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CURSO DE PROCESSO EI1ÍIL WM n LUIZ GUILHERME MARINONI TEORIA GERAL 00 PROCESSO 3,a edição revista e atualizada Teoria Gerai éo Processo e o prólogo indispensável à leitura do coleção Curso de Processo Civil Kesíe primeiro volume, o oulor elaboro a sua concepção de leoria do processo, adequada ao Eslado Contemporâneo, sobre a qual o estudioso deve se pautar para raciocinar sobre as construções teóricas realizadas nos demais volumes do Curso Como o próprio autor esclarece, a obra visa a uma mudança de ponto de vista por parte do estudante e do operador do direito: evilar que a lida diária com o processo civil se resumo à aplicação não-raciocinada e fria dos normas a ele pertinentes. Em função disso, apesar de se tratar de obro voltado paro o público universitário, a profundidade do estudo aqui empreendido é imprescindível para todos os profissionais do direito.

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  • CURSO DE P RO CE S SO EI1IL WM n LUIZ GUILHERME MARINONI

    TEORIA GERAL 00 PROCESSO

    3,a edio revista e atualizada

    Teoria Gerai o Processo e o prlogo indispensvel leitura do co leo Curso de Processo Civil K ese prim eiro volum e, o ou lo r e laboro a su a concepo de le o r ia do processo, ad eq u ad a a o Eslado C ontem porneo, so bre a qu al o estudioso deve se pau tar para raciocinar so b re as construes tericas realizad as nos dem ais volum es do Curso

    Como o prprio au tor e scla rece , a o b ra visa a um a m udana de ponto de vista por p arte do estu d an te e do op erad o r do direito: evilar que a lida diria com o processo civil se resum o ap licao no-raciocinad a e fria dos norm as a e le pertinentes.

    Em fun o disso, a p esar de se tra tar de obro voltado paro o pblico universitrio, a profundidade do estudo aqu i em preendido im prescindvel p ara todos os profissionais do direito.

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    CURSO DE P ROCESS O C I V I L

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    LUIZ GUILHERME MARINONI

    TEORIA GERALDO

    CURSO DE PROCESSO C lill

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    3,a edio revista e atualizada

    3.aedio

    r e ?EDITORA I ; REVISTA DOS TRIBUNAIS

    ..'L.

  • C U R SO D E PR O C ESSO C IV IL

    0 8 -0 3 3 2 2

    Volume 1

    Luiz G u il h e r m e M a r jn o n iTeoria Geral do Processo3, ed. rev. e atual.., 2008

    3 a tiragem, 2009

    Volume 2

    Luiz G u il h e r m e M a r jn o n i S r g io C r u z A r e n h a r t

    Processo de Conhecimento 7 ed. rev. e atual, 2008

    Volume 3

    Luiz G u i l h e r m e M a r jn o n i S r g i o C r u z A r e n h a r t

    Execuo2 ed rev. e atual,, 2008

    Volume 4

    Luiz G u i l h e r m e M a r i n o n i S r g i o C r u z A jr e n h a r t

    Processo Cautelar 2008

    Vide obras dos autores na p 511.

    Dados Internacionais dc Catalogao na Publicao (C IP ){C m ara Brasileira do L ivro, SP, Brasil)

    Marinoni. Luiz GuiJhcmt:Teoria geral do processo / Luiz Guilherme Marinoni. - 3 ed. rev c

    atual 2 tr - So Paulo : Editora Revista dos Tribunais. 2008 (Curso dc processo civil ;v I)

    Bibliografia.ISBN 978-85-203-3041 -8 (obra completa)ISBN 978-85-203*3277-1 (v 1)

    1 Processo civil - Legislao - Brasil I Ttulo II Sdrie

    C D U -3 4 7 9 (8 1 )(0 9 4 )

    ndices p ara catlogo sistem tico: I. B ra s il: Leis : Processo civii 347.9(81 )(094)2. L ,eis: B ra s il : Processo civil 347 9(8 I)(094)

  • LUIZ GUILHERME MARINONI

    CURSO DE PROCESSO CIVIL

    Volume 1

    TEORIA GERAL DO PROCESSO

    3.a edio revista e atualizada

    3 a tiragem

    EDITORA S U r REVISTA DOS TR IB U N A IS

  • CURSO DE PROCESSO CIVILVolume 1

    TEORIA GERAL DO PROCESSO

    Luiz G u i l h e r m e M a r i n o n i

    0 1 6 5 6 3 a edio revista e atualizada3 a tiragem

    1 idifo, 1 tiragem: 08 2006; 2 tiragem, 0 3 .2007- 2 edia. 08,2007 ~3 "edio, 1 i tiragem 05 2008; 2 tiragem, 09 2008

    desta edio [208]

    E ditora R evista dos T ribunais L i d a .

    C arlos H enrique de Carvalho F lhoDiretor Responsvel

    Rua do Bosque, 820 Barra Funda Td, 11 3613-8400 Fax 11 3613-8450 CEP 01136-000 - So Paulo, SP, Brasil

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    C e n t r a l d e R e l a c io n a m e n t o R T (atendimento, em dias teis, das 8 s 17 horas)

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    Impresso no Brasil [05-2009]

    Universitrio [Texto]

    Atualizado at [04 - 2008]

    *AJEHP3E3L'urrou a/tua&a

    ISBN 978-85-203-3041-8 - obra completa ISBN 978-85-203-3277-1 - volume 1

    mailto:[email protected]://www.rt.com
  • Dedico este trabalho a S lv io d e F ig u e ire d o T e ix e ir a e

    A i h o s G u sm o C a r n e ir o ,

    estudiosos sensveis, exemplos de magistrado e

    figuras humanas de grande bondade.

  • Devo agradecer a Al.VARO PEREZ RaGONE e GUILHERME SOARES

    pelas sugestes para o enriquecimento do texto,

    a$ quais no s permitiram que alguns pontos do livro

    fossem melhor esclarecidos,

    como tambm foram muito importantes

    cm termos de direito comparado.

    A HOMERO MaRCHESE agradeo pela reviso das notas de rodap

    epela confeco das referncias bibliogrficas.

    A MAURCIO DO V a l l e , jovem advogado em meu escritrio,

    sou grato pela ateno, sem a qual no poderia ter desenvolvido

    este trabalho com a tranqilidade necessria.

  • APRESENTAO 1. EDIO

    H alguns anos passei a receber forte estmulo do pblico interessado no direito processual civil paia escrever uma obra de teoria geral do processo civil, o qual foi potencializado com o sucesso do Manual do processo de conhecimento, escrito em co-autoria com o professor Srgio Arenhart.

    As particularidades o Manual do processo de conhecimento, especialmente a preocupao com o tema da tutela dos direitos, alm de evidenciarem uma compreenso do processo intimamente ligada s necessidades do direito material, deixam explcito o impacto da Constituio Federal e dos direitos fundamentais sobre a estrutura tcnica do processo e sobre a sua utilizao pela jurisdio.

    Na verdade, foi especialmente aps a publicao do Manual doprocesso de conhecimento que percebi a necessidade de escrever um livro de teoria do processo civil. O novo processo civil"- caracterizado pela antecipao da tutela, pela tutela especfica, pela tutela inibitria e pela tutela dos direitos transindividuais - naturalmente reclama uma outra teoria geral do processo, E que, se o processo civil mudou, tornou-se urgente elaborar uma teoria capaz de explicar os motivos dessa mudana e de fundamentar os discursos tericos incidentes sobre a realidade normativa delineada pelas reformas processuais que ocorreram nos ltimos vinte anos.

    No se quer dizer, obviamente, que a necessidade de uma nova teoria do processo decorra das alteraes que foram realizadas no tecido normativo-processual.y? imprcscindibilidade de uma nova teoria do processo deriva, antes de tudo, da transformao do Estado, isto , do surgimento do Estado constitucional\ e da conseqente remodelao dos prprios conceitos de direito e de jurisdio,

    A necessidade deste livro, assim, resulta da relatividade histrica da prpria teoria do processo. Os conceitos de jurisdio, ao, defesa e processo, por sua inquestionvel ligao a uma forma" de Estado, no podem ser compreendidos fora de um contexto histrico, o que torna impossvel pretender vlidos, diante do Estado constitucional brasileiro, os conceitos clssicos de teoria do processo, sem question-los a partudo direito constitucional e da teoria do direito.

    O Estado constitucional deu novo contedo ao princpio da legalidade e aos conceitos de direito e de jurisdio, representando uma quebra de paradigma. Diante disso, no h como pretender ensinar direitoprocessual civil sem antes tratar de uma teoria do processo elaborada luz do Estado constitucional e das teorias dos direitos fundamentais.

    Este livro, embora teoricamente aprofundado, foi escrito de maneira didtica, visando facilitar a compreenso dos estudantes e dos operadores do direito. O seu

  • 10 TEORIA GERAL DO PROCESSO

    objetivo dar suporte terico capaz de permitiro estudioso compreender e trabalhar como direito processual de forma crtica e criativa, evidenciando que o trabalho do juiz, do promotor.; do advogado, do professor, do doutrinador e do estudante no pode ficar limitado a uma aplicao mecnica efria das regras processuais, como desejou o "dogmatismo"..

    Este passa a ser o primeiro volume da Coleo Curso de Processo Civil, que tem o Manual do processo de conhecimento, escrito com o professor Srgio Arenhart, j na sua 5 ,a edio, Trata~se, assim, da obra que passa a constituir a inaugurao da Coleo, que, agora contando com dois volumes, em breve recebero livro destinado ao estudo da execuo

    Curitiba, junho de 2006.

    Luiz G u ilh e rm e M a rin o n i

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    SUMRIO/

    APRESENTAO 1 3 ED I O ............................... .............................................. 9

    N DICE D E ABREVIATURAS DAS REVISTAS ALEM S 19 '

    Parte I t

    A .JURISDIO NO ESTADO CONSTITUCIONAL

    1. IN TR O D U O ........................ ................................................................................... 2.3

    2. A IN FLUN CIA DOS VALO RE,S DO ESTADO LIBERAL D E DIREITO E. DO POSITIVISMO JURDICO SOBRE, OS CONCEITOS CLSSICOSD E .JURISDIO........ .......................... ..................................... ............................ 25

    2 1 A concepo de direito no Estado liberal......................................................... 25

    2 2 O positivismo jurdico --- ..------- ------------- ------------- ...... 31

    2 .3 A jurisdio como funo dirigida a tutelar os direitos subjetivos privadosviolados........................ .................- ....... .................. .................................. ....................33 f

    2 A Da teoria da proteo dos direitos subjetivos privados teoria da atuaoda vontade da lei............................................................... .................. ..... 34

    2.5 A teoria de Cbiovenda: a jurisdio como atuao da vontade concreta da 5lei................... ............................................................................. ............ ................ 35 ,

    2 .6 A doutrina de Carnelutti: ajusta composio da lide...... .... 37

    3. O N EO C O N STITU C IO N A LISM O..... ..................................... 42

    3.1 A dissoluo da lei genrica, abstrata, coerente e fruto da vontade homognea d o parlamento................................................................... ................ ......-.... 42

    3.2 A nova concepo de direito e a transformao do princpio da legalidade..... 45

    3.3 Compreenso, crtica e conformao da lei. O ps-positvismo.................. 47

    4.. A FU N O DOS PRINCPIOS C O N STITU C IO N A IS.......................... 49

    4.1 Normas jurdicas: princpios e regras.......... .............................. ..... ................. 49 1

    4.2 O problema da compreenso do direito por meio dos princpios............... 51

    4..3 Princpios constitucionais, naturalismo e ps~postivismo . >...................... 53

    4.4 Princpios constitucionais e pluralismo............................................................. 5.3

  • 12 T EORIA GERAL DO PROCESSO

    5 O CON TRO LE DA CONSTITUCIO N ALID AD E PELO JU IZ SINGULAR NO DIREITO B R A SILEIR O ........................................................................ 56

    5.1 Qualquer juiz, no sistema brasileiro, tem a obrigao de controlar a cons-titucionalidade da le i................... .... .................................................................. 56

    5 2 Outras formas de controle da constitucionalidade da iei.............................. 61

    5 .3 O juiz e o controle da constitucionalidade da falta de lei............................... 64

    6. A T EO R IA DOS DIREITOS FUN DAM ENTAIS..... ............................. .......... 67

    6.1 Introduo ................ .......... ............................................................. .................. 67

    6.2 Conceito de direitos fundamentais............... ............................ ....................... 68

    6.3 A teoria dos direitos fundamentais como teoria dos princpios......... ........ 69

    6 .4 As perspectivas objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais.... ...... ...... 73

    6 .5 A multifuncionalidade dos direitos fundamentais.... ............. ........ . ............ 74

    6.6 As eficcias horizontal e vertical dos direitos fundamentais........................ 77

    6.7 Eficcias vertical, horizontal e vertical com repercusso lateral...... ............ 84

    6.8 Direitos fundamentais e democracia . O problema do controle do juiz sobre a deciso da maioria............. .... .... .......................................... ................. . 89

    7 A JURISDIO NO ESTADO C O N TEM PO R N EO ................................. 93

    7 .1 Critica teoria que afirma que o juiz atua a vontade concreta da lei.......... 94

    7.2 Critica teoria de Carnelutti e teoria que sustenta que o juiz cria a normaindividual que d soluo ao caso concreto........ ... ............................. ........ 94

    7 3 O pluralismo e a necessidade de compreenso dos casos concretos... ...... . 967.4 A conformao da lei exige a previa atribuio de sentido ao caso concreto,

    mas a definio do caso concreto requer a considerao da lei . ................. 97

    7.5 A jurisdio, aps delinear o caso concreto, deve conformar a lei.............. . 97

    7.6 A deciso a pardr dos princpios constitucionais e dos direitos fundamentais........ ... ............................... ....................... ............................... .... .................... 97

    7.7 Conformao da lei e sentido da criao da norma jurdica pelo juiz.... .... 100

    7.8 O significado da norma jurdica que tutela um direito fundamental diantede outro direito fundamental .............................................. .................. ............ 101

    7.9 A criao da normajuridica em face das teorias clssicas da jurisdio...... 103

    7.10 A teoria de que a jurisdio pode criar a norma geral... ............................... 10.3

    7 1 1 A teoria de que a jurisdio pode criai o direito diante do constitucionalis-mo contemporneo....... .............. ...................... .......... ....... .......... ..... ......... ..... 105

    7.12 Ainda que o juiz criasse a norma geral, essa no teria a mesma eficcia deuma norma geral criada pelo legislador................ ............................ .......... .... 106

    7.13 A grande peculiaridade da norma criada pelo juiz: a necessidade da suafundamentao................... ................ ....... . ................................ .......... .... .... . 107

  • SUMRIO 13

    7 .14 A teoria de que a jurisdio se define pelo seu dever de concretizar os valores pblicos.................. . ................. .... ................ ..................,.......................... 108

    7.15 A idia de que a jurisdio tem por objetivo a pacificao social........................ ..... 1127..16 A jurisdio deve responder s necessidades do direito material................ 1127 .17 A tutela dos direitos transindividuais.. ..................... ................... 1137.18 Dar tutela aos direitos no simplesmente editar a norma jurdica do caso

    concreto................................................................................................ .................. 1157.19 A jurisdio a partir do direito fundamental tutela jurisdicional efetiva, 1177.20 As regras processuais abertas como decorrncia do direito fundamental

    tutela jurisdicional...... ............... ............. ....... ............... ................ ................... 121

    7..21 A ausncia de regra processual capaz de viabilizar a realizao do direitofundamental tu teia jurisdicional.......... ......... ......................... ............. . 124

    7.22 A subjetividade do juiz e a necessidade de explicitao da correo da tutelajurisdicional mediante a argumentao jurdica ...... ...... ......... ....... 125

    7.23 O mtodo do balanceamento dos direitos fundamentais, a interpretaode acordo e as tcnicas de controle da constitucionalidade diante da argumentao jurdica......... ................................................. ...... ................. ........... 128

    7..24 A argumentao jurdica em prol da tcnica processual adequada ao direito fundamental tutela jurisdicional............ .................... ........... ....... .............. 131

    7.25 A definitividade.......... ........ ...... .......................................... .......... .................... 134

    7.26 Concluses acerca da concepo contempornea de jurisdio.,.,............. 135

    8,. JU RISD I O V O LU N T R IA , D ISTR IBU I O DA A TIV ID A D E JURISDICIONAL (CO M PETN C IA ) E A R B IT R A G EM ... ...................... 1438.1 Jurisdio voluntria ------------- --- ------ ----- . --- ------------- ------. . ------------- 14,3

    8.2 Distribuio da atividade jurisdicional (competncia)................ ..... .......... 1478.3 A arbitragem,..................... ................ ........................................ .............. . 150

    Parte II

    A AO NO ESTADO CONSTITUCIONAL

    1. AS TEO RIAS DA AO E A POSIO DO CPC. PRIMEIROS APO N TAM ENTOS PARA UM A CONCEPO ADEQUADA AO ESTADO CONSTITUCIONAL E A REALIDADE NORMATIVA BRASILEIRA . 1591.1 A poca em que a ao se confundia com o direito material................. ..... 1591.2 A polmica entre Windscheid e M uther............ ....... .............. ....... .... 1611.3 O direito de agir abstrato"............... ...... ..................... ..... .......................... . 164

    1.4 Ainda a ao como direito abstrato. A teoria de Mortara.,.................... . 1661 5 A pretenso tutela jurdica.. A teoria de W ach............ ................. .............. 1661.6 A ao como poder em face do adversrio. A teoria de Chiovenda__ ___ 167

  • 14 TEORIA GERAL DO PROCESSO

    1.7 A ao como direita de petio. A teoria de Couture........... ........................ 1691.8 As condies da ao A teoria de Liebman.......... ...... 1701.9 A posio adotada pelo Cdigo de Processo Civil.................................... . .. 17.31.10 Primeira apreciao crtica.......................................................... 176

    2 A IN FLU N CIA DOS VALORES DO ESTADO SOCIAL SOBRE O D IREITO D E AO ................................. ....................................................................... 1842.1 O direito de ao como direito de acesso justia ................ .................. 1842.2 Os problemas que conduziram questo do acesso justia....................... 186

    2.2 .1 O custo do processo........ ...................................................................... 1862 2 2 A demora processual ..... ....................... ........................................... 187

    3 O DIREITO D E AO NO QUADRO DOS DIREITOS FUN D AM EN TAIS......................................... ....................... .................... . ................................... 1923.1 O direito de ao diante da evoluo da funcionalidade dos direitos funda

    mentais....... ............ ................. ............................................................................ 1923.2 O direito de ao como direito fundamental................................................... 2053 3 O direito fundamental de ao e seus efeitos....... ...................................................... 206

    4. O C O N TED O DO D IREITO D E AO A PARTIR DA CON STITUIO....... ... ......... ............ ...... , i ........ 2154.1 O direito tutela jurisdicional efetiva.................................................... ......... 2154.2 O direito durao razovel do processo e aos meios que garantam a cele

    ridade da sua prestao ............................. .......................................... ............... 221

    5. DA AO ABSTRATA E UN IFO RM E (AO NICA) AO A D EQUADA T U T E L A DO D IR EITO M A TER IA L E AO CASO C O N C R E T O .......................................................................... ..................... ...................... 2275.1 A repercusso da dicotomia tutela pelo cquivalente-tutela especfica sobre

    a efetividade da ao .......................................................................................... 2275.2 A ao nica como decorrncia do princpio da tipicidade das formas pro

    cessuais..................... .................. ...............................................- .......................... 2355 .3 O escopo de tutela dos direitos........................................ . ............................. 2405 4 Tcnica processual e tutela dos direitos...... , ............................ ..................... 2415.5 As tutelas jurisdicionnis dos direitos.................... .......................................... 2465 6 A influncia da tutela do direito sobre a ao................................................... 2565 7 Tutela jurisdicional do direito e tutela jurisdicional.................................................. .-. 2595 .8 O exerccio da ao para a obteno da tutela do direito......... ..................... 2615 9 O direito de ao como direito ao procedimento prprio participao e

    ao plano do direito material..................................................... .................. ...... 2655 10 O direito tcnica processual adequada tutela do direito e ao caso con

    creto........................................ ...... ......................................................................... 268

  • SUMRIO 15

    5 11 O direito construo da ao adequada ao caso concreto.......................... 2825 1 2 Legitimidade da construo da ao segundo a tutela jurisdicional do di

    reito................. ... ..... .............................................................................................. 2915 13 Ao de direito material, formas de tutelados direitos e ao adequada,,, 2925 14 Classificaes das aes, das sentenas e das tutelas jurisdicionais dos di

    reitos ................................................ ................. ........... ....................................... 295

    Parte XII

    A D EFESA NO ESTADO CONSTITUCIONAL

    1. C O N CEITO D E D IREITO D E D E F E S A ................................................. ...............305

    2. DIREITO D E D EFESA E ACESSO JU STIA .......... ................................. 308

    3. O DIREITO D E D EFESA NA C O N S T IT U I O ........................................ .310

    4. A D EFESA NO CDIGO D E PROCESSO C IV IL ....................................... 3154 1 A citao para a defesa e as alternativas do ru...................... ....... ........ ......... 3154 2 Respostaedefesa..................................... ............................................................... 3184.3 Defesas de mrito direta e indireta.............................. ...... .. 3204.4 Restries ao direito de defesa e prova diante da defesa de mrito indireta.. .3224.5 Os fatos litigiosos e o nus da prova., Distino entre contraprova e nus

    da prova dos fatos articulados na defesa indireta....................................... .... 3244 6 Direito de defesa e inverso do nus da prova................................................. 328

    5. O D IREITO FUN D AM EN TAL D E D EFESA DIAN TE DO DIREITOFUN DAM ENTAL D E A O ........... .......................... ..................................... 3325 1 Primeiras consideraes.............. ............. .... ...................................... ......... 3325.2 As relaes entre os direitos fundamentais de defesa e de ao na perspec

    tiva do legislador...................................................................... .................................. 3345.3 As relaes entre os direitos fundamentais de defesa e de ao na perspec

    tiva do juiz .............................................. ..... ........................................ ................ 3.37

    6. PROBLEMATIZAO DO DIREITO FUNDAMENTAL D E D EFESA .3506.1 Julgamento antecipado do mrito e defesa............... .................................... .3506.2 julgamento liminar de ao repetitiva (art. 285-A do CPC) e defesa... 3546.3 Urgncia da tutela e defesa.......... ......... ............ ......... .... . 355

    6.4 Abuso de direito de defesa, parcela incontroversa da demanda e distribuio do nus do tempo do processo atravs da tcnica antecipatria................357

    6.5 Mandado de segurana e defesa_ __ ________ ____ _____ 362

    6 6 Procedimento monitrio e defesa.......................... 368

  • 16 TEORIA GERAL DO PROCESSO

    6.7 Procedimento de cognio sumria e d e f e s a ............... .......... 3716 8 Mitigao da regra da adstrio da sentena ao pedido e defesa......................... 3736.9 Princpio da concentrao dos poderes executivos e defesa.......................... 3766.10 A legitimidade do procedimento de cognio parcial e da restrio ma

    tria de defesa................................. ........................ ........ .................. .................. 378

    P arte IV

    O PRO CESSO NO ESTADO CONSTITUCIONAL

    1. PRO CED IM EN TO E PRO CESSO NA DOUTRINA C L SSIC A ........ .. 3871.1 O processo nas concepes privatsticas.... ................................................. . 3871.2 O processo enquanto procedimento na poca anterior teorizao da au

    tonomia do direito processual civil........ ...... ... ....... ... . ... .......... ........ ..... ... 3891.3 A distino entre processo e procedimento diante da descoberta do car

    ter pblico do processo.......... .............................................................................. ................... ............ ........... 3891..4 O delineamento da relao jurdica processual.... .. ............. ....... ........... 3911.5 O ambiente de concepo da teoria da relao jurdica processual. O con-

    ceitualismo ... ................. . . ............................................................. ...................... 393

    2 BASES PARA UM NOVO CO N CEITO D E PRO CESSO........ ..... ............ 3962.1 A crise do conceito de relao jurdica processual........................................ ,396

    2.2 O realinhamento das noes de processo e procedimento......................... 401

    2 3 Jurisdio e processo ...... ........... ... ............................................... ................... .. 4042.4 A pardcipao como fator de legitimao da jurisdio.............................. 4052.5 Significado de contraditrio no Estado Constitucional................................ 4092.6 A intensificao da atuao do juiz em prol da legitimidade do processo.... 4142. 7 O processo capaz de permitir o acesso das camadas mais pobres da popu

    lao........................................................... ........ ........................ .................. ........ . 4162. 8 O procedimento adequado s necessidades do direito material.... ........... 417

    2.9 Procedimento e tcnica processual................ ......................... . ............ ......... 4192.10 Tutela dos direitos e procedimento.................................................................. 4202..11 A ilegitimidade do procedimento nico............. ................. ..... . ............ .... 4222.12 A utopia dos procedimentos diferenciados..................... 425

    2..13 A criao do procedimento adequado ao caso concreto................................................................... 4262.14 A participao atravs do processo. O dever estatal de viabilizar a partici

    pao mediante o processo judicial......... ...................................... ................. 4292.15 O processo e a legitimidade da deciso......... .................. .... ..... ................. . 4312.16 A legitimidade da definio legislativa do procedimento judicial a partir

    dos direitos fundamentais................................ ................................................... 445

  • SUMRIO 17

    2.17 A argumentaao como fator de legitimao............ ................................. 447

    3. O PRO CESSO NA PER SPEC TIV A DOS D IREITO S FU N D A M EN TA IS................. ................................................................................................................. 450

    3 1 Primeiras consideraes.......................................................... ............... ............. 450

    3.2 A legitimao pela participao no procedimento....................... .... 453

    3.3 A legitimidade da deciso a partir dos direitos fundamentais, a otimizaoda participao popular no procedimento e a argumentao judicial. . . 4 5 6

    3.4 A legitimidade do procedimento..... .... ............................................................. 459

    3.5 A universalidade do acesso jurisdio . A importncia do procedimento 461

    3.6 A participao atravs do procedimento ...... ................................................. 462

    3.7 O processo como procedimento adequado aos fins do Estado constitucion al....... ....................................................... .............. ...... ......................... ............. 465

    4 O PROCESSO CIVIL CONTEM PORNEO E OS CHAMADOS PRESSUPOSTOS PRO CESSU AIS............................ ........... .........................................., 467

    4,1 Os pressupostos processuais no C P C ..................................... .................. ........ 467

    4. 2 Os pressupostos processuais de existncia e de validade na doutrina.. 467

    4.3 Os pressupostos processuais na teoria de B low ............................ ................ 469

    4.4 A superao das duas fases e a instituio do processo nico diante dospressupostos processuais................................................ ....................... ........ 470

    4.5 A influncia do conceitualismo sobre a idia de pressuposto processual... 471

    4.6 Os ditos pressupostos processuais no dizem respeito ao processo e noso requisitos para o julgamento do mrito ........................ ........... ................ 473

    4.7 A necessidade de descoberta dos valores e das funes dos ditos pressupostos processuais............ .................................................................... .............. 475

    4 .8 Os referidos pressupostos diante dos direitos fundamentais tutela jurisdicional efetiva e durao razovel do processo............................ .. ....... .. 478

    4.9 A compreenso dos pressupostos processuais a partir das suas funese dos direitos fundamentais tutela jurisdicional efetiva e durao razovel do processo demonstra a incapacidade da teoria da relao jurdica processual e da categoria dos pressupostos processuais para expressar o significado do processo jurisdicional no Estado Constitucional............. 479

    B IBLIO G R A FIA ................... ............................. ................ ............ ...................................... 481

    N D IC E A LF AB TIC O -REM ISSIVO...... ............. .................................................... 507

    OBRAS DO A U T O R ...... ................................................................ .................................... 511

  • ndice de Abreviaturas das Revistas Alems

    AcP - Archiv fiir die civilistische Praxis

    AR - Archiv des ffentlichen Rechts

    EuGRZ - Europischen Grundrechte

    jura - juristische Ausbildung

    juS - Juristische Schuiung

    JZ - Juristische Zeitung

    NJW - Neue Juristische Wochcnschrift

    ZR - Zcitschrift fiir offcntiches Rccht

    ZZP - Zeitschrift fiir Zivilprozeft

  • P a r te I

    A JURISDIO NO ESTADO CONSTITUCIONAL

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  • Ainda so sustentadas, depois de aproximadamente cem anos, as teorias de que a jurisdio tem a funo de atuar a vontade concreta da lei - atribuda a Chiovenda1 - e de que o juiz cria a norma individual para o caso concreto, relacionada com a tese da justa composio da lide - formulada por Carnelutti..2

    E isso aps a prpria concepo de direito ter sido completamente transformada. A lei, que na poca do Estado legislativo valia em razq da autoridade que a proclamava, independentemente da sua correlao com os princpios de justia, no existe mais.. A lei, como sabido, perdeu o seu posto de supremacia, e hoje subordinada Constituio.3 Agora amarrada substancialmente aos direitos positivados na Constituio e, por isso, j constitui slogan dizer que as leis devem estar em conformidade com os direitos fundamentais, contrariando o que antes acontecia, quando os direitos fundamentais dependiam da lei .'1

    A assuno do Estado constitucional deu novo contedo ao princpio da legalidade. Esse princpio agregou o qualificativo substancial para evidenciai que exige a conformao da lc com a Constituio e, especialmente, com os direitos fundamentais, No se pense, porm, que o princpio dalegalidade simplesmente sofreu um desenvolvimento, trocando a lei pelas nor mas constitucionais, ou expressa uma mera continuao do princpio da legalidade formal, caracterstico do Estado legislativo. Na verdade, o princpio da legalidade substancial significa uma transformao que afeta as prprias concepes de direito e de jurisdio e, assim, representa uma quebra de paradigma,5

    1 Giuseppe Chiovenda, Instituies de direito processual civil, v 2, p. 552 Francesco Carnelutti, Sistema di dirittoprocessuale civilc, v. 1, p. 40 . To importantes

    e tradicionais como estas, podem ser mencionadas, na doutrina alem, as teorias de Bernard Windscheid,DitAfc-AbwehrgegenDrThcodorMuther,p, 1 - 3, e Oscar B iilow, Die Lebre von d en Prozesseinreden unddieProzessvoraussetzungen, p V-V1I, e K/age und Urted Eine Grundfrage d es Verhltnisses zwischen Priva trecht und Prozess, p. 68 e ss

    3 VerMarbury tmr/jMadison,5U.S (lCranch) 137 (1803)4 James Fleming, Constructing the substantive constitution Texas Law Review, v 72,

    n. 2 ,p.211.5 Luigi Ferrajoli, Derechos fund ame n tales. Los fundamentos de los dcrechosfundamen-

    tales, p.. 53.

  • 24 A JURISDIO NO ESTADO CONSTITUCIONAL

    Se as teorias da jurisdio constituem espelhos dos valores e das idias das pocas e, assim, no podem ser ditas equivocadas - uma vez que isso seria um erro derivado de uma falsa compreenso de histria certamente devem ser deixadas de lado quando no mais revelam a funo exercida pelo juiz. Isso significa que as teorias de Chiovenda e Carnelutti, se no podem ser contestadas em sua lgica, certamente no tm - nem poderiam ter - mais relao alguma com a realidade do Estado contemporneo. Por isso, so importantes apenas quando se faz uma abordagem crtica do direito atual a partir da sua anlise histrica, isto , da abordagem da sua relao com os valores e concepes do instante em que foram construdas

    A tr ansformao da concepo de direito fez surgir um positivismo crtico, que passou a desenvolver teorias destinadas a dar ao juiz a real possibilidade de afirmar o contedo da lei comprometido com a Constituio6 Nessa linhapodem ser mencionadas as teorias dos direitos fundamentais, inclusive a teoria dos princpios, a tcnica da interpretao de acordo, as novas tcnicas de controle da constitucionalidade- que conferem ao juiz uma funo produtiva, e no mais apenas de declarao de inconstitucionalidade - e a prpria possibilidade de controle da inconstitucionalidade por omisso no caso concreto.

    Ora, pouco mais do que evidente que isso tudo fez surgir um outro modelo de juiz, sendo apenas necessrio, agora, que o direito processual civil se d conta disso e proponha um conceito de jurisdio que seja capaz de abarcar a nova realidade que se criou,

    6 Nesse sentido, Luigi Ferrajoli, Derechoy razn

  • 2A Influncia dos Valores

    do Estado Liberal de Direito e do Positivismo Jurdico

    Sobre os Conceitos Clssicos de Jurisdio

    Sumrio: 2,1 A concepo de direito no Estado liberal - 2 2 O positivismo jurdico 2.3 Ajurisdio como funo dirigida a tutelar os direitos subjetivos privados violados - 2 .4 Da teoria da proteo dos direitos subjetivos privados teoria da atuao da vontade da lei- 2 .5 A teoria de Chiovenda: ajurisdio como atuao da vontade concreta da lei- 2 6 A doutrina de Carnelutti: ajusta composio da lide.

    2.1 A concepo de direito no Estado liberal

    O Estado Liberal de Direito, diante da necessidade de frear os desmandos do regime que lhe antecedeu, erigiu o princpio da legalidade como fundamento para a sua imposio, Esse principio elevou a lei a um ato supremo, objetivando eliminar as tradies jurdicas do absolutismo e do ancten rgwie. A administr ao e os juizes, a partir dele, ficaram impedidos de invocar qualquer direito ou razo pblica que se chocasse com a lei.1

    O princpio da legalidade, porm, constituiu apenas a forma, encontrada pela burguesia, de substituir o absolutismo do regime deposto, E preciso terem conta que

    1 Martin Rzymond,A7:ouveauscIerioiweauproi:scwit p. 40:Cette neutralitedccoulait, au moins dans la procdure suivie devant le tribunal civil represcn tantlc droi t commun procedural, de Ia representation obligatoire des parties par des avous, successeurs des procureurs d'Ancien Regime. Laprocedure taitfaite parles avoues, Lejuge nenconnaissaitqu a 1occasion des incidents qui taicnt ports devant lui, circonstance rare, car Ies avous prfraient regler ces incidents en famillie. (...,) Les avocats ne se safissaientpas alors les mains cesjeuxproceduriers La neutralit du juge tait faite de factivit des avoues. Cetait une neutralit de tous les jours, coupe de quelqucs incidents recueillis par de rares professeurs, et non une affirmation de principe.

  • 26 A JURISDIO NO ESTADO CONSTITUCIONAL

    uma das idias fundamentais implantadas pelo princpio da legalidade foi a de que uma qualidade essencial de toda lei pr limites liberdade individual.. Para haver intromisso na liberdade dos indivduos, seria necessria uma lei aprovada com a cooperao da representao popular, No bastaria uma ordenao do rei Como adverte Carl Sehmitt, para entender esse conceito de lei (lei como limite da liberdade), necessrio considerar a situao poltica da qual se originou. Na luta poltica contra um forte governo monrquico, a cooperao da representao popular tinha que ser acentuada cada vez com mais fora, como critrio adequado, at converter-se em critrio decisivo de conceituao da lei., De tal modo que a lei passou a ser definida como o ato produzido mediante a cooperao da representao popular. E o imprio da lei converteu-se em imprio da representao popular,,2

    Nesse sentido se pode dizer que na Europa continental o absolutismo do rei foi substitudo pelo absolutismo da assemblia parlamentar:. Da a impossibilidade de confundir o rule of law ingls com o princpio da legalidade.3 O parlamento ingls eliminou o absolutismo, ao passo que a assemblia parlamentar do direito francs, embora substituindo o rei, manteve o absolutismo atravs do princpio da legalidade , '1 Diante disso, e grosso modo, no direito ingls a lei pde ser conjugada com outros valores, dando origem a um sistema jur dico complexo - o common law~y enquanto nos pases marcados pelo princpio da legalidade o direito foi reduzido lei .s

    Se-com o diz Carl Sehm itt- na idealizao do Estado de Direito Liberal a burguesia adotou um conceito de lei que repousa em uma velha tradio europia-herana da filosofia grega, que passou Idade Moderna atravs da escolstica conforme o qual a lei no uma vontade de um ou de muitos homens, mas uma coisa geral-racional (no voluntas, mas ratio)? no processo histrico de afirmao da burguesia, tal noo de lei cedeu espao para o seu oposto, isto , para a noo de lei defendida

    2 Carl Sehmitt, Teoria de la comtun, p 1573 A . V Diccy, Introduction to thcsludyof the law oftbecomtitution, p. 202-203, caracteriza

    o rule oflavj por trs notas: ausncia dc poder arbitrrio, igualdade perante a lei e,por fim, o fato de que os princpios gerais da constituio constituem resultados do direito comum, ou seja, revelam-se na forma como os tribunais reconhecem direitos individuais. Ver, ainda, para um estudo comparativo das noes de ruieoffaw, tat de droit eReehtstaat, Michel Rosenfeld, The rule oflaw and the legitimacy of constitutional democracy, Southern Califrnia Law Review, v. 74, n. 5, p 1307-1351; Luc Heuschling, Etat de Droit, Recbtsstaat, Rule o f Law.. No direito brasileiro c, cm particular, diante do processo civil, ver Daniel Mitidiero, Processo Civile Estado Constitucional.

    4 Gustavo Zagrebelsky A lei, o direito e a constituio, texto apresentado no colquio comemorativo do XX Aniversrio do Tribunal Constitucional Portugus, realizado cm Lisboa, em 28 de novembro de 2003 Sobre a importncia da histria constitucional, ou melhor, de uma histria crtica para uma melhor compreenso do direito constitucional contemporneo, ver Gustavo Zagrebelsid, Historiay constitucin (com introduo de Miguel Carbonell).

    5 Gustavo Zagrebesky, Elderecho dctil, p 256 Carl Sehmitt, Teora de la comtitucin, cit, p 150

  • INFLUNCIA DO ESTADO LIBERAL E DO POSITIVISMO JURDICO 27

    pelos representantes do absolutismo de Estado, segundo a qual, na frmula clssica cunhada por Hobbes, auctoritas, non veritas facit legem a lei vontade, no vale por qualidades morais e lgicas, mas precisamente como ordem.

    O princpio da legalidade, assim, acabou por constituir um critrio de identificao do direito; o direito estaria apenas na norma jurdica, cuja validade no dependeria de sua correspondncia com a justia, mas somente de ter sido produzida por uma autoridade dotada de competncia normativaNessa Unha, Ferrajoii qualifica o princpio da legalidade como meta-norma de reconhecimento das normas vigentes, acrescentando que, segundo esse princpio, uma norma jurdica existe e vlida apenas em razo das formas de sua produo. Ou melhor, nessa dimenso a juridicidade da norma est desUgada de sua justia intrnseca, importando somente se foi editada por uma autoridade competente e segundo um procedimento regular.7

    No Estado Liberal de Direito, os parlamentos da Europa continental reservaram a si o poder poltico mediante a frmula do princpio da legaUdade. Diante da hegemonia do parlamento, o executivo e o judicirio assumiram posies bvias de subordinao; o executivo somente poderia atuai'se autorizado pela lei e nos seus exatos mites, e o judicirio apenas aplic~la, sem mesmo poder interpret-la; o legislativo, assim, assumia uma ntida posio de superioridade Na teoria da separao dos poderes, a criao do direito era tarefa nica e exclusiva do legislativo.

    Para Montesquieu - autor da obra8 que idealizou a teoria da separao dos poderes recepcionada pelo Estado Uberal o poder de julgar deveria ser exercido atravs de uma atividade puramente intelectual, no produtiva de direitos novos. Essa atividade no seria limitada apenas pela legislao, mas tambm pela atividade executiva, que teria tambm o poder de executar materialmente as decises que constituem o "poder de julgar , Nesse sentido, o poder dos juizes ficaria Umitado a afirmar o que j havia sido dito pelo legislativo, pois o julgamento deveria ser apenas "um texto exato da lei".9 Por isso, Montesquieu acabou concluindo que o poder de julgar era, de qualquer modo, um poder nulo (en quelque faon, nulle)?Q

    Antes do Estado legislativo, ou do advento do princpio da legalidade, o direito no decorria da lei, mas sim da jurisprudncia e das teses dos doutores, e por esse motivo existia uma grande pluralidade de fontes, procedentes de instituies no s diversas, mas tambm concorrentes, como o imprio, a igreja etc. A criao do Estado legislativo, portanto, implicou na transformao das concepes de direito e de jurisdio.11

    7 Luigi Ferrajoii,Derechos fimdamentales,cit.,p 528 Dc l'csprit da lois (Do esprito das leis), publicada pela primeira vez em 1748.9 Montesquieu, Do esprito das leis, p . 158.J0 Ver GiovanniTarello, Storia delia culturagiuridica moderna (assolustismo e codificazione

    del diritto), p 291..i! Luigi Ferrajoii, Pasado e futuro del estado de dcrccho,Neoconstitvcionalismo(s), p 15-17.

  • 28 AJURISDIO NO ESTADO CONSTITUCIONAL

    A transformao operada pelo Estado legislativo teve a inteno de conter os abusos da administrao e da jurisdio, e assim, obviamente, no se est dizendo que o sistema anterior ao do Estado legislativo era melhor No h dvida de que a supremacia da lei sobre o judicirio teve o mrito de conter as arbitrariedades de um corpo de juizes imoral e corrupto.

    Osjuizes anteriores Revoluo Francesa eram to comprometidos com o poder feudal que se recusavam a admitir qualquer inovao introduzida pelo legislador que pudesse prejudicar o regime. Os cargos de juizes no apenas eram hereditrios, como tambm podiam ser comprados e vendidos, e da a explicao natural paia o vnculo dos tribunais judicirios com idias conservadoras e prprias do poder institudo, e para a conseqente repulsa devotada aos magistrados pelas classes populares.12

    Montesquieu, ao afirmar a tese de que no poderia haver liberdade caso o poder de julgar no estivesse separado dos poderes legislativo e executivo, partia da sua prpria experincia pessoal, pois conhecia muito bem os juizes da Frana da sua poca. Montesquieu nasceu Charles-Louis de Secondat em uma famlia de magistrados, tendo herdado do seu tio no apenas o cargo de Prdent mortier no Parlemejit de Bordeaux, bem como o nome de Montesquieu.13

    Mas ele no se deixou seduzir pelas facilidades dessa posio social, como ainda teve a coragem de denunciar as relaes esprias dos juizes com o poder, nessa dimenso idealizando a teoria da separao dos poderes,w e assim propondo que os magistrados deveriam se limitar a dizer as palavras da lei,15

    Porm, como o direito foi resumido lei e a sua validade conectada exclusivamente com a autoridade da fonte da sua produo, restou impossvel controlar os abusos da legislao. Se a lei vale em razo da autoridade que a edita, independentemente da sua correlao com os princpios de justia, no h como direcionar a produo do direito aos reais valores da sociedade.14 Da se ter como certo que a teoria

    12 Mauro Cappelletti, Repudiando Montesquieu? A expanso e a legitimidade dajustia constitucional", Revista da Faculdade de Direito da UFRGS,v. 20, p 268,

    13 Idem.p. 26914 Na obra Do esprito das leis.15 A Lei Revolucionria de agosto de 1790 afirmou expressamente que os tribunais

    judicirios no tomaro parte, direta ou indiretamente, no exerccio do poder legislativo, nem impediro ou suspendero a execuo das decises do poder legislativo... (Ttulo II, art. 10); que os tribunais reportar-se-o ao corpo legislativo sempre que assim considerarem necessrio, a fim de interpretar ou editar uma nova lei" (Ttulo II, art. 12); e que as funes judicirias so distintas c sempre permanecero separadas das funes administrativas Sob penade perdadeseus cargos, osjuizes de nenhuma maneira interferiro com a administrao pblica, nem convocaro os administradores prestao de contas com respeito ao exerccio de suas funes (Ttulo II, art, 12) (cf. Mauro Cappelletti, Repudiando Montesquieu?. ..,cit.,p. 272).

    16 Ver Gustavo Zagrebelsky, A lei, o direito e a Constituio, Colquio comemorativo do XXAniversrio do Tribunal Constitucional Portugus] Kathleen M . SuUivan,The Supreme Coui t, 1991 Term - Foreword: The justice of rules and standards, HarvardLaw Reviexu, v 106, p. 22; Ronald Dworkin, A Btll ofRights for Britain.

  • INFLUNCIA DO ESTADO LIBERAL E DO POSITIVISMO JURDICO 29

    de Montesquieu, embora se voltando contra os abusos do antien regime, lanou as sementes da tirania do legislativo.17

    Por outro lado, o princpio da legalidade tinha estreita ligao com o princpio da liberdade, valor perseguido pelo Estado liberal a partir das idias de que a Administrao apenas podia fazer o que a lei autorizasse e de que os cidados podiam fazer tudo aquilo que a lei no vedasse.. Conforme anota Carl Sehmitt, da idia fundamental da liberdade burguesa - proteo dos cidados contra os abusos do poder pblico - deduzem-se duas conseqncias, que integram os dois princpios tpicos do Estado de Direito Liberal. Primeiro, um princpio de distribuio: a esfera de liberdade do indivduo suposta como um dado anterior ao Estado, restando a liberdade do indivduo ilimitada em princpio, enquanto a faculdade do Estado de invadi-la limitada em princpio.. Segundo, um principio de organizao, que serve para pr em prtica aquele principio de distribuio: o poder do Estado (limitado em princpio) reparte-se e encerra-se em um sistema de competncias circunscritas.18

    O imprio da lei, como instrumento a servio da liberdade burguesa, ganha contedo em contraposio idia de imprio de homens,. Imprio da lei significa, antes de tudo, que o prprio legislador est vinculado s leis que edita. A vinculao do legislador lei s possvel, todavia, enquanto a lei uma norma com certas propriedades. 19 Estas so sintetizadas na expresso da lei geral e abstrata. Para no violar a liberdade e a igualdade - formal - dos cidados, a lei deveria guardar as caractersticas da generalidade e da abstrao, A norma no poderia tomar em considerao algum em especfico ou ser feita para uma determinada hiptese. A generalidade era pensada como garantia de imparcialidade do poder frente aos cidados - que, por ser serem iguais, deveriam ser tratados sem discriminao - e a abstrao como garantia da estabilidade - de longa vida - do ordenamento jurdico.20

    A igualdade, que no tomava em conta a vida real das pessoas, era vista como garantia da liberdade, isto , da no discriminao das posies sociais, pouco importando se entre elas existissem gritantes distines concretas. O Estado liberal tinha preocupao com a defesa do cidado contra as eventuais agresses da autoridade estatal e no com as diferentes necessidades sociais.21 A impossibilidade de o Estado

    17 Mauro Cappelletri, Repudiando Montesquieu?,. , cit,., p. 272,16 Carl Sehmitt, Teoria de la comtitun, cit., p 138,19 Idem,p.. 150.20 Gustavo Zagrebelsky, E l derecho dctil, cit., p 29; ver Edwards S. Corwin, The

    establishment of judicial review, Michigan Law Review, v. 9, n. 2, p. 102-125,21 VerJrgen Habermas, Direi/o c democracia, p. 305: Esse modelo parte da premissa

    segundo a qual a constituio do Estado de direito democrtico deve repelir primariamente os perigos que podem surgir na dimenso que envolve o Estado e o cidado, portanto nas relaes entre o aparelho administrativo que detm o monoplio do poder e as pessoas privadas desarmadas. Ao passo que as relaes horizontais entre as pessoas privadas, especialmente as relaes intersubjetvas,no tm nenhuma fora estruturadora para o esquema liberal de diviso dos poderes

  • 30 AJURISDIO NO ESTADO CONSTITUCIONAL-

    interferir na sociedade,22 de modo a proteger as posies sociais menos favorecidas, constitua conseqncia natural da suposio dc que para se conservar a liberdade de todos era necessrio no discriminar ningum, pois qualquer tratamento diferenciado era visto como violador da igualdadelogicamente formalP

    Ademais, para o desenvolvimento da sociedade em meio liberdade, aspi- rava-se a um direito previsvel ou chamada certeza do direito. Desejava-se uma lei abstrata, que pudesse albergar quaisquer situaes concretas futuras, e assim eliminasse a necessidade da edio de novas leis, e especialmente a possibilidade de o juiz, ao aplic-la, ser levado a tomar em conta especificidades prprias e caractersticas de uma determinada situao.

    A generalidade e a abstrao evidentemente tambm apontavam para a impossibilidade de o juiz interpretar a lei ou considerar circunstncias especiais ou concretas,. Como bvio, de nada adiantaria uma lei marcada pela generalidade e pela abstrao se o juiz pudesse conformj~Ia s diferentes situaes concretas.. Isso, segundo os valores liberais, obscureceria a previsibilidade e a certeza do direito, pensados como indispensveis para a manuteno da liberdade., Compreende- se, nessa dimenso, a razo pela qual Montesquieu disse que, se os julgamentos fossem uma opinio particular do juiz, viver -se-ia na sociedade sem saber precisamente os compromissos que nela so assumidos,2*1 No h dvida de que essa afirmao de Montesquieu revela uma ideologia poltica ligada idia de que a liberdade poltica, vista como segurana psicolgica do sujeito, realiza-se mediante a certeza do direito 25

    23 Ver Carl Schmitt, Teoria de In constitucin, cit ., que define o Estado de Direito oriundo do liberalismo clssico como todo Estado que respete sin condiciones el Derecho objetivo vigente y los derechos subjetivos que existan, e adverte que tal concepo tem por conseqncia legitimar y eternizar el status quo vigente.

    23 Exemplar, nesse sentido, o pronunciamento da Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Adkins versus Childrens Hospital 261 U .S . 525 (1923), deciso de 1923 que invalidou uma legislao que estabelecia salrio mnimo para mulheres e crianas: To the extent that the sum fixed [by the minimum wage statute] exceeds the fair value of the services rendered, it amounts to a compulsory exaction from the employer for the support of a pardally indigent person, for whose condition there rests upon him no peculiar responsibilty, and therefore, in effect, arbitrarily shifts to his shoulders a burden which, if it belongs to anybody, bclongs to society as a whole (Na extenso em que a soma fixada [pela lei do salrio mnimo] excede o valor justo dos servios prestados, eqivale a uma exao compulsria do empregador para o sustento de uma pessoa parcialmente indigente, por cuja condio ele no tem nenhuma responsabilidade especial, e por isso, de fato, transfere arbitrariamente para os seus ombros um fardo que, se pertence a algum, pertence sociedade como um todo) Ver Cass Sunstein, Thepartialconslitution, p. 45.

    24 Montesquieu, Do espirito cias leis, c it, p. 158.25 Giovanni Tardio, Storia delia culturagiurdica moderna...., cit.,, p. 294; ver Geoffrey C.

    Hazard Jr., Refiections on the substance of fimdity, ComellLaui Review, v. 70, p., 642,646-647

  • INFLUNCIA DO ESTADO LIBERAL-E DO POSITIVISMO JURDICO 31

    Mas tudo isso leva s questes da sistematicidade e da plenitude do direito. O ideal da supremacia do legislativo era o de que a lei e os cdigos deveriam ser to clar os e completos que apenas poder iam gerar uma nica interpretao, inquestionavelmente correta.26 A lei era bastante e suficiente para que o juiz pudesse solucionar os conflitos,27 sem que precisasse recorrer s normas constitucionais.

    Como explica Zagrebelski, com base nessas premissas a cincia do direito podia afirmar que as disposies legislativas nada mais eram do que partculas constitutivas de um edifcio jurdico coerente e que, portanto, o intrprete podia retirar delas, indutivamente ou mediante uma operao intelectiva, as estruturas que o sustentavam, isto , os seus princpios. Esse o fundamento da interpretao sistemtica e da analogia, dos mtodos de interpretao que, na presena de uma lacuna, isto , da falta de uma disposio expressa para resolver uma controvrsia jurdica, permitiam individualizar a norma precisa em coerncia com o sistema. A sistematicidade acompanhava, portanto, a plenitude do direito 28

    2.2 O positivismo jurdico

    O positivismo jurdico tributrio dessa concepo de direito, pois, partindo da idia de que o direito se resume lei, e, assim, fruto exclusivo das casas legislativas, limita a atividade do jurista descrio da lei e busca da vontade do legislador,29

    O positivismo jurdico nada mais do que uma tentativa de adaptao do positivismo filosfico ao domnio do direito. Imaginou-se, sob o rtulo de positivismo jurdico, que seria possvel criar uma cincia jurdica a partir dos mtodos das

    26 Mauro Cappelletti, Repudiando Montesquieu? ., cit., p. 271,37 Jrgen Habermas, Direito e democracia, cit.., p 313: O paradigma liberal do direito

    expressou, at as primeiras dcadas do sculo .XX, um consenso de fundo muito difundido entre os especialistas em direito, preparando, assim, um contexto de mximas de interpretao no questionadas para a aplicao do direito. Essa circunstncia explica porque muitas pensavam que o direito podia ser aplicado a seu tempo, sem o recurso a princpios necessitados de interpretao ou a conceitos-chave duvidosos.

    38 Gustavo Zagrebclsky, E l derecho dctil, cit ,p 32 Referindo-se ao Cdigo Civil italiano de 1865, diz Natalino Irti:'Na idade liberal-a idade que se encerra em 1914 entre os esplendores da grande guerra - , o sistema normativo gravita completamente em torno ao Cdigo Civil O Cdigo Civil de 1865 contm os princpios gerais, que orientam a regulao das particulares instituies ou matrias, eque, em ltima instncia, servem para colmatar as lacunas do ordenamento" (Leycs especial es (del mono-sistema al poli-sistema), La cdad de la dcscodificaan, p 93),

    29 Ver, sobre o positivismo jurdico, Bans Kelsen, Teoria pura do direito; Hcrbert L, A. Hart, 0 conceito de direito', Norberto Bobbio, O positivismo jurdico-, Joseph Raz, The autbority of /tfnj;jules Coleman, Nega tive and positive positivism, OxfordJournal ofLegal Studies, v. 11, p . 139 Para um vigoroso argumento positivista sustentando a importncia das intenes do legislador para a interpretao, Larry Al exander. Tudo ou nada? As intenes d as autoridades e a autoridade das intenes, Direito e interpretao, p 537-608

  • 32 A JURISDIO NO ESTADO CONSTITUCIONAL

    cincias naturais, basicamente da objetividade da observao e da experimentao. Se o investigador das cincias naturais pode realizar experimentos com base em procedimentos lgicos at concluir a respeito da verdade ou da falsidade de uma proposio, sups~se que a tarefa do jurista poderia ser submetida a essa mesma lgica. Nessa linha, os juristas sempre chegariam a um resultado correto ou falso na descrio do direito positivo, como se fsicos ou qumicos fossem.

    A mera observao e descrio da norma constitui o ponto caracterizador do positivismo jurdico, que dessa forma pode ser visto como uma cincia cognoscitiva ou explicativa de um objeto, isto , da norma positivada. Por constituir explicao da norma, o positivismo difere nitidamente da atividade de produo do direito, ou da atividade normativa, pois a tarefa do jurista positivista completamente autnoma em relao atividade de produo do direito, ao contrrio do que acontecia poca em que a atividade da jurisprudncia e dos doutores criava o direito .30

    O positivismo no se preocupava com o contedo da norma, uma vez que a validade da lei estava apenas na dependncia da observncia do procedimento estabelecido para a sua criao.. Alm do mais, tal forma de pensar o direito no via lacuna no ordenamento jurdico, afirmando a sua plenitude.. A lei, compreendida como corpo de lei ou como Cdigo, era dotada de plenitude e, portanto, sempre teria que dar resposta aos conflitos de interesses.

    Contudo, o positivismo jurdico no apenas aceitou a idia de que o direito deveria ser reduzido lei, mas tambm foi o responsvel por uma inconcebvel simplificao das tarefas e das responsabilidades dos juizes, promotores, advogados, professores e juristas, limitando-as a uma aplicao mecnica das normas jurdicas na prtica forense, na universidade e na elaborao doutrinria,31

    Isso significa que o positivismo jurdico, originariamente concebido para manter a ideologia do Estado liberal, transformou-se, ele mesmo, em ideologia. Nessa dimenso, passou a constituir a bandeira dos defensores do status quo ou dos interessados em manter a situao consolidada pela lei. Isso permitiu que a sociedade se desenvolvesse sob um assptico e indiferente sistema legal ou mediante a proteo de uma lei que, sem tratar de modo adequado os desiguais, tornou os iguais em carne e osso mais desiguais ainda,32

    30 Luigi Ferrajoli, Pasado e futuro . c it, p 16; ver Hans Kelsen, Teoria pura do direito, cit31 Mauro Cappelietti,Dim&miom delia giustizia rnlh sociei tonttmporanee, p 72 O que se

    pretende evidenciar aqui que o positivismo clssico no d conta de alguma forma de raciocnio jurdico que no seja uma simples deduo, ou que deixe de encaixar um caso especial dentro do molde de uma regra geral prefixada

    32 Peter Hberle, Die Wes&ngehaltsgarane desArt. 19 A bs 2 Grundgeseirz., p. 90-91: O pensamento individualista e o liberalismo constituem as causas adicionais para o desprezo da parte institucional dos direitos fundamentais. { .) O formalismo e o positivismo no tm nenhum sentido para a relao imanente dos direitos fundamentais como institutos, Crem que a essncia da liberdade se esgota com as liberdades negativas diante da coero do Estado.

  • INFLUENCIADO ESTADO LIBERAL E DO POSITIVISMO JURDICO 33

    2.3 Ajurisdio como funo dirigida a tutelar os direitos subjetivos privados violados

    Se certo que a jurisdio, no final do sculo X IX , encontrava-se totalmente comprometida com os valores do Estado liberal e do positivismo jurdico, passa a importar, agora, a relao entre tais valores e a concepo de jurisdio como funo voltada a dar atuao aos direitos subjetivos privados violados.

    Os processualistas que definiram essa idia de jurisdio estavam sob a influncia ideolgica do modelo do Estado Liberal de Direito e, por isso, submetidos aos valores da igualdade formal, da liberdade individual mediante a no interferncia do Estado nas relaes privadas e do princpio da separao de poderes como mecanismo de subordinao do executivo e do judicirio lei.33

    Na poca, atuava a chamada escola exegtica, que, alm de ter sido influenciada pelo iluminismo, foi acentuadamente marcada pelo positivismo jurdico e, assim,pela idia de submisso do juiz lei,

    A tendncia de defesa da esfera de liberdade do particular aliada tese de que apenas a supremacia da lei seria capaz de proteger esses direitos deram naturalmente ajurisdio a funo de proteger os direitos subjetivos dos particulares mediante a aplicao da lei.

    Mais precisamente, ajurisdio tinha a funo de viabilizar a reparao do dano, uma vez que, nessa poca, no se admitia que o juiz pudesse atuar antes de uma ao humana ter violado o ordenamento jurdico, Se a liberdade era garantida na medida em que o Estado no interferia nas relaes privadas, obviamente no se podia dar ao juiz o poder de evitar a prtica de uma conduta sob o argumento de que ela poderia violar a lei. Na verdade, qualquer ingerncia do juiz, sem que houvesse sido violada uma lei, seria vista como um atentado liberdade individual.

    Giuseppe Manfredini - um doutrinador italiano da poca ao escrever, em 1884, o seu Programma del corso di diritto giudiztario civile, destacou entre os princpios informadores da procedura civile aquele que sintetizaria a necessidade de se conferir aos direitos privados a mxima garantia social com o mnimo de sacrifcio de liberdade individual, Disse Manfredini11 que cada restrio liberdade do indivduo superior ao poder de todas as leis positivas humanas, e que conseqentemente tambm a de1procedura deve respeitar esse limite.34

    12 RudolfWassermann, Der soziale Zivilprozess, p, 44: Na crena de que o juiz est sujeito s amarras da lei, sente-se a utopia do desconfiante liberalismo contra todo poder estatal, imaginando-se com isso se ter solucionado o problema do controle do poder. Quem pode dizer o que alei afirma no exerce poder algum. E apenas um guardio, que por sua vez no requer qualquer outro guardio sobre si. O perigo de que as instncias polticas possam influir na jurisprudncia conduz tambm ao princpio do juiz natural"

    34 Giuseppe Manfredini, Programma del corso di dintto giudiziario civile, p. 44

  • 34 A JURISDIO NO ESTADO CONSTITUCIONAL

    No de se admirar, assim, que o conceito de jurisdio, nessa poca, no englobasse a necessidade de tutela preventiva, ficando restrita reparao do direito violado,35

    Mas a conotao repressiva da jurisdio no foi simplesmente influenciada pelo valr da liber dade individual, pois o princpio da separao dos poderes tambm serviu para negar jurisdio o poder de dar tutela preventiva aos direitos, uma vez que, na sua perspectiva, a funo de preveno diante da ameaa de no observncia da lei era da administr ao, Esse seria um poder exclusivo de polcia administr ativa", evitando-se, desse modo, uma sobreposio de poderes: a administrao exerceria a preveno e o judicirio apenas a represso ,

    Ademais, a idia de igualdade formal, ao refletir a impossibilidade de tratamento diferenciado s diferentes posies sociais e aos bens, unificou o valor dos direitos, permitindo a sua expresso em dinheiro e, assim, que a jurisdio pudesse conferir a todos eles um significado em pecnia . Foi quando surgiu a idia de reparao do dano pelo equivalente, o que obviamente tambm teve influncia sobre a concepo de jurisdio como funo dirigida a dar tutela aos direitos privados violados.

    Ora, se todos os direitos podiam ser convertidos em pecnia, e a jurisdio ento no se preocupava com a tutela da integridade do direito material, mas apenas em manter em funcionamento os mecanismos de mercado, logicamente no era necessria a prestao jurisdicional preventiva, bastando aquela que pudesse colocar no bolso do particular o equivalente monetrio,,

    2.4 Da teoria da proteo dos direitos subjetivos privados teoria da atuao da vontade da lei

    Aps a anlise realizada no item anterior, cabe verificar o que separa e o que identifica as teorias da proteo dos direitos subjetivos privados e da atuao da vontade da lei.

    A atuao da vontade da lei revela a preocupao em salientar que a jurisdio exerce um poder voltado afirmao do direito objetivo ou do ordenamento jurdico, O objetivo da jurisdio, nessa linha, passa a ter, antes de tudo, uma conotao publicista, e no apenas um compromisso com a proteo dos particulares, isto , um compromisso privatista.

    Devem-se a Lodovico Mortara as primeiras lies endereadas a essa concepo de jurisdio, que levaram os prprios processu alistas chiovendianos a confessar o seu papel de jurista de transio entre a escola exegtica e a escola histrico-dogmtica, fundada por Giuseppe Chiovenda. E possvel dizer que o Gommcntario del cdice e delle leggi diprocedura civile36 de Mortara afirmou, pela primeira vez, a natureza pblica

    35 Ver L uiz Guilherme Marinoni, Tutela ubitna,^ 312 e ss36 Lodovico Mortara, Commentario del Codice e delle leggi d\ procedura civile

  • INFLUNCIA DO ESTADO LIBERAL E DO POSITIVISMO JURDICO 35

    do processo civil Como reconheceu Chiovenda,37 o grande mrito de Mortara foi o de ter pensado o processo civil como instituto de direito pblico, o qual foi o ponto de partida dos progressos sucessivamente obtidos no nosso campo",38

    No obstante, ainda que o pensamento de Mortara tenha sido importante para afirmar a natureza pblica do processo, o fato que a sua concepo de jurisdio, ao frisar a defesa do direito objetivo, no se livrou do peso dos valores do Estado liberal, mantendo-se absolutamente fiel idia de que o juiz, diante da sua posio de subordinao ao legislador, deveria apenas atuar a vontade da lei.,

    Quando Mortara afirma que a jurisdio tem o fim de defender o direito objetivo, fica claro que esse objetivo deve ser realizado mediante a declarao ou a atuao da lei. Portanto, a doutrina de Mortara se diferenciou, em relao s lies dos processu alistas que sustentaram a concepo de jurisdio vista no item anterior, apenas em razo de ter revelado a natureza pblica do processo, mas se manteve presa aos valores culturais e ideolgicos do Estado liberal

    2.5 A teoria de Chiovenda: a jurisdio como atuao da vontade concreta da lei

    Giuseppe Chiovenda, em 190.3, proferiu uma conferncia - que se tornou famosa nos estudos do processo civil - demonstrando a autonomia da ao em face do direito subjetivo material,39 Essa conferncia, ao desvincular a ao do direito material, marcou o fim da era privatista do processo, e reafirmou a tendncia - j inaugurada por Mortara - do realce da natureza publicista do processo civil.

    Ajurisdio, mergulhada no sistema de Chiovenda, vista como funo voltada atuao da vontade concreta da lei. Segundo Chiovenda, ajurisdio, no processo de conhecimento, consiste na substituio definitiva e obrigatria da atividade intelectual no s das partes, mas de todos os cidados,pela atividade intelectual do juiz, ao afirmar existente ou no existente uma vontade concreta da lei em relao s partes"'10

    Chiovenda chegou a dizer que, como ajurisdio significa a atuao da lei, no pode haver sujeio jurisdio seno onde pode haver sujeio lei,41 Essa passagem da doutrina chiovendana bastante expressiva no sentido de que o verdadeiro poder estatal estava na lei, e de que a jurisdio somente se manifestava a partir da revelao da vontade do legislador,,

    37 Em homenagem pstuma a Mortara.39 Giuseppe Chiovenda, Lodovico Mortara Rivistadi DirittoProcessuais Cjvile, 1937,

    p. 101..39 Giuseppe Chiovenda, L'azione nei sistema dei diritti Saggi di dirittoprocessuale crutlc,

    p. 3 e ss40 Giuseppe Chiovenda, Principios del derechoprocesal, p 365.41 Giuseppe Chiovenda, Instituies ,, c it , v. 2, p. 55

  • 36 AJURISDIO NO ESTADO CONSTITUCIONAL

    verdade que Chiovenda afirmou que a funo do juiz aplicar a vontade da lei ao caso concreto. Com isso, no entanto, jamais desejou dizer que o juiz cria a norma individual ou a norma do caso concreto, semelhana do que fizeram Carneiutti e todos os adeptos da teoria unitria do ordenamento jurdico. Lembre-se que, para Kelsen - certamente o grande projetor dessa ltima teoria - , o juiz, alm de aplicar a lei, cria a norma individual (ou a sentena) .,2

    Chiovenda um verdadeiro adepto da doutrina que, inspirada no iluminismo e nos valores da Revoluo Francesa, separava radicalmente as funes do legislador e do juiz, ou melhor, atribua ao legislador a criao do direito e ao juiz a sua aplicao, Recorde-se que, na doutrina do Estado liberal, aos juizes restava simplesmente aplicar a lei ditada pelo legislador, Nessa poca, o direito constitua as normas gerais, isto , a lei, Portanto, o legislativo criava as normas gerais e o judicirio as aplicava. Enquanto o legislativo constitua o poder poltico por excelncia, o judicirio, visto com desconfiana, se resumia a um corpo de profissionais que nada podia criar/13

    De modo que no se pode confundir aplicao da norma geral ao caso concreto com criao da norma individual do caso concreto, Quando se sustenta, na linha da lio de Kelsen, que o juiz cria a norma individual, admite-se que o direito o con- jnnto das normas gerais e das normas individuais e, por conseqncia, que o direito tambm criado pelo juiz.'1'1

    Embora a doutrina da criao da norma individual no signifique que o juiz no esteja preso ao texto da lei ~ como ficar claro quando se estudar a concepo de jurisdio de Carneiutti inegvel que tal doutrina, ao sustentar que o juz cria a norma individual, representou uma crtica posio que enxergava na funo do juiz uma simples aplicao das normas gerais,

    Contudo, no se pode obscurecer que a doutrina de Chiovenda deu origem a uma escola que desvinculou o processo do direito material, manchando-se com caractersticas que a diferenciaram da escola exegtica, Porm, os princpios bsicos da escola chiovendiana - sobre os quais, alis, formaram-se a moderna doutrina processual italiana e a doutrina processual brasileira - foram inspirados no modelo institucional do Estado de direito de matriz liberal, revelando, de tal modo, uma continuidade ideolgica em relao ao pensamento dos juristas do sculo X IX ^ 5

    42 Hans Kelsen, Teoria geral do direito t do estado p 165; ver Ulises Schmill Ordnez, Observaciones a inconstitucionalidad y derogacin, Discusio?ies, p. 79-83; Carlos Nino, El concepto de validez jurdica en la teoria de Kelsen La validez deldereco, p. 7-40.

    43 Eugnio Bulygin,

  • INFLUNCIA DO ESTADO LIBERAL E DO POSITIVISMO JURDICO 27

    A mudana que se verificou em relao natureza do processo, antes concebido como algo posto a servio dos particulares, e depois visto como meio atravs do qual se exprime a autoridade do Estado, nada teve a ver com o surgimento de uma ideologia diversa daliberal,emuito menos com uma tentativa de insero do processo civilem uma dimenso social, constituindo apenas o resultado da evoluo da cultura jurdica.46

    Deixe-se claro que a escola chiovendiana, ainda que preocupada com a investigao das razes histricas dos institutos processuais, bem como com uma maior problematizao da dogmtica processual civil, jamais chegou a questionar, por exemplo, o acesso dos cidados ao Poder Judicirio e a efetividade dos procedimentos paia atender aos direitos das classes desprivilegiadas.

    Como est claro, a escola chiovendiana, apesar de ter contribudo para desenvolver a natureza publicista do processo, manteve-se fiel ao positivismo clssico.

    2.6 A doutrina de Carnelutti: a justa composio da lide

    Carnelutti atribuiu jurisdio a funo de justa composio da lide, entendida como o conflito de interesses qualificado pela pretenso de um e pela resistncia do outro interessado 47 A lide, no sistema de Carnelutti, ocupa o lugar da ao no sistema chiovendiano.

    Como visto, Chiovenda, ao desenvolver o estudo da ao, demonstrou a sua autonomia em relao ao direito material. Porm, esse trabalho de separao entre a ao e o dreito subjetivo material teve o ntido objetivo de demonstrar a superao da concepo privatista de processo. Como fez questo de frisar Cristina Rapisarda, a teoria chiovendiana da jurisdio, como funo voltada atuao da vontade concreta da lei, era estritamente conexa, no plano conceituai, com o princpio da autonomia da ao.48 Ou seja, se a ao no se confunde com o direito material, constituindo um poder de provocar a atividade do juiz, lgico que essa atividade voltada atuao da lei, e no realizao do direito material, De modo que o conceito chiovendiano de ao se colocou ao centro do sistema que revelou a natureza publicista do processo A partir desse conceito, a jurisdio foi, por conseqncia, pensada no quadro das funes do Estado, considerada, ento, a tripartio dos poderes,

    Carnelutti, entretanto, partu da idia de lide - compreendida como conflito de interesses, ou, mais precisamente, marcada pela idia de litigiosidade, conflituosidade ou contenciosidade-para definir a existncia de jurisdio. A lide, dentro do sistema carneluttiano, caracterstica essencial para a presena de jurisdio. Havendo lide, a atividade do juiz jurisdicional, mas no h jurisdo quando no existe um conflito de interesses para ser resolvido ou uma lide para ser composta pelo juiz.49

    1 Michele Taruffo, La giustizia civik in Italia dal '700a oggt, p. 18641 FrancescoCarnelutti, Sistema..., c it , v. l,p .4048 Cristina Rapisarda, Profili.. , cit., p. 52,49 Francesco Carneluti, Sistema..., cit.,v. 1 ,p 1,30 e ss.

  • 38 AJURISDIO NO ESTADO CONSTITUCIONAL

    E evidente que o ngulo visual de Carnelutti revela uma compreenso privatista da relao entre a lei, os conflitos e o juiz. Enquanto Chiovenda procurava a essncia da jurisdio dentro do quadro das funes do Estado, Carnelutti via na especial razo pela qual as partes precisavam do juiz - no conflito de interesses - a caracterstica que deveria conferir corpo jurisdio- Carnelutti estava preocupado com a finalidade das partes; Chiovenda, com a atividade do juiz.. Por isso, possvel dizer que Carnelutti enxergava o processo a partir de um interesse privado e Chiovenda em uma perspectiva publicista.

    De qualquer maneira, a frmula da composio da lide tambm pode ser analisada a partir da idia, que est presente no sistema de Carnelutti, de que a lei , por si s, insuficiente para compor a lide, sendo necessria para tanto a atividade do juiz. A sentena, nessa linha, integra o ordenamento jurdico, tendo a misso de fazer concreta a norma abstrata, isto , a lei. A sentena, ao tornar a lei particular para as partes, comporia a lide.50

    As concepes de justa composio da lide, de Carnelutti, e de atuao da vontade concreta do direito, elaborada por Chiovenda, so ligadas a uma tomada de posio em face da teoria do ordenamento jurdico, ou melhor, funo da sentena diante do ordenamento jurdico, Para Chiovenda, a funo da jurisdio meramente declaratria; o juiz declara ou atua a vontade da lei. Carnelutti, ao contrrio, entende que a sentena torna concreta a norma abstrata e genrica, isto , faz particular a lei para os litigantes.,

    Para Carnelutti, a sentena cria uma regra ou norma individual, particular para o caso concreto, que passa a integrar o ordenamento jurdico, enquanto, na teoria de Chiovenda, a sentena externa (est fora) ao ordenamento jurdico, tendo a funo de simplesmente declarar a lei, e no de completai' o ordenamento jurdico.. A primeira concepo considerada adepta da teoria unitria e a segunda, da teoria dualista do ordenamento jurdico, sendo que essas teorias tambm so chamadas de constitutiva (unitria) e declaratria (dualista)

    Algum pode indagar, diante disso, se Carnelutti, quando adere teoria unitria, admite que a sentena cria um direito que ainda no existia.. Para tanto preciso esclarecer se, diante da teoria unitria, devida especialmente a Kelsen, o qual afir ma que o juiz produz uma norma jurdica concreta, desejou-se concluir que o juiz pode, ao proferir a sentena, criar uma norma individual que no tenha base em uma norma jurdica j existente,.

    A resposta no animadora para quem pretenda ver algo mais na definio de jurisdio., Para Kelsen todo ato jurdico constitui, em um s tempo, aplicao e criao do direito, com exceo da Constituio e da execuo da sentena, pois a primeira seria pura criao e a segunda pura aplicao do direito 51 Por isso, o

    50 Francesco Carnelutti, Diritto e processo, p. 18 e ss.51 Cf. Eugnio Bulygin^Losjueces crean derecho?,cit., p. 10

  • INFLUENCIADO ESTADO LIBERAI- E. DO POSITIVISMO JURDICO 39

    legislador aplica a Constituio e cria a nor ma geral e o juiz aplica a norma geral e cria a norma individual52

    A teoria de Kelsen afirma a idia de que toda norma tem como base uma nor ma superior, at se chegar norma fundamental, que estaria no pice do ordenamento. De modo que a norma individual,fixada na sentena, liga-se necessariamente a uma norma superior. A norma individualfaria parte do ordenamento, ou teria natureza constitutiva, apenas por individualizar a norma superior para as partes.5*

    Contudo, ao individualizar a norma superior, o juiz a declara, Quando torna a norma concreta, ou compe a lide no sentido da doutrina de Carnelutti, faz apenas um processo de adequao da norma - j existente - ao caso concreto E certo que a norma jurdica, genrica e abstrata, pode ser concretizada ainda que sem a necessidade do processo. Para tanto, basta que um fato se enquadre perfeitamente previso da norma abstrata., Mas se isso no ocorre - at mesmo porque no fcil, primeira vista e de comum acordo, concluir se um fato se adapta previso da norma abstrata surge como necessria a jurisdio para dizer se o fato ocorrido est por ela albergado.. Mediante uma atividade de conhecimento do fato e de nteleco da norma, o juiz, ao proferir a sentena, individualiza a norma, tornando-a concreta para os litigantes,

    53 "Criar uma norma e, portanto, ao mesmo tempo, aplicar uma outra norma; o mesmo ato , simultaneamente, de criao e de aplicao do direito (Hans Kelsen, Teoria geral do estado, p 105); ver tambm Hans Kelsen, La garantie jurisdictionncllc de la constitution. La justice constitutionnelie. Revue deDroit Public, 1928, p 204

    Hans Kelsen, Teoria gera!do estado, cit., p 109 e ss El tribunal tiene que declarar la existencia de tal norma del mismo modo que est obligndo a estahlecer Ia existencia del acto vioiatorio Pero no solo los tribunales: todos los rganos jurdicos se encuentran en la necesidad de decidir si Ja norma que 'prima fade les exige ejecucin es una norma perteneciente al orden jurdico. Para eo, colocndose en el punto de vista interno o inmancnte al derecho, tiene que determinar s Ia norma respectiva es una norma existente y regular, si ha sido creada con arreglo a los procedimientos y con los contenidos establecidos por las normas condicionantes (superiores)" (Ulises SchmillOrdnez, Observaciones ,.,cit ,p. 109); La norma bsica de Kelsen establece la obligatoriedad de un sistema jurdico; su identidad est determinada por un critrio que toma en cuenta el hecho de que Ia misma norma bsica es presupuesta cuando adscribimos obligatoriedad a todas las normas del sistema. De cualquier manera, como critrio de identidad el anterior es vacuo.ya que el contenido de cada norma bsica (y, consecuentemente, su propia identidad) no puede, ser establecido, en el contexto de la teoria de Kelsen, antes de circunscribir las normas que pertenecen al sistema jurdico (. ...) Si se dan por correctas las objeciones precedentes, seria el caso de preguntarse cules son los obstculos que Kelsen pretende superar integrando a su teoria la hiptesis de autorizacin abierta que hemos examinado.. Es obvo que el concepto de validez que la Teoria pura parece formular en forma explcita, implica trivialmente que no son vlidas aqueas normas que contradicen las condiciones para sucreacin prescriptas por normas de nivel superior Por otra parte, esa supuesta definicin kelseniana de'validez'es incompatible con el reconocimiento de que la validez o invalidez de una norma dependa de la declaracin en uno u otro sentido por un rgano competente (Carlos Nino, El concepto c it, p.. 14 e p 35)

  • 40 AJURISDIO NO ESTADO CONSTITUCIONAL

    Isso quer dizer que as concepes de que o juiz atua a vontade da lei e de que o juiz edita a norma do caso concreto beberamna mesma fonte pois a segunda, ao afirmar que a sentena produz a norma individual, quer dizer apenas que o juiz, depois de raciocinai, concretiza a norma j existente, a qual, dessa forma, tambm declarada s'[

    Quando os processualistas clssicos sustentam que a sentena fixa a lei do caso concreto, obviamente no querem dizer que a sentena no fiel lei que preexiste ao processo, mas apenas que a sentena, aps o processo ter encenado - e produzido o que se chama de coisa julgada material vale como lei para as partes Dizia, por exemplo, Calamandrei - um dos mais importantes processualistas do scuio passado - que a lei abstrata se individualiza por obra do juiz ss Isso ocorreria aps o trmino do processo, quando a sentena no pudesse mais ser discutida, ocasio em que no se admitiria mais nem falta de certeza nem conflito sobre a relao jurdica julgada. Eis a lio do ilustre jurista italiano; Assim como a lei vale, enquanto est em vigo?1, no porque corresponda justia social, seno unicamente pela autoridade de que est revestida (duralex sedlex), assim tambm a sentena, uma vez transitada em julgado, vaie no porque seja justa, seno porque tem, para o caso concreto, a mesma fora da lei {lex especialis), Em um certo ponto, j no legalmente possvel examinar se a sentena corresponde ou no lei: a sentena a lei, e a lei a que o juiz proclama como tal. Mas com isto no se quer dizer que a passagem coisa julgada crie o direito: a sentena (ou

    54 No se olvide, entretanto, que, ao menos no modelo de criao da norma individual peio juiz reconhecido por Kelsen, existe um componente criativo originrio na atuao do juiz.. Como explica o autor: A relao entre um escalo superior e um escalo inferior da ordem jurdica, como a relao entre Constituio e lei, ou lei e sentena judicial, uma relao de determinao ou vinculao: a norma do escalo superior regula o ato atravs do qual produ2sda a norma do escalo inferior. ( .. ) Essa determinao nunca , porm, completa . A norma do escalo superior no pode vincular em todas as direes (sob todos os aspectos) o ato atravs do qual aplicada Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciao, de tal forma que a norma do escalo superior tem sempre, cm relao ao ato de produo normativa, (, .) o carter de um quadro ou moldura a prcenchcr por esse ato (Haas Kelsen, Teoria pura do direito, cit., p 388). Se porinterpretao'se entende a fixao por via cognosciriva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretao jurdica somente pode ser a fixao da moldura que representa o Direito a interpretar e, conseqentemente, o conhecimento das vrias possibilidades que dentro dessa moldura existem, Sendo assim, a interpretao de uma lei no deve necessariamente conduzir a uma nica soluo como sendo a nica correta, mas possivelmente a vrias solues que - na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar - tm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do rgo aplicador do Direito - no ato do tribunal, especialmente. Dizer que uma sentena judicial fundada na lei no significa, na verdade, seno que ela se contm dentro da moldura ou quadro que a lei representa - no significa que ela a norma individual, mas apenas que uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral (idem, p. 390-391) A obteno da norma individual no processo de aplicao da lei , na medida em que nesse processo seja preenchida a modura da norma geral, uma funo voluntria (idem, p. 393).

    55 Piero Calamandrei, Istuxioni di dirittoprocessuale civile, p 156

  • INFLUNCIA DO ESTADO LIBERAL E DO POSITIVISMO,JURDICO 47

    a coisa julgada material ou declarao de certeza), no sistema da legalidade, tem sempre carter declarativo, no criativo do direito'56

    Frise-se que Calamandrei adepto da teoria unitria do ordenamento jurdico, sustentando que a lei se individualiza atravs da sentena,. Mas, ainda assim, no nega que a tarefa jurisdicional tenha funo declaratria Alis, afirma expressamente que a lei vale, enquanto est em vigor,; no porque corresponda justia social, seno unicamente pela autor idade de que est revestida". Essa afirmao de Calamandrei imprescindvel para se compreender e demonstrar que a adeso teoria unitria no representa, por si s, qualquer rompimento com 0positivismo clssico,.

    Deixe-se claro, portanto, que as concepes de Carneiutti e Calamandrei, apesar de filiadas teoria unitria do ordenamento jurdico, no se desligaram da idia de que a funo do juiz est estritamente subordinada do legislador, devendo declarar a lei. Na verdade, a distino entre a formulao de Chiovenda e as de Carneiutti e Calamandrei est em que, para a primeira, ajurisdio declara a lei, mas noproduz uma nova regra, que integra 0 ordenamento jurdico, enquanto, para as demais, ajurisdio, apesar de no deixar de declarar a lei, cria uma regra individual que passa a integrar 0 ordenamento jurdico.

    56 Piero Calamandrei, Estdios sobre clproceso civil, p . 158

  • 3O Neoconstitucionalismo

    SUMRIO: 3 1 A dissoluo da lei genrica, abstrata, coerente e fruto da vontade homognea do parlamento - 3.2 A nova concepo de direito e a transformao do principio da legalidade - 3.3 Compreenso, crtica e conformao da lei.O ps-positivismo

    3 J A dissoluo dalei genrica, abstrata, coerente e fruto da vontade homognea do parlamento

    A idia de lei genrica e abstrata, fundada pelo Estado legislativo, supunha uma sociedade homognea, composta por homens livres e iguais" e dotados das mesmas necessidades,, E claro que essa pretenso foi rapidamente negada pela dimenso concreta da vida em sociedade, inexoravelmente formada por pessoas e classes sociais diferentes e com necessidades e aspiraes completamente distintas

    A lei genrica ou universal, assim como a sua abstrao ou eficcia temporal ilimitada, somente seriam possveis em uma sociedade formada por iguais o que utpico ou em uma sociedade em que o Estado ignorasse as desigualdades sociais para privilegiar a liberdade, baseando-se na premissa de que essa somente seria garantida se os homens fossem tratados de maneira formalmente igual, independentemente das suas desigualdades concretas. Lembre-se que, para acabar com os privilgios, tpicos do antigo regime, o Estado liberal resolveu tratar todos de forma igual perante a lei

    Esse ltimo o verdadeiro fundamento da lei genrica e abstrata,1 que, por sua vez, tambm teve repercusso sobre a funo da jurisdio., Ora, se a lei no podia

    1 Ver Carl Schmitt, Teoria de la Consitucwn, cit.., p 162: La tgualdadante la Ley es inma- nente al conccpto de Lcyprprio del Estado de Derecho, es decir, Ley es slo la que condene en s misma la posibilidad dc una igualdad, siendo,as,una norma general Ante un mandato particular no hay iguaidad ninguna, porque est determinado en su contenido por la situacin individual del caso concreto. ( ... ) Dondequiera que se adoptan mandatos especiales o simples medidas, se exciuye com eso la consideracin de ley e de igualdad . La disposicin: El senorX ser expulsado del pas, no es cosa en que pueda hablarse de igualdad; slo afecta a una persona individual, a un hccho aislado, y sc agota en ese mandato (...) Ni el senor X, a quien afecta el ma