PENSAR A AMÉRICA LATINA CONTEMPORÂNEA Introdução

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PENSAR A AMÉRICA LATINA CONTEMPORÂNEA Jorge José Barros de Souza SEEDUC [email protected] Introdução Pensar a América Latina contemporânea é um grande desafio para nós, historiadores, tendo vista as mudanças, rupturas, fluxos e refluxos que tivemos desde a sua longa e dificultosa formação dos estados nacionais, no século XIX, aos dias atuais. A América Latina vivenciou uma epopeia de dar inveja a Ulisses, quando enfrentou os enormes obstáculos durante seu retorno da Guerra de Troia. As pelejas e os enfrentamentos derivados dos tempos da colonização são refletidos até os tempos atuais, o tempo presente da América Latina. O passado, como ponto de partida para entender as raízes dos problemas atuais desta região, definida por sua natureza cultural e colonial, de América latina, é o acicate para a elaboração desta análise que requer um debate, por ter especificidades que as diferem de outras lutas e movimentos, em outros continentes e suas histórias. Os efeitos da colonização são sentidos até hoje. A Ocidentalização, acompanhada da miscigenação transformou estas bandas daqui num outro espaço que, na atualidade, me parece ignorar traumas e contradições que foram o motor de várias contestações e lutas, presentes ao longo dos séculos passados, e que reverberam até hoje. As civilizações anteriores ao domínio ibérico foram destruídas: Se a palavra genocídio foi alguma vez aplicada com precisão a um caso, então é esse. É um recorde, parece-me, não somente em termos relativos (uma destruição da ordem de 90 % e mais), mas também absolutos, já que estamos falando de uma diminuição da população estimada em 70 milhões de seres humanos. Nenhum dos grandes massacres do século XX pode comparar-se a esta hecatombe. (TODOROV, 1999, p.185) Outra grande questão: a América latina não é homogênea. Por mais que achem, devidos as matrizes coloniais ibéricas, hegemônicas até o século XIX, a América Latina é plural.

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PENSAR A AMÉRICA LATINA CONTEMPORÂNEA

Jorge José Barros de Souza

SEEDUC

[email protected]

Introdução

Pensar a América Latina contemporânea é um grande desafio para nós,

historiadores, tendo vista as mudanças, rupturas, fluxos e refluxos que tivemos desde a

sua longa e dificultosa formação dos estados nacionais, no século XIX, aos dias atuais.

A América Latina vivenciou uma epopeia de dar inveja a Ulisses, quando

enfrentou os enormes obstáculos durante seu retorno da Guerra de Troia.

As pelejas e os enfrentamentos derivados dos tempos da colonização são

refletidos até os tempos atuais, o tempo presente da América Latina.

O passado, como ponto de partida para entender as raízes dos problemas atuais

desta região, definida por sua natureza cultural e colonial, de América latina, é o acicate

para a elaboração desta análise que requer um debate, por ter especificidades que as

diferem de outras lutas e movimentos, em outros continentes e suas histórias.

Os efeitos da colonização são sentidos até hoje. A Ocidentalização,

acompanhada da miscigenação transformou estas bandas daqui num outro espaço que,

na atualidade, me parece ignorar traumas e contradições que foram o motor de várias

contestações e lutas, presentes ao longo dos séculos passados, e que reverberam até

hoje. As civilizações anteriores ao domínio ibérico foram destruídas:

Se a palavra genocídio foi alguma vez aplicada com precisão a

um caso, então é esse. É um recorde, parece-me, não somente

em termos relativos (uma destruição da ordem de 90 % e mais),

mas também absolutos, já que estamos falando de uma

diminuição da população estimada em 70 milhões de seres

humanos. Nenhum dos grandes massacres do século XX pode

comparar-se a esta hecatombe. (TODOROV, 1999, p.185)

Outra grande questão: a América latina não é homogênea. Por mais que achem,

devidos as matrizes coloniais ibéricas, hegemônicas até o século XIX, a América Latina

é plural.

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O longo e dificultoso processo das formações dos estados nacionais

na América Latina

Seria correto afirmar que a América Latina criou os personalismos? De que

maneira, os efeitos da colonização, e dos problemas ocorridos na etapa seguinte às

Independências - as guerras e o longo processo da formação dos estados nacionais –

reverberam até os dias de hoje?

Os personalismos na América Latina começaram com o caudilhismo. Da

impositiva figura dos caudilhos, em vários territórios da América Latina, o poder e a

coerção que exerceram possibilitaram a presença dessa cultura política que, a meu ver,

mesmo pertencendo a um tempo histórico, do século XIX, deixou um legado:

Os caudilhos eram tipicamente grandes proprietários de terras

que podiam aplicar seus recursos pessoais no clientelismo ou na

manutenção de exércitos privados. Os primeiros caudilhos

tornaram-se proeminentes nas guerras de independência; depois

estenderam a fama de líderes de homens dos tempos de guerra

para a política dos tempos de paz, que não era especialmente

pacífica. (CHASTEEN, 2001, p.106)

O legado cultural dos caudilhos se mostrou, no século passado, e neste que ainda

ocorre, nos populismos e neopopulismos que, em alguns países se apresentam como um

líder messiânico, um “salvador pátria” cuja imagem se perpetua num modelo de cultura

política. Como um cadáver que no longo processo de decomposição deixa marcar

indeléveis. E perpetua um personalismo:

Contudo, o interessante é o fato de que esta “encarnação” do

corpo político em um rei de carne não somente desfaz as

imperfeições humanas do corpo natural, mas transmite

“imortalidade” para o rei individual como Rei, isto é, em relação

ao seu supercorpo. (KANTOROWICZ, 1998, P.25)

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No século XIX, os caudilhos deixaram suas marcas onde foram proeminentes.

No México, com Benito Juárez e Porfírio Diaz. Na Argentina, com Rosas. Países que

tiveram longas lutas na composição dos seus respectivos estados nacionais.

Simon Bolívar, o El libertador, uma liderança que podemos caracterizar como

pré-caudilho, apresenta-se no contexto do tempo presente da América Latina, como um

corpo que transmite uma imortalidade, conforme apontou Kantorowicz, que é

apropriada tanto pela esquerda, como pela direita.

Em seu tempo, Bolívar foi um liberal, porque se inspirou nos movimentos e lutas

herdados do século XVIII,

o Iluminismo, a Revolução Americana e a Revolução Francesa. Mas, por outro lado, foi

uma liderança oriunda das elites criollas e que conservou o tecido social dos tempos da

colonização.

O que quero ilustrar, e desejo ressaltar, foi a difícil construção do processo

democrático que, a meu ver, sobretudo na América latina, tem uma história à parte, e

que passa pela formação dos estados nacionais.

A etapa seguinte às independências nas Américas foi marcada por guerras que,

por conseguinte, favoreceram a balcanização da antiga América hispânica, na

fragmentação em vários países, para atender às demandas de líderes locais.

Liberais e conservadores disputaram a hegemonia pelo poder. Mesmo com

propostas distintas, não se deve deixar de mencionar o fato de serem os herdeiros

remanescentes dos tempos coloniais.

Essas disputas se arrastaram por anos e, levando em consideração a identidade

de cada país, ratifica o porquê a América Latina não ser homogênea.

Mesmo em áreas que tiveram a mesma matriz colonial, por exemplo, a

espanhola, a consolidação das repúblicas foi um longo e dificultoso processo.

O mesmo se diz em relação ao processo democrático, sistema de governo tão

valioso, raro no século XIX, construído ao longo do XX e ameaçado no século que

estamos vivenciando, o XXI.

Queria deixar registrado que na América Latina, os acontecimentos de século

passados, sobretudo o XIX, que salientei para cotejar com o processo de formação dos

estados nacionais, não estão distantes, remotos e perdidos no tempo. Muito pelo

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contrário! Estão conectados para entendermos que as contradições são resultados deste

longo e dificultoso processo, em que as elites locais se perpetuaram no poder,

dificultando o acesso à república e à democracia.

A formação dos estados nacionais é um processo incompleto, por não encarar as

raízes de seus problemas, que remontam há tempos, desde os tempos da conquista e

colonização. O projeto mercantilista imposto pelos europeus ao longo de séculos

promoveu a pilhagem e a destruição de padrões culturais erguidos por ricas civilizações.

O legado cultural não promoveu a inclusão. Continuamos a servir, a sermos

enclaves, a termos nossa soberania solapada, nossa democracia sendo disputada e

manipulada pelos países centrais. Continuamos subservientes:

Nossa comarca no mundo, que hoje chamamos de América

Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos

tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram

pelo mar e ficaram os dentes em sua garganta. Passaram os

séculos, e a América Latina aperfeiçoou suas funções. Este já

não é o reino das maravilhas, onde a realidade derrotava a fábula

e a imaginação era humilhada pelos troféus das conquistas, as

jazidas de ouro e as montanhas de prata. Mas a região continua

trabalhando como serviçal. Continua existindo a serviço de

necessidades alheias, como fonte e reservas de petróleo e ferro,

cobre e carne, frutas e café m matérias-primas e alimentos,

destinados aos países ricos que ganham, consumindo-os, muito

mais do que a América Latina ganha produzindo-os.

(GALEANO, 1991, p.13)

As etapas da História da América Latina, que analisaremos em seguida, que vêm

após a formação dos estados nacionais, apresentaram singularidades e complexidades,

mesmo numa mesma conjuntura histórica. Conforme exposto anteriormente, a

construção dos estados nacionais na América Latina, após a fragmentação e

balcanização em diversos países, pesadelo de Simón Bolívar; e fato comemorado pelas

potências imperialistas do século XIX, Inglaterra e Estados Unidos, seguiu-se as lutas

de seus países, que se formaram após as independências.

Logo, portanto, enfatizo que o histórico de lutas vem a ratificar a

heterogeneidade e complexidade do continente latino-americano. As democracias que se

ergueram devido a consolidação do sistema republicano revelaram os problemas que se

arrastam até hoje para sua inteira efetivação, que devem introduzir, incondicionalmente,

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a igualdade radical e a soberania popular. É perspícuo que tal igualdade e soberania

ficaram de fora da história da América Latina.

As lições de Rousseau para a América Latina

Para o filósofo Rousseau a soberania é inalienável. Como construtor teórico de

um novo pacto que ressalta o protagonismo da comunidade via vontade geral do povo,

Rousseau inaugura a democracia direta e participativa, onde o povo é o soberano:

A primeira e mais importante consequência dos princípios até

aqui estabelecidos é que somente a vontade geral pode dirigir as

forças do Estado de acordo com a finalidade da sua instituição,

que é o bem comum, porque, se a oposição dos interesses

particulares tornou necessário o estabelecimento das sociedades,

foi a concordância desses mesmos interesses que o tornou

possível. O que forma o vínculo social é o que há de comum

nesses diferentes interesses, e, se não houvesse um ponto no

qual todos os interesses se põem de acordo, nenhuma sociedade

poderia existir. Ora, é unicamente com base nesse interesse

comum que a sociedade deve ser governada. Digo, portanto, que

a soberania, que é o exercício da vontade geral, nunca pode ser

alienada e que o soberano, que é um ser coletivo, só pode ser

representado por si mesmo. O poder pode ser transmitido, não a

vontade. De fato, se não é impossível que uma vontade

particular concorde em algum ponto com a vontade geral, é

impossível pelo menos que essa concordância seja duradoura e

constante, porque a vontade particular tende por natureza às

preferências, e a vontade geral à igualdade. É ainda mais

impossível ter uma garantia dessa concordância, mesmo que

essa concordância perseverasse, o que não seria um efeito da

arte mas do acaso. O soberano pode muito bem dizer: “Quero

agora o que quer certo homem ou pelo menos o que ele quis

dizer”. Mas ele não pode dizer: “O que esse homem quiser

amanhã, eu também quererei”, porque é absurdo a vontade se dê

grilhões para o futuro e porque não depende de nenhuma

vontade consentir em nada que seja contrário ao bem do ser que

quer. Portanto, se o povo promete simplesmente obedecer, ele se

dissolve por esse ato, perde sua qualidade de povo. A partir do

instante em que tem um amo, não há mais um soberano, e o

corpo político é por conseguinte destruído. Isso não quer dizer

que as ordens dos chefes não possam ser tidas como vontades

gerais, enquanto o soberano, que é livre para se opor a elas, não

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o fizer. Num caso assim, do silêncio universal deve-se deduzir o

consentimento do povo. (ROUSSEAU, 2011, p.77-78)

O legado Rousseaureano é assaz importante para compreendermos os dilemas da

História da América Latina, sobretudo a partir do período discutido anteriormente,

acerca da formação dos estados nacionais, que reverbera até hoje.

Tomarei como ponto de partida a questão da democracia. No século XIX as

fundações das repúblicas na América Latina tiveram a tutela das elites remanescentes

dos tempos coloniais – a criolla. No Brasil, as elites fundiárias foram as bases políticas

e sociais da monarquia.

Todavia, onde estava o povo na formação destes países? Os indígenas, negros,

mestiços, pobres e marginalizados não usufruíam das questões e desafios das repúblicas

e monarquia que vigoravam.

No México, em tempos de liberalismo que se consolidou com o porfiriato, os

indígenas, em grande maioria, foram alijados e encampados pela modernização, em fins

do século XIX.

Na Argentina, Rosas contribuiu para o extermínio indígena. Sarmiento estimulou

o projeto de branqueamento da população, em fins do século XIX. O liberalismo na

Argentina, no século XIX, mirava-se nos padrões europeus de cultura e “civilização”.

Em grande parte dos países da América latina, a escravidão continuava a ser a

força motriz mais importante da produtividade destes países, de natureza

agroexportadora.

A inserção da população negra pós-abolição foi marcada por muita

marginalização e violência. Sempre desassistida pelas autoridades de seus países:

O fato lamentável de que, em todas elas, as pessoas de origem

africana “mais pura” ou “sem mistura” ocupam,

desproporcionalmente, a parte mais baixa da escala econômica.

Em outras palavras, as pessoas de pele mais escura, de cabelo

mais encarapinhado e de lábios mais grossos formaram em geral

o grupo mais pobre da sociedade. Ou seja, nesses países, a

pobreza foi construída socialmente em torno de graus de origem

africana óbvia (...) esse fato econômico é um legado da

escravidão, de histórias longas e específicas de racismo, mesmo

em sociedades que se vangloriam de ser ‘democracias raciais”,

“livres de racismo” ou “pós-raciais”.(GATES JR, 2014, p.27)

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Outro grande problema, que reverbera até os dias de hoje, é o problema

indígena. Quero frisar também que, numa perspectiva Braudeliana de longa duração,

tanto as questões do negro, como a indígena, além de interligadas por conta da herança

cultural, perpassaram pela marginalização e falta de reconhecimento histórico até os

dias de hoje.

O discurso hegemônico é o do preconceito e ação violenta a essas comunidades.

Em vários países suas descendências continuam a ser as primeiras a serem exterminadas

e aniquiladas, como foi no passado colonial. Pesa-se sobre estas populações uma

enorme dívida que em muitos países da América Latina não se têm a menor vontade de

pedir desculpas pelas mazelas históricas.

As populações indígenas são cada vez mais aviltadas na América Latina. Se

observarmos os países de população majoritariamente indígena, como a Bolívia, por

exemplo, somente em 2006 elegeu um presidente de origem indígena. Ao assumir o

poder, Evo Morales, através de uma reforma constitucional, reconheceu a Bolívia um

Estado Plurinacional. Foi o reconhecimento às populações indígenas:

A Bolívia constitui um Estado social Unitário Plurinacional de

Direito Comunitário, livre, independente, soberano,

democrático, intercultural, descentralizado e autônomo. [O

Estado da] Bolívia é baseado na pluralidade e no pluralismo

político, econômico, jurídico, cultural e lingüístico dentro de um

processo de integração do país. (Artigo da Constituição da

Bolívia de 2009)

Seus enfrentamentos mostraram-se desafiadores. Em 2008, diante dos problemas

das autonomias, Evo se projetou como o arauto do projeto antineoliberal e separatista.

As comunidades indígenas foram submetidas durante anos ao neoliberalismo que

vendera até a água.

No Brasil, recentemente, o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, vem

promovendo o discurso de ódio aos povos indígenas. O número de assassinatos vem

aumentando e as ameaças estão na ordem do dia. Suas terras são invadidas por grileiros

e seus direitos, previsto na Constituição de 1988, ameaçados.

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É necessário retomar o contratualismo rousseauniano. A efetivação de uma

soberania popular e de igualdade radical tem que se levar em consideração os direitos

dos negros e indígenas, e suas descendências.

É inevitável retomar o espaço sócio-cultural e territorial da América dita pré-

colombiana. Todavia, promover o debate que leve em consideração as suas

preservações, das várias etnias, tem que ser um projeto para a América Latina

Contemporânea.

O mesmo vale para os afrodescendentes. O tráfico de escravos mudou a natureza

dessas etnias. As colônias impuseram a escravidão. Vidas foram solapadas. E, as

abolições, muitas tardias, não exerceram o papel de inclusão social, arrastando o

problema do negro até hoje.

No Brasil, são os negros que mais sofrem com as faltas de políticas públicas. As

ações afirmativas, baseadas na experiência estadunidense de sistema de cotas,

contribuíram muito para a inclusão. Mas, não é tudo!

Recentemente, Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, cometeu mais um de tantos

atos inconsequentes: ofendeu as comunidades quilombolas. São essas incorreções

históricas que, no atual governo, não se tem interesses em corrigir,

O neoliberalismo está de novo como projeto em curso na América Latina. As

políticas implementadas nos anos 90 por Fujimori, no Peru, Menem, na Argentina,

Fernando Henrique no Brasil e outros mandatários na Bolívia e no Equador levaram ao

caos e a situações desastrosas. No Brasil a aposta no projeto neoliberal aumentou o

fosso, a desigualdade e violência:

Os setores populares, particularmente aqueles que mais crescem,

os das populações pobres da periferia das grandes cidades - em

sete regiões metropolitanas se situa 40% da população brasileira

-, protagonizam os episódios mais cruéis da crise social

brasileira – desemprego, miséria, exclusão social, violência,

narcotráfico, ausência do Estado de direito e do Estado de bem-

estar social. (SADER, 2003, p.157)

Na Bolívia e no Equador a situação ficou tão caótica que as populações

resolveram ir às ruas derrubar seus mandatários. Na Argentina, em 2001, a queda de

Fernando de La Rúa, que mantivera a cartilha de Menem, deixou o país na bancarrota.

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O Brasil quase quebrou em 1998, com a crise da Rússia. Mantiveram os

problemas econômicos escondidos para evitar a derrota eleitoral do partido – O PSDB –

que aprofundou o projeto neoliberal iniciado por Collor, em 1990. Mas, sem dúvida, foi

Fernando Henrique Cardoso, através das suas composições eleitorais, em aliança com o

antigo PFL (Partido da Frente Liberal), atual DEM, que se tornou o timoneiro do

neoliberalismo. Com um programa que previa privatizações e abertura ao capital

estrangeiro, inseria o País na conjuntura da nova globalização que se iniciava.

No México, a composição com o NAFTA, Tratado Norte-americano de Livre

Comércio, de 1994, trazia para o cenário político os novos herdeiros da luta dos povos

indígenas: o exército zapatista. Marcos Zapata aparecia num momento em que os

tempos neoliberais se aprofundavam, revelando, ao mesmo tempo, um desgaste do PRI

(Partido Revolucionário Institucional), que surgiu da Revolução Mexicana.

As urnas ratificaram essas profecias. Novos atores sociais e políticos surgiram

da conjuntura de crise do neoliberalismo, promovendo mudanças e inclusão social. A

atmosfera do caos socioeconômico atomizou novas demandas e reivindicações.

Presidentes foram derrubados dos cargos. Outros derrotados nas urnas.

As populações latino-americanas urgiam por soberania e igualdade. Um novo

contrato permitiu uma nova condução: uma democracia participativa trazia uma fagulha

de esperança. A América Latina mira-se nas lições deixadas por Rousseau.

As lições que devemos aprender de Rousseau é que o clamor popular, as

manifestações e revoltas populares, nos anos 2000, reacenderam a esperança de

mudanças. O protagonismo assumido pelos levantes populares tirou de cena os partidos.

O povo foi às ruas e gritavam: “Que se vayan todos”! Presidentes que se submeteram à

cartilha neoliberal, destruindo futuros, entregando riquezas minerais e ecossistemas,

deixando vulneráveis etnias e culturas às ameaças dos interesses do grande sujeito, o

mercado, foram retirados de cena política.

A lição que devemos aprender é que não se pode negligenciar ou subestimar as

lutas populares. Os mandatários que ocuparam a presidência no Peru, na Bolívia, no

Equador, na Venezuela e na Argentina, no início dos anos 2000, foram retirados do

cargo por insistir numa política econômica que promoveu ações terríveis: da fome ao

desemprego.

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O que aconteceu às massas populares quando o perigo do neoliberalismo foi

afastado e o pós-neoliberalismo, uma etapa em construção, ainda era muito obscuro? As

esquerdas foram vitoriosas pela via eleitoral. Com as vitórias nos pleitos vieram as

reformas constitucionais. O poder constituinte foi assaz enriquecedor para o

estabelecimento das democracias participativas. Mas, qual foi o legado de Hugo

Chávez, importante no seu contexto histórico de resistência ao poder imperial dos

Estados Unidos na América Latina? Maduro, perdido numa órbita de caos político, não

pode ser considerado uma continuidade do chavismo.

Mas, voltando ao ponto central da discussão, podemos afirmar que as massas

perderam força? Podemos afirmar que as massas são a multidão, conforme apontam

Hardt e Negri? Ao concordarmos com esta definição estaríamos caminhando para uma

luta desterritorializada? Num universalismo que desprezaria as contradições regionais?

Poderíamos afirmar que as lutas que derrubaram presidentes corruptos e adeptos

do neoliberalismo surtiram os efeitos desejados, mas que sofreram refluxos? Ou estão

adormecidas? As massas perderam as esperanças na política, no sentido de

estabelecimento de poder? Na democracia? Ficou para trás os valores da democracia?

O fato é que o cenário atual é revelador: os tempos autoritários estão com muita

força e me parecem que a tolerância com a democracia é sintomática. No Brasil,

podemos afirmar que um plutocrata, assumiu o poder e vem, constantemente,

ameaçando os princípios democráticos. E pior: conta com um grupo de militantes e

convertidos ao chamado bolsonarismo.

Os dilemas e desafios da América Latina contemporãnea

Os desafios são ingentes. Anteriormente, mencionei alguns aspectos históricos

que reverberam até os dias de hoje. Repito e talvez seja alvo de críticas por isso: a

formação dos estados nacionais é algo incompleto.

Não quero ser redundante e repetitivo, mas ao sairmos da esfera da colonização

de matriz ibérica, assistimos as elites coloniais a servirem aos interesses ingleses e

estadunidenses que disputavam os mercados consumidores das recém nações

independentes.

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A Doutrina Monroe não era um recado somente às antigas metrópoles europeias.

Mas, mais do que isso: Os Estados Unidos influenciaram as decisões do futuro destes

novos países. Viramos novos enclaves. As velhas contradições dos tempos coloniais

transformariam essa mão de obra livre num enorme continente do labor:

A diversificação das atividades produtivas e a constituição do

mercado interno criaram as condições para a implantação do

trabalho assalariado na América Latina. Tal modalidade de

trabalho foi estabelecida apenas ao longo do século XIX, em um

momento caracterizado pela expansão do capitalismo industrial

(especialmente inglês), que passou a exigir a ampliação do

mercado consumidor e a introdução do trabalho assalariado no

mundo colonial. (ANTUNES, 2011, p.18)

O maior desafio da atualidade dos países da América Latina é a instabilidade

democrática. O continente vivenciou ditaduras longevas, antes e durante a Guerra Fria.

Por mais que o legado dos países após as independências, com exceção do

Brasil, foi o sistema republicano inspirado na Constituição dos Estados Unidos, de

1787, a democracia não acompanhou a implantação das repúblicas.

As independências foram promovidas pelas elites coloniais. E as mesmas elites

promoveram a organização política sob sua tutela. Muitos países latino-americanos

foram criados por imposições, o que gerou tensões locais, disputa entre liberais e

conservadores, federalismo e unitarismo:

Padrões recorrentes de violência política e corrupção alienaram

a maioria do poço dos governos que supostamente o

representavam. A política tornou-se, acima de tudo, uma busca

dos benefícios pessoais dos cargos públicos. Em suma, a

primeira geração pós-colonial (1825-1850) não viu a América

latina progredir em nenhuma direção. (CHASTEEN, 2001,

p.102 )

A construção das democracias na América Latina foi de longa duração. Os

caudilhos saíram de cena. As revoluções, como a Mexicana, longa e com altos e baixos,

iniciada em 1910, e estabilizada com Lázaro Cárdenas, nos anos 30, possibilitou a

institucionalização do PRI, partido que tutelava a democracia, e que ficou muito tempo

no cenário político mexicano.

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Na Argentina e no Uruguai, os reformismos ditos, radicais, efetivaram a

ampliação do sufrágio. Foram importantes para a ampliação de direitos considerados

significativos e inclusivos.

Os populismos, fenômeno datado na América Latina, cumpriram sua missão, de

industrializar e incluir as massas no processo de modernização em curso à época.

Contudo, para onde caminha e como caminha a América Latina? Não nos cabe

como historiadores profetizar. O máximo que fazemos é olhar o passado, conforme

falou Heinrich Heine: “O historiador é o profeta que olha para trás”. Tentar dar um

sentido ao passado, entender que este passado reverbera no presente e pode dar

respostas para o futuro.

Segundo, Gino Germani, a América Latina passou pelos estágios ou etapas:

1) Das Independências e das guerras de emancipação; 2) Das guerras civis, caudilhismo

e anarquia; 3) Das autocracias unificantes; 4) Das democracias representativas de

participação limitada ou oligarquias; 5) Das democracias representativas de maior

participação; 6) Das democracias representativas de participação total, marcada pelas

revoluções nacional-populares.

Em relação aos três primeiros pontos, foram fatos ocorridos no século XIX. E,

em relação aos três últimos estágios, no século passado.

Emir Sader, chama de ciclos, baseado num recorte mais recente:

1)De 1959, da Revolução Cubana a 1967 com a morte de Che Guevara; 2) de 1967 a

1973, com os golpes militares na Bolívia, no Chile e no Uruguai; 3) de 1973, com a

consolidação das ditaduras militares no Cone Sul a 1979, um período de grande refluxo;

4) de 1979, com o triunfo sandinista a 1990, com a derrota desta revolução; 5) de 1990

com a expansão do neoliberalismo, no Brasil, no México, na Argentina e no Peru;

O que veio em seguida ao fracasso do neoliberalismo, no final dos anos 90 e

início do terceiro milênio para alguns países? Uma ressaca que buscou uma ruptura com

a hegemonia estadunidense, construída no Consenso de Washington.

Na Venezuela, com a eleição de Hugo Chávez e, em seguida, na Bolívia e no

Equador, com as eleições de Evo Morales e Rafael Correa, respectivamente, novos

mandatários que propuseram rupturas, refundação de seus estados nacionais e novas

Constituições.

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No final dos anos 90 e início do terceiro milênio, além de uma nova esquerda,

anunciava-se o que foi chamado de Revolução Bolivariana e Socialismo do século XXI,

num continente que mergulhou no que Fukuyama vociferara: o fim da história. Não

estamos mais nos tempos da Guerra Fria, mas o objetivo de se chegar ao socialismo não

estava enterrado. Chávez, Evo e Correa buscaram viabilizá-lo em tempos pós-

neoliberais.

Os tempos pós-neoliberais acordaram países da América Latina para as mais

variadas matizes de esquerda: da moderada à radical/revolucionária. O que vejo como

uma esquerda positiva, no que ela poderia carregar de transformadora.

Chávez deixou um legado na Venezuela. Todavia, devemos repensar a

Venezuela, para além de Maduro, dos interesses do capital estrangeiro no petróleo e da

polarização e radicalização política. Naquele país, as massas populares, sem as

manipulações de ambos os lados, devem encontrar o caminho para que o país volte a

pensar em si mesmo.

Na Argentina, o presidente Macri, até o momento que escrevo este artigo,

malogrou na sua proposta de retomada do projeto neoliberal. As pesquisas apontam para

o retorno de Cristina Kirchner e, possivelmente, a suspensão da política neoliberal.

Bolsonaro, em seus discursos, que parece estar em eterna campanha, vem

apostando no caos para governar. Ao criar a ideia do espantalho, de que tudo foi culpa

do PT, ele ativa a sua militância, cega em entender que o país está sem projeto. Ou deve

ser esse mesmo: a da aposta no caos. Estamos nos impontuais da fascistização da

sociedade brasileira?

Noriega, na Nicarágua, fracassou como uma liderança significativa de uma

revolução, a sandinista. O país vem atravessando momentos críticos. 2018 foi muito

tenso. O que sinaliza para uma algo preocupante, desalento e decepcionante.

No México, Obrador, depois de duas eleições derrotadas, consegue levar a

esquerda ao poder nacional. Seus desafios são muitos. Os mais graves são o narcotráfico

e o muro que separa os Estados Unidos.

Quais os caminhos da América Latina quando se questiona a ordem democrática

no mundo inteiro? Teremos uma multidão que arregimentará uma nova força de

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mobilização de luta, que trará as reivindicações dos povos indígenas, negros, mulheres e

outros sujeitos históricos?

É necessário refletir sobre este momento histórico, a luz do passado e do que

pode ocorrer no futuro. A América latina é um laboratório de acontecimentos e

inúmeras incertezas.

Conclusão

A América Latina vem passando por rápidas mudanças sociais e políticas nos

últimos tempos. Para onde ela caminha? As revoluções falharam na construção de uma

nova sociedade? Ou cumpriram o seu papel? Continuaremos na dialética esquerda x

direita? Caminhamos para um processo de fascistização? Os golpes poderão ser dados

de outra maneira que não mais aqueles tradicionais, que levaram construção de

ditaduras terríveis?

E Cuba, com quem Obama acenou com uma aproximação, para onde irá? E a

Venezuela de Maduro que, desde a morte de Chávez perdeu aquela tão sonhada

esperança de uma nova sociedade?!

Durante anos da era Chávez pude concluir que mesmo com a polarização, a

Venezuela não poderia cair no personalismo, outra incorreção da América Latina. A

Venezuela não é Chávez. O país está sem novos sucessores. Chávez teve seus méritos.

Mas, não pode ser somente essa expressão política.

A Nicarágua que passou por uma revolução no final dos anos 70, que derrubou

uma ditadura longeva, de Somoza, vem vivenciando uma enorme decepção com um dos

seus principais herdeiros da Revolução Sandinista: Manuel Noriega. Quais os caminhos

que se vislumbram quando o herdeiro da revolução sandinista se transforma naquilo que

combateu?

E o fenômeno do ressurgimento do neoliberalismo, muito forte e devastador, nos

anos 90, e que voltou com toda a força, nos recentes mandatários da Argentina, Macri; e

do Brasil, com Temer, e agora, com Bolsonaro persistirá com sua política excludente?

Ou sucumbirá em algum novo ciclo que virá?

Page 15: PENSAR A AMÉRICA LATINA CONTEMPORÂNEA Introdução

Nossas indagações partem do princípio de como está a democracia e para onde

caminha a mesma? Comportamentos e discursos autoritários podem ameaçar a

democracia na América Latina. A região passa por mudanças em seu sistema? Como

ficarão as relações internacionais entre os países? São essas questões que nos fomenta a

pensar e refletir sobre os acontecimentos políticos e sociais da América Latina.

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