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MASSIMO CANEVACCIé antropólogo, professorda Faculdade de Ciênciasda Comunicação daUniversitá La Sapienza deRoma e autor de, entreoutros, A CidadePolifônica (Studio Nobel).

MASSIMO CANEVACCITradução de Aurora Fornoni Bernardini

Metrópolecomunicacional

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REVISTA USP, São Paulo, n.63, p. 110-125, setembro/novembro 2004112

E intro: manchetes:

ste meu ensaio quer ser umahomenagem a São Paulo pelos seguintesmotivos: fazendo uma pesquisa no interiorda cidade comecei a compreender cada vezmelhor aquilo que estava vindo à tona, nãoapenas na imensa capital, mas algo que iaconfigurando um processo muito mais com-plexo. Um trânsito da cidade moderna (pe-los olhos da qual Lévi-Strauss havia vistoe condenado à entropia cidades brasileirase culturas indígenas) para um novo tipo demetrópole: a metrópole comunicacional.Isto é, as variegadas e fluidas formas decomunicação que cruzavam essa nova me-trópole iam se tornando mais importantesdo que o conceito tradicional de sociedade,com o qual eu tinha me formado científicae metodologicamente. Daí, a insuficiênciada forma-ensaio do passado (monológica)e o impulso a experimentar uma multiplici-dade de formas expositivas, todas elas ba-seadas na montagem: uma reunião de frag-mentos, pois apenas eles sabem dar, poraproximação contínua, o sentido mutantedesse novo pulsar da metrópole. A monta-gem de fragmentos é, ao mesmo tempo,uma homenagem a Walter Benjamin, oprimeiro grande pensador que atravessouesses novos espaços culturais comunicati-vos já nas primeiras antecipações das me-trópoles do século XIX.

O que mudou realmente em relação aocenário do começo da década de 90 é oenxerto da cultura digital nos fluxos dacomunicação; e o resultado – a comunica-ção digital entre os espaços metropolitanos– assinala um outro trânsito: da montagem

ao morphing, com o qual a comunicaçãodigital modifica no interior (por meio daassemblagem de pixel) duas ou mais figu-ras iniciais, transformando-as em algo devisual e radicalmente novo. Essa alteraçãoicônica do morphing torna necessária amodificação de uma outra célebre tese deBenjamin: a que via na reprodutibilidadetécnica a utopia que desafia a aura aristo-crático-burguesa. Graças ao digital, repro-dutibilidade e não-reprodutibilidade mis-turam-se e, dessa forma, afirmam-se aspráticas pós-dualistas do corpo da comuni-cação. E a metrópole é o contexto dentro doqual o corpo se configura e se transfiguracomo bodyscape.

As paisagens corporais são paisagensdentro do corpo da metrópole comunica-cional. Os corpos metropolitanos são cor-pos comunicacionais em que a tecnologiaé somatizada segundo procedimentos irre-gulares, sincréticos, mutóides [que tendema mudar]. A nova metrópole somatiza atecnocomunicação e a difunde em seus flu-xos itinerantes. Basta abrir os poros dopróprio corpo e os fluxos entram por qual-quer multíplice sensorialidade.

Quantos são os sentidos acesos da me-trópole comunicacional?

:plano seqüência:

A fila está excitada. Ordenada e veloz.Uma fila que parece consciente de estarexperimentando algo de novo: algo paracontar e para lembrar. Em volta, uma sériede funcionários competentes (vestidos demodo uniforme, mas com variações cro-máticas elétricas diferentes e individuali-zadas para cada um deles) distribui comdiscrição bilhetes e dépliant, entretém ascrianças, responde às (poucas) perguntas.Em São Paulo, o novo mega shoppingcenter – Sensorália – está aberto há apenasuma semana e todos já falam dele. A filaescorre silenciosa por entre as plantas tro-picais falsas-verdadeiras, enxertadas aolongo de um jardim sintético que precede aentrada. Chega o “mini-mono”, o trenzi-nho minúsculo estilo Sottsass (super-design) e Star Trek (super-serial) no qual

N. T.: Certos neologismos do au-tor, como “mutóide” (que tende amudar) “assemblagem”, etc., fo-ram deixados inalterados na tradu-ção. Igualmente não foram traduzi-dos em sua quase totalidade ostermos em diferentes idiomas es-trangeiros usados pelo autor. Ape-sar de não corresponder à nossanorma, foi conservada, em suaquase totalidade, a notação emitálico do autor, tendo sido, entre-tanto, assinalados em itálico osvocábulos estrangeiros. Algunsoutros neologismos e/ou estran-geirismos menos compreensíveisforam traduzidos (ou interpretados):nesse caso a tradução vem entrecolchetes.

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sentam os consumers, que já sabem lidarcom os cintos que se fecham com a simplespressão dos dedos sobre o ícone respectivoe sobre o casco que desce do alto para jun-tar suas cabeças. O “mini-mono”, comple-tamente informatizado, parte: começa aviagem de ingresso ao novíssimo e multi-sensorial-shop e, com ele, o espetáculo.

Leio um dépliant que diz: “Forward –vocês pensavam ter cinco sentidos: agorasabem que são infinitos” .

:primeiro plano sobre o dépliant e cut up:

Learning from São Paulo

O derrapar dos códigos, o esvaziamen-to dos símbolos, a proliferação dos signose sua descontextualização caracterizam osnovos sets do consumo: agora os shoppingcenters tornam a formatar-se como con-textos performativos públicos que compe-tem entre si. O estilo comunicacional, quese afirmou nos theme-parks e que deslocamassas crescentes de consumers, foireelaborado pelas grandes corporações dadistribuição e aplicado ao mega-shop, ondeas emoções da visão são liberadas e contro-ladas no mesmo espaço-tempo. O restylingdo consumo performativo baseia-se numaprecisa idéia-guia: a competição entre osnovos espaços metropolitanos dá-se sobreos códigos, sobre a ativização do sujeito-consumer. Dressing.

Se a década de 70 viu Las Vegas comomodelo da simulação que propõe o corta-e-costura como o traço da pós-modernidade– como tudo, por sinal, já foi inventado,trata-se tão-somente de misturar os códi-gos feito uma sopa in progress: tudo isso seesgotou. Ao jogo da simulação (que conti-nua, em parte, em diferentes modalidades)substitui-se o enxerto das tecnologias co-municacionais no corpo da metrópole.Bodyscape. Tal modo do consumo – deelemento secundário e final da produção,torna-se diretamente produtivo. Em SãoPaulo, as novas fábricas que surgem nasáreas menos favorecidas baseiam-se em um

tríptico, o tríptico da contemporaneidadepulsante: cultura-consumo-comunicação.

As invenções que inserem sets perfor-mativos no interior dos novos espaços me-tropolitanos (os enclaves do consumo per-formativo) cruzam arquitetura, design,moda, style e comunicação visual. Estaúltima – a comunicação visual – emergecomo o elemento de unificação, invasão efragmentação das novas metrópoles. Tudoisso difunde e recria, continuadamente, ametrópole comunicacional. Gradualmentee sem pausa, ela passa a substituir a metró-pole moderna, baseada na produção. Os setsperformativos do consumo são os sucesso-res das fábricas.

O olhar do performer que entra nessesenclaves afirma-se como arte da masti-gação: os olhos tornam-se dentes que semovem lenta e inexoravelmente sobre adura comida a ser deglutida, que se agita naboca; deslocando a comida com movimen-tos sábios da língua e umedecendo-a, osdentes conseguem lentamente atacar suadureza, fragmentá-la, isolá-la, dissolvê-laaté transformá-la em bolo. Finalmente, essebolo, cada vez mais molhado pelos sucoslinguais, pode ser engolido, já transforma-do e afofado em sua inicial solidez. Poisbem, os olhos, do mesmo jeito, selecionamvisões, códigos, signos, estilos; juntam-nose fazem-nos rodopiar com os movimentosfrontais do olhar, feito os planos-seqüênciade uma telecâmera incorporada, que tem ocondão de reunir e amolecer os objetos davisão e os objetos-a-serem-vistos; depoissão focalizados detalhes com verdadeiroszooms que põem em primeiro plano cadaparticularidade; finalmente o olho absorve– engurgita, engole, deglute – o pedaçoselecionado e o coloca em sua memóriatemporária.

O olho tem o poder seletivo, mordedore absorvente que outrora pertencia aosdentes.

O olho é o sucessor das presas.Olho pulsante.Os movimentos oculares atuam em con-

tínuos cuts-up, entre os segmentos da co-municação visual inseridos nos espaçosperformativos do consumo. Esses espaços

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oscilam entre citações, reproduções, ino-vações que atravessam parques temáticos,outlets da arquitetura, tecnomuseus, mos-tras-espetáculos, megaconcertos, malls,shopping centers, village-holidays, eco-turismo.

Em Roma, o concerto gratuito de Simon& Garfunkel, realizado na cenografia ini-mitável do Coliseu, em 31 de julho de 2004,comportou mais de 600.000 pessoas queaplaudiram o duo – um contingente acres-cido de turistas que esgotaram todos osingressos existentes na cidade. Um vôolast minute vindo de qualquer cidade daEuropa era superbarato frente ao concertogratuito.

Na gestão desses processos comunica-cionais, obtém-se uma série de resultadosoptimais: governance pós-industrial, cida-dania móvel, fluxos de público, famíliasnucleares, bandas juvenis, simples casais,grupos turísticos, encontros amigáveis sãoatraídos de modo crescente por um novomeio comunicativo inserido no corpo ex-tenso (material-imaterial) da nova metró-pole comunicacional: assim se substituemos novos “públicos-do-consumo” aos quaisse oferecem elementos múltiplos para libe-rar e enquadrar as emoções.

A grande distribuição ataca o poder deatração dos parques temáticos ou dostecnomuseus, preparando montagens departes específicas dentro de cronotopos emmutação constante, para subtrair cotas demercado à concorrência comunicacional oupara aumentar as já existentes. Ou – talvezmelhor – para tornar-se uma Ópera de Con-sumo Total.

O shopping como Ópera.O tríptico c-c-c oscila entre tornar-se

museu, parque temático ou set da TV. Umnovo e poderoso híbrido em que consumo,diversão, lazer, comunicação, mídia, espor-te correm um atrás do outro e se cruzamcom cada um ou com todos.

Wagner em São Paulo: do projetowagneriano de obra de arte total – queassembla uma série de códigos primos se-parados para transformá-los em umLebenswelt vívido – ao Consumo Total daÓpera… consumo em sentido literal.

Dentro do Sensorália, os novos consu-midores assistem e, ao mesmo tempo, cri-am performances no túnel de entrada quemostra a antecipação dos produtos a seremcomprados como se fosse set, expo-uni-versal, mostra de arte, desfile de moda,museu etnológico. No túnel do consumi-dor pratica-se uma mensagem múltipla esintética entre gêneros profundamente di-ferentes, que agora o novo set tem poder dereunificar numa única grande viagem. Emsincronia com o adiantar-se do “mini-mono”, o consumidor assiste à performan-ce das mercadorias, a seu agitar-se nos ca-chos do set, a seu falar, cantar, recitar. Anova mercadoria exposta acha-se – agora –completamente performada.

A mercadoria do consumo performáti-co é um fetiche visual diferente da merca-doria apenas material da era industrial(Canevacci, 2001, cap. I).

A arquitetura de São Paulo apreendeucom a Disneyworld e com a Rede Globo;o túnel do mega-shop é um cut-up queatravessa (corta) diversos parques temá-ticos. A expo das mercadorias assimilou-se competitivamente à expo dos parquestemáticos.

A derrapagem semiótica transita de umgênero arquitetônico-comportamental a umoutro. Para desafiá-lo. E, ao mesmo tempo,para desafiar o “público” que, desse modo,passa a participar. As mercadorias são asanimadoras dos consumidores, tal como osanimadores das aldeias turísticas que le-vam os excursionistas adormecidos a faze-rem meditações zen, danças tribais, eso-terismos, troca mansa de casais, tatuagenstemporárias, jogos de papéis, gincanas ex-citantes, passeios ecológicos, silênciosadestrativos.

[:dissolvência:]

- Piranha: é instrutivo visitar, nem que sejapor algumas horas, um lugar que estava namoda em 2002, como o Piranha: por fora éum edifício baixo, descascado, anônimo,quase em decomposição, gente esquisitana rua, dentro de uma área que parece resí-duo da clássica periferia… Ao contrário,

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basta passar pela soleira, limen inefável edecisivo, para mudar de identidade, per-cepções e metodologias e achar-se num es-paço ultramoderníssimo, grandes cozinhascom nipo-cozinheiros ao ar livre, salas demúsica on the edge, pessoas de todo estilo,mas, em geral, muito observadoras doscódigos expostos, sujeitos transclassistasque põem em contato “coactos” [forçados]vindos não se sabe de onde, quem sabe decasas próximas, com a elite intelectual,estudantes progressistas, provedores detudo ou qualquer coisa, famintos por boamúsica que não seja a MPB. E tudo se ex-pressa numa clara dimensão de poli-sensorialidade transclassista, cuja determi-nante aparecia como sendo a multiplicida-de dos níveis comunicacionais (vestir-se,comer, gesticular, fumar, dançar, ouvir,etc.).

Sensorália.Basta atravessar grande parte do sprawl

[esparramamento] paulista para penetrar emum bairro e em um lugar totalmente ou-tro… da piranha vai-se ao moinho.

- A Mooca é um dos velhos bairros indus-triais de São Paulo. Ali esteve – e em gran-de parte ainda está – presente a emigraçãode origem italiana – que agora se diluiu nomosaico étnico da segunda metrópole domundo – nas diferentes vagas que deixa-ram forte marca na cidade-trabalho, funda-da na grande indústria. São Paulo baseava-se – e em grande parte ainda se baseia –nesse tipo de modelo de trabalho. Agorasua sensorália comunicacional está se in-serindo entre seus contorcidos mapas ur-banos e seus interstícios. Espaços-entre.Pulsa um novo tipo de motor metropolita-no que se funda sobre vigorosas reestru-turações pós-industriais. Por causa dissotudo, o consumo está se pondo como cen-tro de expansão de valor (em sentido eco-nômico) e, ao mesmo tempo, de valores(em sentido antropológico, como estilos devida), deixando atrás de si todas aquelasimpostações moralistas e pauperistas que ocondenavam a dissipações vistosas. Osimpulsos rumo a novos consumos estãoredesenhando as formas da metrópole. De

toda e qualquer metrópole comunicacional.Por isso tudo, assiste-se a processos demutação que transportam os lugares está-veis, as identidades compactas, os traba-lhos repetitivos, os ambientes poluídos paramudanças comunicacionais.

Assim deu-se que, desde 1998, um ve-lho e enorme moinho – que tratava o milhodesde a espiga até a farinha – refez seu liftinge se transformou em multilocal quente. Ocaminho que leva ao Moinho é apertado eindustrial, por perto ainda há velhas fábri-cas que produzem conforme os ritmos e ostempos da modernidade. De repente che-ga-se a esse multilocal. Ao entrar o clienterecebe um cartão magnético com seu nome,onde serão marcadas todas as despesas. Éo Temporary Identity Card. Depois assis-te-se a uma multiplicidade de papéis sepa-rados entre si ou para se juntar a bel-prazer,em relação aos quais cada cliente-performerdecide seu percurso e seu consumo. (Con-forme foi dito, nesses multilugares o es-pectador não é apenas isso, mas tambémum preciso criador de performances.) Tudoé inserido e transformado, desconstruído ereconstruído no espaço do velho moinho.Há pizzarias rápidas, restaurantes de cemdólares, sorveterias coloridas, paredescheias de videogames, espaços-vídeo e ci-nemas, pistas de dança, doceiras, bares. Euma enorme discoteca que se “envenena”depois da meia-noite. Outros espaços es-tão sendo programados.

Nos velhos pátios foram erguidas –como nos estúdios de Cinecittà ou da Glo-bo – enormes estátuas de papel machê querepresentam as fases do trabalho obreirono moinho, num perfeito estilo de falsorealismo socialista. O efeito é deslocante:dá a impressão de se estar mergulhando emum parque temático onde se transita porentre o consumo visual de símbolos dopassado, reduzidos a puros signos, com osquais pode-se brincar de identidades mó-veis – identidades-de-tempo – ao invés dese permanecer pregados na única identida-de que nos foi dada pelo modelo fordista.

O consumidor-performer constrói seupróprio itinerário, usa cada código à suadisposição, transita nos espaços, nos esti-

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los, e também nos tempos. O Moinho é umnão-moinho onde se comem as enormespizzas paulistas. E os patrocinadores – su-blinhando ulteriormente as profundasdisjunções com o passado – são Parmalat,Barilla, Fiat, ou seja: uma Itália multina-cional. Num canto do moinho abre-se atémesmo uma espécie de cripta – bem ao ladodo moderníssimo espaço dos videogames:entra-se ali numa Itália medieval, pintadapor pintores-barilla, onde a imagem do sa-grado é um sagrado dessacralizado, priva-do de seu poder simbólico e transformadoem puro espaço de exposição e em tempode diversão. Cripta e videogame coabitame transitam. Tudo pode coexistir e tudo étolerável.

metropolis comunicationalis

Há precedentes para essa mudança epo-cal e algumas dessas tendências foram adi-antadas, com sua visionária lucidez, porMusil em um de seus romances que tem, nocentro, a decomposição da Viena capitaluniversal; na citação que ele faz é evocadauma metrópole da década de 30 que desafiaa condição anômica atual:

“Não damos particular importância ao nomeda cidade. Como todas as metrópoles, eraformada por irregularidades, revezamentos,precipitações, intermitências, colisões decoisas e de eventos, e, no meio de tudo, pontosde silêncio abismais; por bitolas e terras vir-gens, por um pulsar rítmico e pelo eternodesacordo e perturbação de todos os ritmos;e, em seu conjunto, parecia-se com umabolha em reebulição posta em um recipien-te feito de casas, leis, regulamentos e tradi-ções históricas” (Musil, 1996, p. 6).

Trata-se do primeiro capítulo, do pri-meiro parágrafo, da primeira página de OHomem sem Qualidades de Robert Musil,sendo que está claro que o autor quis atri-buir a esse começo um valor de fundação,porquanto aquela cidade-sem-nome (capi-tal do estado de Cacânia) é igualmente ocontexto expressivo, político e teórico den-tro do qual se desenrola a narrativa que

anatomiza a crise de 1900. Parafraseando ohomem, também a metrópole é sem quali-dades. De fato, as assim chamadas “quali-dades” pertencem àquelas pessoas do im-pério austro-húngaro que não perceberama decomposição em curso, devida a um sis-tema político-cultural dentro do qual suacapital – Viena – jamais chegaria a festejaros 70 anos de seu imperador. Junto com oaniversário aproxima-se a derrota do im-pério na Primeira Guerra Mundial.

Quem sabe por isso mesmo, conformeé sobejamente conhecido, se liberam tan-tas forças criativas no corpo-em-decompo-sição. Musil é uma dessas personalidadesextraordinárias que conseguem dar o sen-tido de uma condição metropolitana muitomelhor do que as famosas pesquisascontempory [contemporâneas] da Escolade Chicago: irregularidades, intermitências,colisões, arritmias designam justamente ametrópole como uma enorme bexiga refer-vente. São Paulo foi e ainda é assim. A ci-dade polifônica referve. O que se acrescen-ta tem a ver com a tecnocomunicação.

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Por isso mesmo, aquilo que continua-mos a chamar de metrópole adquire fei-ções cada vez mais fugidias e múltiplas quedesafiam as classificações tradicionais: me-trópole-sem-nome ou de-muitos-nomes.Em qualquer caso, a metrópole contempo-rânea, a que se pode dar o vago adjetivo de“comunicacional”, é o contexto fluido einovador que libera roots (raízes) e misturaroutes (itinerários, cruzamentos, atraves-samentos): também é um laboratório quedesafia as divisões tradicionais das disci-plinas. Não dá para “sentir” a metrópole senos fecharmos no específico arquitetôni-co, urbanístico, sociológico, antropológi-co, estético e assim por diante; ao contrá-rio, sente-se quando se entretecem meto-dologias descentralizadas e deslocadoras.

A transdisciplinaridade não quer dizercolocar juntas várias disciplinas, mas simcriar um novo objeto que não pertence aninguém. Esse novo objeto é a metrópolecomunicacional. Metapólis… Ou melhor:a nova metrópole é sujeito transdisciplinarque não pertence a ninguém e que, justa-mente por isso, todos temos que atravessare cruzar. Criss-crossing.

Esse trânsito é caracterizado pela ten-dência à dissolução da produção industrialque constituía o centro identitário, políticoe mnéstico [referente à memória] da cidade(seu “monumento” por excelência, comsuas classes precisas, a dialética sintética,os dualismos centro-periferia, público-pri-vado, cultura de elite-cultura de massa). Asinovações complexas e plurais que favore-ceram, acompanharam, anteciparam ditadissolução são o referido tríptico: consu-mo-comunicação-cultura.

Shopping centers, malls, parques temá-ticos, gentrification, museus, publicidade,arranjo de vitrines, desfiles, mostras, expo-sições, férias, encontros: tudo isso estáredesenhando a vida material-imaterial donovo sentir metropolitanto. A competiçãoentre as metrópoles dá-se nesse plano, nãomais pela quantidade de mercadorias quese podem produzir ou estocar, mas peloscenários tecnocomucacionais e expo-cul-turais que cada metróple oferece em pano-rama glocal.

A cultura e a comunicação dos consu-mos tomam o lugar da tradicional socieda-de dos consumos e a dissolvem.

As novas tecnologias estão tendo umpapel decisivo nessa passagem: as repre-sentações arquitetônicas, urbanísticas oudas ciências sociais e comunicacionais in-corporam e difundem uma multiplicidadesensorial de panoramas.

:flash-back:

- Avatar: os arquitetos mais inovadores (al-gum deles, também em São Paulo) enxer-tam-se dentro das multíplices dimensõesdo avatar e espalham novas dimensõespolilógicas e de muitas perspectivas:avatecture. Segundo o manifesto do arqui-teto Michael Heim, avatecture é ummorphing entre avatar e arquitetura, queexprime algumas tendências da nova me-trópole comunicacional.

“Architecture is becoming avatecture:Physical buildings morph into visualstructures that generate online avatarcommunities. The avatars discuss prototypestructures in virtual reality, and the physicalstructures become multimedia visualization– a magic theater where buildings acquirenetworked significance. Avatecture injectstransformation into physical structures,merging clicks with bricks, enlivening re-configurable buildings with flexibility,change, and soft significance. The avatectis a shaman who creates interactive visions,who initiates a shared version of futurehabitation. The shaman dances thecommunity into a dwelling that responds toshared visions and that can later morph toaccommodate the passages of time. Thephysical edifice becomes a theater ofendless possibilities” (www.mheim.com).

E isso está ocorrendo numa metrópolecomo São Paulo. Os clássicos edifíciostornam-se espaços de performances sem-fim. Desse contexto, junto com a comuni-cação digital, surge a dimensão fluida eplural do avatar. Em minhas pesquisas so-bre metrópoles, tecnologias e comunica-

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ção emergiu essa dimensão. Avatar signi-fica – criando-se uma metáfora a partir dosentido primeiro da filosofia hindu, isto é,a multíplice manifestação do deus – a ex-periência de uma subjetividade multividuale, ao mesmo tempo, a autoprodução de lin-guagens múltiplas. Avatar é um desafio aqualquer discurso monológico e a qualqueridentidade fixa.

São Paulo está transitando de mega-cidade industrial para metrópole comuni-cacional inexplorada. Os restos da era in-dustrial – quem sabe o período mais funes-to da humanidade – estão se descolorandoe com os seus tempos lentos reconfiguram-se como espaços performativos do consu-mo. Espaços-tempos lentos. Além dosexemplos já dados, há muitos outros. Quemsabe na segunda metade da década de 90um dos mais importantes desenhos urba-nísticos tenha sido ligar a Avenida FariaLima com a Avenida Berrini, conforme já

antecipado em A Cidade Polifônica. Alifora projetada não apenas a passagem deautoveículos, mas, essencialmente, um dosnovos centros da metrópole, caracterizadode acordo com a concepção pós-industrial.Não apenas terciário avançado ou, se qui-sermos, “quaternário”, mas justamente amudança dos terrains vagues [terrenosvazios], onde as mercadorias da indústriase “aposentaram”, juntamente com umaparato conceitual e político (dialética,partidos, hegemonias, etc.), para fluírempara outras torrentes lingüísticas.

:primeiro plano:

- Dress-code: a proliferação de fluxospanoramáticos consegue dar sentido a todoesse entrecho de avatares com arquiteturas,onde os concepts store podem constituirpainéis seja para um seminário universitá-rio, seja para uma exposição trendy [“bada-lada”]. Do conjunto variegado e múltiplodesses panoramas flutuantes, salienta-se umoutro cacho de conceitos que desafia asemiótica tradicional na busca de leis, opo-sições, inversões binárias, através dos qua-drados semióticos.

:bodyscape: os fluxos panoramáticos cor-porais que amarram, citam, excitam a rela-ção entre location (locais cujos interiores-exteriores expressam textualidades arqui-tetônicas, design, instalações que marcamuma tendência) e bodyscape (os códigosligados a roupas, piercing, tatuagens,cosmese, acessórios) através da eXposiçãode dress-codes precisos. O dress-code des-loca as atrações inter e intratextuais entrelocation e bodyscape; dress-code é umachave de acesso de tipo semiótico-compor-tamental sempre em mutação; dress-codeé um sistema narrativo híbrido que arquite-tos, designers, estilistas e cool hunters pro-curam muitas vezes interpretar observan-do os segmentos mais conflitivos das cul-turas juvenis; dress-code é o novo corposomatizado e mutóide da metrópolecomunicacional; através do dress-code amaquilagem transita do bodyscape à

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location: dress-code é cosmese para cos-mos flutuantes em mutação.

Cosmos-avatar.Fashion-designer – sound designer –

avatecture: o estilo cruzado de identidadesflutuantes e linguagens sincréticas torna adefinir cada profissão. Os limites fazem-seincertos e as fronteiras são sempre maisporosas.

No bodyscape trançam-se códigos cor-porais e arquitetônicos, ambos transforma-dos em paisagem. E esta é a paisagem me-tropolitana por excelência. É por aqui quepassa a metrópole comunicacional. Ao lon-go desses tranqüilos fluxos panoramáticos,tem-se também a visão de panoramas étni-cos que misturam e tornam a desenhar osfragmentos dentro de cada encaixe urbano;a metropolis comunicationalis somatizafluxos midiáticos divergentes através da pu-blicidade, da moda, da videomusic, dosestilos de comportamento, dos códigoscorporais, dos gestos, dos jargões, da sedu-ção, dos erotismos, dos fetichismos. Essesfluxos corporais-panoramáticos experi-mentam enxertos pervasivos entre corpos-metrópole-mídia. E as locations levam emconta todo esse flutuar e atravessar comose fossem corpos inorgânicos que arran-cam o in e se tornam plenamente e pós-dualisticamente orgânicos.

O avatar detesta qualquer dualismo,multiplica as subjetividades e os infinitosenxertos entre orgânico e inorgânico.

Nessa perspectiva, a semiótica desvin-culou-se progressivamente de qualquer ten-tativa sistêmica e classificatória que nosanos passados viu nascer ordens inter-pretativas que naufragaram nos fluxosconflituais, sincréticos, em mutação. É jus-tamente a nova metrópole comunicacionalque performa e põe em crise qualquer ten-tativa de ordenação (disciplinar), de com-posição urbana. Uma nova semiótica irre-gular escorre pelos ditos panoramas e de-safia qualquer leitura sistêmica, regular, decaráter generalizante. Uma semióticaconflitual à qual nos cabe dar sentido evisibilidade.

O dress-code testemunha a passagemdos paradigmas de caráter industrial

(monológicos) para a multiplicidade pós-paradigmática (plurilógica) das locations,cada vez mais próximas dos sets mix-midiais, das performing arts, das instala-ções de rua; o dress-code sopra dos lugarestayloristas da produção aos espaços estéti-cos (multissensoriais) do consumo.Sensorália. O consumo como produtor devalor (econômico) e de valores (estilos):shoppings, museus, estações, parques te-máticos, multissalas, neofolclore, mega-concertos, etc. e até mesmo de elementospós-estatais, no meio do consumo glocal.

:plano cruzado narrativo:

Piranha é uma location, tal como oMoinho e os infinitos locais que nascem,morrem e ressurgem num cenário metro-politano que flui continuamente, onde per-manece apenas o que se dissolve no ar comofluxo comunicacional. Em todas essaslocations – um novo contexto que cruzauma espécie de set cinematográfico ou deTV, com qualquer possível espaço per-formativo –, o corpo torna-se o ator princi-pal. E ele assume pragmáticas comunica-cionais precisas, por afinidade, por contras-te, por tensão, por mudanças, por fragmen-tação, por assemblagem: e tudo isso se re-sume no dress-code. Código de ingresso ede aclaramento, através do qual o sujeitoque investe temporariamente aquele corpocom aqueles códigos é aceitável naqueladeterminada location. Dela é performerconstrutivista. Verdadeiro sujeitocomunicacional que sabe expor e decifrarcódigos. Multi-viduo. Eus… ii…

A passagem de cidade moderna parametrópole comunicacional adquire – entreoutras coisas – a finalidade tendencionalda distinção clássica entre o centro e a pe-riferia.

Centros diferentes estão nas periferiastradicionais assim como periferias igual-mente diferentes estão naquilo que era ocentro bem definido e circunscrito. Se issoainda é pouco visível nas clássicas cidadesitalianas, basta visitar as metrópoles con-temporâneas (São Paulo, Cidade do Méxi-

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co, Los Angeles, Tóquio) para sentir essamudança e esse movimento. De um pontode vista urbanístico – como também antro-pológico-urbano – o novo e freqüentemen-te espontâneo redesenhar dos espaços en-contra-se em relação estrita com a mudan-ça dos comportamentos. Um desafio esteque não é apenas urbanístico, mas tambémpolítico, mesmo que o termo “político” nãodê precisamente o sentido dessa derrapa-gem. Quero dizer com isso que o uso neo-colonial e retrô de termos como “terceiro”mundo parece querer encobrir o fato de queChina, Brasil, Índia e África do Sul estãoconstituindo uma força “outra”, que alteradefinitivamente a definição autoritária cen-tro-periferia (ou norte-sul, do mundo).Desse ponto de vista, os efeitos da globali-zação estão deslocando todo determinismocentro-periferias de acordo com mapea-mentos completamente inéditos, cujos con-tornos começam a ser visíveis. E constitu-em um desafio para todos aqueles que con-tinuam a definir-se “centros” .

A redefinição dos espaços mundia-lizados – graças a um certo tipo de globa-lização – obriga as potências clássicas (Eu-ropa, Estados Unidos, Japão) a se verempostas em discussão por essas novas potên-cias que emergiram, inclusive, graças aonexo entre tecnologias e agricultura. Desseponto de vista, o fato de que justamentedurante o verão o WTO tenha aceitado re-tirar as barreiras alfandegárias sobre osprodutos agrícolas dos países ex-primeirosatesta a afirmação de uma nova era. Aquelaem que a oposição centro-periferia é apo-sentada.

O conceito de centro – especialmentequando referido às metrópoles – possui umsignificado forte que tem muito do mito.Perde-se o centro (ao menos é assim que sepensa) quando já não se tem a capacidadede estabelecer uma ordem vertical comreferência à qual seja possível dispor hori-zontalmente o restante. O centro produz ocosmo. Sem se estabelecer ritualmente essecentro, não se ordena o restante segundopadrões hierárquicos e mapeamentos depoder cognitivo. Com o centro, o ritual casa-se com o político e o sagrado, o centro é o

poder. Quem controla o centro – quem pro-duz o centro – controla o todo. As religiões,os estados, as economias devem estabele-cer sempre um centro; o poder simbólicodo centro. O símbolo do centro, portanto,afirma sua capacidade de unificar o todo. Opoder simbólico na construção do centroconsiste no fato de que submete à sua auto-ridade todo o restante. O centro é uma au-toridade que se faz totalidade graças aosímbolo. Por esse motivo, todo ato sensatode libertação progressiva só pode afirmaruma descentralização do sujeito e do espa-ço; um conter, ou melhor, uma tendênciapara dissolver qualquer símbolo. O centroé a autoridade do UM. Esse poder simbó-lico do Um pode ser rompido e dispersopor meio de novas diásporas, já não maisdeterminadas pela coação forçosa do aban-dono. O desejo descentraliza: no corpocomo bodyscape e na metrópole comolocation.

:subtítulos:

A metrópole contemporânea não pro-duz mais (e felizmente) um discurso unitá-rio; a autoridade do projeto passa a ser des-centralizada, a unidade estética e políticada pólis está morta. Chegou o momento decolher as vozes múltiplas e mesmo disso-nantes que representam os fluxos sônicosmetropolitanos como algo de rico e dedesordenado, de plural e de sincrético. Ahegemonia da síntese – produzida pela ci-dade monológica e moderna, com sua or-dem produtiva de tipo industrial, tayloristae fordista, com suas classes bem delinea-das em luta entre si pela hegemonia – rom-peu-se, e em seu lugar foram se insinuandosoundscapes dissonantes e polifônicos.

Para somatizar e transformar as metró-poles contemporâneas é importante esseposicionamento do sujeito: os fluxos dosolhares afirmam uma particular sensibili-dade cognitiva que é sensível o bastantepara colher aquelas inúmeras pequenas di-ferenças, aqueles detalhes apenas aparen-temente insignificantes, aquela prolifera-ção de signos em excesso constante. Oolhar para dentro da metrópole comu-

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nicacional é cada vez mais determinantenesse trânsito. Diria mesmo que o olharemerge como um meio (medium) que tran-ça de modo inextricável natureza e cultu-ra, um olhar infobiológico. Desse excessodo olhar, do olho, do mirar nasce minhaproposta metodológica: o fazer-se ver. Nãono sentido banal de mostrar-se, mas nosentido de transformar-se em olho-que-vêe que-se-vê.

O olhar do observador metropolitano é,de fato, reflexivo e, portanto, não apenasparticipante (conforme a clássica coloca-ção etnográfica de observação participan-te), mas mais participante: a observaçãoobservante implica dirigir o olhar tanto parao interior do sujeito inserido nos fluxos dametrópole comunicacional, quanto para oexterior dele. Isso testemunha o método dacomunicação visual como fazer-se ver,envolvendo seja as novas sensibilidadesvisuais, perceptivas, oculares, seja asinformacionais, tecnológicas. Tranformar-se em corpo que vê e se vê produz o própriopanorama corpóreo interior/exterior:bodyscape.

Um olho que assume (incorpora) o mé-todo do fazer-se ver desenvolve uma poli-fonia do olhar. Este é o sentido profundo damultiperspectiva, de acordo com a qual apolifonia está no objeto e no método. Apolifonia dos olhares transita pelos nítidosconfins traçados entre esses dois momen-tos (objeto de busca e representação tex-tual) e os transforma em subjetividades quedialogam entre si, que conflituam, que cons-troem dissonâncias cognitivas. A metró-pole animiza-se em suas inúmeras subjeti-vidades e sua representação pluraliza-se nasformas expressivas mais descentralizadas(Canevacci, 2004, p. 4).

:dissolvência: lembranças & saudades:

Meu primeiro encontro com São Paulofoi com as Diretas já. Cheguei durante ocarnaval de 1984 numa cidade a mim des-conhecida, na qual a atividade de trabalhojá fora suspensa desde a Quinta-feira Gor-da. Bancos fechados, escritórios fechados,também o Instituto Italiano de Cultura, fe-

chado e – naturalmente – a Universidade.Tinha recebido dois convites: de Toninod’Angelo para realizar umas palestras so-bre Pasolini através do instituto e da gran-de filósofa Olgária Matos para ministrarum curso sobre a família, na USP. Ambosnão estavam. Felizmente consegui queTeresa, uma funcionária da Rua Frei Cane-ca – a qual terá meu eterno reconhecimen-to –, me desse uma chave para um flat namesma rua e alguns cruzeiros.

Sozinho e sem dinheiro (ainda não sa-bia que na época havia um câmbio parale-lo), sem falar português, comecei a andara esmo. Só que, ao contrário de Roma, quese entende caminhando, caminhar por SãoPaulo tem um significado de todo diferen-te, visto suas extraordinárias e inúmerasdimensões que ainda ignorava. De qual-quer forma, essa experiência inicial – ver-dadeiramente dolorosa: uma espécie derito de passagem… e de passeio – foi paramim extremamente útil e dela sinto muitasaudade.

Devido a meu escasso português, ima-ginei que em SP todos fossem de direita.De fato, a cidade estava cheia de faixas,banners, manifestos com a escrita Diretasjá que eu traduzi erroneamente (direta =direita) no sentido político do termo e ima-ginei que a cidade inteira tivesse adotado acor amarela porque queria imediatamenteum governo de direita, que no meu enten-der já existia, e ainda por cima, militar! Oque queriam de mais à direita esses paulis-tas! O equívoco foi resolvido pouco de-pois, quando encontrei Caio Graco Prado,o editor da Brasiliense que havia traduzidoum livro meu sem me avisar e a quem sem-pre me ligará eterna amizade, pois foi atra-vés dessa tradução que descobri o Brasil ea mim mesmo. Quando esteve em Romacom a mulher, acompanhei-o para comprarum capacete de moto próximo à Via Cavour,justamente o capacete que viria a tirar pou-cos minutos antes de atravessar aquelemaldito viaduto (pé de boi) onde sua motocapotou e ele morreu.

Depois da terça-feira de carnaval en-contrei Tonino D’Angelo. Era uma pessoaforte e passional. Situado à esquerda – coi-

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sa não fácil no Ministério do Exterior naItália – tinha grande experiência das cultu-ras latino-americanas de língua espanhola.Passava horas contando-me histórias – es-pecialmente da Colômbia – cujas persona-gens tresloucadas ele adorava. Era origi-nário da Basilicata, uma região do Sul daItália, na época extremamente pobre, tra-zia os cabelos brancos longos, sobre ascostas, e no escritório desenvolvia umaatividade frenética. Queria tornar conhe-cidas as diferentes Itálias daquela época enão a Itália dos cartões-postais, com todosos estereótipos que conhecemos. Falavaincessantemente e ouvir os outros era umsofrimento para ele. Depois de Caio, foiele quem me introduziu na que haveria dese tornar minha segunda cidade e minhaprimeira metrópole.

Em primeiro lugar levou-me ao Edifí-cio Itália, de cujo terraço vi, pela primeiravez, o incomensurável panorama, em suairredutível polifonia e fantasmagoria. Ave-nida Paulista, Frei Caneca, Rua Augusta,praça da República. Já conhecera detalha-damente a pé essa área que ligava o assimchamado centro à Paulista, pela Augusta. Ejustamente a Augusta tornou-se minha rua,a que aprendi a conhecer em seus microde-talhes, descobrindo, em particular, aquelemix de códigos para mim completamenteinédito e que antecipou a descoberta dossincretismos culturais.

Rua Augusta tornou-se para mim umlonguíssimo plano-seqüência que, do cine-ma, havia se estendido sobre essa rua igual-mente comprida, onde tudo se entrelaçavacom tudo, escolas primárias e prostituição,hotéis cinco estrelas e pequenas saunas co-loridas para clientes especiais. Comecei acompreender que pela rua só andava certaparte digamos “sociológica” da cidade.Nenhum de meus amigos paulistas teria ja-mais aceitado passear comigo a pé, de tarde,na Rua Augusta… Em particular, intriga-vam-me as diferenças e o fato de que essasdiferenças se tornassem cada vez mais frag-mentárias, vivendo uma ao lado ou dentroda outra e, muitas vezes, uma contra a outra.

Numa espécie de galeria sem saída quese abre na Rua Augusta, não longe de um

luxuoso cinema, há uma loja de objetos deculto afro-brasileiro. Todas as vezes queposso, dou um pulo lá para comprar algu-ma estatueta ou outras coisas. Uma dessasvezes, o dono, um negrão alto e doce, sor-riu-me e presenteou-me com dois “olhos-de-tigre” . Conservo-os até hoje, não porterem me dado sorte – conforme ele asse-gurava – mas pela doçura um pouco tristecom a qual ele os pousou sobre minha mão.

Do outro lado da Augusta existe outraloja que eu amo e que não posso deixar devisitar: chama-se Art-Índia e lá se vendemobjetos de artesanato indígena, alguns degrande beleza, outros mais do gosto dosrápidos turistas etnicamente corretos. Cer-tamente, a loja que se encontra no Museudo Índio no Rio de Janeiro é muito maisbonita e possui peças raras ou, de qualquerforma, difíceis de encontrar em outro lu-gar. No entanto, o fato de ter encontradodesde o primeiro ano aquela loja foi funda-mental para mim por diversos motivos:inclusive pelo fato paradoxal de um antro-pólogo ter descoberto as culturas nativasnuma loja e não em sua estada no campo!Situada num lado da Augusta que dá paraa República, a loja testemunhava que mes-mo a metrópole é permeável às influênciasdas culturas nativas. E não apenas turisti-camente. O patrimônio indígena é um bemprecioso que o Brasil inteiro ainda tem di-ficuldade de exprimir em sua plenitudepluralizante. Quem sabe somente a moda –esta moda que de São Paulo irradia em tan-tas partes do mundo com sensibilidade einovação – esta moda brasileira e em par-ticular paulistana, adquire muitas vezes jus-tamente os códigos nativos (a imensa va-riação dos grafismos geométricos indíge-nas) dentro do tecido dos estilistas, no cor-po das modelos e, cada vez mais freqüen-temente, até mesmo nas coreografias queconseguem fazer, sempre mais do que amoda, uma verdadeira performance ade-quada à sua metrópole.

Aí está: os desfiles paulistas de modasão a aplicação de como um dress-code –que entretece sincreticamente as muitascores-códigos-grafismos brasileiros – se ex-pressa ao longo de uma location per-

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formativa que se maquila segundo códigosafins às modelos. Bodyscape é cosmese quese faz cosmo.

O desgarramento, o deslocamento, aperda como ato criativo, a amnésia comoesquecimento ativo, e não-retórica do pas-sado que deve nos ameaçar feito um monu-mento de bronze enfiado na memória: to-dos foram conceitos experimentados nessemovimento e apenas sucessivamenteteorizados: conceitos decisivos para com-preender as coisas novas de um mundonovo. De outra forma, tudo o que é outro écolocado dentro das tradicionais gavetasinterpretativas (paradigmas) e assim pro-duz-se ignorância, etnocentrismo, autori-tarismo. SP era em parte semelhante e emparte diferente das cidades que já conheciamas, com certeza, não podia lhe aplicar umponto de vista externo (romano), pois nadateria compreendido. Tratava-se, portanto,de abandonar-se ao fluxo comunicacionalda metrópole, sem a angústia de dominartudo com esquemas vindos de fora. O pra-zer perturbador do deslocamento da per-cepção e do método senti-o, pela primeiravez, quando me afastei da Rua Augusta,por ter seguido a direção contrária, e me vina Brigadeiro.

Grande lição para uma Grande SãoPaulo!

:campo longo: panorâmica final:

O processo de metropolização do mun-do não tem uma mão única. Ao lado, contrae entretecido a ele há um processo inversode aldeização da metrópole. Se, por umlado, a antropologia urbana não se subtraiao desafio da mudança quanto à comunica-ção metropolitana, ao contrário, insere-seem suas inovações mais experimentais epolifônicas contra qualquer monologismometodológico ou representativo, por outro,uma etnografia atenta e apaixonada, reno-vada em sentido multivocal e sincrético,volta a mergulhar nos contextos nativos:nas aldeias indígenas. Descobre-se, então,que o anunciado catastrofismo quanto aodesaparecimento “triste” das culturas tro-

picais não aconteceu, assim como as subje-tividades nativas recusam sua museificação(auspiciada por complexos de culpa ou deinteresse disciplinar) dentro de espaçoscontrolados e isolados pelos processos dasdiferentes mudanças culturais. Como se taismudanças só pudessem pertencer a umaparte da humanidade (a “histórica” ) e,conseqüentemente, as culturas nativas ti-vessem que ser colocadas – por “tradição”– fora de qualquer história, delas mesmasou de outrem, contra a qual a antropologiahá tempo desceu em campo para afirmar airredutível pluralidade das “histórias” .

E então, também as culturas nativas,especialmente algumas suas subjetividades,aceitaram o desafio da mudança, através denovas e originais produções sincréticas.Dessa forma, esses produtos delas – maisdo que “tradicionais”, explicitamente mu-dados – ingressam nas metrópoles não ape-nas brasileiras, mas mundiais. Trata-se de

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um novo artesanato indígena, formas dearte nativa – tantas vezes ignoradas e atémesmo excluídas pelos teóricos de estéticaeurocêntricos – músicas étnicas, modifica-ções extraordinárias do corpo com tatua-gens, grafismos, incisões que transformamcada corpo em uma obra de arte, novospercursos de body-art privados dos váriosprimitivismos ou arquetipismos. Dentrodessas visões e expansões panoramáticas,navegam os jovens metropolitanos maisatentos e sensíveis aos modelos de alteri-dade, antagônicos aos valores dominantes,xenófilos nos comportamentos e nas esco-lhas produtivas.

As variegadas riquezas expressivas dosmundos étnicos podem invadir cada vezmais os espaços comunicativos das metró-poles, inserindo cunhas de aldeização; osestilos, as formas, as sugestões das aldeiaspenetram nos interstícios metropolitanos epraticam a construção de paradigmas

xenófilos. Não se trata mais de salvaguar-dar a tradição: como já está claro, em cadapressuposta tradição há elementos de ino-vação ou de “construção”. A tensão sin-crética e multivocal na comunicação étni-ca (aldeização) ocorre também nos territó-rios erroneamente ditos “avançados”: as ex-perimentações das linguagens. Ao mesmotempo, os nativos usam cada vez mais oscelulares –– muito úteis em contextos ondemuitas vezes falta a eletricidade – e ainternet para glocalizar conflitos e infor-mações, CD-roms para registrar seus ritu-ais, torcem por um time de futebol, sãoapaixonados por músicas mesmo metropo-litanas, usam o vídeo para se representar epara intercomunicar.

A nova antropologia radical procuraráfavorecer uma cada vez maior aldeizaçãodas metrópoles por meio dos instrumentospolifônicos dos novos sincretismos cultu-rais. O olhar etnográfico é oblíquo por serinquieto e instável: oscila explorando,conflitando e experimentando entre os con-gestionamentos sígnicos metropolitanos eos fluxos frágeis mas resistentes das al-deias. De tal modo, a metrópole – ou pelomenos algumas de suas partes – expande-se e constrói-se entre seus cimentos mó-veis e uma pluralidade de formas significa-tivas sincréticas.

:loop:

Com um sorriso irônico saio do “mini-mono”. Apercebo-me que as modificaçõesem meu corpomente tornaram-se diversifi-cadas graças a meu estar, a meu transitar, ameu fazer-me ver no interior de Sensorália.Ou será no exterior?… Reflito: por muitotempo se acreditou – seguindo uma abor-dagem filosófica baseada em critériosvitalísticos e objetivistas – que as desco-bertas tecnológicas não passassem de pró-teses que se acrescentam aos órgãos do serhumano, para favorecer operações que estenão estava em condições de realizar. Daísurgirem as teses curiosas de o telefone sera prótese do ouvido, o cinema, do olho, ocarro, das pernas e assim por diante, até aatual discussão sobre o PC e a inteligência

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artificial. O absurdo ou a ingenuidade des-sas posições é tão óbvia que não se entendecomo ainda possa ser professada. Nela émantida a pior das tradições, que – impre-cisamente – definirei como iluminista, se-gundo a qual, por um lado, haveria umanatureza constituída evolucionisticamenteno Homo sapiens; por outro, a cultura quese acresce a partir de um certo período.

Durante minha viagem metropolitana ecomunicacional compreendi definitiva-mente que, evidentemente, não é assim.Nenhuma dessas tecnologias se acrescentaa um órgão, deixando-o ontologicamenteintacto e separado do “restante”. O nexocorpo-tecnologia (tecnocorpo ou corpopós-orgânico) não se adapta a seu órgãode referência, na medida em que cada umdos sentidos encontra-se entretecido numadensa teia de aranha que o liga, se não atodos, a muitos outros. Ou melhor, o “cons-trói”, segundo ligações reticulares e flui-das. As perspectivas contemporâneasrumam para um mindful-body que adquirea mente-corpo – o corpo-cheio-de-mentes– como biocultural que não exclui, masinclui a tecnologia.

Assim, nada há de natural no olho. Eleparticipa dos processos inovadores difun-didos pela tecnocomunicação, sendo quenada, em seu ato de ver, permanece imutado.Não existe aqui (no binóculo ou na tela daTV) a prótese e acolá (na pupila), o olho.Os meus sistemas perceptivos, a minhasensibilidade do olhar, a minha arte de ver,a minha velocidade em decodificar afinam-se, modificam-se, desenvolvem-se, plura-lizam-se, aceleram-se segundo módulosque pertencem à experiência cotidiana, di-

versificada em cada cultura, sujeito, espa-ço. E os espaços interconexos através dametrópole comunicacional não começamnem terminam dentro do circuito da Gran-de São Paulo, mas se estendem em suaubiqüidade polifônica.

Em suma, os sentidos não são cinco:são infinitos – mesmo graças ao desgarra-mento no corpo mutóide de São Paulo.

:títulos em coda:

À memória de Caio Graco e de sua EditoraBrasiliense.

APPADURAI, A. “Disgiunzioni eDifferenze nell’Economia CulturaleGlobale”, in Featherstone (org.), La Cultu-ra Globale. Roma, Seam, 1996.AVATAR (ed. M. Canevacci). Rivista diAntropologia e Comunicazione. Roma,Meltemi, 2001-04.BAKHTIN, M. L’Autore e l’Eroe. TeoriaLetteraria e Scienze Umane. Turim,Einaudi, 1998.CANEVACCI, M. A Cidade Polifônica.Ensaio sobre a Antropologia da Comuni-cação Urbana. São Paulo, Studio Nobel,1993.________. Sincretismos. Uma Exploraçãodas Hibridações Culturais. São PauloStudio Nobel, 1996.––––––––. Antropologia da Comunicação.Rio de Janeiro, DpA, 2001.HEIM, M. www.mheim.comLÉVI-STRAUSS, C. Tristi Tropici. Milão,Il Saggiatore, 1960.MUSIL, R. L’Uomo Senza Qualità. Turim,Einaudi, 1996.