ldquoA hora das crianccedilasrdquo mdash os irmatildeos se separam entre as

luzes (Shaun) e as trevas (Shem) caoso caminho confuso do perder-se (Shem)

e a redenccedilatildeo e autocontemplaccedilatildeo (Shaun) isso eacute assinalado como uma

116

separaccedilatildeo quase chocante como de Dom Quixote e Sancho Panccedila de

possibilidade remota

A dicotomia entre os irmatildeos no entanto eacute transgredida na medida em

que se completam na divisatildeo de tarefas materializada pela carta de Anna Livia

Plurabelle O que se daria como uma pura oposiccedilatildeo se dissolve em uma espeacutecie

de paralelismo cada um dos irmatildeos tem seus preceitos seus caminhos que natildeo

se tocam mas seguem lado a lado e ainda que tenham nuances proacuteprias satildeo

dotados de caracteriacutesticas que operam por contraste O que os separa e

diferencia eacute muacutetuo em suas respectivas caracterizaccedilotildees havendo uma uniatildeo

maior que a meramente consanguiacutenea ainda que definitivamente natildeo sejam

personagens intercambiaacuteveis Operam na verdade como as relaccedilotildees entre

todos os familiares do nuacutecleo de Finnegans wake por similaridade e

diferenciaccedilatildeo com a caracterizaccedilatildeo de cada um deles sempre interligada e

passando pelas relaccedilotildees de parentesco mdash seja no incesto seja na continuidade

geracional que gera espelhamento e desdobramento seja nos pares

complementares e assim por diante O tempo do parentesco assim pode

caotizar uma linearidade cronoloacutegica eacute um anacronismo de cruzamentos

diversos mais do que uma uniatildeo ou intersecccedilatildeo de sincronias unitaacuterias mdash de

tempos individuais mdash nem a diacronia familiar como seria se interpretaacutessemos

o coletivo como histoacuteria e memoacuteria

A carta-mamafesta de Anna Livia portanto tem o seu caminho

anticircularizado tornado eliacuteptico com um ldquoretorno deslocadordquo da compreensatildeo

de Jacques Derrida e isso ocorre mesmo antes da chegada da mensagem jaacute

havendo a problematizaccedilatildeo de seu remetente atraveacutes de Anna Livia a

mensagem desloca-se por seus filhos em desvios natildeo rastreaacuteveis Eacute

desintegrada a noccedilatildeo de unidade nesse percurso bem como a possiacutevel

centralidade do emissor Estando a noccedilatildeo de presenccedila e a noccedilatildeo de centro

intimamente ligadas ambas se esfarelam simultaneamente Os espaccedilos de voz

em que os remetimentos se interseccionam seriam no Wake repensados

Finnegans wake entatildeo sendo o proacuteprio livro da noite e do sonho eacute escritura em

fuga do linear que natildeo soacute desvia como se estranha e se exila do terreno comum

117

da centralidade e dos eixos estaacuteveis das repeticcedilotildees criadoras de identidade da

mensagem enviada em linha reta mdash em uma potente polifonia

A distacircncia entre diferentes vozes implica que existam diferentes

temporalidades O filoacutesofo franco-lituano Emmanuel Levinas discorre sobre o

tempo partindo de sua investigaccedilatildeo central a dicotomia do mesmo e do Outro

(que em verdade se estabelecem em relaccedilotildees eacuteticas complexas superando um

caraacuteter meramente dicotocircmico) Em Autrement qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence

(1974) diferencia trecircs possibilidades de leitura temporal sendo a primeira delas

o tempo do mesmo a pura sincronia de um eu que vive seu tempo de um ponto

de vista determinado ateacute o ponto em que natildeo afetado por alteridades paralelas

O estabelecimento de uma diacronia soacute se daacute com a intromissatildeo desse outro

intromissatildeo em geral inevitaacutevel de maneira que natildeo haacute mais um soacute passado

nem uma perspectiva unificada do tempo presente A uacuteltima instacircncia seria o

ponto do anacronismo em que a dualidade eu-outro como duas entidades

paralelas ou entrecruzadas se multiplica em uma diversidade de passados

futuros e uma impossibilidade de presente uacutenico e de uma perspectiva solitaacuteria

intocada

Uma obra literaacuteria apresenta em princiacutepio uma sincronia haacute o texto uma

porccedilatildeo de enunciados congelados prontos a serem evocados num presente

qualquer de um leitor que com ele se depare Soacute pode ser lido em um presente

um instante na linearidade de cada letra que sucede outra cada palavra e linha

em ordem inertes Nessa interaccedilatildeo haacute o cruzamento de outro tempo apenas a

partir da abordagem leitor um mesmo um eu que vai com sua sincronia proacutepria

seu tempo presente agrave abordagem do texto No entanto a sincronia que se

apresenta natildeo eacute ativada senatildeo no contato com ele na leitura por algueacutem Ao

inveacutes de um cruzamento entatildeo poder-se-ia pensar na retirada do texto de uma

suspensatildeo temporal A obra ocupa um lugar de nenhum tempo ateacute que eacute

chamada a ocupar um presente de algueacutem cuja temporalidade lhe eacute imposta e

domina a interaccedilatildeo leitor-texto Se pensarmos tempo de maneira contiacutegua a

espaccedilo a obra ocuparia assim um natildeo-lugar A sincronia do texto acompanha

a linha do tempo de quem quer que seja o centro dessa conduccedilatildeo seja um

118

narrador personagem seja um narrador onisciente que nos guia pelo trilho dos

fatos seja fluxo de consciecircncia e o tempo do monoacutelogo interior

Isso nos impotildee o problema que sincronia eacute inerente ao Wake Haacute uma

incompatibilidade ainda entre o tempo presente do leitor e a natildeo-sincronia do

texto com que se depara Havendo uma sincronia na obra o leitor e seu tempo

se relacionam de um para um com o tempo do outro no entanto natildeo se pode

definir com precisatildeo (ou mesmo sem) a linearidade do Wake menos ainda

definir um personagem que detenha essa perspectiva de quem parte a

temporalidade No monoacutelogo poderiacuteamos afirmar que haveria a sincronia de

Anna Livia no entanto as intromissotildees satildeo tantas que vemos claramente um

cruzamento de temporalidades diversas Isso eacute favorecido pela forma do

monoacutelogo por seu proacuteprio modo assim como seria em qualquer tentativa de se

trabalhar a partir de um fluxo de consciecircncia e transformaacute-lo em teacutecnica natildeo eacute

poreacutem justificado por ele uma vez que haacute a possibilidade de que um monoacutelogo

interior narrado tenha uma temporalidade sincrocircnica absolutamente palpaacutevel O

final (se podemos assim dizer) de Finnegans wake no entanto sugere um

continuum que aponta a um futuro agrave substituiccedilatildeo da geraccedilatildeo anterior pela que

a sucede O capiacutetulo se inicia com ldquoSandhyasrdquo que lembra tanto Sunday (o Sol

que estaacute nascendo na manhatilde indica o novo dia jaacute que o sonho de Earwicker

pode ter se passado em uma noite de saacutebado) quanto um saṃdhiacute (सधि) termo

sacircnscrito que significa ldquojunccedilatildeordquo ou ldquoarticulaccedilatildeordquo e remete agrave cosmologia do

Bramanismo em que se denominam os intervalos entre as yugas (as quatro

idades satya treta dwapar e kali yuga) de sandhyā e sandhyānsa Assim o

encaminhamento para o final mdash do sonho do livro de uma idadefase mdash se daacute

de maneira prismaacutetica sem encaminhar pontualmente um fechamento temporal

especiacutefico pois natildeo se limita agrave cronologia hindu nem agrave da narrativa Os tempos

verbais satildeo claramente confusos dizem-se anulando-se ldquoThe child a natural

child thenown by the mnames of (aya aya) wouldbewas kidnapped at na age

of recent probably possibly remoterrdquo (FW 59534-36)45 A incerteza se explicita

45 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller ldquoUm menino filho natural entatildeo conhecido pelos mnomes de (aya aya) podequefoi raptado em data recente provavelmente tambeacutem pode que mais remotardquo

119

ldquowould berdquo e ldquowasrdquo se unem no que eacute passado e ao mesmo tempo possibilidade

a hesitaccedilatildeo confirma um ldquoprovavelmenterdquo recente mas tambeacutem possivelmente

ldquoremotordquo Natildeo haacute apenas duacutevida entre um ou outro tempo como garantir que o

passado de fato passou

Se concebermos o Wake todo como um livro de sonho seja do Humphrey

seja de Anna Livia talvez a consciecircncia de quem sonha seja essa figura

centralizadora A temporalidade do sonho poreacutem se instalaria como outro oacutebice

a essa definiccedilatildeo jaacute que natildeo possui um tempo cronometraacutevel e portanto sua

calculabilidade se dissipa de qualquer maneira Sem evocaacute-las

conscientemente memoacuterias compotildeem qualquer sonho mas podem ser

distorcidas constituindo devaneios que satildeo na verdade nada aleacutem de

conjecturas ficcionais Imiscuem-se desejos que vislumbram um certo futuro do

acircmbito do previsiacutevel e ainda o presente do sonhador que dorme em sono leve

ou pesado em algum lugar calmo ou barulhento confortaacutevel ou natildeo apoacutes ter

tido um dia bom ou ruim agitado ou tedioso Se pensaacutessemos no sonho fora da

ficccedilatildeo portanto muito haveria de ser considerado na ficccedilatildeo se eacute concebido um

personagem que sonha a narrativa ou que sonha uma escritura mdash para falarmos

junto com Freud mdash certamente natildeo se partiria do princiacutepio de que haacute uma

sincronia pois o tempo dessa produccedilatildeo oniacuterica natildeo seraacute uno mas antes de

aspecto muacuteltiplo

Citamos sincronia anacronismo termos previsiacuteveis em uma abordagem

sobre o tempo Podemos no entanto empregaacute-los de uma maneira mais

especiacutefica a partir de alguns apontamentos levinasianos que perpassam a

questatildeo da temporalidade pela via eacutetica e ontoloacutegica A eacutetica metafiacutesica de

Emmanuel Levinas eacute pautada em investigaccedilotildees fenomenoloacutegicas cuidadosas e

no olhar sobre as exigecircncias morais a alteridade e a justiccedila mdash que constituem

o ser humano desde o face a face um-Outro ateacute o todo da vida em sociedade

Um desdobramento do tiacutetulo de uma de suas obras Autrement qursquoecirctre ou au-

delagrave de lrsquoessence isto eacute aleacutem do ser outramente que ser outro que (no sentido

negativo) ser indica a intenccedilatildeo de ultrapassar o ser como concebido ateacute entatildeo

nas discussotildees da ontologia remetendo indubitavelmente ao legado daquele

que resgatou a questatildeo-do-ser (Seinsfrage) ateacute entatildeo esquecida Martin

120

Heidegger Em Sein und Zeit (1927 2012) Ser e tempo o filoacutesofo de Meszligkirch

retoma o ser das trevas em que este estava envolto apontando resumidamente

trecircs preconceitos que imperavam como entraves de sua investigaccedilatildeo a saber

sua suposta inerente universalidade o atravanco inevitaacutevel em qualquer

tentativa de definiccedilatildeo e por fim sua totalidade em si autossuficiecircncia

Aquilo que de modo fragmentaacuterio e numa primeira investida foi um dia arrancado dos fenocircmenos pelo supremo esforccedilo do pensamento de haacute muito se trivializou () Sobre a base dos pontos-de-partida gregos da interpretaccedilatildeo do ser construiu-se um dogma que natildeo soacute declara supeacuterflua a pergunta pelo sentido de ser mas aleacutem disso sanciona sua omissatildeo Diz-se ldquoserrdquo eacute o conceito mais universal e o mais vazio e como tal resiste a toda tentativa de definiccedilatildeo (HEIDEGGER 2012 p 33)

Estabelece jaacute na introduccedilatildeo de seu tratado que o objetivo eacute ldquoa elaboraccedilatildeo

concreta da pergunta pelo sentido de lsquoserrsquordquo e que o tempo assim como aparece

em segundo lugar no tiacutetulo constitui no conteuacutedo de toda a obra apenas uma

ldquometa provisoacuteriardquo no que for pertinente para direcionar ldquoo horizonte possiacutevel de

todo entendimento-do-ser em geralrdquo (Ibid p 31) O tempo eacute um caminho

interpretativo para o ser este sim o centro da investigaccedilatildeo de Heidegger Assim

partindo da revisitaccedilatildeo do que a ontologia relegou como terras infeacuterteis

desenvolveu seu Dasein matriz do entendimento-do-ser o ente cuja maior

possibilidade-de-ser eacute a de perguntar (Frager perguntante) Esse retorno agrave

ontologia agrave maacutexima pergunta ontoloacutegica primordial eacute acompanhado entatildeo pela

temporalidade sentido do ser do Dasein na medida em que se constitui como

aquilo a partir de que ele eacute capaz de entender e processar um algo

Assim como a Seinsfrage permaneceu intocada Heidegger destaca que

o conceito de tempo se manteve praticamente inalterado desde Aristoacuteteles

mesmo passando por Henri Bergson (dizendo que o filoacutesofo francecircs eacute mais

aristoteacutelico do que pensa) e reteve tambeacutem o preconceito de um entendimento

vulgar da funccedilatildeo ontoloacutegica autossustentaacutevel Natildeo se pode poreacutem escapar

desse outro resgate Direciona-se assim agrave ldquodestruiccedilatildeo do conteuacutedo transmitido

pela ontologia antiga tarefa a ser levada a cabo pelo fio-condutor da questatildeo-

do-serrdquo (Ibid p 87) mas uma destruiccedilatildeo (Destruktion) que ldquonatildeo quer sepultar o

121

passado no nadardquo pois ldquoela tem um propoacutesito positivo e sua funccedilatildeo negativa

permanece inexpressa e indiretardquo (Ibid p 89) Toda essa necessidade eacute

justificada

Porque o ser soacute pode ser apreendido cada vez na perspectiva do tempo a resposta agrave questatildeo-do-ser natildeo pode residir numa proposiccedilatildeo isolada e cega A resposta natildeo eacute entendida na mera reiteraccedilatildeo do que eacute enunciado em proposiccedilatildeo sobretudo se eacute posta em circulaccedilatildeo como resultado flutuando no ar para mero registro de uma informaccedilatildeo sobre um ldquoponto-de-vistardquo que talvez se afaste do modo de tratamento ateacute agora usual (Ibid p 79)

O tempo como horizonte interpretativo do ser natildeo eacute uma escolha

heideggeriana por assim dizer em termos fundantes A ontologia antiga

interpretando o ser a partir e atraveacutes do mundo isto eacute da natureza acaba por

fazecirc-lo a partir do tempo O sentido de ser asism eacute παρουσία ou ουσία

presenccedila Heidegger cita brevemente que a tese ontoloacutegica de Parmecircnides de

Eleia influenciou diretamente Tomaacutes de Aquino que a absorveu no que diz

respeito agrave alma do ser humano e do νοεῖν o perceber que guiam a questatildeo-do-

ser e colaboram para caracterizar o Dasein em sua precedecircncia ocircntico-

ontoloacutegica No poema fragmentado ldquoSobre a naturezardquo ou ldquoDa naturezardquo de

Parmecircnides uacutenica obra considerada sobrevivente do filoacutesofo preacute-socraacutetico

encontra-se um eixo que se disseminou por toda a praacutetica filosoacutefica do ocidente

pois o mesmo eacute pensar e ser

[] τὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι

(Frag III)

Para Parmecircnides o ser estaacute no que aparece e eacute inuacutetil tentar conceber o

natildeo-ser de maneira que se faz necessaacuterio para a definiccedilatildeo do ser pensando

nos termos do que se daacute agrave apariccedilatildeo e portanto no tempo presente Os dois

termos-chave gregos aqui assinalados παρουσία e νοεῖν respectivamente

presenccedila e perceber levam a um outro intimamente ligado ao modo da

122

discussatildeo de Heidegger bem como a Levinas e outros filoacutesofos preocupados

com questotildees proacuteximas o substantivo φαινόμενον e seu verbo correlacionado

φαίνεσθαι respectivamente ldquoaquilo que aparecerdquo e ldquoaparecerrdquo

O trecho da obra remanescente de Parmecircnides explica poeticamente a

sua ontologia calcada nas relaccedilotildees que apontamos como envolvidas nessa teia

vocabular

Vamos vou dizer-te ndash e tu escuta e fixa o relato que ouviste ndash

quais os uacutenicos caminhos de investigaccedilatildeo que haacute para pensar

um que eacute que natildeo eacute para natildeo ser

eacute caminho de confianccedila (pois acompanha a verdade)

o outro que natildeo eacute que tem de natildeo ser

esse te indico ser caminho em tudo ignoto

pois natildeo poderaacutes conhecer o que natildeo eacute natildeo eacute consumaacutevel

nem mostraacute-lo []

Εἰ δ΄ ἄγ΄ ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας

αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι

ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι

Πειθοῦς ἐστι κέλευθος - Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ -

[5] ἡ δ΄ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι

τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν

οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν - οὐ γὰρ ἀνυστόν -

οὔτε φράσαις[]

(Frag II)46

O brilho da aparecircncia natildeo significa aiacute apenas um clarificar das coisas no

momento do mostrar pois de alguma maneira acaba por esconder o ser ainda

assim somente a presenccedila pode definir sua existecircncia Como dissemos essa

necessidade funda uma relaccedilatildeo forccedilosa com o tempo presente que se

estabelece como referecircncia para qualquer ente Justifica-se aiacute que Heidegger

46 A traduccedilatildeo de Joseacute Gabriel Trindade Santos de 2002 eacute pautada no texto original (como tambeacutem citamos aqui) estabelecido pelo filoacutelogo claacutessico escocecircs John Burnet na ocasiatildeo de sua traduccedilatildeo para o inglecircs feita em 1892 Todas as citaccedilotildees de Parmecircnides inclusive a da paacutegina anterior pertencem a essa mesma traduccedilatildeo

123

tenha se dedicado tambeacutem ao tema do tempo era necessaacuterio discorrer sobre

ele para falar do ser especialmente tendo a intenccedilatildeo de desmontar essa

ontologia claacutessica por ldquoserrdquo e ldquotempordquo serem de fato inseparaacuteveis nessa

definiccedilatildeo ontoloacutegica tradicional

Tamanho paradigma resulta em um dito ldquoprivileacutegio do presenterdquo nas

investigaccedilotildees filosoacuteficas a esse respeito sobre o qual discorre Jacques Derrida

em Marges de la philosophie (1972 1991)

O privileacutegio do presente (Gegenwart) teria jaacute marcado o Poema de Parmecircnides O legein e o noein deviam apreender um presente sob a espeacutecie daquilo que permanece e persiste proacuteximo e disponiacutevel exposto diante do olhar ou ao alcance da matildeo um presente na forma da Vorhandenheit Essa presenccedila apresenta-se eacute apreendida no legein ou no noein segundo um processo estrutura temporal eacute de pura apresentaccedilatildeo de pura permanecircncia (reinen ldquoGegenwiirtigensrdquo) (DERRIDA 1991 p 66)

Derrida natildeo aponta e ateacute reitera um certo reducionismo linguiacutestico que

Heidegger comete ao considerar οὐσία exatamente o mesmo que presenccedila que

seria a παρουσία repetindo essa mesma relaccedilatildeo Heidegger afirma diversas

vezes ldquoa determinaccedilatildeo do sentido do ser como παρουσία ou como οὐσία o que

ontoloacutegico-temporalmente significa lsquopresenccedilarsquordquo (HEIDEGGER 2012 p 95) ldquoO

ente que nele [no ser] e para ele se mostra e eacute entendido como o propriamente

ente recebe portanto sua interpretaccedilatildeo em referecircncia ao pre-sente (Gegen-wart)

isto eacute concebido como presenccedila (οὐσία)rdquo (Ibid p 97) A palavra παρουσία

significa de fato presenccedila tanto temporal quanto espacial natildeo sendo mero

sinocircnimo de seu termo formante οὐσία particiacutepio presente do verbo ldquoserrdquo na

forma feminina (o que o aproxima da traduccedilatildeo consagrada para ldquosubstacircnciardquo

que Heidegger critica ou algo que se aproxime de aquilo que vem sendo) que

forma tambeacutem ἀπουσία aquilo que natildeo eacute que natildeo vem sendo (por analogia

ausecircncia)

A rigor esse termo em grego eacute composto por uma dupla maneira de dizer o ser a essecircncia diz o ser no sentido ldquodo que eacute a coisardquo e a existecircncia no sentido ldquode que a coisa eacuterdquo () Mesmo levando em conta

124

que eacute esse segundo sentido [o que excede a referecircncia existencial] que prevalece ele natildeo eacute o uacutenico motivo pelo qual Heidegger traduz ousiacutea por Seiendheit em um claro esforccedilo para imprimir uma adaptaccedilatildeo literal dessa ambiguidade do termo em grego () Ousiacutea fazia parte do vocabulaacuterio corrente entre os gregos e indicava e caracterizava bens imobiliaacuterios propriedades e riquezas () Nesse sentido o ser equivale a um bem que deve sempre ser presente e constante ousiacutea eacute em primeiro lugar o que permance (para) eacute parousiacutea uma presenccedila constante (BOUTOT apud NASSER 2006 pp 117-118)

Essa polissemia entatildeo natildeo pode ser reduzida a uma equivalecircncia pura

entre οὐσία e παρουσία Haacute ainda a possibilidade de que οὐσία seja ainda em

certos contextos filosoacuteficos essecircncia A relaccedilatildeo do tempo com a ontologia tanto

de Platatildeo quanto no que diz Parmecircnides em seu poema fragmentado eacute inegaacutevel

e permanece intacta de maneira que o ser seja um permanecer no presente

permanecer na presenccedila estar no presente

Jacques Derrida traz a aporia de Aristoacuteteles na Fiacutesica IV mostrando que

o paradigma trazido mdash o dito privileacutegio do presente mdash jaacute era conhecido natildeo soacute

por Heidegger mas em toda a histoacuteria das investigaccedilotildees ontoloacutegicas desde a

Antiguidade O presente como tempo padratildeo caracteriza o tempo na metafiacutesica

Todo outro tempo passado ou futuro eacute tomado a partir desse conceito central

No entanto ldquoo tempo eacute o nome da impossiacutevel possibilidaderdquo de maneira que um

agora eacute o mesmo e outronovo ao mesmo tempo

O sentido do tempo eacute pensado a partir do presente como natildeo-tempo E natildeo pode secirc-lo de outro modo nenhum sentido (qualquer que seja o sentido em que o entendamos como essecircncia como significaccedilatildeo do discurso como orientaccedilatildeo do movimento entre uma arquia e um telos) pocircde jamais ser pensado na histoacuteria da metafiacutesica de outro modo senatildeo a partir da presenccedila e como presenccedila (Ibid p 87)

No monoacutelogo de Anna Livia vecirc-se talvez pela uacutenica vez em todo o livro

uma supremacia do tempo presente se instaurando com o despertar mdash ainda

que o sonho precise de uma pessoa dormindo em um dado tempo ldquopresenterdquo o

sonhador se ausenta desse tempo em direccedilatildeo ao tempo do sonho que se

caotiza Com o anuacutencio do fim da noite no entanto vemos uma recuperaccedilatildeo

125

gradual de um tempo como o trecho a seguir em que uma contagem intercalada

entre as frases faz espeacutecie de escansatildeo

Passing One We are passing Two From sleep we are passing Three Into the wikewades warld from sleep we are passing Four Come hours be ours But still Ah diar ah diar And stay (FW 60833-36)47

Como os passos de um baleacute ou de uma danccedila que indica o tempo da

coreografia e finalmente o fim dos movimentos (com ldquostayrdquo) e em meio a suspiros

de Anna Livia (ah dear) encaminhamo-nos para longe do breu das sombras

que natildeo progridem no tempo mas pairam entre fases fluidas Anna Livia natildeo

instaura no entanto com a chegada do dia sincronia ou diacronia puras ldquoYet

no body is presente here which was not there before Only is order othered

Nought is nulled Fuitfiat (FW 61313-14)48 Apesar de estar sendo instaurada

uma espeacutecie de nova etapa externa ao oniacuterico Anna Livia nos afirma que soacute o

que muda eacute a ordem mas nada estaacute sendo efetivamente deixado para traacutes

relegado ao ostracismo de um tempo passado nada eacute nulo ldquoFuitfiatrdquo tem o fuit

que lembra ldquofugirrdquo do francecircs e fiat o latim de fez-se feito estaacute feito indica que

algo foge mas algo tambeacutem se faz aparece (fiat lux)

Haacute passagem sim como ela anuncia reiteradas vezes do sonho para o

despertar da noite para o dia para a claridade no entanto o passado natildeo se

cristaliza como antecedente que nada mais tem de relaccedilatildeo com o que vem uma

vez que as reminiscecircncias natildeo se afastam O que eacute ciacuteclico pode instaurar uma

espeacutecie de privileacutegio do presente na medida em que com o estatuto do ricorso

tudo retornar significa se fazer presente novamente Natildeo haacute rememoraccedilatildeo de

algo que ficou no passado e cuja presenccedila foi substituiacuteda por plena ausecircncia

Ao contraacuterio o que haacute eacute uma eterna (re)presentificaccedilatildeo do que se passou seja

47 ldquoPassagem Um Passamos Dois Do sono estamos passando Trecircs Ao vasto visto mundo do sono passamos Quatro Venham eras a nossas horas Silente Ah dea ah dia E staacuterdquo 48 ldquoPoreacutem aqui natildeo tem ningueacutem que jaacute caacute natildeo esteve antes Soacute que a ordem foi outrada Nada se anulou Fuitfiatrdquo

126

com o caraacuteter espectral do que sempre ronda do que resta em caraacuteter

fantasmaacutetico e fantasmagoacuterico seja do efeitvo retorno de acontecimentos

reiterados O tempo se reinventa de maneira que o conceito de lembranccedila e ideia

de memoacuteria se redefinam diante do fim que se aproxima ao mesmo tempo em

que anuncia uma revinda

What has gone How it ends Begin to forget it It will remember itself from every sides with all gestures in each our word Todayrsquos truth tomorrowrsquos trend Forget remember Have we cherished expectations Are we for liberty of perusiveness Whyafter what forewhere A plainplanned liffeyism assemblements Eblaniarsquos conglomerate horde By dim delty Deva Forget (FW 61419-22)49

No livro XI de suas Confissotildees (398 dC 1987) Agostinho de Hipona

reiterou a supremacia do presente ao afirmar a definiccedilatildeo da (anti)temporalidade

do eterno ldquoNa eternidade nada passa tudo eacute presente ao passo que o tempo

nunca eacute todo presenterdquo (AGOSTINHO 1987 216) Periacuteodos anteriores agrave criaccedilatildeo

divina recaem nessa problemaacutetica ldquoPoreacutem se antes da criaccedilatildeo do ceacuteu e da terra

natildeo havia tempo para que perguntar o que faziacuteeis entatildeo Natildeo podia haver

lsquoentatildeorsquo onde natildeo havia tempordquo (Ibid 1987 217) Agostinho define a

temporalidade a partir do presente pois define o passado e o futuro por contraste

e diferenciaccedilatildeo no entanto Agostinho tambeacutem traz a possibilidade do natildeo-

tempo e desloca o centro ainda do aparecimentopresenccedila para o

desaparecimentoausecircncia

49 ldquoO que se passou Como haacute de terminar Comeccedila a deslembraacute-lo Isso haacute de se remembrar de todos os lados com todos os gestos em cada uma de nossas palavras Verdade hoje verso amanhatilde Desmembra remembra Afagamos expectativa Somos pela liberdade de investigaccedilatildeo Por que apoacutes o que eacute prassempre Plenos planos de liffeyismo nas assembleias da horda conglomerada de Eblacircnia Junto agrave turva dialeacutetica Diva Olovidiarrdquo

127

Quanto ao presente se fosse sempre presente jaacute natildeo seria tempo mas eternidade Mas se o presente para ser tempo tem necessariamente de passar para o preteacuterito como podemos afirmar que ele existe se a causa da sua existecircncia eacute a mesma pela qual deixaraacute de existir Para que digamos que o tempo verdadeiramente existe porque tende a natildeo ser (Ibid p 218)

Sendo uma abordagem natildeo necessariamente do acircmbito da investigaccedilatildeo

ontoloacutegica Agostinho natildeo busca a definiccedilatildeo do tempo em si pois volta-se agrave

percepccedilatildeo Isso se evidencia quando ele faz efetivamente a pergunta

especiacutefica do tempo

O que eacute por conseguinte o tempo Se ningueacutem mo perguntar eu sei se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta jaacute natildeo sei Poreacutem atrevo-me a declarar sem receio de contestaccedilatildeo que se nada sobreviesse natildeo haveria tempo futuro e se agora nada houvesse natildeo existiria o tempo presente (Id)

Sua resposta deixa claro que saber o que eacute o tempo significa aiacute estar na condiccedilatildeo

de um ser que pode vivecirc-lo percebendo suas mudanccedilas Agostinho diz os

termos ldquotempo futurordquo e ldquotempo presenterdquo uma divisatildeo que evidencia o fato de a

sua pergunta pelo ser do tempo natildeo buscar de fato uma investigaccedilatildeo mais que

perceptiva da temporalidade lidando com sua vivecircncia em vez de buscar sua

definiccedilatildeo ou conceituaccedilatildeo Talvez fosse a resposta mais indicada para o tempo

do Finnegans wake sem questionamentos ao nos depararmos sabemos algo

sobre pois vivemos a temporalidade do texto jaacute se tivermos de explicaacute-la eacute que

os problemas se iniciam

A relaccedilatildeo entre uma consciecircncia de temporalidade e a dificuldade de bem

compreender o tempo tambeacutem se mostra textualmente O capiacutetulo 13 que

Campbell e Robinson denominam Shaun before the people (ldquoShaun diante do

povordquo) lembra Agostinho ou um diaacutelogo socraacutetico com a forma de perguntas e

respostas em que Shaun vai respondendo a quatorze perguntas uma a uma

Com uma abertura no capiacutetulo que se preocupa em situar as horas o que abala

o apego ao presente (aleacutem de esse apego existir no proacuteprio meacutetodo de

128

questionamentos e reacuteplicas imediatas) eacute a consciecircncia de uma sombra ou algo

de uma meia-noite que se aproxima ldquoCome not here Black Switch outrdquo (FW

40317)50 A consciecircncia que no caso eacute a consciecircncia de uma outra dimensatildeo

atraveacutes de medo e receio abala o terreno temporal de bases fixas no tempo

presente ainda que o ciclo e o ricorso tambeacutem afirmem essas bases

O tempo do texto caso coincida com o tempo da leitura mdash que o faz

reviver como a execuccedilatildeo da partitura faz com a composiccedilatildeo musical mdash eacute o

presente puro da experiecircncia O tempo narrativo mdash se deixarmos de lado

temporariamente a concepccedilatildeo de Finnegans wake como livro que descarta a

narrativa e desmantela seus elementos mdash poderia ser entendido em uma

primeira tentativa de imediato como tempo circular dada a sua estrutura e a

inspiraccedilatildeo nas Idades da teoria de Giambattista Vico Isso seria adequado para

pensarmos a relaccedilatildeo entre esse tempo presente da leitura e a dada circularidade

textual mdash o que se faz em ciclo sendo um eterno retorno teria necessariamente

de engendrar por conseguinte um eterno presente no esteio do que afirma

Agostinho pois eacute a continuidade que desconhece iniacutecio e fim divisatildeo que

seccione ou corte o que tem por definiccedilatildeo a fluidez Isso leva agrave aporia de que

fala Agostinho entre considerar que o ciclo engendra um presente supremo mas

por outro lado se soacute houvesse presente natildeo haveria tempo e sim eternidade

No entanto se o texto jaacute natildeo eacute em si ciacuteclico e como vimos com Derrida

tem seu centro deslocado e uma caracterizaccedilatildeo possivelmente eliacuteptica mdash ainda

que em verdade o ciclo seja viquiano seja joyciano seja nietzschiano natildeo eacute

simplesmente repeticcedilatildeo pura e simples mas sim retorno com diferenciaccedilatildeo isto

eacute natildeo soacute passiacutevel como obrigatoriamente submetido a mudanccedila e a renovaccedilatildeo

mdash essa relaccedilatildeo de presente se quebraria A isso se relaciona intrinsecamente

o fato de que o texto escritural reinvocando Derrida lida com o porvir diferente

do futuro Essa outra qualidade temporal modifica toda a dinacircmica textual na

medida em que o porvir eacute o tempo do acontecimento daquilo que vem sem

espera que surge do vazio da ausecircncia por outro lado o texto que lida com

futuro calculaacutevel iniacutecio-meio-fim e sequecircncia narrativa eacute o que lida com a

50 ldquoNatildeo te quero nero Sombra sumardquo

129

presenccedila e a previsibilidade Somente o porvir deixa rastros espectrais daquilo

que natildeo se previu mdash e eacute disso que todo a leitura do texto literaacuterio estaacute

inevitavelmente permeada

Emmanuel Levinas filoacutesofo que compreende a histoacuteria como

escatoloacutegica natildeo como progressista e que afirma sua eacutetica metafiacutesica a partir

da existecircncia do Outro tem compreensatildeo temporal que pode nos ajudar a

compreender a dificuldade de se enxergar uma sincronia no texto de Finnegans

wake Para Levinas a tradiccedilatildeo que supotildee a existecircncia do tempo de um eu estaacute

equivocada por desconsiderar o face a face desconsiderar o Outro Assim uma

sincronia isto eacute a assunccedilatildeo de um uacutenico presente natildeo passa como tempo da

subjetividade de um indiviacuteduo de mera presunccedilatildeo por entender o tempo

objetivamente (por mais inicialmente contraditoacuterio que isso possa soar) Isso

poderia ser resolvido pela adiccedilatildeo do tempo diacrocircnico que passa a existir na

relaccedilatildeo com o outro e instaura um tempo que eu subjetividade individual natildeo

vivi Haveria uma disjunccedilatildeo anacrocircnica entre sincronia e diacronia como

princiacutepio da descontinuidade que provaria a impossibilidade de um tempo

objetivo ou de uma compreensatildeo objetiva do tempo reduzindo isso a mera

pretensatildeo A sincronia eacute uma temporalidade insular enquanto a diacronia

expandiria esse isolamento A futuridade do futuro natildeo vem como porvir no meu

horizonte e natildeo posso reduzir o tempo do Outro ao meu o tempo do Outro eacute o

Outro do meu tempo

Eacute a terceira categoria sobre a qual discorre Levinas na supracitada obra

Autrement qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence contudo que mais nos interessa e

que complementa fundamentalmente as noccedilotildees expostas anteriormente Eacute

somente no reconhecimento de que haacute na verdade muitos presentes e de que

nem mesmo o proacuteprio eu sendo um eu ordinaacuterio deteacutem o seu presente mdash

menos ainda seu passado reduzido a lembranccedilas embaccediladas e seu futuro

incerto mdash que se poderia compreender verdadeiramente o tempo Isso porque

somente um eu ideal ou melhor o ser real que dita o que o presente eacute poderia

ser premissa de sua existecircncia e efetivamente deter ou reter o presente O

reconhecimento dessa impossibilidade aliado ao reconhecimento essencial de

que existe o face a face de que existe o Outro cujo tempo me eacute tatildeo inapreensiacutevel

130

quanto ele mesmo o eacute haveria o reconhecimento de que sincronia e diacronia

portanto satildeo maneiras ainda defeituosas de se compreender o tempo para o

humano A terceira categoria fundamental que adveacutem dessas reflexotildees eacute o

tempo do anacronismo Reconhecendo-se a existecircncia de muitos presentes o

anacronismo reconhece ainda que o surgimento de um Outro abre natildeo soacute o meu

tempo para o delea mas tambeacutem haacute tempos de muitos outros de muitos tempos

mortos ou ainda por virem a nascer O tempo consiste em uma relaccedilatildeo com o

que natildeo pode ser assimilado com aponta Levinas natildeo se trata de ter boa

memoacuteria ou natildeo mesmo que suas limitaccedilotildees tenham importacircncia nisso tudo

mas o central eacute a impossibilidade de que toda a dispersatildeo do tempo pudesse se

juntar em um soacute presente Por isso sincronia e diacronia satildeo insuficientes para

essa compreensatildeo enquanto o anacronismo respeita a existecircncia das nuances

variadas dos aspectos temporais da existecircncia

Essa compreensatildeo levinasiana eacute ao que nos parece brilhantemente

adequada para a compreensatildeo do tempo no texto do Wake justamente sendo

uma obra que reuacutene simultaneamente mortos e vivos remorrentes e

ressuscitantes mdash e aqui se faz mister evocarmos o revenant de que fala

tambeacutem Derrida evocando novamente o caraacuteter espectral de presenccedila-

ausecircncia simultacircnea e vinda inesperada isto eacute cuja chegada se faz somente no

porvir como o fantasma de um autor que retorna e se faz presente de alguma

outra forma por meio de sua obra O tempo como concebido por Giambattista

Vico como paradigma natildeo anula a pluralidade do anacronismo sobre o qual

Emmanuel Levinas discorre ao contraacuterio compreende-se que as Idades

viquianas abarquem presentes diversos e natildeo partam de uma consciecircncia

temporal uacutenica Poderiacuteamos falar em caotizaccedilatildeo mas em verdade caotiza-se

na medida em que se foge do linear cronoloacutegico sincrocircnico uno sem que a

caracterizaccedilatildeo necessariamente se reduza de maneira especiacutefica a pura e

simplesmente caos

Na caracterizaccedilatildeo de onde reside Shem o irmatildeo que pode ser o alterego

do artista (e ateacute do proacuteprio Joyce) onde convive com passado morte alteridades

diversas assim como na prisatildeo morte e ressurreiccedilatildeo de Humphrey Chimpden

Earwicker pai de Shaun Shem e Isobel e marido de Anna Livia vemos essa

131

fusatildeo de vida e morte que natildeo controla o tempo em fases imisciacuteveis Shem estaacute

em meio a ldquofresh horrors from Hadesrdquo (FW 18335)51 e por ldquoTumult son of

thunder self exiled in upon his ego a nightlong a shaking betwixtween White or

reddr hawrors noondayterrorised to skin and bone by na ineluctable phantomrdquo

(FW 1846-9)52 trecho em que inevitavelmente nos lembramos da inelutaacutevel

modalidade do visiacutevel de Ulysses que aqui se transformou em fantasma como

visiacutevel

Interessante notar como o capiacutetulo imediatamente posterior ao de Shem

que seraacute o Anna Livia Plurabelle em que lavadeiras confabulam sobre fatos e

fofocas termina com a noite caindo em cada vez mais escuridatildeo e menos

informaccedilatildeo factual menos visatildeo clara como se a cena fosse se apagando e

perdendo a forccedila a cada vez que se repete a palavra ldquonightrdquo Em meio a

paranoias e sensaccedilatildeo de adormecimento ldquonightrdquo daacute o tom de queda gradual mdash

natildeo como a queda monumental de Earwicker no primeiro fragmento que

tambeacutem se repete pelo livro mas uma quebra branda Em vez de pontuar um

momento o efeito principal eacute com ldquonightrdquo prosseguir evocando a escuridatildeo e

ao mesmo tempo mantendo-se progressivamente suspensos os ecos dessas

conversas

Dark hawks hear us Night Night My ho head halls I feel as heavy as yonder stone Tell me of John or Shaun Who were Shem and Shaun the living sons and daughters of Night now Tell me tell me tell me elm Night night Telmetale of stem or stone Beside the rivering waters of hitherandthithering waters of Night (FW 21536-2165)53

Sendo todo um livro da noite como se coloca usualmente e como o

proacuteprio Joyce jaacute pontuou em oposiccedilatildeo a Ulysses as misturas de escuridatildeo noite

quebra de fala e silecircncio seriam naturalmente recorrentes Ainda assim elas

acontecem de maneira especialmente controlada em momentos cruciais e

51 Na traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller (2003) ldquonovos horrores do Hadesrdquo 52 ldquoTumulto filho do trovatildeo auto-exilado no seu ego tremores da noite inteira entre horrores brancos e rubros aterrorizado ao meio-dia da pele aos ossos por um fantasma inelutaacutevelrdquo (idem) 53 ldquoNoturnos falcotildees nos escutam Noite Noite Tomba a testa Pende pesada qual pedra aquela Que me falas de John ou de Shaun Shem e Shaun viventes filhos ou filhas foram de quem A noite noita Fala-me fala-me fala-me carvelha Noite noite Conta-me contos de Stem ou Stone Junto agraves rio-revantes aacuteguas de correntes-e-recorrentes aacuteguas De Noiterdquo (idem)

132

especiacuteficos no Wake como que desestabilizando a noccedilatildeo temporal de noite mdash

ou de uma noite ou de noite como algo definido temporal e ateacute espacialmente

mdash em vez de partirem para o que seria uma caracterizaccedilatildeo temporal A noite

funciona como algo que subverte a ineacutercia do tempo presente sendo uma noite

sem duraccedilatildeo reverberando ainda em uma seacuterie de evocaccedilotildees de ldquonightrdquo como

se ela natildeo estivesse presente mas invadisse aos poucos agrave medida que o apelo

acontece A palavra ldquoNightrdquo caracteriza o indefinido em vez de definir (seja uma

ou seja qualquer) noite especiacutefica

Aquilo que natildeo eacute definido pontualmente natildeo pode consequentemente

fazer parte de uma evoluccedilatildeo temporal da ordem do linear com cenas

consecutivas que se somam sem se sobreporem progredindo do passado para

o futuro Isso natildeo deve necessariamente acontecer somente na hipoacutetese da

eternidade pura como disse Agostinho a respeito do tempo presente que natildeo

tem passado e futuro como constrastes o que retorna sempre em ciacuterculos pode

tambeacutem ter como corolaacuterios antesagoradepois ao mesmo tempo em que natildeo

teria iniacutecio fundadororiginaacuterio nem fim escatoloacutegico Retornando a Autrement

qursquoecirctre ou au-delagrave de lrsquoessence para caracterizar a oposiccedilatildeo do anacronismo

que reuacutene essas vozes e ausecircncias-presentes em relaccedilatildeo agrave ideia de linearidade

que uma sincronia necessariamente conteacutem Emmanuel Levinas cita a tradiccedilatildeo

fenomenoloacutegica como caracterizadora da unidade de sincronia que natildeo

considera a alteridade e a eacutetica citando Edmund Husserl Com esse gancho

esclarecedor entatildeo Levinas explica

Chez Husserl la conscience interne du temps et la conscience tout court se deacutecrivent dans la temporaliteacute de la sensation ldquosentir crsquoest lagrave ce que nous tenons pour la conscience originaire du tempsrdquo et ldquola conscience nrsquoest rien sans lrsquoimpressionrdquo Temps impression sensible et conscience se conjuguent () Parler conscience crsquoest parler temps (LEVINAS 1978 pp 56-57)54

54 ldquoEm Husserl a consciecircncia interna do tempo e a consciecircncia em si se descrevem na temporalidade da sensaccedilatildeo ldquoeacute no sentir que podemos ter a consciecircncia originaacuteria do tempordquo e ldquoa consciecircncia natildeo eacute nada sem a impressatildeordquo Tempo impressatildeo sensiacutevel e consciecircncia se conjugam () Falar de consciecircncia eacute falar de tempordquo

133

Emmanuel Levinas considera entatildeo uma temporalidade especiacutefica para

a fenomenologia que considera a consciecircncia de um indiviacuteduo como premissa

para qualquer investigaccedilatildeo eacute essa temporalidade o que resulta em uma

sincronia natildeo atravessada pela alteridade Ao contraacuterio dessa concepccedilatildeo

Levinas descreve o ldquoAnachronisme qui ateste une temporaliteacute diffeacuterente de celle

qui scande la consciencerdquo (Ibid p 141)55 A isso podemos contrapor uma outra

ponte com o Ser e tempo de Martin Heidegger quanto ao aspecto do ente como

ldquodentro do tempordquo Heidegger interfere com o apontamento da historicidade

como um modo-de-ser temporal do Dasein Nessa abordagem o tempo ou o

tempo presente tambeacutem deixa de ser isolado pela experiecircncia sincrocircnica

individual

A determinaccedilatildeo da historicidade eacute anterior ao que se chama de histoacuteria (o acontecer de-histoacuteria-universal) Historicidade significa a constituiccedilatildeo-de-ser do ldquogestar-serdquo do Dasein como tal sobre cujo fundamento eacute unicamente possiacutevel algo assim como a ldquohistoacuteria universalrdquo e o histoacuterico a ela pertencente O Dasein em seu ser factual eacute cada vez como jaacute era e ldquoo querdquo jaacute era Expressamente ou natildeo ele eacute seu passado E natildeo soacute no sentido de que seu passado como que desliza ldquoatraacutesrdquo dele possuindo ele o passado como se fosse uma propriedade subsistente que por vezes volta a ter efeito sobre ele (HEIDEGGER 2012 p 81)

Assim o privileacutegio do presente que citamos anteriormente como foi

apontado por Derrida em referecircncia ainda a Aristoacuteteles perde seu aspecto de

vivecircncia possiacutevel como sendo algo puramente nodo instante algo

complementando pelo que acrescenta Heidegger no excerto acima de Ser e

tempo o passado integra o presente (como o revenant) e natildeo se encerra atraacutes

dele ou antes dele intacto e passiacutevel de retorno somente por

rememoraccedilatildeorecordaccedilatildeo (entendida como espeacutecie de movimento de lembranccedila

feito intencionalmente) Uma suposta divisatildeo temporal entre as fases entatildeo que

separe o passado do presente natildeo eacute possiacutevel considerando o passado como

essa historicidade que reveacutem O presente no entanto ainda eacute o tempo central

55 ldquoAnacronismo que atesta uma temporalidade diferente daquela que mede a consciecircnciardquo

134

da leitura Em Escritura do retorno Mallarmeacute Joyce e o meta-signo Piero Eyben

relaciona o que propotildee ser o resultado da empreitada de Joyce mdash ldquodestruiccedilatildeo

do signordquo mdash com uma ldquoagoridade da letrardquo ldquo() a experiecircncia joyceana da

destruiccedilatildeo do signo deve ser compreendida como um limite da experiecircncia do

agora () a significacircncia eacute sua uacutenica respostardquo (EYBEN 2012 pp 650-651) A

marca do presente natildeo eacute pura nem pode ser destilada em uma fase temporal

solitaacuteria

Nessa des-fundaccedilatildeo de toda origem podemos ver a proacutepria cena da presenccedila enquanto elemento presente que se relaciona com outra coisa que natildeo ele mesmo guardando em si a marca do elemento passado e deixando-se jaacute moldar pela marca de sua relaccedilatildeo com o elemento futuro () Todo rastro eacute sem presente e sem arquia uma vez que se constroacutei como a siacutentese de ldquomarcasrdquo que se estabelecem em um espaccedilamento (devir-tempo do espaccedilo) (Ibid p 651)

No capiacutetulo 9 do livro II livro das crianccedilas temos uma espeacutecie de

encenaccedilatildeo teatral Satildeo situados personagens e ainda o tempo ldquoTime the

pressantrdquo (FW 22117)56 O presente mais parece um verbo no geruacutendio ou uma

forma nominal de um verbo indicando uma accedilatildeo que remete ao presente

movimentado em movimento natildeo inerte e recortado Mesmo na ficccedilatildeo dentro

da ficccedilatildeo eacute o tempo dinacircmico que se faz Nas palavras do tradutor do Wake

Donaldo Schuumller ldquoO fixo dissolve-se no que flui Cultura do presente Qual se

tudo se embala em vir-a-serrdquo (2003 p 96) Aqui o presente natildeo se faz em

eternidade pura e ciacuteclica mas no porvir que se instala a expectativa do que pode

vir eacute diferente da futuridade do futuro certo previsto mdash e portanto calcado no

tempo presente que o planeja O porvir ao contraacuterio faz do presente uma pura

expectacircncia naquilo que se tece como limiar de ausente e presente por ser a

expectativa do que natildeo se pode de fato esperar Se o futuro no escapa pelos

dedos e o passado resta o presente soacute pode ser uma contaminaccedilatildeo geral dessa

fludez de ricorso torrencial

56 ldquoTempo o pressanterdquo (traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller 2003)

135

Finnegans wake muito mais questiona do que afirma seu proacuteprio tempo

em vias expliacutecitas Mesmo no fim do livro quando se encaminharia para um

fechamento e portanto para o teacutermino a sutura a closure Anna Livia nos

encaminha para o desembocar do rio mdash no mar no retorno ao seu curso no

ricorso na fluidez que eacute seu destino em repeticcedilatildeo mas repeticcedilatildeo em sempre

inovaccedilatildeo mdash que natildeo se situa com precisatildeo temporal O livro IV se abre com

ldquoSandhyas Sandyas Sandhyasrdquo (FW 5931) Segundo Donaldo Schuumller haacute aiacute

referecircncia a Sanctus Sanctus Sanctus (que aparece tambeacutem em ldquoXanthos

Xanthos Xanthosrdquo mdash FW 2359) e a sandhi palavra do sacircnscrito que significa

paz ou crepuacutesculo Muito mais pode ser dito sobre essa abertura aleacutem da

saudaccedilatildeo latina religiosa o que vem do sacircnscrito pesa sua presenccedila em um

significado riquiacutessimo

O termo do sacircnscrito sandhyā como pode ser transliterado de सनधया

pode significar uniatildeo ao mesmo tempo em que eacute diferenciaccedilatildeo divisatildeo eacute o

crepuacutesculo ou o nascer do sol ao mesmo tempo em que eacute a escuridatildeo da

madrugada ou da manhatilde eacute transiccedilatildeo uniatildeo e impossibilidade de uniatildeo de dois

opostos claro e escuro dia e noite comeccedilo e fim Eacute justamente a articulaccedilatildeo

entre aquele instante do meio que natildeo se pode chamar somente de iniacutecio nem

somente de fim eacute ambos ao mesmo tempo Eacute o momento de reiniacutecio e portanto

de redenccedilatildeo e renovaccedilatildeo assim como de fim de enterrar de sumir de natildeo ver

Tem-se um dia todo pela frente concomitantemente poreacutem natildeo se tem mais

um dia que acaba de findar A palavra eacute absolutamente adequada indica tanto

iniacutecio quanto fim e ainda significa intervalo entremeio fase que antecede uma

e sucede outra As relaccedilotildees possiacuteveis satildeo muitas Lidar com a morte por

exemplo eacute lidar com algo que se inicia povoado por uma ausecircncia Luto se faz

em elipse Natildeo se supera um passado mas se convive com ele ateacute que ele

povoe o presente de maneira cada vez mais transluacutecida e menos materialmente

formada e visiacutevel como o presente pode nos parecer na imediaticidade

fenomecircnica do instante

136

Direcionando-se ao fim no mesmo livro dotado de um soacute capiacutetulo Anna

Livia diz ldquoLike almost now Howrdquo (FW 62629-30)57 Em inglecircs pode-se

compreender ldquolike almost nowrdquo como o mesmo que ldquocomo quase agorardquo de

maneira que eseja sendo indicado ou referenciado um ldquoagorardquo natildeo pontual ou

natildeo pontuado talvez fluido por ser indefiniacutevel o agora o eacute quase agrave medida que

o presente escapa Logo ela anuncia mais contundentemente a substituiccedilatildeo de

geraccedilotildees com a passagem do tempo

And can it be itrsquos nnow fforvell Illas I wisht I had better glances to peer to you through this baylightrsquos growing But yoursquore changing alcoosha yoursquore changing from me I can feel Or is it me is Irsquom getting mixed Brightening up and tightening down Yes yoursquore changing sonhusband and yoursquore turning I can feel you for a daughterwife from the hills again (FW 62633-36 6271-3)58

Anna Livia daacute lugar agrave filha Isobel na ordem natural familoar e aos filhos

Shem e Shaun assim como seu marido seraacute substituiacutedo O espaccedilo das

memoacuterias (ldquoAnd let her rain now if she likes Gently or strongly as she likes

Anyway let her rain now if she likes I done my best when I was letrdquo --- FW 62711-

1359) Isobel Isabel Issy que eacute tambeacutem Nuvoletta a nuvem que chove e

preenche o rio mas eacute formada a partir dele Anna Livia abre espaccedilo ao

protagonismo da filha que a sucede no fluir e o ricorso eacute fechado no ciclo natural

que metaforiza o das relaccedilotildees familiares

O fluir-ricorso eacute mais que o fechamento do ciclo que realiza o movimento

circular e repete o mesmo percurso em cadeia eacute primordialmente a

impossibilidade de diferir o fechamento da (re)abertura em momento-iacutenterim

entre a morte e a vida que unem em Finnegans wake o anacronismo daquilo que

natildeo se unitariza em tempo vivido por uma consciecircncia agrave diferenciaccedilatildeo que se

faz com o ciclo que se modifica com as geraccedilotildees com as reverberaccedilotildees do que

57 ldquoQuase como agora Comordquo na traduccedilatildeo de Schuumller (2003) 58 ldquoSeraacute que eacute agora nnossrsquouacuteltimo adeus Illaacutes Oxalaacute eu tivesse melhores vistas para te contemplar agrave luz alvorecente da Bahia Mas tu jaacute natildeo bates meupulso tu te abates de mim bem o sinto Ou isto eacute eu eacute Estou confusa Illo minando-me estou me dilu indo Sim estaacutes mudando filhemarido posso sentir-te para uma filhesposa dos montes outravezrdquo (idem) 59 ldquoChovela agora se eacute isso que adora Chovisco ou trombada como lhe agrada Chova no entanto visto que vinda eacute minhrsquohora Dei meu recado enquanto me foi dadordquo (idem)

137

se vatildeo ainda ecoando no futuro com as singularidades O desmantelamento

desse presente puro o transforma em algo contaminado de porvir ainda

permeado do rastro do passado e acima de tudo indefiniacutevel como tempo palpaacutevel

a natildeo ser se emoldurado em conjunturas ficcionalizantes

A continuidade eacute assegurada por meio da evocaccedilatildeo de Anna Livia dos

que a seguiratildeo apelo e chamamento que fazem a anunciaccedilatildeo da chuva de

NuvolettaIsobel A matildee de certa maneira dando a sua permissatildeo mas sendo

antes forccedilada pelas circunstacircncias do tempo que natildeo para daacute lugar sem

desaparecer por completo A temporalidade essencial de todo o Wake eacute a da

substituiccedilatildeo que natildeo substitui pois manteacutem o que perpetua mas tambeacutem

aniquila da mesma maneira como o crepuacutesculo pode ser confundido com o

nascer do Sol

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

139

Foi reafirmado o quanto defendemos o afastamento da compreensatildeo una

de literatura seja com Finnegans wake seja com qualquer outra obra escritural

Isso pode ser natildeo uma saiacuteda sagaz que se esquivaria de questionamentos

importantes sobre a estrutura e os desdobramentos semacircnticos do texto

intrincado de Joyce mas sim uma abertura ao perigoso desfrutar dos problemas

Em vez de uma estrateacutegia uma compreensatildeo de que eacute da incompreensatildeo que

podem surgir boas leituras inclusive acadecircmicas Para partir da incompreensatildeo

aiacute sim nada mais adequado desafiador e divertido do que o Finnegans wake

Em vez de resolver os problemas responder os questionamentos e fechar o livro

com a certeza veemente de que se compreendeu e jaacute se pode dizer ldquotermineirdquo

abre-se o livro novamente E novamente E incessantemente

140

Isso natildeo eacute necessariamente preocupante restaria talvez saber se o

problema eacute conosco com o texto ou se consiste na impossiacutevel acomodaccedilatildeo a

uma teoria literaacuteria que demanda explicaccedilotildees que natildeo podemos dar Ou ateacute

possamos talvez mas necessariamente optando por um caminho que reduz a

uma interpretaccedilatildeo mdash um trabalho hermenecircutico que busca o dogma ao inveacutes de

lidar por que natildeo com mais de uma possibilidade simultacircnea Foi instaurada a

heranccedila de lidar com a literatura como lidamos com as escrituras sagradas que

podem oferecer uma poeacutetica que abre para a fruiccedilatildeo mas acima de tudo pautam

ensinamentos que devem ser objetivos pelo bem do funcionamento de um

sistema externo ao texto Literatura poreacutem natildeo eacute o que diremos dela Como os

guias para o Finnegans wake dizem em geral desculpando-se

antecipadamente isto mdash esta dissertaccedilatildeo esta pesquisa mdash natildeo pretende

abarcar uma leitura totalizadora Talvez jaacute fosse a hora de isso natildeo precisar ser

dito apenas para o Wake mas sobre qualquer livro de literatura Eacute claro que haacute

uma dificuldade em abrirmos matildeo do status de ldquoautoridade emrdquo mas a literatura

precisa dessa distacircncia O cuidado cientiacutefico dela eacute esse

Considerando contudo as demandas de ensino baacutesico de literatura nas

escolas por exemplo ou mesmo as demandas acadecircmicas que exigem

porventura uma produtividade que se possa comprovar como acomodar o

Finnegans wake ao que a teoria ou a leitura hermenecircutica teorizada demandam

Aliaacutes como mdash e por que mdash acomodar qualquer obra literaacuteria a uma

sistematizaccedilatildeo que esquematiza seus elementos de maneira engessada O

ponto sequer eacute uma recusa natildeo mais tatildeo inovadora ou a reforma do sistema de

qualquer teoria de qualquer aporte mas o entendimento claro de como isso

afeta uma leitura e da hierarquia entre essas instacircncias se determina o que um

livro pode ter para funcionar e o que seu gecircnero permite que se pressuponha a

seu respeito Nesse sentido o questionamento do tempo tatildeo filosoacutefico e

abstrato tornar-se-ia praacutetico quando pensaacutessemos no impacto das concepccedilotildees

de histoacuteria da literatura cacircnone sistema O tempo feito em uma diacronia das

obras-primas o tempo sobre o qual repousam as obras que importam e o tempo

do ostracismo das relegadas agrave margem Esse tempo nos importa somente para

ser questionado

141

O manual tradicional e didaacutetico Teoria literaacuteria de Hecircnio Tavares traz o

excerto ldquoO objeto da ciecircncia da literaturardquo de Fundamentos da interpretaccedilatildeo e

da anaacutelise literaacuteria (1948) de Wolfgang Kayser que por sua vez cita a

separaccedilatildeo severa entre poesia e literatura feita pelo italiano Benedetto Croce

A poesia estaria fora da literatura Natildeo seria no entanto facilmente classificada

pelos criteacuterios formais de versos e estrofes mas sim um termo valorativo

qualitativo Dessa maneira ateacute mesmo Os Lusiacuteadas ficariam de fora de Poesia

(Dichtung) nessa classificaccedilatildeo e ldquodela separado por um abismordquo (KAYSER in

TAVARES 2002 p 42) Citamos essa curiosa e incisiva classificaccedilatildeo em

tentativa de delimitar o que eacute digno de ser apreciado como Poesia e o que natildeo

eacute para apontar a ironia se essa classificaccedilatildeo aparentemente excessivamente

limitante natildeo pressupotildee que Poesia seja tatildeo somente forma oposta agrave prosa

talvez Finnegans wake entrasse para o rol da Poesia e de fora da literatura

tivesse sua qualidade canonicamente reconhecida

No texto ldquoChe cosrsquoegrave la poesiardquo Jacques Derrida toma outros rumos na

problematizaccedilatildeo do que eacute literatura e do que eacute poesia A figura do ouriccedilo surge

para apontar uma experiecircncia que jamais eacute inofensiva de maneira que uma

relaccedilatildeo com o texto literaacuterio eacute uma relaccedilatildeo da qual nunca se pode sair incoacutelume

Natildeo se lecirc sem apelo e aqui evocamos novamente a carta mamafesta de Anna

Livia como momento condensador desse apelo ou sua posterior anaacutelise no

capiacutetulo 6 em que o meacutetodo de perguntas e respostas lanccedila o questionamento

e a demanda inevitavelmente tambeacutem ao leitor ou mesmo o de Shaun iniciando

o capiacutetulo 13 dizendo ldquoHark () Horkrdquo (FW 40313)60 Em Escritura do retorno

assinala-se que

Derrida inicia sua problemaacutetica () com a renuacutencia com certo desligamento do saber Saber em termos de poemaacutetica eacute saber renunciar o que se sabe Nesse sentido a poesia exige outra forma de conhecer que talvez seria aquela do ditado que se pode ldquover como ditadordquo A poesia natildeo eacute uma aparecircncia mdash ou ainda natildeo eacute uma ldquoparecenccedilardquo sua accedilatildeo eacute daquilo que se vecirc fora do parecido mas dentro de uma representabilidade que eacute sua proacutepria reflexatildeo (EYBEN 2012 p 259)

60 ldquoEscuta () Escuchardquo (2003)

142

Como dissemos uma necessidade de autenticaccedilatildeo do texto por um

sistema literaacuterio que forja sua histoacuteria e seu cacircnone natildeo nos preocupa (o apego

ao sistema que sobrevive e mutila experiecircncias literaacuterias talvez sim) Tambeacutem

citado por Hecircnio Tavares diz Afracircnio Peixoto ldquoO gecircnero das obras-primas em

geral eacute pessoal e privativo delasrdquo (PEIXOTO in TAVARES 2002 p 158)

exemplificando sua afirmaccedilatildeo citando Rabelais Quixote Montesquieu Mesmo

que fosse relativamente possiacutevel de se definirem as classificaccedilotildees ainda assim

permanecem dispensaacuteveis no lanccedilar-se ao texto e lanccedilando-nos deparamo-nos

com o segredo indiziacutevel proacuteprio do escritural

Se indiziacutevel evidentemente tambeacutem inclassificaacutevel sem que isso seja um

defeito e distante de ser uma abertura a qualquer coisa a uma leitura tatildeo frouxa

que fosse vazia ou esvaziada por uma relativizaccedilatildeo desmedida Finnegans wake

eacute aberto e amplo mas cheio e povoado de caminhos sem que tenha reacutedeas

apertadas demais para direcionar uma soacute leitura ou uma rota preferencial como

todo texto escritural tem entradas diversas e a literatura natildeo se faz em

hierarquias atraveacutes das quais nos prestamos a buscar a verdade do texto que

estaraacute no fim do caminho percorrido Se houvesse uma linha reta a ser seguida

ou mesmo um labirinto desse tipo natildeo haveria segredo no texto mdash ou haveria

um segredo que se perderia sendo revelado e nesse caso deixaria de existir o

que desmoronaria o entendimento de segredo do texto literaacuterio como aquilo que

se manteacutem secreto mesmo apoacutes repetidas leituras e mergulhos no texto por

mais profundos que possam ser Em Gecircneses genealogias gecircneros e o gecircnio

em que fala de Heacutelegravene Cixous Jacques Derrida assevera sobre o segredo da

literatura

Laacute se encontra como segredo da literatura o poder infinito de manter indecidiacutevel e portanto irrevelaacutevel o segredo do que ela diz ela a literatura ou ela Cixous () O segredo da literatura eacute pois o proacuteprio segredo Eacute o lugar secreto onde ela se institui como a possibilidade mesma do segredo o lugar de sua gecircnese ou de sua genealogia proacutepria Isto eacute verdade em todos os gecircneros literaacuterios (DERRIDA 2005 p 22)

143

Tambeacutem pertinente eacute o que nesse mesmo lugar Derrida diz a respeito

ainda de Cixous e de uma escrita que desperta do oniacuterico ldquopalavra escrita ao

despertar endereccedilada e destinada ao despertar Como se o despertar ao sair

do sonho em seu wake estivesse ainda na vigiacutelia do sonhordquo (Ibid p 45) e ldquoo

proacuteprio sonho eacute o que interrompe o sono O sonho desperta O sonho vela e ele

vela a endereccedilar injunccedilotildees inflexiacuteveis agrave vigiacuteliardquo (Ibid p 43) Ainda que essas

palavras de Derrida natildeo sejam expliacutecita e diretamente sobre o Wake nelas o

sonho natildeo eacute anestesia e no Wake tambeacutem natildeo ocorre ateacute o oposto o sonho se

mescla ao despertar e agrave ressureiccedilatildeo O sonho para Derrida e para Joyce em

nada inerte e tambeacutem nada linear como a vida real eacute o terreno das maiores e

multiplicadas possibilidades bem como da atividade de certa maneira caoacutetica e

do tempo do anacronismo do entrecruzamento de alteridades e dos ecos

polifocircnicos

Encaminhamos este fim mdash que certamente nos faz retornar retornar ao

texto ao Wake a Joyce agrave literatura mdash lembrando que a temporalidade da leitura

eacute a materialidade do tempo da literatura eacute o tempo efetivamente vivido na

ressureiccedilatildeo do texto mas eacute tambeacutem temporalidade significativamente esquiva

a tentativas de definiccedilatildeo O presente da (de uma e de qualquer) leitura eacute

constantemente desestabilizado (e em Wake isso se faz sem misericoacuterdia) e

nunca se tem uma base fixa na qual se agarrar a natildeo ser o proacuteprio abismo

escritural

Em termos joyceanos natildeo temos um rio de significado mas sim o rio como rasura da chuva que eacute em si uma forma de conduccedilatildeo dos significantes como respostas mdash reacuteplicas mdash ainda textuais O sujeito que lecirc tambeacutem eacute perdido rasurado pois sua referecircncia deve ater-se apenas agrave escritura uacutenica satisfaccedilatildeo exigida O sujeito cavado na aparecircncia eacute soterrado pelo barranco chuvoso dos sintagmas deslocados (EYBEN 2012 pp 258-259)

Em termos de temporalidade textual buscamos entender relaccedilotildees

diversas aleacutem da temporalidade da leitura ou da literatura lidavivida entraram

aqui o tempo do ausente do morto que se faz espectro (aleacutem do que acontece

com HCE o proacuteprio morto ressuscitado como Tim Finnegan o eacute na balada

irlandesa a que Joyce se remete) presenccedila e ausecircncia como dispositivos de

144

uma temporalidade do anacronismo presenccedilas que se fazem tambeacutem no

chamamento no apelo e na demanda A estrutura paradigmaacutetica viquiana

oferece subsiacutedios jaacute trabalhados mas o Wake com seu caraacuteter oniacuterico acoberta

uma seacuterie de cruzamentos e noacutes que se vistos mais de perto enriquecem a

leitura Pode ser que anaacutelises de textos de escritura de literatura em vez do

senso comum de que sejam elucidativas e iluminadoras sejam natildeo somente

dispensaacuteveis mas tambeacutem excessivas produzindo mesmo interferecircncias

tornando a jaacute difiacutecil leitura por si soacute ainda mais barroca e excessivamente pesada

de detalhes a serem enxergados Caminhos mais interessantes por

conseguinte seriam os da teorizaccedilatildeo que interesse por si soacute que possam

acompanhar a leitura do Wake sem causar ruiacutedos nela tampouco pretendendo

clarificaacute-la em objetivaccedilatildeo pretensiosa

Finnegans wake se estabelece no entremeio da verdadeira oposiccedilatildeo entre

circularidade e linearidade em que o ciacuterculo pode ser pensado se percorrido nos

moldes da demeure nomade derridiana e natildeo em ciclos de revisitaccedilatildeo Se

tomarmos o Wake a partir do tempo mensurado que se insere no caraacuteter circular

do sentido homogecircneo e infinito teremos de pensaacute-lo sublinhe-se em seu

caraacuteter precisamente literaacuterio de forma distinta de pensarmos essa mesma obra

a partir do tempo de simultaneidade que considere a estrutura circular sem

redundacircncia sem repeticcedilatildeo e sem divisotildees de linearidade

145

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