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INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS: DA ANTIGUIDADE AOS TEMPOS MODERNOS

Sara Freitas Ramos; Isabel Fonseca Vaz; Salomé Mouta; Bianca Jesus

A Eunuch's Dream, 1874. Jean Lecomte du Nouÿ (French, 1842-1923).

Os sonhos das primeiras civilizações.

Independentemente da sua perceção sobre o

tema, praticamente todas as sociedades

primitivas atribuíam importantes significados

aos sonhos. Eram predominantemente tratados

como mensagens espirituais, de deuses e de

outros seres poderosos. Nestas sociedades, a

interpretação dos sonhos era da responsabilidade

daqueles com experiência em tais assuntos:

lideres tribais, chefes, espiritas ou xamãs. As

interpretações dos xamãs eram particularmente

apreciadas, pois acreditava-se que poderiam

entrar e sair livremente do mundo dos sonhos.

Os registos escritos mais antigos das primeiras

civilizações sobre interpretações de sonhos

provêm da Mesopotâmia e do Egito. Em ambas,

os sonhos eram considerados como mensagens

dos deuses e dos oráculos e eram registados em

inscrições oficiais, documentos literários ou

cartas, fosse em pedra, barro, ou papiro. Os

sonhos podiam ser evidentes, e não necessitar de

interpretação. Mas, se simbólicos, a

interpretação era feita por sábios, como

sacerdotes apoiados por deuses, interpretadores

oficiais de sonhos, médicos ou figuras de

referência. Livros de apoio à interpretação de

sonhos eram populares e alguns sobreviveram

aos séculos. Segundo livros de sonhos do Antigo

Egito, por exemplo, se um homem se visse num

sonho com o seu pénis a crescer, isso era bom,

pois significaria que as suas posses se iriam

multiplicar. Em ambas as sociedades, os sonhos

podiam ser bons, ou maus, e os maus sonhos

requeriam rituais para afastar o seu significado e

retirar-lhes poder.

Nos séculos seguintes, a interpretação dos

sonhos sofreu modificações que refletiam a

sociedade da época, mas o seu enquadramento

mantinha-se globalmente sobreponível.

A revolução psicanalítica da interpretação dos sonhos.

A grande revolução na interpretação dos sonhos

deu-se com Sigmund Freud. No virar do século

XVIII, Freud escreveu “A interpretação dos

Sonhos”(1899). Largamente ignorada pelos

psiquiatras e críticos da época, o livro viria a

afigurar-se como um dos contributos mais

originais de Freud.

De forma brilhante e controversa, Freud bebe

das tradições culturais e da simbologia popular,

ainda que de forma largamente adaptada, para

criar uma janela para o inconsciente.

“A interpretação de sonhos é a via real que leva ao conhecimento das atividades inconscientes da mente.” Freud

Freud considera que os sonhos são fenómenos

da vida psíquica normal, em que os processos

inconscientes da mente são revelados de forma

acessível a estudo. Os sonhos passam a ser

usados como ponto de partida para associações

livres que permitiriam conduzir até às ideias

inconscientes.

Para Freud, os sonhos são realizações de desejos.

Para ele, o significado do sonho era sempre

conhecido do sonhador, embora pudesse não

estar acessível à consciência. A função da

interpretação dos sonhos seria, precisamente,

trazer luz a esse sentido oculto.

A teoria dos sonhos de Freud revelou-se um

avanço monumental na tentativa de

compreender os mistérios dos sonhos e foi

extraordinariamente influente nas décadas

subsequentes.

Contudo, a teoria dos sonhos de Freud é

desprovida de rigor científico, na medida em que

as interpretações são impossíveis de

cientificamente verificar e validar. A análise

científica dos sonhos surgiria mais tarde.

A ciência moderna aplicada aos sonhos.

O primeiro laboratório científico para o estudo

do sono surgiu na década de 1950, com a

descoberta do sono REM, por Aserinsky e

Kleitman, e a sua associação aos sonhos.

Participantes que acordavam durante a fase

REM do sono relatavam ter experienciado

sonhos numa percentagem muito superior

aqueles que acordavam em fase não-REM.

Inicialmente associado exclusivamente ao tronco

cerebral, a análise neuroimagiológica associou

os sonhos a aumentos da atividade do sistema

límbico, nas regiões visuoespaciais, no centro da

memória autobiográfica do hipocampo e no

córtex motor. Por outro lado, parece haver

diminuição da atividade do córtex pré-frontal,

responsável pelas decisões lógicas e ponderadas.

Estes resultados sugerem uma que os sonhos

poderão não ser mera atividade desordenada,

mas sim um produto de sistemas de alta

diferenciação, com predomínio de atividade de

memória autobiográfica e emocional, enquanto

que os mecanismos de controlo lógico se

mantém inibidos.

O atual estado da arte da ciência dos sonhos,

propõe que os sonhos são produto de

funcionamento do cérebro-mente que, embora

diferente, não é inferior ao que decorre em plena

consciência.

Métodos computacionais têm sido utilizados

para investigar o conteúdo dos sonhos,

permitindo análises rápidas de bases de dados

com milhares de descrições de sonhos. Esta

investigação tem sugerido que os conteúdos dos

sonhos são, predominantemente, um contínuo

das preocupações da vida acordada do sonhador.

Uma das aplicações destas descobertas tem sido

no desenvolvimento de abordagens

psicoterapêuticas orientadas pelos sonhos.

O fascínio da humanidade com os sonhos é tão antigo quanto ela própria. A sua compreensão deste misterioso fenómeno evoluiu ao longo dos séculos, de forma

proeminente no século XX, com as últimas décadas a assistirem a um crescimento frenético no estudo científico dos sonhos. Novas linhas de investigação pretendem

integrar a análise biológica com perspetivas antropológicas, das humanidades e estudos religiosos. O futuro parece promissor.

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