Ponto Corrente
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ADÉLIA NICOLETE
PONTO CORRENTE
Texto desenvolvido graças à Bolsa de Incentivo à Criação Literária
no Estado de São Paulo Texto de Dramaturgia
Programa de Ação Cultural – 40/2014
Ribeirão Pires Novembro / 2015
Esta peça estreou em 2016, encenada pelo Grupo Teatral Pontos de Fiandeiras com direção de Jé Oliveira.
Elenco:
Camila Shunyata: Jennifer
Fernanda Henrique: Maria da Fé
Roberta Marcolin Garcia: Maria da Graça
Vivian Darini: Maria das Dores
* * *
Personagens:
Jennifer – 35 anos
Maria da Fé – pouco mais de 60 anos
Maria da Graça – pouco mais de 60 anos
Maria das Dores / Maria Auxiliadora / Dora – pouco mais de 60 anos
Território da ação: convés de um navio de cruzeiro, sobre a costa latino-americana e tantos corpos de desaparecidos políticos.
Em alguns momentos, as atrizes permanecerão visíveis fora do espaço de representação, onde poderão ficar à mostra os instrumentos e demais objetos a serem utilizados na cena.
Nossa principal referência estética é o teatro nô japonês.
ABERTURA
Enquanto público entra, atrizes, instrumentos e adereços de cena estão em suas posições fora do espaço cênico.
Elas observam discretamente os espectadores, sorriem em cumprimento, mas sem perder a concentração.
Depois de certo tempo, dão o primeiro sinal com o pin. Mais um tempo e dão dois sinais com o instrumento. Quando o público tiver entrado e a encenação estiver para começar, dão três toques e as atrizes assumem posição para início da representação.
Jennifer, a anfitriã, toma a palavra de modo confiante e sedutor, a convidar cada um dos espectadores à viagem que terá início.
JENNIFER – Benvindas! Benvindos!
Meu nome é Jennifer
E nós faremos juntos uma grande viagem!
Neste momento, falo como uma espécie de guia –
o que serei a maior parte do tempo.
Mas poderei,
conforme as circunstâncias,
interpretar outros papeis.
(Refere-se às demais atrizes) E assim todas nós:
disfarce.
O teatro tem disso.
Faz de conta!
Faz de conta que esse lugar é um navio!
Que estamos todos sobre o mar!
Vamos imaginar?! (Respira fundo, de olhos fechados).
O verde-azul das águas
A brancura das nuvens.
Horizonte só
por onde se olhar!
Férias! Imaginem!
Sem horários pra cumprir
senão o da preguiça, o do sono
e o de não fazer nada.
O horário nobre da conversa fiada
que é quando o pensamento, distraído, fisga
das águas profundas do tempo
uma lembrança dourada
que se debate, quer fugir,
mas a língua apanha e traz à tona
e exibe
e compartilha.
Porque no dia a dia não há tempo para o re-cordar –
trazer de volta ao coração.
Bobagens – diz a lógica da pressa e da produção.
E assim seguimos, barco sem rumo,
à deriva,
indo e vindo ao sabor das marés e seus horrores.
Quem não se re-corda
conclama os ditadores.
E é por isso que o nosso navio tem rumo!
Conhecemos o cais de onde partiu –
há nomes inscritos em seus muros.
Sabemos pra onde aponta o mapa
que nos foi deixado
e qual tesouro nos espera no futuro.
Um toque de tambor.
Meu nome é Jennifer.
Sou atriz.
Foram tantas as histórias que ouvi nessas viagens
que as minhas próprias se confundem com elas.
E do que pude guardar aqui (aponta a cabeça)
e aqui (aponta o coração)
divido com vocês
algumas das mais belas!
Tambores e flauta tocam num andamento alegre. Adentra de maneira leve à área de representação Maria da
Graça. Simpática e extrovertida. Aproxima-se de Jennifer e a música cessa.
JENNIFER – Maria da Graça!
GRAÇA – (Cumprimenta o público, acena. E se pronuncia, tagarela) Graça, por favor. Que Maria é
sofrimento. Maria é padecer e eu não padeço: prefiro esquecer, deixar pra lá. Tocar o barco.
(Observa o navio, os demais passageiros) Quem diria? Uma capiau como eu num lugar desses!? Olha
isso tudo! Bacana demais! Imagine o navio do Roberto Carlos – eu queria mesmo era o cruzeiro
“Emoções”, mas ainda não chegou a hora. “Vai nesse, mãe, pra saber como é.”. “Vou, mas só se
for sozinha!” Não queria filho por perto, nora, controlando a minha vida! Chega! Eles são bons
meninos. Sobreviveram! E eu também! Mas precisava de um tempo pra mim, sabe? (Aponta a
cabeça) Uma faxina, sabe? Graça – por estar inteira, apesar de tudo! Quero aproveitar essa viagem
como quem vira uma página. Melhor: como quem começa um livro novo!
JENNIFER – Muito obrigada! (Indica a Graça um outro local para ficar)
Tambores e flauta tocam num andamento moderado. Adentra tranquilamente à área de representação Maria da
Fé. Cumpre o trajeto de maneira concentrada e comedida. Aproxima-se de Jennifer e a música cessa.
JENNIFER – Maria da Fé!
FÉ – (Cumprimenta o público, acena a seu modo e se pronuncia) Maria de verdade foi a mãe de Jesus.
Podem me chamar de Fé.
Beleza de lugar!
Gente bonita!
Viajar deve ser bom.
Ligo muito, não.
Gosto é da minha casa, dos vizinhos.
Cachorro latindo no quintal,
gato encarapitado na goiabeira.
Varal de roupa cheirando manhãs.
Saber onde estou pisando gosto.
Festa boa pra mim são os almoços de domingo,
família reunida.
Futebol na televisão, mesa farta, oração
pros lugares vazios à mesa.
Porque tudo passa... Depois é só o recordar...
JENNIFER – (Depois de pausa em que Fé pareceu ter concluído antes do tempo) Não quer contar por que
está aqui?
FÉ – Foi uma rifa da igreja. Para a construção da creche... Ganhei. Não sei muito bem o que
estou fazendo aqui. Ainda.
JENNIFER – Está bem. Seja bem vinda. (Indica a Fé um outro local para ficar)
Tambores e flauta tocam num andamento lento. Aguarda-se a entrada de Maria Auxiliadora, que não aparece.
JENNIFER – Maria das Dores.
GRAÇA - (Corrige) Maria Auxiliadora!
FÉ – (Confusa) Não é Dora?!
Tambores e flauta repetem a introdução. Nada. Estranhamento.
Maria da Graça toma a iniciativa, pede licença e vai até fora do espaço de representação questionar Dora. Maria
da Graça parece insistir. Em vão. Maria da Graça acena para que Maria da Fé se aproxime e tente. Ela vai,
mais tranquilamente. Conversam. Em vão. As duas voltam sem Dora.
GRAÇA – Ela não quer contar sua história hoje. Nem hoje nem nunca mais.
FÉ – Está cansada, ela diz. “É muito difícil.”
JENNIFER – (A Graça e Fé) Disseram que é preciso repetir e repetir?
GRAÇA – Ela acha que ninguém quer saber.
FÉ – Que todos preferem fazer de conta que tudo já passou e talvez seja melhor assim.
GRAÇA – Ela quer esquecer, no que faz muito bem.
FÉ – (Tenta argumentar) Mas se recordar é o que nos mantém vivas...
Flauta dá o tom da canção, entoada por Jennifer, Graça e Fé.
CANÇÃO DA MEMÓRIA
Esquece Esquece
Esquece Esquece
dizem as vozes dentro de mim
Esquece Esquece
Esquece Esquece
dizem todos
É impossível conviver
viver assim
Lembrar
de cada instante
reviver
sofrer de novo e mais.
Fecho os olhos
não importa se é noite ou se é dia
a lembrança me invade
como o ar que se respira
Um cheiro qualquer que seja
suor
do trabalho que seja
sangue
me lembra
me traz de volta
o medo
escorre
pelas pernas
paredes
parece que é agora.
Enquanto isso, Dora adentra vagarosamente à área de representação e cumpre o trajeto ritual de maneira triste e
cansada. Música prossegue apenas instrumental. Aproxima-se de Jennifer e a música cessa.
JENNIFER – Maria Auxiliadora.
GRAÇA e FÉ – Maria das Dores!
DORA – Dora!
Música prossegue apenas instrumental durante toda a fala de Dora.
DORA - Tantos nomes já tive.
Tantos rostos, vozes
que não caberiam no convés.
Morreram todos.
Maria das muitas dores
se foi
Maria de tantos Auxiliadora
não mais
Tantas Marias
Tantas Marias!
Tantos ais.
A operária
A professora
A camponesa
A companheira.
Morreram todas.
Clandestinas.
E quem restou?
A mais fraca.
Covarde.
Herdeira de todas as lembranças
da mensageira
da guerrilheira
da agitadora
Agitadora
Agita Dora
Dora
Dora!
Aquela que foi capaz de fazer o impossível
mas o que era necessário não foi dito
O adeus
pra quem dizer agora?
Retoma-se a música. Todas cantam.
JENNIFER – (A Dora) Obrigada, querida. (Às demais) Obrigada, meninas. (Ao público) Teremos
toda uma viagem para conhecê-las melhor.
Cena desmancha-se, atmosfera desfaz-se.
CENA 1 – PALAVRAS CRUZADAS
Flauta indica o que vem a seguir, mais leve. Ao menos no início.
JENNIFER – (Ao público) Como devem ter percebido, estamos no convés, onde ficaremos até o
final da representação. Agora são três horas da tarde. Peço que imaginem o sol no seu momento
mais quente, mas não, não se preocupem: uma brisa já foi providenciada. Crianças mergulham na
piscina, adultos desfilam as mais variadas cores e formas físicas, enquanto nossas as amigas
procuram relaxar às voltas com seus pensamentos.
A ideia é que as personagens estejam à beira da piscina, sentadas, a tomar sol e a refletir.
Jennifer enuncia ao microfone o pensamento das personagens. Elas podem ter uma discreta reação quando o seu
pensamento é dito. É importante que Jennifer dê um tempo entre cada fala para que o público perceba qual das
personagens está pensando tal frase. A maioria das falas de Jennifer nessa cena serão ao microfone, quando isso
não ocorrer, será anotado em rubrica.
JENNIFER – Obrigada, Senhor, pelo sol que aquece meu corpo e minh’alma! Eu aceito e
bendigo o que vem em Seu nome. (Suspira)
JENNIFER – Ah!... Se eu soubesse que era tão bom assim, tinha vindo antes! (Pequena pausa) Já
pensou morar em navio? Daqui a pouco vou pedir uma caipirinha. Num quero nem saber!
JENNIFER – Tanta gente... Será que se divertem mesmo? Ou divertir-se passou a ser uma
obrigação?
JENNIFER – Isso tá que nem a Colônia de Férias na Praia Grande! Como as crianças se
divertiam! O Tião se enfiava no baralho e eu não tinha de fazer comida!... Benzadeus!
JENNIFER – Chico... Se ele me visse nesse lugar... Acharia tudo isso tão... fútil. Na verdade é...
(Suspira)
JENNIFER – Esse lugar me incomoda... um pouco. Não sei direito... não sei o jeito certo de me
comportar. Devia era ter trazido alguma coisa pra ler...
Graça pega uma Recreativa - revista de palavras cruzadas – e um lápis na sacola. Folheia a revista até encontrar
uma cruzada vazia. Dora permanece quieta. Fé observa Graça, discretamente. Ela parece ter um pouco de
dificuldade na tarefa.
JENNIFER – Alvo, pontaria. Quatro letras. (Graça escreve enquanto Jennifer responde) Mira.
JENNIFER – O fluido que respiramos. Duas letras.
GRAÇA – (Enquanto escreve) Ar! (Fala para si, sem lembrar que será ouvida) Animal bravio. Quatro
letras... (Pensa)
FÉ – Fera.
GRAÇA – Fera! Obrigada. Fera.
JENNIFER – “Noite dos mascarados”, autor. (Enquanto Graça conta) Dois, quatro, oito, dez.
Doze letras...
GRAÇA – “Noite dos mascarados” é de quem mesmo?
FÉ – (Distraída, meio sem refletir) Ney Matogrosso?
DORA – (Determinada) Chico! Chico Buarque!
GRAÇA – Bingo! (Escreve) “Aquela que perdeu o uso da razão”, cinco letras?
DORA – LOUCA.
GRAÇA - (Soletra) L – O – U – C - A. Louca. Obrigada!
FÉ – (Tímida) Mas pode ser doida.
GRAÇA – O que você falou?
FÉ – Doida. Cinco letras. Pode ser doida.
JENNIFER – (Enquanto Graça apaga o que escreveu com a borracha acoplada ao lápis) É por isso que eu
faço a lápis. (Beija a borrachinha, volta a pensar)
DORA – Pode ser AUDAZ. Pode ser JOVEM!
FÉ – Sim. Jovem – aquela que perde o uso da razão!
DORA – Jovem... Põe aí! Vamos subverter!
DORA, GRAÇA E FÉ – Vamos subverter!
(Graça resolve obedecer. Escreve. Riem.)
FÉ – (Ao público) Subverter. Essa era a palavra de ordem na minha casa.
DORA / PAI – (Coloca um adereço masculino e torna-se o pai de Fé) Precisamos subverter a ordem,
Maria da Fé! Você mais do que ninguém, minha filha: você é jovem!
JENNIFER / MÃE – (Coloca um adereço feminino e torna-se a mãe de Fé) Cuidado, Feliciano! Essa
menina é da pá virada! (Ri)
FÉ – (Sorrindo, animada) O que o senhor está tramando dessa vez, pai?
DORA / PAI – Já conseguimos o posto de saúde, não conseguimos? Não sossego enquanto
todo mundo aqui do Zaíra não tiver escola!
JENNIFER / MÃE – O posto até que foi fácil, meu velho. Vereador ajudou em troca de voto.
Agora escola... é outra coisa. Mexe com governo...
DORA / PAI – Não interessa com quem vai mexer. Pode demorar um ano, dois, dez. O
importante é conseguir!
FÉ – Eu ajudo pai!
DORA / PAI – E eu não sei?!
GRAÇA - Meio de transporte. Seis letras.
DORA / PAI e FÉ – Ônibus!
DORA / PAI – Ônibus, claro! É muito longe até a estação. Pai de família acordando no escuro
ainda, pra ir tomar o trem!
FÉ – Puts grila! Ônibus ia ser uma mão na roda mesmo.
JENNIFER / MÃE – A meta da Sociedade Amigos de Bairro é conseguir uma linha pra cá até o
meio do ano. Já peguei assinatura na vizinhança. Tem uma folha na sua penteadeira.
DORA / PAI - Leva no grupo de jovens da igreja e na escola.
FÉ – Tem mais panfleto pra reunião de sábado?
JENNIFER / MÃE – Tão dentro da sacola de pão, atrás porta, escondidos.
DORA / PAI – E já sabe: se avistar um policial, jogue fora!
FÉ – (Suspira de cansaço) Pode deixar, pai. Eu sei.
JENNIFER / MÃE – ‘Cê tá cansada, né, filha? (Fé aquiesce) Ir trabalhar a pé, depois ir direto pra
escola. E esses dias de chuva, então!
DORA / PAI – A menina é forte! Puxou a você! Já colocou tudo na bolsa? Galocha, sombrinha,
marmita, livro, uniforme?
FÉ – Conseguimos abolir o uniforme, não contei?
JENNIFER / MÃE – Graças a Deus! Os alunos do noturno são sacrificados demais. Sua sacola
vai ficar um pouco mais leve, filha.
DORA / PAI – Oh notícia boa! A conscientização não falha, Maria da Fé!
FÉ – É! O Movimento Estudantil está uma brasa! A diretora teve de aceitar!
DORA / PAI – Parabéns! Você é mesmo batuta!
JENNIFER / MÃE – Mas cuidado! Diz que a polícia está de olho!
FÉ – Exagero, mãe. O golpe militar tem seis anos e não sabemos de ninguém que foi preso!
DORA / PAI – O padre tá sendo vigiado. A associação.
FÉ – Eles nem sabem que a gente existe!
DORA / PAI – O Zaíra é lugar esquecido do mundo pra quem mora aqui. Pra quem precisa
brigar dia após dia pela condição de viver feito gente. Mas pra quem vê de fora, pra polícia, Mauá
é movimento. O ABC é vida pulsante. E há de ser mais!
GRAÇA - Previsão. Augúrio. Nove letras.
FÉ – Presságio. (Ao público) Cinco dias depois, pertinho da hora do almoço, dois soldados
entraram no escritório em que eu trabalhava. “Maria da Fé dos Santos, é você?” Eu disse que
“Sim, por que?”. “Você tá detida. Pegue suas coisas e venha pra delegacia com a gente.”
GRAÇA – Toque de detenção! (Jennifer executa tensão no tambor)
FÉ – E não é que meu pai apareceu justinho naquela hora? Ele nunca me visitava no trabalho!
“Dá licença”, ele disse. “Ei, filha? Não vai almoçar em casa hoje?” Eu não almoçava em casa!
“Vai embora, pai, xispa daqui!!” - pensei, mas não disse.
“Tá acontecendo alguma coisa, filha?”. Os soldados responderam por mim: “O senhor é o
Feliciano dos Santos?” Meu pai confirmou. E também foi detido.
GRAÇA – Dificuldade, situação crítica. Quatro letras. Fri-a.
FÉ – (Ao público) Chegamos à delegacia para prestar depoimento e quem eu encontro? Colegas de
escola! Gente que eu via circulando feito sombra nas assembleias. Eram investigadores! Baixaram
os olhos e saíram da sala, arrastando a vergonha atrás de si. “ Você se reconhece nessas fotos?”
Era eu, claro! Liderando o movimento, distribuindo abaixo-assinados e panfletos. Era eu. Uma
jovem de 17 anos querendo a mochila um pouco mais leve.
DORA / PAI – (Ao público) “E o senhor, hein, seu Feliciano? Na sua idade? Que mutreta! Devia
estar de pijama, vendo Silvio Santos e não se metendo a comunista!”
Eu sei que essa lembrança é da minha filha, mas vamos fazer de conta que é minha também.
Naquela hora, tive vontade de dizer que graças a comunistas como eu, tinha gente vivendo em
condições um pouco mais dignas, coisas que capitalistas como eles não eram capazes de fazer.
Graças aos esquerdinhas, como eles chamavam, os moradores do Zaíra lutavam por saúde,
educação, transporte, saneamento básico.
Mas fiquei calado. Sabia que se respondesse ia ser muito pior. Pra mim e pra ela.
JENNIFER / MÃE – Não adiantou, porque eles nem voltaram pra casa. Da delegacia foram
direto pro DOPS, na capital.
GRAÇA / TORTURADOR – (Graça coloca um adereço e torna-se o torturador que gosta de palavras
cruzadas) Submissão. Rebaixamento moral. Dez letras.
FÉ – A humilhação começou logo na entrada.
GRAÇA / TORTURADOR – Chegou a ralé de Mauá! A festa vai ser boa!
FÉ – Aí foi que soubemos: não estávamos sós, muitos militantes de Mauá haviam caído.
GRAÇA / TORTURADOR – Povinho sujo, encardido e metido a besta.
Lugar de preto e pobre é no batente e não fazendo política, seus merdas!
Isso aqui tá lotado de jornalista, escritor. Intelectual! Aqui tem estudante e burguês, entende?
Olhem pra vocês! Periferia aqui... não orna... Não orna!
FÉ – (Ao público) Vocês compreendem que desmoralização também é tortura?
GRAÇA / TORTURADOR – A senhorita esteve envolvida em atos subversivos?
FÉ – Não.
GRAÇA / TORTURADOR – Vou ser mais claro: a negrinha distribuiu abaixo-assinados contra
as autoridades de sua cidade?
FÉ – Não!
GRAÇA / TORTURADOR – Como não!? O que são essas fotos? O que são essas listas, porra?!
FÉ – São assinaturas de cidadão de um loteamento chamado Jardim Zaíra, reivindicando seus
direitos a serviço de água e esgoto, esses daqui assinaram pra posto de saúde, e esses pra linha de
ônibus. São todos trabalhadores. (Pega o microfone de Jennifer) Levantam de madrugada, primeiro que
o sol, e vão trabalhar nas fábricas de porcelana, na indústria de São Bernardo, em São Paulo.
Voltam pra casa quando sol já foi embora. Eles não vêm seus filhos crescerem, não amam suas
mulheres da forma que elas merecem e o carinho que delas recebem é medido pelo cansaço do
dia. São parados pela polícia por causa da sua cor, muitos apanham. Mas continuam lá. Sem
armas, sem outra defesa senão listas de abaixo-assinado como essas. E se o senhor olhar bem,
tem alguns que nem sabem escrever direito o próprio nome! (Um tempo. Devolve o microfone. Fala ao
público) Na hora, disse apenas que eram abaixo-assinados pra melhorias do bairro.
GRAÇA / TORTURADOR – A vagabunda confessa que foi uma das líderes do movimento
estudantil? Que fez panfletagem de assembleias e paralisações? Que participou de reuniões de
comunistas? Diga! Por que não abre a boca? (Pega a revista de palavras cruzadas) Afligir. Castigar.
Oito letras. Grito de agonia! Três letras.
FÉ – (Ao público) Sofri todo tipo de violência e a tudo respondi com o silêncio. Mandavam-me de
volta para a cela, onde as companheiras aguardavam com um misto de curiosidade e compaixão.
“O que te perguntaram?”, “O que você disse?”. Tudo e nada.
GRAÇA / TORTURADOR – ‘Cê tá numa arapuca, Maria da Fé. Acabaram de confessar: você é
quem aliciava os jovens pras reuniões lá naquela sua terra de índio. A sua ficha, ó. Tá ficando
grande... Mas se você der os nomes que eu ‘tô pedindo...
FÉ – (Começa calma, mas vai se inflamando ao longo da narrativa) Não dei. Eu não sabia do que ele
estava falando. Às vezes sonhava que tinha dedurado alguém. Acordava sufocada, o coração
disparando. Respirava fundo e rezava.
GRAÇA / TORTURADOR –Testemunhar. Assistir. Três letras. Sabe o que é? Não sabe?!
Chama o pai da donzela aqui.
MÃE – De todas as torturas possíveis, aquela foi a pior. Ter o pai à sua frente, sofrendo as
mesmas humilhações que você, te machuca mais que tudo. E a ele também. Mil anos envelheceu
ao ver a filha alquebrada. Perguntavam quem ele havia recolhido em nossa casa. Queriam que
delatasse os amigos, denunciasse os planos do Partido. O silêncio foi igualmente sua resposta. Os
pontapés, o açoite e os choques foram a resposta da polícia.
GRAÇA / TORTURADOR – Chame pelo seu Deus agora!
Onde ele está que não aparece aqui para salvar vocês?
FÉ – (Cansada) Podemos parar?...
JENNIFER – (Tira os óculos ou o lenço) Você é quem sabe.
GRAÇA – (Tira a gravata. Compreensiva:) Não sei por que você começou. Era só um jogo de
palavras cruzadas!
DORA – (Que já tirou o chapéu) Está sentindo alguma coisa? (Fé acena que não)
FÉ – Não sei por que vim! O meu lugar não é aqui! (Dora e Graça se acercam de Fé)
GRAÇA – (Levanta o braço) Para tudo! Pode parar! (Levanta o braço, ao público) Acho que é hora de
pedir uma caipirinha!
JENNIFER – (Ao microfone) Vai fugir ou vai ficar, Maria da Fé? O que você faria se encontrasse
o seu torturador aqui, nesse navio, gozando férias?
FÉ – (Confusa) O que?!
JENNIFER – (Ao microfone) Não com a rifa da igreja, mas com o dinheiro do contribuinte. Ele
virou juiz, se aposentou. Recebe uma nota preta e está aqui, nesse paraíso que só não é melhor
que o cruzeiro “Emoções” – que ele já foi duas vezes: uma com a esposa e outra com a amante.
FÉ – (Pressionada) Eu não sei!
JENNIFER – (Ao microfone) Isso é teatro, Maria da Fé! Vamos!
O que você faria se com ele se encontrasse?!
Tambores marcam o tom forte de tensão e suspense. Fé vira-se para o público, na expectativa. Foi para isso que
ela embarcou: para o seu confronto.
Enquanto isso, Graça coloca ritualisticamente em si a máscara de demônio. Trata-se de uma marcação agressiva,
violenta. Há forças em jogo. O Mal se aproxima novamente de Fé e ela terá de enfrentá-lo.
Graça / Torturador pega o microfone de Jennifer, modifica a postura e avança sobre Fé.
GRAÇA / TORTURADOR - Enfim nos reencontramos, Maria da Fé dos Santos!
Jennifer e Dora se afastam. Graça / Torturador evolui ao redor de Fé, que parece não compreender totalmente o
que acontece. Música continua. Torturador usa de um deboche cada vez mais agressivo - tortura moral.
Continua morando no Zaíra?!
Ah, mas que pergunta! É claro que sim.
Então o que faz aqui?
Isso não é uma lotação! Não é um trem apinhado!
Maria da Fé, cuidado! Todos olham pra você...
O tempo passou e continua ralé.
Lutou, sofreu e a indenização não saiu?
O governo não cumpriu o combinado?
E a aposentadoria? Dá pros remédios ou precisa pedir emprestado?
Tola, ignorante. Seis letras.
Idiota!
Tem nego que levou só um tapinha
E já recebeu uma nota!
Continua lutando por creche?! Por asfalto e UBS?! (Ri)
(Feroz. Tambores se intensificam) Maria da Fé! Você rezou pro Deus errado!
Tambores cessam. Graça / Torturador estaca em posição de ataque ao lado de Maria da Fé, que se impressionou
com toda aquela representação.
Fé toma coragem, respira. Vira-se e encara o torturador. Toca nele, examina-o de perto – coisa que nunca fez –,
já que ele está imóvel. Tudo ao som de tamboril e flauta, numa atmosfera de mistério. De frente para a figura,
tira-lhe o microfone. Música cessa.
FÉ – (Ao microfone, tranquila, vira-se para o público) Isso é teatro.
Atrizes tomam seus instrumentos para a evolução de Fé em forma de jongo.
CANÇÃO DO ENFRENTAMENTO
Eu lembro do seu rosto.
Como esquecer?
Sua voz está presente em meus ouvidos.
Seu gesto violento
Sem sentido
Ainda agride.
Saber que ele está vivo,
que respira o mesmo ar,
que embora provado seu crime
ele não foi punido,
ah!
o terror me invade.
Porque a impunidade
Multiplica a violência
E ela está presente em cada esquina
É só virarmos a cabeça.
Ali um negro, um pobre,
ali um índio, um mendigo,
uma mulher,
alguém que escolheu ser o que quer
independente da norma.
Seja lá quem for
a arma está apontada pra todos
de qualquer forma.
Porque eles estão livres –
sempre estiveram:
os donos da lei e do poder.
Eu lembro do seu nome.
Como esquecer?
Seu riso está presente em meus ouvidos.
Seu gesto violento
Sem sentido
Ainda agride.
Mas meu coração resiste!
O que fazer?
Ele está vivo!
Bate forte
cada vez que uma injustiça
é revelada.
E é por isso
que embora frágil e cansada,
embora triste, pequena e desarmada,
permaneço na linha de frente do conflito!
Ao terminar a canção, Fé pega a máscara de modo a vê-la de frente. Posiciona-se de frente para o público, no
centro da cena.
FÉ – Isso é teatro!
Lugar de onde se vê
alguma coisa que primeiro
nasceu da imaginação.
Imaginemos então,
para que daqui um tempo
a verdade possa ser vista!
Olha para a máscara. Atrizes com seus instrumentos ocupam a área de representação. Fé continua com o microfone: agora
ela comanda a cena. Retomam a trilha musical da cena anterior, do ponto em que o trecho parou.
GRAÇA – Quer ajuda?
FÉ – (Ao microfone) Quero. Pode repetir a deixa?
GRAÇA – A marcação toda?
FÉ – (Ao microfone) Não. Só a fala.
GRAÇA / TORTURADOR – (Fala sem a movimentação da cena anterior, mas com a entonação. Fé encara
a máscara em sua mão, enquanto Graça/Torturador fala).
Isso não é uma lotação! Não é um trem apinhado!
Maria da Fé, cuidado! Todos olham pra você...
O tempo passou e continua ralé.
Você rezou pro Deus errado!
Graça/Torturador sai e junta-se às outras atrizes para a condução do som. Fé faz um gesto de agradecimento a
ela. Enquanto fala ao microfone, olha para a máscara e para o público, alternadamente, buscando cumplicidade.
FÉ – (Ao microfone) Isso é teatro.
Não é você que está aqui, mas a imagem que tenho de você.
E como é teatro eu também não sou Eu.
Sou muitas que padeceram nas suas mãos. Nas mãos deles.
Portanto, não falo só em Meu nome, mas em nome de todas que sobrevivemos, que respiramos
o mesmo ar de nossos torturadores, ainda hoje, no metrô, nas ruas e delegacias, no assédio do
chefe, na violência do namorado ou do marido, no caminho de volta à noite, nos pesadelos em
que gritamos NÃO! e que não somos ouvidas.
Não falo só em meu nome,
mas em nome de todas:
Sou eu que determino onde é o meu lugar.
O Jardim Zaíra, onde nasci, cresci e me fiz gente
ou esse navio, que me foi dado de presente.
A praça, a rua, a cidade. A escola
de samba, a universidade.
Sou eu que determino onde quero chegar.
Não é você nem ninguém
que vai dizer quem eu sou
e onde eu posso
ou não posso
estar.
Agora falo em meu nome e só no meu.
Eu venci.
Você perdeu:
eu sobrevivi!
Amei. Fui amada. Pari.
De mim nasceu a vida!
De você a morte foi nascida!
Porque o seu deus
é o deus do inferno
pra quem a sua alma foi vendida!
Desliga o microfone, caminha, coloca-o em seu lugar, deposita solenemente a máscara em algum ponto da cena e volta.
FÉ – (Ao público) Agora eu sei por que estou aqui. Isso é teatro!
Atrizes retomam marcação mais intensa dos tambores. Fé integra-se à banda, anunciando-se com um grito de
guerra ou exorcismo.
FÉ – Eyá!
As quatro atrizes tocam. Vez ou outra emitem sons vocais. A música é o seu exorcismo.
Dura um certo período e, com a mesma intensidade do início, cessa.
CENA 2 – NOITE DOS MASCARADOS
Terminada a música da cena anterior, instaura-se uma atmosfera mais leve. Apenas Dora parece cansada ou
meditativa.
Ao som da flauta de Jennifer, que observa a movimentação das demais, Graça leva para fora de cena a máscara.
A ideia agora é que seja noite e estejam próximo à proa. A composição deve ficar apontada para “o mar”, ou seja,
em outra direção que não o público, que supostamente está no navio. Fé sai da área de representação. Dora posta-
se à proa como a olhar o mar. Um tempo nisso. Jennifer toca um pouco ainda, antes de falar.
JENNIFER – (Ao público) Sempre que me pego a lembrar de Dora é noite.
Ou faz-se noite quando dela me recordo?
Não importa...
Há pessoas solares. Conhecemos pelo riso solto,
pelo olhar esperto que vasculha em todas direções,
pelo rio de palavras que de seu peito brota.
E há os seres noturnos. Têm fases como a lua
e seu ritmo
é o de quem percorre uma floresta escura.
Cuidadosos no olhar, na fala comedidos.
Parecem guardar um segredo, enterrado,
deles mesmos escondido.
Em tantos anos sobre o mar
nunca soube de história como essa.
E se lhes conto agora
é pra que me façam a promessa de
contá-la a outros mais,
para que algo assim não se repita.
Para que a memória grave em tinta
permanente
o que se quer enterrado, esquecido,
mas que somente quando revelado
poderá, enfim,
ter o descanso merecido.
(Muda para um tom narrativo) Até onde consigo me lembrar, faltava bem pouco para a meia noite.
Todos haviam se dirigido ao salão de festas para o tradicional baile a fantasia – famoso em todos
os cruzeiros!
Podiam-se ouvir as músicas. A alegria.
Vez ou outra um casal saía até os cantinhos mais escuros.
Um pirata e uma bailarina,
dois super-homens,
duas colombinas...
Dora escala a proa, tencionando jogar-se ao mar.
JENNIFER – Ninguém percebeu nossa amiga Dora
prestes a aceitar o chamado de amor
que as ondas lhe faziam.
À noite esse chamado é mais vivo
e não há música capaz de encobri-lo.
Mas voltemos no tempo –
isso é teatro!
Para sabermos quem das ondas chama Dora
E por que
ela atenderá ao seu chamado.
Dora e Graça – agora militantes amigas de juventude de Dora – entram com máscaras e algum adereço de
fantasia. Jennifer e elas tocam e cantam um trecho de “Noite dos mascarados”:
- Quem é você?
- Adivinha, se gosta de mim!
Hoje os dois mascarados
Procuram os seus namorados
Perguntando assim:
- Quem é você, diga logo...
- Que eu quero saber o seu jogo...
- Que eu quero morrer no seu bloco...
- Que eu quero me arder no seu fogo...
DORA – (Sem descer ainda) Shhhh! Vocês ‘tão lelé da cuca?! Tá cheio de milico no pedaço, eles
podem ouvir!
GRAÇA / FATIMINHA – É só uma música de carnaval, Maria das Dores! Desce da vigia!
DORA – (Descendo depressa) E desde quando esse lugar é salão de baile?
GRAÇA / FATIMINHA – Ah! Você é muito caxias! Corta o barato da gente legal!
DORA – Fatiminha, você é nova na organização, mas já devia ter lido o livro de segurança. E tá
lá: o militante não deve chamar a atenção para si.
GRAÇA / FATIMINHA – (Faz cara de enfado e recita) “As mulheres não devem andar com jornal
na mão, fumar na rua e tomar cafezinho em bar”. Eu li! E obedeço! (Tenta ser convincente) Mas é
carnaval!
FÉ / RUTE– A gente veio te chamar pra festa, Maria das Dores.
DORA – Não sei como conseguem pensar em festa com tudo isso acontecendo, Rute!
FÉ/RUTE – É justamente por isso que a gente pensa em festa. Pra ver se dá um pouco de
risada. Mandar essa urucubaca pra longe!
GRAÇA / FATIMINHA – Sabe quem vai tá lá? O Chico... Perguntou se você iria...
DORA – O Chico?! Impossível! Ele é o mais CDF de todos, Rute! (Ao público) Chico era o galã
da organização. “Um pão”, como se dizia.
GRAÇA / FATIMINHA – (Ao público, com tesão) Marlon Brando em ‘Um bonde chamado
desejo”.
FÉ / RUTE – (Ao público, romântica) Clark Gable em “E o vento levou”.
Graça e Fé suspiram ao mesmo tempo.
JENNIFER – (Ao público) Traduzindo: O Chico era uma mistura de George Clooney, Johnny
Depp e... (Pede sugestão às atrizes e ao público e fala algum nome que melhor convier) Isso! Fechou!
DORA – E era uma das lideranças. Vinha de fora e como eu começara a luta no movimento
estudantil. (Nostálgica) Nunca soube seu nome verdadeiro, será que um dia ele soube o meu?...
JENNIFER – (Ao público) Chico nunca soube o nome de Dora. Eram da militância clandestina e
saber o nome verdadeiro uns dos outros era condená-los à morte.
FÉ / RUTE – (Ao público) Primeira reunião do grupo de Santo André! Eu estava lá e vi quando o
amor nasceu!
Atrizes fazem burburinho de reunião.
JENNIFER / CHICO – Questão de ordem! Por favor! (Ao público) Agora eu sou o Chico.
(Silêncio aos poucos se instala) Gostaria de saber se todos compreenderam as orientações. A maioria
de vocês é estudante, como eu já fui, mas é preciso deixar claro: isso aqui não é movimento
estudantil. As reformas precisam começar na base e quem está na base?
FÉ / RUTE – (Levanta a mão) Na base está quem trabalha, quem carrega o país nas costas, como
nós aqui no ABC.
JENNIFER / CHICO – Muito bem, Rute! É a eles que devemos nos juntar. Deixar nossos
pensamentos e hábitos burgueses e viver a realidade proletária, operária, camponesa,
compreendem?
DORA – (Levanta a mão) Eu venho de seis meses na frente camponesa. Atuei como professora.
Foi um bom trabalho, mas o principal foi a certeza de que a revolução pode começar por lá,
desde que haja formação e informação.
JENNIFER / CHICO – Obrigado pelo testemunho...
DORA – Maria das Dores.
JENNIFER / CHICO – Maria das Dores.
FÉ / RUTE – Um olhar mais demorado entre os dois. Assim. (Dora e Jennifer se olham) E pronto.
Quem disse que a revolução é movida tão somente pelo ódio?
Fé e Graça postam-se para a música e começam a tocar e cantar. Dora e Jennifer / Chico dançam abraçados e
mascarados de Pierrô e Colombina.
TODAS - Fui porta-estandarte,
Não sei mais dançar.
- Eu, modéstia à parte,
Nasci pra sambar.
- Eu sou tão menina...
- Meu tempo passou...
- Eu sou Colombina!
- Eu sou Pierrô!
JENNIFER – (Ao público) Chico e Maria das Dores, Pierrô e Colombina, decidiram ficar juntos.
Na militância não há tempo a perder: agarra-se a vida o mais forte possível porque não se sabe
até quando... Amaram-se o mais que puderam enquanto lhes foi permitido.
DORA – (Ao público) Em todos os lugares por onde passamos, fomos acolhidos por
simpatizantes da causa revolucionária como Dona Gertrudes e seu Adamastor...
GRAÇA / GERTRUDES – (Ao público, cautelosa, como se falasse algo arriscado) Simpatizantes
também correm riscos. Eu e meu marido, por exemplo, não é, Adamastor? (Fé chega perto, como
marido)
FÉ / ADAMASTOR – Pra vizinho curioso, a gente diz que eles são parentes.
GRAÇA / GERTRUDES – Pra parente curioso, diz que eles são amigos. E assim por diante...
Ah! E não fazemos perguntas!
FÉ / ADAMASTOR – (Ao público, mais destemido, impaciente) A gente não concorda com o jeito
que as coisas estão! Intervenção militar, vigilância por todo lado, censura. Primeiro prende,
espanca e depois pergunta! Onde isso vai parar? E se o sujeito é pobre, então! Aí tá num mato
sem cachorro! Periga nem voltar pra casa. Puf! Dão sumiço! Aconteceu com vizinho nosso. Um
rapaz honesto, trabalhador...
GRAÇA / GERTRUDES – (Cortando a fala do marido, que se empolgara. Pede silêncio e cuidado) Shhh!
(faz sinal de que podem estar ouvindo) Cuidado, homem! (Continua ao público, cuidadosa) Como não
temos mais idade nem saúde pra lutar, damos abrigo a esses jovens como se filhos fossem. É
preciso dar-lhes apoio: eles lutam por nós! (Marido concorda, fazendo positivo com o dedo, em silêncio)
DORA – (Ao público) Em Mauá, moramos num quartinho úmido e gelado. Chico se infiltrou
como operário numa fábrica de porcelana e eu, em outra. Mudei de nome de novo, por causa da
segurança. Virei Maria Auxiliadora. Novos documentos, novo corte do cabelo. Comecei até a
usar vestido, coisa que não combinava comigo, mas o personagem pedia. Quem era eu naquele
espelho? Às vezes demorava um pouco pra lembrar quem é que estava ali, sabe? Era uma
fantasia, um papel que precisava convencer aos outros e a mim mesma. (Suspira)
JENNIFER / CHICO – (Ao público) Depois, nova mudança, dessa vez para Ribeirão Pires.
Outro nome, outra profissão, um novo disfarce. Mas à noite! A revolução era de outra ordem.
Nunca o ser humano faz tanto amor quanto nos tempos de guerra.
DORA – Chico.
JENNIFER / CHICO – O que foi?
DORA – Promete não ficar bravo?
JENNIFER / CHICO – Não posso prometer antes de saber.
DORA – (Chateada) Eu tô grávida. (Pausa) Não vai dizer nada?!
JENNIFER / CHICO – Não. Você já sabe o que eu penso.
DORA – (Depois de pausa.) Mas eu não concordo com o que você pensa. Não agora. (Ao público)
Eu já tinha feito dois abortos. No tipo de vida que a gente levava não cabia filho, não cabia
criança.
JENNIFER / CHICO – Não tem espaço pra isso. Filho segura a gente e o nosso compasso é
fugir. Não pode saber nosso nome, que é perigoso pra ele. O que a gente faz também não deve
saber. Como viver assim?
DORA – (Ao público) Eu sabia de tudo aquilo. E concordava. Mas não era a razão que falava. Não
sei. Eu nunca pensei que diria isso um dia: (A Jennifer/Chico) Chico, é a natureza. Não ria! Não
brigue! É você, dentro de mim. É a vida que insiste. E dessa vez eu direi que sim. (Sobe novamente
na proa, como se fosse atirar-se)
GRAÇA – (Traz uma máscara no rosto e outra, a mesma do passado, de Colombina, na mão. Sua intenção é
chamar Dora para a festa, mas a vê prestes a jogar-se) Dora! O navio está em festa! Vem! O que você
está fazendo, mulher? Dora! (Dora sai de uma espécie de transe e desce novamente, voltando-se para Graça,
que já tirou a própria máscara) O que aconteceu? (Abraça a colega)
DORA – O chamado. De novo.
GRAÇA – Ah! Esquece! O que passou, passou! Lembrar pra que? Há uma festa no salão! Olhe!
(Oferece a máscara) Eu trouxe pra você.
Dora pega a máscara e a observa. Fica confusa. Olha para o público. Olha para o ambiente. Onde está? No
navio ou no passado? Devolve a máscara.
GRAÇA – Se não quiser lembrar, não precisa. Vai doer. Pra quê?
DORA – O encontro!
GRAÇA – (Oferece a máscara) Tome essa máscara! Venha pra festa à fantasia! O que passou é
como o rastro de espuma deixado pelo navio conforme avança. Aos poucos se dissolve,
incorpora-se ao mar. É passado! E é para a frente que se deve olhar!
DORA – (Tomando a mão e a máscara da amiga, olhando seus olhos) É porque eu olho para a frente que
essa máscara não me serve mais. É a verdade que eu procuro!
Graça abaixa a cabeça, desiste. Vira-se ritualmente e retorna para fora de cena ao mesmo tempo em que Dora se
dirige novamente à proa, vigilante, e Fé / Miguel avança para junto dela, com uma mochila nas costas.
FÉ / MIGUEL – Mãe!
DORA – Miguel! Meu querido! (Ao público, um pouco confusa) É o meu filho! Aos cinco anos! Como
pode?
FÉ / MIGUEL – Vamos ou não vamos?
DORA – Você está pronto? Pronto mesmo? (Menino faz que sim com a cabeça. Ela ajoelha-se para
conversar com ele, movendo Fé/Miguel a também se ajoelhar, olhando em seus olhos e segurando suas mãos)
Colocou na mochila tudo que eu pedi? (Fé/Miguel aquiesce)
FÉ / MIGUEL – A gente vai encontrar o meu pai hoje?
DORA – Não. Seu pai ainda está viajando. Nós vamos fazer igualzinho a gente sempre faz.
Lembra?
FÉ / MIGUEL – Eu vou ficar dentro da igreja do Carmo e não vou sair até você voltar.
DORA – Muito bem. Não demoro mais que meia hora.
FÉ / MIGUEL – Eu já sei ver as horas. O Rodrigo também tem cinco anos e ainda não sabe!
DORA – Você é um menino muito esperto. Tome aqui o meu relógio. Conte meia hora e se eu
não tiver voltado, mostre o bilhete pro padre. Ele te leva até a casa do vovô. Entendeu? (Miguel
concorda) Agora me dê um abraço bem gostoso. (Abraçam-se demorado. Levantam-se. Dora toma a
direção do fundo da cena para sair) Vamos. (Começa a andar)
FÉ / MIGUEL – (Atrás) Mãe!
DORA – (Volta-se) O que?
FÉ / MIGUEL – Depois a gente pode ir no Bazar Augusto?
DORA – Pode.
FÉ / MIGUEL – Eu queria uma caixa de canetinha sylvapen de doze cores!
DORA – (Pegando-o pela mão e saindo) A gente compra.
FÉ / MIGUEL – Oba!
Dora dá um beijo na testa do filho e deixa o menino fora da área de representação. Dá meia volta e olha para os
lados, como que procurando alguém. Anda em direção à proa. Está nervosa, embora procure controlar-se. Pergunta
as horas a alguém imaginário que passa. Espera.
JENNIFER – (Ao público) Depois que Miguel nasceu, Dora e Chico tiveram de se separar: a
presença de mulher e filho colocaria em risco a segurança de todos. Ela permaneceu em Ribeirão,
escondida, e ele foi para São Paulo. Pouco via a criança. Os encontros com a companheira eram
marcados com muita antecedência e sempre cercados de cuidados.
DORA – (Ao público) Naquele dia marcamos na estação de Santo André. Lugar de movimento,
pra que a gente passasse despercebido. Deu quinze minutos e ele não apareceu. Era um sinal: fora
preso e eu seria a próxima.
JENNIFER – Dora conta que voltou correndo pra igreja. A boca seca, o peito apertado, uma
vontade de chorar sufocada na garganta. Mas nada foi pior...
DORA – Pode deixar que eu falo. Nada foi pior do que não encontrar Miguel no lugar
combinado. Meu corpo pedia um desmaio, mas ainda tive tempo de perguntar a uns e outros se
tinham visto o menino de calção azul e bonezinho vermelho. (Corre até a proa, sobe e procura)
GRAÇA / TORTURADOR – Com licença. É a senhora que procura um guri que trazia esse
bilhete no bolso? (Assim que Dora se vira, Graça/Torturador coloca a máscara no rosto) Pode me
acompanhar, por favor? (Pausa) Já já a senhora vai saber onde o menino está.
Dora desce da proa e desfalece. Graça / Torturador continua presente.
FÉ / RUTE – (Enquanto Dora ainda está no chão, agora da cela, Fé/Rute fala ao público, pausadamente,
sem drama) Dessa vez eu, que já fui Maria da Fé e agora sou Rute, não estava junto, mas sei
perfeitamente o que aconteceu com ela e com todas as outras. Os torturadores, sem exceção,
eram homens. A violência contra a mulher ia além da punição política. Atingia o feminino:
mulheres grávidas foram desrespeitadas, outras foram torturadas na frente dos filhos pequenos.
Crianças foram torturadas na frente de suas mães. Muitas morreram. Eu sei. (Afasta-se)
GRAÇA / TORTURADOR – (Vira-se para o público, com a máscara na mão. É como se fosse o porta-voz
da máscara) Agora eu pergunto: por que elas precisam se meter com política? Alguém sabe me
dizer? Então que aguentem o traço, ora bolas! Escolheram sair de casa, escolheram a agitação,
não escolheram? A vida bandida não escolheram? Minha esposa, por exemplo, está em casa.
Minhas filhas eu sei onde estão. Essas outras abriram mão de sua condição de mulher: ser
protegida, amparada, cumpridora dos deveres do lar. Prostitutas, portanto. Vacas! Assumam o
matadouro! Se eu me arrependo? Eu estou cumprindo ordens! Esse é o meu papel. (Dirige-se a
Dora) Não aguentou, né? Levanta daí, oh, monte de merda, que você vai ser transferida pro
hospital! (Sai)
Um tempo enquanto Dora levanta-se e vai até a proa. Flauta ao fundo.
DORA – (Ao público) Não esperem de mim detalhes. Do que o meu corpo se lembra, minha
língua é incapaz de traduzir. Estou aqui. É só o que sei. As companheiras Rute e Fatiminha não
resistiram. (Fé/Rute dá meia volta e encaminha-se para fora da cena) Partiram antes de viver um grande
amor, de terem filhos. Chico, soube que morreu no Rio de Janeiro. Desapareceu, alguém disse.
Foi jogado ao mar! (Vira-se, olha o mar por um tempo, à procura. Chama) Chico!
Fé e Graça entram cantando e tocando, suavemente. Dora escuta e vira-se. Vê Jennifer / Chico se aproximar.
Mas é Carnaval!
Não me diga mais quem é você!
Amanhã tudo volta ao normal.
Deixa a festa acabar,
Deixa o barco correr.
Jennifer / Chico posta-se frente a frente com Dora, com certa distância.
Deixa o dia raiar, que hoje eu sou
Da maneira que você me quer.
O que você pedir eu lhe dou,
Seja você quem for,
Seja o que Deus quiser!
Seja você quem for,
Seja o que Deus quiser!
Chico estende o braço para Dora, que se aproxima. Os dois se abraçam. Música recomeça em bocca chiusa ou na
flauta por alguns instantes enquanto atrizes saem da área de representação.
DORA – Chico!
JENNIFER / CHICO – Você me chamou. Eu vim.
DORA – Você aqui?! E agora eu não sei o que dizer!
JENNIFER / CHICO – Não é preciso.
DORA – Há anos viajo nesse navio à sua procura. Há anos repito a mesma história. Quem sabe
alguém me fala de você. (Jennifer/Chico a encara e não responde) O que foi? Não acredita?
Jennifer / Chico olha à volta, sem jeito. Disfarça. Volta. Sorri para ela.
DORA – O que aconteceu?!
JENNIFER / CHICO – Você não sabe? (Dora nega. Um tempo) Do que se lembra antes de
embarcar?
DORA – Não sei. Faz tanto tempo!
JENNIFER / CHICO – Miguel, nosso filho. Onde ele está?
DORA – Miguel? Está com os avós. Eu o deixei na igreja do Carmo, ele foi... levado para a
delegacia... (Começa a ficar confusa) ficou na minha frente, assistindo e... Eu não podia fazer nada,
Chico! Ele viu tudo, coitadinho! (Afirmativa) Está com meus pais. Preciso buscá-lo! As canetinhas.
Eu comprei. E um caderno de desenho. Vamos entregar a ele, agora que eu te encontrei! (Tenciona
sair. Jennifer/Chico a segura e olha para ela) Vamos!
JENNIFER / CHICO – Dora... Nós estamos mortos.
DORA – (Depois de pausa consistente, vai ao microfone para falar) Não! Você está morto! Foi jogado ao
mar como tantos companheiros!
Mas porque isso é teatro eu consigo estar frente a frente com você, te abraçar e dizer: vamos
encontrar o Miguel e começar tudo de novo.
Eu poderei saber seu nome verdadeiro e revelar o meu! (Chico silencia)
Eu não estou morta, Chico! Meus pais ainda me esperam com a mesa posta! Há um lugar para
mim nas festas, minhas roupas ainda repousam no armário porque meu corpo não foi sepultado!
(Chico a abraça. Ela repousa a cabeça em seu ombro, cansada. Desvencilha-se e tenta mais uma vez:) Eu estou
viva!
JENNIFER / CHICO – (Depois de pausa, sereno) Você morreu na transferência para o hospital.
Hemorragia, por isso não se lembra. Deram sumiço no corpo, como fizeram comigo.
Agora você já sabe. Não precisa mais me procurar.
DORA – (Ao microfone) Meus pais?...
JENNIFER / CHICO – Já partiram, sem saber de você. E Miguel já é um homem! Tenta provar
que seus pais existiram um dia. Que um dia se amaram e que ele é fruto desse amor e não do ódio
que matou tanta gente. Está difícil! Mas o importante é que ele está vivo!
DORA – (Vitoriosa, ao microfone) Miguel está vivo! Então nós também estamos!
CHICO – (Vai também ao microfone0 Nós estamos vivos porque isso é teatro! Agora podemos ir.
Vamos?
Fé e Graça retornam à cena. Observam Dora, que olha para Jennifer/Chico e para elas, cúmplice. Amigas a
abraçam. Ajudam-na a trocar o figurino.
DORA – Outro figurino? Outro personagem?
JENNIFER / CHICO – O último. (Oferece o braço a Dora, que o enlaça.)
Os dois caminham em direção à proa, como noivos. Dora vira-se, acena o braço para as amigas. fé e Graça
acenam em resposta. Todos cantam à capela, enquanto a cena se desfaz, como se tudo aquilo fosse teatro.
Mas é Carnaval!
Não me diga mais quem é você!
Amanhã tudo volta ao normal.
Deixa a festa acabar,
Deixa o barco correr.
Deixa o dia raiar, que hoje eu sou
Da maneira que você me quer.
O que você pedir eu lhe dou,
Seja você quem for,
Seja o que Deus quiser!
Seja você quem for,
Seja o que Deus quiser!
Todas cantam e, a partir do Laraiá final, Jennifer / Chico, encaminha Dora para fora de cena. Fé também sai.
Graça fica parada no meio da cena, de frente para o público. Cantoria termina.
Jennifer coloca-se ao lado de Graça, em silêncio, a olhar o horizonte.
CENA 3 – VIDA NOVA
Madrugada. Graça e Jennifer fitam o horizonte/público. Não há aflição nem romantismo. Respiram
profundamente.
JENNIFER – (Fala olhando para o público, mas dirigindo-se também a Graça na intenção, como a puxar
conversa) Essa é a hora de que mais gosto. (Pausa) Madrugada. Silêncio. (Respira) A agitação do
navio ficou para trás. À nossa frente o mistério do dia que vai nascer. (Graça não esboça reação.
Dirige-se a ela) Não é bom? É como voltar ao palco depois do espetáculo terminado e constatar
que o público se foi, mas seu espírito permanece. (Respira. Para Graça, com cautela) Em quê você
está pensando?...
GRAÇA – No cruzeiro do Roberto Carlos.
JENNIFER – (Com humor) Não acredito!
GRAÇA – E na caipirinha, que eu tô pedindo desde o começo e ainda não veio!
JENNIFER – (Entra no jogo) Não seja por isso! (Chama um garçom imaginário, pega um copo imaginário e
entrega a Graça) Aqui está!
GRAÇA – (pega o copo, dá uma chacoalhada e bebe pelo canudinho. Estala a língua) Oh! Delícia!
(Provocando Jennifer) Agora me traz o Roberto. (Encontra algum rapaz na plateia e brinca) Você não
quer ser o Roberto Carlos e cantar só pra mim, aqui? Qualquer música! Vem! Canta o
calhambeque! (Ri, beberica de novo) Brincadeira. Só pra descontrair. Que agora chegou a minha vez
de falar e eu tô fugindo da raia.
JENNIFER – A caipirinha vai ajudar.
GRAÇA – Nada! Ajudaria se eu tivesse alguma coisa que presta pra dizer. (Bebe) Quem vai querer
saber de uma dona de casa, Jennifer?! Vocês já viram alguma “do lar” nos livros?! A nossa vida
se faz no pequeno, em tudo que não se nota. É costura de bainha, que fica escondida. É remendo
pra disfarçar o que se rasgou: ninguém percebe. A nossa história é no miúdo que se faz, e a
História importante, aquela que interessa, precisa é de grandezas! (Sorve o último gole, fazendo barulho.
Devolve o copo) Obrigada. Tava uma delícia. Agora me deixa quieta.
JENNIFER - (Chama novamente o garçom e devolve-lhe o copo. Ao público) Não foi fácil convencê-la a
mergulhar no passado. E se uma hora isso aconteceu, foi pelo acaso de uma canção. (Canta à
capela. Graça se encanta, vira-se) La festa è appena cominciata
È già finita
Il cielo non è piú con noi
GRAÇA – (Enquanto Jennifer canta) Ah! Assim você acaba comigo!
JENNIFER – (Transporta Graça delicadamente, ao tablado, enquanto canta) Il nostro amore era l'invidia
Di chi è solo
Era il mio orgoglio
La tua allegria
GRAÇA – (Graça já no tablado) Roberto Carlos. Festival de San Remo!
JENNIFER e GRAÇA – Chissà se finirà
Si un nuovo sogno
La mia mano prenderà
Se a un'altra io dirò
Le cose che dicevo a te
GRAÇA – (Ao público) As notas da canção me levaram de volta à São Bernardo do Campo dos
anos 60. Às ruas de terra! (Fecha os olhos e visualiza) À serração: uma névoa branquinha de manhã e
no começo da noite. Cheiro de mato. (Abre os olhos) E a italianada! Festa do vinho novo. Sardinha
assada na brasa! (Sente o cheiro) Agora eu lembro! Trouxeram de volta meu pai, calabrês, dono de
olaria em São Bernardo e em Ribeirão Pires! Trouxeram também minha mãe.
JENNIFER – (Ao público) A mãe de Graça, dona Antonieta, tinha uma cabeça diferente das
outras mães.
GRAÇA – (Pegando o ritmo do jogo) Me colocou na escola! É! Fiz até o quarto ano num tempo em
que menina não estudava! Eu ajudava ela em casa, me ensinou a cozinhar, a costurar – esse
vestido fui eu que fiz! –, mas ela me deixava ler! Achava bonito! E eu lia tudo que me caía nas
mãos, a Coleção Saraiva todinha! “Canta pra mim” ela pedia. (Cantarola) La festa è appena
cominciata / È già finita / Il cielo non è piú con noi... (Emoção) Eu cantava... Minha mãe...
JENNIFER – (Ao público) Mocinha, Maria da Graça estudou na Escola João Ramalho!
GRAÇA – Ainda está lá, na rua José Bonifácio! Ah! Eu também ia ao teatro, Jennifer, sabia? É!
Meu irmão me levava pra assistir o Grupo Regina Pacis, o Teatro de Alumínio, em Santo André!
Olha só do que me faz lembrar!
JENNIFER – (Tambores indicam certa tensão) E o casamento, Graça?
GRAÇA – (Desce do tablado, fala ao público) Ah! Pra quê estragar a brincadeira? Tava tão bom!
JENNIFER – (Pede nova caipirinha ao garçom e estende para Graça) Nem com outra caipirinha?
GRAÇA – (Sem pegar o copo, entra no jogo) Vocês tão vendo, né? Dessa vez não fui eu que pedi! (Ri.
Pega o copo e triangula com o público) O duro é fingir que tem caipirinha, que tá uma delícia! (Bebe)
Humm...
JENNIFER – Essa é de kiwi.
GRAÇA – (Ri) Tô vendo... Mas tá com pouco gelo. (Oferece para alguém) Quer dar uma bicadinha?
(Ri. Emenda a história) Vamo lá, vai! Daí que eu conheci o Tião, motorista da olaria e... na falta de
coisa melhor, peguei gostar dele! Mentira. Era moço bom naquele tempo: congregado mariano,
trabalhador. Um primo arranjou emprego pra ele na Volks: linha de produção. E assim foi...
Casamos e eu esqueci dos meus sonhos de moça.
JENNIFER – (Tambores dão continuidade ao jogo de perguntas e respostas) Filhos!
GRAÇA – (Bebe) Dois: Eduardo e André. Eu segui direitinho a cartilha, viu? Fiz como manda o
figurino: fui uma esposa fiel, dedicada, que acordava cedinho pra fazer a marmita, pra vestir os
meninos pra escola. Economizei cada centavo pra gente sair do aluguel. Lavei roupa pra fora -
água de poço, que naquela época era poço. Na feira, pegava as folhas de repolho que estavam
jogadas e dizia que era pros coelhos. Que coelhos? Eram pra nós! Estive do lado dele na doença,
na pobreza e quando a riqueza chegou... Ele ó!... (Bebe mais um gole, desce do tablado. Vai para perto do
público. Fala como num desabafo para o público e para Jennifer) Falar verdade? O Tião não era muito
amigo do batente, não. Ele trabalhava, mas sabe quando a pessoa tá sempre precisando de um
empurrão? De vez em quando queria faltar no serviço. Quando tinha greve, queria ficar em casa
vendo televisão – a gente tinha comprado uma na Eletrorradiobrás. Queria ver luta livre,
Bonanza, sabe como é? Queria ir pro bar. Era eu que falava: “Tião, se o camarada tá em greve,
tem que ir pra assembleia, tem que fazer presença!”. Aí Tião ia, de burro amarrado. Eu mesma fui
pra rua conseguir mantimento pro fundo de greve. (Ao microfone) “Oh, dona Maria, vamos
colaborar! Amanhã é o seu filho que tá na fábrica!”. (Fora do microfone) Todo mundo queria ter o
filho na Volks, na Mercedes. (Ao microfone) “Oh, dona Rosa, tem moço perdendo a juventude na
fornalha! Vamos garantir a paralisação!”
Graça está cansada, desanimada. Para de falar. Dá mais um gole e entrega o copo para Jennifer, que devolve ao
garçom.
GRAÇA – Teve caminhada das mulheres na greve? Eu tava lá! Aquela assembleia na matriz de
São Bernardo? Fugi do tanque de guerra! Acho que eu fui em mais assembleia que ele, sabia?
(Muda o tom) Era minha obrigação: apoiar. Se ele fosse demitido, contava comigo também!
(Anunciando futura decepção) E eu esperava dele a mesma consideração, né?... É isso, Jennifer. E esse
dia que não amanhece, hein?!
JENNIFER – Não vai amanhecer enquanto você não concluir essa história...
GRAÇA – Já passou! Vamo olhar pra frente!
JENNIFER – O futuro não traz nada, Maria da Graça. A gente é que dá tudo a ele, até a nossa
vida. (Pausa) Mas pra dar, é preciso ter; e nós não temos outra vida, outro sangue, outra história
além da que herdamos do passado. Então... é preciso lembrar. (As duas se olham, cúmplices, por um
tempo)
GRAÇA – Quem te falou isso?
JENNIFER – Uma mulher inteligente como você chamada Simone Weil.
GRAÇA - (Ela compreende. Suspira) O Tião progrediu. Eu não. Porque eu tava sempre por trás: pra
estudar no Projeto Minerva, depois o supletivo; ferramentaria no Senai. (Sobe no tablado)
Começamos a engrenar. Construímos. Ele tirou um fusca e a gente ia pra Praia Grande nas férias!
Quis ir pro sindicato, apoiei. Quando se aposentou e quis se candidatar a vereador, falei: “Vai. Se
você acha que pode contribuir, vai!” “Você segura as pontas?” “Seguro! Num sempre segurei?!”
Ajudei na campanha, o bicho foi eleito! E de repente a casa começa a encher de coisa: máquina
de fazer pão, de fazer arroz, aparelho de som, uísque no lugar da cachaça... E eu só olhando. Até
que um belo dia nosso compadre Jesuíno vem e fala: “o Tião tá recebendo dinheiro por fora na
prefeitura, pra facilitar uns negócios”. “Verdade isso, Tião?”, perguntei. “Sei nada, não!”. “Mas se
foi o compadre Jesuíno que falou!”. “Jesuíno tem inveja de mim”, Tião respondeu. E escuta só
isso. (Fala com mais vagar pra deixar bem claro) “Tem inveja porque eu construí tudo isso sozinho e
ele não tem um gato pra puxar pelo rabo”. (Pausa. Para Jennifer e o público) Você escutou? (Ao
microfone, devagar) “Eu construí tudo isso sozinho!”. E agora? Que é que eu tô fazendo nessa
história toda? Papel de boba! Eu nunca tive isso aqui de importância pra ele, como ele teve pra
mim... História besta, né? Mas ó, tá cheio por aí. (Deixa o microfone)
JENNIFER – ‘tão separados?
GRAÇA – ‘tamo. (A Jennifer e ao público) Mas depois de quarenta anos juntos você não sabe mais
quem você é. Eu só me conheço mãe, dona de casa. Quais os são os meus sonhos? Não sei! Eu
sonhava junto. E agora? Preciso saber quem eu sou.
JENNIFER – Acho que precisa saber quem você era. Antes. (Jennifer olha para Graça e sorri,
enigmática.) Eu acho que posso te ajudar.
GRAÇA – Outra caipirinha?!
JENNIFER – (Ri) Você quer?
GRAÇA – Não! Pelo amor de Deus!
JENNIFER – Então me diz: se você morresse agora e só pudesse levar uma lembrança de sua
juventude pra toda a eternidade. Qual seria?
GRAÇA – Só uma?
JENNIFER – Feche os olhos e pense. (Faz sinal para que Fé e Dora entrem)
Dora carrega um vestido, figurino idêntico ao da atriz Sônia Guedes em Jorge Dandin, no Teatro de Alumínio, e
o instala no meio da cena. Senta-se elegantemente perto dele. Fé se aproxima da atriz. Veste um figurino igual ao
de Graça, traz uma flor no cabelo. Ambas ficam paradas.
GRAÇA – E agora?! (Tempo) Já sei! Já lembrei! Posso abrir os olhos?
JENNIFER – Pode. (Convida Graça a olhar para o tablado)
GRAÇA – (Maravilhada) Como você conseguiu?!
JENNIFER – Isso é teatro!
GRAÇA – (Deslumbrada) Sou eu! (Olha para Jennifer, que incentiva-a a se aproximar. Graça toma coragem
e vai) Sou eu! (Faz carinho em Fé/Graça, arruma a flor de seu cabelo) Aos 18 anos! (Coloca as mãos no
próprio rosto como a conter o choro. Respira fundo.) Minha querida! (Abraça-a. Volta-se para o cenário) É o
camarim. Do teatro de Alumínio! 1968. A sessão tinha terminado, eu tomei coragem e bati na
porta. Meu coração queria sair pela boca. (Observa Dora, quieta em postura impecável de grande atriz.
Jennifer convida Graça a se afastar. Ela obedece, encantada e as duas se postam para ver a cena.)
FÉ/GRAÇA – Dona Sônia Guedes? Licença?...
DORA/ SONIA GUEDES – Pois não. Entre, menina! (Fé/Graça se aproxima um pouco, tímida)
Não precisa ter vergonha. (Diante da timidez, provoca) Você gostou do nosso espetáculo?
FÉ/GRAÇA – Muito...
DORA/SÔNIA GUEDES – Que bom! A estreia é sempre mais difícil! Mas acho que
conseguimos, não é? (Fé / Graça confirma) De quê você mais gostou?
FÉ/GRAÇA – Não sei! É muito bonito! Movimentado!
GRAÇA – (A Jennifer) Era mesmo diferente de tudo que eu já tinha visto! Coisa acontecendo
numa porção de lugares, gente jovem. Contagiava a gente, sabe? Aquilo era a vida viva no palco!
FÉ/GRAÇA – (Sorri) É uma peça francesa, mas que fala daqui, de agora.
DORA/SÔNIA GUEDES – Foi a Heleny Guariba, nossa diretora, quem fez isso. Trouxe Jorge
Dandin de Molière para o Brasil de hoje! Escute o que eu digo: esse espetáculo vai ficar pra
história – e nós também, que fizemos e que assistimos! (Riem de contentamento. Fé / Graça aprecia o
vestido) Gostou do figurino? Pode olhar!
FÉ/GRAÇA – (Examina-o) É uma beleza! Gosto muito de costurar: esse vestido fui eu que fiz!
DORA/SÔNIA GUEDES – (Examina o vestido de Fé / Graça, faz com que ela dê uma rodadinha para
observar melhor) Está perfeito! Parabéns! Que mãos talentosas você tem...
FÉ/GRAÇA – Maria da Graça.
DORA/SÔNIA GUEDES –E que belo nome! Posso te dar um presente, Maria da Graça?
Fiquei tão feliz com a sua visita! (Pega um livro em suas coisas) Você gosta de ler?
FÉ/GRAÇA – Muito!
DORA/SÔNIA GUEDES – Eu também. E gosto de oferecer livros. Leio e ofereço. Aqui está:
“Vida nova”, de Ivan Turgueniev.
FÉ/GRAÇA – É da Coleção Saraiva!
GRAÇA – (Exultante) Eu ainda tenho!
DORA/SÔNIA GUEDES – E vai com uma dedicatória. (Pega uma caneta tinteiro e enuncia enquanto
escreve) “Para a jovem Maria da Graça uma vida nova a partir da estreia de Jorge Dandin. Santo
André, 7 de dezembro de 1968. Com o abraço da atriz Sônia Guedes”. Pronto. Aqui está. (Entrega
o livro. Pega em suas mãos) E preste muita atenção: todos nós temos um talento, no mínimo! E é
uma bênção quando conseguimos identificá-lo e tomar posse dele para toda a vida! (Pausa de
timidez de Fé/Graça) O meu é a interpretação. Não consigo viver longe do palco. E o seu talento
qual é? Algo me diz que ele está em suas mãos.
FÉ/GRAÇA – Obrigada...
Fé/Graça, Dora/Sonia Guedes e Jennifer viram-se ritualmente para Graça. Sorriem. Pausa.
Graça aproxima-se e abraça Sônia Guedes. Beija-lhe as mãos. Abraça Fé/Graça, ajeita-lhe o vestido e dá-lhe o
braço. Descem as duas.
GRAÇA – (Às amigas e ao público) Não vou esquecer! O futuro não existe por si mesmo, não é
isso? Somos nós que o construímos com a nossa memória. Jennifer, obrigada! Agora eu sei. É
com essas mãos de costureira, com a herança da minha mãe e das fiandeiras que vieram antes
dela que o meu futuro vai se dar! Que seja na bainha, no remendo ou na costura do dia a dia, não
importa! Agora eu sei quem eu vou descer pela escadaria desse navio. Porque isso é teatro e
porque acaba de amanhecer!
As três, ao mesmo tempo, olham para o leste e sorriem.
JENNIFER – (Anuncia) O navio vai ancorar!
Tambor anuncia a aproximação do porto, como fogos de artifício anunciam o ano novo. Fé, Graça e Jennifer
acenam em direção ao público, felizes. Dora está feliz pelas amigas.
Graça, Fé e Dora saem ligeiras da área de representação. Levam os objetos da cena anterior. Jennifer aproxima-se
do público.
CENA FINAL – CONFIO NOS FIOS QUE FIO NO MUNDO
JENNIFER - Senhoras e senhores,
nosso destino é chegado!
Em breve serão recebidos
com calorosos abraços!
Ouvirão o desfiar de saudades,
alegrias, novidades
e, fortalecidos os laços,
terão novas histórias pra contar!
Faz de conta que esse lugar foi um navio
e que estivemos todos sobre o mar!
Juntos,
no aqui e agora de um trajeto
provisório.
Mas que tenha sido intenso
e nos habite
que nos transforme e,
no limite,
fique para sempre
na memória.
Adentram à cena com seus instrumentos, as demais atrizes, enunciando já o seu texto.
Mulheres
Militantes
ABC paulista
Anos de chumbo.
Fios de dor
Fios de sofrimento
Fios de luta.
No enredo do tempo,
com os fios da memória
tecemos histórias –
nós e vocês.
TODAS - Porque somos o Grupo Teatral Pontos de Fiandeiras!
(Aqui sugiro um final mais condizente com a pesquisa musical do espetáculo, com os tambores e pandeiro, por exemplo, no lugar da canção do grupo OU a canção adaptada a esses instrumentos.)
CANÇÃO DO GRUPO
(autoria: Grupo Teatral Pontos de Fiandeiras)
No emaranhado desta cidade tecido crescente
no meio fio desta rua urgente (clemente)
Caminhando no buraco da calçada, vendo muita máquina, pouca gente
poderia me confundir e parar de tecer, parar de tecer, parar de tecer...parar de torcer.
Entre tantas teias de relações, fiando no mundo como orações.
Venho fiando no mundo, fiando tanto fio sem fim.
Fio o mundo enfim, confio nos fios que fio no mundo.
Fios e pontos e teias, desatando nó por nó
Pontos de Fiandeiras não dão ponto sem nó
Com fio me comprometo
sem fio, me perco, me esqueço, quase desfaleço
O fio me liga
Fiando me alinho
Pontos sozinhos vamos juntar, linha enroscada para desenroscar
Aumentando a linha do encanto
os fios da nossa história ligando para não se perder a memória.
Venho fiando no mundo, fiando tanto fio sem fim.
Fio o mundo enfim, confio nos fios que fio no mundo.
FIM