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    ResenhaMOS AO ALTO: OLHOS ARMADOSVincius Honesko

    Em 2003, onze anos depois do texto que principalmente aqui no Brasil o tornou conhecido ( O que vemos, o que nos olha), o crtico de arte GeorgesDidi-Huberman lanava aquele que talvez fosse seu livro fulgurante da dcada que se iniciava: Images malgr tout. Publicao imediatamente posteriorao grande tratado metodolgico do autor (LImage Survivante, no qual Didi-Huberman se debrua sobre a obra de Aby Warburg, expondo sua dvida

    em relao a esse grande historiador da arte), o livro tem como cerne a discusso do problema de como olhar para as imagens, sejam elas fotograasdesgastadas e desfocadas (como aquelas sorrateiramente deagradas pelos membros do Sonderkommando de Auschwitz-Birkenau), ou as fotograasociais e narcisistas dos prprios SS. Alm do olhar detido nessas imagens, Didi-Huberman prope-se a esmiuar o como posicionar-se diante dessasimagens, de modo a delas extrair um saber, de mont-las numa srie (e aqui as anlises se dirigem aos lmes Shoah, de Claude Lanzmann e Histoire(s) ducinma, de Jean-Luc Godard). A polmica suscitada pela primeira parte do livro (e cujas criticas sero pelo autor respondidas na segunda parte), que forapublicada como catlogo da exposio Mmoire des camps. Photographies des camps de concentration et dextermination nazis (1933-1999), fruto decertas indagaes que prope o autor: qual a importncia das imagens para os saberes histricos? Como, diante de to poucas ou quase nulas imagens,elaborar um saber sobre nossa histria? Como diante da trgica experincia dos campos ainda assim, malgr tout, imaginar sua histria? Isto e eis oponto chave como imaginar o suposto inimaginvel(conceito contra o qual se insurge Didi-Huberman)?

    Para lidar com tais questes, a estratgia armada por Didi-Huberman a de uma arqueologia visual (remexer os arquivos de imagens), um modo deolhar para a histria (a da arte ou mesmo a nossa histria recente, a histria no sculo das imagens) que seja uma tomada de posio, o que implica umcomprometimento no simplesmente gnoseolgico (h impossibilidade de pureza cientca diante da histria), mas tico e poltico, isto , um posicionar-se no presente (ao melhor estilo benjaminiano). E, como toda posio relativa (h uma temporalidade que nos precede com a qual imprescindvel ojogo, esquecendo-a, rompendo com ela ou rememorando-a), importante saber-se implicado num processo, num movimento, no qual o aproximar-se comreservas e o distanciar-se com desejo a forma de constituio de um saber efetivamente histrico (no se constri o saber na pura imerso, na aproxi-mao excessiva, no puro combate, no muito perto; tampouco na pura abstrao, na transcendncia, no muito longe e essa dialtica do duplo regime daimagem era j o motor de O que vemos, o que nos olha). Toda a questo do mtodo, portanto, est atravessada por um posicionamento do pesquisador,

    dimenso essa que, de modo direto, ser o enfoque da srie O olho da histria.Quase uma dcada aps seu livro sobre Warburg, Didi-Huberman ir retomar nessa srie todo o problema do saber histrico, do como posicionar-se,do como jogaranacronicamente para desmontar, montar e remontar nossas imagens de modo a criar a partir da visibilidade e da temporalidade, sualegibilidade (fazer delas questo de conhecimento, no de iluso). Tirar da imaginao sua conotao negativa, sua ligao com a simples iluso, coma miragem: esse tem sido o trabalho de Didi-Huberman na ltima dcada. Imaginar, para ele (e aqui, como p.ex. Giorgio Agamben ou mesmo EmanueleCoccia, resgata uma tradio averrosta) no abandonar-se s miragens de um reexo, mas a montagem de formas plurais colocadas em correspon-dncia, isto , no algo deixado ao delrio subjetivo do artista, mas um movimento talvez o mais arriscado do conhecimento; a arriscada operao delevar ao extremo o desencanto das imagens.

    Essa associao da imaginao com a montagem a clave de leitura da srie O olho da histria. O seu primeiro volume Quand les images prennentposition um detalhado e renado estudo sobre Bertolt Brecht e seus Arbeitsjournal(Dirio de trabalho) e Krigsfbel(ABC da Guerra) no qual o crticoprocura apontar como Brecht, naposio de exilado, usava a imaginao para, diante das imagens da guerra (mapas, documentos e, principalmente,

    Remontages du temps subi (Loeil de lhistoire, 2)

    Georges Didi-HubermanParis: Editions de Minuit, 2010

    Obs.: As citaes do livro foram traduzidos pelo resenhista, e aparecem emmarrom, seguidas da indicao do nmero de pgina, entre parnteses

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    fotos),preveroutras coisas alm do que estava gurado na imagem. Talpreviso, diz Didi-Huberman,nada tinha a ver com a palavra proftica, mas era to somente produto de uma tcnica utilizada porBrecht, qual seja, a montagem. Com tesoura e cola Brecht cortava as imagens de jornais e revistas,rearranjava-as numa outra ordem de legibilidade. Isso porque as fotograas, sem dvida, documentamum momento da histria, porm, uma vez montadas com outras e Brecht a elas agregava um texto,normalmente um epigrama induzem a uma reexo mais profunda sobre seu contexto, isto , as ima -gens ganham ainda mais legibilidade. Ou seja, se ver (voir) nos permite saber (savoir) e mesmo prever(prvoir) algo do estado histrico e poltico do mundo, porque a montagem das imagens funda todasua eccia sobre uma arte da memria, pois uma poltica no presente, mesmo que esteja construindoo futuro, no pode ignorar o passado que ela repete ou que repulsa.

    Ora, um benjaminiano como Didi-Huberman no deixa escapar o fato de que, por trs da concepode montagem, est todo o problema do declnio da experincia no moderno, principalmente com o queocorre na seqncia da primeira grande guerra, tal como descreve Benjamin no seu Experincia e

    Pobreza (e tambm, de certo modo, em O Narrador). Com a catstrofe, a desestruturao do mundo,com sua exploso em fragmentos, tambm a percepo de tempo se modica e, com isso, o mtodocapaz de dar conta dessa percepo fragmentaria a montagem. E Didi-Huberman, lendo aqui aresenha que Ernst Bloch faz de Rua de Mo nica de Benjamin, para isso chama a ateno ao notarque toda a gerao qu e viveu o entre-guerras Georg Simmel, Aby Warburg, Marc Bloch, Franz Kafka,Marcel Proust, Igor Stravinski, o prprio Walter Benjamin, entre outros criou e pensou por montagem.E dentre esses artistas e pensadorespor montagem est o prprio Bertolt Brecht.

    E se no primeiro volume de O olho da histria, Didi-Huberman toca os primrdios desta nova formade compor que a montagem, em Remontages du Temps Subi(Remontagens do Tempo Transcorri-do), o segundo volume, ele volta seus olhos para como hoje certos pensadores e artistas trabalham pormontagem. a citao de Christian Boltanski (artista com quem Didi-Huberman trava uma conversae a partir da qual escreve o texto que ser oApndice IIdo livro), que expe com clareza essa opode leitura daqueles que compem ps-segunda guerra: Mesmo se no a vivemos, nossa infncia foitoda misturada ideia de catstrofe. Nossos pais foram loucos de no nos ter abortado. A frase deBoltanski (nascido em 1944, em Paris) alm situ-lo biogracamente, d tambm os tons da situaocatastrca em meio qual se viu nos primeiros anos de vida. Mas no com a chave autobiogrcaque Didi-Huberman analisa Boltanski, mas com uma relao histrica, partilhada, impessoale coletiva,com os mortos incontveis que formaram o quadro de sua entrada na vida. (p. 218)

    No entanto, antes de percorrer as anlises que o crtico faz no livro, preciso dar ainda mais umpasso para trs. Numa entrevista concedida a Mathieu Potte-Bonneville em meados de 2006 (ou seja,no olho da dcada), Didi-Huberman fala que seu mtodo de trabalho, baseado em chas escritas mo(como as Passagens benjaminianas) dispostas sobre sua mesa de trabalho, consiste em montarseutexto a partir das chas, num jogo paciente entre a ordem do saber acumulado e sua associao. Ora,o prprio autor assume como mtodo de trabalho a montagem (e a certa altura, indica que sua escriva-ninha como uma ilha de edio cinematogrca), e isso ca claro quando, ao nal de cada livro seu,traz a nota bibliogrca que aponta o itinerrio fragmentado a partir do qual comps a obra. E isso no diferente em Remontagens do Tempo Transcorrido. De fato, o livro o resultado de uma montagemde quatro textos: dois ensaios principais e dois apndices, cada um deles escrito em situaes diversas

    e publicados (em partes ou na ntegra mais uma vez, fragmentos que so montados) em peridicosou como catlogo de exposio.

    Fundamentalmente, o trabalho de arqueologia visual empreendido aqui por Didi-Huberman volta-do, nos captulos (os ensaios principais), ao cinema, e, nos apndices, fotograa e s artes plsticas.Porm, qual foi o o condutor (o que, poder-se-ia dizer com Agamben, as assinaturas) dos textos quezeram com que o autor montasse um livro tal e qual? E a resposta s pode vir por um jogo de palavras:a violncia das imagens das imagens violentas das guerras. Ou seja, o pano de fundo, a linha conduto-ra da argumentao, est em como darlegibilidade para essas imagens paralisantes, difceis de seremvistas e que violentam o olhar do espectador com a violncia que exibem e das quais, muitas vezes, oespectador desvia o olhar. Entretanto, diz Didi-Huberman, hoje preciso olhar duas vezes para elaspara extrair uma legibilidade histrica dessa visibilidade to difcil de sustentar. (p. 19). das imagensda liberao dos campos de concentrao e extermnio que Didi-Huberman est falando precisamente.

    E diante da diculdade de se sustentar o olhar nessas imagens e tambm de torn-las legveis (jque, preciso lembrar, os primeiros lmes sobre a libertao foram comissionados pelo governo daURSS como meio de propaganda) que Didi-Huberman comea o primeiro ensaio. Cooptadas por umaideologia, as imagens montadas da libertao (os lmes ociais) muitas vezes precisam ser afrontadasnovamente, e essa a ideia da remontagem, que d ttulo ao livro: Construir uma legibilidade para es-sas imagens ser no se contentar com as legendas que a elas se agrega, com sua voz, o comentadorcerticado pelo exrcito libertador. Ser restituir, recontextualizar essas imagens numa montagem deoutro gnero, com um outro gnero de textos, por exemplo, as narraes dos prprios sobreviventesquando contam o que, para eles, signicou a abertura do campo. (p. 26) Para tanto, e eis o trabalhodo arquelogo das imagens, preciso compreender que, mesmo com a concluso e condenao dosculpados por meio dos protocolos jurdicos ociais (Didi-Huberman chama a ateno para o fato deNuremberg ter sido o primeiro tribunal a utilizar uma tela de projeo para exibio das evidncias),a questo dos campos no se encerrou: Mesmo abertos, os campos deixaram aberta a questo his-trica, antropolgica e poltica que coloca sua prpria existncia, passada, presente e futura. (p. 31)

    Era o m da guerra, a Alemanha tinha capitulado, algumas partes da Europa j comeavam a remo -ver seus escombros, porm, a cena dos campos libertados era algo impossvelde se olhar. Foi essaa sensao que teve Samuel Fuller, ento um soldado americano do batalho que libertou o campode Falkenau, e sobre quem versa o primeiro captulo. Com uma cmera em mos e atordoado com o

    que via, pe-se a lmar, a capturar as imagens sem nenhum julgamento, fazendo apenas documenta -o (como um eye witness), ao ponto de deixar as imagens intocadas no montadas por mais dequarenta anos sobre sua mesa de trabalho. Fuller falar muito sobre essas suas imagens de Falkenau,marcadamente o episdio decisivo da sua vida e do seu trabalho. Assim, quando acaba entrando para ocircuito hollywoodiano, mantm um trao diferencial para os lmes que dirigiu: a gura central de seuslmes a do sobrevivente e no aquela do heri (p. 45). Mais do que ao, tpica da cinematograade guerra norte-americana, a indignao diante da realidade da guerra que se mostra no cinema deFuller. Porm, a latncia dos pouco mais de vinte minutos das imagens de Falkenau continuava e sem 1988, Fuller retorna ao antigo lugar do campo para se deixar lmar pelo jovem Emil Weiss e, comisso, tentar dar legibilidade s imagens de 1945. Observando essa conjuntura, Didi-Huberman diz quese trata de um claro exemplo de um momento tico do olhar, o qual, no entanto, no redutvel a umaatitude moral ou moralizante. Essa dimenso tica se situa, de plano, no ato de dar conhecimento s

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    7Sopro 56 agosto/2011imagens cujo estado de mudez a princpio nos deixou simplesmente mudos, mudos de indignao. Adignidade na imagem s se constri por um trabalho dialtico da montagem, isto , tambm, porque agravao de 1988 (...) d a ver o pequeno lme de 1945. (p. 50)

    Aberto o campo, capturadas suas imagens, preciso que se as montem (ou remontem, no casodaquelas capturadas pelos lmes ociais) para dar-lhes legibilidade. Isso s acontece quando se en -contra umponto de vista, uma distncia justa, uma posio, portanto. Quando se abre um campo, paraele se olha estupefato, toma-se tudo o que se pode sem pensar no mal. Aps, tratar-se- de escolher,de compreender, depensar o mal. (...) Filmar no espao de um campo que se abre s possvel tendoconfana no meio, na inocncia fundamental do registro ptico. Tratar-se-, mais tarde, de saberutilizar as imagens segundo um ponto de vista crtico, isto , segundo uma anlise concomitante dano-inocncia do espetculo (p. 58) Do material bruto, uma viso estupefata, um hierglifo, imagemlegvel, passada pelo crivo de um ponto de vista critico. Tal legibilidade, no entanto, no pode ser malcompreendida. No se trata de uma anulao da imagem em detrimento de um texto, mas sim de uma

    leitura da prpria imagem; no um regramento da imagem pela escritura, mas, como diria Benjamin,a constatao e leitura de uma imagem dialtica:

    No se regra os problemas da imagem pela escritura e pela montagem. Escritura e montagem permitem mui-to mais oferecer s imagens uma legibilidade, o que supe uma atitude dupla, dialtica (com a clara condiode compreender, com Benjamin, que dialetizar no nem sintetizar, nem resolver, nem regrar): no cessar dearregalar nossos olhos de criana diante de uma imagem (aceitar a prova, o no-saber, o perigo da imagem,a falta da linguagem) e no cessar de construir, como adultos, a cognoscibilidade da imagem (o que supe osaber, o ponto de vista, o ato de escritura, a reexo tica). (p. 65)

    terrvel situao dos campos nazistas esmiuadas a partir das imagens do libertador que olha olibertado, Samuel Fuller, Didi-Huberman, noApndice I, agrega a imagem do humilhado que olha parao humilhado. Trata-se das fotograas do catalo August Centelles (e aqui, lendo-se com cuidado, possvel ver a montagem rtmica do livro, com um jogo de aproximao e distanciamento: o primeirocaptulo e o primeiro apndice tratam de testemunhas oculares dos campos Samuel Fuller e AugustCentelles enquanto o segundo captulo e o segundo apndice tratam de remontagens de quem viusomente as imagens em arquivos Harun Farocki e Christian Boltanski). Refugiado primeiramente nocampo de Argels e depois em Bram, ambos no sul da Frana, depois da derrota dos republicanos naEspanha, Centelles leva consigo somente sua cmera fotogrca. Como humilhado fugido que ele

    faz suas fotos e quando o humilhado olha o humilhado, o trabalho mesmo da humilhao que se fazvisvel. (p. 205) Isso porque h uma empatia, pois partilham a mesma experincia, e uma observaoque nada tem de clnica, j que o observador sofre como o observado. Ambos sofrem do abandono ese arrunam, permanecendo puras vidas nuas (Didi-Huberman a todo instante reclama Agamben nassuas diagnoses, porm, com certos prognsticos uma aposta numa espcie de resistncia que julgasomente seus, mas que j esto, de outro modo, no pensamento do italiano). Porm,

    poder-se-ia dizer, mais uma vez, que suas fotograas do campo de Bram tero assumido, desde a condiomais miservel, a menos honorca que seja, a antiga funo de uma imago prpria a dar, de retrato em retrato

    seja de um fundo arame farpado ou de bancos , a dignidade de uma comunidade de homens certamentevencidos pelo fascismo, humilhados por uma policia, mas decididos a inscrever sua vida nua, isto , sua morte,numa ligao de transmisso histrica e genealgica (pp. 209-210)

    A aposta que Didi-Huberman faz ao ler as imagens de Centelles que elas formam um atlas, um reper-trio de formas sobreviventes, isto , de formas resistentes (p. 213). Seu otimismo diante das fotos deCentelles dos jogos, das reunies para discusses polticas dos homens no campo, de uma touradaimprovisada seu modo de fazer crtica dos arquivos, de remont-los, com vistas para o presente,isto , sua tomada de posio.

    O olhar do crtico ou do artista para as imagens, sua tomada de posio, portanto, implica neces-sariamente pensamentos e gestos. No a simples captura das imagens (com a infantilidade que lhe implcita: a estupefao diante do horror), tampouco uma tentativa de construo de arcabouostericos que no questionam a prpria posio, o que garante a legibilidade das imagens:

    Os olhares podem ser cegos ou penetrantes, os gestos brutais ou delicados, os pensamentos ineptos ou su-blimes, assim. Mas uma imagem que seria do olho em estado puro, do pensamento absoluto ou da simplesmanipulao, no existe. notavelmente absurdo querer desqualicar certas imagens sob pretexto de que elas

    seriam manipuladas. Todas as imagens do mundo so o resultado de um esforo concentrado que envolveua mo do homem, mesmo que esta estivesse equipada. (...) A verdadeira questo ser muito mais a de saber,a cada instante a cada imagem , o que exatamente faz a mo, em que sentido e por quais ns operou-sea manipulao. (p. 71)

    Esses so os termos com os quais Didi-Huberman comea o segundo ensaio Abrir o tempo, armar osolhos , dedicado inteiramente s anlises da obra de Harun Farocki. a partir de uma foto de 1981 deFarocki diante do Cinema Arsenal (Kino Arsenal), em Berlim Ocidental, que Didi-Huberman arma aquiseus olhos. O cineasta est s, com a mo esquerda levantada e com o pulso cerrado, num gesto deprotesto (e, de fato, pode-se pensar num protesto de Farocki pela morte, por greve de fome, de HolgerMeins).

    A mo levantada de Farocki representa o protesto, porm e, ainda que Didi-Huberman no men -cione, a conexo com Elogio da Mo de Henri Focillon sensvel , com ela tambm que se intervm,que se toca, que se monta as imagens e, como no texto Jogo de Letras, do Infncia em Berlim, de Ben-jamin citado no primeiro volume de O olho da histria , com a mo que se constri a legibilidade.Sein Hand ins Feuer Legen, literalmente, colocar a mo no fogo, justamente a expresso alem paraindicar o engajamento poltico e tico. Anos antes da foto no Cine Arsenal, em 1969, Farocki lmavaFogo Inextinguvel, um lme de protesto contra as indstrias produtoras e fornecedoras de napalm para

    o governo norte-americano. Ali, tambm a mo tinha um papel fundamental, pois, como representaopossvel do ferimento por napalm (para no apresentar um verdadeiro ferido no Vietn, diante do qualo espectador viraria os olhos), Farocki queima sua mo com um cigarro, gesto de Sein Hand ins FeuerLegen, para com esta imagem dar a ver um mnimo do que seria a imagem de um ferimento pela novaarma dos EUA.

    Didi-Huberman claramente um entusiasta da arte de Farocki. Inclusive, reconhece-se nele, j quepara o crtico francs a questo que move o cineasta alemo muito similar sua, quela que o pe atrabalhar: Por que, em que e como a produo de imagens participa to frequentemente da destruiodos seres humanos? (p. 84). Farocki trabalha com imagens de processos tcnicos nascidas do espritoda utopia guerreira, como as imagens de disparos de msseis por avies de guerra (no Iraque); mastambm com imagens supostamente destinadas a impedir a destruio entre os seres humanos, comoas imagens de circuitos de proteo e vigilncia. Diante dessas imagens operatrias (o conceito de

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    O cineasta seria, portanto, esse artista modesto e corajoso ao mesmo tempo: simplesmente determinado aabrir os olhos os seus, os de seu espectador mas constatando que, por isso, preciso tomar posio.Tanto assim que abrir os olhos exige primeiramente desarm-los, despoj-los de todo preconceito e de todoesteretipo, para rearm-los na seqncia, dar a eles essa potncia de olhar, logo de pensamento, que faltaaos nossos habituais consumos de imagens. (pp. 121-122)

    Essa tomada em mos dos arquivos e seu dar a verao espectador a posio que Didi-Huberman vmem Farocki e que julga ser um efetivo engajamento tico e poltico.

    A leitura que o autor faz de tomar em mos para dar a ver , desse modo, correlata expressolatina emancipare, o ato de liberar algo de uma autoridade ligada a um direito depropriedade. Amanuscapare, ato de tomar em mos, e da mancipare (a tomada que faz propriedade) e mancipium (captura,caa, tomada), ex-mancipata (colocada fora dos crculos negociveis; que tambm o nome dasImago, as mscaras morturias que marcavam a dignidade do falecido). Portanto, emancipar seria

    tomar algum pela mo para gui-lo para uma zona franca, um espao de liberdade no qual ele no serpossudo por ningum. (...) A emancipao um gesto capaz de assumir duas inevidncias conjuntas. Pri-meiramente, assumir o inestimvel de uma certa ligao temporal, ligao a uma histria presente, a uma me-mria, a uma genealogia, o que supe ao mesmo tempo uma ruptura e uma sobrevivncia. Em segundo lugar,assumir o deslocamento at uma zona de possibilidades abertas , uma zona franca, uma zona na qual podemorescer formas e atos at a impensados: remontagem do tempo e do espao perdidos. (p. 131)

    No entanto, da noo de Imago, da mscara morturia romana, que Didi-Huberman vai aproximarsua ideia de emancipao do espectador, com aquela de restituio da imagem a um uso comum.Tomando as noes apresentadas por Vilm Flusser, de que um aparelho estatal das imagens produza iluso de que o que sepassa no mundo admitido que se passe na TV, produzindo com isso umdesengajamento poltico sem precedentes, apresenta, com a noo de imago, uma outra possibilidade:

    Porque a imagem (a imago), nesse sentido, ao mesmo tempo um objeto de culto privado os ancestrais, osmortos, a famlia e um objeto e culto pblico o direito s imagens estando de acordo com o olhar do lugarque ocupa o ancestral na res publica, e a exposio das imagines como um espetculo pblico nos quadrosdas pompas fnebres ou rituais de enterro , possvel dizer que ela institui a questo da semelhana fora detoda esfera artstica enquanto tal. Ela aparece mais como um objeto do corpo privado (o prprio rosto a partir

    do qual se fabrica a imagem) entregue esfera do direito pblico. (p. 157-158)

    Mas como, no mundo contemporneo, recobrar uma dimenso pblica ao que seria o comum dopblico, e que, no entanto, limitado pelo que o prprio do pblico ocial (o Estado, ou, hoje mais doque nunca, a opinio pblica a doxa expressa nos meios de comunicao)? Isto , e o jogo de umadialtica rtmica aqui se expe, como emancipar as imagens para que elas possam darcondies deemancipao para os espectadores?

    Em Farocki isso se d com um tomardas instituies aquilo que elas no querem mostrar a esc-ria, o refugo, as imagens esquecidas ou censuradas para as dara quem de direito, isto , ao pblico, comunidade de cidados. (p. 158) Porm, no conceito de profanao, de Giorgio Agamben, queDidi-Huberman fundamenta essa restituio daquilo que havia sido tomado como prprio ao seu usocomum (isso a despeito das criticas s vezes apressadas que o autor faz a Agamben). Assim, para

    Farocki), para o artista no resta outra alternativa seno seu desmonte e sua remontagem, se a elasquer dar nova legibilidade. E, segundo Didi-Huberman, essa a estratgia de Farocki, o qual operatal como um ensasta; e aqui as aproximaes de Farocki a uma sua leitura de Adorno do Ensaiocomo Forma so fundamentais. Segundo Didi-Huberman, para Adorno o ensaio uma construo dopensamento capaz de no se fechar nas estritas categorias lgico-discursivas. E isso s possvel poruma certa anidade com a imagem. (...) ele funciona, consequentemente e isso, no mnimo, minhaprpria hiptese de leitura maneira de uma montagem de imagens (p. 94).

    Mais uma vez, o problema de dar legibilidade s imagens que Didi-Huberman pe em causa, etal problema no pode ser colocado sem a questo da tomada de posio do artista (do montador):

    aos olhos daquele que ensaia, tudo se parece sempre a uma primeira vez, a uma experincia marcada porincompletude. Se ele sabe e aceita uma tal incompletude, ele revela a modstia fundamental de sua tomada deposio. Mas ele est ento obrigado, estruturalmente, a recomear sempre, da primeira tentativa inicial aosnumerosos ensaios que se repetem depois dela. E nada lhe parecer uma segunda vez. , no fundo, como

    uma dialtica do desejo. O que faz ento o montador, por exemplo, se no comear por montar seu materialde imagens, depois desmontar, depois remontar, depois recomear sem trgua? a exigncia de sua tomadade posio ( possvel aqui lembrar que a palavra ensaio tem sua etimologia no baixo latim exagium, a qualderiva do verbo exigere, fazer sair algo de uma outra coisa) (p. 98).

    Isto , para Didi-Huberman a montagem sempre o gesto constante de retomada e reaprendizado e,por isso, Farocki seria um artista de ensaios sempre retomados, sempre recolocados em trabalho. Eleno cessa de rever, relere remontaro que reviu com o que releu. Sua exigncia regrada sobre amodstia de saber que o que ele v no lhe pertence e o que ele pensa pois preciso pensar paraver, para organizar o que se v procede do que lhe precedeu. (p. 101)

    O que precede o artista, no caso, principalmente aquele que trabalha com imagens, sempre algoque deve sempre buscado nos arquivos. Tomando em suas mos os arquivos, o artista arquelogoo vivica a partir do momento em que elegeu uma singularidade capaz de romper, de surpreendernossas ideias gerais isto , nossos preconceitos histricos constituindo-se como sintoma. Sernecessria, na seqncia, toda uma arte da montagem e o estabelecimento de um atlas de imagenspara interpretar esse sintoma, isto , para compreend-lo sob o olhar do contexto do qual ele surgee que o torna legvel ao mesmo tempo. (p. 110). Esse princpio warburguiano de respeito singulari-dade no momento em que se reconstri uma constelao de sentidos tanto epistemolgico quantotico. Remontar as imagens ociais nazistas, por exemplo, aquelas que mostram homens trabalhandonuma aparente normalidade no campo de Westerbock (como a instalao feita por Farocki em 2007,Aufschub), um modo de expor como o saber histrico crtico relativiza tal normalidade, mas tambmde entender o que as imagens mesmas agregam ao saber histrico, isto , uma indicao necessriasobre a eccia da mentira nazista e sua imensa crueldade. (p. 116) Para Farocki, diz Didi-Huberman,no se trata de remontar as imagens com intenes reeducativas (propagandsticas, por assim dizer),mas de dar ao espectador a possibilidade de ele mesmo fazer a sua montagem imaginativa. Da suasmontagens serem sempre abertas e, quando em instalaes, normalmente com mais de uma tela deprojeo para as mesmas imagens. Oferecer imagens para abrir o sentido (signifcao) aos sentidos(sensaes) do espectador, tal seria o princpio da montagem aberta de Farocki:

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    o crtico, o trabalho de Farocki justamente o de profanar o mundo das imagens ociais trazendo-asmuitas vezes dos fundos dos arquivos (muitas vezes obscuros, como na sua exposio Ich glaubteGefangene zu sehen, na qual monta imagens de circuitos internos d e presdios norte-americanos) parao pblico: d a ver aquilo cuja visibilidade tinha sido interdita e mais: com a montagem, a remontagem,d legibilidade (uma possibilidade de leitura, que sempre aberta) a isso que permanecia um hierglifonum sarcfago ainda por explorar.

    Tambm com relao a Christian Boltanski, cujas anlises desenvolvem-se no segundo apndicedo livro, Didi-Huberman volta-se para o conceito de profanao. Boltanski, que igualmente trabalha comas imagens dos campos nazistas, um artista consagradopor sua obra que tem espao nas grandesgalerias, que tem obras muito valorizadas monetariamente , que, porm,joga com essa sua posio.Sua consagrao vai contra toda busca concreta exposta em suas obras: trazer de volta as grandescoisas sua posio mais modesta, trazer as coisas graves sua condio mais infantil, mais inocen-te. (p. 222) O que no quer dizerum tempo sob o ngulo prestigioso, intocvel da eternidade ouda redeno, mas sob aquele do tdio quotidiano e da to banal no menos trgica por isso marcha

    para a morte. (p. 222) Ou seja, diz Didi-Huberman, Boltanski joga como uma criana (e as conexesda infncia com as possibilidades de releituras da histria so construes que o critico acolhe tambmde Agamben): na gratuidade do jogo, porm, gravidade no jogo. Isto , toma posio, e a brincadeiraaparece sempre, de um momento a outro, como uma tomada de posio face a face com a realidadehistrica e social ao redor (...) A brincadeira torna-se ento uma posio tica. (p. 232). Trata-se, por-tanto, de uma tentativa constante deprofanara prpria condio de artista consagrado.

    Trabalhar, para Boltanski, somente encontrar a cada instante uma nova forma para a transmisso. Ora, trans-mitir no nada mais do que permitir algo como uma sobrevida, uma espcie de fora do esquecimento doshomens. A procura de Boltanski , portanto, uma procura pelo tempo transcorrido, uma fbrica da sobrevidado tempo transcorrido: sofrimentos revividos, multiplicados, desintegrados, remontados, transformados em

    jogo, portanto, ultrapassados ainda que mantidos na nossa conscincia histrica. (p. 234)

    Algo sobrevive somente na remontagem do tempo transcorrido. E com as imagens, com a remonta-gem das imagens violentas da guerra (poder-se-ia dizer: violentando a violncia daquelas imagens),que Boltanski tenta sacar luz a dignidade que elas so capazes de restituir para alm do esqueci-mento, isto , em sentido warburguiano, enquanto sobrevivncia. E esta, tal como a imago romana, ex-mancipata, est fora do crculo dos negcios, no consagrada. Ou seja, enfrentar a cooptao daconsagrao artstica o jogo paradoxal no qual Boltanski (e, qui, todo artista ou crtico) est imerso.

    uma questo tica do artista ou crtico que est, portanto, no cerne dos debates sobre a imagempropostos por Georges Didi-Huberman no correr da ltima dcada. E no pargrafo nal do ensaiosobre Farocki que pode ser visto o vrtice de toda a armao estratgica e dos olhos que est emobra no s em seu ltimo trabalho, a srie O olho da histria, mas em todas as pesquisas por eledesenvolvidas ao longo de uma dcada: Remontar o tempo transcorrido: elevar sua clera altura deum pensamento, seu pensamento altura de uma expresso, sua expresso altura de um olhar. Pra-ticar uma fenomenologia das pequenas imagens. Desmontar-lhes a ordem, remontar-lhes a coernciaescondida. Voltar de sua clera que nalmente encontrou sua forma sem esquecer o sofrimento domundo que a tinha, de incio, suscitada. (p. 195)

    verbeteQuixotismoAlexandre Nodari

    As catacumbas lricas ou se esgotam ou desembocam nas catacumbas polticas(Oswald de Andrade)

    Um decreto da Coroa espanhola, datado de 1543 e direcionado s provncias do Peru, observava quea introduo nestas terras de livros e cantares de temas profanos e fbulas, o livro de Amadis e outrassemelhantes histrias mentirosas, causam muitos danos; decorre que os ndios educados na leitura,atrados por estas histrias, abandonam os livros da santa e reta doutrina e extraem destas obrasmentirosas maus hbitos e vcios. Deste modo, o decreto proibia a venda e circulao, na Amrica

    espanhola, daquelas mesmas obras cuja leitura, anos mais tarde, causar em um obscuro e ccionalsenhor provinciano da regio da Mancha, o mais estranho gnero de loucura que poderia caber em umpensamento disparatado. Alonso Quijano preencheu sua fantasia com tudo aquilo que lia nos livros,de encantamentos a querelas, batalhas, desaos, feridas, amores, tormentas e disparates impossveis;e assentando de tal modo em sua imaginao que era verdade toda aquela maquina daquelas sonha-das invenes que lia, que para ela no havia outra histria mais acertada no mundo, o engenhosodalgo se rebatizou, tornando-se, assim, Dom Quixote.

    Uma tradio muito fecunda viu no romance moderno, inaugurado pelo cavaleiro da triste gurade Cervantes, uma explorao dos mundos possveis, das possibilidades de mundo(s). Milan Kundera,por exemplo, dir que O romance no examina a realidade, mas sim a existncia. A existncia no o que aconteceu, a existncia o campo das possibilidades humanas, tudo aquilo que o homem podetornar-se, tudo aquilo que capaz. Os romancistas desenham o mapa da existncia descobrindo essaou aquela possibilidade humana.

    Porm, essa denio do romance unidirecional: leva em conta s o escritor, esquecendo aquiloque caracteriza o quixotismo: a leitura. No romance de Cervantes, h um antes e um depois da leitura:o engenhoso dalgo l e se transforma no cavaleiro da triste gura: Dom Quixote o efeito dasleituras realizadas por Alonso Quijano. Como diz Carlos Fuentes, Dom Quixote vem da leitura e a ela

    se dirige. E no s Quijano que l. Por todo o romance de Cervantes encontramos leitores: a maioriaapaixonada por histrias de aventuras, ainda que sem a engenhosidade, a loucura do protagonista;alguns leitores analfabetos, que gostam de ouvir a leitura de histrias, ou a assistir encenao de umconto de cavalaria na forma do teatro de fantoches; poetas embebidos pela vida pastoral, conversos eenlouquecidos pela leitura; e, por m, os leitores de um livro apcrifo que narr a justamente as desventu-ras de Quixote, e que, ao longo de todo o segundo volume do romance, no cessam de criar situaesimaginrias bem ao gosto do heri para rir s custas dele. Isso sem falar da hiptese de Kafka, paraquem o verdadeiro leitor do romance o analfabeto Sancho Pana.

    Portanto, no mundo de Dom Quixote, quase todos so leitores. O romance de Cervantes o mundoda leitura. Mas h, como vimos, dois tipos de leitura, dois tipos de leitores. Por um lado, os leitoresque sabem distinguir entre a aparncia e o ser. Em Dom Quixote, argumenta Marthe Robert, Todos

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    apreciam a bela linguagem, as histrias dramticas em que homens lutam e morrem por amor (...),adota[ndo] em palavras o ideal quixotesco de nobreza ou de generosidade, [mas] no pensa[ndo] umnico instante em colocar suas crenas em prtica. Por outro lado, no extremo oposto desses leitorescnicos, temos os loucos, dos quais Quixote o paradigma, mas no o nico representante: os quese convertem pela leitura, os que levam a srio o que leram. Dom Quixote, diz Fuentes, um cava -leiro da f. Essa f provm da leitura. E essa leitura uma loucura. Todavia, a sinonmia entre leitura,loucura, verdade e vida, repitamos, no se limita a Quixote: envolve tambm os poetas-pastores. Defato, como lemos no romance, fazer-se poeta algo ainda pior do que enlouquecer lendo romancesde cavalaria, pois enfermidade incurvel e infecciosa. Portanto, no plo dos maus leitores, se do face-a-face da poesia e da loucura, que caracterizaria a cultura ocidental, segundo argumentaFoucault: os maus leitores, os loucos e os poetas so os homens das semelhanas selvagens.No por acaso que, para manter sua palavra de abandonar a cavalaria errante por um ano, Quixotecogite com seus amigos passar esse tempo como pastor, e dar vazo a seus amorosos pensamentos,

    exercitando-se na pastoral, compondo versos pastoris, ou cortesos, ou seja, tornar-se poeta.Mas essa diviso no absoluta. A loucura de Quixote se dissemina, a leitura de Quijano produzefeitos, no s convertendo-o em Quixote, mas obrigando os demais a partilhar de sua leitura (do mun-do). Para tentar curar a doena do protagonista, seus amigos no tm outro remdio que usar estamesma doena: fecham com uma parede o acesso a sua biblioteca, e dizem que foi obra de um encan-tador, recrutam um vizinho, Sanso Carrasco, e convencem-no a fazer-se de cavaleiro e tentar derrotarQuixote em um duelo que decretaria o m da cavalaria errante para o perdedor, etc. Isso para no falardos personagens que o engenhoso dalgo obriga a jogarem o seu jogo, a comear pelo estalajadeiroque o heri toma como senhor de castelo e que lhe nomeia cavaleiro, um ritual que Quixote consideravaimprescindvel para a sua converso completa. Ou ento dos j mencionados per sonagens do segundovolume do romance, que no se cansam de alimentar a fantasia de Quixote, participando dela, aindaque sob o pretexto de burlar o heri.

    O banimento dos poetas da Repblica de Plato era justicado exatamente por esse contgio doauditrio que os poetas podem produzir, ou seja, devido aos efeitos da poesia. Para Plato, a poesiacria simpatia entre os homens, isto , os faz sofrer-junto com os personagens encenados, efeminandoos presentes no auditrio, que no teatro agem diferentemente do que costumam agir no dia-dia. E orisco que os efeitos da poesia se espalhem para alm de suas prprias fronteiras, afetando a vidapoltica o que, de fato, teria acontecido para Plato: no livro sobre as Leis, ele argumenta que o de-clnio ateniense derivava da teatrocracia, o domnio do auditrio: os poetas comearam a misturar osgneros, acabando com a diferena entre a boa e a m msica, ao que se seguiu a intromisso cadavez maior do pblico nas encenaes; pblico este j incapaz de distinguir o bom do ruim, e prepotenteao ponto de levar esta intromisso poltica, criando, assim, a democracia. Ao tempo de Quixote,isto , ao tempo da Inquisio e do Index, a crtica platnica era referncia para aquela innidade deespritos censores que dominou a poca. Um deles, o italiano Francesco Berni, escreveu em 1527 oDilogo contra os poetas, em que os poetas so caracterizados como loucos, e, mais do que isso,como uma seita. E, sendo uma seita, devem ser perseguidos como tal, atravs de uma inquisioparticular sobre os poetas, como se faz com os hereges ou os marranos na Espanha. A manutenodo bem viver que estava, segundo Berni, sendo obtida pelas proibies de portar armas, isto , pelacentralizao do poder estatal, seria reforada com a proibio de mostrar versos, e com mecanismos

    que identicassem exteriormente os poetas: como os Judeus, para serem assinalados pelos cristoscomo gente infame e odiosa, usam chapus amarelos (...), assim os poetas usaro chapu verde, paraassinalar a infmia e para que se possa melhor evit-los, e no deix-los se aproximar. Para almdo contedo hiperblico, importa observar a forma em que a crtica de Plato, j militarista segundoAdorno, atualizada por Berni: os poetas so uma seita, so hereges, so infames como os judeus,devem ser perseguidos como a Inquisio persegue a estes, e sua eliminao equivale ao desarma -mento da populao. Essa caracterizao da literatura aparece a certa altura de Dom Quixote, quandoum personagem argumenta que os escritores so justamente inventores de novas seitas e de um novomodo de vida.

    Essa terminologia remete diretamente s guerras confessionais, travadas entre religies que seacusavam, umas as outras, de serem seitas, hereges, etc., e, alm disso, formao do Estado mo-derno que visava justamente por m a estas guerras, centralizando o poder temporal e desarmandoa populao (e seus espritos). Ou seja, essa linguagem remete diretamente ao vocabulrio poltico.

    As guerras religiosas eram guerras entre diferentes leituras de um mesmo Livro, os partidrios de umaleitura acusando as demais de serem seitas herticas. Entre estas leituras, havia at mesmo a mais sel-vagem, a mais louca, a mais potica, a dos msticos. A operao que funda o Estado moderno consisteem armar um podersobre essas leituras, ou melhor, um poder que independe dessas leituras, sepa-rando a Lei do Livro, e convertendo o Livro (com maiscula) em livro (com minscula). Desta forma,as diversas leituras do Livro se converteram em opinies particulares: no h nenhum juiz da heresiaentre os sditos a no ser o seu prprio soberano civil, dir Hobbes, admitindo que cada um possa tersua conscincia privada, sua opinio privada, desde que aja conforme a conscincia pblica ditadapelo soberano (e o que so os leitores cnicos que pululam no romance de Cervantes seno essesseres cindidos?). Deste modo, o Estado classicava como loucas no s as leituras dos msticos, mastoda leitura que se convertesse em um hbito, isto , em um costume, em um modo (ou uma moda) devida, capaz de produzir efeitos contagiantes sobre as demais, toda leitura que ignorasse as fronteirasentre os mundos espirituais entre os livros e a realidade, mas tambm entre a conscincia pblica ea conscincia privada. Neste sentido, a histria do Estado moderno ser a de uma incessante guerrainacabada travada contra a guerra civil, uma guerra preventiva contra qualquer leitura potica do mun -do. Uma guerra preventiva contra qualquer sedio, qualquer seita, qualquer modo de vida possvel eintenso ao ponto de querer tornar pblica sua conscincia privada, ao ponto de lev-lo a produzir efeitosnos demais.

    Como entender essa co-incidncia histrica entre a fundao terica e prtica do Estado modernoe o advento do romance moderno? Talvez seja possvel situar o quixotismo como fundador de umaoutra fora poltica da modernidade, oposta a do Estado. Com a decadncia das guerras civis religiosasbaseadas nas leituras do Livro, as leituras loucas, os modos de vida no-estatais se transferem para oque prosaico, o comum, a prosa, para o que no sagrado, para os livros (no plural e com minsculo).Uma das caractersticas modernas atribudas a Dom Quixote justamente esse carter prosaico, pro-vinciano, da narrativa. O mistrio a ser desvendado no Livro se transfere para a realidade comum: sdevassamos o mistrio, diz Walter Benjamin, na medida em que o encontramos no cotidiano graas auma tica dialtica que v o cotidiano como impenetrvel e o impenetrvel como cotidiano. Quixote ofundador de uma seita que arma a leitura selvagem do prosaico como um modo de vida no-estatal, aliteratura como um modo de vida. preciso notar que no se trata do modo de vida da cavalaria que

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    armado no romance, mas o modo de vida da literatura, o que provado pelo fato j comentado de que,para cumprir seu ano sabtico em que deve car longe da cavalaria errante, Quixote no titubeie emfazer planos mirabolantes de tornar-se poeta-pastor. O quixotismo a armao da leitura selvagem.Neste sentido, para o quixotismo, a literatura a continuao da guerra civil por outros meios. A lite-ratura contra o Estado. Ou ainda: para o quixotismo, a literatura a continuao da religio por outros

    meios. A literatura como religio profana.Para retomar a denio de romance com que comeamos esse texto, podemos dizer que, se doponto de vista do escritor, o romance um mapa da existncia, das possibilidades da existncia, dosmodos de vida possveis, ento, do ponto de vista do leitor, o romance uma iniciao a esses modosde vida, prpria possibilidade de modos de vida, s seitas. De fato, Quijano, de tanto ler romances decavalaria, se converte em Quixote, passa por uma converso, que no uma simples troca de nome,mas de vida (Quixote inventa-se um ttulo, um passado, e deixa de ser Quijano): o ritual de iniciao a sua nomeao como cavaleiro pelo estalajadeiro (e antes da qual, no pode portar armas). Depois deiniciado, Quixote s abandona essa nova vida, esse novo modo de vida, essa seita, para morrer. O en-

    redo de situaes e eventos, relaes e circunstncias que o romance tece ao redor do personagem,diz Agamben, , ao mesmo tempo, aquilo que constitui a sua vida como um mistrio, que se trata node explicar, mas de contemplar como em uma iniciao. Mas o que torna Dom Quixote propriamentemoderno, o que faz do romance especicamente moderno, e o posiciona no extremo oposto opera -o estatal um outro nvel: ao lermos Dom Quixote, lemos sobre a leitura, somos iniciados a umainiciao. O tema do romance a leitura, os efeitos que a leitura provoca. isso que lemos. O romancemoderno no apenas a guerra civil continuada por outros meios. O romance moderno a teoria e aprtica da guerra civil continuada por outros meios. Da o devir meta-literatura do romance moderno:no se trata de reetir sobre a escrita, mas sobre a leitura, isto , no se trata de reetir sobre os meca-nismos da linguagem, mas sobre os efeitos que estes provocam. A leitura, como j ressaltamos, no selimita aos letrados, apenas a imagem da iniciao possvel ao modo de vida do potico; representa oseu carter misterioso, selvagem. Ler sempre ler o livro do mundo.

    Isso explica o mal-estar da literatura na modernidade, e o mal-estar que a literatura provoca namodernidade. Os escritores e poetas modernos, que so, antes de tudo, leitores, esto plenamenteconscientes de que o modo de vida da literatura s possvel na literatura (Quixote apenas um perso-nagem). Da quererem a todo custo que a literatura saia de si mesma, quererem o retorno de uma vidaautntica, a fuso entre arte e vida, em suma, quererem que a arte produza efeitos sobre a totalidade

    da vida. E pouco importa a posio poltica dos poetas e escritores. A literatura per se poltica. Poucoimporta se formam escolas que se sucedem, confrarias ou sociedades secretas desconhecidas dasgrandes massas, ou se, pelo contrrio, formam aparatos militares, isto , vanguardas que se digladiamentre si e contra o mundo: formam sempre, e constitutivamente, seitas, e sua prpria existncia, aprpria existncia do modo de vida da literatura, de iniciados pela leitura potica do mundo, que ame-aa o Estado. Isto constitutivo leitura selvagem. Algumas vezes, eles formaro um ajuntamentode poetas que exigir todo o aparato repressor para evitar que a leitura selvagem ameace o poder,como aconteceu no caso da Incondncia Mineira. A maioria das vezes, no. Pouco importa. Enquantohouver literatura, o Estado permanece ameaado pela guerra civil. Quando, ao nal do romance, Alonso

    Quijano recobra a conscincia e deixa de ser Quixote, porque a sim est doente, e prestes a morrer.O nal de Dom Quixote, que poderia ser uma concesso Igreja, , na verdade, um tributo literaturacomo modo de vida: uma vez iniciado nela, s se sai dela para morrer.