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1. o poder disciplinar nas instituições totais; 2. O poder disciplinar na 'empresa; 3. O poder disciplinar; 4. O poder disciplinar nas instituições de formação profissional; 5. Conclusão. Fernando Cláudio Prestes Motta" * Professor no Departamento de Administração Geral e Recursos Humanos da EAESP/FCV. Os estudos sobre organizações complexas freqüentemen- te deixam de lado o papel desses aparelhos na reprodu- ção de uma formação social capitalista. Na realidade, parece inútil tentar analisar com autonomia um fenô- meno que não é autônomo. As organizações são instru- mentos de. reprodução de uma sociedade de classes, o que também significa urna sociedade ainda dividida em frações de classes, camadas, estarnentos e grupos sociais diversos. Para uma mudança de perspectiva a contribuição de Poulantzas parece fundamental. Colocando a luta de classes no cerne da questão, esse autor afirma que a luta de classes não decorre da existência das classes. Isto significa que as classes existem na luta de classes, isto é, na luta econômica, política e ideológica em que se tra- duz essa luta de classes: Assim, para se entender as clas- ses sociais, deve-se assumi-las como "conjuntos de agen- tes sociais determinados principalmente, mas não exclu- sivamente, por seu lugar no processo de produção". 1 Não exclusivamente, porque devemos considerar múlti- plas determinações de dominação e subordinação políti- cas e ideológicas. Naturalmente que o critério fundamental para a per- cepção das classes sociais em uma dada formação é sem- pre, e antes de mais nada, o critério das relações de produção vigentes nessa formação. A constituição dessas relações de produção parte de uma dupla relação. Essa dupla relação engloba em primeiro lugar as relações dos homens com a natureza na produção material, as rela- ções dos agentes com o objeto e os meios de trabalho 33 que definem as forças produtivas, ou seja, a tecnologia e as formas de cooperação. Em segundo lugar, essa dupla relação implica a relação dos homens entre si, conforme; sua relação com o objeto e os meios de trabalho. Por outras palavras, propriedade ou posse definem as rela- ções de classe," As relações de produção, engendrando a estrutura de classes, engendram também o poder de classe. De onde decorre que as relações de dominação, e em uma sociedade capitalista avançada a dominação aparece como administração, não podem ser entendidas a não ser em sua articulação com as relações de produção. Nas palavras de Poulantzas: "As relações de produção e aque- las que as compõem (propriedade econômica/posse) tra- duzem-se sob a forma de poderes daí decorrentes, em suma pelos poderes de classe: como tais, estes poderes estão constitutivamente ligados às relações políticas e ideológicas que os consagram e legitimam ... O processo de produção e exploração é ao mesmo tempo processo de reprodução das relações de dominação e subordinação política e ídeológíca.:" Acontece, porém, que as classes sociais e sua repro- dução implicam a materialização das relações de classe. A materialização dessas relações se dá nas organizações complexas. Como afirma Poulantzas: "As classes sociais e sua reprodução só existem pela relação classes sociais/ aparelhos de Estado e aparelhos econômicos. Tais apare- lhos não se sobrepõem simplesmente como apêndices à luta de classes, mas detêm um papel constítutívo.?" Rev. Adm, Emp., Rio de' Janeiro, 21 (4): 33-41 out./dez.1981 -------------' --'--~------'-----------'-----~--------- O poder disciplinar nas organizações formais

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1. o poder disciplinar nas instituições totais;2. O poder disciplinar na 'empresa;

3. O poder disciplinar;4. O poder disciplinar nas instituições de

formação profissional;5. Conclusão.

Fernando Cláudio Prestes Motta"

* Professor no Departamento deAdministração Geral e Recursos Humanos da

EAESP/FCV.

Os estudos sobre organizações complexas freqüentemen-te deixam de lado o papel desses aparelhos na reprodu-ção de uma formação social capitalista. Na realidade,parece inútil tentar analisar com autonomia um fenô-meno que não é autônomo. As organizações são instru-mentos de. reprodução de uma sociedade de classes, oque também significa urna sociedade ainda dividida emfrações de classes, camadas, estarnentos e grupos sociaisdiversos.

Para uma mudança de perspectiva a contribuição dePoulantzas parece fundamental. Colocando a luta declasses no cerne da questão, esse autor afirma que a lutade classes não decorre da existência das classes. Istosignifica que as classes existem na luta de classes, isto é,na luta econômica, política e ideológica em que se tra-duz essa luta de classes: Assim, para se entender as clas-ses sociais, deve-se assumi-las como "conjuntos de agen-tes sociais determinados principalmente, mas não exclu-sivamente, por seu lugar no processo de produção". 1

Não exclusivamente, porque devemos considerar múlti-plas determinações de dominação e subordinação políti-cas e ideológicas.

Naturalmente que o critério fundamental para a per-cepção das classes sociais em uma dada formação é sem-pre, e antes de mais nada, o critério das relações deprodução vigentes nessa formação. A constituição dessasrelações de produção parte de uma dupla relação. Essadupla relação engloba em primeiro lugar as relações doshomens com a natureza na produção material, as rela-ções dos agentes com o objeto e os meios de trabalho 33que definem as forças produtivas, ou seja, a tecnologia eas formas de cooperação. Em segundo lugar, essa duplarelação implica a relação dos homens entre si, conforme;sua relação com o objeto e os meios de trabalho. Poroutras palavras, propriedade ou posse definem as rela-ções de classe,"

As relações de produção, engendrando a estruturade classes, engendram também o poder de classe. Deonde decorre que as relações de dominação, e em umasociedade capitalista avançada a dominação aparececomo administração, não podem ser entendidas a não serem sua articulação com as relações de produção. Naspalavras de Poulantzas: "As relações de produção e aque-las que as compõem (propriedade econômica/posse) tra-duzem-se sob a forma de poderes daí decorrentes, emsuma pelos poderes de classe: como tais, estes poderesestão constitutivamente ligados às relações políticas eideológicas que os consagram e legitimam ... O processode produção e exploração é ao mesmo tempo processode reprodução das relações de dominação e subordinaçãopolítica e ídeológíca.:"

Acontece, porém, que as classes sociais e sua repro-dução implicam a materialização das relações de classe.A materialização dessas relações se dá nas organizaçõescomplexas. Como afirma Poulantzas: "As classes sociaise sua reprodução só existem pela relação classes sociais/aparelhos de Estado e aparelhos econômicos. Tais apare-lhos não se sobrepõem simplesmente como apêndices àluta de classes, mas detêm um papel constítutívo.?"

Rev. Adm, Emp., Rio de' Janeiro, 21 (4): 33-41 out./dez.1981

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As organizações, enquanto aparelhos, desempenhamdiversos papéis importantes na reprodução das classessociais. t essa constatação que permite assim defini-las.Enquanto. aparelhos, as organizações se classífícam ini-cialmente em dois grandes grupos: aparelhos econômicos(empresa) e aparelhos de Estado, t fundamentalmenteenquanto estruturá de poder que a empresa constitui umaparelho, da mesma forma que os aparelhos de Estado.

Poulantzas lembra que "os aparelhos de Estado têmcomo principal papel a manutenção da unidade e a coe-são de uma formação social que concentra e consagra adominação. de classe, e a reprodução, assim, das relaçõessociais, isto. é, das relações de classe. As relações políticase as relações ideológicas se materíalízam e se encarnam,como práticas materiais, nos aparelhos de Estado, Essesaparelhos compreendem, de um lado, o. aparelho repres-sivo.de Estado, no sentido estrito, e seus ramos: exército,polícia, prisões, magistratura, administração; de outrolado, os aparelhos ideológicos de Estado: o aparelhoescolar, o. aparelho religioso (as Igrejas), o. aparelho deinformação (rãdío, televisão, imprensa), o aparelho cul-tural (cinema, teatro, edição), o aparelho sindical decolaboração. de classe e os partidos políticos burgueses epequeno burgueses, etc., e enfun, sob certo aspecto, epelo menos no modo de produção. capitalista, a famí-lia".5

34 Da mesma forma, segundo ainda Poulantzas, ."umaempresa, enquanto unidade de produção sob sua formacapitalista, constitui um aparelho, no sentido. de quereproduz, pela divisão social do trabalho em seu seio(organização despótica do trabalho), as relações políticase ideológicas referentes aos lugares das classes socíaís","Tendo-se em conta que os aparelhos não criam a divisãoda sociedade em classes, mas contribuem para essa divi-são. e para sua reproduçãoampliada, parece oportunotentar classificar as organizações enquanto aparelhos vol-.tados para essa reprodução, conforme a figura 1.

Essa classificação que segue rígorosamente a análisede Poulantzas sugere o aspecto. central de cada tipo deorganização, bem como sugere a função básica da cou-raça. organizacional que domina as sociedades capitalistasavançadas, daí capitalistas burocráticas. Ela oculta,porém, um outro aspecto não menos essencial para quemtem as organizações como objeto de análise. Por maisque uma organização se caracterize como aparelho eco-nômico, ela é também aparelho repressivo e aparelhoideológico. Da mesma forma, todo aparelho ideológico érepressivo e todo aparelho repressivo é ideológico. Essefenômeno deriva do fato de que as organizações cum-prem suas funções reprodutoras primordialmente atravésde mediações políticas e ideológicas. Em suma, organiza-ção é poder.

Em outro trabalho, estivemos mais preocupadoscom as diferenças entre as diversas organízações." Aquinossa preocupação é muito mais com as semelhanças,

Revista de Administração de EmpreSlls

Figura I

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_Aparelhosindical decotibOraçãÕde classes

artlilõspolíticos

burgueses epequeno-bUr&ucse

Para esse objetivo o ponto de partida segundo o qualorganização é poder parece primordial, bem como essen-ciais parecem algumas análises de Foucault, Goffman,Pagês, Lobrot e Grignon.

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Foucault é por muitas razões o outro lado dePoulantzas. Enquanto o segundo investiga o poder noEstado, embora não apenas no Estado, Foucault sub-linha a existência de formas de exercício do poder quenão dizem respeito ao Estado de modo direto, mas quesão indispensáveis para a sua eficácia e, portanto, parasua sustentação " ... não existe em Foucault uma teoriageral do poder. O que significa dizer que suas análisesnão consideram o poder como uma realidade que possuauma natureza, uma essência que ele procuraria defmirpor suas características universais. Não existe algo unitá-rio e global chamado poder, mas unicamente formasdíspares, heterogêneas, em constante transformação. Opoder não é um objeto natural, uma coisa; é uma práticasocial e, como tal, constituída historicamente. Estarazão, no entanto, não é suficiente, pois, na realidade,

. deixa sempre aberta a possibilidade de se procurar redu-zir a multiplicidade e a dispersão das práticas de poderatravés de uma teoria global que subordine a variedade ea descontinuidade a um conceito universal. Não é assim,entretanto, que Foucault tematiza o poder ... Nessesentido, nem a arqueologia, nem, sobretudo, a genealogiatêm por objetivo fundar uma ciência, construir uma teo-ria, ou se constituir como sistema; o programa que elasformulam é o de realizar análises fragmentárias e trans-formáveis". 3

As análises de Foucault não foram concebidas paraserem aplicadas a outros objetos que não os focalizadospelo autor, isto é, não se pode passar da prisão à empresacom facilidade. Contudo, pode-se pensar em poder deuma outra forma, não partindo do Estado e de sua disse-minação pelo corpo social. Nas palavras de Foucault:"Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro,como a multiplicidade de correlações de força imanentesao domínio onde se exercem e constitutivas de sua orga-nização; o jogo que, de lutas e afrontamentos incessantesas transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correla-ções de força encontram umas nas outras, formandocadeias ou sistemas ou, ao contrário, as defasagens e con-tradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias emque se originam e cujo esboço geral ou cristalização insti-tucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formula-ção de leis, nas hegemonias socíaís." Essa propostaimplica a negação em pensar o poder apenas como domi-nação de indivíduos ou de grupos sobre outros deixandode lado também as visões legalísticas do poder. Implicaum jogo cujas peças fundamentais parecem ser o saber, opoder e a instituição.

Esse jogo parece permitir a Foucault caminhar emlinhas diversas, estudando o saber médico, o hospitalpsiquiátrico, a prisão, a vigilância e a submissão. ~ assimque vê o manicômio como "lugar de diagnóstico e classi-ficação, retângulo botânico onde as espécies de doençassão divididas em compartimentos cuja disposição lembrauma vasta horta, mas também espaço fechado para umconfronto, lugar de uma disputa, campo institucionalonde se trata de vitória e submissão. O grande médico doasilo é, ao mesmo tempo, aquele que pode dizer a ver-

dade da doença pelo saber que dela tem, e aquele quepode produzir a doença em sua verdade e submetê-la, narealidade, pelo poder que sua vontade exerce sobre opróprio doente.r''" .

Em suma, são as correlações de força que nos permi-tem entender o poder de forma regionalizada. E é dessemodo que Foucault chega a algo que parece implícito enão dito em toda a massa de estudos organizacionais: aquestão do poder disciplinar. Ê verdade que a organiza-ção é poder e é igualmente verdadeiro que enquantoprática social esse poder organizacional se manifestacomo poder disciplinar. O, campo de atenção de Fou-cault se restringe porém à prisão. Generalizações quepossamos fazer são por nossa conta e risco.

A repressão implica saberes constituídos tanto quan-to a inculcação ideológica, a administração de negóciosou o tratamento de doentes mentais. Os saberes evoluemhistoricamente e desvendam formas novas de ação dopoder. Assim, historicamente se pode delimitar marcos,como a criação do hospital geral em 165.7 ou a libertaçãodos acorrentados de Bicêtre em 1794, que foram essen-ciais à gênese do saber psiquiátrico atual. A repressãodescobriu formas novas de ação de poder, não de formasúbita ou gratuita: O que ela terminou por esboçar foium método geral, a disciplina. Para Foucault, a gênese dadescoberta deve ser vista em uma "multiplicidade de pro-cessos, muitas vezesmicroscópicos, de origens diferentes( ... ) que se imbricam, se repetem, ou se imitam,apóiam-se uns nos outros, distinguem-se segundo seu 35campo de aplicação, entram em convergência e esboçamaos poucos a fachada de um método geral". 11

Nesse processo são fundamentais os conhecimentosque se desenvolvem sobre o controle do corpo. ~ precisoextrair do corpo seu potencial produtivo e ao mesmotempo, e por isso mesmo, impor-lhe uma relação de doci-lidade. O corpo não é, pois, apenas o objeto de ataquesfrontais, o objeto da coerção direta. Os saberes sobre ocorpo voltam-se para sua moralização, ou dito de outraforma, para sua domesticação com vistas a determinadosfins. ~ preciso canalizar todas as forças que possam serprodutivas, e para tanto não basta punir ou reprimir, mastorna-se essencial vigiar de modo discreto e permanente.Nas palavras de Foucault, "as disciplinas se tornaram nodecorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais dedominação ( ... ) diferentes da escravidão, pois não sefundam em uma relação de apropriação do corpo. ( ... )diferentes da domesticidade, que é uma relação constan-te, global, maciça, não-analítica, ilimitada ( ... ) dife-rente da vassalagem, que é uma relação de submissãoaltamente codificada, mas longínqua e que se realizamenos sobre o corpo do que sobre os produtos do tra-balho e as marcas rituais da obediência. ( ... ) O momento'histórico das disciplinas é o momento em que nasce umaarte do corpo humano, que visa não unicamente o au-mento de suas habilidades, nem tampouco aprofundarsua sujeição, mas a formação de uma relação que nomesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quantoé mais útil,e ínversamente".'?

o poder disciplinar

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o poder disciplinar instaura wn novo uníverso quedeixa de lado o suplício, a desnutrição, o esquarteja-mento ou o dilaceramento em praça pública, práticascomuns nas velhas monarquias que assim vingavam asdesobediências ao rei e â sua ordem política ou religiosa.O novo universo é o da vigilância, do controle sobre ocorpo, que se vai difundindo paulatina mas firmementedominando as instituições penais. A prisão é fruto donovo universo a "região mais sombria do aparelho dejustiça, o local onde o poder de punir, que não mais ousaexercer-se com o rosto descoberto, organiza silenciosa-mente um campo de objetividade em que o castigo po-derá funcionar em plena luz como terapêutica () a sen-tença se inscreve entre os discursos do saber". 13

A prisão é a organização onde aparentemente selevou mais longe a tecnologia do poder disciplinar, atra-vés da organização do espaço, do controle do tempo, davigilância e do exame contínuo. Todavia, o poder disci-plinar pode ser encontrado em outras instítuíções, geral.mente aquelas que se organizam em locais fechados ecom estruturas burocráticas rígidas, como a fábrica, omanicômio, o convento e algumas escolas. Contudo, anão realização plena do poder disciplinar não indica suaausência e nem mesmo sua pouca importância. O poderdisciplinar é wn aspecto essencial de qualquer organiza-ção formal no capitalismo burocrático.

Se toda sociedade tem seus códigos de ilegalidades, aprisão surge exatamente como o meio legal de puniçãodessas ilegalidades em uma sociedade moderna. Todaviaa repressão não vale por si mesma nas organizações carce-rárias; a lógica do poder disciplinar implica a distri-buição, diferenciação e utilização dos infratores atravésda vigilância permanente. Os infratores são confrontadoscom um quadro geral de ilegalidades, criando-se wn tipoespecífico de produção de delinqüência. O desenvolvi-mento da prisão é paralelo ao desenvolvimento da crímí-nalidade urbana e. isolada, em oposição aos motins epilhagens, para os quais se mobilizam outras formas derepressão. Mas, se o objetivo da prisão é criar corposdóceis e produtivos, se essa é a essência do poder discipli-nar, por que então a prisão tende a fracassar na readapta-ção â sociedade?

Foucault procura responder a essa questão inda-gando-se se esse pretenso fracasso não faria 'parte do fun-cionamento da prisão: "Não deveria (este processo) serinscrito naqueles efeitos de poder que a disciplina e atecnologia conexa do encarceramento introduziram noaparelho de justiça e de wna maneira mais 'geral na socie-dade e que podemos agrupar sob o nome de "sistemacarcerário?" 14 A real funcionalidade da prisão pareceestar ligada a wn mecanismo de ampliação da crimínali-dade. Produzindo wna delinqüência controlável, a prisãopossibilitaria uma forma de vigilância permanente dapopulação. Nas palavras de Foucault, o sistema carcerá-rio constituiria "wn aparelho que permite controlar,através dos próprios delinqüentes, 'todo o campo so-cial".15 Polícia, prisão e delinqüente seriam três termosde wn ciclo que se retroalimentaria. "Jt. vigilância poli-cial fornece â prisão os infratores que esta transforma em

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delinqüentes, alvo e auxiliares do controle policial queregularmente manda alguns deles de volta â prisão.,,16 Adelinqüência é assim produzida e controlada, adaptan-do-se a wn determinado modo de produzir. De resto, opoder disciplinar da prisão, com seus horrores, pairacomo ameaça a todos aqueles que precisam se submeterao poder disciplinar mais sutil de outras organizaçõesformais. A lógica é social antes de organizacional, impli-cando sempre a produção de corpos dóceis, cujo poten-cial produtivo é liberado eo potencial político inibido.

1. O PODER DISCIPLINAR NAS INSTITUIÇÕESTOTAIS

Goffman também estuda de modo exaustivo o poderdisciplin:ar tal como aparece como aspecto das organiza-ções. Aocontrãrío de Foucault, contudo, Goffman tentauma teorização desse poder disciplinar através de um-estudo sistemático daquilo que chama instítuições totais,e que define como "wn local de residência e trabalhoonde um grande número de indivíduos com situaçãosemelhante, separados da sociedade mais ampla por con-siderável período de tempo, levam wna vida fechada eformalmente administrada". 17

O autor procura inicialmente classificar as institui-ções totais em cinco grupos ou classes. "Em primeirolugar, há Instituiçõescriadas para cuidar de pessoas que,segundo se pensa, são incapazes e inofensivas; nesse casoestão as casas para cegos, velhos, Órfãos e indigentes. Emsegundo lugar, há locais estabelecidos para cuidar de pes-soas consideradas incapazes de cuidar de si mesmas e quesão também wna ameaça â comunidade, embota demaneira não-intencional; sanatório para· tuberculosos,hospitais para doentes mentais e leprosários. Um terceirotipo de instituição total é organizado para proteger acomunidade contra perigos intencionais, e o bem-estardas pessoas assim isoladas não constitui o problemaimediato: cadeias, penitencíãríes, campos de prisioneirosde guerra, campos de concentração. Em quarto lugar, háinstituições estabelecidas com a intenção de realizar demodo mais adequado alguma tarefa de trabalho, e que sejustificam apenas através de tais fundamentos instrumen-tais: quartéis, navios, colégios internos, campos de traba-lho, colônias e grandes mansões (do ponto de vista dosque vivem nas moradias de empregados). Finalmente, háestabelecimentos destinados a servir de refúgio do mun-do, embora muitas vezes sirvam também como locais deinstrução para os religiosos; entre exemplos de tais insti-tuições, é possíveL citar abadias, mosteiros, conventos eoutros claustros.' 8

O objetivo de Goffrnan ao estabelecer essa classifica-ção não foi listar exaustivamente todos os tipos de insti-tuições totais,mas ter wn ponto de partida para definirsuas características gerais. Tampouco essas característi-cas são exclusivas das instituíções totais ou aparecemnecessariamente em todas elas. O critério parece ser o daintensidade em que wngrupo de tais características

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aparece na organização. Por outra, o poder disciplinar,expressão que Goffman não utiliza, aparece com muitomais clareza e força nas instituições totais do que nasdemais organizações, embora também esteja presentenestas de modo significativo.

As instituições totais apresentam, portanto, as se-guintes características, que decorrem do fato de as bar-reiras entre as diversas esferas da vida estarem rompidas.Em primeiro lugar, há uma concentração de todos osaspectos da vida em um mesmo local e sob uma únicaautoridade. Em segundo lugar, a atividade cotidiana decada indivíduo é dividida em fases; que são realizadas emconjunto com um grupo relativamente grande de pes-soas, obrigadas a fazer as mesmas coisas e tratadas damesma maneira. Em terceiro lugar, há uma divisão rigo-rosa do tempo para as diversas atividades, cuja seqüênciaé imposta, de cima, por um grupo de funcionários e umconjunto de regras explícitas. Em quarto lugar, todas asatividades são organizadas de acordo com um planoracional único, supostamente elaborado para melhoratingir os fins oficiais da organização. 19

O controle burocrático das necessidades humanas degrupos relativamente grandes de pessoas nas instituiçõestotais implica algumas conseqüências importantes: Há,em primeiro lugar, um pessoal cuja única função é avigilância. Em segundo lugar, existe uma distância muito,grande entre o grupo dos internos e a equipe dirigente.Enquanto o grande grupo de internos vive na instituição.e tem um contato muito restrito com o mundo externo,o pequeno grupo dirigente trabalha em regime de oitohoras, estando perfeitamente integrado no mundo exter-no. Em terceiro lugar, os dirigentes tendem a sentir-secorretos e superiores, enquanto os internos tendem asentir-se inferiores e culpados. Em quarto lugar, a comu-nicação entre as duas categorias é restrita" tanto no quediz respeito â possibilidade de conversas, quanto no quediz respeito â transmissão de informações.

Há ainda outras conseqüências importantes dascaracterísticas das instituições totais que devem ser con-sideradas. Há em primeiro lugar. uma incompatibilidadeentre essas Instituições e a estrutura bãsíca de pagamentopelo trabalho na sociedade moderna. O pagamento pelotrabalho na instituição total não tem a significação estru-tural que tem no mundo externo. Qualquer que seja oincentivo monetário dado ao trabalho, o interno não élivre para dele usufruir. Isto tende a levar a uma desmo-ralização geral. São comuns práticas como tapear ou usaro trabalho alheio em troca de um vale utilizável na can-tina. Em segundo lugar, há uma incompatibilidade davida coletiva da instituição total com a vida familiar. Sede um lado a manutenção de uma família serve comouma ponte para o mundo externo, a vida domésticatorna-se impossível face ao isolamento do interno.

Há inúmeros outros aspectos da vida organizacionalque nas instituições totais adquirem um caráter dramá-tico. No que se refere ao interno, o aspecto que talvezseja o mais significativo seja a mortificação do eu. Naspalavras de Goffman: "O novato chega ao estabeleci-

mento com uma concepção de si mesmo que se tornoupossível por algumas disposições sociais despido doapoio dado por tais disposições. Na .linguagem exata dealgumas de nossas mais antigas instituições totais.começa Uma série de rebaixamentos, degradações, humi-lhações e profanações, embora muitas vezes não inten-cionalmente, mortificado. Começa a passar por algumasmudanças radicais em sua carreira moral, uma carreiracomposta pelas progressivas mudanças que ocorrem nascrenças que tem a seu respeito e a respeito dos outrosque são significativos para ele.,,2 o Essas mortificaçõespassam pelos processos de admissão, que incluem a codi-ficação da vida pessoal a fim de torná-la administrável,pelo despojamento de posição social, ou de qualquerpapel desempenhado no mundo externo, pela conta-minação física e psicológica e pela perda de defesas usa-das no mundo externo. A mortificação do eu talvezrepresente a forma típica de ação do poder disciplinarnas instituições totais. Presos, doentes mentais, cadetes,alunos internos, seminaristas, freqüentemente têm o quecontar a respeito desse processo. Algo que quem mudade empresa ou de universidade também vive, mas eviden-temente em nível de intensidade incomparavelmentemenor.

2. 'o PODER DISCIPLINAR NA EMPRESA

Reconhecendo que a questão do poder é por demais,complexa para ser esclarecida por uma única esfera dedeterminações, que suas raízes não podem ser encontra-das apenas na propriedade" na organização do espaço, nosistema de regras burocráticas, na distribuição e na pro-duçãodo saber, mas que estão presentes todos esses ele-mentos e até O inconsciente, Max Pagê·s e seus colabora-dores desenvolveram· uma' pesquisa junto a uma grandecorporação multinacional operando na França. Seu obje-tivo era desvendar o modo de ação do poder naquilo quechamaram uma organização hipermoderna e o fizeram apartir de um eixo de coordenadas econômicas, políticas,ideológicas e psícolõgícas." '

A contribuição de Pagês parece estar numa concep-ção bastante particular de reprodução a partir da consta-tação do caráter sutil do poder disciplinar na grandeempresa moderna. Com efeito, o que ocorre nesse tipode organização é uma identificação afetiva e intelectualdos indivíduos. A organização se reproduz, assim, en-quanto sistema social que inclui o funcionamento psico- .lógico e individual de seus membros. O sistema organiza-cional articula-se, portanto, com o sistema de personali-dade e de valores de seus participantes. Reprodução, nocaso da grande empresa, não diz respeito apenas ao capi-tal e as forças produtivas. A reprodução se dá em todosos níveis 'e implica uma ação da organização sobre osistema pulsional dos indivíduos, que passam a promoverativamente seus objetivos e políticas.

Para entender melhor a análise de Pagês, convémretornar ao conceito de ideal do ego na psicanálise. Porideal do ego se entende uma instância de personalidadeque resulta da idealização do eu e das identificações com

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o poder disciplinar

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as figuras' parentaís e/ou com ideais coletivos. O ideal doego constitui um modelo ao qual o indivíduo procura seajustar. Essa instância da personalidade caracteriza-se porexigências ilimitadas de potência e perfeição. A hipótesede Max Pagês de que a organização propõe a 8eloiSmem-bros um ideal coletivo que capta o seu ideal do ego.

Essa captação tem múltiplas conseqüências. "A maisdireta é a íntrojeção pelos indivíduos das exigências fixa-das pela organização." Esta pode, portanto, através desseprocesso, canalizar ao máximo a energia dos indivíduosem seu benefício, sem precisar empregar um sistema depunições funcionando com base na força e na repressão.Por outro lado, o indivíduo, submetendo-se totalmente(de corpo e alma: diríamos), trabalha para a organizaçãocomo para si próprio -.Ele experimenta o sentimento deque a organização faz parte dele, da mesma forma queele faz parte da organização, sentimento este que o ligaao futuro da organização. Há, portanto, uma tomada doindivíduo pela organização a nível do inconsciente; essatomada é especialmente forte porque é paralela a umadissolução da instância crítica.22

Os aspectos ligados à apropriação do indivíduo pelaorganização são muitos e relacionam-se com a adminis-tração do prazer e a canalização da agressividade. Toda-via, fixando-se no processo pelo qual a organizaçãogarante a sua presa, Pagês procura identificar alguns deseus elementos essenciais. Em primeiro lugar, toda orga-nização moderna possui um sistema mais ou menos com-plexo de regras. Esse sistema deve ser capaz de garantiraos seus membros um sentimento de segurança e depotência pelo respeito que lhe devotam. Em segundolugar, es~e_sistema não é apenas um regulamento frio.Trata-se, na realidade, de um sistema de crenças, umideal de vida, que se concretiza em regras e procedimen-tos. É evidente que esse ideal de vida e essas crenças vãoresponder a uma necessidade muito forte dos indivíduos.O que a organização propõe é um modelo de persona-lidade caracterizado pelo ideal de perfeição, por fortesexigências morais, pelo individualismo e pela resistênciaao stress e à angústia. O indivíduo se sujeita inconscien-temente às exigências da empresa. O ideal coletivo pro-posto pela empresa toma o lugar do ideal do ego de cadaum.

Nas palavras de Pagês, "aquele que se conforma comisso encontra uma fonte de satisfação e valorização nar-cisista muito importante, satísfação que explica sua acei-tação de diversas sujeições, especialmente no que diz res-peito à carga de trabalho. Quanto mais fortes forem essassatisfações, mais ele aceitará essa carga, mais a organiza-ção será forte e mais satisfação trará àqueles que com elase identificam. Ama-se a organização pelas perfeiçõesque se deseja ao próprio eu. As qualidades da organiza-ção tornam-se as qualidades do sujeito. Mesmo que o'indivíduo tenha consciência de estar preso aum pro-cesso, os fundamentos desse processo permaneceminconscientes, o que explica sua impossibilidade de esca-par. Ele trata a organização como seu próprio eu, e umaparte da libido narcisita se encontra transferida para aorganização por identificação". 23

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Essa identificação se revela como introjeção na me-dida em que há uma passagem do que é externo para oque é interno, em termos das qualidades da organização.Por outro lado, ela também se revela como identificaçãocom os demais membros da empresa, sem que para tantohaja necessidade de qualquer ligação funcional ou afetivaentre os indivíduos componentes. As ligações .que sur-gem derivam diretamente do fato de todos estarem liga-dos inconscientemente à organização. Existe, portanto,um traço comum no que se refere aos sentimentos ereações das pessoas, e esse traço comum deriva daquiloque é idealizado por todos. Naturalmente, tudo isso tema ver com tomada do objetivo econômico, com os pró-prios fins do capitalismo como o próprio ideal do ego,embora as racíonalízações de que os indivíduos lancemmão possam ser múltiplas e variadas.

Todavia, nem tudo são flores na tomada do ideal doego pela grande empresa. "A organização exige que oindivíduo dê o melhor de si. que se consagre inteira-mente ao sucesso, que se sacrifique. Ele é condenado avender. Não se trata evidentemente de uma lei formal,mas de um mandamento que tem seu fundamento naonipotência do inconsciente de cada um. É uma exígên-ciaabsoluta, e como todo absoluto, inacessível. Tambémo medo de fracassar, de perder o amor do objeto amado,está sempre presente. Esses temores se situam próximoda culpabilidade. A culpabilidade não advém mais dofato de haver cumprido um ato contrário à sua consciên-'da, às exigências do superego, mas de não estar à alturadas exigências da organização e do ideal que se procuraalcançar, o indivíduo não tem medo de ser punido se nãofor bem-sucedido; ser bem-sucedido torna-se uma neces-sidade vital para ele. Tomando o lugar do ideal do egodos indivíduos que a compõem, a organização não ape-nas canaliza ao ináximo a energia desses em seu benefí-cio; ela os torna dóceis_,,24 Estamos aqui, mais uma vez,diante da essência do poder disciplinar: produzir corposdóceis, liberando seu potencial produtivo.

Essa produção de corpos dóceis, no caso da grandeempresa moderna, passa também pela dissolução da ins-tância crítica e pelo empobrecimento do sentimento deidentidade. A organização é sempre ,boa e irreprovável.NoS"casos de conflito, a culpa cai sobre o indivíduo, quefreqüentemente entra em depressão. Além disso, a orga-nização é uma construção imaginária, onde a autoridadenão está identificada com pessoas, mas com o conjuntoda organização. Isto a torná especialmente poderosa e,conseqüentemente, torna o indivíduo milito impotente.Por essa razão ele se identifica com ela, mas se identi-fica com algo que é imaginário. Na maior parte das rela-ções interpessoais é possível testar nossos fantasmas,porque nos deparamos com objetos reais. No caso darelação indivíduo-empresa tudo se passa no nível do ima-ginário. Por isso mesmo a construção da identidade atra-vés de um jogo de projeções e introjeções com outraspessoas; mas, o que fazer quando o outro é um ser imagi-nário e onipotente? o indivíduo típico da grande empre-saoscila entre a potência e a fraqueza exagerada. O quelhe é difícil é uma consciência equilibrada de sua força

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efetiva e de seus limites. Todos esses aspectos, evidente-mente, são absolutamente coerentes com a docilidade e a.produtividade.

O exercício sutil do poder disciplinar na empresa éalgo que diz respeito muito mais ao universo dos cola-rinhos-branco do que ao universo dos operários. Nesse'segundo caso,' organização do espaço, controle dotempo, vigilância e exame contínuo são coisas mais pal-páveis e diretamente perceptíveís. O taylorismo, sobre oqual não nos estenderemos agora, continua sendo a teo-ria do modo de ação do poder disciplinar na fábrica.Todavia, o participacíonísmo, mesmo em suas formasmais sofisticadas, como os comitês de empresa franceses,ou a co-gestão alemã, parece mostrar que o poder disci-plinar encontra formas sempre novas de ação. Para seuexercício, todos os expedientes são utilizados, sejam eleseconômicos, políticos, repressivos ou ideológicos?'

3. O PODER DISCIPLINAR

A reprodução das formações sociais capitalistas depende,entre outros elementos, da reprodução da força de tra-balho. Essa reprodução é mais que a simples reproduçãobiológica, já que implica a própria manutenção da forçade trabalho existente sob condições específicas do pro-cesso de luta de classes, bem como na reprodução dasqualificações dos agentes segundo a divisão do trabalho.A escola tem, portanto, um papel habilitador, na medidaem que transmite os saberes técnicos de acordo com asnecessidades do capitalismo. Não há, contudo, uma har-monia necessária entre as necessidades do mercado detrabalho e a formação escolar. Os títulos preenchemoutras funções igualmente importantes que dizem res-'peito ao modo pelo qual se mantém a correlação deforças entre as classes e grupos sociais. De qualquermodo, porém, a escola também tem por função a trans-missão da ideologia da classe dominante, a reproduçãoda estrutura social, especialmente dos lugares de classe, euma função moralizadora: a escola serve para criar um .habitatus, através da ínculcação de uma díscíplína.ê?

O sistema escolar tende a ser profundamente buro-cratizado nos países capitalistas modernos. Essa burocra-tização, que em geral se caracteriza por uma centraliza-ção a nível nacional, manifesta-se a nível do pessoal e desua organização, dos programas edo trabalho e dos exa-mes e inspeções. No que diz respeito ao pessoal, é pre-ciso distinguir os administradores escolares dos professo-res propriamente ditos. Geralmente, é a própría burocra-cia educacional que recruta o seu pessoal administrativo.Os professores, por sua vez, devem ter determinadosdiplomas e passar por um concurso público de seleção.Observe-se bem que não são propriamente qualidadesintelectuais ou pedagógicas que são medidas, embora istotambém tenha um certo peso. O que se verifica primor-dialmente é se o candidato se preparou bem para osexames. Uma vez no magistério, o docente deve passarpor, uma carreira. Essa carreira pressupõe novos diplomase freqüentemente novos concursos. Mesmo com a deci-

do de prestar esses concursos ou mesmo de posse dostítulos; o docente depende para ser promovido da buro-cracia superior que decide sobre sua promoção.

. No caso francês, e os demais dele diferem apenas emquestio de grau, o docente está a nível de seu trabalho,"sujeito a normas draconianas que só lhe permitem umafraca liberdade. O emprego do seu tempo é fixado pela-administração do estabeleeíraento onde se encontra. A ,organização total deste último, na qual ele está inserido,nfo: depende do docente. Enfim, e sobretudo, os progra-mas prevêem os objetivos que deve procurar atingir, osmeios que deve utilizar, e mesmo, muitas vezes, a divi-são, no tempo, das atividades. Por exemplo, no ensinoprimário as "instruções oficiais" prevêem o tempo quedeve ser atribuído a cada atividade: a leitura deve ocupar10 horas no curso preparatório, 6 horas e um quarto nocurso elementar, 3 horas e meia no curso médio, 3 horase meia no curso superior. Tendo as instruções de 1923,1938, 1945-1947, vê-se até a qUe pormenor vão estesregulamentos, não s6 do ponto de vista dos métodoscom~ do ponto de vista da divisão das atividades"? 7

De resto, os docentes devem cumprir os programas.Estes são formulações apriorísticas, absolutamente for-mais, que desconsideram totalmente o público a que sedestinam. Com intenções que podem ser muito boas, aburocracia escolar prepara objetivos, tópicos, prevê.métodos e chega mesmo a indicar urna bibliografia. Emsuma, se prevê as atividades dos docentes e dos alunossem levar em consideração os interesses concretos deambos. Tudo se faz em nome de uma relação de meios efins que se define impessoalmente. Há uma desconfiançade que a criança ou o docente podem ficar sem fazernada, sem trabalhar. Em suma, é preciso dar à adminis-tração e aos pais ,a garantia de que a criança está sociabi-lízando-se, isto é, aprendendo a adaptar-se profissional esocialmente.

Surge, assim, o problema da avaliação dessa sociali-zação. Como saber se a criança está efetivamente ''tra-balhando", Para isso foram feitos os exames. Há aquiuma inversão de meios e fins. Se o exame fosse pura esimplesmente um trabalho desenvolvido pelas criançassob a orientação do professor e a partir de centros deinteresse bem identificados, não haveria nele nenhumproblema enquanto instrumento de avaliação. O pro-blema .ocorre no momento em que o exame passa a ser oobjetivo do aprendizado. Não se estuda para adquirirconhecimento, mas para passar nos exames. Isto podepreparar a criança para ser dócil e disciplinada e para.aprender a galgar os degraus da vida burocrática que aespera. Evidentemente, porém, não estimula o gosto pelosaber, nem a indagação intelectual. Além disso, o que seaprende para passar no exame é facilmente perecível,porque não deriva de um interesse real.

O que se espera da escola é que prepare para a vida.Preparar para a vida, entretanto, geralmente significapara um número de pessoas aprender a ser dirigido,enquadrado e condicionado, para; quem sabe, um diapoder dirigir, enquadrar e condicionar. Infelizmente, osresultados disso tem sido mais negativos que positivos.

O poder disciplinar

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"A juventude tornada passiva, nada pode fazer além dese submeter aos estereótipos da juventude, antes de setransformar numa geração adulta que, por sua vez, terámedo da juventude.,,28 Em suma, a escola prepara paraa docilidade, organizando o espaço, controlando otempo, instaurando a vigilância e a avaliação periódica. Oresultado é a preparação de uma coletividade ansiosa pordireção. A educação contemporânea parece ser, no planopolítico, um terreno fértil para o totalitarismo e, noplano psicológico, um viveiro de personalidades insegu-ras, angustiadas, insatisfeitas e, via de regra, autoritárias.

4. O PODER DISCIPLINAR NAS INSTITUIÇOESDEFORMAÇÃO PROFISSIONAL

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Inculcar atitudes e disposições morais é próprio da insti-tuição educacional, qualquer que seja a sua clientela.Quando esta, porém, é composta de indivíduos destina-dos a ocupar posições inferiores na divisão do trabalho, amoralização educacional assume ares de "domestícação".Aprender a comportar-se de acordo com os interesses dasclasses e grupos dominantes parece ser o essencial doaprendizado profissional. Contudo, esse tipo de ensinojamais proclama esse aspecto central de sua natureza. Elese apresenta como transmissão de saber especializado ecomo formação de competência técnica. '

Face aos dominantes, os clientes das instituições deformação profissional industrial ou mesmo comercial sãosempre vistos como "não civilizados" e como poten-cialmente ameaçadores no que diz respeito à ordem esta-belecida. ~ evidente que há muitos especialistas em for-mação profissional preocupados sinceramente em propi-ciar a seus treinandos uma melhor consciência de suacondição. Todavia, essas instituições, geralmente finan-ciadas por empresários, têm um perfil estruturalmenteconservador, capaz, perfeitamente, de neutralizar esses"desvios". Do ponto de vista das classes e grupos domi-nantes a formação profissional é um processo "civiliza-tório" relativamente barato e seguro. O essencial é disci-plinar os operários.

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A suspeita de vida irregular, de preguiça, parececomum quando se pensa nas famílias populares de ondesaem os adolescentes que na França se dirigem para osCET (Estabelecimentos de Ensino Técnico Elementar).Não se duvida que as crianças vindas das classes médias ealta adquirem desde muito cedo o sentimento de dever eo hábito da ordem e da regularidade, mas da criança debaixa classe se imagina tudo ao inverso. É, portanto,visto como essencial' ensiná-las a respeitar a ordem e ashierarquias, a obediência sem questionamento e o com-portamento racional e inofensivo. Para tanto as institui-ções de formação profissional não fogem à regra: organi-zam o espaço a ser ocupado pelos aprendizes e dividem oseu tempo em atividades de trabalho e lazer, sempre sobvigilância permanente. Tudo se passa no sentido de privi-legiar o aprendizado' da utilização metódica e ordenadado espaço e do tempo.

Revista de Administração de Empresas

À maneira das organizações repressivas, o tempolivre concedido aos aprendizes é mínímo. Ao ensino pro-fissional é justaposto o ensino geral, saturando o empre-go de seu tempo. Nos quartéis, a ordem assume umaspecto muito visível, a hierarquia aparece como imutá-vel e natural, Os quartéis apresentam aos indivíduos umideal coletivo ao qual os recrutas devem sacrificar os seuspróprios ideais. Tudo se passa como se o indivíduo sótivesse valor na medida em que pudesse ser utilizável pela.instítuíção, na medida em que se tornasse confiável eprodutivo. O adestramento nos quartéis é, como decor-rência, coletivo. As diferenças individuais são reduzidasao mínimo, inclusive pelo uso de uniformes e corte ho-mogêneo dos cabelos. Nos estabelecimentos franceses deformação profissional as coisas se passam de modo seme-lhante.

Com efeito, embora as transgressões individuais pos-sam particularizar as reprimendas e os discursos morali-zadores, sanções físicas corno bofetadas são formas vio-lentas de repreensão que não distinguem casos particula-res. Tornar-se um trabalhador de elite implica ser capazde passar por um processo de. mortificação do eu, vistocomo necessário para a inculcação da disciplina comohábito. A violência dessa inculcação se traduz bem nasmanifestações de contra-aculturação, nas ofensas aostreinadores e bedéis, nas fugas e nas depredações. Umaparticularidade da instituição de formação profissionalentre as diversas instituições pedagógicas está talvez nofato de que não se visa substituir uma cultura por outra.Visa-se formar um índívíduo que ao mesmo tempo par-ticipe de uma "naturez~ popular" e de uma "cultura"pequeno-burguesa. Corno o futuro trabalhador de elite,ele será um intermediário' entre as classes. A ambigüidadede sua situação exige essa ação pedagógica que, apesar deviolentadora, não chega a;ser desculturalizante.

O ensino técnico ncs CET caracteriza-se pela inter-nalízação de um conjunto de princípios indiscutíveis, demodo que a sanção téCIJ.icaé ao mesmo tempo sançãomoral, a primeira garantindo realismo à segunda. Dessaforma, os maus hábitos 40s jovens marceneiros são corri-gidos ensinando-lhes como segurar uma plaina, os ângu-los em que a ferramenta deve entrar em contato com amadeira. Os gestos espontâneos e brutais vão sendo subs-

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tituídos por gestos disciplinados. Isto ocorre com quasetodos os ofícios, que sãq sistematicamente decompostosem operações técnicas. Geralmente, essa decomposição

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introduz mudanças na consciência que os aprendizes têmda duração do tempo. ~ idéia de uma duração natural épaulatinamente substituída pela idéia de que o tempo éraro e precioso, que pod~ ser quantificado e organizado,de modo que cada operaTã0 tenha um lugar preciso nessetempo. .

Outro dado específico do ensino profissional, quan-do comparado ao ensino tradicional, é a sugestão de quenão existem- problema, insolúveis. Existe sempre amelhor maneira, a meno~ oneropa (a one. best way taylo-rista) de se realizar uma ~a.Fefa.Rigor e eficácia são vistoscomo uma unidade. A ircerteza é substituída pela cer-teza de que não existeI1(lincertezas. O mundo físico é

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apresentado como regido por determinismos rigorosos, oque tende a se traduzir numa semelhante visão dos múlti-plos domínios da realidade. Assim, o mundo humanotende a ser assimilado ao mundo dos objetos técnicos. Aprópria aparência que os aprendizes devem ter asseme-lha-se à aparência que os instrumentos devem ter. Aaparência deve revelar toda a natureza da pessoa, como aaparência do instrumento revela a sua função. Daí oscabelos curtos, a roupa sóbria, o asseio, a postura modes-ta. Quanto à linguagem, ela deve ser exata e precisa.Quanto aos mestres, eles são escolhidos entre a elíteope-ráría, fazendo com que a "conversão" seja realizada por"convertidos", o que constitui tradicionalmente umatécnica pouco onerosa, sutil e eficaz de "domestica-ção".29

No Brasil, existem instituições de formaçãoprofís-sional de âmbito nacional mantidas pelo empresariado.Essas instituições surgiram na década de 40 com a finali-dade de formar jovens aprendizes para o exercício defunções qualificadas. Quando, porém, 6 ritmo da indus-trialização passou a exigir mais mão-de-obra pouco ou .semiqualificada, a política muda e essas instituições pas-sam a se. dirigir a operários adultos. Esses operários sãoescolhídos pelas empresas entre aqueles que mais se iden-tificam com elas. A formação repousa em valores, atitu-.des e disposições coerentes com o universo fabril. Subli-nha-se a disciplina, a pontualidade e a disciplina, bemcomo o orgulho profissional e o gosto pelo trabalho. Ooperário' aprende, assim, a aceitar e a se adaptar ao mun-do, social hierárquico da fábrica e aos seus imperativostecnológícos.ê?

5. CONCLUSÃO

As organizações são sistemas sociais artificiais cuja fun-ção primordial é a reprodução da sociedade de classes.Embora existam organizações primordialmente econômi-cas, repressivas ou ideológicas, toda e qualquer organi-zação é de alguma forma econômica, repressiva e ideoló-gica.

Enquanto aparelho a organização se caracterizacomo um modo de ação do poder que podemos chamar'poder disciplinar. Esse modo de ação se concretiza naorganização do espaço, na organização do 'tempo, na vigi-lância e nos exames periódicos.

Todavia, as organizações tendem a desenvolvermecanismos para a sua própria reprodução. Esses meca-nismos, comuns nas instituições religiosas, militares eeducacionais, são também encontrados nas empresas, egeralmente se associam a uma captação pela organizaçãodo ideal do ego de seus membros individuais.

Quaisquer que sejam as modalidades e a intensidadedo poder disciplinar, porém, ele tem sempre o mesmoobjetivo: formar corpos dóceis e produtivos.

1 Poulantzas, Nícos, As classes sociais no capitalismo de hoje.Rio de Janeiro, Zahar, 1975 ..p. 13.

2 I~. ibid. p. 19.

3 Id. ibid. p. 22.4 Id, ibid. p, 27.

5 Id. ibid. p. 26.

6 Id. ibid, p. 34.

? Veja Prestes Motta, Fernando C. As organizações burocráticase a sociedade. Revista Educação e Sociedade, CEDES, v. 4, 1979.

• Machado, Roberto. Por urna genealogia do poder. Introdução aFoucault, Michel. Microf(sica do poder. Edição com base emtextos de Michel Foucault, organizada por Roberto Machado.Rio de Janeiro, Graal, 1979.

9 Foucault, Michel. Histôria da sexualidade. Rio de Janeiro,Graal, 1979. p..88-9.

10 Foueault, Michel. Microfisicado poder. Op. citop. 121.

11 Foucault, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1977.

12 Id. ibid. p, 126-7.

13 Id. il:M. p. 227.

14 Id. ibid. p. 239.

15 Id. ibid. p. 247.

1. Id. ibid. p. 248.

1'Goffman, Erving. Manicômios, prisões e conventos. SãoPaulo, Perspectiva, 1974. p. 11.

18 Id, ibid. p. 17.

19 Id. ibid. p. 17-8.

2o Id. ibid. p. 24.

21 Veja Pagês, Max, Bonetti et alii, L Emprise de l'organisation,Paris, PUF, 1979. p. 248.

22 Id. ibid. p. 1734.

23 Id. ibid. p. 174-5.

24 Id. ibid. p. 175.

2 5 Alguns efeitos do poder disciplinar sobre os operários estãoilustrados em MattinsRodrigues, Arakey. Operário, operária,Edições Símbolo, 1978, especialmente na parte referente à vivên-cia do tempo.

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.26 Veja Althusser, Louís, Ideologia e aparelhos ideológicos doEstado. Lisboa, Presença, 1974; e Bo.urdieu, Pierre & Passeron,Jean Ciaude. Â reprodução. Rio de Janeiro, Francisco Alves,1975.

:f7 Lobrot, Michel. A pedagogÚl institucional. Lisboa, IniciativasEditoriais, 1966.

21ld. ibid. p. 227.

29 Veja Grignon, Claude. Amoral técnica. EAESP/FGV,mimeogr. Traduzido de L 'ordre des choses [tes fonctions socialesde t'enseimemen: technique. Paris, Les Editions de Minuit,1971.

3 o Veja castro, Cláudio M. & Meno e Souza, Alberto Mão-de-Obra tndustria! no Brasil. IPEA-INPES, Relatório de Pesquisan.25, 1974" p, 406-7. Apud Ferro, José Roberto. Processo deprodução e qualificação da mão-de-obra: a função da escola.EAESP/FGV, datilogr.

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