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SIMPÓSIO 9 – Narrativa literária contemporânea A releitura do mito de Narciso em “A fada Oriana”, de Sophia De Mello Breyner Andresen - Kamilla Kristina Sousa França Coelho (UFG) RESUMO: Este artigo se propõe a estudar a presença do mito de Narciso no conto A fada Oriana, de Sophia de Mello Breyner Andresen. Serão levadas em conta as imagens da água, da floresta, do poeta, da cidade, dentre outros arquétipos relevantes presentes no conto. Dessa forma, em muitos momentos serão lembrados Carl Gustav Jung, Gilbert Durand, Gaston Bachelard, além de outros estudiosos da obra andreseniana, como meio de enriquecer nosso estudo. Palavras-chave: Oriana; Mito de Narciso; Imaginário; arquétipos. Introdução Sophia de Mello Breyner Andresen, portuguesa nascida no Porto em 1919 e falecida em 2004, produziu contos, ensaios, poesias e literatura infantil. Além disso, também se destacou pela tradução de Paul Claudel, Shakespeare, Eurípedes e Dante, sendo que na tradução do “Purgatório”, deste último autor, foi condecorada pelo governo italiano. Dentre essas variadas tessituras, o tema que selecionamos foi a releitura do mito de Narciso no livro “A fada Oriana”. Descrevendo o cotidiano de uma fada exemplar, Andresen delineia o deslumbre que a alma pura dessa personagem sente ao se deparar consigo mesma. Veremos que o pleno conhecimento (a plena individuação, a chegada ao mais profundo do self) poderia causar a morte ou desnortear o indivíduo. Ancoraremos nossos estudos nas teorias de Mircea Eliade sobre o sagrado, na Teoria do Imaginário de Gilbert Durand e nos conceitos de arquétipo e inconsciente coletivo de Carl Gustav Jung. Concluiremos, após uma análise do conto, que ao revisitar mitos gregos, Sophia Andresen busca explicações para o mundo contemporâneo, que se nos apresenta dividido, cheio de mentiras e injustiças. Esse retorno ao primordial, ao Paraíso Perdido, à floresta de Oriana no início do conto, possibilitaria uma volta à essência das coisas, um retorno à verdade e a pureza presentes in illo tempore. Percebemos – por meio da leitura dos poemas e, em particular, pela análise desse conto – que a organização do caos, a reescritura desse mundo primordial, só seria possível por uma relação saudável do homem com Deus e com a natureza. Somente a natureza e o humano (o horizontal) poderiam levá-la ao ascensional e numinoso (ou a essência de tudo), ou seja, a verticalidade e horizontalidade unidas formariam a Cruz da ressurreição. Por isso, a obra de Andresen é invadida pela flora, pelos animais, e pelos quatro elementos. A natureza esconde o passado, é moradia de fadas (como na obra A fada Oriana), é um ambiente de segredos e revelações (A floresta), e é o espaço de pureza. Enfim, Sophia Andresen entende a literatura, e cada objeto mais simples da natureza, como um caminho para o conhecimento de si mesma, do outro e do cerne primeiro de todas as coisas. A cidade, a floresta e as inquietações revividas pelo mito de Narciso. Sophia de Mello Breyner Andresen publica seu primeiro livro, Poesia, em 1945. Em 1964, recebeu o Grande Prêmio de Poesia da Sociedade Portuguesa de escritores, por Livro Sexto. Além de uma dezena de outros, também merece destaque o Prêmio Camões, em 1999, sendo que ela foi a primeira mulher portuguesa a recebê-lo. Após alguns anos dedicados à poesia, inicia a produção de contos “infantis”. Em um depoimento publicado em 1986, ela

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SIMPÓSIO 9 – Narrativa literária contemporânea

A releitura do mito de Narciso em “A fada Oriana”, de Sophia De Mello Breyner Andresen - Kamilla Kristina Sousa França Coelho (UFG)

RESUMO: Este artigo se propõe a estudar a presença do mito de Narciso no conto A fada Oriana, de Sophia de Mello Breyner Andresen. Serão levadas em conta as imagens da água, da floresta, do poeta, da cidade, dentre outros arquétipos relevantes presentes no conto. Dessa forma, em muitos momentos serão lembrados Carl Gustav Jung, Gilbert Durand, Gaston Bachelard, além de outros estudiosos da obra andreseniana, como meio de enriquecer nosso estudo. Palavras-chave: Oriana; Mito de Narciso; Imaginário; arquétipos. Introdução

Sophia de Mello Breyner Andresen, portuguesa nascida no Porto em 1919 e falecida em 2004, produziu contos, ensaios, poesias e literatura infantil. Além disso, também se destacou pela tradução de Paul Claudel, Shakespeare, Eurípedes e Dante, sendo que na tradução do “Purgatório”, deste último autor, foi condecorada pelo governo italiano. Dentre essas variadas tessituras, o tema que selecionamos foi a releitura do mito de Narciso no livro “A fada Oriana”. Descrevendo o cotidiano de uma fada exemplar, Andresen delineia o deslumbre que a alma pura dessa personagem sente ao se deparar consigo mesma.

Veremos que o pleno conhecimento (a plena individuação, a chegada ao mais profundo do self) poderia causar a morte ou desnortear o indivíduo. Ancoraremos nossos estudos nas teorias de Mircea Eliade sobre o sagrado, na Teoria do Imaginário de Gilbert Durand e nos conceitos de arquétipo e inconsciente coletivo de Carl Gustav Jung. Concluiremos, após uma análise do conto, que ao revisitar mitos gregos, Sophia Andresen busca explicações para o mundo contemporâneo, que se nos apresenta dividido, cheio de mentiras e injustiças. Esse retorno ao primordial, ao Paraíso Perdido, à floresta de Oriana no início do conto, possibilitaria uma volta à essência das coisas, um retorno à verdade e a pureza presentes in illo tempore.

Percebemos – por meio da leitura dos poemas e, em particular, pela análise desse conto – que a organização do caos, a reescritura desse mundo primordial, só seria possível por uma relação saudável do homem com Deus e com a natureza. Somente a natureza e o humano (o horizontal) poderiam levá-la ao ascensional e numinoso (ou a essência de tudo), ou seja, a verticalidade e horizontalidade unidas formariam a Cruz da ressurreição. Por isso, a obra de Andresen é invadida pela flora, pelos animais, e pelos quatro elementos. A natureza esconde o passado, é moradia de fadas (como na obra A fada Oriana), é um ambiente de segredos e revelações (A floresta), e é o espaço de pureza. Enfim, Sophia Andresen entende a literatura, e cada objeto mais simples da natureza, como um caminho para o conhecimento de si mesma, do outro e do cerne primeiro de todas as coisas. A cidade, a floresta e as inquietações revividas pelo mito de Narciso.

Sophia de Mello Breyner Andresen publica seu primeiro livro, Poesia, em 1945. Em 1964, recebeu o Grande Prêmio de Poesia da Sociedade Portuguesa de escritores, por Livro Sexto. Além de uma dezena de outros, também merece destaque o Prêmio Camões, em 1999, sendo que ela foi a primeira mulher portuguesa a recebê-lo. Após alguns anos dedicados à poesia, inicia a produção de contos “infantis”. Em um depoimento publicado em 1986, ela

declara que escreveu contos infantis quando, nas décadas de 40 e 50, seus filhos tiveram sarampo. Assim ela diz:

Mandei comprar alguns livros que tentei ler em voz alta. Mas não suportei a pieguice da linguagem nem a sentimentalidade da “mensagem”: uma criança é uma criança, não é um pateta. Atirei os livros fora e resolvi inventar. Procurei a memória daquilo que tinha fascinado a minha própria infância. (...) Nas minhas histórias para crianças quase tudo é escrito a partir dos lugares da minha infância. (SOARES, 1986, p.19)

José António Gomes (2006) ratifica que a ligação da poeta com a cidade do Porto está

relembrada nas quintas, florestas e mares dos contos. A Quinta do Campo Alegre – hoje o Jardim Botânico do Porto – “e [a] Praia da Granja, a que A Menina do Mar veio conferir uma certa auréola mítica” – são lembranças não somente da biografia da autora, mas imagens que representam arquétipos universais da floresta e do mar.

No conto A fada Oriana, Sophia de Mello relata a vivência milagrosa em uma floresta. A fada agia em favor de todos os moradores e era a única companheira do poeta. Mas, após descobrir-se no espelho das águas de um lago, vai – aos poucos – deixando de ajudar as pessoas da floresta. Até o momento em que todos, sentindo-se desamparados se mudam para a cidade. E diante desta situação, Oriana, determinada a recuperar suas asas e sua magia, luta para trazer todos novamente à floresta e, assim, poder retornar ao momento em que viviam em um relacionamento mais verdadeiro e puro com a natureza.

Entretanto, vejamos – mais demoradamente – quão rica se torna essa narrativa em seus símbolos e arquétipos. Fada Oriana inicia o caminho para o autoconhecimento e para os cantos mais escuros de sua essência, e isso se dá no espelho das águas. Ao se deparar consigo mesma, distrai-se e a cada dia passa a se demorar um pouco mais na beira do lago.

Pensando no simbolismo do lago, recordamos alguns estudiosos do Imaginário. Exatamente como aconteceu com Oriana diante do lago, Gilbert Durand afirma que “a água, além de bebida, foi o primeiro espelho dormente e sombrio.” (DURAND, 2002, p.95). Com isso, essa água é ambígua e contraditória, já que ela abarca dois mundos: o antigo e o contemporâneo ao sujeito lírico. Ela, então, permite a vivência de todos em seu espaço, é abrangente, pois é ardente e fria ao mesmo tempo.

Gaston Bachelard apregoa que água pode ter variados significados. Ela pode ser vida quando límpida e clara, mas também pode ser morte – e esconder criaturas assustadoras – quando negra e tenebrosa. Sendo límpida, podemos recordar do significado da água durante o batismo. Ali ela simboliza renovo, renascimento, vida e esperança. Quando tenebrosa, lembramos os terríveis monstros que imergem do fundo do lago ou dos rios em contos e histórias universais. Por conseguinte, “A água, agrupando as imagens, dissolvendo as substâncias, ajuda a imaginação em sua tarefa de desobjetivação, em sua tarefa de assimilação.” (BACHELARD, 1997, p.13). Esse líquido pode ser a representação das complexidades e as contradições humanas. O conhecer a si mesmo, que envolve assombro e admiração (assim como em Narciso), poderia ser comparado ao mais secreto e profundo espaço do lago, oceano ou rio. Logo, “Desaparecer na água profunda ou desaparecer num horizonte longínquo, associar-se à profundidade ou à infinidade, tal é o destino humano que extrai sua imagem do destino das águas.” (BACHELARD, 1997, p.14). A peregrinação para o autoconhecimento, para a pequena fada Oriana, iniciou-se na beira desse arquétipo tão complexo e misterioso..

A água é um convite suave e brando, mas também forte e impulsivo. Ainda podemos recorrer a Bachelard (1997, p.30) e às suas relevantes considerações sobre o simbolismo do

lago. Para ele, o lago é um grande olho tranquilo, pois ele recebe toda a luz e com ela faz um mundo. A água dormente nos detém em suas margens, nos hipnotiza, nos transporta para o passado, para as profundezas misteriosas e para o mais denso de nós mesmos.

Gustav Jung (2007) alega que a água é o símbolo mais comum do inconsciente. Mas o conhecer nas águas pode à morte. Édipo ou Narciso são exemplos de que a plena verdade, a revelação em sua completude, leva à derrelição e ao infortúnio. Oriana – depois dessa experiência do conhecer-se por meio do espelho das águas – vive um período de adversidades, que poderíamos nomear metaforicamente de morte. Ela perde a sua magia, suas asas, seu poder e se vê sozinha na floresta.

O grande colaborador para que tais coisas acontecessem foi o peixe. Em um caminho tortuoso para a descoberta de si mesma, Oriana se esquece de socorrer aos outros. Ao ser repreendida por uma fada superiora, ela explica: “O peixe encheu-me de vaidade com os seus elogios. Olhei tanto para mim que me esqueci de tudo.” (ANDRESEN, 19[--], p.42). O peixe, assim como todo símbolo, pode ser vida e morte. Esse animal que vive em águas profundas pode ter sentidos opostos. O símbolo zodiacal de Peixes são dois peixes nadando em situações opostas, em que um representa o mal e outro o bem. Frente essa ambiguidade, Gustav Jung ainda completa: “peixe e serpente são ao mesmo tempo atributos simbólicos de Cristo e do demônio!” (JUNG, 2007, p.365).

O estudioso Carl Gustav Jung (1976, p.111) afirma que Leviatã seria um ser semelhante ao peixe e, por conseguinte, primitivo e de sangue frio, habitando as profundezas do Oceano. Além disso, ele apregoa que o peixe tirado do fundo tem uma ligação misteriosa com Leviatã: é a isca com que se atrai e se pesca Leviatã. Aqui destacamos o viés destruidor e maligno do peixe, já que este animal é quem ludibria, mente e segura Oriana na margem do lago. Carl Jung (1976, p.143), Aion: estudos sobre o simbolismo do si-mesmo, explica que a margem do rio pode representar o limiar do inconsciente, e que o ato de pescar seria uma tentativa intuitiva de fisgar ou apreender os conteúdos (peixes) inconscientes.

Este lago estava relativamente perto da cidade, mas encontrava-se protegido pelo bosque, guardado assim das intervenções da civilização. O arquétipo da floresta escura também é ressaltado por Jung como a imagem do inconsciente. Maria Luísa Sarmento de Matos (1993) defende que, em A fada Oriana, a floresta é o espaço da transformação onde se efetiva a provação da heroína. Matos (p.33) também confirma que o espelho seria um “operador mágico” que revelaria os conflitos do ‘eu’.

Essa mata escura, reveladora do inconsciente da fada, dá-se para Oriana quando os moradores do bosque se mudam para a cidade e quando ela se percebe sozinha em uma mata triste e sem vida. Tentando trazê-los de volta à floresta, depara-se com a cidade: “As ruas estavam cheias de gente e Oriana sentou-se muito perdida e muito tonta no meio de tantas casas, de tanto barulho, de tanta agitação.”, as pessoas passavam “sem sequer a ver.” (ANDRESEN, 19 [--], p.54). Ao reencontrar seus queridos, Oriana os encontra magros, com fome, desiludidos, tristes, desempregados e sem esperança. A cidade se resumiu, para ela, em desumanização, infortúnios e descaso com o próximo.

Maria Luísa Matos apregoa que a “cidade é, para Sophia, o local de vivência do tempo dividido.” (MATOS, 1993, p.37). É um espaço de perdição, de desencontro, de caos e um “topos de degradação”. Dentre as muitas pessoas que Oriana deixa de visitar na floresta, está o poeta. Sentindo a falta da sua amiga fada, o escritor exclama: “O mundo está desencantado. Quero ir para a cidade e quero tornar-me igual aos outros homens. Quero tornar-me igual aos homens que não acreditam em encantos e que não escrevem versos.” (ANDRESEN, 19[--], p.53). Esse abandono do paraíso nos remete à saída de Eva e Adão do Éden. Um caminhar rumo ao desconhecido em que eles têm a certeza de que não estão debaixo da proteção sagrada de Deus e da natureza.

Hoje vivemos “um ‘tempo dividido’ (expressão que serve precisamente de título a um dos volumes poéticos), um tempo estilhaçado, tempo de Fúrias que se tornaram as divindades maléficas do nosso cotidiano.” (ROCHA, 1994, p.176). Francisco Lima – estudioso a obra de Andresen – também defende que “o mundo dos homens divididos é o mundo do habitat, e a função do poeta é perseguir o mundo do reino, o mundo da unidade harmoniosa.” (LIMA, 1986, p.82). Oriana busca a reconstrução dessa unidade ao insistir para que todos voltem à floresta.

D. Antônio Ferreira Gomes (1970, p.LIII), no prefácio de Contos exemplares de Sophia de Mello, esclarece que, para a escritora, a comunhão humana só é possível com Deus e que ela se faz em boa literatura. Gomes ainda explana que essa comunicabilidade com o transcendente é mesmo essencial à visão poética, e que a tensão vertical deve integrar-se na horizontal e vice-versa. Dessa forma, somente a natureza, o humano (o horizontal) poderia levá-la ao ascensional e numinoso, ou seja, a verticalidade e horizontalidade unidas formariam a Cruz da ressurreição. Por isso, a obra de Andresen é invadida pela natureza, pelos animais, e por todos os quatro elementos naturais. A natureza esconde o passado, é moradia de fadas (como na obra A fada Oriana), é um ambiente de segredos e revelações (A floresta), e é o espaço de pureza. E que, por isso, poderia refletir a face de Deus.

Em um poema de Mar novo, o sujeito lírico descreve um mundo semelhante ao encontrado por Oriana, sem esperança:

Este é o tempo Da selva mais obscura Até o ar azul se tornou grades E a luz do sol se tornou impura Esta é a noite Densa de chacais Pesada de amargura Este é o tempo em que os homens renunciam (ANDRESEN, 2011, p.338)

Nota-se que nem mesmo a claridade do dia vence a maldade e impureza dos homens. O tempo da persona lírica é como a selva mais escura. É um tempo de medo e que não apresenta saída para as necessidades mais puras do indivíduo. Em meio à escuridão e à desilusão, imagens de um futuro melhor e mais verdadeiro não se concretizam como promessas vindouras: Até o ar azul se tornou grades/ E a luz do sol se tornou impura. Tendo o dia como terrível, como uma selva obscura, a noite se apresenta ainda mais assustadora. Nela vivem os chacais, a amargura dos homens, a falta de futuro e a morte. Nesse tempo, os homens renunciam.

Giorgio Agambem, estudando as condições da poesia contemporânea, explica que o poeta da contemporaneidade é aquele que não coincide com o seu tempo, que não se adequada a ele. Mesmo sendo capaz de perceber e entender melhor do que outros, ele se dissocia e se sente anacrônico daquela realidade. Ele adere ao próprio tempo “e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias” (AGAMBEM, 2009, p.59). Esse estudioso ainda acrescenta: “ser contemporâneo é, antes de tudo, uma questão de coragem: porque significa ser capaz não apenas de manter fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber nesse escuro uma luz” (AGAMBEM, 2009, p.65). Sophia de Mello observa o seu tempo, apresenta-o ao leitor, mas também lhe mostra uma saída e esperança por meio da arte, da poesia, da natureza e de Deus.

De forma semelhante, no poema “Data”, em Livro Sexto, o eu-lírico apresenta um mundo contaminado e corrompido.

Tempo de solidão e de incerteza Tempo de medo e tempo de traição Tempo de injustiça e de vileza Tempo de negação Tempo de covardia e tempo de ira Tempo de mascarada e de mentira Tempo que mata quem o denuncia Tempo de escravidão Tempo dos coniventes sem cadastro Tempo de silêncio e de mordaça Tempo onde o sangue não tem rastro Tempo da ameaça (ANDRESEN, 2011, p.433)

A persona lírica reconhece um tempo de tirania e ditadura, momento em que o ser humano sente medo, se sente escravo. Vive-se um período de ameaça de morte, em que não pode denunciar; um momento em que assassinos não são punidos. Nesse tempo, o eu-lírico não se sente completo; percebendo uma necessidade de retorno à estação mais pura, à uma convivência verdadeira com a natureza e à uma relação de amor e cuidados com Deus. Sua poesia seria o caminho para esse regresso.

Sophia de Mello possui dois poemas intitulados “Exílio”. Podemos ressaltar a busca que o indivíduo engendra para se encontrar nessa realidade ambígua e múltipla. O primeiro dos poemas abaixo está em Livro Sexto, já o segundo em O nome das coisas. No primeiro tecido poético, observamos que a luz e a claridade não se concretizam em esperança para esse eu-lírico sufocado pelo silêncio, pelo medo e pela renúncia. Diante disso, ele não nomeia esse espaço como seu, essa pátria não poderia ser sua, nada ali requer a sua participação, opinião ou ajuda. O mar ou os deuses (imagens ascensionais, as igrejas ou Deus) são exílios, refúgios em que a persona lírica poderia se sentir inteira e completa.

Quando a pátria que temos não a temos Perdida por silêncio e por renúncia Até a voz do mar se torna exílio E a luz que nos rodeia é como grades (ANDRESEN, 2011, p.432) Exilamos os deuses e fomos Exilados da nossa inteireza (ANDRESEN, 2011, p.642)

Até aqui, vimos uma recorrência de algumas palavras para descrever o tempo e a

nação do sujeito lírico. Destacamos: silêncio, mordaça, sangue, mata, medo, solidão, renúncia, grades, obscuro, amargura, errado; dentre outras. Enfim, esse é um tempo de desesperança, de despotismo e de morte (fim da liberdade, da vida, do orgulho pelo país). No poema “Tempo de não”, situado no livro Ilhas, a persona lírica expõe sua visão diante de uma cidade cheia de calamidades:

Exausta fujo as arenas do puro intolerável Os deuses da destruição sentaram-se ao meu lado A cidade onde habito é rica de desastres Embora exista a praia lisa que sonhei (ANDRESEN, 2011, p.715)

O eu-lírico classifica as situações que observa no mundo como intoleráveis. Seria como se os seres humanos vivessem em um mundo de mentiras, completamente inadmissível. Assim, a persona lírica brada: “Exausta fujo as arenas do puro intolerável”. Ela se encontra “exausta” e foge das “arenas”, do teatro, da encenação e da falta de essência do ambiente em que vive. Em choque, ela se distancia do “puro intolerável”, do inadmissível, do confuso e inaceitável mundo de enganação.

Ao observar as atrocidades do mundo em que vive, a persona lírica revela que: “Os deuses da destruição sentaram-se ao meu lado”. Para explorar essa afirmação sobre os deuses da destruição, podemos nos recordar de Shiva, que para o hinduísmo, é a deusa do aniquilamento. Mas para esse povo, esse ritual de destruição é também uma renovação e reorganização do caos, um abandono do incorreto e desordenado. Dentre da mitologia cristã, também percebemos essa dicotomia, já que, em muitos momentos nos é afirmado que são os demônios que destroem e levam os homens à perdição e ao erro. Porém, em outras situações bíblicas foi Deus que originou o fim de um povo, como em Sodoma e Gomorra, ou como toda a nação da época de Noé.

No poema andreseniano, notamos que a praia assume o papel regenerador e organizador do caos criado pelos homens. Deus, criando o livre-arbítrio, deu origem à homens destrutivos e mentirosos, mas, em contraposição, ofereceu jardins, mares, pedras e horizontes, para que ali o homem se organizasse e, talvez, encontrasse e entendesse a si mesmo e a Deidade. A persona lírica exclama: “A cidade onde habito é rica de desastres/ Embora exista a praia lisa que sonhei”.

Ida Alves, estudando a poesia portuguesa contemporânea, observa que os poetas desse tempo “estiveram à frente em momentos diversos de crise, especialmente os vivenciados ao longo do século XIX e sob o regime salazarista posterior.” (ALVES, 2006, p.217). E recordando também a obra de Sophia Andresen, a estudiosa ainda destaca que esses escritores frequentemente discutem acerca da escrita da poesia. Muitos desses artistas creem que a arte poética poderia possibilitar a abertura de novos horizontes, uma esperança de viver um tempo perfeito, como no Jardim Perdido. Assim, “compartilhando a angustiada vivência de um tempo individual e coletivamente marcado pela disforia, pela melancolia e pela descrença, [eles recorrem] a ação da memória pessoal e cultural para enfrentar a finitude e a precariedade.” (ALVES, 2006, p.218).

Em um outro poema andreseniano, sem título, encontrado na reunião Poemas dispersos, o sujeito lírico reconhece um desejo de retorno à sua completude:

Quem me roubou o tempo que era um quem me roubou o tempo que era meu o tempo todo inteiro que sorria onde o meu Eu foi mais limpo e verdadeiro e onde por si mesmo o poema se escrevia (ANDRESEN, 2011, p.882)

Datada em Setembro de 2001, essa poesia nos remete ao tempo primordial, ao illud tempus, tempo em que Deus governava, em que Oriana estava ajudando a todos, momento de pureza

em que vivíamos a justiça, a paz, a integridade e a inteireza. O poema, uma representação mais verdadeira do poeta, nascia por si mesmo, era reflexo de um Eu mais limpo e verdadeiro.

A poesia de Sophia de Mello revela um homem dividido. Como se o eu-lírico lamentasse o momento em que a pureza inicial do Éden foi desperdiçada, ou a hora em que o andrógino foi separado de sua completude. Esse tempo era pleno, completo: “Quem me roubou o tempo que era um”. Esse tempo era um só, são existia a separação de tempo sagrado e tempo profano, tão cara a Mircea Eliade, em O profano e o sagrado. Todas as atitudes do homem eram integradas à natureza, aos deuses e aos outros indivíduos. Eram um espaço e um tempo sagrados, um momento em que o homem buscava imitar Deus. Reconstruindo o cosmos, os indivíduos reviviam eventos do momento primordial da criação.

Maria Ester Maciel (1995, p.214), estudiosa da modernidade, afirma que seus poetas promovem uma ruptura na antítese entre passado e presente, buscando com isso o tempo primordial. Para tanto, esses escritores procuram o “tempo da poesia”, que “é pelo poeta associado ao tempo circular da origem”.

Esse é o percurso que Sophia de Mello deseja refazer por meio de sua literatura. Uma viagem de volta ao interior misterioso, puro e verdadeiro da floresta e, com isso, uma volta ao período onde não havia divisão entre tempo e espaço sagrado e profano. Tudo o que se vive nesse ambiente primeiro é sagrado, é único e rememora o tempo da criação. Após seu arrependimento, Oriana busca seus queridos na cidade. E, pelo acúmulo de boas ações, a fada recupera suas asas e sua varinha de condão. Sendo esse o percurso final de sua experiência iniciática, em que apreende uma percepção profunda de si mesma e do mundo, Oriana está, então, pronta para buscar o poeta. E, com ele, realiza o retorno completo à floresta, ao ventre protegido da natureza; completando com isso o círculo iniciático do autoconhecimento.

Sara Reis da Silva, estudando o conto em questão, comprova que a cidade é o caminho para a aniquilação do eu. E, após essa experiência de incompletude no espaço urbanizado, o poeta e Oriana retornam aliviados para o centro do conto. Dessa forma, “O retorno das personagens ao espaço inicial e original, o auto-reconhecimento de Oriana e a ‘expulsão do mal’, bem como essa espécie de reordenamento do caos em favor do Outro e da harmonia comum redundam, portanto, numa circularidade conclusiva” (SILVA, 20[--], p.3-4).

A expulsão do mal lhe é recompensada pelo retorno de suas asas. A imagem das asas nos recorda o arquétipo elevado do pássaro. Esse animal, em muitas culturas ele foi considerado um intermediário entre os homens e os deuses. Para a cultura cristã, o Espírito Santo é, muitas vezes, representado como uma pomba. Não estaria considerando-se a pequenez desse animal, mas a sua possibilidade de visitar as pessoas de maneira mais íntima e próxima. As asas são “imagens da virtude do Espírito Santo” (DANIÉLOU, 1993, p.77). Conforme Gustav Jung (2007), o pássaro, como ser aéreo, é um símbolo do espírito. Ele representaria a transformação de sua própria imagem ascensional e espiritual em uma versão mais característica para o ser feminino, isto é, mais terrena. Ainda acerca da figura do pássaro, Gaston Bachelard assinala, em O ar e os sonhos (2001), que, no inconsciente, todas as variadas impressões de ligeireza, vivacidade, juventude e pureza, teriam trocado seu valor simbólico. Posteriormente, a asa só teria nomeado o símbolo, e o pássaro veio em último lugar dando ser ao símbolo.

Conseguir as asas de novo seria elevar-se, transcender-se. Por isso, Oriana necessitava delas para terminar a sua viagem iniciática rumo ao autoconhecimento. Carlos Ceia, estudioso da obra de Andresen, explica que na poeta “As viagens arquetípicas são descrita, quase invariavelmente, como viagens iniciáticas que visam aprender na natureza a harmonia que parece faltar a quem viaja.” (CEIA, 1996, p.39). Sendo assim, estaríamos diante de uma poeta caminhante, sendo sua atividade preferida é a de “procurar uma via de reconciliação entre os opostos que vivem no caos primitivo.” (CEIA, 1996, p.39). Essa viagem a levaria ao centro do mundo, ao self, ao si-mesmo, à organização do caos em cosmos.

Essa trajetória circular da viagem e retorno à floresta também se faz presente em “O cavaleiro da Dinamarca”. Esse homem parte em peregrinação para a Terra Santa e promete voltar no segundo Natal após aquele. O narrador enfatiza: “Naquele tempo as viagem eram longas, perigosas e difíceis, e ir da Dinamarca à Palestina era uma grande aventura.” (ANDRESEN, 1986, p.11). Como toda viagem iniciática, o herói pode não suportar o autoconhecimento, pode não ter sucesso nos inúmeros obstáculos que encontrar pelo caminho. Por isso, “a mulher do Cavaleiro ficou aflita e inquieta com a notícia. Mas não tentou convencer o marido a ficar, pois ninguém deve impedir um peregrino de partir.” (ANDRESEN, 1986, p.11-2). Esse é um ritual que o cavaleiro e a fada Oriana precisavam passar para que desejasse ardentemente a volta ao aconchego do lar e da floresta.

Ainda destacaremos dois momentos em que durante esse percurso, o cavaleiro valoriza a paz encontrada nos ambientes sagrados. Junto aos frades, o viajante observa: “E das colunas, do murmúrio da fonte, das flores, das pinturas e das aves erguia-se uma grande paz como se os homens, os animais, as plantas e as pedras tivessem encontrado um reino de aliança e de amor.” (ANDRESEN, 1986, p.45) e já quase chegando em casa – em uma noite escura e fria – ele “Rezou a oração dos Anjos, o grande grito de alegria, de confiança e de aliança que numa noite antiquíssima tinha atravessado o céu transparente da Judeia.” (ANDRESEN, 1986, p.70). Observa-se que, em um primeiro momento, este homem admira a aliança e a perfeita convivência de paz existente entre os homens, plantas e animais. Mas, é no momento pessoal, em que necessita de uma orientação, que o cavaleiro vivencia a verdadeira aliança com o sagrado. E essa aliança foi firmada como na mais antiga noite em que Jesus nasceu.

Enfim, essa visita à cidade se torna necessária para que o herói desse ritual iniciático (o eu-lírico, Oriana ou o Cavaleiro) almeje com todas as forças o retorno para o centro de seu mundo pessoal. A retomada desses contos de Andresen reafirma conceitos tão caros a poeta. A aliança com a natureza e com o sagrado, a valorização do poeta e a contraposição entre cidade e natureza são conceitos que se reafirmarão – por meio de diferentes imagens – repetidamente na obra literária de Sophia de Mello. Considerações finais A fada Oriana é um conto “infantil”, de Sophia de Mello Breyner Andresen, em que muitos dos arquétipos universais são retrabalhados. A água, o bosque, o peixe, o lago, a viagem iniciática do herói e o retorno ao Paraíso perdido figuram na obra enriquecendo conceitos tão caros à escritora, como: bondade, amor ao próximo, egoísmo, a valorização da natureza e um susto diante do caos encontrado na cidade. Tais temas repetem-se em outros tecidos literários de Andresen. Seus contos e poemas revelam seus questionamentos sobre a completude do homem e sobre os caminhos para a plenitude humana, por meio do sagrado (que está na natureza e no transcendente). Dessa forma, o estudo deste conto, “comunica” com muitas imagens e arquétipos universais, podendo assim apontar à criança – e também aos leitores adultos, claro – uma saída para a tristeza, egoísmo e mentira encontrados na cidade.

Referências bibliográficas AGAMBEM, Giorgio. O que é o contemporâneo? In: _____. O que é o contemporâneo? e

outros ensaios. Tradutor Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009. p.55-73

ALVES, Ida. Os poetas sem qualidades na poesia portuguesa recente. In: PEDROSA, Celia; CAMARGO, Maria Lucia de Barros (Org.). Poéticas do olhar: e outras leituras de poesia. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. p.217-227. 919p.

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Espaços de solidão, morte e encantamento no conto O voo da madrugada de Sérgio Sant’Anna - Karin Bakke de Araújo (Doutoranda UPM)

RESUMO: Conto O voo da madrugada de Sérgio Sant’Anna analisado centralmente sob a perspectiva da utilização do espaço como ferramenta de recriação do mundo contendo o potencial de descortino da essência da fabulação. Apoio teórico principal: Gaston Bachelard. Palavras-chave: Espaço; Gaston Bachelard; Conto brasileiro contemporâneo. O conto O voo da madrugada foi publicado no livro de mesmo título em 2003. A obra traz outros dezesseis textos do contista, poeta, dramaturgo e romancista carioca Sérgio Sant’Anna (1941) e foi vencedora do Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira. Considerando que o espaço no texto literário pode ser utilizado como uma ferramenta de recriação do mundo contendo o potencial de descortino da essência da fabulação, é nosso propósito analisar o conto, especialmente, a partir da função estruturante e reveladora desse instrumento, sem ignorar outras categorias construtivas conjugadas com essa abordagem central. Consideraremos a sua importância na composição da atmosfera social e psicológica da narrativa. Para tanto, teremos como apoio teórico principal os conceitos sobre a poética do espaço de Gaston Bachelard (1884-1962). A obra tem como protagonista sem nome um auditor de um laboratório farmacêutico que, dominado pela solidão e pelo desassossego, acaba embarcando num voo noturno especial destinado a transportar os mortos vitimados por um acidente aéreo e seus familiares. Esse voo prolonga-se madrugada adentro e, cercado de mortos, a personagem tem o momento de encantamento supremo de sua vida, representado por meio de uma fábula constituída da tensão do herói com ele mesmo, reproduzida num monólogo dirigido ao leitor. Já no primeiro parágrafo do conto, o narrador-protagonista deixa registrado que partilhará com o leitor o momento mais marcante de sua existência: “Se alguma coisa digna de registro aconteceu em minha vida dura e insípida foi estar entre os passageiros daquele voo extra, de Boa Vista para São Paulo”. (SANT’ANNA, 2003, p. 9). As instalações do avião durante aquele voo seriam o espaço privilegiado de sua vida, ao lado de outros tantos, também importantes, mesmo que rotineiros e insípidos ou até mesmo opressivos e insuportáveis. Essa voz enunciativa pode ser compreendida conforme a classifica Norman Friedman (2002, p. 177): “O narrador-protagonista [...] encontra-se quase que inteiramente limitado a seus próprios pensamentos, sentimentos e percepções. De maneira semelhante, o ângulo de visão é aquele do centro fixo”. O texto é narrado em primeira pessoa e os dados nos são transmitidos por meio das impressões do narrador, inclusive a descrição dos espaços entranhados na narrativa e que representarão um espelho dos seus sentimentos e serão, também, fonte potencial de significados. A trama chega ao leitor na forma em que é percebida pelo narrador em reflexão profunda sobre sua existência, que ele deixa registrada em forma de escrita. O autor, ao eleger o recurso espacial como arcabouço do enredo, põe em prática a ideia de que o “espaço constitui uma das mais importantes categorias da narrativa, não só pelas articulações funcionais que estabelece com as categorias restantes, mas também pelas incidências semânticas que o caracterizam”. (REIS; LOPES, 1988, p. 204). De fato, no conto ora analisado, ele é o fator de sustentação da trajetória da personagem. 1. Espaço de solidão opressiva

Numa noite, véspera do dia previsto para voltar para casa de uma viagem de trabalho, um quarto de hotel barato em frente a uma boate que fazia chegar até os ouvidos do narrador uma música “para se dançar em discotecas vagabundas” é o refúgio da personagem insone que, nesse seu canto temporário do mundo, transmite-nos devaneios sobre seus sofrimentos, tão agudos que ele prefere “não materializá-los em peças escritas”. Afastada a cortina da janela, aquele refúgio é invadido pelo seu entorno, uma “zona de tráfico, contrabando e prostituição”. (SANT’ANNA, 2003, p. 9, 10). Depois dessa visão de sua janela, aquele espaço de aconchego, representado pelo quarto do hotel, impregnado da solidão e do sofrimento do narrador, acaba sendo o catalisador de sua confissão ao leitor sobre a sua grande experiência e desencanto com prostitutas, levando-o para a rua e para uma inquietante desilusão: naquela região de prostituição lhe é oferecida por um gigolô uma prostituta-menina. Por estar diante de uma realidade terrificante, esse fato leva o narrador a um estado de horror, maculando o espaço do próprio hotel, que não mais poderia servir de abrigo, mas tornara-se uma ameaça de concretização de impulsos inaceitáveis. Ele sente que, ficando lá, poderia acabar cometendo um ato sem perdão diante de sua consciência. Assim, ele procura e consegue um voo noturno imediato de volta para São Paulo, onde mora. Podemos afirmar que, nessa parte do conto, o espaço desencadeia a ação, sendo responsável pela caracterização do espaço íntimo da personagem e de seus conflitos profundos. Depois de subir de volta ao quarto, ele confessa: “sentei-me na cama, e então, sim, pude compreender a verdadeira extensão do meu horror e fascínio, que me impeliam a querer partir imediatamente daquele lugar maldito”. (SANT’ANNA, 2003, p. 13). Também se delineia a presença da atmosfera social, entrevista, inicialmente, pela janela, e a reação da personagem ao se deslocar para o espaço externo e constatar que a sua realidade é inadmissível e, ao mesmo tempo, perturbadora para ele. Transparece o desprezo do eu narrador por coisas vulgares, chegando mesmo a demonstrar sua posição crítica em relação à estrutura da sociedade, quando menciona que a polícia fica a uma distância conveniente ignorando as flagrantes infrações à lei. 2 . Espaço de passagem Já no aeroporto, a personagem encontrará um lugar de passagem revelador, inserido na narrativa como introdução ao espaço da experiência vital. Sua estrutura física é composta somente de “um grande galpão e uma pista de pouso.” Além do mais, era madrugada e, estando com fome, o narrador não localiza nada parecido com “uma lanchonete aberta”. Contudo, encontra uma “mulher negra, muito velha, com uma cafeteira presa ao ombro” (SANT’ANNA, 2003, p. 16) que lhe serviria um café fresco e saboroso, antecipando, por meio de um contato feminino, a paz que viria a seguir. Essa personagem feminina nada tem do habitualmente atraente numa mulher, não lhe restava nenhum dente na boca e tinha uma perna amputada, mas ela faz o protagonista rir pela primeira vez naquela noite, ao sentir-se tocado pelo “fio entre a vida e a morte” (SANT’ANNA, 2003, p.16) que sente na anciã. Aquele encontro rápido e profundo preparará, naquele lugar de passagem, o espaço do encontro com a plenitude, já introduzindo um detalhe de estranhamento: a anciã ainda sente a sua perna amputada. 3 . Espaço da fantasia essencial O narrador confessa seu prazer em estar voando pelo fato de, assim, não se achar “propriamente em lugar algum”. (SANT”ANNA, 2003, p. 16). Podemos, portanto, afirmar, que lhe falta o espaço do aconchego, fato que confessa ao afirmar: “minha vida era dura e insípida”. (SANT”ANNA, 2003, p. 17). Voando nesse feliz lugar nenhum, nesse lugar fora de

todos os lugares, nessa heterotopia, vem-lhe à mente o seu cotidiano errante de auditor, durante o qual

devia visitar os escritórios da empresa em várias cidades, verificar o volume das vendas e a contabilidade, almoçar com gerentes fastidiosos e aduladores, repreender alguns e congratular outros, sem entusiasmo. E, de noite, aqueles hotéis, que as modestas diárias pagas pela firma permitiam. Enfim, todos os aborrecimentos de uma vida errante e burocrática. (SANT’ANNA, 2003, p. 17)

Pior que isso: voltar para casa, significa voltar para o espaço em que foi traído e abandonado por uma mulher, sobre quem nem consegue adiantar mais detalhes, além dessa brevíssima, significativa e única analepse do conto. A enfadonha vida de auditor itinerante salva-o de um espaço privado cotidiano ainda pior. Novamente, o fio condutor dos espaços será uma figura feminina a impulsionar a trama. O voo especial que leva os mortos de um acidente aéreo e seus familiares será o espaço de aconchego do narrador, pois ele pode se instalar sozinho e distante de todos, junto de uma janela e entregar-se à meditação. Mais ainda, cria-se um ambiente onde predominam as “sombras e os silêncios [que] têm delicadas correspondências. [... É noite e] os objetos irradiam suavemente as trevas. As palavras murmuram”. (BACHELARD, 2008, p. 181) Assim, ele pode “contemplar os astros no negrume”. Nesse ambiente, que aos poucos vai se tornando confortável, o protagonista narrador nos fornece a primeira descrição de sua própria pessoa: ele é um adulto de meia-idade, mas sente-se como um menino fantasiando. Outro fator de aconchego é “a companhia furtiva dos mortos [...] por sua paz inexpugnável.” Para coroar esse estado de paz, ele saboreia um “vinho de razoável qualidade.” (SANT’ANNA, 2003, p. 17, 18). Toda essa paz o anima a se dirigir diretamente aos leitores, informando que, de tão bem que se sente, ele até se coloca à vontade para revelar seus pensamentos. Está, assim, preparado o espaço para o momento de clímax da trama. Em grande paz, em plena madrugada, já se pressentindo a aurora, ele vê surgir sua figura feminina ideal, descrita pelos olhos de sentimento do narrador: sóbria, elegante, de modos recatados, sem idade, terna como uma menina. Ela vem como num sonho, sem precisar se apresentar. O entendimento pessoal é imediato, mesmo sendo ela uma desconhecida e sobre a qual o narrador tem muitas dúvidas, mas ela nunca o decepciona, sempre encanta, mesmo sem palavras, somente com gestos. Ao responder que não é uma das parentas dos mortos que o avião leva, fala uma única vez: “- Não, eu já estou entre eles“. O tempo que os dois partilham faz o narrador reconhecer que “jamais amara alguém tanto”, levando-o, finalmente, a adormecer num “aconchego perfeito.” (SANT’ANNA, 2003, p. 20, 21). Cria-se, assim, um espaço de utopia, um espaço “fundamentalmente irreal”, conforme Foucault. Ao acordar, o narrador está sozinho e ele jamais conseguirá localizar sua companheira de viagem. Em diálogo com o leitor, o narrador faz longas conjecturas sobre o acontecimento marcante que viveu: terá sido um sonho, o inconcebível, algo sobrenatural, um caso inexplicável, uma alucinação? Depois de longas deduções, o narrador não consegue optar por nenhuma das hipóteses longamente aventadas. Esse impasse é discutido por Todorov, que conclui haver duas soluções possíveis para esse fenômeno:

[...] ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e, nesse caso, as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante

da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas para nós. (TODOROV, 2010, p. 30)

O narrador não se decide sobre a natureza dessa “experiência mais marcante do que todas as outras em minha existência” (SANT’ANNA, 2003, p. 25), tornando possível afirmar que estamos diante de uma ocorrência descrita de acordo com os conceitos de literatura fantástica, pois, segundo Todorov (2010, p.31), o “fantástico ocorre nesta incerteza; [...] é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural”. Todo o espaço do avião e as circunstâncias do voo especial, bem como os espaços do hotel e sua circunvizinhança e o espaço do aeroporto e de suas personagens, preparam cuidadosamente esse clímax da trama a ocorrer entre as nuvens. 4 . Espaço da volta à rotina transfigurada O espaço físico do apartamento do narrador em São Paulo é minuciosamente descrito, preparando sua transfiguração: o prédio tem um velho e vagaroso elevador, o apartamento de fundos nos revela um ambiente sombrio e o narrador nos confessa que “foi como se retornasse à noite”. (SANT’ANNA, 2003, p. 25). Realmente, essa menção de retorno nos levará de volta ao fantástico que subverterá o espaço da antiga rotina enfadonha e opressiva. Ele já não é mais o mesmo e, fantasticamente, pressente outra presença no espaço de seu acanhado apartamento, logo traduzida na esperança de que fosse sua amada do avião, presença incerta e fugidia. O que vê, porém, enche-o “de assombro e, a princípio, de um pavor que [o situa] num limite tênue entre a loucura e a morte”. (SANT’ANNA, 2003, p. 26). Assim, juntamente com o fantástico, constatamos que o autor faz uso do recurso literário do suspense, conforme definido por Yanal: “To raise suspense, a narrative not only withholds information; [...] it implies several possible alternative outcomes, only one which can be eventually realized later in the narrative, ...” 1 (YANAL, 1996, p. 146). Não sabemos o que o enche de pavor, e esse desconhecimento intencionalmente construído pelo autor nos conduz ao suspense. O acontecimento insólito que virá em seguida será cuidadosamente apoiado por elementos espaciais a sustentar esse caráter fantástico: o narrador está na porta de seu quarto imerso na penumbra e vê alguém sentado na sua cama. Ao reconhecer nesse alguém a sua própria imagem com todas as características daquele que ficara tranquilamente em casa antes de sua viagem para Boa Vista como se estivesse em frente a um espelho, o narrador compara aquele ambiente a um espaço fora do tempo, onde estão, frente a frente, o narrador melancólico e solitário que ele fora ao sair de casa em contraste com a sua imagem contendo os seus atributos pessoais entrevistos pela sua amada do avião, que conseguira fazer aflorar nele a pessoa essencial, que vencera as suas travas diante da vida. Identificamos nessa cena elementos do conceito de atopia desenvolvido por Foucault, caracterizado por uma experiência complexa que encontra no espelho, nesse caso imaginário, seu espaço virtual de representação, construindo a desordem, o distúrbio. Durante essa aparição, o narrador confessa sentir-se “num momento agudo de fadiga e histeria [ao vislumbrar] as duas faces de

                                                                                                                         1    Minha  tradução:  Para  provocar  suspense,  uma  narrativa  não  somente  retém  informações;  [...]    ele  envolve  várias  alternativas  de  finais  possíveis,  dentre  as  quais  somente  uma  pode  vir  a  acontecer  mais  tarde  na  narrativa.    

mim mesmo.” (SANT’ANNA, 2003, p. 26, 27). Esse estado espacial assim é desenvolvido por Foucault:

A partir deste olhar dirigido a mim próprio, da base desse espaço virtual que se encontra do outro lado do espelho, eu volto a mim mesmo: dirijo o olhar a mim mesmo e começo a reconstituir-me a mim próprio ali onde estou. O espelho funciona como uma heterotopia neste momentum: transforma este lugar, o que ocupo no momento em que me vejo no espelho, num espaço a um só tempo absolutamente real, associado a todo o espaço que o circunda, e absolutamente irreal, uma vez que para nos apercebermos desse espaço real, tem de se atravessar esse ponto virtual que está do lado de lá. (FOUCAULT, 1967, p. 4)

Essa visão de si mesmo será estruturada em forma de um espelho imaginado, no qual o narrador vê a si mesmo antes de ter apreendido a sua própria essência e de ter deixado para trás o eu que ainda não conseguira vencer suas barreiras. 5 . Espaço da rotina serenada Após o encontro decisivo consigo mesmo, impulsionado pelos acontecimentos de sua inicialmente rotineira viagem de trabalho para Boa Vista, o espaço de seu apartamento transforma-se em seu abrigo, onde ele consegue equacionar suas dualidades. O seu apartamento transfigura-se e passa a ser descrito como “a casa [que é] o nosso canto do mundo. [...] Todo espaço realmente habitado traz a essência da noção de casa. [...] ... o ser abrigado sensibiliza os limites do seu abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, através do pensamento e dos sonhos.” (BACHELARD, 2008, p. 24, 25). Nesse sentido, a última parte do conto começa com a descrição do local de consciência do narrador: “Em meu quarto mantenho uma mesa, com sua cadeira própria, na qual às vezes me sento para rascunhar a mão os meus prosaicos relatórios.” Ao tentar escrever algo que não seja utilitário, algo que revele seu íntimo, ele abre a janela em busca de ar puro e claridade. Novamente, o espaço é um meio de expressão da tentativa de plenitude do narrador. Em vão, pois “nesta minha escrita, é e será sempre noite.” (SANT’ANNA, 2003, p. 27). Mas essa noite terá sempre a luminosidade da “passageira que veio estar comigo”. No espaço íntimo de sua casa, ele consegue uma “contemplação da grandeza [que] determina uma atitude tão especial, um estado de alma tão particular [...] [de] devaneio [que] coloca o sonhador fora do mundo próximo, diante de um mundo que traz o signo do infinito.” (BACHELARD, 2008, p. 189). Nesse espaço, o narrador sente que “Aqui ela será para sempre minha.” (SANT’ANNA, 2003, p. 27), confirmando a observação de Bachelard (2008, p. 206), citando Rilke, sobre a espacialidade poética que é “um espaço único, espaço íntimo no mundo”. Após momentos reveladores, ele voltará à sua casa-ninho, configurando o devaneio do regresso que acontece “de acordo com o grande ritmo da vida humana, [...] que luta pelo sonho contra todas as ausências”. (BACHELARD, 2008, p. 111). E esse sonho, o narrador encontra na escrita, na “fusão tão almejada” de suas duas personalidades, a possível e aquela desejada, depois de “vencidas as barreiras mais entranhadas”. (SANT’ANNA, 2003, p. 27, 28). Concluímos que, o conto estudado é caracterizado pela tensão criada pela interdependência entre as partes da narrativa separadas por um símbolo gráfico, e que foi possível comprovar que o espaço foi utilizado como arcabouço da intriga e do desenvolvimento da jornada da personagem narradora em direção à compreensão de si mesmo. Obedecendo às características desse gênero, também foi possível identificar a

presença do sofrimento humano movido pelas paixões e pela emoção, sendo verdade, que o momento da revelação primordial rompe com o cotidiano. Verificamos, ademais, haver concisão no desenvolvimento da narrativa, qualidade apropriada para a classificação do texto como conto. A unidade temporal característica do conto é respeitada, toda ação transcorrendo na última noite da estadia da personagem em Boa Vista e do voo para São Paulo e no dia seguinte, quando o protagonista chega de volta à sua casa. Na última parte do conto, há uma imprecisão temporal, que se transforma em tempo da escrita, tempo da reflexão sobre os acontecimentos decisivos da unidade temporal da ação. Obras de referência BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2008. FOUCAULT, Michel. De outros espaços. Tradução de Pedro Moura. In: Diacritis; 16.1, Primavera de 1986. Disponível em: www.virose.pt/vector/periferia/foucault_pt.html. Acesso em: 17 mar. 2012. FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção. Tradução de Fábio Fonseca de Melo. In: Revista USP. São Paulo, n. 53, p. 166-182, março/maio 2002. REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988. SANT’ANNA, Sérgio. O voo da madrugada. In: O voo da madrugada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2010. YANAL, Robert J. The paradox of suspense. In: British Journal of Aesthetics, Vol 36, n. 2. Oxford: Oxford University Press, 1996.

A Narrativa Especular em Desert De Jean-Marie Gustave le Clezio- Maria Cristina Vianna Kuntz (PUC/SP-Cogeae)

Resumo Em Désert, publicado em 1980, Le Clézio baseia-se em um fato histórico: a caminhada de um povo árabe através do deserto de Maghreb, no início do século XX, bem como a repressão infligida pelos franceses colonizadores. O espaço geográfico transforma-se em matéria do fazer literário. De cenário, o deserto passa a ser elemento constitutivo da narração. Paralelamente, o narrador conta a história da menina Lalla, descendente daquele mesmo povo, passadas duas gerações. Ela foge dos costumes muçulmanos e da pobreza e emigra para Marselha, na tentativa de uma vida melhor. Sua experiência mostrará todas as injustiças a que se submetem os imigrantes na luta pela sobrevivência. A estrutura dessas histórias en abyme oferece um material para reflexão a nível literário e existencial que revela a poética do autor e se mostra fundamental para compreender o significado da obra. Apoiados em Lucien Dällenbach (Le récit spéculaire) e Tzvetan Todorov (As estruturas narrativas), em nosso trabalho, examinaremos as relações entre essas duas histórias, com o intuito de adentramos mais profundamente no universo ficcional de Le Clézio. Palavras chave: Deserto, Literatura Francesa, Literatura Contemporânea, narrativa especular, mundo árabe. Introdução

Prêmio Nobel 2008, Jean-Marie Gustave Le Clézio, escritor franco-mauriciano, apresenta uma obra instigante e atual. Com seu romance de estreia em 1963, aos vinte e dois anos, embora tenha provocado escândalo no meio literário, recebeu o Renaudot, importante prêmio francês. Após os anos 1970, adotou um tom mais comedido e talvez mais poético, depois da vivência com os Índios Emberras et Waunanas no Panamá. Outro mundo se lhe foi revelado. Essa experiência “fundadora” mostrou-lhe outras possibilidades linguísticas, impregnadas de magia e sabedoria. O contato com povos dizimados pela Conquista espanhola abriu-lhe os olhos para a realidade dos marginalizados desse mundo.

Em seus mais de quarenta romances, a delicadeza ímpar com que trata, muitas vezes, temas escabrosos, de ampla magnitude, cativa o leitor, despertando-lhe grande emoção estética e levando-o a reflexões profundas sobre os valores da natureza e da existência humana. Desde os anos 1980, Le Clézio parece ter-se transformado em porta-voz das minorias e da valorização do meio ambiente.

Em Désert, o autor baseia-se em um fato histórico: relata a caminhada de um povo árabe através do deserto de Maghreb, no início do século XX, bem como a repressão infligida pelos franceses colonizadores. O espaço geográfico transforma-se em matéria do fazer literário. De cenário, o deserto passa a ser elemento constitutivo da narração.

Paralelamente, o narrador conta a história da menina Lalla, descendente daquele mesmo povo, passadas duas gerações. Ela foge dos costumes muçulmanos e da pobreza e emigra para Marselha, na tentativa de uma vida melhor. Sua experiência mostrará todas as injustiças a que se submetem os imigrantes na luta pela sobrevivência. Apesar da crueza da luta de Lalla por sua liberdade, essa narrativa parece amenizar a pungente saga do extermínio daquele povo.

A estrutura dessas histórias en abyme oferece um material para reflexão a nível literário e existencial que revela a poética do autor, bem como enriquece o significado da obra. Apoiados em Lucien Dällenbach (Le récit spéculaire) e Tzvetan Todorov (As estruturas narrativas), em nosso trabalho, examinaremos as relações entre essas duas histórias, com o intuito de adentramos mais profundamente no universo ficcional de Le Clézio. Em seu

romance ecoam as vozes da periferia, dos marginalizados, mas ultrapassando a abrangência histórica, alcançam uma significância (Barthes) a ser investigada. 1- A narrativa especular

Segundo Lucien Dällenbach, a narrativa especular consiste em « todo espelho interno refletindo o conjunto da narrativa por reduplicação simples, repetida ou sem valor »2 (DALLENBACH, 1977, p.25).

Essa técnica narrativa tem por objetivo ampliar massivamente a redundância da obra, além de propiciar um distanciamento por parte do leitor. Desse modo, ela contribui para a inteligibilidade da mesma. Assim, os fatos e problemas se apresentam em perspectiva e profundidade, esclarecendo a significação do romance.

A estrutura “en abyme” oferece sempre uma oportunidade de reflexão sobre a escritura: ela se sustenta da « especularização imaginária » que permite ao “sujeito” ver-se a si próprio como escritor.3

Em seu romance Les Faux Monnayeurs, André Gide desenvolveu a reflexão sobre a escrita através de seu personagem Edouard que, ao longo da narrativa, continuamente, toma notas de suas observações em uma caderneta a fim de utilizá-las em seu próprio romance. Desta forma, o leitor tem a oportunidade de acompanhar seu projeto literário que acaba identificado com o do próprio autor. Gide recomenda, também, que exista uma analogia entre a situação do personagem e do narrador ou entre o conteúdo temático da narrativa encaixada e o da narração-quadro a fim de produzir-se a retroação. Ele propõe como imagem comparativa a “do brasão”, cuja réplica de dentro é exatamente igual à de fora.4

A estrutura especular do romance muitas vezes permite observar a reduplicação dos protagonistas. Em geral, verificam-se semelhanças entre a narrativa encaixada e a encaixante: homonímias dos protagonistas, de um personagem com o autor, a repetição de um cenário revelador etc.5 Todavia, em Désert, verificamos semelhanças de outra natureza: o cenário é comum às duas narrativas, o narrador onisciente é o mesmo em ambas e os dois protagonistas unem-se por um laço de parentesco e também pela trajetória iniciática que ambos perfazem.

Dällenbach distingue, dentre as narrativas especulares, o “méta-récit” e o “énoncé métadiégetique” (metanarração e enunciado metadiegético). O primeiro supõe um narrador interno, diferente do narrador da narrativa primeira e cria uma história praticamente independente da principal; o segundo não visa à emancipação da narrativa, mas suspende a diegese; assim, muitas vezes, o “énoncé métadiégetique” consiste em sonhos, representações visuais, auditivas ou narrativas recontadas, não havendo, nesses casos, mudança de instância narrativa.6

Em Désert,ambas as histórias são contadas por um o narrador onisciente, mas no seu interior, verificam-se “enunciados metadiegéticos”, tanto na saga do povo árabe, como na história de Lalla: são personagens que contam outras histórias.

As duas narrativas diferem por seu conteúdo e até por sua configuração tipográfica. À primeira vista, parecem independentes uma da outra; entretanto a especularidade se

                                                                                                                         2 “tout miroir interne réflechissant l’ensemble du récit par réduplication simple, répétée ou spécieuse (sans valeur) ». DALLENBACH, Lucien. Le récit spéculaire: essai sur la mise em abyme. Paris : Seuil, 1977, p.25

3 Id., ib., p.36.

4  “[...]  qui  consiste,  dans  le  premier  à  en  mettre  un  second  en  abyme”  (Id.,  ib.,  p.25).    

5  cf.  DÄLLENBACH,  p.65.  

6  cf.  DÄLLENBACH,  p.71.  

estabelecerá na própria intriga e no tempo de cada história, construindo o significado do romance.

Entre elas, verificam-se alguns pontos análogos e alguns pontos de contraste. 2-Estrutura:

A primeira narrativa inicia o romance com um título para dois capítulos: Saguiert El Hamra, hiver, 1909-1910 (inverno).

À página 75, com o título Le Bonheur, começa a história de Lalla estendendo-se por 146 páginas em treze capítulos;

Voltando a primeira história, segue-se um capítulo (32 páginas) que conta a viagem de Nour. Seguem-se oito capítulos (98 páginas) dando continuidade a uma segunda parte da história de Lalla em Marselha: La vie chez les esclaves (A vida na terra dos escravos).

Em alternância, seguem-se dois capítulos mais curtos (11 a 16 páginas) para cada narrativa, rumo ao final, com a morte do grande líder.

Tem-se, pois, um total de 151 páginas da narrativa primeira e 271 páginas para a história de Lalla. É preciso considerar que a primeira narrativa abre e fecha o romance, envolvendo a história ficcional. Poderíamos então concluir que esta, embora mais longa, acha-se encravada, “enchassée”, na primeira história.

A ordem das histórias no romance também é significativa. Assim, a narrativa especular pode ser prospectiva, retrospectiva, retro-prospectiva. Mas em Désert, as histórias se apresentam alternadas e somente após um exame, poderemos considerar a primeira história (a caminhada no deserto), como secundária. Ela se apresenta prospectiva porque aparece logo no início da narrativa constituindo-se em espelho da trajetória de Lalla, assim, seu lugar proeminente (em primeiro lugar na ordem narrativa) estabelece sua importância e significado.

3-A primeira história

A primeira história apresenta-se com uma diagramação distinta, com parágrafo duplo e justificado à direita. Marina Salles lembra que esse uso do espaço da página corresponderia à “representação gráfica do escorregar da caravana no espaço da página”, ou no próprio espaço narrativo, as alvas e imensas dunas (1999, P.20). Poderiam corresponder ainda à “margem de silêncio” de que nos fala Genette (1972). Diríamos que essa representação guardaria uma parte do silêncio do deserto ou da ausência da escrita, do que não se pode contar, do “inominável”.

O romance inaugura-se com uma narrativa baseada em fatos que efetivamente aconteceram no início do século XX. As datas e os espaços geográficos nitidamente marcados, bem como os fatos históricos correspondem à realidade atestada. Trata-se das lutas empreendidas pelos árabes contra os colonizadores franceses. Esses elementos embasarão a história fictícia de Lalla.

Em 1906, o sultão do Marrocos fez um pacto com o governo Francês a fim de conter a anarquia generalizada que reinava em seu país no início do século XX. As repressões culminarão com o massacre final e o estabelecimento do protetorado Francês em 1912. O autor relatará esses fatos, bem como a caminhada do povo árabe através do deserto e a repressão por eles sofrida por parte dos franceses.

A caminhada se inicia e a multidão ignora seu destino: “Caminham sem ruído na areia, lentamente, sem olhar para onde iriam”.7 A caravana é descrita como “uma tropa de homens e animais”. 8 Partem de “Seguiet El Hamra, l’hiver de 1909-1910” (p.7), rumo ao vale                                                                                                                          7 “Ils marchent sans bruit, dans le sable, lentement, sans regarder où ils allaient”” . LE CLÉZIO, Désert. Paris : Gallimard, 1980, p.7. Tradução nossa.

8 « un troupeau d’hommes et de bêtes” (Id., ib., p.16).

Vermelho, sob a liderança de Ma El Aïnine, o xeique que fundara a cidade santa de Smara. Dentre essa multidão, destaca-se o adolescente Nour, de “rosto sombrio, queimado de sol [...] a luz do seu olhar era quase sobrenatural ».9 O leitor acompanhará sua trajetória iniciática que culminará com a bênção pelo xeique, de quem ele herdará o carisma. Entretanto a caravana é obrigada a prosseguir em direção ao norte. O xeique, porém, já previa que "ele iria rumo a seu fim”.10

Distinguem-se na fábula três movimentos: o início (a poeira, a miséria); o desenvolvimento (caminhada) e o final (luta e massacre, morte de Ma El Ainine).

O itinerário percorrido por essa imensa massa humana também corresponde à realidade, podendo o leitor traçar o caminho desde Saguiet El Hamra até Agadir. A aridez do deserto e a poeira penetram na alma do leitor que se compadece da miséria dessa gente.

4- A história de Lalla

Tem início somente à página 75, dois capítulos após aquela primeira narrativa. Passa-se no último quartel do século XX, portanto duas gerações depois do massacre dos árabes pelos franceses.

Lalla é a protagonista dessa segunda história. É uma menina pobre, órfã de pai e mãe, que vive com a tia Aamma, em um povoado chamado Cité, descrito como “uma dezena de barracos de madeira e de papelão”,11 na periferia de uma grande cidade litorânea, no Marrocos. Seu companheiro é um rapazinho – Hartani – que é mudo, mas que conhece todos os segredos do deserto, seus pequenos animais e grandes perigos. Como Lalla, ama a liberdade, a natureza, e a vastidão de um horizonte sem limites. Seu outro amigo e “guru” é Naman, o contador de muitas histórias que a incentivarão a buscar novos horizontes.

Poderíamos dizer que este é um romance de aprendizagem, uma vez que contará a história da tentativa de Lalla em adaptar-se à sociedade. O leitor acompanha o crescimento dessa menina, a sua descoberta do amor, o conhecimento das leis muçulmanas e sua recusa; a procura de uma nova vida, a ida para Marselha, os empregos, a exploração, a volta ao deserto.

Entretanto, conforme distingue Marina Salles, Désert é um romance de iniciação, considerando-se a busca de crescimento e o amadurecimento espiritual da protagonista: “O Romance de iniciação pertence ao gênero do Romance de formação ou aprendizagem. [...] a busca do iniciado é uma busca interior e visa ao aprimoramento de qualidades essenciais inscritas no seu ser em estado de virtualidade” 12 (1999, p.25). E veremos que não só Lalla, mas também o rapaz Nour, protagonista da primeira história também passará por um processo semelhante.

Assim, o romance é constituído de uma primeira história baseada em fatos reais e a segunda história inteiramente inventada. Como se a primeira fosse a introdução da segunda: a realidade servindo de fundo para a ficção.

5- Elementos de aproximação                                                                                                                          9 « [le] visage sombre, noirci par le soleil [...] la lumière de son regard était presque surnaturelle » (Id.,ib., p.9).

10 « Il s’en allait vers sa fin” (Id.,ib., p.72).

11 “ une dizaine de cabanes de planches et de papier goudronné" (Id., ib., p.87).

 

12 “Le Roman d’initiation appartient au genre de Roman de formation ou apprentissage. [...] la quête de l’initié est une quête intérieure et vise l’accomplissement (aprimoramento) de qualités essentielles inscrites en son être à l’état de virtualité” (p.25).

Embora não se possa estabelecer uma analogia completa ou um contraste entre as duas narrativas, como em geral acontece nesse tipo de construção, examinaremos alguns elementos que aproximam as duas histórias.

O espaço da narração é comum a ambas as narrativas; passam-se no deserto, embora na primeira, o espaço seja bem mais extenso que na história de Lalla. O povo árabe descreve uma longa caminhada por várias cidades – a região do Draa, o vale Vermelho, a chegada a Tiznit, Taroudant, Tadla e finalmente Agadir. Na segunda, os personagens estão sempre no mesmo povoado e somente Lalla com o amigo adentram o deserto, mas ela volta sempre a sua casa, até a sua transgressão total, sua ida para Marselha.

Os dois protagonistas se espelharão, já que Nour, durante a caminhada descobre o verdadeiro sentido da vida no seu contato com o “mestre”, xeique Ma El Aïnine. Este, por sua vez, conta sua conversão quando teve contato com o Homem Azul, ou Es Ser. Trata-se também de uma “história dentro da outra” que aprofunda o tema de busca de aperfeiçoamento espiritual. Após um período de provação (uma doença em que quase morre), o contato com “o sagrado”, o protagonista Nour adquire uma consciência e uma sabedoria que o distinguirá dos outros mortais. Trata-se, pois, do processo iniciático.

O percurso de descoberta e aprimoramento de Lalla revela-se mais complexo porque, se por um lado acontece no deserto, em seus passeios com ou sem Hartani, quando “encontra” ou não o Homem Azul ou apenas ouve sua voz, esse percurso só se completará após a “prova” em Marselha, com o contato com a civilização.

6- As histórias dentro da história:

Os enunciados metadiegéticos são abundantes na história de Lalla. Ouvem-se mais três “narradores”: o amigo Naman, a Tia Aamma e Hartani.

A tia Aamma conta-lhe frequentemente, a seu pedido, a história de seu nascimento: “Ao pé de uma árvore [...]. Lá no país do grande deserto, o céu é imenso, o horizonte não tem fim, porque não há nada que atrapalhe a vista”.13 Esta história, mais que as outras, certamente, ecoará no coração de Lalla e a trará de volta a sua terra para dar à luz seu filho como sua mãe o fizera.

Aamma conta-lhe também histórias maravilhosas, como a da fonte criada pelo Homem Azul especialmente porque a velhinha não conseguia carregar seu cântaro. Em outra história, as tempestades de areia arrebatam os homens para o céu enquanto os homens maus vagueiam no deserto. Dentre eles, destaca-se o Homem Azul que foi “chamado” e abandonou sua tribo, sua família, porque fora abençoado por Deus.

Esta história coincide com aquela contada por Ma El-Aïnine ao menino Nour no início do romance e assim, reúnem-se as duas narrativas em torno da figura sagrada do xeique e de seu preceptor.

A mãe de Lalla, Lalla Hawa, era uma “chérifa”, princesa descendente de Maomé por sua filha Fátima e também descendente desse Homem Azul. Assim, gozava de poderes sobrenaturais. Ela tocava guitarra e cantava versos cheios de lirismo e beleza que Lalla aprenderá e cantará em seus momentos de solidão. A origem de Lalla, pois, está ligada à dinastia do xeique e do Homem Azul. Trata-se de uma “história dentro da história” e assim por diante, en abyme. Por isso a menina guardará dentro de si esse desejo místico de comunhão com o sagrado e nele encontrará toda a força para executar o seu percurso em busca da vida e da liberdade.                                                                                                                          13 « [...] au pied d’un arbre [...]. Là dans le pays du grand désert, le ciel est immense, l’horizon n’a pas de fin, car il n’y a rien qui arrête la vue ». LE CLEZIO, 1980, p.180.

 

Portanto a tia não só conta a origem da menina, mas ela cria toda uma narrativa (o deserto, os homens arrebatados pelo vento etc) e modificando-a a cada vez, lhe amplia a abrangência e confere também um mistério à personagem Lalla. Essa maneira de contar propicia uma reflexão sobre as possibilidades da escrita, um méta-récit.

As histórias de Naman giram em torno de suas viagens a Algésiras, Granada, Sevilha, Madri, Marselha, Paris e fascinam Lalla. Influenciada, mais tarde, ela irá a Marselha em busca de uma nova vida, longe das misérias e dos costumes que escravizam a mulher. Mas Naman já a adverte sobre os perigos das cidades grandes que perseguem os imigrantes árabes e judeus.

Ele também conta histórias maravilhosas: do golfinho que salvou o barco do pescador na tempestade; a pesca do tubarão que trazia um anel de rubi na barriga e por que Naman, uma vez sorteado para guardar o anel, jogou-o ao mar para evitar a cobiça dos companheiros. Há ainda a história de uma princesa egípcia que, exposta a perigos, é salva por Balabilou – o pássaro encantador.

De um lado, essas histórias maravilhosas eram prenhes do maravilhoso e de ensinamentos morais, de honestidade e honradez, e de outro lado, havia as que a advertiam sobre o mal do mundo. Assim, moldava-se o caráter de Lalla.

Também na primeira narrativa, que relata a travessia do deserto, o xeique Ma El Aïnine se torna o narrador de uma história “sagrada”: ele conta ao adolescente Nour como fora “iniciado” pelo Homem Azul- Al Azraq - após um longo período de privações e de rejeição: “Depois ele falou do Homem Azul, que ele havia encontrado em um oásis, do outro lado da Hamada, em uma época em que nada existia do que havia aqui, nem mesmo a cidade de Smara”.14

Essa narrativa deixa clara a mistificação do personagem Ma El Aïnine, que, além da autoridade de chefe, traz consigo um carisma, uma aura de santidade, confirmada pelos milagres que realiza como a cura do cego.

Ensina-nos Walter Benjamim que um personagem misterioso, vindo de terras longínquas, em uma época remota, carrega consigo um mito (2000, p.123). Assim, a história do Homem Azul, vindo não se sabe de onde, “quando ainda nada existia”, transforma-se em história mítica que sustentará a força dos árabes através do deserto e de Lalla em suas aventuras.

O “enunciado metadiegético” recontado en abyme por outro personagem – Ma El Aïnine – também ele santo, confere à própria história um caráter mítico e até sagrado que se estende ao longo da narrativa, sustenta-a e ainda se transfere para a história de Lalla, uma vez que a protagonista será guiada pelo Homem Azul. Ela o chama de Es Ser, o Segredo; acredita ouvir sua voz e vislumbra-o no deserto, ao longe; ele a protege e consola. Como sua descendente, ela também carrega uma aura e guarda um mistério, um segredo de sua origem, seu comportamento, de sua identidade.

Esta história constitui, pois, um elo importante entre as duas narrativas uma vez que se trata de um “ente” comum a ambas. Ao mesmo tempo, ela estabelece um caráter sagrado que se mostra fundamental na mundividência do povo árabe. Sendo a única narrativa especular que encontramos na história da travessia do deserto, podemos, por isso mesmo, atribuir-lhe um significado tão profundo que se estende a todo o romance: é a crença do povo do deserto, que lhe dá ânimo e o sustenta espiritualmente.

                                                                                                                         14 “Puis il parla de l’Homme Bleu, qu’il avait rencontré dans l’oasis du Sud, de l’autre côté de la Hamada à une époque où rien de ce qu’il y avait ici, pas même la ville de Smara, n’existait pas encore » (Id., ib., p.54).

 

As histórias que são contadas ao longo do romance também reforçam o movimento en abyme e o significado de cada uma dessas histórias se amplia para todo o romance conforme nos ensina Dällenbach: “[...] é narrativa em abismo todo enclave que estabelece uma relação de similitude com a obra que a contém” (1977, p.17).15

Enquanto segmento narrativo, essas histórias interrompem a sequência cronológica e constituem uma digressão que retarda o andamento do romance: “toda ‘história dentro da história’, enquanto reflexiva, é necessariamente levada a contestar o desenrolar cronológico enquanto segmento narrativo... sabota por isso mesmo o avanço sucessivo do romance” (DÄLLENBACH, 1977, p.82).16

Justamente pela sua pequena extensão, essas histórias ressaltam as intenções significativas da narrativa principal. Assim, o autor mostra que as lendas e crenças fazem parte da cultura popular, sustentam as raízes desse povo. Tanto se revelam os valores morais (solidariedade, honradez, respeito à natureza), quanto o respeito ao sagrado e às forças espirituais. Ao apresentá-las en abyme, o autor lhes confere um peso histórico e indiscutível que alcança gerações, passadas e futuras.

Hartani também tem o seu jeito de contar histórias, apesar de mudo: não são propriamente histórias que ele conta para Lalla. “Antes, são imagens que ele quer fazer nascer no ar, somente com os gestos, com os lábios, com a luz de seus olhos”.17 O fato de Lalla encantar-se com os gestos e as imagens criadas por seu amigo mudo indicam a reflexão do autor sobre a palavra, o silêncio, a criação enfim.

7- Conclusão. Examinamos, pois, a estrutura desse romance, à luz das narrativas especulares. A jovialidade e a pureza de Lalla contrastam com a seriedade do tema da primeira

narrativa – sofrimento, massacre, colonialismo, miséria. A busca incessante de suas origens e ao mesmo tempo de liberdade apontam para uma esperança. Trata-se de uma consciência que se quer descobrir, uma busca de autenticidade, semelhante à busca de Nour, o protagonista da primeira história.

A rejeição de Lalla às suas tradições e sua coragem de fugir para o Ocidente mostram seu desejo de mudança, a impossibilidade de sobreviver à miséria. Entretanto, tendo encontrado a exploração e a violência em Marselha, ela também não suportará a escravidão ao dinheiro e voltará a seu povo.

O romance mostra as perseguições e injustiças sofridas pelos árabes no período colonial que marcam até hoje sua condição de inferioridade perante o Ocidente e os agrilhoam à miséria, ao atraso e ao preconceito. Le Clézio denuncia a vida marginal e expõe a riqueza cultural desse povo aferrado às suas raízes.

Por outro lado, denuncia as mazelas de ambas as culturas e procura instaurar um novo mundo através de seus personagens. A espiritualidade perpassa toda a narrativa, bem como os valores humanos da ética e da solidariedade.

                                                                                                                         15 « [...] est mise en abyme toute enclave entretenant une relation de similitude avec l’oeuvre qui la contient » (p.17).

16  « toute ‘histoire dans l’histoire’ en tant que reflexive, est necessairement conduite à contester le déroulement chronologique en tant que segment narratif.... sabote par là même l’avancée successif du Roman” (Id., ib., p.82).

17  “Ce  ne  sont  pas  vraiment  des  histoires  qu’il  raconte  à  Lalla.  Ce  sont  plutôt  des  images  qu’il  veut  faire  naître  dans  l’air,  rien  qu’avec  les  gestes,  avec  ses  lèvres,  avec  la  lumière  de  ses  yeux  »  LE  CLEZIO.  Désert.,  p.133.  

Assim, o jogo de narrativas cria um “jogo ótico que reúne no interior da obra realidades que lhe são (fictivamente) exteriores” (DÄLLENBACH, 1977, p.22). A história de Lalla reflete-se continuamente na caminhada do povo árabe através do deserto e a condição miserável em que vive a protagonista é ainda fruto do massacre histórico, relatado na primeira história.

O jogo de reflexos criado por esse tipo de estrutura projeta a palavra do autor numa transcendência cujo significado residirá no entrecruzamento e no espelhamento das duas narrativas.

Assim, as narrativas especulares formam o tecido narrativo de onde emerge a significância do texto (BARTHES, 1977, p.101).

Como define Onimus : “Le Clézio é um créole até em seu espírito de revolta, sua indignação diante da exploração colonial, sua recusa à barbárie industrial, mas também em sua atração pelo mar, a luz e os espaços sempre livres do sonho »18 (ONIMUS, 1994, p.12).

Désert é, pois, um espaço imenso, de sofrimento, de história, de lutas, mas também um espaço de sonho, de mistério, de encontro consigo mesmo.

Referências Bibliográficas BARTHES, Roland. Le plaisir du texte, Paris : Seuil, 1973. BENJAMIN, Le conteur. Oeuvres. Trad. Maurice de Gandillac, Rainer Rochlitz et

Pierre Rusch. Paris : Gallimard, 2000, v.III. DÄLLENBACH, Lucien. Le récit spéculaire :essai sur la mise en abyme. Paris :

Seuil, 1977. GENETTE, Gérard. Les silences de Flaubert. Figures I. Paris : Seuil, 1972. LE CLEZIO, J.M.G.. Désert. Paris : Gallimard, 1980. ONIMUS, Jean. Pour lire Le Clézio. Paris : PUF, 1994. SALLES, Marina. Le Clézio – Désert. Paris : Ellipses, 1999. TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Trad. Leyla Perrone-Moysés. São

Paulo: Perspectiva, 1979.

                                                                                                                         18 « Le Clézio est un créole jusque dans son esprit de révolte, son indignation devant l’exploitation coloniale, son rejet de la barbarie industrielle, mais aussi dans son attrait pour la mer, la lumière et les espaces toujours libres du rêve » ( p.12).

Entre prodígios, murmúrios e soldados: uma leitura da obra de Lídia Jorge - Mauro Dunder (USP)

RESUMO: O objetivo desta comunicação é apresentar a fase inicial obra da escritora portuguesa Lídia Jorge, constituída dos romances O dia dos prodígios (1980), O cais das merendas (1982), Notícia da cidade silvestre (1984) e A costa dos murmúrios (1988). Com base nos estudos de Eduardo Lourenço, em O labirinto da saudade (2009), e Miguel Real, em A morte de Portugal (2008), traçar-se-á a discussão da identidade portuguesa como cerne do projeto estético-ideológico de sua narrativa ficcional. Palavras-chave: Lídia Jorge; Ficção portuguesa contemporânea; Identidade portuguesa; Romance contemporâneo.

O surgimento de Lídia Jorge no cenário literário português dá-se em 1980, com a

publicação de O dia dos prodígios, romance que narra a vida cotidiana em Vilamaninhos, vilarejo fictício da região do Algarve, no sul do país. Por meio de uma linguagem imagética, altamente metafórica e simbólica, a escritora descortina o pensamento reinante no interior de Portugal, ainda intimamente ligado a crenças e posturas medievalizadas, nas quais a experiência e a visão pessoal de mundo servem de parâmetros para a compreensão e o julgamento de quaisquer eventos que se lhes apresente.

Nesse contexto, o vilarejo assiste à aparição de um réptil alado, fenômeno que passa a ser lido como um sinal enigmático, o qual, na visão dos aldeões, deve trazer informações que lhes mudarão os cursos das vidas. Em meio a elucubrações e interpretações carregadas de misticismo, o leitor vê surgir diante de si confrontos entre pontos de vista, histórias ressuscitadas, esperanças de transformação de uma vida pobre – não apenas de recursos materiais, mas, principalmente, de uma leitura de mundo que vá além dos limites da cidadela.

A certa altura da narrativa, dá-se o anúncio de uma revolução ocorrida em Lisboa, acerca da qual surgem as mais diversas interpretações e imagens fantasiosas: coxos que voltam a andar, cegos que veem novamente, moças com cinturas reduzidas à medida de um punho, de tanto dançar e celebrar ou, ainda, pessoas que podem comer carne, no mínimo, aos domingos.

Em uma das cenas de referências sociopolíticas e históricas mais evidentes, os habitantes da aldeia veem surgir no horizonte um caminhão repleto de soldados, que vêm anunciar a transformação representada pela Revolução dos Cravos (1974):

“(...) Todos tinham a certeza que desde o tempo dos reis

nunca mais se vira de igual. Ah maravilha. Então o carro parou em frente do grupo, e fez-se um momento de silêncio tão solene que as pessoas pensaram ir morrer. Mas um soldado. Particularmente bem feito, tendo sem dúvida nascido numa terra muito diferente. Começou a falar de cima do carro, agora parado no largo. Dizia coisas. Que tinha feito uma re vo lu ção, e que era preciso animar os espíritos. Porque tudo. Tudo. E abria os braços do salvador. Tudo iria ser modificado. Falava tão bem, que todos se encontravam encantados no timbre daquela voz. E nas maneiras másculas, sendo contudo delicadas, como se não sentisse o soldado o peso do corpo.(...) os

vilamaninhenses só compreenderam que uma grande coisas eles haviam dito, e maiores ainda teriam a dizer no futuro. (...)

O soldado que havia falado agradeceu com a mão. Todos os outros tinham um ar solene e marcial, não duvidando ninguém que tais homens venceriam as maiores batalhas. Disse também o soldado formosíssimo, com flores a desfolharem-se nas abotoadeiras. Que era preciso que aquela terra se capacitasse que o tempo da li ber da de tinha chegado. As mulheres menos ociosas, e as moças, que haviam sido as últimas a descer, mas que mais próximas se encontravam agora do carro de guerra, começaram a sentir que não poderiam reprimir por mais tempo os sentimentos espontâneos, e porque o espetáculo era o mais arrebatador das suas vidas, puseram-se a gritar todas as palavras de entusiasmo que sabiam. Disseram vivas. Amigos, amores, irmãos. Seres divinos, libertadores da fome e da inveja. Disseram anjos, coisas formosas, filhos do ventre e visitantes. Excelentíssimos. (...) O soldado falou de novo. Dizendo. Agora. Agora as in jus ti ças vão ser reparadas. O tesouro público distribuído igualmente por todos. Porque nos move um i de al. Perfilhado por muita gente. E somos capazes de dar a vida pela teoria. Veja. Os vizinhos aproximaram-se para ver, no entanto, um dos soldados brandiu um objecto comprido, e os naturais, e ficados por Vilamaninhos, viram-se obrigados a recuar uns passos.(...) E o primeiro soldado disse (...). Que aquela era a hora dos humilhados e oprimidos. E quem são esses? Perguntou Manuel Gertrudes. Quem são esses? E o soldado encheu o peito. Vocês. Vocês. São vocês.(...)”. (JORGE, 1995, pp. 180-182 – grifos do pesquisador).

É possível notar, pela leitura do trecho dado, que a consciência apresentada pelos

moradores acerca de sua própria condição socioeconômica é mínima, quase nenhuma. Depois de terem sido identificados por Jesuína Palha, espécie de voz coletiva do vilarejo, com “um carro de anjos”, um dos soldados é descrito por um morador como “particularmente bem feito, tendo sem dúvida nascido numa terra muito diferente”. Da mesma maneira, ao ouvirem falar em “humilhados e oprimidos”, os vilamaninhenses não se percebem retratados por esses adjetivos, tomando por corriqueira a vida de absoluta privação que levam na aldeia.

Evidenciam-se, então, duas proposições: os moradores de Vilamaninhos não veem, em um compatriota, alguém que se lhes assemelhe, particularmente por julgá-lo “bem feito”, termo que sugere superioridade física e estética. Assim, estabelece-se a segunda proposição: não há relações diretas entre o português do interior e o da capital, sendo este último considerado um “nascido numa terra muito diferente”. Dessa maneira, é possível inferir que o habitante de Vilamaninhos não será capaz de avaliar a dimensão dos eventos ocorridos em Lisboa, em abril de 1974, exatamente porque sua visão de mundo está atrelada ao comezinho, ao cotidiano medieval da experiência do campo, sem o estofo da informação que poderia conduzi-los a uma leitura mais global do acontecido.

Chama à atenção, ainda, o fato de que a miséria e a privação estendem-se para a possibilidade de compreensão de sentimentos pessoais, em um movimento no qual a constituição ontológica das personagens reflete, em grande medida, a constituição social em que está imersa a aldeia, em claro sinal de uma interpolação entre o pessoal e o coletivo, na constituição da visão de mundo daquelas pessoas. A inferioridade não se dá apenas na

pobreza das casas e da própria cidade, mas, principalmente, na capacidade de extrapolação do saber empírico e pessoal. Externar os “sentimentos espontâneos” não acontece com facilidade, como se fosse uma reação absurda, inesperada.

Essa mesma visão inferiorizada acerca do português rural é o mote de O cais das merendas, romance de 1982, no qual Lídia Jorge apresenta ao leitor a Praia das Devícias, ficticiamente localizada também no Algarve. Ali, é construído o Hotel Alguergue, cujo nome se deve a uma pedra localizada na própria praia, cenário do suicídio de Rosária, filha da personagem principal do romance, Sebastião Guerreiro, responsável, em grande medida, pela chegada das personagens ao Alguergue. Em contraposição a esse cenário, surge o povoado da Redonda, do qual saem as demais personagens da narrativa, com a perspectiva de vida alterada pela construção do novo hotel.

Inevitavelmente, surge, então, uma relação inevitável com a história de Portugal: como em 1580, um Sebastião sai em busca de novos horizontes para o povo. Também como no século XVI, essa busca acaba em submissão a outra nação, a outra cultura. Naquele tempo, a Espanha; agora, a Inglaterra e os Estados Unidos. Assim que, em O cais das merendas, Sebastião, mais do que um mito, é um arremedo de herói, já que, diferentemente de “O Desejado”, ele conduz seus conterrâneos a uma jornada de desnacionalização, vendo nela a saída – literalmente – da situação em que se encontravam.

A partir do momento em que passam a trabalhar no Alguergue, toma conta dos moradores da Redonda uma necessidade de substituir o passado de miséria por um presente e um futuro perfeitos, pautados pelo esforço duplo, de esquecimento do que lhes era característico e de adoção de novos valores e atitudes, em imitação ao que se pensa em faz em outros países da Europa. As personagens passam, então, a falar inglês sempre que podem, a trocar, por exemplo, as “merendas”, como chamavam as reuniões em torno de comidas e bebidas, por “parties”, que, segundo Zulmira Santos, articuladora e espécie de guardiã dos bons costumes estrangeiros, eram palavras diametralmente opostas: “A décima nona foi anunciada não como merenda, coisa que lembraria figos, mas já como party, ajuntamento que falava festas, doces gestos, meus amigos. Esse foi o verdadeiro momento. E para tanto não é preciso deitar o olho para trás, e acontecido, como a espelho retrovisor de carro e dizer. Foi assim.” (JORGE, 2002, p. 11).

Similarmente aos habitantes de Vilamaninhos, os moradores da Redonda também esperam que uma solução externa lhes venha solucionar dilemas e modificar a vida de privações. Enquanto em O dia dos prodígios esse elemento externo se consubstancia em um caminhão de soldados mal compreendidos, em O cais das merendas a transformação ganha corpo em um hotel, lugar de passagem e de vida provisória, no qual as personagens enxergam o glamour e a pompa nunca vividos, nem possuídos, mas que passa a fazer parte de seus sonhos, além de seu cotidiano. Escapa-lhes, entretanto, a percepção de que, ali, nada é vital, no sentido de que os hóspedes não têm ali seu cotidiano, mas momentos de lazer, uma vez que vêm sempre em busca das belas praias do Algarve.

Sobre isso, afirma Jane Tutkian:

“O cais das merendas, por sua vez, traz em seu substrato a idéia anterior de condição de marginalidade de Portugal em relação à Europa e à própria América. Aí, permanecendo fiel ao seu projeto literário de busca da identidade cultural portuguesa, Lídia Jorge apresenta uma história centrada entre o real e o irreal na experiência de um povo sem memória e sem identidade próprias.(TUTKIAN, 1999, p. 92)

Da mesma forma, escapa-lhes a dimensão de sua pobreza, ou a consciência de sua recusa a serem, em última instância, os portugueses que sempre foram, na ânsia por assumir uma identidade emprestada, importada. Se os vilamaninhenses encontravam-se alienados de sua condição e submergiam em uma melancólica vida medievalizada e congelada no tempo, os habitantes da Redonda padecem de uma alegria fictícia, baseada em costumes e atitudes que nunca lhes pertenceram, quer ontológica, quer socialmente. Assim, Lídia Jorge delineia, em seu segundo romance, uma espécie de continuidade das discussões que surgem da leitura de seu livro de estreia, ainda que com outra roupagem: uma espécie de complexo de inferioridade habita o ethos lusitano, seja no português que se aliena em sua vida comezinha, presa a um passado imemorial de miséria, violência e força bruta, seja no que se aliena pela fuga, pela rejeição, em certa medida, consciente, do que seja o “ser português”.

Assim, da mesma maneira que em O dia dos prodígios, Lídia Jorge institui um ambiente cuja configuração espacial guarda mais do que as características de um mero cenário. O Hotel Alguergue, da irreal Praia das Devícias (nome que, irremediavelmente, remete a “sevícias”, o que pode ajudar a deslindar, diante do leitor, uma ponta da realidade vivida por aquelas personagens, ainda que alienadas de sua condição), além de referência geográfica para a trama, guarda, na sua irrealidade ficcional, o sonho lusitano de erguer, em suas terras, uma nova civilização, rica, povoada por europeus endinheirados e vindos de outras culturas, de outros países.

“Acordava-se, e as manhãs, mesmo quando encobertas

pelo outono que já fazia, sempre traziam ideias amenas e não admirava. O Alguergue era uma grande máquina de engenharia e arquitectura e encaixava na gente, a gente nela, todos de alma estendida à beira da Praia das Devícias. Bastava cada um deitar para trás das costas as lembranças do tempo dos desejos, e pôr-se no seu rosto a entreter as horas, para sentirmos como a vida corria de manso. Por isso as portas do coffee-shop e do milk-bar abriam à hora aprazada com a placidez e diligência de quem fosse atender os pedidos de please, do. Era assim que pelas onze horas, muito refeito do sono, Rui Seladinha aparecia enfeitado de laço de seda, dragona na manga, disposto a desferir as alavancas da máquina gaggia, em rotina. How many?” (JORGE, 2002, p. 39 – grifos do pesquisador)

Em seu terceiro romance, Notícia da cidade silvestre, Lídia Jorge traz à baila, como

cenário e personagem, a cidade de Lisboa, na qual se dá a trajetória de Júlia, viúva do artista plástico David Grei, em cujo ateliê passa a morar após a morte do marido. A menção a uma cidade “silvestre”, no título da obra, revela-se depois uma relativa ironia, a qual prenuncia o desencanto que toma conta da capital portuguesa nos primeiros anos após a Revolução dos Cravos.

As dificuldades financeiras relatadas pela narradora, somadas à descrição de uma cidade empobrecida, descuidada, bem como às vidas também difíceis das outras personagens, no que tange a sua situação econômica, pautam a condução da narrativa. Júlia Grei tem em Anabela Cravo, uma advogada que busca ascensão profissional, sua conselheira para todas as horas. É por meio de Anabela que Júlia conhece um grupo de artistas plásticos cuja situação de penúria se compagina com a da própria narradora, criando um grupo de personagens em busca de uma saída, não apenas para as questões práticas da vida cotidiana – obter sustento, encontrar uma casa que possa abrigar Júlia e o filho –, mas para a falta de perspectiva de

transformação, a mesma que a insurreição de 1974 parecera instituir e que, analogamente ao que aconteceu na Vilamaninhos de O dia dos prodígios e na comunidade da Redonda de O cais das merendas, não se consubstanciou plenamente. Ao contrário, a percepção da narradora aos efeitos das mudanças trazidas pela Revolução denota, claramente, um momento de crise e instabilidade política, ao menos para o cotidiano das pessoas comuns.

“Nessa altura tinha conhecido Lisboa duma forma

diferente, e assim, os mesmos becos tortuosos e velhos que sempre me tinham evocado uma história poética e antiga pareciam-me agora cárceres com malvas à janela, onde se poderia ficar preso para sempre ao bafio do chão, um só pé assente como os cogumelos no estrume. As roupas brancas que ali tinha visto alvejar, e sempre me tinham parecido lençóis de linho, achava no momento serem ceroulas pardas, coisas macabras de pobreza, mostrando-se da cintura para baixo. Sabia haver entre elas casas restauradas como palácios, no entanto as que eu visitava caiam de podridão”. (JORGE, 1994, p.31 – grifos do pesquisador)

Evidencia-se, então, pela escolha vocabular a partir da qual se constitui a descrição do

espaço, que a Lisboa pós-Revolução não apenas permanece como era; pior que isso, passa por um processo de deterioração, em que, de “história poética e antiga”, os “becos tortuosos e velhos” passam a despertar na narradora a sensação de aprisionamento, sentido ensejado inequivocamente – as ruas de Lisboa são como cárceres decadentes, em que crescem diferentes formas de matagal, sinal claro de estaticidade e falta de movimentação, de qualquer espécie. Dessa forma, Júlia dá a ver uma cidade que, apesar de ter vivido uma revolução, vê ainda mais forte o sentido de sufocamento, mais compatível com uma situação ditatorial do que com uma revolução que se propõe a mudar a vida do país.

Embora seja ambientado em uma realidade geográfica diferente, ou, antes, exatamente por isso, A costa dos murmúrios (1988) dá ao projeto estético de Lídia Jorge uma amplitude que corresponde à profundidade com que pretende discutir a identidade portuguesa, sem desprezar uma de suas faces mais significativas: a do “grande império ultramarino”, imagem que se perpetua até aos dias de hoje, ainda que de maneira mais branda e em outras circunstâncias.

Em uma narrativa densa, A costa dos murmúrios narra a trajetória de Eva Lopo, portuguesa que se casa com o militar Luís Alex em uma cerimônia realizada no terraço de um dos hotéis mais luxuosos da cidade da Beira, em Moçambique. A esse cenário, soma-se uma cena da mais crua brutalidade: centenas de corpos aparecem à beira da praia e são recolhidos por uma retroescavadeira, para serem depositados em caçambas (os dumpsters).

Ao realizar esse retrato crítico, a narrativa de Lídia Jorge aponta, de imediato, uma apatia amedrontada, difundida entre portugueses e moçambicanos, a qual mantém, muito precariamente, o anacronismo da situação colonial. Com o decorrer do texto, percebe-se que a violência inicial reforça-se, por meio da descrição distanciada no tempo, de um cenário de horror e de guerra sem limites éticos.

(…) ninguém podia indicar se era grandiosidade ou

mesquinhez o impulso das pessoas que degolavam as cabeças das outras e as espetavam em paus, e as agitavam em cima das habitações dos próprios degolados (…). Desse modo, Luís

Alex, nem sequer era insigne – apenas um bravo que cortava cabeças e as enfiava num pau, subia às palhotas e ameaçava a paisagem, como os melhores de entre os Godos, os Árabes, os Hunos” (JORGE, 1988 – grifos do pesquisador)

Assim, por meio de seus quatro primeiros romances, Lídia Jorge traça o perfil social e

histórico da nação portuguesa, de modo que, após os primeiros momentos que se seguiram à Revolução dos Cravos, se configure não a identidade portuguesa que teria sido soterrada pela ditadura salazarista, mas, ainda mais amplamente, os traços que compuseram, ao longo da história, o que seria o “ser português”.

Nesse sentido, são fundamentais as análises propostas por Eduardo Lourenço, em O labirinto da saudade (1978), e por Miguel Real, em A morte de Portugal (2008), nos quais, de acordo com os respectivos olhares, a identidade nacional portuguesa é fruto de sua história e, em especial, de traumas fundamentais (para Lourenço), que desaguariam em complexos de comportamento (para Real), os quais pautariam, até hoje, a maneira como Portugal pensa a si mesmo e a sua relação com o restante do mundo, mormente com as outras nações europeias.

Para Lourenço, os três momentos seriam o surgimento do estado português, caracterizado como “mistura fascinante de fanfarronice e humildade, de imprevidência moura e confiança sebastianista, de “inconsciência alegre” e negro presságio”, um “acto sem história”, fruto de ações atribuídas a uma espécie de maravilhoso Cristão, que teriam marcado a visão lusitana a respeito da condução de seu próprio destino, em uma “convicção mágica de uma protecção absoluta” contra as “oscilações lamentáveis de todo o projecto humano”; a União Ibérica (1580-1640), ocorrida em um momento no qual Portugal ainda usufruía das conquistas de ultramar, um interregno que seria quebrado pela perda repentina de Dom Sebastião e, por extensão, da soberania do reino. Tal evento teria reforçado na identidade portuguesa o traço de inferioridade, de ser um povo “naturalmente destinado à subalternidade”4, já existente em decorrência do primeiro traumatismo; e a decadência da monarquia lusitana, cujo momento mais grave foi o Ultimatum imposto pela Inglaterra (1890), e que faz o país voltar os olhos para seu componente europeu, do qual os portugueses se afastaram, como reflexo do isolamento, do “jogo de avestruz” que as conquistas marítimas e a necessidade de revisitá-las constantemente apenas fizeram reforçar.

Vinte e nove anos depois, o filósofo Miguel Real aprofunda a discussão sobre a constituição identitária de Portugal, com a chegada ao mercado editorial de A morte de Portugal, ensaio no qual se debruça sobre o que chama de complexos – também no sentido psicanalítico – que orientam o pensar português e dão origem a uma série de – na visão do autor – distorções de interpretação com relação aos destinos do país, à sua história e ao papel dos portugueses diante de sua própria existência como nação.

Segundo Real, quatro seriam os complexos que interferem no comportamento do povo português, no que tange a sua relação com sua própria realidade e com o universo circundante: o complexo Viriatino, inspirado na figura do mitológico Viriato, herói lusitano que teria vencido, em tempos imemoriais, as investidas de Roma, fazendo de Portugal “um país gerado exemplarmente no mais remoto dos tempos e contra as mais difíceis circunstâncias”6; o complexo Vieirino, fruto do processo dos Descobrimentos, que leva o país a ver-se “como nação superior às demais, sintetizada na majestática arquitectónica do Quinto Império do Padre António Vieira”7; o complexo Pombalino, sintetizado no que o autor considera uma tentativa, liderada pelo Marquês de Pombal, de elevar Portugal ao que seria uma espécie de superioridade europeia, tornando-o “um país que, fracassado o sonho grandiloquente do Império, se lastima e se penitencia, considerando-se nação inferior, passível de máxima humilhação”8; e, por fim, o complexo canibalista, espécie de síntese dos outros complexos, pensamento diacrônico que se manifesta em um “país mesquinho,

venenoso e bárbaro, permanentemente ansioso de purificação ortodoxa”, de ação politica e intelectual baseada na “canibalização das correntes adversárias, negando-as e humilhando-as”9, das quais seriam exemplos tanto a presença do Tribunal do Santo Ofício em Portugal, quanto a polícia política do Estado Novo e a guerra colonial.

Assim, tanto Eduardo Lourenço quanto Miguel Real expõem, sob uma perspectiva sociológica, alguns dos traços comportamentais constantemente atribuídos ao “ser português”. É comum, ainda que de maneira estereotipada, pensar no povo português como uma nação exacerbadamente Católica, apegada a um remoto passado de feitos heroicos e dona de uma inércia exemplar diante do que se configura novo ou diferente da tradição. Talvez, de tudo isso, seja o culto ao mito de Dom Sebastião uma das mais eloquentes traduções. Nela, aparecem os traumas fundadores de Lourenço – o misticismo em que se envolve a história do país desde sua constituição como Condado, no século XII, a perda do próprio Dom Sebastião em Alcácer-Quibir (esse, também, um evento brumoso, envolto em mistério), bem como a consequente espera por um agente externo, que possa vir a sanar dificuldades ou reconquistar glórias perdidas – e os complexos de Real, adornados por uma aura freudiana – o herói supra-humano, movido pelas mãos do maravilhoso Cristão, torna-se o ser superior, conquistador de terras e mares, para, na sequência, descobrir-se demasiadamente atávico, preso a uma condição de atraso gritante, que o conduz a repetir, indefinidamente, procedimentos de vigilância e controle medievais.

A leitura dos quatro primeiros romances de Lídia Jorge enseja uma relação de proximidade com o pensamento de Lourenço e Real, uma vez que é possível perceber, em cada uma das quatro obras, a descrição de comportamentos e posicionamentos que refletiriam os traumas e complexos postulados pelos filósofos. Tal constatação pode sugerir, assim, que, à parte as questões estilísticas e de construção das narrativas – as quais têm lugar garantido em uma leitura mais extensa e aprofundada da obra da escritora –, não é descabido afirmar que, no plano ideológico, o romance da autora do Algarve carrega a consecução de uma necessidade, qual seja a de não apenas discutir, por meio da escrita de ficção, os rumos que Portugal toma a partir de 1974, mas, principalmente, a de resgatar, revisitar algumas das crenças que norteiam o pensamento português acerca de sua identidade e da imagem que, ao longo da história, o país construiu a seu próprio respeito.

Debaixo de séculos de conquistas e perdas, momentos sangrentos e verdadeiras trapalhadas político-sociais, emergem conceitos que tiveram uma utilização política intensa, especialmente durante o regime Salazarista (1932-1974). Assim, a obra de Lídia Jorge – bem como a de seus contemporâneos – devota-se a desconstruir – no sentido mais popularizado do termo, que se aproxima de “desmontar, para compreender, e reconstituir” – a gama de ideias que o país carregou acerca de sua identidade. Paralelamente, a escrita da autora levanta questões de ordem ontológica, em que aparecem claramente questionamentos a respeito da natureza humana – o domínio do outro, a alienação diante da realidade massacrante, a busca pela preservação de um sonho burguês de ascensão econômica, o caráter animalesco, atávico, de atitudes em cuja fachada aparece o “direito à autopreservação” –, todas, de uma maneira ou de outra, diretamente relacionadas às consequências, no plano pessoal, de uma cultura e de um modo de pensar a realidade que cerca as personagens. As personagens de Lídia Jorge, em seu ciclo inicial de romances, consubstanciam, por assim dizer, os complexos de personalidade de que padece a alma portuguesa.

Na trama de O dia dos prodígios, os viventes de Vilamaninhos padeceriam do Complexo Vieirino, na acepção de Miguel Real, uma vez que creditam a possível solução futura de suas questões a um ente desconhecido, mas, certamente, externo, em uma releitura da predestinação do império português a um sucesso trazido por mãos superiores. Em que pese o fato de que a chegada desse ente – transfigurada em um caminhão de soldados revolucionários – não satisfaz as necessidades imediatas dos moradores do vilarejo, a própria

ocorrência do primeiro dos prodígios – o surgimento do réptil alado – transporta as expectativas – e a leitura de mundo – dessas personagens para um plano mítico, a que se tem acesso apenas por vias maravilhosas.

Da mesma forma, os habitantes da Redonda, aldeia em que se passa O cais das merendas, veem na chegada de turistas – especialmente os ingleses – e na adoção imitativa de seus hábitos, vistos como superiores, uma possibilidade de transformação de sua existência, ainda que, para isso, forcem-se a viver um processo de apagamento de sua identidade coletiva. Esse posicionamento remete ao Complexo Pombalino, espécie de complexo de inferioridade diante de outra culturas europeias, vistas como modelos a serem mimetizados, considerados melhores pelo simples fato de serem externos. Tal complexo, em grande medida, pode ser considerado consequência do trauma do Quinto Império, conforme postula Eduardo Lourenço, uma vez que seria o complexo de inferioridade, fruto de uma experiência de submissão a uma cultura externa, o motor dessa atitude de anulação da lusitanidade, em prol da adoção dessa cultura exterior.

Na esteira desse pensamento, pode-se interpretar a visão acerca de Lisboa representada em Notícia da cidade silvestre como uma manifestação do mesmo complexo, apenas em ordem inversa: por destruída e entregue à própria pobreza, a cidade não logrou aproximar-se da civilização europeia, aquela da qual se tem mantido afastada desde tempos imemoriais – precisamente, os que marcam os dois últimos traumas pontuados pela teoria de Lourenço: o sonho do Quinto Império e o Ultimatum inglês.

Por outro lado, a narrativa de Notícia da cidade silvestre guarda, também, traços que confirmariam a existência do quarto complexo enunciado por Real, o canibalista, uma vez que são evidentes no texto tanto as relações de Anabela Cravo com as instâncias superiores do poder judiciário português, denotando a interferência dessas esferas na vida cotidiana do povo lusitano, quanto a própria relação de Anabela com Júlia, tutorando-a, tomando conta de sua vida, até ao ponto em que a protagonista decide distanciar-se dessa interferência. Assim, Anabela e Júlia vivem aquilo que, de acordo com Miguel Real, seria a manifestação comezinha desse complexo: os portugueses teriam o gosto pelo espiar, pelo policiar e denunciar, pelo manipular e controlar a vida uns dos outros.

Por fim, é na trajetória das personagens de A costa dos murmúrios que, dentre os romances que constituem a fase inicial da obra de Lídia Jorge, manifesta-se com mais evidência o complexo canibalista, na figura de Luís Alex, o soldado português que, movido por razões sociohistóricas – na década de 1970, em seus estertores, o regime ditatorial tentava, a qualquer custo, manter o poder sobre as “províncias ultramarinas”, recrutando e enviando à África jovens de todas as classes sociais e de todas as bases de formação acadêmica –, devota-se a resolver uma questão, quase cientificamente: ir a Moçambique, lutar conforme a necessidade do exército e voltar a Portugal e a seus estudos de matemática, como quem cumpre um roteiro pré-determinado.

Entretanto, ao longo de sua experiência em África, Luís Alex contamina-se, por assim dizer, pelo espírito de controle e poder a todo custo, característico da forma como o governo português lidou com as questões coloniais. Assim, o antes brilhante matemático assume como missão de vida vigiar, punir e destruir todo aquele que se colocasse contra as ordens de Lisboa, representando não apenas uma ameaça aos planos da ditadura, mas, no plano ideológico, um desrespeito ao que se postula “certo”, “justo”, “moral”, como se os povos africanos que resistissem às intervenções ditatoriais portuguesas fossem passíveis de castigo por não agir de acordo com a moral vigente.

Dessa forma, pode-se concluir que os romances da fase inicial da obra de Lídia Jorge constituem, em termos de projeto estético-ideológico, um panorama rico a respeito do pensar português em torno de sua própria identidade, bem como ensejam uma discussão sobre os rumos que o país pode tomar, após o final de um ciclo trágico de sua história. Talvez, para os

futuros historiadores, o final da Ditadura Salazarista represente um quarto trauma, na esteira do que diz Lourenço: o do país que precisa redescobrir quem é, revisitar sua imagem no espelho, a fim de ter uma visão mais precisa de como administrar sua vida.

Nesse sentido, a obra da escritora pode desempenhar papel fundamental, uma vez que guarda em suas páginas um retrato, ainda que metafórico, de alguns dos incômodos mais relevantes para os portugueses, no que diz respeito à sua própria história. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS JORGE, Lídia. O dia dos prodígios. 7ª edição. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1995. ___________. O cais das merendas. 2ª edição. Lisboa, Europa-América, 1989. ___________. Notícia da cidade silvestre. 10ª edição. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1994. ___________. A costa dos murmúrios. Rio de Janeiro, Record, 2004. LOURENÇO, Eduardo. Labirinto da saudade. 6a. Edição. Lisboa, Gradiva, 2009. MAXWELL, Kenneth. O império derrotado – revolução e democracia em Portugal. Tradução

de Laura Teixeira Motta. São Paulo, Companhia das Letras, 2006. REAL, Miguel. A morte de Portugal. Porto, Campo das Letras, 2008. TUTKIAN, Jane Fraga. Inquietos olhares: a construção da identidade nacional nas obras de

Lídia Jorge e Orlanda Amarílis. Tese de Doutorado. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1998.

O fluxo da consciência em Clarice Lispector e Menalton Braff: Transformações ao longo das décadas - Natali Fabiana da Costa e Silva (UNESP)

RESUMO: Este artigo pretende investigar o uso das técnicas do fluxo da consciência em “A imitação da rosa” (Laços de família, 1979) de Clarice Lispector e “Crispação” (À sombra do cipreste, 1999), de Menalton Braff. Guiar-nos-emos pelos conceitos de Robert Humphrey a fim de perquirir o movimento do pensamento de fluxo em si, isto é, analisaremos como o movimento de livre associação de ideias se processa e quais recursos são utilizados para a criação da descontinuidade e incoerência presentes na tessitura da mente. PALAVRAS-CHAVE: fluxo da consciência; estudo comparativo; Menalton Braff; Clarice Lispector

Introdução

Este trabalho visa mostrar semelhanças e diferenças entre os contos “A imitação da

rosa”, de Clarice Lispector e “Crispação”, de Menalton Braff presentes em Laços de família (1979) e À sombra do cipreste (1999) respectivamente. A análise incidirá sobre as técnicas empregadas na elaboração do fluxo da consciência. Visamos perquirir – para além de uma simples enumeração das técnicas empregadas na elaboração dos textos – o movimento do pensamento de fluxo em si, isto é, analisaremos como o movimento de livre associação de ideias se processa; quais recursos são utilizados para a criação da descontinuidade e incoerência presentes na tessitura da mente; em que medida o monólogo interior está organizado a ponto de alcançar a consciência pré-verbal da personagem e imprimir um significado dentro da estrutura do texto.

O fluxo da consciência por si só não é uma técnica. É, antes de tudo, um tipo de ficção que incorpora uma nova dimensão na escrita, a qual exige o uso das mais variadas técnicas ficcionais.

Uma vez que as narrativas de fluxo da consciência podem empregar uma multiplicidade de técnicas para desnudar a mente de uma personagem, a definição de um romance desse tipo dá-se mais facilmente pela identificação de seu conteúdo. De acordo com Humphrey (1976), esses romances buscam captar a consciência de uma ou mais personagens; no entanto, por não estática, a representação dessa consciência exige uma grande liberdade quanto ao movimento da escrita, podendo retroceder ou avançar no tempo, misturando passado, presente ou futuro imaginário: Assim, representar a consciência é buscar plasmar seu aspecto descontínuo e essencialmente particular. Isso ocorre, pois de acordo com Humprhey a consciência retratada nos romances de fluxo é aquela que busca a “captação da consciência pré-verbal”, ou seja, aquela em que os processos do pensamento “não são deliberadamente peneirados para comunicação direta” (p.69). O resultado dessa representação é uma textura imperfeita e aparentemente incoerente dos processos psíquicos. Lembranças, pensamentos e sentimentos encontram-se nos níveis de consciência, no entanto, esses elementos aparecem não em cadeia, mas em fluxo, numa tentativa de demonstrar a textura mental inapreensível, o estado que antecede a elaboração racional da mente, ou seja, que diz respeito “aos níveis menos desenvolvidos do que a verbalização racional” (1976, p.03).

O grande paradoxo da ficção de fluxo encontra-se justamente nesse aspecto intraduzível da psique, pois sua essência incoerente, descontínua e móvel no tempo e espaço deve ser comunicada pelo escritor. Cabe a ele dar sentido ao movimento interno e desordenado da mente das personagens, ao qual nem mesmo elas são capazes de controlar.

Nesse sentido, ao refletir sobre características literárias em Virginia Woolf, James Joyce, Dorothy Richardson, William Faulkner, entre outros, Humprhey classifica-os como autores de romances de fluxo da consciência em oposição a Marcel Proust, pois em À la recherche du temps perdu o escritor “somente se ocupa com o aspecto rememorativo da consciência. Proust estava propositalmente recapturando o passado com finalidades de comunicação; portanto, não escreveu um romance de fluxo da consciência” (1976, p.4).

Nascida no final do século XIX e disseminada na primeira metade do século XX, a ficção do fluxo da consciência destoava das narrativas criadas até então e que privilegiavam um enredo de ação. Agora, na ficção do fluxo, a experiência deixa de estar vinculada a uma ação exterior e passa a ser concebida como consciência existencial.

Essa internalização da narrativa propicia uma nova visada em determinados elementos estruturais da ficção. Assim, quando um autor decide apresentar sua personagem por meio da tessitura de sua consciência, então a mente dessa personagem deve tornar-se o cenário da obra; o tempo, por sua vez, deve ter o alcance de suas lembranças; o espaço deve ser aquele onde a mente queira ir; a ação, os acontecimentos lembrados, percebidos e até mesmo imaginados pela personagem.

A fim de representar o tecido da psique no estágio pré-verbal da comunicação, Humphrey apresenta técnicas que se encarregam de organizar a tessitura incoerente e descontínua da mente, como o monólogo interior direto; monólogo interior indireto; descrição feita por um autor onisciente; solilóquio.

O monólogo interior é a técnica mais encontrada nos romances de fluxo. A personagem não se direciona ao leitor ou a qualquer outra personagem, tampouco sua fala busca elucidar ou facilitar a leitura, é como se o pensamento fosse captado em pleno andamento, escusando-se de qualquer explicação. Há um “elemento de estudada incoerência”, ou seja, o vago e o impreciso são características essenciais nessa técnica.

A diferença entre o monólogo interior direto e indireto consiste na presença ou ausência do narrador. No primeiro caso, a narrativa tem um narrador autodiegético, enquanto no segundo, heterodiegético. Das quatro técnicas descritas, apenas o monólogo interior contempla o corpus deste trabalho. As demais técnicas não serão definidas a fim de dar ao texto maior fluidez e evitar uma extensa lista de conceitos. Clarice Lispector e Menalton Braff No Brasil, a década de 1930 foi profícua para o romance, especialmente àqueles cujas abordagens retomavam um viés realista no qual o contexto social conturbado e denúncias de exploração e miséria eram matéria-prima de seus enredos.

No entanto, sendo a ficção moderna caracterizada pela tomada de novos rumos da literatura em direção a uma escrita na qual a presença do “eu” é cada vez mais marcante, Raimond (1966) sinaliza um paulatino esgotamento dos romances realistas e naturalistas e mostra uma lenta mudança na ficção desde a época do Romantismo e Simbolismo.

Desde sua primeira obra Perto do coração selvagem (1944), Clarice Lispector surpreende a crítica brasileira ao se contrapor aos romances de feição neorrealistas da primeira metade do século XX. Deixando de lado temas de cunho social e adotando uma

perspectiva mais intimista, a autora exibe uma produção cujo tema central são questões inerentes à condição humana. Muitas vezes entendida como narrativa poética, a escrita de Lispector passa por uma busca existencial que, para Candido (1970), tem como mote da narrativa a essência, as paixões e os estados de alma das personagens.

Colocada ao lado de escritoras como Virginia Woolf e Katherine Mansfield, Lispector busca em suas obras não a representação do mundo, mas sua revelação por meio do olhar singular de cada personagem que, por muitas vezes, busca o auto-conhecimento. Desse modo, o tempo cronológico, exterior cede ao tempo interiorizado da narrativa.

Laços de família, publicado em 1960,19 é o primeiro livro de contos de Lispector. A maioria de suas histórias retratam a condição feminina no contexto familiar. Trinta e nove anos separam Laços de família de À sombra do cipreste (1999), de Menalton Braff. No entanto, a distância temporal torna-se diminuta mediante algumas similaridades na narrativa desses dois escritores.

Braff é autor contemporâneo de contos e romances. Ainda não totalmente conhecido no cenário das Letras brasileiras, vem ganhando reconhecimento da crítica literária, especialmente após ser agraciado com o prêmio Jabuti 2000 pelo livro À sombra do cipreste (1999). Possui um grande número de obras publicadas, dezenove no total20, das quais várias receberam indicações a prêmios literários como o Jabuti, Prêmio São Paulo ou Portugal Telecom.

Com uma escrita intimista, na qual o tempo é interiorizado e o mundo ao redor é percebido pelo olhar de suas personagens, seus heróis estão em conflitos em seus locais de trabalho, nos seus relacionamentos ou com sua família. Seus protagonistas são seres solitários que vivem cativos de uma interioridade que só nos é dada a conhecer através de descrições oniscientes ou monólogos interiores. A apatia do homem frente a uma realidade problemática é tema constante em sua obra À sombra do cipreste, e é justamente essa condição que leva Caio Porfírio Carneiro (apud Beleboni, 2007, p.20) a afirmar que os contos de Braff são mais implosivos que explosivos.

No que tange à similaridade entre os autores, Lispector e Braff apresentam o mundo de suas personagens por meio de narradores oniscientes que as focalizam internamente. Um enredo intrincado e repleto de ação cede espaço a histórias cotidianas sem grandes feitos ou mudanças externas nas quais percebemos o fluxo da consciência misturando impressões, sentimentos e memórias.

Para além do movimento incoerente e descontínuo da mente das personagens trazido pelo fluxo da consciência, observamos uma linguagem cuja preocupação estética se apropria desse recurso de escrita para imprimir às narrativas uma tessitura textual que incorpore um recrudescimento da subjetividade, um amplo uso de sinestesia, uma grande plasticidade na descrição dos espaços, uma forte presença de sonoridade e metáforas. Esses recursos sugerem uma linguagem às raias da poesia.

Análise:                                                                                                                          19A  edição  usada  para  este  estudo  é  a  11ª,  de  1979.  

20  As  obras  publicadas  são:  Janela  aberta  (1984),  Na  força  de  mulher  (1984),  À  sombra  do  cipreste  (1999),  Que  enchente  me  carrega  (2000),  Castelos  de  papel  (2002),  A  esperança  por  um  fio  (2003),  Como  peixe  no  aquário  (2004),  Na  teia  do  sol  (2004),  Gambito  (2005),  A  coleira  no  pescoço  (2006),  A  muralha  de  Adriano  (2007),  Antes  da  meia-­‐noite  (2008),  Moça  com  chapéu  de  palha  (2009),  Copo  vazio  (2010),  No  fundo  do  quintal  (2010),  Mirinda  (2010),  Bolero  de  Ravel  (2010),  Tapete  de  silêncio  (2011)  e  O  casarão  da  rua  do  rosário  (2012).  

Em Laços de família (1979) a condição feminina no contexto familiar é um dos temas

sobressalentes da obra. O conto a ser analisado, “A imitação da rosa”, não foge a esse aspecto. Laura, esposa de Armando, de volta ao lar depois de certo período de internamento

numa clínica psiquiátrica, espera o retorno do marido a fim de irem ao jantar oferecido pelo casal de amigos Carlota e João. Laura esforça-se para ser uma dona de casa dedicada e para manter o papel de boa esposa e poupar dissabores ao marido. No entanto, tal dedicação vai aos poucos se revelando uma obsessão. Ela luta com afinco para ser uma esposa ideal e por isso busca ater-se à imperfeição de singela mulher, dona de casa afeita à rotina “com seu gosto minucioso pelo método” (p.36), de coxas baixas e grossas, pouco original e desinteressante, imagem essa contrária àquela do período de internação na clínica, em que se mostrava clara como um “vaga-lume”, em que possuía “aquele ponto vazio e acordado e horrivelmente maravilhoso dentro de si” (p.39) que a tornava “super-humana” e que a mantinha distante da imperfeição.

Por meio de um pensamento em fluxo Laura resgata memórias, projeta situações imaginárias sempre na tentativa de parecer natural, de não tomar atitudes apenas para provar que está bem. Esse desfiar de pensamentos também se apresenta por meio da técnica de livre associação psicológica. Para Humphrey (1976), a livre associação psicológica é uma técnica secundária que se caracteriza pelo “poder que uma coisa tem de sugerir outra através de uma associação de qualidades em comum ou contrastantes, no todo ou em parte” (p.38).

O excerto abaixo esclarece nossa afirmação:

Com seu gosto minucioso pelo método – o mesmo que a fazia quando aluna copiar com letra perfeita os pontos da aula sem compreendê-los –, com seu gosto pelo método, agora reassumido, planejava arrumar a casa antes que a empregada saísse de folga para que, uma vez Maria na rua, ela não precisasse fazer mais nada, senão 1°) calmamente vestir-se; 2°) esperar Armando já pronta; 3°) o terceiro o que era? Pois é. Era isso mesmo o que faria. E poria o vestido marrom com gola de renda creme. Com seu banho tomado. Já no tempo do Sacré Coeur ela fora arrumada e limpa, com um gosto pela higiene pessoal e um certo horror à confusão. O que não fizera nunca com que Carlota, já naquele tempo um pouco original, a admirasse. A reação das duas sempre fora diferente. Carlota ambiciosa e rindo com força; ela, Laura, um pouco lenta; Carlota não vendo perigo em nada. E ela cuidadosa. Quando lhe haviam dado para ler a “Imitação de Cristo”, com um ardor de burra ela lera sem entender mais, que Deus a perdoasse, ela sentira que quem imitasse Cristo estaria perdido – perdido na luz, mas perigosamente perdido. Cristo era a pior tentação. E Carlota nem ao menos quisera ler, mentira para a freira dizendo que tinha lido. Pois é. Poria o vestido marrom com gola de renda verdadeira (LISPECTOR, 1979, p.36-37).

O que podemos observar no fragmento acima é um narrador heterodiegético que,

focalizando Laura internamente, expressa seus pensamentos, lembranças e sentimentos por meio do monólogo interior indireto. A presença do narrador é quase imperceptível, dando a impressão de estarmos ouvindo as reflexões diretamente de Laura.

Em determinado momento da narrativa, Laura prende sua atenção nas rosas que comprara naquela manhã. Devido a sua beleza, decide dá-las em presente à amiga Carlota. No entanto, a perfeição das flores lhe seduz a ponto de se sentir culpada por não mais querer presentear a amiga e manter as rosas para si. Por meio da memória lembra-se então que lera no colégio “A imitação de Cristo” e sentira, sem entender a obra, que aquele que buscasse a perfeição de Cristo estaria perdido para sempre. As rosas e sua beleza soam-lhe como tentação e, embora buscasse se proteger do abismo ao qual novamente estava se lançando – o abismo da imitação de Cristo e das rosas – não conseguia mais se livrar da ideia que se tornara fixa: a perfeição, que anteriormente havia experimentado, tornando-se “super-humana”.

Nesse momento inicia-se o martírio de Laura para manter-se dona de casa falível, insignificante e cansada e afastar-se da sensação do incansável, da tranquilidade e da perfeição que a loucura outrora lhe fez experimentar. Denominaremos esse ponto de segunda parte da narrativa. Há, então, um recrudescimento das técnicas do fluxo da consciência, pois memória, impressões e sensações sinestésicas guiam o olhar de Laura que, nesse momento, abre-se para presenciar o espetáculo da beleza figurativizado pelas rosas “E, sinceramente, nunca vi na minha vida coisa mais perfeita” (p.50).

Além disso, repetições de pensamentos e longas pausas reflexivas irrompem ilustrando o embate interno em que se encontra, e que conduz a personagem a seu estado último, a loucura – metaforizada pela rosa, imagem que se repete e se intensifica ao longo do conto e pela claridade, como se a loucura fosse a paradoxal condição que a fizesse enxergar melhor sua situação: “Como se pinga limão no chá escuro e o chá escuro vai se clareando todo. Seu cansaço ia gradativamente se clareando. Sem cansaço nenhum, aliás. Assim como o vaga-lume acende” (p.54-55).

Ao contrário de Laura, que luta para pertencer a um mundo medíocre, Cacilda buscara sair da ordinária rotina a fim de salvar seu casamento. Protagonista de “Crispação”, a personagem também figurativiza a condição feminina dentro do aspecto familiar e traduz para a linguagem literária o sofrimento e a angústia de uma mulher diante do relacionamento conjugal no qual o amor e o diálogo foram esmorecendo ao longo dos anos.

O conto revela a trajetória do matrimônio de Cacilda e Rodolfo, que vai da paixão e cumplicidade até o momento da enunciação, no qual o casal vive “uma vida comum em descomunhão” (p.43). São narrados sofrimento, inquietações e desilusões da esposa diante da sua situação conjugal. A ambientação é a cozinha do casal que, à hora da refeição, não é capaz de trocar nem olhares nem palavras. A atmosfera do local é quase estática, reflexo das atitudes das personagens que, caladas, tomam café. Quietas há mais de duas horas, acostumadas ao silêncio que há anos as cerca, xícaras, toalha de mesa, pratos sujos, entre outros, são alguns dos objetos que ajudam a compor a incômoda atmosfera do conto.

“Crispação” é pautado em memórias trazidas pela voz de um narrador heterodiegético que focaliza internamente Cacilda. Contudo, esse aspecto rememorativo não configura um pensamento de fluxo ainda, pois suas lembranças são dispostas ao leitor deliberadamente, com vistas a deixá-lo a par da situação conjugal – as memórias de um casamento feliz até as inúmeras tentativas da esposa para salvar seu matrimônio.

O que temos em “Crispação”, portanto, são memórias que em determinado momento da narrativa se interrompem para ceder lugar ao pensamento em fluxo de Cacilda, que aparece de forma muito breve para revelar de forma mais contundente os sentimentos da personagem diante do marido à sua frente, que há anos sem comunicação com a esposa, resolve, inesperadamente, fazer-lhe um pedido. Tal pedido, embora inócuo, é significativo a ponto de provocar em Cacilda uma série de reflexões confusas e mescladas a memórias e sensações:

Cacilda estremeceu. Estava justamente a pensar que dali a pouco teria de sair sob o chuvisqueiro para comprar alguns gêneros que lhe estavam faltando. A voz de Rodolfo em clara concreção soara-lhe como punção aguda penetrando por fissuras de seu pensamento./ – Mas.../ O que era mesmo que precisava dizer? As mãos soltas no regaço reagiram à momentânea crispação e quedaram-se novamente a descansar, esquecidas dos tempos em que eram hábeis e capazes de mil realizações. Mas teria, então, em verdade, alguma coisa a dizer? Rodolfo continuava de olhos fixos nos seus, e eram dois olhos azuis que aguardavam, e era-lhe difícil agora saber exatamente o que, num reduzido instante, parecera-lhe forçoso dizer (BRAFF, 1999, p.44-45).

A divisão em duas partes da narrativa (a segunda etapa mais intensa que a primeira) e

a ênfase nos sentidos coadunam com os procedimentos vistos em “A imitação da rosa”, de Lispector. Odores, tato, visão, audição aguçam-se no momento em que se inicia o fluxo da consciência. Assim como a imagem da rosa para representar a crise de Laura, é a imagem da chuva que representa a situação de Cacilda, seu interior sombrio e triste, como a própria “débil e obsedante melopeia do céu em final” que “debulha no chuvisqueiro nascido com os princípios dos tempos” (BRAFF, 1999, p.43), mas “que não passaria antes que se acabasse o mundo” (BRAFF, 1999, p.49), como anuncia o narrador ao final do conto, revelando que a condição de Cacilda não mudaria.

Conclusão Em relação às técnicas do Fluxo da Consciência, vale destacar que, neste artigo, foram elencadas apenas as principais a fim de uma breve ilustração da maneira como os contos se constroem. Enquanto em “A imitação da rosa” o fluxo da consciência se apresenta por meio do Monólogo Interior Indireto, em “Crispação”, percebe-se uma utilização mais consciente e organizada das estratégias. Nota-se no conto braffiano, por exemplo, uma presença maior de acontecimentos se comparado ao conto de Lispector, que desnuda um arsenal de longas pausas reflexivas e todo o movimento incoerente da psique. Assim, enquanto “A imitação da rosa” é todo escrito em fluxo da consciência, em “Crispação” observamos uma narrativa na qual as memórias são deliberadamente colocadas a fim de preparar a narrativa para o momento final, em que a partir da atitude inusitada do marido, um desejo inesperado que o tira de seu silêncio, Cacilda tem um breve sobressalto, que se mostra através do fluxo da consciência. Quanto ao início do uso do fluxo da consciência na literatura, temos que essa técnica marca o início da narrativa moderna, pois os primeiros romances experimentalistas do modernismo europeu já estavam imbuídos desse procedimento. Como marca do experimentalismo clariceano, o fluxo da consciência também está presente na sua narrativa. A cronologia, em sua obra, foi abalada – passado, presente e futuro foram fundidos – como já acontecia nos romances de Proust, Joyce, Woolf, Gide e Faulkner. Como afirma Rosenfeld (1996), com esse abalo temporal o homem não vive no tempo, mas é tempo, tempo não cronológico e cada momento de nossa consciência engloba o presente, o passado e por que não, o futuro.

Braff, por sua vez, demonstra em seu texto a influência direta dos escritores pioneiros do romance do fluxo da consciência. Tal background possibilita que o autor ressignifique essa

técnica de forma a traduzir as angústias do homem contemporâneo. Assim Braff traz um narrador em crise com seu mundo, em cisão com a sociedade, mas não por motivos como o de um mundo mutilado pelo pós-guerra ou absorvido pela cultura de massa, motivos presentes à época do início do fluxo da consciência, e sim pela não concordância com as regras da vida em sociedade, as quais já fazem parte da mentalidade das demais personagens.

É por esse motivo que as personagens braffianas são, em geral, apáticas. Isso ocorre, pois cansadas de lutar, a única possibilidade é aceitar a realidade que as circunda. Nesse sentido, chamam a atenção em “Crispação” a falta de atitude e a resignação de Cacilda no momento da enunciação, que se refugia em seu mundo interior, buscando liberdade através do pensamento.

O que se vê no texto de Braff e que o diferencia do conto de Lispector é a tentativa da representação da consciência da personagem na narrativa como uma espécie de retorno ao realismo.

Tânia Pellegrini, lança luz sobre as recentes manifestações da escrita literária, advertindo para um inevitável retorno ao realismo não como tendência do século XIX, mas como nova forma de encarar a realidade, na qual o próprio conceito de realidade é “totalmente modificado, que inclui, como concretas, reais e representáveis, as profundas tensões e ambivalências da consciência humana” (PELLEGRINI, 2004, p.146).

Referências BRAFF, M. À sombra do cipreste. Ribeirão Preto: Fábrica do livro, 1999. CANDIDO, A. No raiar de Clarice Lispector. In: ______. Vários escritos. São Paulo: duas Cidades, 1970. P.123-131. GENETTE, G. O discurso da narrativa. 3.ed. Lisboa: Veja, 1995. HUMPRHEY, R. O fluxo da consciência: um estudo sobre James Joyce, Virginia Woolf, Dorothy Richardson, William Faulkner e outros. Trad. Gert Meyer. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1976. LISPECTOR, C. Laços de família. 11ªed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. PELLEGRINI, T. Realismo: postura e método. Revista Letras de hoje, porto alegre, v. 42, n.4, p.137-155, dezembro de 2007. PONTIERI. R. Clarice Lispector: uma poética do olhar. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999. RAIMOND, M. La crise Du Roman. 5.ed. Paris: José Corti, 1966. ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: ____. Texto/contexto I. 5.ed. São Paulo: Perspectiva, 1996. ZILBERMANN, R. et all. Clarice Lispector: a narração do indizível. Porto alegre: Artes e Ofícios, EDIPUC, Instituto Cultural Judaico Marc Chagal, 1998.

Tempo e narrativa em Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?, de António Lobo Antunes - Paula Renata Lucas Collares (PUCRS)

RESUMO: Em Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra No Mar? (2009), António Lobo Antunes retrata o drama de uma família desagregada e decadente. O romance se circunscreve a partir da memória das personagens de um tempo de dor e angústia. Desta forma, este trabalho tratará da questão do tempo na constituição de uma identidade narrativa, preponderantemente, percebendo como as personagens rearticulam o presente através das reminiscências de uma infância de abandonos, de vazios e de amarguras. Palavras-chave: António Lobo Antunes; Memória; Tempo; Narrativa.

Começo o meu texto retomando as observações de Santo Agostinho no livro XI das

Confissões. Para tal recupero as palavras de Jeanne Marie Gagnebin, no artigo intitulado “Dizer o tempo”. A autora mostra que Santo Agostinho “abre um novo campo de reflexão: o da temporalidade da nossa condição específica de seres que só nascem e morrem no tempo, mas, sobretudo, que sabem, que têm consciência de sua condição temporal e mortal” (1997, p.70). Pensar o tempo é também. “de maneira inseparável, uma interrogação sobre o eu narrador, sobre a identidade narrativa” (1997, p.71). Pensar o tempo implica “pensar na linguagem que o diz e que ‘nele’ se diz” (1997, p.75). Para Santo Agostinho, “passado, presente e futuro são modulações de um presente absoluto: presente das coisas passadas, presente das coisas presentes, presente das coisas futuras. Passado, presente e futuro são fases de um só tempo [...]” (apud RIBEIRO, 2006) 21.

Ricoeur, em Tempo e Narrativa, logo no início do primeiro tomo, retoma o estudo de Santo Agostinho do livro XI das Confissões. Diz-nos Ricoeur: “estamos [...] prontos a considerar como seres não o passado e o futuro como tais, mas qualidades temporais que podem existir no presente [...]” (1994, p.26). Ricoeur recupera as palavras de Santo Agostinho: “Onde estejam, quaisquer que sejam, [as coisas futuras ou passadas] só estão aí como presentes [...]” (1994, p.27). É só através da memória que recuperamos o passado. O presente reactualiza o passado.

Passado, presente e futuro também são evocados no romance Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?, do português António Lobo Antunes. Através de um discurso memorialista, que articula tempo e linguagem, é narrada a história de uma família ribatejana desagregada e decadente. O romance está organizado em sete partes que obedecem à divisão de uma corrida de toiros: antes da corrida, tércio de capote, tércio de varas, tércio de bandarilhas, a faena, a sorte suprema e depois da corrida. Em antes da corrida e depois da corrida, que podem ser lidos como o prólogo e o epílogo, escutamos a voz de Beatriz. Os outros cinco capítulos são protagonizados por quatro vozes, sendo constantes as três primeiras (os filhos Francisco, Ana e João).

A diegese se circunscreve em um só dia: Domingo de Páscoa, 23 de março. O fio da memória constitui o elo narrativo que convoca à narração as personagens e os seus fragmentos do passado. Enquanto aguardam a morte da mãe, que “vai morrer às seis horas”,                                                                                                                          21RIBEIRO, Martha M. “O tempo como tema e problema: Um estudo do livro XI das Confissões de Santo Agostinho, na Interpretação de Paul Ricouer”. Disponível em http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/t00008.htm

cada personagem realiza uma viagem à infância na tentativa de encontrar algum sentido para os eventos do presente. Entremeiam-se as vozes dos filhos - Beatriz, duas vezes divorciada; Francisco, o filho rancoroso e que deseja ficar com os bens que restaram; Ana, viciada em drogas; João, homossexual e o preferido da mãe. Também escutamos a voz de Rita, a filha que morreu devido a um câncer; do pai, também já morto que outrora era viciado em jogos; do filho bastardo, que ninguém pode mencionar o nome e que fica isolado na quinta; da empregada Mercília e da mãe, Maria José Marques, que aguarda a própria morte.

Escutamos também a voz do autor que se confunde com a de cada personagem abrindo espaço para os fragmentos de histórias que exigem que leitor encontre sentido nas zonas de indeterminação Os diversos narradores debatem com aquele que “faz este livro”. A figuração da personagem antuniana, ou seja, o discurso que a coloca no romance surge em grande parte através das suas reminiscências da infância, sendo esse período tão importante na sua definição como personagem. Sendo assim, pode-se dizer o tempo em Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? ocupa o cerne da narrativa, constituindo-se como parte integrante da ficção.

Maria Alzira Seixo, analisando o romance O Esplendor de Portugal, que também cede lugar à lógica da memória, afirma que por essa estratégia as personagens procuram “produzir um efeito de actualização do passado” (2002, p.321). O mesmo ocorre no romance em questão. Neste romance, estamos diante de uma reflexão particular contada através da memória de uma infância de abandono, de desencanto e de rejeição. Em que a narração surge, então, como a única forma possível de sobrevivência, um ato de libertação. Como podemos perceber no seguinte trecho: “(na altura em que o livro for lido estarei onde ninguém me encontra)” (ANTUNES, 2009, p.120). A existência de cada personagem está condicionada à escrita do livro.

O romance apresenta uma estrutura bem ordenada com início, meio e fim, obedecendo ao passar das horas até a morte da mãe. Cada voz atravessa o romance reconstituindo o passado e apresentando diferentes versões que se encontram e se afastam. Na narração antuniana, passado e presente se confundem através das rememorações de personagens inadaptados, solitários e, que acima de tudo, estão em constante procura de si.

Nas crônicas, Lobo Antunes, como foi observado por Pedro Manuel Mateus, diversas vezes retrata a infância. Mas, neste contexto, a “infância aparece [...] como um tempo em que a existência ainda fazia sentido” (2003, p.157). Em contrapartida, nos romances, especialmente, em Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?, a infância não aparece mais como um lugar idílico, mas aquele espaço propulsor dos traumas da vida adulta. Recentemente em uma entrevista para um jornal da Tv portuguesa22, Lobo Antunes responde a respeito do seu mais novo livro Comissão das Lágrimas, publicado em 2011. O autor em um momento da entrevista confessa que “Quer reconheçamos que nos damos bem, quer reconheçamos que nos damos mal, a relação do homem com o pai é sempre muito complexa”. O pai “é uma instância que existe entre nós e a morte”. E “dentro de nós os nossos mortos continuam a mudar”. Esse enfrentamento com o pai e, acima de tudo, com a memória familiar será predominante na narrativa analisada.

Em outros momentos, António Lobo Antunes aludiu ao fato que no geral a infância é um período dramaticamente infeliz, “porque temos censores em cima de nós, pessoas que tendem a normalizar-nos no sentido normativo, desde educar os esfíncteres, a não pôr os cotovelos em cima da mesa [...]” (GASTÃO, 2008, p.487). Em Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?, estamos diante de fragmentos ou ecos de uma memória de uma infância traumática que ganha novos contornos à luz do presente. O passado ganha um novo sentido. Como nos diz Seixo “qualquer tempo experienciado pelo narrador ou por alguma                                                                                                                          22 http://videos.sapo.pt/afArKjrV61FJvezvZr3G

personagem, é sempre, afinal a duração atualizada dos vários planos da memória, que confluem numa mente singular e a remetem ao espaço que a enunciação indicia”. (SEIXO, 2002, p.492). Já não é possível um reencontro imediato com o passado, já que a lembrança não é a imagem fiel da coisa lembrada.

Para Ricoeur, em A memória, a história, o esquecimento, nós só “podemos acusar a memória de pouco confiável, é precisamente porque ela é o nosso único recurso para significar o caráter passado daquilo de que declaramos nos lembrar”. (2008, p.40). Segundo Joël Candau, “a memória nos dará esta ilusão: o que passou não está definitivamente inacessível, pois é possível fazê-lo reviver graças à lembrança. Pela retrospecção o homem aprende a suportar a duração: juntando os pedaços do que foi numa nova imagem que poderá talvez ajudá-lo a encarar a sua vida presente [...]”. (CANDAU, 2011, p.15). Apesar de todos os esforços em recuperar a totalidade dos acontecimentos, “em suma, a imagem que desejamos dar de nós mesmos a partir de elementos do passado é sempre pré-construida pelo que somos no momento da evocação [...]” (CANDAU, 2011, p.76).

Vejamos como cada personagem revê e reconstrói o passado a partir presente: Beatriz, ao recuperar o passado, novamente escuta “[...] os passos do pai na sala de

jantar a detestá-lo” por ele vir lhe “desarrumar o passado” (2009, p.12). Mesmo sem saber muito bem “de que região da infância veio este encher a página [...]” (2009, p.18), “os espaços da infância vão preenchendo o presente” (2009, p.19). As personagens necessitam da escrita e do contar para (sobre)viver. O contar acompanha Beatriz desde a infância, ela relembra que a mãe “antes da doença e durante a doença” (2009, p.9) sempre contava a mesma história da avó que acompanhava a bisavó de visita a senhoras que moravam em andares antigos na parte antiga de Lisboa. A avó com dez ou doze anos a pensar – “Como esta casa deve ser triste às três da tarde” (2009, p.9).

Francisco é constantemente perseguido pelas lembranças da infância e, em especial, uma lembrança da mãe é evocada ao longo da narrativa: “Mesmo sem sair de casa consegues sujar-te custa-me acreditar que nasceste de mim apesar de tudo uma ova [...] (2009, p.31)”. Francisco sente que “se galopar muito depressa torna a haver o passado, e em que passado estive, o gado além da cerca, pombos brabos a caírem [...]” (2009, p.90).

As personagens enfrentam o passar das horas, aguardando a morte da mãe, como uma espécie de ritual de passagem. Após a morte da mãe todos seguirão as suas vidas: “Oxalá isto das seis horas acabe depressa para deixar os assuntos em ordem ir-me embora, talvez arranje uma mulher que trate da comida, passe uma vassoura no chão e eu o dia inteiro à janela a contar andorinhas e nuvens, a mulher lá dentro [...]” (2009, p.153). Entre tantas recordações, Francisco não consegue encontrar uma recordação capaz de lhe tornar alegre (2009, p.214), “infelizmente tudo o que recordo me faz zangar ou dói [...]” (2009, p.277). Mesmo sabendo que a morte da mãe culminará com o fim do livro, Francisco quer “prolongar o passado”, não quer partir, deseja que tudo aconteça novamente, quer que a Mercília lhe dê banho, lhe vista e lhe penteie. Francisco, depois da morte da mãe, deseja conservar a empregada Mercília, pois através dela conseguirá recordar-se do que foi.

Ana recorda a quinta com “azinheiras e gado” e o “pai com galhos, não barcos, a saírem das mangas” (2009, p.40). Lembra-se do pai mais próximo dos empregados que da família. O pai que não sorria para família, nenhuma palavra à mesa (2009, p.290). Ana sente que o passado recuperado não é o passado vivido:

[...] tudo se transforma à minha volta e não me refiro à casa somente, ao meu passado onde novas memórias sem relação com as anteriores demoram um momento e vão-se, uma naquele corpo enorme e eu a bater as palmas feliz, pedaços de recordações que a cabeça ilumina tornando a perdê-los sem que

me despeça deles, serei uma criatura a sério ou uma invenção de quem escreve, uma marioneta, se calhar pensou (2009, p.225)

Ana tem consciência que é “uma invenção de quem escreve não uma pessoa” (2009,

p.233), não quer tornar-se uma pessoa, quer “sensações de papel, sofrimentos de papel, remorsos de papel que a gente rasga e desfaz [...]” (2009, p.231). É a personagem que tem mais percepção de si como uma “figura de papel” e comenta a escrita do autor: “O que faz o livro esporeia-me, aumentou o corredor, pôs o quarto da minha mãe ao fundo no sitio que o meu irmão João ocupava...esta casa melhor antes da sua chegada, quase nenhum parágrafo a respeito da sala e o jardim ignorado, a senhora que ri é minha e não dele [...]” (2009, p.225). Pede ao autor: “não me obrigue a ditar estes episódios eu que detesto o passado, o que dava para não ter recordações, minúcias que regressam não como aconteceram, deformadas[...]”(2009, p.291).

João não se considerava parte da família. Lembra-se que desde criança na escola “queria ser menina” (2009, p.57). Em certa ocasião, viu a irmã Ana sendo agarrada e desejou ser ela naquele momento. Lembra-se do irmão Francisco sempre a observá-lo e reprová-lo. Recorda-se que quando era pequeno teve uma infecção nas amígdalas, recorda que a Mercília dava-lhes banho antes do jantar. A infância também surge nas lembranças do pai morto que questiona “- Em que tempo estou eu?” (2009, p.71). O pai recupera o passado com saudade: “Saudoso dessa época cheia de fraldas e toucas que imaginava feliz (como se consegue viver privado da recordação de uma época feliz?)” (2009, p.71). O pai viveu “épocas felizes” (2009, p.23).

A mãe também retoma os momentos da sua infância: “Quando a minha mãe, zangada comigo, chamava - Maria José (2009, p.253)”. Recorda-se de como conheceu o marido “o meu marido que eu não conheci nem dos eléctricos veio jantar connosco depois do jantar o meu pai e ele no alpendre [...]” (2009, p.260). “Sempre detestei a casa, não é aqui que moro, continuo no colégio com a Silvina e a Berta debruçadas para os nossos reflexos no charco do pátio” (2009, p.300).

É preciso rever/reviver os acontecimentos da infância porque só deste modo se conseguirá entender o presente. Entretanto, os diálogos com o passado não acontecem de forma linear e com nitidez. Fazer as pazes com esse momento e consigo mesmo exige certo esforço. Nessa busca de si, a imagem da casa permanece imponente seja pelas palavras da avó “Como esta casa deve ser triste às três da tarde” (2009, p.9), relembradas pela mãe, ou a única esperança de segurança dos personagens: “e no silêncio que alonga a pergunta pinguitos pausados, a casa aguenta apesar da chuva de março, não me abandones casa, pronuncia o meu nome para que alguma paz nesta febre e a minha testa seca, os meus olhos tranquilos, devo ser mais que uma voz [...]” (2009, p.231).

Gaston Bachelard, em A poética do Espaço, ao “tomar a casa como um instrumento de análise para a alma humana (s.d. 19)” mostra-nos como esse espaço feliz pode nos proteger, a casa “é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz freqüentemente, nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo. Até a mais modesta habitação, vista intimamente, é bela [...]” (s.d. 22). A casa “mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. Ela é o corpo e alma. É o primeiro mundo do ser humano [...]” (s.d. 23). Mas, mais do que isso, ela “é um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade [...]” (s.d. 23).

No romance em questão, o contato, o diálogo com o outro surge através da memória. Vários estudiosos da obra de António Lobo Antunes têm destacado o papel da memória como marca da estética antuniana. Felipe Cammaert Hurtado fala de uma “escrita da memória” (2003, p.300), retomando o que o próprio Lobo Antunes afirmou na crônica intitulada “Receita para me lerem”. Hurtado considera que “a memória constitui um dos pilares do

universo antuniano [...] a memória apresenta-se como eixo central da narrativa de Lobo Antunes [...]” (2003, p.298). Todas as histórias são fundadas nas lembranças dos personagens; a narração irrompe sob a forma de uma catarse, por vezes caótica mas sempre abundante em imagens poéticas [...]” (2003, p.298-299). Segundo Hurtado, esse tipo de texto classifica-se como um relato rememorativo.

É inegável que os romances de Lobo Antunes tratam do tempo como temática e estratégia narrativa. Sobretudo pensando na memória que (des)organiza através da linguagem tempos vividos, imaginados e inventados. As personagens de António Lobo Antunes constroem e reconstroem as suas vivências do passado em relação ao presente a partir de um questionamento que se realiza no discurso estético. Os vários planos da memória surgem através da memória mais autobiografia (a guerra colonial, a psiquiatria, o casamento, as filhas, etc.), da memória que edificou um projeto de nação portuguesa e a sua ruína pós-25 de Abril, e também a memória que revive a saga de uma família.

Na mesma linha, Seixo afirma que os “textos de Lobo Antunes são textos sobre o tempo, se não fosse o facto de que esse tempo, qualquer tempo experienciado pelo narrador ou por alguns personagens, é sempre, afinal, a duração actualizada de vários planos da memória [...]” (apud HURTADO, 2003, p. 299). Maria Alzira Seixo, ao analisar o romance O Manual dos Inquisidores, afirma que “o tempo presente é o da evocação, quando muito o da assunção actual do peso da memória e da sua determinação sobre os gestos incertos, débeis, meros esboços de actos, da prática quotidiana na sucessão de momentos que configuram o existir [...]” (2011, p.161). As personagens de Lobo Antunes sabem que a linguagem é repleta de rasgos que permite os deslizamentos e os jogos de revela/esconde, tal posicionamento torna-se evidente quando elas questionam se estão de fato a contar e/ou inventar. Pode-se dizer que a personagem antuniana experimenta viver em outro espaço que já não é mais o “real” vivido na infância, mas uma realidade evocada pela linguagem. A narrativa instaura-se no terreno do “como-se”, criando “um mundo possível de ser habitado” e possível de ser entendido pelos leitores. Como diz-nos Ricoeur,

O desafio último tanto da identidade estrutural da função narrativa é o caráter temporal da existência humana. O mundo exibido por qualquer obra literária é sempre um mundo temporal. [...] O tempo torna-se humano na medida em que está articulado de modo narrativo; em compensação a narrativa é significativa na medida em que esboça traços da experiência temporal (1994, p.15).

Para Ricoeur o mundo que a narrativa refigura é eminentemente temporal (1994,

p.111), entretanto isso não significa dizer que o tempo da obra é o tempo do acontecimento do mundo (1994, p.36). A obra permite a configuração de uma identidade narrativa, ela “re-significa o mundo na sua dimensão temporal” (1994, p.124), a ficção cria um “reino do como-se” (1994, p.98), quer dizer, estando ali acontecimentos que poderiam acontecer. As contribuições de Beatriz Sarlo também serão essencias no entendimento da dialética memória e identidade. Sarlo considera “a narração inscreve a experiência numa temporalidade que não é a de seu acontecer (ameaçado desde o seu próprio começo pela passagem do tempo e pelo irrepetível), mas a da sua lembrança. A narração também funda uma temporalidade, que a cada repetição e a cada variante torna a se atualizar” (2007, p.24).

Então, a narração não pode oferecer a certeza dos fatos, ela abre espaço para a subjetividade das experiências vividas e, ao olhar o passado, a personagem se desdobra em múltiplos. Muitas vezes, a sua identidade vai sendo construída no encontro consigo e com o

Outro que pode ser ela mesma, mas também o pai, a mãe, o avô, a avó, o irmão, etc. Por isso, a dúvida permanece: “Quem sou eu?” (ANTUNES, 2009, p.10).

Ao evocar o passado os narradores escolhem alguns episódios, deixando outros no esquecimento. Segundo Maria Rita Kehl, em O sexo, a morte, a mãe e o mal,

tudo é passível de representação, mas não há objeto ou fragmento do real que se deixe representar todo. Toda representação evoca não só a ausência da coisa, mas também a distância que a separa da coisa; toda representação contém o seu traço de saudade e seu resto de silêncio - de algo que já não está, de algo que nunca se entregou inteiro à simbolização (2000, p.140).

Em Lobo Antunes, as personagens, ao narrar as suas experiências vividas e

imaginadas, experimentam um conhecimento de si e do mundo que ocorre através da narração de um passado fragmentado, evidenciando a impossibilidade da mimesis como mera imitação, já que não há verdadeira correspondência entre o que se viveu e o que se narra. Como observa Kehl: “[...] Verdade que toda a representação porta sua face de falta, assim como todo o texto produz, ao leitor, um feito que não é inteiramente determinado pelo que está escrito; efeito poético, literário, que se dá da brecha entre o dito e não-dito [...]” (2000, p.145).

Na ficção antuniana não encontramos certezas, o leitor precisa juntar as peças, unir os fragmentos do passado, colocar em diálogo as vozes e as memórias. Então para encerrar, evoco mais uma vez Paul Ricoeur: “todo o instante rememorado pode ser qualificado como presente [...]” (1997, p.184). O passado é presentificado a partir da narração, mas trata-se de um passado reimaginado/reinventado através de uma memória que a personagem escolheu, que pode não ser, a memória do que de fato aconteceu. As personagens necessitam da escrita para sobreviver - o ato de narrar como momento de expurgação e descobrimento. Para Seligmann-Silva, em O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução, a “a narração tecida como forma de se libertar do passado desdobra-se como um doloroso exercício de construção da identidade [...]” (2005, p.114). Em Lobo Antunes, o espaço e o tempo se entrecruzam criando novos signos de identidade que está longe de ser enquadrada em qualquer binarismo Referências ANTUNES, António Lobo. Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra No Mar? Rio de Janeiro: Alfaguara, 2009. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Tradução de Antonio da Costa Leal e Lidia do Valle Santos Leal. Rio de Janeiro: Livraria Eldorado Tijuca, s.d. CANDAU, Joël. Memória e Identidade. Tradução Maria Leticia Ferreira. - São Paulo: Contexto, 2011. GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Dizer o tempo”. In:_ Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio de janeiro: Imago, 1997. GASTÃO, Ana Marques, “Caçador de infâncias”. In ARNAUT, Ana Paula. Entrevistas com António Lobo Antunes (1979-2007). Confissões do trapeiro. Coimbra: Almedina, 2008, p. 485-495. HURTADO, Felipe Cammaert. “O Leitor da memória: O Papel do Leitor em O Manual dos Inquisidores.” In: CABRAL, Eunice; JORGE, Carlos J. F; ZURBACH, Christiane (orgs). A

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Projeções pessoais em objetos: de objeto a pessoa - Romilda Mochiuti (Unicamp)

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo a análise do status linguístico, literário e cultural das relações entre pessoas e objetos e as analogias passíveis de serem estabelecidas nas relações interpessoais em alguns contos da literatura latino-americana contemporânea. Palavras-chave: Conto; Perversão; Antropormofização; Literatura latino-americana

Entonces ella dijo que los objetos adquirían alma a medida que entraban en relación con las personas.

“El Balcón” - Felisberto Hernández O período renascentista ficou conhecido por sua reformulação no modo como o

homem se comportava e vislumbrava o mundo. A partir dessa reformulação, o homem passa a ter uma compreensão mais antropocêntrica do seu ser e de sua realidade. Ainda que a razão e a fé não deixassem de ser importantes, valorizava-se mais a experiência e a observação, uma vez que o corpo passava a ser visto sem pudores e como uma fonte de prazer e de beleza. Aceitava-se, portanto e em sua plenitude, em outras palavras, o paradigma bíblico de que o ser humano era a imagem e semelhança divina. A imagem emblemática que exemplifica o período é a do “homem vitruviano” de Leonardo da Vinci.

In http://www.gallerieaccademia.org/

Não demora muito para que, ao longo dos séculos vindouros, a alteridade humana divina se perca e, lentamente, vá se aproximando de uma alteridade voltada para o indivíduo como membro de uma hierarquia social repleta de diversidade. Desta forma, o homem passa a se inter-relacionar com o outro considerando o seu “valor” burguês, mercantil:

As relações sociais ao serem vividas imprimem ao olhar e à percepção de cada um de nós, esquemas de valores que

norteiam as ações e atitudes de uns sobre os outros. No entanto, entre a percepção e a ação, incorre a mediação do contexto histórico e circunstante, de forma a estabelecer significados consoantes à vida vivida e ao que se acredita fazer parte dela. (GUSMÃO, 199, 45)

É neste contexto que encontramos, em narrativas contemporâneas da cultura ibero-

americana, a importância que os objetos vêm adquirindo na sociedade contemporânea em detrimento do sujeito: parece ser que o objeto que representa status adquire uma importância tal que chega a ocupar, dialeticamente, o lugar do indivíduo que deseja tê-lo para a manutenção de sua condição.

O objeto passa a ser, então, o centro. Convivemos em uma sociedade materialista e o argumento de que os objetos adquirem vida ou valem mais do que a vida em si, ainda que seja doloroso constatar, é algo comum nos meios de comunicação, sem que isso cause alarde a qualquer pessoa.

Os autores, que aqui contemplamos, trabalham esta percepção da realidade que os cerca. Para abarca-la, procuram expressar como esse contexto/ processo se realiza através de um estilo muitas vezes de ruptura clássica, uma vez que tratam de se aproximar e expor esse modus operandi. Não é de se estranhar que nesse processo o objeto vá adquirindo status de indivíduo na vida das personagens e, em alguns casos, passe a ocupar o lugar de uma pessoa. Vejamos, então, em que medida e de que modo este, por assim dizer, “transtorno de alteridade” acontece.

1. Como não se transformar em escravo das projeções de seus próprios desejos Segundo vários críticos a obra “Historia de Cronopios y Famas” de Julio Cortázar se

caracteriza pelo humor do absurdo surrealista, mas que não deixa de ser metafísico e sarcástico. Metafísico, claro está, no sentido poético, desvinculado de qualquer realismo ingênuo. Surrealista uma vez que manipula a realidade como matéria que, levada as últimas consequências dos padrões sociais, acaba por se transformar em um circo de absurdos.

Essa corrupção, da qual já ponderava Richter (1982) a propósito do espírito dessecativo do humor, desintegra a realidade em e pela linguagem e inclui o próprio sujeito. Esse humor ao se dissolver, no entanto, corrompe o pensamento cartesiano, a linguagem corrente, o bom senso, uma vez que é a própria essência da crítica do que constitui a sociedade.

É assim que Cortázar23 em “Preámbulo a las instrucciones para dar cuerdas al reloj” nos convida a pensar acerca dos valores que caracterizam os indivíduos que compõem a sociedade da qual fazemos parte. Além de apresentar uma crítica ácida às relações de dependência que estabelecemos com o objeto de desejo, que nos projeta no meio social, podemos nos aproximar neste texto cortaziano por meio da manutenção q ue ele estabelece na relação sujeito-objeto-sujeito, na medida em que o indivíduo se transforma em objeto social através, inclusive, da estrutura gramatical:

Piensa en esto: cuando te regalan un reloj (…).Te regalan -no lo saben, lo terrible es que no lo saben-, te regalan un nuevo pedazo frágil y precario de ti mismo, algo que es tuyo pero no es tu cuerpo, que hay que atar a tu cuerpo con su correa como un bracito desesperado colgándose de tu muñeca. (…) No te

                                                                                                                         23 Para facilitar o acesso aos textos aqui referidos, utilizamos as versões digitais disponíveis em alguns sites, devidamente citados na Bibliografia, por esta razão não faremos menção ao ano de publicação da edição utilizada.

regalan un reloj, tú eres el regalado, a ti te ofrecen para el cumpleaños del reloj. (negritos nossos)

Se nos tornamos escravos, o somos não apenas da necessidade de saber a hora exata - ainda mais nos dias de hoje, em que sempre estamos atrasados -, mas, sobretudo da sensação de poder/ escravidão gerada pela possessão do objeto de desejo, uma vez que ele reflete simbolicamente o desejo de sermos aceitos na sociedade através do status que ele representa, perdendo, desta forma, a função precípua para qual foi destinado.

Sendo assim, antes de dar cordas no relógio – ou nos dias de hoje, carregar a bateria do celular, conectar o ipad etc. –, o textos nos adverte quanto à necessidade de ponderar a respeito da relação que mantemos com objeto em questão: quem é seu verdadeiro dono ou, ainda, qual a relação de subserviência que se mantém. É como se o objeto - no caso do texto cortaziano, o relógio - fosse adquirindo vida, a nossa vida. Não olhamos o relógio para lembrarmos um compromisso ou, ainda, para nos certificarmos de se estamos cumprindo com o horário programado. Parece ser o relógio que nos olha cobrando o compromisso de o indivíduo ser melhor através do que o objeto representa. Como se o objeto recuperasse vida e nos levasse ao lugar árido e insaciável da necessidade de representar o melhor inalcançável, tal como mostra o quadro “Persistencia de la Memoria” de Salvador Dalí:

Essa dinâmica de o objeto antropomorfizar-se pelo poder que o sujeito lhe assigna,

podemos também vislumbrar no conto “El balcón”, de Felisberto Hernández. Diferentemente da narrativa de Cortázar - cujo estilo discursivo se aproxima às advertências dadas ao usuário antes de proceder ao primeiro contato com qualquer produto e, em sendo assim, se torna uma paródia discursiva, tal qual o estilo palimpsesto comum durante e pós o Boom latino-americano – na deste narrador uruguaio, encontramos um relato que segue a estrutura dos contos de fada.

A narrativa começa com a descrição de uma rotina de veraneio na vida de um musicista que sempre promovia concertos nesse período em um balneário próximo a sua casa. A ruptura se dá quando um membro da plateia o visita em seu camarim. Vejamos como a estrutura narrativa gera a tensão e, ao mesmo tempo a ideia de monotonia repetitiva no passado através do uso do imperfeito, devidamente interrompido pela ação pontual gerada pela atitude de um espectador:

Había una ciudad que a mí me gustaba visitar en verano. En esa época casi todo un barrio se iba a un balneario cercano. […]

El teatro donde yo daba los conciertos también tenía poca gente y lo había invadido el silencio: yo lo veía agrandarse en la gran tapa negra del piano. Al silencio le gustaba escuchar la música; oía hasta la última resonancia y después se quedaba pensando en lo que había escuchado.[…]

Al final de uno de esos conciertos, vino a saludarme un anciano tímido. (negritos nossos)

Não obstante a estrutura temporal narrativa exemplar, este conto não apresenta um argumento nada prosaico, mas sim peculiar da narrativa moderna: a crítica do subjetivismo exacerbado (FRANCO: 1999). O pianista passa a partir, desse então, a narrar a percepção que tem do universo pessoal de uma jovem que vive fechada em sua casa, devido à relação que mantém com os objetos que a cercam. O primeiro contato direto com esse universo se dá através de uma afirmação nada prosaica: “ella me dijo que los objetos adquirían alma a medida que entraban en relación con las personas”. Segundo o narrador, a jovem não se ausentava jamais de casa pois se sentia culpada ao ter que abandonar os seus “amigos” objetos, em especial, o balcão24, pois era exatamente com este que mantinha uma relação mais estreita.

Mas, é aos poucos que o narrador vai desvendando esse universo das relações truncadas entre sujeito-objeto-sujeito. Se por um lado, a viagem ao inusitado começa quando ele aceita o convite do senhor para ir a sua casa conhecer a sua filha, por outro, notamos a falta de resistência em aceitar essa nova forma de percepção de mundo, sem reservas. Já ao entrar pelo jardim da casa, ao se deparar com muitas sombrinhas, descreve o que parece ser um espetáculo onírico, como se experimentasse uma nova leitura poética do mundo:

Se subía a la casa por una escalinata colocada delante de

una galería desde donde se podía mirar al jardín a través de una vidriera. Me sorprendió ver, en el largo corredor, un gran número de sombrillas abiertas; eran de distintos colores y parecían grandes plantas de invernáculo. Enseguida el anciano me explicó: - La mayor parte de estas sombrillas se las he regalado yo. A ella le gusta tenerlas abiertas para ver los colores. Cuando el tiempo está bueno elige una y da una vueltita por el jardín. En los días que hay viento no se puede abrir esta puerta porque las sombrillas se vuelan, tenemos que entrar por otro lado. (negritos nossos)

Os objetos da casa pareciam ter vida própria. O narrador, inclusive, reflete sobre o caráter – ou, ainda, apercepção que tem no trato - dos utensílios usados diariamente à mesa: “Por último los seres de la vajilla eran bañados, secados y conducidos a sus pequeñas habitaciones. Algunos de estos seres podrían sobrevivir a muchas parejas de manos; algunas de ellas serían buenas con ellos, los amarían y los llenarían de recuerdos, pero ellos tendrían que seguir viviendo en silencio.” (negritos nossos)

Mas é a descrição que nos faz da percepção que a jovem jovem tem do mundo – em outras palavras, seu universo pessoal - que se pode caracterizar como a mais insólita. Segundo ela, que passa a maior parte de seu dia no balcão, é através dos vidros coloridos, que compõem o anteparo dessa varandinha, que a jovem decifra as pessoas e o mundo no qual vivem:

                                                                                                                         24 Importante assinalar que por se tratar de uma palavra masculina “el balcón” a melhor tradução seria “o balcão”, devido ao fato de a jovem manter uma relação passional com esse objeto. Entretanto, o correspondente semântico mais aproximado seria “a sacada”, que se usada perderia o deslocamento sujeito-objeto, antropomorfização que o autor pretendeu evidenciar.

- Cuando veo pasar varias veces a un hombre por el vidrio rojo casi siempre resulta que él es violento o de mal carácter. No pude dejar de preguntarle: - Y yo ¿en qué vidrio caí? - En el verde. Casi siempre les toca a las personas que viven solas en el campo. - Casualmente a mí me gusta la soledad entre plantas -le contesté.

O envolvimento da jovem com o músico se estreita ainda mais devido a que o músico passa a dormir em sua casa a pedido do pai. Um dia, porém, devido a compromissos de trabalho, ele se ausenta. Não por muito tempo, porque o pai da jovem vai buscá-lo aflito, pois ela se encontrava inconsolável. O balcão havia cedido e desmoronado. O assim chamado “suicídio” do balcão, pela jovem, quem passa a assumir o papel de “viúva do balcão”, é a comprovação de sua condição de dependência assumida. Uma dependência mantida pelas relações criadas por sua projeção nos objetos. É a culpa que lhe impõe a condição de luto. Cabe ao músico ouvir o réquiem poético que a jovem faz ao seu “defunto esposo”. Por fim a poética do olhar se enluta em poesia:

Entonces ella se sentó en una silla, abrió el cuaderno y empezó a recitar: - La viuda del balcón...

Essa mesma interdependência criada pela relação que se estabelece a partir da

antropomorfização do objeto de desejo e a condição de culpa ocasionada pela sua perda, mas desde outra perspectiva, podemos encontrar no conto “Felicidade Clandestina”, de Clarice Lispector.

2. De gata borralheira a dona do próprio destino Quem na mais tenra infância não desejou o que um coleguinha da escola tinha ou o que o

priminho ou irmão podia manipular por ser mais velho ou do sexo oposto? É esta a pergunta que nos motiva a pensar no universo infantil que promove a formação da personalidade do indivíduo. O tema, portanto, é o da perversão infantil. E neste conto clariceano, ele adquire um aspecto especial uma vez que se desenvolve a partir da relação perversa que tanto a protagonista quanto a sua antagonista têm com um objeto especial. O livro.

Foi Freud quem, através de seus estudos, deu outra conotação ao termo “perversão”. Segundo o estudioso, na atividade sexual do ser humano, existem diferentes práticas sexuais, ou seja, a sexualidade das pessoas ditas normais apresenta uma série de exemplos que não estariam voltados diretamente ao órgão genital, antes estariam relacionados com objetos que o representariam. Em sendo assim, segundo o estudioso alemão, a “perversão” seria uma condição humana que está intimamente ligada à busca do prazer. É a partir desses estudos que a perversão deixa de ser vista como patologia, uma vez que todo sujeito humano é perverso. O que é considerado patológico, por outro lado, é a fixação objetal: quando o sujeito fica aprisionado a um determinado objeto, num estado de desprazer, aumentando o estado de sofrimento, que passa a ser sinônimo de prazer. É esta a perversão patológica que encontramos em “El balcón” e que também podemos vislumbrar nesta narrativa clariceana, “Felicidade Clandestina”: a narradora deseja possuir o que a sua antagonista possui, por esta razão a menospreza,

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos

excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto

enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Em contrapartida, a antagonista passa a desenvolver certo requinte perverso para aumentar o sofrimento da protagonista, recusando o empréstimo do livro tão desejado: “As Reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato. A relação sadomasoquista se desenvolve em um crescente até o momento em que a mãe da antagonista descobre a face doentia de sua filha e empresta o livro para a protagonista. Entretanto, o perfil patológico da protagonista já estava delineado, amadurecido:

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. As vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

É a essa mesma relação que passará a manter com o sexo oposto. Tal como desejou o objeto que não lhe pertencia, desejará o homem alheio. E assim, transferirá a sensação de conquista do proibido às relações humanas: o prazer pleno somente será possível através do desprazer e do sofrimento. Esta é a felicidade clandestina. Deferentemente do conto de Felisberto Hernádez, no qual a jovem ainda não passara plenamente para a segunda etapa de transferência da relação objetual para a pessoal, neste conto clariceano, já podemos vislumbar a perversão também presente na relação com o sexo oposto, já na idade adulta.

Não apenas o livro - grande companheiro da mulher burguesa já no séc. XIX -, mas a relação que se estabelece com este objeto de desejo passa a ser a paradigmática para as relações entre pessoas - que passam também pelo termo “objeto de desejo”. Tal como na imagem que promove em 2009 a Feria del Libro na Espanha. É emblemática como

Mas, é amplo o leque de objetos que projetam ou nos quais se projeta o desejo feminino. Um deles, talvez mais polêmico e emblemático seja o sapato. No conto da Gata Borralheira, este objeto representa o elo que acaba por unir o casal do “felizes para sempre”. Qual criança não sonhou com um objeto assim, que a identificasse como única, que a fizera ser reconhecida como especial?

No conto de Lucía Etxebarría, “Los sapatos”, são eles que definitiva e ironicamente vão dar forças para que a narradora rompa com toda a tradição dessa representação e, principalmente, é o objeto decisivo para romper com uma relação carregada de sofrimento e desamor. Uma relação doentia, característica esta cada vez mais presente nas relações pessoais existentes na sociedade contemporânea.

Como se trata de uma releitura da função dos sapatos para a mulher de hoje, essa narrativa expõe uma relação homem-mulher dentro dos padrões atuais e verticais: o homem menospreza a mulher que, por sua vez, passa a desenvolver uma patologia perversa de sofrimento, dependência e desamor nessa relação. A narradora espanhola rompe com a estrutura do conto clássico: começa negando a tradição idílica sistematicamente. Não há o uso de verbos repetitivos, mas sim, de verbos e estruturas que pontuam um contexto preciso, despretencioso:

No se trató del mejor verano de mi vida. Y creo que el

mejor verano de mi vida, como el mejor amante, está aún por llegar. He tenido veranos buenos y malos; ninguno, que yo recuerde, especialmente maravilloso, excepto los de la primera infancia. En cualquier caso, voy a contar una historia verídica.

Sem sombra de dúvidas poderia ser uma história verídica, como também o poderia ser a clariceana. Entretanto, o que a narradora de Etxebarría nos descreve é a superação de uma patologia através da troca de uma pessoa que a fazia “de gato e sapato”, por um par de sapatos. Esta mudança repentina, porém, não se dá devido aos cuidados e conselhos de analistas e amigos – que, aliás, são muitos – mas, justamente, ao encontro por casualidade de um par de sapatos que lhe desperta um interesse absoluto:

A la mañana siguiente Gemma, Nacho y yo decidimos salir a pasear a la playa. Nos sorprendió mucho encontrar, justo frente al portal del edificio, un par de zapatos negros perfectamente alineados. Lo curioso es que se trataba de unos zapatos nuevos, del número 38 y medio, que es precisamente el mío y que muy pocos diseñadores fabrican, y firmados por la diseñadora Atenía Alexander, que siempre me ha gustado pero cuyos modelos son dificilísimos de encontrar. […] El caso es que yo decidí quedármelos, porque no sólo me gustaban mucho, sino que me sentaban como un guante.

É justamente este o acontecimento, o aparecimento dos sapatos, que provocará na

narradora a mudança para uma pessoa mais segura, ao ponto de abandonar a relação doentia que mantinha. Como se os sapatos substituíssem a presença masculina e a fizessem se sentir uma mulher completa. Os sapatos - ou antes o objeto de desejo mercantil carregado de fetiche - passam a ocupar o lugar da figura masculina. A narradora se sente fortalecida ao ponto de afirmar a sua vontade própria de seguir adiante, negando a manutenção da perversão antes reconhecida:

[…] fue mi propia sugestión, mi propia creencia en un destino trazado de antemano, la que me animó a cambiar de rumbo y, así, mi propia voluntad se hizo destino, aunque el destino no

exista, o aunque existiera pero no fuera su mano la que hubiera colocado los zapatos a mi puerta. Yo nunca lo sabré, ni me importa.

3. A banalização do objeto em ser e vice-versa Há três décadas do lançamento do filme “Blade Runner” (1982) 25 - cujo enredo

denunciava um nível limite da antropomorfização da máquina em contato com o ser humano e como objeto de seu desejo - vemos que esta relação de perversão está muito longe de ser superada, pelo contrário, ela está ainda mais evidente, como pudemos constatar ao longo da análise que realizamos das narrativas aqui contempladas. É interessante notar de que forma cada autor molda a sua narrativa e trata de denunciar e plasmar o processo/ universo dessa característica da sociedade contemporânea

Ao parecer, primeiramente essa relação se dá com a experimentação da transferência das relações humanas para o objeto, ao ponto de este deter o poder d e sua representação/ projeção na sociedade. Neste resultado limite, é importante notar que a experimentação/ perversão acontece sem que haja qualquer tipo de discriminação entre ser humano e objeto ou, ainda, de valores diferenciais de (des)nivelamento entre sujeito-sujeito, sujeito-objeto, objeto-sujeito. Há, antes, um status precário de considerar equivalência entre ser e objeto, deixando de lado o complemento de “humano” ao ser, complemento este ironicamente singularizado também no termo “objeto de desejo”.

Nesse contexto, a perversão/ transposição dos desejos é lapidada na narrativa através de usos da linguagem que buscam (re)apresentar esse modus operandi do indivíduo. As narrativas aqui trabalhadas evidenciam a cisão, seja em relação ao contexto da estrutura narrativa, seja em analogia à temáticas clássicas.

O conto cortaziano se sobressai como uma paródia das advertências presentes em embalagens de objetos. A narração de Etxebarría, por sua vez, rompe com a tradição da estrutura dos contos de fadas duplamente: ao optar pelos sapatos como objeto de desejo e afirmação do “eu” feminino e, também, ao descaracterizar a estrutura narrativa idílica através de uma linguagem precisa e realista. Já o conto clariceano manipula o ponto de vista, ao posicionar uma protagonista perversa como um ser vitimado pela sociedade. Não menos manipuladora é o narrador de Felisberto Hernández que mimetiza em linguagem poética um narrador totalmente refém de sua protagonista, tal qual os objetos que a aprisionam.

Pensamos que talvez coubesse aqui uma atualização crítica do “homem vitruviano”, uma vez que se denuncia que é o objeto a medida do homem. Em outras palavras, na sociedade contemporânea, é através do objeto que se mede o homem e sua relação com os seus pares e com o sagrado. A imagem e semelhança, portanto, passa necessariamente pela mercantilização dos valores humanos que ora se transformam em livro, ora em relógio, em sapatos ou em um balcão.

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A reportagem enquanto ficcionalização do real em Abusado - Sabrina Schneider (PUC-RS)

RESUMO: Por meio da análise do livro Abusado, de Caco Barcellos, e de uma concepção da mímesis enquanto configuração narrativa, proposta por autores como Paul Ricoeur, Mikhail Bakhtin, Käte Hamburger e Frank Kermode, pretende-se resgatar o caráter ficcional do romance-reportagem ou livro-reportagem, reabilitando-o enquanto objeto de estudo digno da teoria da literatura depois de sua morte ter sido decretada pela crítica literária brasileira na década de 1980. Palavras-chave: Romance-reportagem; Teoria da narrativa; Mímesis; Ficcionalização; Jornalismo literário

Pode soar estranho comparecer a um simpósio intitulado Narrativa literária

contemporânea, cujo objetivo é discutir a produção ficcional dos últimos anos, para falar sobre um livro escrito por um jornalista, e cuja intenção, como o próprio autor afirma em nota que antecede a narrativa, é “contar as histórias de crimes sem mutilar a verdade”. Para isso, teria se utilizado de apenas um subterfúgio: a “omissão de alguns nomes”, a fim de evitar “intriga, perseguição ou punições judiciárias” às suas fontes. Assim, muitos traficantes, parentes de traficantes e outros moradores da favela Santa Marta figuram, nas páginas de Abusado, por meio de seus codinomes ou de apelidos conhecidos apenas dos mais íntimos – o autor sequer faz uso de nomes ditos “fictícios”, estratégia comum entre profissionais da imprensa que se dedicam à reportagem investigativa. No entanto, a ficcionalização do real a que nos referimos no título de nosso trabalho é indicada na mesma frase em que Caco Barcellos (2005) afirma que deseja permanecer o mais fiel possível à verdade: quando o repórter diz que vai nos “contar histórias”.

Percebe-se, desde já, que não pretendemos basear nossa análise na tradicional dicotomia “fato” versus “ficção”, “discurso factual” versus “discurso ficcional”, “acontecimentos reais” versus “acontecimentos inventados”, valiosa tanto para o jornalista que pratica a reportagem quanto para o estudioso do tema, a ponto de, em nome de uma ideologia profissional transnacional, recusarem-se a refletir sobre a opacidade da linguagem e sobre o caráter estetizante de um gênero tido como jornalístico, mas com um pé na literatura – aliás, nos países de língua inglesa, em especial nos Estados Unidos, onde o gênero é muito valorizado, a reportagem ou grande reportagem, como às vezes a chamamos, é conhecida justamente como literary journalism. A noção de ficção por nós empregada remete à configuração narrativa, à mímesis.

Em Tempo e narrativa, ao fazer uma leitura da Poética aristotélica, Paul Ricoeur chama a atenção para o fato de a mímesis, ou representação, nunca ser definida de forma absoluta pelo pensador grego, mas sempre contextualmente, em relação ao mythos, traduzido por intriga. Além disso, tanto a mímesis quanto o mythos são descritos como operações, e não como estruturas. A primeira seria a representação da ação, ao passo que o segundo seria o agenciamento dos fatos. “A imitação ou a representação é uma atividade mimética na medida em que produz algo, ou seja, precisamente o agenciamento dos fatos pela composição da intriga.” (RICOEUR, 2010, v. 1, p. 61). A partir da teoria da composição do mythos trágico por meio da atividade mimética, em Aristóteles, Ricoeur constrói uma teoria da composição narrativa como concordância discordante, ou seja, como encadeamento de fatos que faz (p. 74) “[...] surgir o inteligível do acidental, o universal do singular e o necessário ou verossímil do episódico”. Como lembra o filósofo francês, é apenas em função do lugar que ocupam na intriga, ou seja, da ordenação que recebem de uma imaginação produtora, que os acontecimentos adquirem significância e mesmo valor como começo, meio ou fim de algo.

Já na abertura da reportagem de Caco Barcellos temos um exemplo de como se dá essa ordenação atribuidora de sentido. O livro conta a história de uma quadrilha da terceira geração do Comando Vermelho, a geração que levou a organização criminosa a controlar o tráfico de drogas nos morros do Rio de Janeiro. Abrange um período que vai de meados da década de 1980 até o ano 2000. O autor, porém, decide começar sua reportagem narrando um acontecimento de fevereiro de 1999: uma atrapalhada fuga de carro seguida de intensa troca de tiros com soldados da Polícia Militar, em que a personagem principal, o gerente de boca Juliano – na vida “real”, o traficante Márcio Amaro de Oliveira – é atingida de raspão na cabeça e o motorista do bando, Careca, é morto. O confronto com a polícia se dá após uma tentativa frustrada de recuperar uma estica – um ponto de venda de drogas ao pé do morro, no asfalto – que havia sido tomada pelo inimigo de Juliano, o traficante Carlos da Praça.

É logo após esse episódio que Juliano manda um emissário ao repórter Caco Barcellos, com a proposta de que o jornalista escrevesse a história da sua vida. Os dois haviam se conhecido por acaso em 1996, na carceragem da Polinter, quando Barcellos fora entrevistar Lambari, chefe do tráfico na favela do Jacarezinho, que se encontrava na mesma cela. Na época, chegara a comentar com o jovem traficante sobre seu desejo de, um dia, escrever uma reportagem “de dentro” de uma boca de cocaína. Diante da oferta de Juliano, que ainda se lembrava da conversa informal ocorrida quatro anos antes, Barcellos, de início, hesita, principalmente em função das diversas implicações éticas que seriam inerentes ao trabalho. Porém, logo passa a vê-la como uma oportunidade de contar as histórias “reais” dos integrantes da quadrilha e das pessoas simples da comunidade. Em entrevistas a vários jornais à época do lançamento do livro, o autor afirmou que a imprensa costuma subir o morro atrás da polícia. No entanto, durante as operações policiais, os moradores da favela vivem uma realidade atípica. Faltava, portanto, abordar outros aspectos do cotidiano dessas comunidades, o que o Barcellos procura fazer, utilizando a biografia de Juliano como fio condutor.

O leitor só é informado da proposta feita ao repórter no capítulo 31, cerca de 400 páginas depois da cena inicial, embora os dois acontecimentos sejam contíguos no tempo. Entre um e outro, uma enorme analepse conta desde a infância de Juliano e seus amigos, que cedo ingressam numa vida de contravenções, até as dificuldades para manter o poder conquistado pela quadrilha, atravessando as sucessivas guerras pelo controle do morro Dona Marta de que o grupo participou. E, internas a essa analepse, que Gérard Genette (s/d) chamaria de homodiegética, por dizer respeito à linha de ação da narrativa primeira, há incontáveis analepses heterodiegéticas, que permitem ao narrador dar os antecedentes de novas personagens introduzidas e entrelaçar a biografia de Juliano com a história da favela e com questões como a presença da Igreja Católica na comunidade, o desenvolvimento da noção de cidadania entre os moradores, a violência da polícia, o modus operandi das organizações criminosas e as relações das classes média e alta com a favela, entre outras. Essas retrospecções dentro da retrospecção fazem com que o período contemplado pelo livro ultrapasse em muito os 20 anos da existência de Juliano que são destacados na narrativa.

O habilidoso começo in media res não é mera questão de estilo – no sentido de um ornamento, de uma forma externa que molda um conteúdo “verdadeiro”, que é como os jornalistas costumam caracterizar o aspecto literário da reportagem – aliás, Mark Kramer (1995), criador do Nieman Program on Narrative Journalism, da Harvard University, chega a afirmar que a força da expressão “jornalismo literário” reside justamente na sua “inocuidade”, pois, colocados juntos, seus dois termos teriam o poder de anular o que praticantes e estudiosos do gênero consideram os vícios um do outro: no caso do adjetivo literário, a noção de ficção; no do substantivo jornalismo, a noção de ausência de inventividade. Ao retomar os acontecimentos que abrem a narrativa – e que haviam ficado em suspenso por cerca de 400 páginas – por ocasião do episódio em que é levado à presença de Juliano, que deseja negociar a escrita de um livro, Barcellos cria uma relação de causalidade entre os dois momentos,

como se a proposta fosse resultado do desespero do traficante, que vinha tendo dificuldades para manter o controle do morro em função de sua notoriedade.

Com a cabeça a prêmio – o então governador Anthony Garotinho havia oferecido uma recompensa de cinco mil dólares pela sua captura – e a presença constante da polícia na favela Santa Marta, Juliano, escondido em outra comunidade, estava enfraquecido demais para conter o avanço de seus rivais. Sob a luz desse novo fator inserido na história – o repórter –, a cena inicial, na qual o herói perde seu amigo de infância – o motorista Careca –, após um ataque frustrado contra os homens de seu antigo padrinho e mentor – Carlos da Praça –, passa a ter um peso até então inexistente: revela a inevitabilidade de um desfecho, bem como a consciência dessa inevitabilidade por Juliano, que decide contar sua história antes que seja tarde demais.

É preciso frisar que a sensação de inevitabilidade de um desfecho, em Abusado, em nada é devedora do conhecimento prévio a respeito da história de Márcio Amaro de Oliveira que o leitor pudesse ter a partir da leitura das páginas policiais dos jornais diários ou do noticiário televisivo sobre o traficante, que à altura da publicação do livro de Caco Barcellos já estava preso há três anos, depois de ter tido papel de destaque em uma série de eventos amplamente explorados pela mídia. Marcinho VP, apesar de sua relativa insignificância na hierarquia da organização criminosa de que fazia parte, o Comando Vermelho, havia se tornado uma espécie de inimigo público número um do Rio de Janeiro. Chamou a atenção pela primeira vez em 1995, ao colaborar com o cineasta João Moreira Salles na gravação do documentário Notícias de uma guerra particular – além das informações prestadas, permitiu o acesso à favela Santa Marta. A partir daí, passou a manter contato com outros artistas e intelectuais, como os músicos Marcelo Yuca e Mano Brown, dos grupos O Rappa e Racionais MCs, e o romancista Paulo Lins, de Cidade de Deus. Em 1996, negociou com o diretor norte-americano Spike Lee a gravação, no seu morro, do clipe They don’t care about us, de Michael Jackson. Seus homens foram responsáveis pela segurança do pop star e de sua equipe na favela, o que gerou um desconforto entre as autoridades. Em 1997, Marcinho VP protagonizou uma fuga cinematográfica da carceragem da Polinter. Viveu uma temporada fora do país, recebendo mesada do velho conhecido João Moreira Salles, para que se dedicasse a escrever sua autobiografia. Preso novamente, em 2000, depôs na CPI do narcotráfico, onde, segundo matéria da IstoÉ Online de 6 de agosto de 2003, assinada por Francisco Alves Filho, “[...] surpreendeu os deputados ao criticar os políticos e o FMI (Fundo Monetário Internacional) e por defender os movimentos guerrilheiros da América Latina”.

Mas, repetimos, qualquer conhecimento prévio que se possa ter com relação a esses acontecimentos, no sentido jornalístico do termo – algo extraordinário ou fora do comum –, não contribui para a sensação de inevitabilidade do desfecho – a prisão de Juliano – que é experimentada ao fim da leitura de Abusado. Ela ocorre em função da síntese operada pela imaginação, que dá aos fatos narrados o seu significado. Tal síntese é um jogo com as expectativas do leitor, constantemente alteradas pela inserção de novos fatores – as peripécias – e colocadas de volta nos trilhos do reconhecimento. É no que Ricoeur chama de “inteligência narrativa”, aliada à uma pré-compreensão da ação – “desde sempre simbolicamente mediatizada” –, compartilhada pelo leitor e pelo escritor, que a obra se baseia para construir esse jogo. Prova disso é que, mesmo o conhecimento do assassinato de Juliano em 2003, em Bangu III, cerca de dois meses após o lançamento do livro, não impede que torçamos pela vitória do protagonista bandido sobre a desigualdade socioeconômica e sobre um aparato de combate ao crime que, ao invés de garantir a cidadania e coibir a violência, é, ele próprio, violento e corrupto. Na verdade, chega-se, por alguns momentos, a acreditar que o jovem dará uma guinada em sua vida, tantas parecem ser as deixas para que isso ocorra – sobretudo em função das amizades que VP mantinha com escritores, músicos e cineastas, todos desejosos de ajudá-lo.

Ricoeur afirma que a concordância estabelecida pela narrativa é uma resposta ao paradoxo da temporalidade que a fenomenologia tenta resolver desde Santo Agostinho: se o tempo é um, como explicar que se divida em três – presente, passado, futuro? E como medi-lo, se o presente não permanece, o passado já não é e o futuro ainda não é? Agostinho chega a conclusão de que a extensão do tempo é, na verdade, uma distensão da alma, pois o que medimos não é o tempo em si, mas o futuro compreendido como expectativa e o passado como memória. Porém, se essa distensão da alma é a solução das aporias da medida do tempo, exprime também seu dilaceramento, em comparação com a eternidade estável. Para Ricoeur, a narrativa é uma resposta a essa esgarçadura da alma, pois transforma a experiência discordante da vida em concordância por meio de uma atividade eminentemente verbal. Não propriamente soluciona os paradoxos temporais, mas torna-os produtivos.

Frank Kermode (2000), por sua vez, estabelece uma diferença entre a existência – o tempo instaurado pelas chamadas ficções de concordância ou orientadas para um fim – e a mera cronicidade ou sucessividade, associada à realidade, ao passar do tempo ordinário. A narrativa, assim, transforma o tempo vazio em tempo prenhe de significado, carregado com um sentido derivado da sua relação com o fim. É como o intervalo entre o “tic” e o “tac” do relógio, metáfora que Kermode emprega para exemplificar sua teoria: assim que ouvimos o “tic”, ficamos à espera de seu desfecho. O mesmo não acontece, por sua vez, entre o “tac” e o próximo “tic”; trata-se, nesse caso, de um lapso temporal desprovido de sentido. É esse dotar o tempo de sentido, torná-lo efetivamente humano por meio do jogo entre expectativa e memória, que faz com que a narrativa, em especial o romance, provoque a sensação contraditória, ao final da leitura, de que tudo poderia ter sido diferente, mas de que, no fim das contas, tudo foi exatamente como deveria ter sido. (POUILLON, 1974).

Paralelamente ao agenciamento da intriga, pode-se falar em outro tipo de configuração presente em obras narrativas: aquela que, conforme Bakhtin (2006), decorre de uma “relação arquitetonicamente estável e dinamicamente viva do autor com a personagem”. Para o crítico, no mundo real, não há definições acabadas do homem; este é uma unidade aberta de conhecimento. Mesmo o ser mais próximo, aquele com quem se tem mais familiaridade, não é visto senão através de muitos véus. Cada homem é percebido pelas reações casuais dos outros às suas atitudes ou pelas posições fortuitas que ocupam, em relação a ele, aqueles com quem convive e interage. O que existe são respostas às suas manifestações particulares, e não ao homem inteiro. Assim, nas notícias encontradas sobre Juliano em veículos informativos diários, pela ausência de narração – a estruturação da notícia baseia-se na técnica da pirâmide invertida, em que os fatos são dispostos em ordem decrescente de importância –, o protagonista de Caco Barcellos se resume aos rótulos que lhe impõe a sociedade leitora de jornais; rótulos que traduzem os atos de Juliano que a ameaçam, portanto.

Em Abusado, contudo, Juliano é um todo definido; não é unidade aberta de conhecimento, sem uma imagem concreta, mas tampouco se reduz a “bandido” ou “traficante”. É o amigo, o irmão, o namorado, o pai; o torturador impassível, mas também o torturado que teme a morte; o gerente de boca implacável e ambicioso que deseja ascender na hierarquia da organização criminosa, mas também o menino que a comunidade viu crescer e tenta acobertar por ocasião das operações policiais. Nas páginas dos jornais, por exemplo, referências à religiosidade do “marginal” soariam absurdas; porém, no relato ficcionalizado de sua vida, essas demonstrações de fé aparentemente contraditórias são ecos dos sermões revolucionários do padre Velloso, que os meninos da favela Santa Marta, da geração de Juliano, ouviam com devoção. Essa atividade concludente do narrador sobre a personagem, que complexifica uma personalidade, ao mesmo tempo em que a mantém sobre controle, é o que cria a modelização ou ilusão da vida, de que falam autores como Iuri Lotman (1978) e Käte Hamburger (1986); ou seja, a impressão de que, na narrativa, não se fala “sobre” algo:

pessoas e mundos são instaurados pelo texto, ou, conforme Bakhtin (2006), dotados de valores plástico-picturais.

O trecho reproduzido abaixo, que narra um episódio da adolescência de Juliano, época em que ele e os amigos se aventuravam pelas praias cariocas – espaço democrático em que os garotos da favela podiam se misturar com os jovens de classe média –, é um exemplo da atividade concludente do narrador e da criação da ilusão da vida a que acabamos de nos referir, que faz com que os acontecimentos se desenrolem perante os olhos do leitor:

Era necessário senso de oportunidade. A primeira investida certeira de Juliano começou numa situação de emergência, com a praia do Leme lotada numa manhã de sábado. A menina estava em apuros, sem conseguir vencer o “repuxo”das ondas, que a empurrava para longe da areia. O povo gritava pelo grupo de salva-vidas. No mar, surfistas deitados de bruços sobre as pranchas “remavam” com os braços para tentar socorrê-la o mais depressa possível. Mas eles estavam longe, a mais de 50 metros, quando Juliano saiu do meio da multidão e se jogou no mar. – Segure firme no meu pescoço, princesa. Eu sô bom nisso! Vencidas as ondas mais altas, Juliano recebeu o apoio de Du e de dois estranhos para levar a menina até a areia. Era uma filha de japoneses com cidadania brasileira. Da família, talvez devido ao desespero, apenas a irmã, Haruno, reconheceu o gesto e agradeceu o salvamento. – Não sei nem como te agradecer. Foi a primeira frase do namoro que durou pouco mais de um mês, sempre com encontros que começavam ao meio-dia nas areias do Leme. Haruno parecia apaixonada até o dia em que Juliano não conseguiu mais esconder onde morava. – Santa Marta! – Onde fica? – Em Botafogo! – Em Botafogo? Eu moro em Copacabana, como eu não conheço? – Fica lá em cima, no morro. – Então você mora na favela Dona Marta. – Dona Marta é o nome do morro, onde tem o mirante, a floresta e a favela. A favela chama Santa Marta. – Santa Marta ou Dona Marta... Não importa! Você é um favelado, entendeu? Minha mãe vai me matar! (BARCELLOS, 2005, p. 52).

Como se pode ver, a narrativa instaura um espaço no qual a experiência

temporal não diz respeito ao responsável pelo discurso – à voz narrativa –, mas às personagens por ele criadas, e que detêm a perspectiva. Isso ocorre ainda que o próprio narrador seja uma personagem – e é por isso que, para Bakhtin (2006), mesmo a autobiografia é tributária de uma filosofia da criação estética ou, como diria Käte Hamburger (1986), de uma lógica da criação ficcional. Assim, por exemplo, quando o repórter Caco Barcellos passa a figurar nas páginas de Abusado como personagem, à altura do capítulo 31, o sistema de coordenadas espaço-temporais no qual se insere é diferente do sistema ao qual pertence o Caco Barcellos narrador. Isso fica evidente quando dêiticos temporais acompanham verbos no passado, como no seguinte fragmento: “A gente procurava um meio de se fazer entender, quando a chegada de um carro desviou minha atenção. Agora era eu que não prestava atenção na conversa de Juliano”. (BARCELLOS, 2005, p. 462, grifos nossos).

Por que uma concepção da ficção enquanto mímesis, e da mímesis enquanto configuração, e não imitação do real, é interessante para a abordagem das obras do chamado jornalismo literário? Em primeiro lugar, acreditamos que ela contribui para uma reflexão sobre a atividade jornalística enquanto prática discursiva, enquanto meio de construção da realidade, e não como mero espelho da verdade – e, consequentemente, “corrige” a crítica ingênua do jornalismo enquanto “distorção” dos fatos. Em segundo lugar, ela possibilita que tais obras tenham interesse também para os estudos literários, já que, atualmente, apenas acadêmicos da área de Comunicação Social têm se dedicado ao estudo dos chamados livros-reportagem no Brasil – destacando, sobretudo, os métodos de apuração dos autores ou então os “artifícios romanescos” mais comumente empregados, a fim de elaborar uma receita de como fazer um “texto jornalístico” com “contornos de literatura”, e ignorando por completo que o aspecto literário de tais obras reside, justamente, na ficcionalidade criada pelo tratamento narrativo.

O desinteresse da crítica literária brasileira pelas narrativas de jornalistas-escritores é fruto da abordagem que tais obras tiveram na década de 1980, quando ensaístas como Silviano Santiago e Flora Süssekind, em panoramas sobre a produção cultural em tempos de censura e repressão, classificaram obras como as dos jornalistas José Louzeiro e Aguinaldo Silva – que batizaram de romances-reportagem – como subliteratura. Para esses críticos, tais obras, por seu caráter “mimético” – no sentido de uma tentativa frustrada de cópia da realidade –, preocupavam-se apenas em refletir as crises sociais, sem preocupação com as crises literárias. A denúncia que pretendiam realizar, dessa maneira, era falha, pois tentavam impor, a uma realidade fragmentada, uma unidade inexistente, o que acabava por reforçar uma pretensa “identidade nacional” – justamente o que pregava a ditadura militar.

Para esses ensaístas, a que se juntavam também Heloísa Buarque de Hollanda e Davi Arrigucci Jr., o “tom jornalístico” não passava de um desvio adotado pela literatura nos anos 70, quando jornais e revistas estavam impossibilitados de falar abertamente “a verdade”. A única intenção do romance-reportagem, conforme Santiago (1982, p. 52), era “[...] desficcionalizar o texto literário e com isso influir, com contundência, no processo de revelação do real”; era acusar a censura dentro de um estilo, o jornalístico, que não passava de (p. 54, grifo do autor) “simples transposição do real”. Por não passarem de meros complementos do “jornal censurado” e da “televisão pasteurizada”, ou de instrumentos por meio dos quais o público organizava o seu próprio mal-estar com a situação vigente à época, perderiam sua razão de ser no regime democrático que se avistava.

Assim como os jornalistas, hoje, os críticos literários brasileiros, na década de 1980, foram incapazes de perceber o tratamento narrativo enquanto processo de ficcionalização do real; para eles, uma literatura que se pretendesse ficcional deveria primar pela autorreferencialidade, ou seja, pelo desvendamento de seus processos, quebrando a ilusão cênica. Os romances-reportagem, tidos como produto direto das circunstâncias políticas, tiveram sua morte categoricamente decretada, e nunca mais mereceram a atenção do campo das Letras. Porém, continuam presentes no cenário cultural brasileiro, ainda que a antiga denominação tenha caído no esquecimento. Assim, ao apontar a mímesis ou composição da intriga como corte que institui o espaço ficcional, pretende-se reabilitar o romance-reportagem como objeto de estudo digno da teoria literária, complexificando nosso olhar sobre obras de autores como Caco Barcellos, Fernando Morais, Zuenir Ventura e Ruy Castro, apenas para citar os mais conhecidos.

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