Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

423

Click here to load reader

Transcript of Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

Page 1: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO

NOVO TESTAMENTO

Page 2: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

OSCAR CULLMANN

CRISTOLOGIA DO

NOVO TESTAMENTO

Tradução

DANIEL DE OLIVEIRA e

DANIEL COSTA

2002

Editora Custom

Page 3: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

© Copyright 2002 by Editora Custom

Título original: Christologie du Nouveau Testament

O Texto em inglês recebeu o primeiro prémio de 1955 da Christian Research Foundation de Nova York.

Supervisão e produção editorial: Daniel Costa

Layotit e arte final: Comp System - (Oxxll) 3106-3866

Diagramação: Pr. Regino da Silva Nogueira

Capa: James Cabral Valdana - (Oxxll) 9133-2349

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer forma ou meio eletrônico e mecânico, inclusive através de processos xerográficos, sem permissão expressa da editora (Lei n° 9.610 de 19.2.1998).

Todos os direitos reservados à

Editora Custom Rua 24 de Maio, 116 - 4o andar - loja 12 Cep 01041-000 - São Paulo - Centro, SP Fone (Oxxll) 3333-6049 - Telefax 3362-1069

Page 4: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

À Universidade de Edimburgo como testemunho de rrconhecimento

pelo título de Doctor ofDivinity honoris causa.

Page 5: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

ÍNDICE

PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA 11

PREFÁCIO DO AUTOR 15

INTRODUÇÃO O problema cristológico no cristianismo primitivo ff 1. O papel da cristologia no pensamento teológico dos pri

meiros cristãos 17 2. Em que consiste o problema cristológico no Novo Testa

mento? 19 3. O método a seguir 24

PRIMEIRA PARTE Os títulos cristológicos referentes à obra terrena de Jesus. 29

CAPÍTULO 1 - Jesus, o Profeta 31 1. O profeta do fim dos tempos no judaísmo 32 2. O profeta do fim dos tempos segundo o Novo Testamento 44

a) João Batista 44 b) Jesus 51

3. Jesus o "verdadeiro profeta", na concepção judaico-cristã tardia 61

4. "Jesus o profeta" como solução do problema cristológico do Novo Testamento 66

CAPÍTULO II -Jesus, o Servo sofredor de Deus 75 1. O Ebed lahweh no judaísmo 76

Page 6: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

8 Oscar Cullinann

Ebed lahweh 86 edlahweh no cristianismo primitivo... */ do Ebed " hweh como solução do pro _

cristológico^p^. R ^f^ri

CAPÍTULO III - Jftus, o Sumo Sacerdote ^ ^ _ 1. O Sumo Sacerdote, figura ideal do judaísmo 2. Jesus e a concepção de Sumo Sacerdote ^ j 3. Jesus o Sumo Sacerdote, segundo o cristianisrn

tivo ^^í

SEGUNDA PARTE MJ* Os títulos cristológicos referentes à obra futura de Jesu T Pequeno Intróito ^ ^ ^

CAPÍTULO I - J e s u s i Messias 9 l f l l 1. O Messias no jKaísmo 2. Jesus e o Messias 1 J^. 3. A de primitiva e o Messias ir

CAPÍTULO II - Jesua^Kilho do Homem - I ^ H 1. O Filho do Homem no judaísmo ^ ^ _ 2. Jesus e a id de mlho do Homem :, ^ ^ 3. A cristologia do íjffho do Homem foi apresentada de uma ^^f

maneira particular no seio do cristianismo p mitivo?.... ^^H 4. A noção de "Filho do Homem" segundo o apóstolo Piflro 2á^M 5. O Filho do Homem nos outros escritos do Novo Tes _ .

mento 2 í^ l 6. O Filho do Homem no judeu-cnstiamsmo e em 24'^™

TERCEIRAPARTE ^ Os títulos cristológicos referentes à obra presn Jesus 2^P Pequeno Intróito ... 255

Page 7: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA T>O JNOVO TESTAMENTO • 9

CAPÍTULO I - Jesus o Senhor (Kyrios) • •. 257 1. O título "Kyrios" nas religiões helenísticas orientais e no

culto ao imperador 257 2. O "Kyrios" no judaísmo 263 3. "Kyrios Iesous" e o cristianismo primitivo 268 4. "Kyrios Christos" e a divindade de Cristo 305

CAPÍTULO II - Jesus o Salvador 311 1. O título "Sotér" no judaísmo e no helenismo 312 2. Jesus, o Salvador, no cristianismo primitivo 314

QUARTA PARTE Títulos referentes à preexistência de Jesus 321 Pequeno Intróito 323

CAPÍTULO I - Jesus, o "Logos" 327 1. O "Logos" no helenismo 329 2. O "Logos" no judaísmo 333 3. A ideia de "Logos" aplicada a Jesus 338

CAPÍTULO II - Jesus, o Filho de Deus 353 1. O "Filho de Deus" no Oriente e no helenismo 354 2. O "Filho de Deus" no judaísmo 356 3. Jesus e o título "Filho de Deus" 359

4. A fé do cristianismo primitivo em Jesus, Filho de Deus 379

CAPÍTULO III - Jesus chamado "Deus" 399

CONCLUSÃO

Perspectivas da crístologia do Novo Testamento 411

ÍNDICE DE AUTORES CITADOS 429

ÍNDICE DE REFERÊNCIAS BÍBLICAS 433

Page 8: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA

Considero grande privilégio e imensa satisfação prefaciar a primeira edição em língua portuguesa de Die Christologie des Neuen Testaments (Cristologia do Novo Testamento), do famoso teólogo franco-alemão Oscar Cullmann. Com toda certeza, a longa vida do erudito alsaciano (1902-1999) foi deveras prolífica e extremamente relevante para o desenvolvimento da teologia bíblica, particularmente no que diz respeito aos estudos neotestamen-tários.

Na verdade, Cristologia do Novo Testamento faz parte de uma tríade originária da pena deste grande teólogo de Estrasburgo. A primeira obra é Christus und die Zeit (Cristo e o Tempo), de 1946; já em 1957 foi publicada Die Christologie des Neuen Testaments e, por fim, em 1965 surge Heil ais Geschichte (Salvação como história). Além dessa famosa tríade, o professor Cullmann também escreveu outras obras e diversos artigos que marcam a história da teologia contemporânea.

Cullmann é reconhecidamente um teólogo bíblico. Seu pensamento interage principalmente com Albert Schweitzer, C. H. Dodd e Rudolf Bultmann. Rejeitando o liberalismo do final do século XIX e sua consequente dependência de escolas filosóficas que marcaram época, Cullmann procurou construir uma teologia a partir do texto bíblico, isto é, da exegese. Seus esforços foram muito importantes para a construção de uma teologia bíblica capaz de ouvir o texto, procurando esquivar-se das categorias sistemáticas clássicas e das diversas dogmáticas confessionais.

A elaboração do renomado professor de tantas escolas teológicas francesas e suíças elegeu a história como categoria essencial da Teologia Bíblica do Novo Testamento. Seu pensamento pode

Page 9: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

\2 Oscar Cullmann

ser classificado como uma teologia da história. Conforme Cullmann, as Escrituras Sagradas podem ser melhor interpretadas enquanto Heilsgeschichte, isto é, como História da Salvação. A postura de Cullmann é nitidamente antimetafísica e rejeita toda e qualquer teologia "ontológica". Para ele o homem só pode conhecer a Deus por meio da experiência da história, isto é, em seu aspecto dinâmico. Essa visão do mestre de Estrasburgo procura resgatar a importância do caráter hebraico das Escrituras, à medida que enfatizou categorias como o tempo, a salvação e a dialética.

O pensamento de Cullmann é definitivamente marcado pelos enfoques cristológico e escatológico. Em sua abordagem histórica, Cullmann vê a história de Cristo como o centro da história, situada entre a história de Israel e a história posterior a Cristo. A ênfase na centralidade de Cristo é tamanha que podemos dizer que a teologia do Novo Testamento de Cullmann corresponde à sua cristologia. A centralidade de Cristo no tempo leva-nos necessariamente à escatologia. A perspicácia do exegeta da Alsácia destaca que a escatologia faz parte da essência da mensagem do Novo Testamento e define a tensão entre o "já" e o "ainda não" escatológicos como marca da história posterior a Cristo, que se encerrará em sua vinda.

Estou absolutamente seguro de que a publicação desta obra será de particular importância para o pensamento teológico brasileiro incipiente. Tal segurança é bem fundamentada. Em primeiro lugar, a busca de uma teologia bíblica que enfatize a unidade da mensagem bíblica cairá em terreno fértil, pois a comunidade cristã brasileira jamais poderá desfrutar de uma teologia filosófica que pratica uma hermenêutica de suspeita em relação ao texto bíblico. Em segundo lugar, ainda que passível de críticas, o centro da teologia bíblica para Cullmann é Cristo na história. Além de parecer-me uma excelente solução para o problema do centro da mensagem bíblica, Cullmann assim esquiva-se de tendências existencialistas subjetivas, o que propiciará um frutífero diálogo com o pensamento teológico brasileiro, que tem buscado expressões históricas. Finalmente, o nome de Cullmann representa tolerância.

Page 10: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 13

Trata-se de um teólogo admirado por muitos evangélicos conservadores por afirmar a centralidade das Escrituras. Todavia, Cullmann também procurou dialogar com o pensamento católico, sendo muito estudado e até elogiado pelos eruditos do contexto católico-roma-no. Isso significa que a fonte teológica alsaciana tem potencial suficiente para ser prolífica nos mais diversos ambientes teológicos e confessionais. Resta-nos saber se essa fecundidade teológica manifestar-se-á "já" ou "ainda não". Somente o tempo dirá.

LUIZSAYÃO

Editor Académico de Edições Vida Nova

Coordenador de tradução da Nova Versão Internacional da Bíblia

Abril de 2001

Page 11: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

PREFÁCIO DO AUTOR

O estudo que por fim hoje publicamos tem sido precedido por um certo número de "edições" inéditas que não deixamos de corrigir e desenvolver em nossos cursos. Aqueles alunos <due

seguiram o curso em Estrasburgo há vinte anos terão, sem dúvida, dificuldade em reconhecê-lo em sua forma atual, embora o pl^10

se^a, em linhas cerais, o mesmo de então. Paralelamente a outras publicações nossas, temos trabalhado sem cessar, desde então,na cristologia do Novo Testamento. Estes outros trabalhos têm fecundado nossas pesquisas em cristologia; mas aqueles que os conhecem poderão constatar que esta influência tem sido recíproca.

Os capítulos relativos ao "Messias" e ao "Filho do Homem" foram, já em 1955, tema de conferências pronunciadas YioMcCorniÍck College de Chicago por ocasião das Zenos Lectures. Fazendo uma exceção, a Fundação consentiu em renunciar à publicação separada destes dois capítulos em vista da publicação atual da obra inteira que aparece também na língua inglesa.

Não necessitamos prescrever a nossos leitores e críticos a ma(iei-ra de compreender nosso livro; queríamos, contudo, pedir a uiis e a outros autorização para expressar um desejo. Pediremos, atites de tudo, que os leitores não considerem este estudo, como talvez poderiam sentir-se tentados a fazê-lo, tão-somente como uma obra de referência sobre a cristologia do Novo Testamento; ao meii°s> que não o façam sem terem lido a obra inteira, já que as divei'sas partes, como temos de recordar repetidamente, estão em estrita relação entre si. Quanto aos críticos que queiram fazer uma rese" nha desta obra, queremos de antemão assegurar-lhes que aceitaremos com reconhecimento suas observações, especialmente quari-

Page 12: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

• 16 Oscar Ctãlmann

do seu ponto de vista for diferente do nosso. Mas, atrevemo-nos a esperar que tenham por bem não criticar nossas teses com afirmações categóricas e veredictos desprovidos de fundamento exegético; esperamos, sobretudo, que não nos encaixem dentro de tal ou qual categoria, condenada por eles a priori - nem que, por outro lado, nos reprovem por não termos formado fileira com determinada escola moderna ou antiga; pois, se se examina nosso livro a partir do ponto de vista de sua "tendência" teológica, seguramente nenhuma das "escolas" conhecidas ficará satisfeita.

Nosso livro é um trabalho exegético. Já manifestamos em muitas ocasiões nossa maneira de compreender a exegese. Renunciando a considerações metodológicas profundas - tão apreciadas pela nova geração, sobretudo na Alemanha - nos limitaremos a sublinhar aqui que não reconhecemos outro método senão o histórico e filológico, este demonstrado pela experiência; nem outra atitude com respeito ao texto além de uma inteira disposição de escutá-lo honestamente, inclusive quando o que nos disser seja estranho ou contradiga nossas, determinadas e muito queridas, concepções. Para compreender e explicar o texto, faremos, pois, abs-tração de nossas "opiniões" filosóficas e teológicas pessoais e nos negaremos a desqualificar, como agregados secundários, aquelas afirmações neotestamentárias que não se enquadrem com ditas opiniões.

No que concerne à elaboração de nosso texto, recebemos uma ajuda particularmente preciosa e desinteressada. Para o texto alemão, do Sr. Karlfried Frõhlich; para o texto inglês, daProf Shirley Guthrie e do Prof. Charles Hall (E.U.A.), e para a edição francesa, do professor J. J. von Allmen e da Sra. D. Appia.

Que todos estes recebam nossa sincera gratidão.

Chamonix, setembro de 1958.

Page 13: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

INTRODUÇÃO

O PROBLEMA CRISTOLÓGICO NO CRISTIANISMO PRIMITIVO

Em primeira instância, perguntaremos que lugar ocupa a cristologia no pensamento teológico dos primeiros cristãos; tentaremos em seguida definir o problema cristológico do Novo Testamento; e, finalmente, falaremos do método com que abordaremos este problema nos capítulos seguintes.

1. O PAPEL DA CRISTOLOGIA NO PENSAMENTO TEOLÓGICO DOS PRIMEIROS CRISTÃOS

Se a teologia é a ciência que tem por objeto a Deus (Geóç), a cristologia é aquela que tem por objeto a Cristo, sua pessoa e sua obra. Geralmente se considera a cristologia como uma subdivisão da teologia (tomada em seu sentido etimológico). Este costume, com frequência tem influído na imagem que historiadores e teólogos nos dão da fé dos primeiros cristãos: começam por expor suas ideias sobre Deus, e não mencionam, a não ser em segundo lugar, suas convicções cristológicas. Tal é a ordem geralmente seguida nos antigos tratados de teologia do Novo Testamento.

É tentador adotar esta ordem uma vez que ela é seguida pelas posteriores confissões de fé. Em consequência disso, se crê que a Igreja primitiva se interessou em primeiro lugar por Deus, e só em segundo lugar por Cristo. Na realidade, não é assim. A extensão desigual dos dois artigos, por si só, bastaria para pôr o fato em

Page 14: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

18 Oscar Cullmann

evidência. Por outro lado, pode-se demonstrar que a ordem trinitária das confissões de fé posteriores: Deus, Cristo, Espírito Santo era desconhecida para as fórmulas mais antigas que resumem a fé cristã. Estas apresentam antes uma tendência exclusivamente cristológica: não havia então, como ocorreria nas confissões de fé posteriores, uma separação entre o artigo primeiro e o segundo.1 Desta divisão ulterior nasceu a opinião errónea segundo a qual a obra de Cristo não teve, aos olhos dos primeiros cristãos, nada a ver com a Criação, apenas com a Redenção. Para estes era impossível imaginar o mundo sem relacioná-lo à sua fé em Jesus Cristo. Ademais, quase todas as fórmulas mais antigas se compõem de um só artigo: o cristológico. Uma das raras confissões de fé do Novo Testamento que mencionam juntamente a Cristo e a Deus o Pai, se encontra em 1 Corínttos 8.6 e, coisa característica, ,gnora a disttnção entre Deus Criador e o Cristo Redentor; todavia, fala da Criação nos dois artigos: "um só Deus, o Pai, de quem vêm todas as coisas e por quem somos, e um só Senhor Jesus Cristo, por quem todas as coisas são, e por quem nós também somos." Um e outro estão, pois, na origem da Criação. A diferença não está radicada senão nas preposições: "para Deus", è^ e eíç; e para Cristo, ôiá: "por quem todas as coisas são" (Õi'oí> xà Jiávta). Cristo, mediador da Criação: este pensamento não é expresso só nesta antiga fórmula, pois podemos segui-lo por todo o Novo Testamento (cf. João 1.3; Cl 1.16). Encontra sua expressão mais vigorosa na Epístola aos Hebreus (1.10), onde se atribui positivamente a Cristo a "fundação da terra", e onde os céus são designados como "a obra de Suas mãos".

Em outras confissões de fé muito antigas, onde se trata de Deus, este não aparece como o Criador mas como o "Pai de Jesus Cristo". Apresentam-no como aquele que ressuscitou a Cristo (Policarpo 2.1 ss.). Isso prova que o pensamento teológico dos primeiros cristãos parte de Cristo e não de Deus.

Cf'. O. CULLMANN, LÉS premières Confessions de foi chrétiennes, Paris, 2a ed. 1948.

Page 15: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

O KISTO l . l Hi]A l í í ) M O V O T 1 :3TAMENTO 19

1'IKIL- sc, igualmente, mostrar que todos os elementos que nas i'inifissões de le posteriores estão vinculados ao Espírito Santo, no icn/eim artigo, são mencionados nas fórmulas antigas como funções direlas de Cristo; por exemplo, o perdão dos pecados ou a ressurreição dos mortos.2

Recordemos ainda que na celebre fórmula litúrgica no fim da segunda Epístola aos Coríntios, a ordem adotada não é: Deus, Cristo, Espírito Santo, mas: Cristo, Deus, Espírito Santo. "A graça de Nosso Senhor Jesus, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo" (2 Co 13.13).

As antigas confissões de fé são particularmente importantes para o conhecimento do pensamento cristão primitivo: sendo um resumo das convicções teológicas dos primeiros cristãos, nos mos-trarn a quais pontos davam ênfase; quais verdades consideravam primordiais e quais outras lhes pareciam decorrer destas. Daí se deduz que a teologia cristã primitiva é quase exclusivamente uma eristologia. Deste ponto de vista, a igreja antiga não se distingue íla igreja nascente, ao consagrar durante muitos séculos seu interesse às questões cristológicas.

Porém, as discussões posteriores esboçam o problema cristo-lógíco nos mesmos termos que o Novo Testamento?

2. EM QUE CONSISTE O PROBLEMA CRISTOLÓGICO NO NOVO TESTAMENTO?

Temos afirmado que a Cristologia é a ciência que tem por objeto a pessoa e a obra de Cristo. Necessitamos agora perguntar em que medida isto já constituía um problema para os primeiros cristãos e em que consistia. As discussões cristológicas posteriores se relacionam todas à pessoa de Cristo, à sua natureza: por um

(>p. CÍL, p. 18ss, Outro tanto ocorre com o bati sino que, nas confissões de fé fésteriores, figura no terceiro artigo como batismo da igreja, enquanto que na fórmula utilizada por INÁCIO DE ANTIOQUIA (Esm. 1.1) aparece como o batismo de .//',wti por João; da mesma forma Ef 18.2: "foi batizado a fim de purificar a água por seu sofrimento" (cf. abaixo, p. 95 s.).

Page 16: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

• 20 Oscar Cullmann

lado, a sua relação com Deus; por outro, a união existente entre a sua natureza divina e a sua natureza humana. Se não quisermos correr o risco de distorcer, desde o princípio, a perspectiva em que se apresenta o problema cristológico no Novo Testamento, temos que isolar estas discussões posteriores. Do ponto de vista histórico, temos de reconhecer por certo que, num dado momento, a igreja encontrou-se frente à imperiosa necessidade de abordar os problemas específicos que resultavam da helenização da fé, da aparição e difusão de doutrinas gnósticas, assim como do arianismo, nesto-rianismo etc. A igreja viu-se obrigada a abordar a questão das duas naturezas e a tentar dar-lhe uma resposta. Verdade é que se intentou resolver o problema apoiando-se nos escritos neotestamentários voltando-se, não obstante, para uma direção que simplesmente já não corresponde mais à maneira em que o problema é afirmado neles.

« Com efeito, no Novo Testamento não se fala quase nunca da pessoa de Cristo sem que se trate, ao mesmo tempo, de sua obra. Inclusive no prólogo do Evangelho de João, onde se diz que "o Logos estava com Deus e era Deus", se acrescenta imediatamente que por este "Logos" "todas as coisas foram feitas"; o que significa que ele é o mediador da criação. Além disso, se este prólogo fala do ser do Logos é somente para poder dizer, ao longo dos vinte e um capítulos do Evangelho, o que ele fez como Verbo encarnado. Quando o Novo Testamento pergunta "quem é Cristo?" isto não significaria jamais, exclusiva e principalmente, "qual é sua natureza?" mas, antes de tudo, "qual é a sua função?".3 Assim, as diversas respostas que o Novo Testamento dá a esta questão e que se expressam pelos diferentes títulos que examinaremos sucessivamente se referem sempre, ao mesmo tempo, à sua pessoa e sua

' Ao esboçar esta questão não concebemos a função de Cristo à maneira de BULTMANN, como um simples acontecimento que só ocorreria no encontro entre a pregação e nós mesmos, mas como um acontecimento cristológico ontológico. Cf. a este propósito, KARLBARTH, RudolfBultmann, ein Verstichihnzuverstehen. 1952. p. 16 ss., e O. CULLMANN, "Le mythe dans les écrits du Nouveau Testameiu", Numen I, 1954, p. 120 ss.

Page 17: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

C 14ISII >! >JiiíA IX) pJí >V< J I 1\S T A M E N T O _21

oina, Isiu i'* verdade inclusive naqueles títulos que têm por objeto 0 ('nslo preexistente: Logos, t''ilho de Deus, Deus, que examina-HMIIOS na última parle deste estudo. Veremos, portanto, que estes hlulos esboçam, assim, implicitamenle, a questão da relação entre 1 Vtis e a pessoa e orrgem de (Visto. No entanto, mesmo aqui não se pode lalar propriamente do problema corno se referindo a uma questão de "naturezas".

I lá, pois, uma diierença entre a maneira em que os prrmeiros cristãos, por um lado, e a igreja antiga, por outro, abordaram o problema cristológico. Temos de reconhecer, entretanto, que, no conflito que recebeu uma solução provisória no Concílio de Cal-cedônia, Atanásio e outros defensores da ortodoxia falam da natureza de Cristo para sublinhar seu alcance soteriológico, ou seja, para mostrar que a maneira em que se fala da salvação que Ele trouxe depende do modo em que se concebe sua natureza. Desta maneira é que se toma em consideração sua obra; porém, em uma perspectiva que já não é a do Novo Testamento.

A necessidade de combater os hereges levou os Pais da igreja a subordinarem a concepção da pessoa e da obra de Cristo à questão das "naturezas". A respeito do Novo Testamento há, pois, uma mudança no ponto de vista, justificada, sem dúvida, pela luta con-11 a a heresia, o que não impede que a discussão sobre as duas "naturezas" seja, em última análise, um problema grego e não um problema judaico e bíblico.

Para responder à pergunta: "Quem é Jesus?", os primeiros cristãos podiam recorrer a certas ideias correntes no judaísmo e, em particular, na escatologia judaica. É por isso que a questão cristo-lógica se põe, nas origens da igreja, do seguinte modo: Em que medida Jesus cumpriu o que nestas ideias está implícito? Em que medida sua obra as ultrapassa? Em que pontos entra em contradição com as ideias cristológicas que o judaísmo tardio parece postular? E quando os primeiros cristãos, vivendo num meio helenísti-co, respondem ao problema cristológico recorrendo a um título que, já entre os gregos, designava um mediador divino, ter-se-á que

Page 18: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

• 22 Oscar Culhnann

perguntar se a igreja primitiva atribuía a esse título as mesmas ideias que o paganismo de então.

t De qualquer forma, temos que rejeitar a opinião tão frequente, segundo a qual o cristianismo primitivo necessariamente precisou modelar sua cristologia de acordo com os esquemas existentes, seja no judaísmo, seja no helenismo. Quando se afirma tal coisa leva-se ao absurdo o que há de perfeitamente legítimo na história comparada das religiões; mas, sobretudo, se faz total abstração da consciência que Jesus tinha de si mesmo, o que é inadmissível do ponto de vista científico. Com efeito, devemos considerar a priori, como coisa possível e até provável, que Jesus tenha trazido, por sua doutrina e por sua vida, algo novo: foi daí que os primeiros cristãos partiram em suas primeiras tentativas de explicar a pessoa e a obra de Jesus. Devemos, igualmente, considerar a priori possível, e até provável, que a experiência religiosa, nascida do seu encontro com Cristo ou da certeza de Sua presença, a despeito de suas analogias automáticas com outras experiências religiosas, apresente, não obstante, traços particulares até então desconhecidos. Descartar de entrada esta possibilidade, esta probabilidade, é adotar um preconceito que contradiz os princípios da ciência histórica

Durante a vida de Jesus, a questão cristológica já aparece como um problema, formulado classicamente pelo próprio Jesus em Mc 8.27-29. Trata-se de um texto que logo teremos de estudar um pouco mais de perto; aqui ele só nos interessa pela maneira que esboça o problema. "No caminho, Jesus pergunta aos seus discípulos: Quem o povo diz que eu sou? Eles responderam: uns, João Batista; outros, Elias; outros, um dos profetas. E vós - Ele lhes pergunta - quem dizeis que eu sou? Pedro lhe responde: Tu és o Cristo."

O problema já existia, por um lado, para as pessoas do povo e, por outro, para os discípulos que viviam com Jesus, que o "viam com seus olhos e o ouviam com seus ouvidos". Constatamos que entre o povo e os discípulos se davam diversas respostas e que todas - e isto justifica a maneira em que o presente livro trata o problema - se expressam por títulos conhecidos, cada um dos quais designa uma função, uma obra a realizar. Todas estas respostas

Page 19: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

OuSTOMJCIA IM) NOVO T [ISTAMENTO 23

lêm islo cm comum: que não se limitam a colocar Jesus em uma cerla categoria humana, mas que buscam, ademais, explicar o que há de único nele. Pois bem, é somente islo, c não o estado civil de Jesus, o que se tem de levar em conla quando se trata do problema cristológico. Quando chamam a Jesus de Rabi, ou Mestre, ou Médico, isso é importante para a história de sua vida, mas não para o problema cristológico.4 É verdade que ao concebê-lo como "profeta", parece estarmos classificando-o dentro de um certo tipo humano. Na realidade, veremos que não se trata de uma intitulação genérica, mas de um título que contribui para uma das soluções da questão cristológica.

Os títulos mencionados em Mc 8.27 ss. não são - há muitos mais - os únicos que o Novo Testamento atribui a Jesus. Há outros mais que pretendem expressar o que Ele é e em que consiste Sua obra. Se Jesus é designado no Novo Testamento de maneiras tão diversas, deve-se a que nenhum destes títulos pode, por si só, abranger a totalidade de sua pessoa e de sua obra. Cada um deles indica só um aspecto particular da pessoa de Cristo. Só estudando todos os títulos atribuídos pelos primeiros cristãos a Jesus se poderá fazer uma ideia da "cristologia" do Novo Testamento. Nem tampouco podemos perder de vista que todos os títulos encontram sua unidade na pessoa de Jesus.

Quando empregamos neste estudo as palavras "cristologia" e "cristológico", não as tomamos em seu sentido restrito, relacionando-as a um só título, o de Cristo-Messias; ao contrário, as tomamos em seu sentido lato, abrangendo tudo o que concerne àvida e obra de Jesus Cristo, no que elas têm de único.

E. LOHMEYER, Galilãa und Jerusalém, 1935, p. 73 observa, é verdade, que no Evangelho de Marcos o título SiôáotcotA,oç se encontra ''quase que unicamente onde não se trata de classificá-lo como rabino, mas, pelo contrário, de distingui-lo destes". Isto é exato; porétn, em tais passagens, o título de "mestre" é só o atributo de outro título, ao qual consagraremos nosso primeiro capítulo: "O profeta'". Ver a este respeito C. H. DODD, "Jesus Ais Lehrer und Prophet", Mysterium Christi, editado por G. K. A. BELL e A. DEISSMANN, 1931, p. 69 ss.

Page 20: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

•24 Oscar Culbnaiin

« 3. O MÉTODO A SEGUIR

Buscamos atingir uma visão de conjunto das concepções cristológicas do Novo Testamento; não obstante, procederemos de uma maneira puramente analítica. Não consagraremos um capítulo à cristologia de cada um dos autores do Novo Testamento, porém, examinaremos separadamente cada um dos títulos cristo-lógicos, precisando seu significado através do conjunto dos escritos neotestamentários.5

Será necessário, no entanto, precisar primeiramente o sentido que possuem no judaísmo ou, dado o caso, na história geral das religiões, em particular, no helenismo. E quando chegarmos ao Novo Testamento será sempre razoável, pelas razões já apontadas, que nos perguntemos, antes de tudo, se e em que sentido tal ou qual título dentre eles foi utilizado por Jesus para designar-se a si mesmo, questão que nos parece justificada ainda hoje, depois de todos os trabalhos da Formgeschichte. Averiguaremos então como os diversos autores dos escritos cristãos entenderam ditos títulos.

Com efeito, nos parece que chegou a hora de colocarmos novamente a questão do Jesus histórico, partindo dos resultados obtidos pela Formgeschichte'' Foi com razão, sem dúvida, que esta questão foi deixada de lado, conscientemente, no curso dos últimos decénios; mas seria um erro, assim nos parece, continuar a descuidá-la. Saber que osEvange-

Este método, que consiste em tomar como ponto de partida os títulos cristológicos como tais e tentar em seguida estabelecer as diferenças mediante a análise, parece-nos mais apropriado que aquele seguido, por exemplo, porG. SEVENSTER em sua Christohgie van het Nieuwe Testament, 2a ed., 1948. Contudo, Sevenster se esforça sempre em seu interessante trabalho, que trata sucessivamente da cristologia de escritos particulares do Novo Testamento, por captar "a unidade e a diferença" nas concepções neotestamentárias da pessoa de Cristo. Esta maneira de ver parece impor-se hoje cada vez mais. Comparar E. KÀSEMANN, "Das Problem des Historischen Jesus (ZThK 51.1954, p. 125 ss.);T. W. MANSON, "The Life of Jesus. Some Tendencies in Present Day Research" (The Background of the New Testament and its Eschatology, Mélanges C. H. DODD, 1956, p. 211 ss); E. FUCHS, "Die Frage nach dem historischen Jesus" (ZThK 53, 1956, p. 210 ss).

Page 21: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

C-RISTOLOGIA DO INOVo TESTAMENTO 25

lhos são testemunhos da fé, e que a fé em Cristo da igreja primitiva foi a criadora da tradição evangélica, não deve fazer-nos cair em um ceticis-mo histórico absoluto a ponto de levar-nos a não utilizá-los como fonte histórica. Pelo contrário, teremos de utilizar esta fé primitiva como meio para melhor compreender a realidade histórica.7

No entanto, para penetrar até a consciência que Jesus tinha de si mesmo, necessitaríamos recorrer ao método da "história formativa" para julgar o valor da tradição evangélica. Devemos, pois, tentar distinguir as passagens em que os evangelistas expressam visivelmente sua opinião pessoal daquelas outras nas quais nos transmitem os logia autênticos de Jesus. Por exemplo, se num Evangelho transparece um certo desacordo entre os títulos cristológicos utilizados pelo autor em sua narração e os que Jesus aplica a si mesmo, temos aí um critério objetivo.

Ao examinar se Jesus deu a si mesmo tal ou qual título, deveremos nos precaver de todo a prior,, inclusive daquele que encontramos em R. Bultmann.Fiel àsua posição anterior ele afirma, em suaThéologie du Nouveau Testament (1953, p. 25 ss.), que Jesus jamais considerou-se uma espécie de plenipotenciário divino ÍM<generis. É por isso que - anulando assim, por esta negação, a neutralidade histórica proposta pela Formgeschiçhte - ele pode negar toda influência decisiva do ensinamento do próprio Jesus na cristologia da igreja antiga. Para ele, Jesus limitou-se a anunciar a Deus, o Pai, e seu Reino. Bultmann se encontra, então, definitivamente de acordo com a fórmula de Harnack, segundo a qual Deus o Pai, e não o Filho, pertence ao conteúdo do Evangelho. Porém, diferentemente de Harnack, opina que semelhante constatação não influi em nada na nossa fé em Cristo. Nós podemos, contudo, ter Jesus como o Messias e participar, assim, das convicções cristológicas da igreja primitiva. Ao adotar esta posição, Bultmann vai muito mais longe que o antigo liberalismo. Porém, devemos perguntar-nos se não é uma ilusão de sua parte crer que temos a mesma fé que a igreja nascente por professarmos as mesmas convicções cristológicas se, por outro lado, afirmamos que o próprio Jesus não tinha nenhuma "consciência messiânica1 \T\]is, de fato, a fé em Cristo dos primeiros cristãos pressupõe a convicção de que Jesus teve a si mesmo por "Filho do Homem", o Servo de Deus; e que atribuiu a si cada um dos títulos cristológicos de que temos de falar ainda. Se a igreja primitiva creu na messianidade de Jesus é porque creu que o pró-

Sob este aspecto, o excelente livrinho de G. BORNKAMM, Jesus, 1957, nos parece que leva demasiadamente longe o cepticismo ao defender que o Jesus da história não atribuiu a si mesmo função cristológica alguma.

Page 22: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

26 Oscar Cullmann

prio Jesus se havia considerado o Messias. Deste ponto de vista, a fé em Cristo de Bultmann é radicalmente diferente da fé da igreja Primitiva.

Os títulos cristológicos que o Novo Testamento menciona são muito numerosos, e cada um deles mostra um aspecto particular do problema. Para expressar plenamente a riqueza infinita que se manifestou na pessoa de Cristo, não bastava uma só designação de sua dignidade. Enumeraremos aqui as mais importantes: profeta, Sumo Sacerdote, Mediador, Servo de Deus, Cordeiro de Deus, Messias, Filho de Davi, Filho do Homem, Juiz, Santo de Deus, Kyrios, Salvador, Rei, Logos, Filho de Deus, Deus.

Nãoé necessário consagrar a cada um destes títulos um capítulo particular. Alguns, com efeito, por seu próprio conteúdo, poderão ser examinados ao mesmo tempo que outros. Assim, se falará do "Mediador" no capítulo sobre o Sumo Sacerdote; do "Cordeiro de Deus'' ao estudar o título e o papel do Ebed lahwelv, do "Filho de Davi" ou do "Rei" na parte consagrada ao Messias; do "Juiz", em relação ao Filho do Homem; e do "Santo de Deus", no contexto da filiação divina de Cristo.

Por qual começaremos e como os distribuiremos? Falaremos, primeiramente, daqueles que caracterizam, de modo especial, a obra terrena de Cristo; em seguida, daqueles que se relacionam essencialmente à sua obrafutura, escatológica; logo após, daqueles que enfatizam sua obrapresente; finalmente, daqueles que trazem à luz a obra realizada durante SUB.preexistência. Eis aí o plano de nosso livro. Trata-se, forçosamente, de uma classificação esquemática; porque, em geral, um mesmo título, uma mesma noção cristo-lógica, não se limita em seu alcance a uma só das quatro funções enumeradas, mas a duas, ou ainda três delas ao mesmo tempo.

Ademais, na consciência dos primeiros cristãos, que costumavam aplicar simultaneamente muitos destes títulos a Jesus, devia produzir-se um certo trabalho de assimilação, de ligação. Devemos, efetivamente, perceber que o cristianismo primitivo não estabeleceu entre eles a distinção taxativa que nosso estudo feno-menológico nos leva a fazer: os títulos se influenciavam recipro-

Page 23: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO

camente; com frequência constatamos inclusive que eles têm uma origem comum.

Nosso plano parte do princípio cronológico, válido para toda a cristologia do Novo Testamento: "Cristo, o mesmo ontem, hoje, e em todos os séculos por vir". Cristo está ligado a toda a história da revelação e da salvação, desde a criação; eis aí, como já o temos visto, um traço essencial da cristologia do Novo Testamento. Não há história da salvação sem cristologia; logo não há, tampouco, cristologia sem uma história da salvação que se desenvolva no tempo.8 aA cristologia não é, portanto, uma ciência das "naturezas" de Jesus Cristo, mas a ciência de um "acontecimento", de uma história.

Tendo chegado ao fim da análise fenomenológica dos diferentes títulos, constataremos que - apesar das diferenças entre as diversas noções e os diversos escritos do Novo Testamento - se destaca uma imagem geral e coerente desse "acontecimento" messiânico, desde a preexistência até a escatologia. Portanto, não pode ser questão de se justapor, como em um dicionário teológico, uma série de monografias: a cristologia do Novo Testamento forma um todo.

Por outro lado, poderá surgir de nossa análise uma evolução histórica da cristologia cristã primitiva que nos permitirá ver quais são os títulos que têm servido de ponto de partida ao pensamento cristológico dos primeiros cristãos. O plano que temos adotado não coincide, pois, com esta história; quero dizer, com a ordem cronológica das diversas soluções cristológicas propostas sucessivamente pelos cristãos da época apostólica.

Começaremos pelos títulos cristológicos especialmente destinados a explicar a obra terrena de Jesus; esta obra, já passada, que se desenvolveu até chegar ao ponto culminante e decisivo da história da salvação.

Cf. O. CULLMANN, Christ et le temps, Neuchâtel et Paris, 2a ed., 1957. Edição brasileira no prelo.

Page 24: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

PRIMEIRA PARTE

OS TÍTULOS CRISTOLOGICOS REFERENTES

À OBRA TERRENA DE JESUS

Page 25: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CAPÍTULO 1

JESUS, O PROFETA

Já nos perguntamos se o exame do título de "profeta" caberia a um estudo consagrado ao problema cristológico, tal qual o temos definido. Aqueles que chamavam a Jesus "profeta" não queriam com isso simplesmente classificá-lo dentro de uma certa categoria de homens existentes em sua época? De fato alguém se sentiria tentado a crer que se chamou a Jesus "profeta" para indicar sua profissão, como o chamaram de rabbí, mestre.9 Porém, convém notar que na época do Novo Testamento, a profecia, como profissão regular e organizada, já não existia no judaísmo. Por outro lado, quase não havia mais profetas no sentido especificamente israelita do termo, quer dizer, homens visitados pelo Espírito, que recebiam de Deus uma vocação particular. O antigo profetismo havia se extinguido progressivamente; e praticamente não existia mais senão sob a forma escrita de livros proféticos. Isto por si bastaria para mostrar que, ao chamar a Jesus "profeta", não se classificava-o simplesmente em uma categoria profissional determinada. Porém, o argumento decisivo é que na maior parte das passagens onde este título lhe é dado, Jesus não aparece somente como um profeta, mas como o profeta - a saber: o último profeta, aquele que devia "cumprir" toda profecia, no final dos tempos.

Veremos que a espera de semelhante profeta encarregado de uma missão escatológica bem definida se havia difundido no

'' Cf. acima, p. 23, nota 4.

Page 26: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

.32 Oscar Cullmann

judaísmo de então. Trata-se de uma concepção especificamente ' judaica, e a este respeiio este título de "profeta" se diferencia de outros títulos cristológicos que teremos de examinar - por exemplo, o de Filho do Homem e o de Logos, para os quais acham-se analogias nas religiões orientais e no helenismo.

E, pois, supérfluo falai-aqui da concepção grega de profeta. No mundo helénico, o termo mesmo significa simplesmente "anunciador", e não se usa, senão excepcionalmente, no sentido de "adivinho", aquele que prediz o futuro. Em todo caso, não existe vínculo algum entre as figuras impessoais dos profetas que encontramos nos poetas gregos (cuja única função é a de satisfazer a curiosidade dos homens) e o profetismo israelita, que prepara e anuncia a concepção cristã de profeta. O sacerdote-profeta egípcio no máximo apresenta uma analogia formal com os profetas israelitas. Aliás, assemelha-se mais aos autores da apocalíptica judaica tardia do que aos profetas propriamente ditos. Esta questão tem sido estudada a fundo na obra de E. Fascher, nPO<3>HTHS, Eine sprach-uttd religionsgeschichtliche Untersuchung, 1927 (na qual, é verdade, o capítulo relativo ao profeta no Novo Testamento é um tanto sumário).

»1.O PROFETA DO FIM DOS TEMPOS NO JUDAÍSMO

A espera pelo profeta escatológico se explica pelo antigo profetismo israelita. A palavra nabi tinha originalmente, na religião de Israel, diversos sentidos.10 No começo designava, por um lado, o extático e, por outro, o profeta profissional que emitia oráculos. Porém, estas duas concepções não bastam para dar-nos uma compreensão do profetismo especificamente israelita. E é a este somente que se liga a ideia de profeta do fim dos tempos. O que, caracteriza essencialmente os profetas clássicos de Israel é, por um lado, o fato de que seu ministério repousa menos no fato de pertencer a uma corporação profissional, do que em uma vocação pessoal e

111H. H. ROWLEY, "The natureof the Old Testament Prophecy in the Light of Recent Study" The Servant of the Lorâ and Olher Essays on the Old Testament, 2a ed, 1954, p. 91 ss) dá uma visão de conjunto do problema.

Page 27: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO _33

direta; por outro lado, quando proclamam a mensagem da qual estão encarregados, trabalham sob uma espécie de coação, sem perder por isso sua personalidade. Ao contrário, esta é até reforçada pelo fato de que Deus se serve do juízo moral do profeta para falar, por seu intermédio, a seu povo. Ademais, e diferentemente do adivinho, o profeta não se limita a transmitir revelações isoladas; sua profecia se converte em pregação, em mensagem; ele explica ao povo a verdadeira significação dos acontecimentos e o faz conhecer, a cada instante, o desígnio e a vontade de Deus predizendo - toda vez que é necessário - o juízo e o castigo divinos. Este profetismo, na época de Jesus - já o dissemos - tinha-se extinguido havia muito tempo em Israel. A palavra viva do profeta havia-se substituído a autoridade dos escritos dos antigos profetas. Por esta razão, o dom de profecia (como o revela Joel 2.28 ss.) aparece mais e mais como um fenómeno escatológico, que não reaparecerá senão no fim dos tempos; e, então, de uma maneira particularmente visível. Por isto aparecerão profetas na comunidade cristã primitiva.11 No judaísmo tardio, o Espírito - em virtude mesmo de sua ausência - é considerado como um elemento escatológico: houve profetas no passado e haverá profetas novamente, no fim dos tempos. Assim, o profetismo, de modo crescente, vai se tornando objeto de esperança escatológica.

Por isto a aparição de João Batista foi considerada como um acontecimento escatológico: um profeta vivo surgiu de novo, semelhante aos antigos profetas. Seu batismo também foi tomado por ato profético, semelhante aos atos simbólicos realizados, em certas circunstâncias, pelos profetas de outrora; por exemplo: Jeremias e também Elias, Elizeu, Isaías e, sobretudo, Ezequiel.12

João Batista foi, pois, tido por profeta nos moldes do Antigo Testamento; isto é o que mostra ainda uma passagem como a de

" 1 Co 11.28; Ef 4..11 Al t 1127 s., 11.11 21.10; Ap 22.9; Did. 11.13. ''Cf. WHEELER ROBINSON, Old Tesutment Essays, 1927, p. 1 ss, W. F.

FLEMINGTON, The New Testament Doctrine ofBaptism, 1948, p. 20 ss; c sobretudo G. FOHRER, "Die synnbolischeti Handlungen der Propheten" (AThANT, 25), 1953.

Page 28: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

34 Oscar Culbnann

Lc 3.2, onde dele se diz, como dos antigos profetas se dizia: hfzvzxO p%ia Geou k%\ 'Icoávvrrv. Falaremos, mais tarde, sobre João Batista. No momento nos limitaremos a mostrar que em sua pessoa, como na do "Mestre de Justiça''' de Qumran e na de certos taumaturgos e heróis políticos judaicos da época,13 depois de longa interrupção, um verdadeiro profeta reapareceu; o que prova, aos olhos dos judeus, que os últimos tempos estão às portas: Deus fala de novo pela boca de seu profeta. João Batista realiza o que esta esperança judaica aguardava há muito tempo: o despertar escatológico do profetismo (cf. I Mac 4.44 ss.; 14.41; SI 74.9).

Esta esperança havia tomado uma forma concreta: esperava-se para o fim dos tempos um profeta único em quem se realizaria, por assim dizer, toda a profecia anterior.14 Desta esperança especificamente judaica é que temos de nos ocupar aqui. O fato de que Jesus (assim como João) foi considerado profeta, bastava para conferir-lhe uma dignidade escatológica muito particular. Mas do ponto de vista cristologico, o que nos interessa sobretudo, é ver como é que se voltou para Jesus a esperança da vinda deste profeta único, definitivo. Esta esperança devia ser muito generalizada na época do Novo Testamento. Prova disso é que a João Batista os judeus perguntaram: "És tu o profeta?" (Jo 1.21). Todo mundo devia, pois, saber de quem se tratava.

A ideia judaica de um profeta que resume e realiza o profetismo completamente tem, sem dúvida, também outra raiz, menos escatológica e mais especulativa: a ideia de que, dado que todos os profetas têm anunciado, no fundo, a mesma verdade divina, não deve haver mais que um só e o mesmo profeta, que se tenha sucessivamente encarnado em diferentes homens, cada vez com aparência diferente.

JOSEFO, Guerra Judaica, II, 68, H, 261 s., Am. 20,97 s. Cf. ainda R. MEYER, Der Prophet aus Galilãa. 1940, p. 41 ss. Cf. P. VOLTZ, Die Eschatologie der judischen Gemeinde im neutestamentliclieii Zeitalter, 2" ed., 1934, p. 193 ss.

Page 29: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 35

lincontramos esta convicção nos escritos pseudoclementinos (tios quais teremos de falar, a propósito da concepção cristã de Jesus profeta15), assim como no Evangelho dos Hebreus - portanto, nos escritos que, sendo de origem judaico-cmíã podem, entretanto, ser considerados como fontes para conhecer o judaísmo de então. Segundo os escritos pseudoclementinos o "verdadeiro profeta" reaparecia sempre de novo através dos séculos desde Adão, trocando de nome e de forma para manifestar-se finalmente como o Filho do Homem.16 Segundo o fragmento do Evangelho dos Hebreus citado por São Jerónimo em seu comentário de Isaías,17 o Espírito Santo disse a Jesus, ao sair este da água, quando do seu batismo: "Eu tenho-te esperado em todos os profetas, a fim de que tu viesses e eu repousasse em ti".

Aqui a concepção de profeta escatológico está ligada à ideia da reencarnação do mesmo profeta, realizada já muitas vezes no passado. O profeta aparece, pois, no fim dos tempos sob sua forma definitiva, em sua plenitude, e é então que em sua pessoa a profecia chega a seu termo e à sua realização final.

A ideia de retorno sobre a terra do mesmo profeta sem dúvida contribuiu para favorecer a certeza de que Jesus voltaria no fim do mundo. Pois do Messias judaico não se havia declarado, como o fora acerca do profeta, que viria uma segunda vez sobre a terra. Não será que, a este respeito, a ideia de um retorno do profeta tenha importância do ponto de vista cristológico? A ideia de um retorno de Cristo recebe, pelo menos, uma antecipação nas crenças do judaísmo de então.

A esperança judaica aguarda mais particularmente o retorno escatológico de um determinado profeta. Ela se anuncia já nas palavras dirigidas por Moisés a Israel (Dt 18.15): "O Eterno, leu Deus, suscitará dentre teus irmãos um profeta como eu", liste texto tem uma importância capital para a noção de "pro

"Cf. abaixo, p. 61 s. '" I lom. III, 20. 2, Recogn. II, 22. " llicron; em Is 4, XI, 2, MSL 24, col. 145.

Page 30: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

36 Oscar Cullmcmn

.feta".18 Sem dúvida, não se trata aqui de um retorno do próprio Moisés, mas da aparição, no fim dos tempos, de um profeta que se lhe assemelhará. Fílon cita esta passagem e assinala seu caráter fortemente escatológico.19 Em Atos 3.22 e 7.37 este texto se aplica a Jesus. Os Kerygmata Petrou pseudoclementinos citam-no igualmente.20 Daí nasceu a crença no retorno do próprio Moisés.21

Não fica tampouco excluído que, segundo uma tese recente,22 o Servo Sofredor do segundo Isaías possa ser assimilado ao Moisés „ „ „ „ . , ' j . r „ ?^

ressuscitado." Porém, o que, sobretudo, se esperava era o retorno de Elias.

Trata-se de uma crença relativamente antiga. Já em Ml 4.5, Elias é identificado com o mensageiro que deve preparar o caminho de Iahweh, e a mesma crença se encontra no Eclesiástico24 e nos textos rabínicos:25 ele deve no final dos tempos "estabelecer" a comunidade futura e sua doutrina.

18Cf. H. J. SCHOEPS, Theologie und Geschichte des Judenchristentwnis, 1949, p. 87 ss. J. JEREMIAS, ThWbNT, IV, p. 862. Importa, ademais, notar que, ao lado de outras passagens do Antigo Testamento, esta é citada era uma coletânea de testemunhos messiânicos da seita de Qumran. Ver J. M. ALLEGRO, "Further Messianic References in Qumran Literature" (JBL, 75, 1956, p. 174 ss.).

> De spec. leg., I, 65. 20Recogn. 1, 43: "Muitas vezes, disse Pedro, os judeus nos enviavam mensageiros para

pedir-nos que acertássemos uma entrevista entre Jesus e eles, para saberem se ele era o profeta anunciado por Moisés."

21 Sib, V, 256 ss., assim como as passagens mencionadas mais abaixo. Cf., ademais, os textos rabínicos (tardios) citados porP. VOLZ,O/J . c/V. 195; também: J. JEREMIAS, art MtMXrrjç em ThWbNT, IV, p. 860 ss. A ideia de um retorno da época messiânica no fim dos tempos deve, sem dúvida, também ser levada em consideração neste ponto. Cf. a respeito H. GRESSMANN, Der Messias, 1929, p. 181 ss.

22A. BENTZEN, "Messias-Moses redivivus-Menschensohn" (AThANT, 17), 1948, p. 64 ss. Em parte ele segue a H. S. NYBERG, "Smãrtornasman" (Svensk Exegetisk Aarsbok, 1942, p. 75 s). JáSELLIN, Mose, 1922, tinha identificado o Ebed Iahweh com Moisés. A. BENTZEN adota esta tese, porém, rejeita a teoria de SELLIN relativa ao suposto martírio de Moisés na Transjordânia.

23 Enquanto que I. ENGNELL (Svensk Exegetik Aarsbok, 1945) tenta explicar a figura do Ebed Iahweh pela ideologia da realeza, A. BENTZEN (op. c/V.,42ss.) faz melhor ao considerara noção de Profeta. Cf. abaixo, p. 78, 81.

24 Eclo., 48.10 ss. Aqui o Elias ressuscitado tem a missão (que ele partilha com o Ebed Iahweh de Is 49.6) de "restabelecer" as tribos de Israel.

25 Cf. STR.-BILLERBECK, IV, p. 779 ss.

Page 31: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 37

Às vezes trata-se do retomo de Enoque.26 É natural que se tenha crido precisamente no retorno de Elias ou de Enoque, já que segundo o Antigo Testamento eles não morreram mas, antes, foram levados ao céu. Diz-se também que Baruque não morreu e que no final testemunhará contra os pagãos. (Apoc. de Baruque 13.1 ss.).

No fim das contas se opera uma combinação destes nomes, de sorte que se menciona dois profetas que hão de voltar. Segundo o livro de Enoque, estes são Enoque e Elias;27 segundo o Midrasch Deut. rabba 3.10, 1 (mais tardio)28 serão Moisés e Ellas. O relato da transfiguração no Novo Testamento (Mc 9.2 ss.)29 faz, sem dúvida, alusão a esta esperança, e pode ser que também a aparição das "duas testemunhas" de Ap 11.3 ss.

Tal é, ao menos, a explicação corrente desta passagem do Apocalipse*. v\o fim dos tempos, Moisés e Elias voltarão paira pregai' o arrependimento. J. Munck (Petrtis uiid Paitlus in der Johannes-Apokylypse, 1950, tentou refutar esta tese que já P. Volz (op. cit., p. 197) havia declarado como algo "discutível". Ele supõe que as duas testemunhas são, na realidade, os apóstolos Pedro e Paulo.30

'6 En 90.31 (associado a Elias). Mas sua função não é precisa. -7Cf. a passagem citada mais acinia, En 90.31, e também J4/WC. Eliae, ed. STEINDORFF,

1899, p. 163. ,,!í Deus disse a Moisés: "Quando eu enviar o profeta Elias, vireis os dois juntos". Cf.

igualmente Targ. jer. sobre Ex 12.42. "Cf. J. JEREMIAS,dansT/iWè/VT,II,941;H.RIESENFELD,Jéjí«/rafiíííg«f'é, 1947,

p. 253 ss.; E. LOHMEYER, "Die Verklãrung Jesu nach dem Markus-Evangelium", ZNTW,21 1922, p. 188 ss.

10 Cf. a este respeito O. CULLMANN, Saint Pierre, disciple, apôtre, martyr, 1952, p. 77 ss. Esta opinião foi expressa pela primeira vez pelo jesuíta MARIANA (Scholia in Vems et Novum Testamentum, 1619, p. 1.100 s.). Ela voltou a sei' considerada recentemente por L. HERMANN, "UApocalypse Johanniqueet l'histoireromaine" (Latomus, VIII, 1948, p. 23 ss.) e M. E. BOISMARD, "UApocalypse'' (La Saiiite Bibíe, Jerusalém, 1950, p. 21 se 53 s.). J. MUNCK a defende com argumentos muito convincentes. Reconhece que estas duas testemunhas têm traços comuns com os profetas do fim dos tempos, em particular com Elias retornado à terra, já que, eles também, pregam o arrependimento. No entanto, fez notar que as testemunhas de Ap 11.3 ss. não são os precursores do Messias, mas que anunciam a vinda do Anticristo. Ademais, sublinha (p. 13) que em nenhuma parte encontramos dois precursores do Messias. Munck tenta em seguida mostrar (p. 21) que o que se diz em Ap 11.5-6 não concorda com o que se sabe de Elias e de Moisés.

Page 32: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

38 Oscar Cttllmann

Em suas origens, a esperança judaica se referia, com toda segurança, a um só profeta. Podem ser encontradas variantes (nas quais também se menciona Jeremias31); isto se dá pelo fato de que não se sabia com certeza qual dos antigos profetas havia de voltar.

Esta esperança estava extremamente difundida, pois até seitas situadas na periferia do judaísmo, como os samaritanos e em particular a seita que os textos recentemente descobertos de Qumran nos têm feito conhecer melhor, esperavam por este profeta escatológico.

Os samaritanos, fundamentando-se na passagem já citada de Dt 18.15 ss, esperavam a vinda do Ta'eb.n Este é representado como Moisés ressuscitado e comporta os traços característicos do profeta: faz milagres, restabelece a lei e o verdadeiro culto no meio do povo e leva também os outros povos ao conhecimento de Deus. Como Moisés, morre à idade de 120 anos. Ele é chamado o "Mestre" ou, ainda, o Ta'eb, o que pode traduzir-se por "aquele que volta", ou, mais provavelmente, por "o restaurador". Pensemos na samaritana do poço de Jacó: para ela, o Messias é ao mesmo tempo profeta (João 4.19,25).

O "profeta" ocupa um lugar mais central ainda tia crença daquela seita judaica cuja existência foi revelada pelo Documento de Damasco, descoberto no Cairo em 1896 e publicado em 1910,33

e que é ainda conhecida pelo nome de "Comunidade da Nova Aliança".34 Temos nos familiarizado com sua doutrina e organização graças às recentes descobertas, de considerável importância,

11 Cf. Mt 16.14. Nos textos judaicos não se menciona nada acerca do seu retorno; porém, em 2 Mac 15.13 ss, se lhe atribui um papel duradouro de mediador como ''profeta de Deus".

l!Cf. a este respeito A. MERX, Der Messias oder "Ta'eb"der Samaritaner, 1909. 3 SCHECHTER, Docwnents ofJewish Sectaries, vol. I, Fragments ofa Zadoldte Work,

1910. 11 Cf. a edição do texto hebraico por L. ROST, Die Damaskusschrift, 1933. Tradução

alemã de W. STAERK, Die jiidische Gemeinde des Neuen Bundes in Damaskus, 1922. Tradução inglesa: CHARLES, The Apocrypha and Pseudepigrapha of the O. T.,II,1913, p. 799 ss. O melhor comentário é o deCHAIM RABIN, The Zadokite Documents, 1954 (2aed., 1957).

Page 33: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CftíSTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO

Feitas em Chirbet Qumran, perto do Mar Morto. Pode-se dar por estabelecido, não obstante as opiniões contrárias expressadas recentemente,35 de que na realidade trata-se de um grupo aparentado com os essênios.

Quase todos os historiadores interessados na história do judaísmo da época neotestamentária têm reconhecido a importância das descobertas sensacionais que se sucederam desde a primavera de 1947, e cuja riqueza só se começou a pôr em evidência. A publicação e o comentário dos textos levarão anos e os estudos exegéticos, tanto do Antigo como do Novo Testamento, deverão, no curso dos próximos anos, levar muito em consideração estes textos. A bibliografia relativa ao tema é já tão abundante que devemos limitar-nos a indicar alguns estudos especialmente importantes. Em vista de uma orientação geral, recomendamos: H. Bardtke, Die Handschriftenfunde am Toten Meer, 1952; em seguida A. Dupont-Sommer, Aperçus préliminaires stir les manuscrits de la mer Morte,1953, e: Nouveaux aperçus sttr les manuscrits de la mer Morte, 1953; G. Vermes, Les manuscrits du désert de Judá, 1953; sobretudo MillarBurrows, The DeadSeaScrolls, 1955 (tradução francesa, 1957) c O. Eissfeldt, Einleitung in das Alte Testament, 2a ed., 1956, p. 788 s. Sobre o conjunto dos estudos se consultará, sobretudo, os artigos periódicos que W. Baumgartner publica desde 1948-9 na Theologische Rundschau sob o título "Der palãstinische Handschriftenfund", assim como os informes regulares da Theologische Literaturzeitung ("Der gegenwártige Stand der Eforschung der in Palástina neu gefundenen hebraíschen Handschriften", primeiro informe no n° 74, 1949); aí se encontram também estudos sobre os diversos manuscritos. E igualmente indispensável recorrer aos informes, profundos e conscientes, publicados na/fevue Biblique pelo Padre de Vaux, diretor da Escola Arqueológica de Jerusalém, à medida que se vão fazendo as descobertas. É necessário, enfim, assinalar o emprego dos textos para os estudos do Novo Testamento: antes de tudo, K. G. Kuhn, "Die in Palãstina gefundenen hebraíschen Texte und das Neue Testatnent" (Zeitschr.f. Theol. u. Kirche, 47, 1950, p. 194 ss); em seguida S. E. Johnson, "The DeadSea Manual of Discipline and the Jerusalém Church ofActs" (ZATW, 1954, p. 110 ss); O. Cullmann, "La signification des textes de Qumran pour l 'étude des origines du c/tristianisine" (Positions luthériennes, 1958, n° 4, p. 5

DEL MEDICO, L'enigme des manuscrits de la mer Morte, 1957.

Page 34: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

40 Oscar CuUmann

ss); H. Metzinger, O. S. B., "Die Hcmdschriftenfitnde am Toten Meer und das N. T\. Bíblica, 36, 1955, p.457 ss); de uma maneira mais geral H. Braun, "Spãtjudisch-kàretischer und fruhckristlicher Radikãlismus, Jesus von Nazareth unddee essenische Qumransekte" (BHTh, 24), 2 vol. 1957-Chr. Burchardpublicou uma"BibliographieZMdenHandschriften vom Toten Meer' (BZÂW, 76), 1957.

Para o assunto que nos ocupa, temos que citar antes de tudo, entre os textos publicados até aqui - além do Documento de Damasco, conhecido há muito tempo - o Comentário de Habacuque:ib

esta obra, graças a uma interpretação alegórica, aplica tão minuciosamente as palavras do profeta à situação da seita que pode-se utilizá-la como fonte para conhecer a história e a teologia desta curiosa comunidade. Neste Comentário, o homem que pode ser considerado o provável fundador da seita, e que é objeto da mais alta veneração, leva o título de "Mestre de Justiça", p~ls. ÍTliQ, título que na literatura judaica tardia é atribuído a Elias.-37 Nota-se com razão que poderia igualmente traduzir-se por "Mestre da Verdade", ou "VerdadeiroMestre".38 Segundo o Comentário de Haba-

MEste texto foi publicado por MILLAR BURROWS, com a colaboração de J. C. TREVER e W. H. BROWNLEE, The DeadSea ScrollsofSl. Mark's Monastery, vol. I, The Isaiah Manuscript and the Habakuk Cominentary, 1950. Tradução francesa de A. DUPONT-SOMMER, le "Commentaire d'Habacuc" découvert prés de la mer morte, traduction et notes (Revue de 1'histoire des religions, 137, 1950, p. 129 ss.). Cf. também o estudo particularmente profundo e prudente de K. ELLIGER, em sua monografia com comentário e tradução: Studien zuni Habakukkomentar, 1953 (em anexo o texto hebraico em uma edição de fácil manejo). Os Salmos foram publicados muito mais tarde e não puderam ser levados aqui em consideração. Estes permitem entrever, igualmente, as relações entre a ideia de profeta e a de servo de Iahweh. Ver a edição do texto porE.L. SUKENIK, The Dead Sea Scrolls ofHebmw University, Jerusalém, 1955. Tradução francesa com indicações e notas de A. DUPONT-SOMMER, "Le livre des hymnes tlécouverts prés de la mer Morte" (I QH) Semítica, Vil, Paris, 1956); tradução alemã deH. BARDTKE, em ThLtz, 1956,3, col. 149 ss.; 10, col. 589 ss; 12, col. 715 ss.; cf. também G. MOLIN, Lob Gottes aits der Wtiste, 1957.

'7LOUIS GINZBERG, Eine unbekannte judische Sekte, 1922, p. 303 ss., particularmente p. 316.

51 Cf. K. ELLIGER, op. cit., p. 245 (se refere a J. L. TEICHER). Segundo TH. H. GÁSTER, The Dead Sea Scriptures, 1956, p. VI, não se trataria da designação de uma pessoa histórica mas de uma função (como Mebaqqêr).

Page 35: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 41

cuque, Deus lhe revelou todos os mistérios contidos nas palavras dos profetas.39 Sua missão é anunciar estas palavras.40 Toda sua pregação orienta-se para o fim dos tempos.41 Precisamente em vista das últimas coisas, ele recebeu uma inspiração particular que lhe permite interpretar com exatidão as previsões dos profetas. Ele tem por adversário o "homem da mentira", o "profeta da mentira".42 O mestre tem que sofrer a injustiça conforme a sorte comum aos profetas.43 Não é, contudo, seguro que tenha sofrido o martírio depois de sua condenação.44

Se se pudesse demonstrar com certeza a identidade entre o "Mestre-profeta" já aparecido e aquele que há de vir,45 teríamos um paralelo com a esperança cristã de um regresso de Cristo; tanto num caso como noutro, trata-se da esperança do retorno de um profeta cuja morte não estaria muito distante no passado. Porém, sobre este ponto ninguém pode, tampouco, pronunciar-se com certeza. E, ademais, no Manual de Disciplina (IQS 9, 11), a vinda do profeta se distingue da vinda dos dois messias, de Aarão e de Israel.46

3 9IQpHab. VII, 5; II, 9. w1 Qp Hab. II, 8. 41 I Qp Hab. II, 10; VII, 1 s. 421 Qp Hab. II, 1 s; X, 9. Acerca da relação com o "verdadeiro profeta" e o "profeta da

mentira" dos escritos pseudoclementinos, cf. O. CULLMANN, "Die neuentdeckten Qumrantexte und das Judenchristentum der Pseudoklementinen" (Neutestamentl. Studien fiir Rudolph Bultmann, 1954), p. 39 s.

•" 1 Qp Hab. IX, I ss. 4-5 A.s indicações contidas no Comentário de Habacuque não nos permtem responder a

esta pergunta. Não se pode, tampouco, saber se o "Mestre" estava ainda vivo no momento da redação do Comentário. Cf, sobre o assunto, K. ELLIGER, op. cit., p. 202 ss.; 264 ss. Acerca desíe problema convém também examinar os Hinos (cf. acima, p, 40, nota 36); porém, nem estes nem tampouco os fragmentos ainda não publicados parecem apoiar a hipótese de uma execução do "Mestre".

45 Sobre este ponto as opiniões são ainda muito divergentes. S. SCHECHTER, op. cit., p. XII, afirmou esta identidade pelo Documento de Damasco contra STAERK, op. cit., p. 5, que admitia a existência de dois "mestres": o fundador da seita e outro mestre ainda por vir. As recentes descobertas têm provocado um novo exame da questão. Com exceção de A. DUPONT-SOMMER, Nouveaux aperçus, p. 81 s., a maior parte dos especialistas parece recusar hoje a tese da identidade.

Vl Cf. abaixo, p. 44, nota 56 e p. 116 s.

Page 36: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

42 Oscar Cullmann

Os Testamentos dos Doze Patriarcas, que sempre foram difíceis de serem situados, provavelmente surgiram do mesmo meio espiritual que os documentos da seita de Qumran.47 Não temos de nos surpreender, pois, se no Testamento de Levi, o Messias esperado, o "Renovador da Lei" (Test. LeviSA6), é chamado "profeta do Altíssimo" (8.15). A importância que se dá neste capítulo a Moisés e a veneração de que é objeto, permitem supor que ainda aqui o profeta esperado seja, talvez, Moisés ressuscitado.

Esta crença na vinda ou retorno do "profeta" da seita da Nova Aliança nos parece, pois, digna da maior atenção, por um lado, porque ela é quase contemporânea do Cristianismo nascente; e, por outro, porque o profeta reúne em sua pessoa alguns atributos do Messias, ou mais particularmente, alguns atributos do Sumo Sacerdote.48 De qualquer maneira, isto nos permite compreender melhor porque, no tempo de João Batista e de Jesus, se tenha quase automaticamente falado do "profeta" para descobrir o sentido da aparição e ministério de João Batista ou de Jesus.

Em todo o judaísmo tardio, a esperança do fim estava ligada à esperança de um despertar da profecia - porém, de uma profecia definitiva, absoluta, que se encarnaria na pessoa do único verdadeiro profeta, que poria fim a toda falsa profecia.49

Se reunirmos agora os diversos elementos desta crença generalizada, a função do profeta se nos apresenta da maneira seguinte: ele prega, ele revela os últimos mistérios e, sobretudo, restaura a revelação tal qual Deus a havia dado na Lei de Moisés. Porém, não prega simplesmente como os antigos profetas: sua pregação anuncia o fim do mundo; seu chamado ao arrependi-

" Cf., em particular, A. DUPONT-SOMMER, "Le Testament de Lévi (XVH-XVIII) et lasectejuivederA]liance",Sí7iji/fCívIV, 1952, p. 33 ES., e Nouveaux aperçus, p. 63 ss.

4!iCf. abaixo, p. 117. 4it Outra figura semelhante ao profeta do fim dos tempos é sem dúvida também o taxon,

o Ordenador, cm Ascensão de Moisés. 9,1 ss., que S. MOWINCKEL, em um artigo interessante, quis pôrem relação com o mehoqêq do Documento de Damasco (Vetus Testamentitm, supl. I, 1953, p. 88 ss.).

Page 37: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 43

mento é a última oportunidade de salvação que Deus oferece aos homens. Sua aparição e sua pregação constituem, pois, um ato escatológico que se insere no grande drama final. A revelação da vontade divina é a função principal do profeta mas ele deve, ainda, restabelecer as tribos de Israel (Eclo. 48.10). O Elias ressuscitado deve vencer as potências do mundo, libertar Israel50 e lutar contra o Anticristo.51 Como o dos antigos profetas, seu destino é sofrer.52 É o que se pode deduzir, por exemplo, de Mc 9.13 (Mt 17.12) "Fizeram com ele tudo o que quiseram, como está escrito a seu respeito".53

Originalmente, o profeta do fim dos tempos não era um mero precursor do Messias. A esperança no retorno do profeta era suficiente em si e se desenvolveu, de certo modo, paralelamente à espera do Messias. Este não tem, em suma, necessidade de precursor, posto que preenche em si mesmo o papel de profeta escatológico. Por isso, pode ocorrer - como já o temos visto - que profeta e Messias sejam unidos em uma só pessoa.54 É possível que, por fim, se tenha de reduzir ambos a um denominador comum.55

No entanto, faremos bem em distinguir a linha "profética" da linha "messiânica"; pois, originalmente, o profeta escatológico ao aparecer no fim dos tempos prepara o caminho ao próprio Iahweh. Só mais recentemente a noção de "profeta" e a de "messias" se combinam, não só pela identificação deste profeta com o Messias,

wCf. STR-BILLERBECK, IV, p. 782 ss.; J. JEREMIAS, em TKWbNTW, p. 933 í l Apoc. Eliae, éd. STEINDORFF, 1899 p. 169. >2C.. H. J. SCHOEPS, Aits friihchristticher Zeit, 1950, p. 126 ss.: Die jiidischen

Prophetenmorde. "Cf. J. JEREMIAS, em ThWbNT, II, p. 944. ^J H. RIESENFELD, "Jesus ais Prophet" (Spiritits et Veritas, 1953, p. 135 ss.) cita

como passagem do Novo Testamento que atesta esta identificação popular entre o último profeta e o Messias, aparte João 6.14 se Mc 13.22 e par., acena na qual Jesus é objeto de deboche por parte dos soldados que o convidam a "profetizar".

'* A escola de Upsala (ENGNELL) veria este denominador comum na ideologia do rei. A. BENTZEN o veria antes na ideia do Filho do Homem ou do '"primeiro homem" (Messias-Moses redivivtts-Meitschensohn, 1948, p. 41 ss.).

Page 38: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

44 Oscar Cullmann

mas também por afirmar que, por exemplo, um retorno de Elias preparará a vinda, não do próprio Iahweh, mas de seu Messias.56

Devemos distinguir com cuidado a ideia do profeta como precursor de Deus, da do profeta como precursor do Messias, pois as encontramos ambas no Novo Testamento; cada qual com seu próprio sentido.

2. O PROFETA DO FIM DOS TEMPOS SEGUNDO O NOVO TESTAMENTO

a) João Batista

Nos Evangelhos não só Jesus mas, antes e mais do que ele, João Batista é chamado "o Profeta". Por um lado, temos visto que João Batista se encontrava simplesmente colocado no mesmo plano que os profetas do Antigo Testamento. Isto é o que mostra, por exemplo, a fórmula de Lc 3, fórmula de introdução totalmente análoga à dos livros proféticos do Antigo Testamento: "A Palavra de Deus foi dirigida a João". Estando o dom da profecia encenado, João Batista aparece como o anunciador do fim dos tempos, época em que este dom havia de renascer.

Por outro lado, precisamos estudar agora em que medida sua pessoa foi identificada exatamente com o profeta prometido para o fim dos tempos. Isto se fez de duas maneiras: identificando sua vinda com o retorno de Elias que, por um lado, era tido como um precursor do Messias (sentido tardio), por outro, como um precursor de Deus (sentido primitivo).

É muito provavelmente a concepção judaica tardia a que está expressa em Mt 11.8 ss., onde o próprio Jesus chama João Batista

isCf. STR-BILLEftBECK, IV, p. 784 ss., como TliWbNT, II, p. 933, nota 20. Em JUSTINO, Dial. Cum Tryph. Jtiel. 8, 4 e 49, I, ele tem por função ungir o Messias. A passagem já mencionada do Manual de Disciplina de Qumran(1QS 9, 11) também distingue expressamente a vinda do profeta da dos dois Messias (de Aarãoe de Israel). Cf. a este respeito K. G. KUHN, "Die beiden Messias AaronsundIsraêls"'W5,1955, p. 178).

Page 39: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 45

de Elias ressuscitado. "O que vocês foram ver no deserto? Uma vara agitada pelo vento? Ou então, o que foram ver? Um homem de roupas preciosas? Ora, os que usam roupas preciosas estão nos palácios. Afinal, o que foram ver? Um profeta? Sim, eu lhes digo, mais que um profeta... Pois todos os profetas e a lei profetizaram até João. E se quereis aceitar,57 ele é este Elias que havia de vir." Se Jesus disse que João é mais que um profeta, isto significa que, sem dúvida, ele é o profeta que deve vir no fim dos tempos. A primeira vista não se vê, muito claramente, é verdade, se João cumpre este papel como precursor do Messias ou como precursor de Deus; mas se examinarmos o contexto, e em particular o logion em que se fala do "menor" que é o maior no Reino dos Céus58

(passagem na qual Jesus, embora sendo o "menor", se coloca acima do Batista), é certo que para o evangelista Jesus vê no Batista o precursor do Messias. Esta interpretação é, por outro lado, a única possível se Jesus tinha consciência de ser Ele mesmo o Messias.

Igual conclusão se depreende de Mt 17.10 ss. (Mc 9.11 ss.): "Os discípulos fizeram-lhe esta pergunta: Por que os escribas dizem que Elias há de vir primeiro? Respondeu: E verdade que Elias deve vir e restabelecer todas as coisas, mas eu vos digo que Elias já veio e eles não o reconheceram e fizeram com ele tudo o que quiseram. Da mesma forma também o Filho do Homem sofrerá em suas mãos." Aqui, Jesus identifica expressamente a aparição do Batista com o retorno de Elias. Se a menção do "Filho do Homem" remonta ao próprio Jesus, novamente trata-se de João, Elias ressuscitado como precursor de Jesus, o Filho do Homem. A isto se acrescenta que, segundo as palavras de Jesus e conforme a esperança judaica, o profeta dos últimos tempos realiza em sua pessoa a sorte de todos os profetas: ele é perseguido.59 Seu papel não se limita a pregar o arrependimento, mas também sofrer; nisto

Sobre a restrição contida na expressão ei Sé^ste SèZ,0.Gí)a,\ cf. abaixo, p. 38. A tradução habitual, "o menor no reino dos céus", é, certamente, inexata. As palavras èv i\\ pacri^eit^ râv oúpceviítv não se relacionam a ó piKpótepoç, veja mais abaixo, p. 53 s. Cf. acima, p. 42 s.

Page 40: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

46 Oscar Cullmaiin

há um certo vínculo com a figura do "Servo de Iahweh", ao qual consagraremos um capítulo especial. Já notamos que as diversas concepções messiânicas ou cristológicas se influenciam de maneira recíproca.60

Ao lado destes textos, encontramos uma série de passagens do Novo Testamento nas quais João Batista, profeta dos últimos tempos, é apresentado como o precursor do próprio Deus. Antes de tudo, no proto-evangelho de Lucas, que contém muito provavelmente tradições independentes relativas a João provenientes do círculo dos discípulos do Batista; lemos, por exemplo, no cântico de Zacarias (Lc 1.76), que o Batista será chamado "profeta do Altíssimo". "Tu irás adiante da face do Senhor para preparar seus caminhos." A palavra "Senhor" designa aqui, sem dúvida, Iahweh. A mesma ideia é expressa no anúncio do anjo em Lc 1.17: o menino que há de nascer "irá adiante de Deus no espírito e poder de Elias, para fazer voltar o coração dos pais para os filhos e os rebeldes à sabedoria dos justos, a fim de preparar um povo para o Senhor." Verdade é que o evangelista provavelmente aplicou o título de "Senhor" a Jesus muito tarde, como o faz noutra parte ao utilizar citações do Antigo Testamento.61

Para os sinópticos, João Batista é o "profeta" do fim dos tempos: em uma série de textos na qualidade de precursor de Deus, em outros, na qualidade de precursor do Messias.

Teve o próprio João Batista consciência de ser este profeta? Os Evangelhos sinópticos não nos permitem dar uma resposta categórica a esta questão, pois, em nenhum dos textos mencionados o Batista se explica a si mesmo; são sempre outros que lhe designam como o profeta. No entanto, João não se considerou como o precursor de Deus, e isto se depreende de versículos, certamente

Se a tese sustentada pelos sábios escandinavos (cf. acima, p. 43, nota 55) é exata, nós deveríamos admitir que em sua origem as diversas concepções cristológicas surgiram de uma concepção primitiva única para diferencíar-se logo e finalmente tender a fundir-se de novo. Cf. PH. VIELHA.UER, "Das Benedictus Zacharias" (ZTIiK, 1952, p. 255 ss.).

Page 41: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 47

autênticos, do começo do capítulo 11 de Mateus, nos quais João faz com que se pergunte a Jesus se Ele é o que havia de vir ou se é necessário ainda esperar outro. A maneira em que a questão é formulada mostra que o Batista espera ainda um outro enviado de Deus que deve vir depois dele. Isto surge igualmente de sua pregação batismal onde ele fala do "mais poderoso" (ía^upótepoç) que vem depois dele (Mt 3.11), e onde põe em clara luz o caráter paradoxal, para os judeus, de uma situação em que aquele que vem mais tarde, normalmente subordinado e servidor daquele que o precede, pelo contrário, seja revestido de uma potência divina maior62 (cf. Ap 5.12). Pode-se concluir daqui que, em todo caso, ele não se considerou como o profeta que prepara a vinda do próprio Deus. Porém, é possível (segundo Mt 11.3) que tenha crido ser o profeta precursor do Messias. Tal seria o caso se as expressões "o que há de vir" (ó èpxópevoç), e "o mais poderoso" aludiam ao Messias. Mas é possível que o èpxónevoç esperado pelo Batista fosse o próprio profeta escatológico;63 João Batista seria então só aquele que inaugura o fim dos tempos realizando, após longa interrupção, o despertar já predito pela profecia; se ele se considerou tão-somente um profeta entre outros, seriam seus discípulos e Jesus quem, depois de sua morte, teriam reconhecido nele o profeta escatológico.

Seja como for, o certo é que, segundo a tradição sinóptica, os primeiros cristãos, e sem dúvida o próprio Jesus, viram no Batista o precursor do Messias anunciado, enquanto que os discípulos de João o consideravam como o profeta que prepara os caminhos ao próprio Deus. Os escritos pseudoclementinos proporcionam confirmação disto. Lemos neles,64 com efeito, que a seita posteriormente constituída pelos discípulos do Batista considerava a João como Messias, opinião que, segundo Lc 3.15, já havia sido deba-

: Cf. O. CULLMANN, 'O òrtíoa» \io\> èpxónevoç çConiectanea Neotestamenúca in honorem Antonii Fridrichsen, 11,1947, p. 26 ss.). Esta é a opinião de J. HÉRING, Le royaume de Dieu et sa venue, 1937, p. 71. Rec, l,60.

Page 42: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

• 48 Oscar CuUmann

tida durante sua vida. Porém, para eles o Messias se confundia com o profeta dos últimos tempos. Segundo os discípulos do Batista, João seria, portanto, o profeta escatológico; mas, sua função bastava-se a si mesma e não tinha necessidade de ser confirmada pela vinda de um Messias, já que ele mesmo preparava a Deus os caminhos para o estabelecimento do Seu Reino.

É muito provável que esta seita dos discípulos do Batista se tenha fundido, a seu tempo, com outra seita de origem judaica, a dos mandeus, que ainda existe e cujos escritos sagrados representam Jesus como um impostor, "um falso Messias", enquanto que João Batista aparece como "o profeta" no sentido absoluto.65

No relato do nascimento de João Batista contido nos livros mandeus,

M. LIDZBARSKI e R. BULTMANN ("Die Bedeutung der neuerschlossenen mandãischen und manichãischen Quellen ftir das Verstàndnis des Johannes-Evan-geliums", ZNTW, 24, 1925, p. 100 s.) têm sustentado que os textos remontam à época pré-cristã. Esta opinião foi refutada por E. PETERSON, "Bemerkugen zur mandãischen Literatur" (ZNTW, 25, 1926, p. 216 ss.), "Urchristentum und Man-dãismus'' (ZNTW, 27, 1928, p. 1 ss.), "Der gegenwãrtige Stand der Mandaerfrage'' (TheoL Blatler,7,1928, col. 12) e, sobretudo, por H. LIETZMAN, "Ein Beitragzur Mandaerfrage" (SB Preuss. Ak. d. Wiss. Phil.-Hist. KL, 1930). Ademais, a uttilzação dos textos mandeus caiu em descrédito já que, durante longo tempo, citá-los era uma "moda" entre os exegetas do Novo Testamento. Tais ''modas" têm, amiúde, um papel excessivo na história da teologiae da exegese. Nos anos 1925-1930, era quase impossível abrir um livro ou ler um artigo sem encontrar os mandeus citados ao menos uma vez. M. GOGUEL falava então com razão da "febre mandeana" que havia apanhado os historiadores do Novo Testamento (João Batista, 1928, p. 113). Porém, como ocowft (veqtteMemente com as modas, esta ícbst desapareceu e, por temor de parecer pertencer a uma moda ultrapassada, dedíca-se aos mandeus total silêncio, o que é tão injustificado como citá-los a cada passo. É somente nestes últimos anos que se recomeçou a estudar a questão mandeana (cf. tfepois do trabalho mais antigo de H. SCHLIER, Tlieol. Rundschau, N. F., 5, 1933, p. 1 ss. H. CH. PUECH, "Le mandéisme, le manichéisme", na Histoire générale des religions, III, 1945, p. 67 ss.). No Congresso Internacional de história das religiões, reunido em Amsterdã em 1950, W. BAUMGARTNER apresentou um informe sobre estes recentes estudos; mostrou <jue a origem pré-cristã mandeana pode ser considerada como demonstrada e que é, por conseguinte, legítimo utilizar os textos mandeus para a explicação do Novo Testamento ("Der hcutige Stand der Mandaerfrage" TliZ 6 1950 p 401 ss.) Acrescentemos que as recentes descobertas de manuscritos da seita da nova aliança confirmam a existência de um gnosticismo judeu pré-cristão, e que por esta linha é também possível fixar uma data remota para as fontes dos escritos mandetis

Page 43: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CftíSTOLOGIA DO NOVO TESTAMEhTTO 49

pode-se ler em muitas ocasiões: "João tomará o Jordão e será chamado profeta em Jerusalém."66

> Em resumo, chegamos às seguintes conclusões segundo os sinópticos e os textos mandeus: 1) t, certo que João ísatista foi considerado depois de sua morte, por seus discípulos, como o profeta (sem dúvida, antes de tudo, como Elias que voltou à terra), ou seja, como precursor de Deus, de tal maneira que um Messias especial se torna inútil; 2) É certo que os discípulos de Jesus e ele mesmo consideraram o Batista como o profeta, como Elias de volta à terra, porém, somente na qualidade de precursor do Messias; 3) É impossível que João Batista tenha se considerado como o profeta no primeiro sentido, mas é por outro lado possível - e não se pode dizer mais do que isso - que ele tenha se considerado como o profeta precursor do Messias.

Resta-nos perguntar: Qual é a posição tomada a este respeito pelo quarto Evangelho? Segundo este, o próprio Batista, expressamente, declinou da honra de ser considerado como o profeta, mesmo no segundo sentido. Ele não quer se passar por profeta escatológico e rejeita também toda assimilação a Elias. Contenta-se em ser uma "voz" ((pcovf|) que clama no deserto, como o antigo profeta. Em outras palavras: quer ser somente um profeta à maneira dos do Antigo Testamento.67 João 1.21 diz isso com toda clareza: "Perguntaram-lhe: És tu Elias? Ele respondeu: Não". João recusa, pois, para sua pessoa, o título com o qual, segundo os sinópticos, Jesus o distingue.

Em todo o quarto Evangelho, e em particular no prólogo, aparece uma polemica dirigida não contra João Batista mesmo, mas

(cf. abaixo, p. 41). Valeria a pena, à luz dos textos recentemente descobertos, examinar de perto as relações entre os mandeus e os essêmos; uma primeira tentativa foi feita porF. M. BRAUN, "Le mandéisme et lasecteesséniennedeQumran'' (VAncien Testament et VOriem, Louvain, 1957, p. 193 ss.): os mandeus teriam surgido do grupo dos essênios.

'* Cf. M. LIDZBARSKI, Johannesbuch des Mandãer, 1915, p. 78. ''"' O evangelista pensa, ao mesmo tempo, na oposição entre esta "voz" e a "Palavra" de

que fala no prólogo.

Page 44: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

•50 Oscar Cullmann

contra a seita do Batista que, depois de sua morte, o considera como o profeta do fim dos tempos, como o precursor de Deus e lhe atribui, assim, um papel definitivo que exclui a vinda posterior de um Messias. Pode-se assim demonstrar68 que o prólogo inteiro é dirigido contra aqueles que queriam exaltar o Batista em detrimento de Jesus, isto é, contra os precursores dos mandeus. É por isso que o autor afirma: "Ele (João) não era ele mesmo a luz7'. Ao mesmo tempo, combate um dos maiores argumentos dos seguidores desta seita, o argumento cronológico: João, tendo vindo antes de Jesus, é maior que ele. O prólogo cita uma palavra do próprio Batista: "Aquele que vem depois de mim é superior a mim, porque existia antes de mim" (João 1.15). Reconhecemos aí a afirmação da preexistência de Cristo.6';

Esta tendência polémica dirigida não contra João, mas contra a seita de seus discípulos, se encontra no restante do Evangelho. Por isso o evangelista insiste tão energicamente sobre o fato de que o próprio João tenha recusado a si o título de "Cristo". João 1.20: "Ele declarou e não negou, ele declarou..." (àu,o*A,ÓYrio"£v m i oi)K íipvriaato, KOIÍ w\io^óyriGev). Esta insistência não tem sentido senão em relação a uma afirmação contrária (indicada em Lc 3.15). Segundo os escritos pseudoclementinos, seus discípulos, agrupados em uma seita que o considerava como o Cristo, devem ter sido particularmente numerosos nos meios aos quais o Evangelho de João se dirigia. Assim se explica que o quarto evangelista seja o único que tenha transmitido certas palavras em que o próprio Batista sublinha sua inferioridade em relação a Jesus. Segundo 3.28 ele diz: "Vós sois minhas testemunhas de que vos tenho dito que eu não sou o Cristo". No versículo 30: "É necessário que ele cresça e que eu diminua". Ele designa a Jesus como aquele que vem do alto, enquanto que ele mesmo vem da terra: "Aquele que vem do alto está acima de todos; aquele que vem da

Cf. W. BALDENSPERGER, Der Prolog des Johannesevangeliums, 1898. Cf. meu artigo citado na p. 47, nota 62.

Page 45: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 51

terra é terreno e fala como sendo da terra" (3.31). João Batista não se considera, pois, como o profeta prometido.

9 Compreendemos melhor isto recordando que, para o Evangelho de João, Jesus é este profeta, pois resume em sua pessoa as funções de todos os mensageiros divinos. O Batista recusa não somente ser considerado como Messias, mas ainda como o profeta escatológico, como Elias de volta à terra. Este quadro poderia bem corresponder à realidade. Aliás, isso não entra em contradição com os sinópticos, segundo os quais João Batista, certamente, não se fez passar nunca por precursor do próprio Deus e, talvez, nem sequer se tenha considerado como o precursor do Messias. O Evangelho de João dá, sem dúvida, a resposta exata ao dizer que João Batista pura e simplesmente recusou que o chamassem de "o profeta".

Veremos que no começo do século n, uma polemica opunha os discípulos de João aos judeu-cristãos.70 O centro desta discussão se encontrava não no título de "Cristo", mas no de "profeta". Os judeu-cristãos chamavam a Jesus "o verdadeiro profeta", e chegavam a fazer de João o representante da falsa profecia. O objeto desta primeira controvérsia cristológica não era, pois, no fundo, uma cristologia mas uma "profetologia", e os adversários em questão não eram judeus e cristãos mas discípulos do Batista e cristãos. Isto mostra a importância desta noção de "profeta".

b) Jesus

Chegamos agora aos textos que aplicam a Jesus o título de "profeta". Devemos fazer uma observação prévia: É preciso dis-tinguir as passagens que nomeiam a Jesus como "um profeta" (pelo lalo de já terem havido muitos outros) daquelas em que aparece como "o profeta" único do fim dos tempos. No fundo, estas últimas passagens são as únicas que concernem ao problema cristo-

"'(')'., abaixo, p. 61 ss.

Page 46: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

•52 Oscar Cullmarm

lógico propriamente dito, isto é, ao problema do caráter específico e único de Jesus. As funções que Jesus partilha com outros homens não se relacionam a este conceito senão indiretamente. Porém, como a noção de profeta do fim dos tempos está estreitamente ligada à noção israelita de profeta em geral, nos será necessário citar aqui, sem determo-nos muito neles, os textos nos quais Jesus parece ser um profeta entre outros. O que temos dito de João Batista vale também para Jesus: o simples fato de surgir novamente um profeta, depois de uma longa interrupção, era considerado como sinal da inauguração do fim dos tempos. É verdade que a aparição de Jesus, seguindo tão de perto a do Batista, deve ter, deste ponto de vista, produzido menos sensação.

Lemos em Lc 7.16, no fim do relato da ressurreição do jovem de Naim: "Todos foram possuídos de temor e glorificaram a Deus dizendo: Um grande profeta se tem levantado entre nós." Aqui não há artigo definido e o substantivo 7tpocpfiTTiç está até acompanhado de um adjetivo. A multidão não toma, pois, a Jesus pelo profeta dos últimos tempos, porquanto este não necessita do epíteto Péfaç.71 Aqui, posiciona-se a Jesus simplesmente na categoria dos profetas à qual outros também pertenceram. Um milagre como o que acaba de ser relatado mostra que o Espírito de Deus, que atuou outrora pela pessoa dos profetas, está atuando novamente com poder. Este fato, não obstante o juízo da multidão, não se reveste de um caráter diretamente escatológico.

Mateus 21.46 relata que os principais sacerdotes e os fariseus tentaram prender a Jesus, porém, temeram a multidão "porque o tinham por profeta". Também, aqui se trata de um profeta e não do profeta escatológico.

A mesma coisa ocorre em Mc 6.4, onde Jesus designa a si mesmo um profeta, ao falar, depois de seu fracasso em Nazaré: "Um profeta não é desprezado senão em sua terra, entre seus paren-

Seria de outro modo se riyép6r| devesse ser tomado em um sentido mais forte c ser traduzido por "ressuscitado". Neste caso, tratar-se-ia da crença no retorno escatológico de antigos profetas. Porém, é pouco provável que esta tradução seja a correia.

Page 47: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO -3

tes e em sua casa." Um pensamento análogo se expressa na queixa de Jesus sobre Jerusalém "que mata os profetas" (Mt 23.37). Este versículo confirma ao mesmo tempo o que já temos notado,72 a saber: o sofrimento é a sorte dos profetas, e, em especial, faz parte de sua função escatológica.

Muito mais importantes são as passagens do Novo Testamento que designam Jesus como o profeta esperado do fim dos tempos, o profeta que retornou à terra.

Começaremos por Mc 6.14 ss.: "dizia-se: João Batista ressuscitou dentre os mortos e por isto estão operando nele (Jesus) milagres. Outros diziam: É Elias. E outros diziam: É (um profeta como) um dos antigos profetas. Porém, ouvindo-o Herodes, disse: "é João, a quem eu fiz decapitar; é ele que ressuscitou."

O evangelista relata aqui três declarações pelas quais o povo c Herodes tentam responder à pergunta sobre quem é Jesus. Estas declarações são tanto mais preciosas pelo fato de que são feitas durante a vida de Jesus. Encontram-se, pois, entre as explicações mais antigas sobre o mistério de sua obra e de sua pessoa. O que chama a atenção, antes de tudo, é que os títulos cristológicos fundamentais: "Messias" (Cristo) e "Filho do Homem", não se encontram aí. A primeira das três opiniões, à qual Herodes adere, é que Jesus é João Batista ressuscitado dentre os mortos. Esta é uma explicação cristológica que merece maior atenção que a que se lhe dá geralmente, sobretudo por causa de sua antiguidade e, também, por causa da curiosa crença que implica. A segunda opinião é que Jesus é Elias; a última, segundo a maioria dos manuscritos, é que Jesus "é um profeta como um dos antigos profetas" (de acordo com o texto ocidental: "é um dos profetas").

Comecemos pela primeira: Jesus é João Batista ressuscitado ilos mortos.

À primeira vista se poderia pensar que esta crença singular i ião é mais surpreendente que aquela que vê em Jesus, Elias. Porém, na realidade, a diferença é grande, pois Elias pertencia a um pas

cei, acima, p. 42 ss.

Page 48: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

54 Oscar Culltnann

sado remoto, e a crença em seu retorno pode ser facilmente explicada. João Batista, pelo contrário, segundo o Evangelho de Lucas, contava só alguns meses a mais que Jesus. A ideia de que Jesus fosse o Batista ressuscitado indica algumas pressuposições. Primeiramente, com respeito às relações entre Jesus e o Batista: é necessário que suas atividades respectivas tenham estado separadas no tempo e no espaço, pois aqueles que tinham a Jesus por João Batista ressuscitado não podiam tê-los visto atuar juntos. Portanto, enquanto João pregava e batizava, Jesus passou despercebido, pelo menos em relação a uma parte do povo. Isto concorda, ademais, com o que nos dizem os sinópticos: Jesus não começou sua atividade pública senão quando João Batista já estava encarcerado. Antes disso Jesus parece ter atuado à sombra do Batista, após ter recebido dele o batismo; no início, Jesus deve ter se passado por um de seus discípulos.

Em Mt 11.11 traduzo com Fr. Dibelius7 e os mais antigos Pais da Igreja,4 conforme a gramática: "Aquele que é o menor (Jesus, na qualidade de discípulo) é maior que ele (João) no reino dos céus."75

Segundo o Evangelho de João, houve um período em cujo decurso ambos trabalharam simultaneamente, embora cada um por seu lado. Tal lapso não deve ter tido longa duração, e a atividade de Jesus não deve ter chamado naquele momento maior atenção, como o prova justamente a crença popular de que Jesus seria o Batista ressuscitado. No tocante à relação cronológica entre o Batista e Jesus, a multidão não teve a impressão de simultaneidade, mas a de sucessão.

< Temos de admitir que a ideia popular que aqui se testemunha era compartilhada unicamente por quem não tinha vivido no ambiente imediato ao Batista nem a Jesus: pois nesse caso eles

n "Zwei Worte Jesu" (ZNTW, 11,1910, p. 190 ss.). 74 JERÓNIMO constata em seu Comentário de Mateus: "Multide Satvatore hoc inteliegi

volunt, quod quí minor est tempore, maior JÍÍ dignitate" (PL 26, 74 A). Estfi interpretação se encontra ainda em ORÍGENES (PG 17, 293 B), HILÁRIO (PL 9,981 A) e CRISÓSTOMO (PG 57, 422).

75 Cf. meu artigo citado na p. 47, nota 62.

Page 49: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO INOVO TESTAMENTO 55

teriam tido a ocasião de, ao menos uma vez, vê-los juntos (no momento do batismo de Jesus) - ou, pelo menos, de terem ouvido falar disso, o que faria com que não pudessem tomar Jesus pelo Batista ressuscitado.

Nosso texto levou Orígenes a uma observação que carece, certamente, de fundamento histórico; porém, que surge de uma uma reflexão. Fala de uma semelhança física entre Jesus e João (KOIVÒV irjç uopípfjç).76 Isto não se destaca necessariamente de nosso texto, porém, pode se dizer, sem vacilação, que em sua aparição traços comuns tenham se apresentado.77 Não há contradição entre isto e Mt 11.18 ss., onde o povo diz que João veio como asceta (jjrrte èaGícov, UTITE TTÍVCOV), enquanto que acerca de JJsus diziam que era comilão e beberrão. Tal constatação da diferença nas maneiras de viver prova que se fazia comparação entre eles; e que deviam, por conseguinte, ser comparáveis.

5.. A ideia de que Jesus fosse o Batista ressuscitado supõe também uma certa concepção popular da ressurreição que devia estar muito em voga entre o povo na época de Jesus; e deste ponto de vista igualmente convém deter-se um pouco no exame da passagem que nos ocupa. Segundo o que Paulo diz em 1 Co 15.35 ss., ressuscitar-se-á no fim dos tempos com um corpo espiritual (oíãuxt 7tvet)p.c(tiKÓv), não com um corpo carnal e terreno. A ideia popular que encontramos em Mc 6 representa a ressurreição como revificação do corpo carnal. Não se trata, pois, como em Paulo, da transformação de um corpo carnal em corpo espiritual.

Outro assunto está implicitamente esboçado por esta crença popular: a relação entre a ressurreição e a reencarnação. A ressurreição não pode ser compreendida aqui como a reencarnação da alma (de João) em outro corpo (o de Jesus). O emprego do verbo éyí]YepTca basta por si para excluir semelhante explicação, pois este verbo supõe sempre o despertar de um homem imerso no sono da morte, o retorno da alma e do corpo à vida.™ No entanto, há uma grande diferença entre esta ideia, de

"' ORÍGENES, In Ioan, VI, 30 (PG 14, 285). 11 Deve-se, sem dúvida, concluir daí que, contrariamente à opinião de LOHMEYER (Das

Evangelium des Markus, 1937, p. 116, nota 2), João também deve ter feito milagres. K Sobre a significação de èYEÍP&IV e a diferença com ÈivíctacOai, cf. E, L1CHTENSTEIN,

"Die ãlteste Kirchliche Glaubesformel" (Zeitschr. f. Kirchengesch. 63, 1950, p. 26 ss.).

Page 50: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

Oscar Cullrnann

uma ressurreição de João Batista, e a ressurreição de Jesus: João não teria ressuscitado para ser chamado a Deus. Não se trataria pois de uma àváaiacriç, mas somente de uma eyepmç. Menos ainda se trataria de translação de João ao céu depois de sua morte.

Tratar-se-ia, pois, de um retorno verdadeiro e milagroso de João com o corpo que tinha no momento de sua morte. Isto supõe que aqueles que criam nesta ressurreição jamais haviam visto João e Jesus juntos, nem tampouco a Jesus antes do começo de sua ativida-de pública. Deviam, com efeito, admitir que aparecera bruscamente sobre a terra, imediatamente após a morte do Batista ou, ao menos, muito pouco tempo depois. No fundo, nada teria mudado no que concerne a João, salvo o nome; sua vida terrena teria simplesmente continuado sob o nome de Jesus. Há, efetivãmente, exemplos de semelhante crença judaica no retorno milagroso de um profeta com o corpo que tinha no momento de sua morte.79

Nós podemos ainda tirar outra conclusão desta crença popular: os contemporâneos de Jesus se interessavam unicamente por sua atividade pública; sua vida anterior não lhes apresentava nenhum problema, sobretudo porque, para eles, esta se identificava com a do Batista.

Dando por assentado que João Batista havia sido considerado como o profeta e, portanto, que se havia visto em sua aparição o sinal do despertar escatológico da antiga profecia, identificar Jesus e João era, definitivamente, identificar Jesus com o profeta do fim dos tempos. O principal aqui é que este profeta, aparecido na pessoa de Jesus, não leva o nome de urn dos antigos profetas, mas o de um homem morto recentemente, em época já escatológica, e que havia ressuscitado quase em seguida.

1 Não é necessário deter-se longamente na segunda opinião corrente entre o povo de acordo com Mc 6.15, segundo a qual Jesus teria sido Ehas. Trata-se aqui, no fundo, da crença no retorno escatológico do profeta que prepara os caminhos de Iahweh.

Cf. STR.-B1LLERBECK, 1, p. 679.

&L

Page 51: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 57

Enfim, no que concerne à terceira opinião, estamos na presença de duas leituras diferentes do texto, e nos é necessário, antes de ludo, falar do problema da crítica dos textos. A maior parte dos manuscritos lê: "um profeta como um dos profetas" (TTpOípfJTriç ò>ç cíc, TfòV 7ipo(pr)TCÒv). Segundo esta leitura, esta opinião seria diferente das duas precedentes: quer somente dizer que a antiga profecia havia despertado outra vez. Isto é bem possível. Não obstante, e apesar de uma opinião geralmente admitida, nos vemos levados a crer que o texto ocidental (representado pelo manuscrito D, e alguns outros testemunhos) oferece a melhor leitura. Aí lemos: "É um dos profetas" (etç T-còv Trpo(prtTÔv). Jesus não seria então comparado, de maneira geral, com um dos antigos profetas, mas identificado com ele. Dito de outro modo, segundo o texto ocidental, a terceira opinião concorda com as outras duas: no fundo é a mesma. Não seria mais que uma variante da mesma crença popular. Trata-sc, nos três casos, do profeta do fim dos tempos: na primeira vez cie é designado como João Batista ressuscitado; na segunda, como Elias ressuscitado, e na terceira renuncia-se a dar-lhe um nome, já que como temos visto, este nome pode variar. Uma hora é Elias, outra Moisés outra Enoque ou ainda Jeremias que há de voltar.

O texto paralelo de Lc (9.8)8í) mostra que Lucas leu nosso relato sob a forma que lhe é dada na variante D de Mc 6.15, porém, é compreensível que uni copista tenha acrescentado, mais tarde, as palavras 7tpo(pTVTnç <*>Ç> dando assim à terceira opinião outro sentido: Jesus teria sido conhecido como um dos antigos profetas. Ele ignorava, sem dúvida, a crença outrora bem difundida no retorno do profeta. Veremos que, efe-tivamente, a ideia de se considerar a Jesus como o profeta do fim dos tempos desapareceu muito cedo da teologia eclesiástica. Este copista teria, pois, tentado tornar mais claro este texto, incompreensível para ele, sem dar-se conta de que lhe tirava, assim, seu sentido primitivo. A leitura D deveria, pois, ser preferida como lectio difficilior.

Esta maneira de ver é confirmada pela passagem já citada de Mc 8.28 onde, em um contexto completamente distinto, encontra-

m Lc 9.8: itpo(pf|Tr|Ç t»Ç TÔV àpxcácov àvéotr|.

Page 52: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

•58 Oscar Cullmann

mos relacionadas as mesmas três explicações populares da pessoa de Jesus: "Alguns dizem que és João Batista, outros, Elias, e outros "um dos profetas" (eíç %<òV Tpocpiytrôvv)

v A opinião consignada em Mc 6.14 ss. e 8.28 é ainda a que o povo expressa, segundo Mt 21.10, depois da entrada em Jerusalém: "é Jesus, o profeta (ó íipo(pfiTn,ç) de Nazaré da Galileia". Se recordarmos que Jesus acaba de ser aclamado como "o Filho de Davi", devemos, sem dúvida, admitir que aqui também, ao chamá-lo de "o profeta", o povo pensa no profeta do fim dos tempos, se bem que não fique excluído que se fale de Jesus como de um simples representante do género profético.

Os evangelhos sinópticos mostram, pois, que uma parte do povo considerava Jesus, durante sua vida, como o profeta esperado para o fim dos tempos. Este fato é tanto mais importante considerando-se que nem Mateus, nem Marcos, nem Lucas tenham se servido deste título para expressarem sua própria fé em Jesus. Eles não viram, pois, em Jesus o profeta, o Elias ressuscitado, antes, se limitaram a reproduzir esta opinião como sendo a de uma parte do povo. Seu testemunho a este respeito tem então muito mais valor.

É possível que esta crença popular tenha sido particularmente comum na Galileia, sobretudo se recordarmos que entre os vizinhos samaritanos, a esperança de um retorno do profeta estava muito viva. Neste caso, teríamos aí uma nova contribuição ao problema esboçado por E. Lohmeyer em seu livro "Galileia und Jerusalém" (aparecido em 1936). Já indicamos que a ideia de um "mestre escatológico", que Lohmeyer crê poder descobrir na cristologia galileana, deve ser identificada com a do profeta (cf. p. 13).

- Jesus considerou-se a si mesmo como o profeta escatológico? ^ É a João Batista que ele atribui este título, com a função que a ele

se relaciona: "se quereis admiti-lo, é ele aquele Elias que havia de vir" (Mt 11.14). A restrição: "se quereis admiti-lo", significa, sem dúvida, que o nome do profeta que volta - Elias ou outro dos antigos profetas - não tem grande importância. O essencial para Jesus é que, na pessoa de João, o profeta do fim dos tempos "já veio",c

Page 53: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 59

que eles "o trataram como quiseram" (Mt 17.12; Mc 9.13). Podemos, pois, afirmar que, segundo os sinópticos, Jesus não se considerou como o profeta esperado para o fim dos tempos; esta opinião não é atribuída senão a uma parte do povo.

-•• O Evangelho de João conduz ao mesmo resultado. Nele, também, só a multidão dá a Jesus o título de "profeta". É assim que aqueles que participaram do milagre da multiplicação dos pães exclamam: "Este é verdadeiramente o profeta que havia de vir ao mundo" (Jo 6.14). É claro que não se trata aqui de um profeta entre outros de Israel, mas do profeta esperado para o fim dos tempos: ó èp%óp.£VOÇ eíç tòv KÓ0Ux>v É, por outro lado, interessante constatar que a expressão ó èp%óp,evoç se encontra na pergunta feita pelo Batista (Mt 11.3). Parece, pois, verossímil que tenhamos aqui um termo técnico que designa o profeta escatológico, K H em hebraico. Aqui também é, portanto, o povo quem pronuncia esta confissão cristológica, ou antes "profetológica". Chegamos, pois, à conclusão seguinte: tanto segundo os sinópticos como segundo o Evangelho de João, uma parte do povo expressa sua fé em Jesus dando-lhe o título de "o profeta"; termo que recupera, aliás, tudo o que a esperança judaica encerrava. Temos que repetir aqui que o anúncio de Jesus acerca de seu próprio retorno sobre a terra é de certa forma prefigurado pela crença no retorno do profeta.81

Os três primeiros evangelistas não recorreram a este título para expressar sua própria fé em Jesus. Parece, por outro lado, que ele teve uma certa importância para o autor do Evangelho de João. Recordemos que este insiste muito sobre a recusa para si que o Batista fez do título de "profeta", de Elias ressuscitado; sem dúvida ele quer, com os demais títulos cristológicos, reservá-lo a Jesus. E assim que Nicodemus chama a Jesus de "o mestre vindo de Deus" (Jo 3.2). G. Bornkamm mostrou, aliás, como a figura do Paracleto tomou, no Evangelho de João, os traços essenciais do profeta que deve também "conduzir-nos a toda verdade", porém, de tal maneira que o precursor não é senão um com aquele que é

Cf. acima, p. 35.

Page 54: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

60 Oscar Cullmantt

encarregado da realização.82 É que para o Evangelho de João não há título messiânico algum que não encontre em Jesus Cristo seu cumprimento. É por isso, por outro lado, que ele põe tal cuidado em distinguir Jesus de uma figura como Moisés: se Jesus, enquanto oLogose o Cristo, é, ao mesmo tempo, o profeta, Moisés já não pode mais ser considerado como o profeta por excelência. Daí a recusa enérgica de ver em Moisés aquele que dá "o pão que vem do céu" (Jo 6.32; cf. 1.17).

A respeito dos demais escritos do Novo Testamento, já vimos que a primeira parte de Atos (isto é, aquela que contém principalmente as tradições judaico-cristãs) informa duas vezes (3.22 e 7.37) que Jesus é o profeta predito por Moisés (Dt 18.15); e sabemos que esta passagem importante do Antigo Testamento contribuiu imensamente para fundamentar a crença judaica no profeta do fim dos tempos. Na segunda parte do Livro de Atos, que trata da missão de Paulo, não encontramos em nenhuma parte, como tampouco achamos nas epístolas, Jesus identificado com o profeta.

Em 2 Ts 2.6 ss., nós encontramos, no entanto, a menção da atividade escatológica de um pregador do arrependimento; porém, não se trata de Jesus. Parece-nos que este KCCTÉXWv é o próprio apóstolo Paulo. Em nosso artigo: "Le caractere eschatologique du devoir missionaree et de la conscience apostolujue de saint Paul. Etude sttr le KOCZÉXWV de 2 Ts 2.6-7" (RHPR, 16, 1936, p. 210 ss.) tentamos mostrar que esta passagem, como outros textos do Novo Testamento, pressupõe que antes do fim Deus enviará um precursor que prepararáo fim do mundo. Porém, aqui nãoé só o povo de Israel o que deve estar preparado, mas o conjunto das nações. E este profeta escatológico enviado entre os pagãos é o apóstolo Paulo.Sí

A parte o Evangelho de João e a primeira parte (judaico-cristã) de Atos, em nenhum outro lugar Jesus é considerado como o profeta que no fim dos tempos deve preparar os caminhos de Deus. Esta explicação da pessoa e do papel de Jesus não durou muito e bem cedo

!-G. BORNKAMM, "Der Paraklet im Johaiinesevangelium" (FestschriftR. Bidtmann, 1949, p. 12 ss.).

SJ J. MUNCK se associa a nossa tese em sua recente obra: Pauhts und die Heihgeschichte, 1954, p. 28 ss.

Page 55: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLGGlA DO NOVO TESTAMENTO 61

caiu frente a outras explicações acerca do mistério escatológico. Veremos o porquê. Porém, antes precisamos falar de uma ramificação do cristianismo nascente cuja cristologia foi construída inteiramente sobre a noção de "profeta".

3. JESUS O "VERDADEIRO PROFETA", NA CONCEPÇÃO JTJDAICO-CRISTÃ TARDIA

Na história da solução do problema cristológico - e fora esta parte do povo que considerava Jesus como João regressado à vida, como Elias ressuscitado - só uma facção cristã viu verdadeiramente em Jesus o profeta por excelência: foi a do judeu-cristianis-mo. Sua desaparição assinala a extinção desta antiga concepção cristológica. Encontramo-la primeiro no Evangelho dos Hebreus, em uso - segundo sabemos - entre os judeu-cristãos. Infelizmente, não possuímos deste documento mais do que alguns fragmentos.84 A passagem conservada no Comentário de Isaías de São Jerónimo (extraída do fim do relato do batismo de Jesus)85 mostra que neste evangelho apócrifo a concepção cristológica fundamental era a de profeta. O Espírito diz aqui a Jesus: "Eu te esperei em todos os profetas, a fim de que tu viesses e que eu pousasse em ti". Sem dúvida, as palavras, dirigidas pelo Espírito a Jesus, se estendiam ainda mais neste evangelho.

No entanto, a lacuna que nosso conhecimento deste evangelho apresenta é preenchida por um antigo documento judeu-cris-tão, os Kerygmata Petrou, que nos foi conservado no romance pseudoclementino.86 Neste texto Jesus leva, primeiramente, o título

S4 Reunidos porE.KLOSTERMANN,i4/wci>7?/!a II (Kl. Texto n° 8,3a ed., 1929), p. 5 s. K;iCf. acima, p. 35, nota 17. 51• Cf. a tradução alemã de H. WAITZ(H, VEIL), em HENNECKE, Neutestamentliche

Apokryphen2 2*éd., 1924, p. 153 ss. e215ss. - a qual não pôde ainda tomar por base uma edição crítica do texto. (Porém, 3a ed. em prep.) Existe uma das Homilias, na coleção dos Griech. Christl. Schriftsteller. Die Pseudokleinentineii. 1. Homilien, ed. por B. REHM, 1953. Para os estudos relativos aos escritos pseudoclementinos, cf. H. WAITZ, Die PseudoKlemertúnen, Homilien und Rekognitionen, 1904; O. CULLMANN, Le problème litéraire et historique du rotnan psettdoclémetttin,

Page 56: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

62 Oscar Cullmann

de "verdadeiro profeta", ó àVn&ry; TCpo(pT)Triç; e toda a cristologia está orientada para este título. Porém, a antiga noção de Jesus como o profeta encontra aí um desenvolvimento novo, a saber: a concepção escatológica primitiva passa, mais ou menos, para segundo plano, para dar lugar a um elemento especulativo e gnóstico. É isto o que já indica o adjetivo "verdadeiro", àXr)6r|Ç, que acompanha constantemente o substantivo "profeta". Segundo a antiga crença, o profeta apareceria essencialmente para inaugurar o fim dos tempos e consumar, assim, a obra dos antigos profetas; aqui, ele é antes de tudo aquele que leva a sua consumação e perfeição a verdade anunciada por todos os profetas. Percebe-se aqui um certo parentesco com o Evangelho de João, que também apresenta o Cristo, antes de tudo, como o Logos, o portador da verdadeira revelação, e que mostra um interesse particular pelo título cristoló-gico de "profeta". Porém no Evangelho de João esta concepção se insere em uma cristologia autenticamente bíblica enquanto que com os Kerygmata Petrou nos encontramos na presença de uma especulação tipicamente gnóstica A obra inteira tem aliás um caráter °~nóstico bem acentuado 87

É falso considerar a teologia judaico-cristã e o gtiosticismo como duas doutrinas opostas entre as quais se teria desenvolvido a teologia da igreja antiga. Tem-se o costume de opor a cristologia judaico-cristã à cristologia gnóstica e docética. Na realidade, as fontes nos mostram que o mais antigo gnosticismo cristão, aquele cujas primeiras marcas achamos no Novo Testamento, tem vinculação judaico-cristã. As primeiras indicações precisas sobre o docetismo, que devemos a Inácio de Antioquia, não deixam lugar a dúvidas sobre a origem judaico-cristã desta heresia.

1930; H. J. SCHOEPS, Theologie und Geschichte des Judencliristentums, 1949 (sobre este último livro, cf. as resenhas críticas de G. BORNKAMM emZ^/rsc/u; / Kirchengesch. 1952-53, p. 196ss. edeBULTMANN,e/H Gnomon, 1954, p. 177ss.).

*7 H. J. SCHOEPS busca, é verdade, demonstrar que, contrariamente à nossa tese, não haveria aí gnosticismo. Porém, trata-se sem dúvida de uma simples questão tle palavras, pois Schoeps parece ter uma concepção demasiado estreita do gnosticismo. Na realidade, as recentes descobertas de Qumran proporcionam uma nova prova da existência de um gnosticismo judaico. Por outro lado, Schoeps revisou posteriormente sua opinião; cf. abaixo, p. 193, nota 315.

Page 57: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

C-RISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 63

Desde o primeiro capítulo os Kerygmata Petrou se ocupam do verdadeiro profeta. Compara-se o mundo, com seus pecados e erros, a uma casa cheia de fumaça. Aqueles que nela estão intentam em vão captar a verdade; porém, esta não pode entrar. Só o verdadeiro profeta pode abrir a porta e fazer entrar a verdade. Este profeta é o Cristo, que apareceu pela primeira vez no mundo na pessoa de Adão. Adão já é, pois, o verdadeiro profeta e como tal anuncia o mundo futuro. Em nosso capítulo sobre o Filho do Homem, veremos que os judeu-cristãos associaram assim a noção de profeta à de Filho do Homem.88 Desde a criação do mundo, o verdadeiro profeta corre os séculos trocando de nome e de aparência, encarnando-se sempre de novo: em Enoque, Noé, Abraão, Isaque, Jacó e Moisés. Este renovou a lei eterna que Adão já havia proclamado. Por concessão ao endurecimento de Israel, e a fim de evitar piores abusos, autorizou os sacrifícios. Porém, esta autorização não era senão provisória, já que o próprio Moisés anuncia um profeta futuro (Dt 18.15). Da mesma forma que nos demais textos judaicos em que se trata do "profeta", esta passagem de Deu-teronômio desempenha um grande papel. Porém, aqui se atribui ao verdadeiro profeta a missão particular de proibir os sacrifícios autorizados por Moisés. Este é um ponto ao qual os judeu-cristãos dão muita importância. Esta proibição é, pois, segundo eles, uma das funções essenciais do profeta.89

Na pessoa deste profeta futuro, o verdadeiro profeta encontra, afinal, o repouso, como no fragmento já citado do Evangelho dos Hebreus.90 Ele é o Cristo. Pela abolição dos sacrifícios ele realiza e corrige ao mesmo tempo a obra de Moisés. Uma linha direta conduz, pois, de Adão a Jesus, e esta linha é a do profeta, de quem Jesus é a encarnação perfeita.

íB Cf. abaixo, p. 195 s. S'J A questão é tratada um pouco difere LI temente - embora a orientação seja a mesma -

na Epístola de Barnabé. Nela o autor polemiza contra os sacrifícios judaicos, refe-rindo-se ao sentido verdadeiro dos antigos profetas. Estes já são pois "verdadeiros profetas", pela boca dos quais o Senhor fez conhecer sua vontade.

'"'Cf. acima, p. 35, nota 17.

Page 58: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

. 64 Oscar Cullmann

Segundo esta curiosa teoria judaico-cristã, uma segunda linha se desenvolve paralelamente, ao longo de toda a história, a do falso profeta. Considera-se assim o bem e o mal sob o ângulo da verdadeira e da falsa profecia. Vemos aqui até que ponto toda a soteriologia está subordinada à noção profética. A história inteira se desenvolve sob o signo de uma espécie de dualismo, simbolizado por pares antagónicos (croÇoyím), cujo primeiro membro, chamado também esquerda, representa a falsa profecia, enquanto que o segundo, chamado também direita, representa a verdadeira. Esta oposição é dirigida, em particular, contra a seita dos discípulos de João Batista, também combatida implicitamente no Evangelho de João. Esta comunidade, antes de sua fusão com os mandeus,91 deve ter representado, no fim do primeiro e começos do segundo século, uma concorrência particularmente perigosa para o cristianismo primitivo, e muito especialmente para o judeu-cristianismo.

Recordemos que os discípulos de João viam em seu mestre o profeta definitivo dos últimos tempos. Nas exposições da doutrina pseudoclementina, não se tem prestado suficiente atenção ao fato de que todo o sistema destes pares antagónicos é concebido em oposição a esta doutrina. Segundo as especulações judaico-cristãs, reaparecem sem cessar na história humana tais "syzygies"; nestes pares cada um dos membros encarna, por assim dizer, em estado puro, a verdadeira e a falsa profecia. A teoria gnóstica dos syzygies, que opõe os princípios do bem e do mal, é posta assim inteiramente a serviço da especulação acerca do "profeta". É assim que, no primeiro par, Adão, primeiro representante da verdadeira profecia, se opõe a Eva, princípio da falsa profecia; a Isaque, o verdadeiro profeta, se opõe Ismael, o falso profeta; ao verdadeiro profeta Jacó se opõe o falso profeta Esaú. Igualmente, Moisés aparece como o verdadeiro profeta frente a Aarão. Tudo isto para poder, finalmente, opor Jesus, o verdadeiro profeta por excelência, a João Batista, o falso profeta por excelência.

Vemos como neste escrito herético judaico-cristão a polémica contra os discípulos do Batista degenera em polémica contra o

Cf. acima, p. 47 s.

Page 59: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 65

próprio Batista. O quarto Evangelho combatia somente a quem tinha João Batista por Cristo ou por "profeta"; não combatia a pessoa de João; porém, desmentia em troca, pelas próprias palavras do Batista, a ideia errónea que alguns faziam dele. Assim, no curso da polémica contra os discípulos do Batista, o juízo acerca da pessoa de João Batista sofre um desenvolvimento: nos sinópticos ele é ainda considerado como o profeta; no quarto Evangelho, este título lhe é negado. Nos escritos pseudoclementinos ele aparece finalmente como o falso profeta. Estes mesmos escritos consideram a Elias, sem dúvida identificado com João Batista, como o representante da falsa profecia.92

Notar-se-á também que esta teoria judaico-cristã dos syzygies permite combater o argumento cronológico segundo o qual o Batista seria superior a Jesus por ser de maioridade. Encontramos marcas desta discussão já no Evangelho de João (cf. acima, p. 49 s.). Porém, enquanto este responde afirmando a preexistência de Jesus (daí sua prioridade absoluta), os autores dosKerygmata Petrou procedem de outro modo. Reconhecem sem mais a prioridade de João sobre Jesus, porém, reconhecem nesta mesma prioridade a prova de que se trata de um falso profeta: éque, a partir da segunda syzygie, sempre o primeiro membro do par representa a falsa profecia. Caim vem antes de Abel, Ismael antes de Isaque, Esaú antes de Jacó, Aarão antes de Moisés, João Batista antes do Filho do Homem; Paulo, o apóstolo entre os pagãos, antes de Pedro; o Anticristo antes do Cristo da parusia.!',

Esta doutrina judaico-cristã está, pois, inteiramente dominada pela ideia de "profeta", tanto em seu aspecto positivo como em seu aspecto polemico. O caráter escatológico inerente a esta ideia no judaísmo, como também no Novo Testamento, passa, é verdade, a segundo plano. No entanto, lidamos aqui com a única cristologia um pouco desenvolvida que descansa nesta antiga crença de

''•' Hom. II, 17, 1. Ele é, assim, posto no mesmo nível que os profetas cujos livros são conservados pelo Antigo Testamento, e que são igualmente rejeitados como os falsos profetas pelos Keiygmata Petrou.

11 Hom. II, 16-17; Rec. III, 61. Sobre a reconstituição da lista, cf. O. CULLMANN,Le pruhleme historique et litéraire du roman pseudo-clétnentin, 1930, p. 89.

Page 60: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

. 66 Oscar Cullmcmn

um retorno do profeta. É também, sem dúvida alguma, uma das mais antigas que podemos encontrar.

O porvir, no entanto, não pertence a esta cristologia, mas, às outras explicações da pessoa e da obra de Cristo. A solução "profe-tológica" dos Kerygmata Petrou desapareceu junto com o judeu-cristianismo. Ela não exerceu quase nenhuma influência no desenvolvimento dogmático do cristianismo. Por outro lado, exerceu uma poderosa influência sobre outra religião: o Islã, na qual o profeta ocupa também uma posição central.94

Veremos, ademais, que mesmo fazendo abstração das especulações gnósticas judaico-cristãs, a ideia de profeta escatológico é demasiado estreita para abarcar, em toda a sua riqueza, a pessoa e a obra de Cristo, e isto nos leva a nossa última questão.

4. "JESUS O PROFETA" COMO SOLUÇÃO DO PROBLEMA CRISTOLÓGICO DO NOVO TESTAMENTO

Que vantagens e que inconveniências apresenta a crença que acabamos de estudar quando se trata de estudar o caráter original e único da pessoa de Jesus, tal como ele nos aparece segundo o testemunho da fé primitiva?

As vantagens são incontestáveis. Por um lado, ela explica o caráter único da pessoa e da obra de Jesus, já que em sua pessoa trata-se, se não da aparição final do próprio Senhor, ao menos da aparição decisiva do profeta escatológico. Por outro lado, ela dá conta do caráter humano de Jesus: é um homem que os judeus esperavam como o profeta dos últimos tempos.

Se consideramos agora a missão deste profeta, será necessário convir que ela corresponde perfeitamente a todo um aspecto da obra de Jesus, e, em todo caso, que não contém nada que se oponha à essência e à finalidade desta obra, tal qual nô-la representam os evangelhos. Deste ponto de vista, a noção de profeta apresenta certas vantagens em comparação com a de Messias. Veremos, com

Cf. abaixo, p. 74 s.

Page 61: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

(_R]STOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO

efeito, que na época de Jesus, ao menos nos meios dirigentes do povo, se esperava que o Messias realizasse um programa político: a luta e a vitória contra os inimigos de Israel, a restauração de Jerusalém como capital de um reino puramente temporal etc; o que contradiz abertamente o papel que Jesus se auto-assinalava.

A função do profeta escatológico consiste acima de tudo, segundo os textos judaicos, em preparar por sua pregação o povo de Israel e o mundo para a vinda do Reino de Deus; e isto não à maneira dos profetas do Antigo Testamento, mas de um modo muito mais direto: como precursor imediato do advento deste Reino. Ele vem armado de uma autoridade escatológica que lhe é privativa. Seu chamado ao arrependimento é absoluto e exige uma decisão definitiva, o que dá à sua pregação um caráter final, absoluto, que nem mesmo a palavra dos antigos profetas possuía no mesmo grau. Segundo a forma em que se reage frente a este profeta, já se é julgado, segundo diz o Evangelho de João (3.18). Temos visto que este evangelho dá muita importância à cristologia do "profeta"; quando o èp%óu.evoç, o profeta que há de vir, toma a palavra, tra-ta-se de uma palavra final, da última oportunidade de salvação oferecida aos homens. Pois só sua palavra indica já a iminente chegada do Reino. Esta função corresponde plenamente à maneira em que Jesus compreendeu e viveu efetívamente sua missão terrena. A autoridade, a èE^rooía, com a qual Jesus anuncia Seu evangelho, não é a de um profeta qualquer, mas a do profeta por excelência: "Mas eu vos digo" (èyw ôè A,éyco ópív). O conteúdo de sua pregação correspondia, aliás, a esta autoridade escatológica: "Arre-pendei-vos porque o Reino dos Céus se aproxima". Tal é o ponto de partida de sua pregação: quer preparar os homens para a entrada no Reino que vem. O caráter escatológico de sua pregação é incontestável.

A noção de "profeta" explica, pois, perfeitamente a atividade de Jesus como pregador, assim como também a autoridade com a qual atua e fala.

Temos que assinalar ainda que ela se associa muito facilmente a outras noções cristológicas essenciais: à de Messias, no senti-

Page 62: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

•68 Oscar Cullmaiw

do que este também deve aparecer no fim dos tempos para preparar a vinda do Reino de Deus; à ideia joanina do Logos, que une a obra do profeta e sua pessoa identificando-os, por assim dizer: o próprio Jesus sendo o Verbo. Pode-se recordar a este respeito o começo da Epístola aos Hebreus, onde se expressa um pensamento análogo (embora o assunto não seja exatamente o mesmo que o do prólogo de João): "Depois de haver em outros tempos, de muitas maneiras e em diversas ocasiões, falado a nossos pais pelos profetas, Deus, nestes últimos tempos, nos tem falado pelo seu Filho". Aqui a ideia de profeta está ligada à de Filho de Deus. Já temos visto também que existe um elo direto entre a noção de profeta e a de servo, do Ebed Iahweh, sofredor, já que o sofrimento é parte integrante da missão do profeta escatológico.

Enfim, não podemos esquecer um fato sobre o qual já temos chamado a atenção:95 de todos os títulos atribuídos a Jesus pelo cristianismo primitivo, o de profeta dos últimos tempos é o único que permite, ao menos em princípio, falar de uma dupla vinda de Jesus sobre a terra, que autoriza, portanto, a que se aspire o seu retomo.

Estas vantagens são incontestáveis. Há, no entanto, graves inconvenientes em reduzir a explicação da pessoa e obra de Jesus àquela de profeta do fim dos tempos. Pode-se classificá-las em quatro grupos: 1) do ponto de vista da vida terrena, passada de Jesus; 2) do ponto de vista do Cristo presente, elevado à destra de Deus; 3) do ponto de vista do Cristo por vir, o Cristo da parusia e 4) do ponto de vista do Cristo preexistente.

Acabamos de ver que a ideia de profeta permite, em muitos sentidos, compreender perfeitamente a vida terrena de Jesus, e que nisto reside juáfamente sua vantagem. No entanto, mesmo deste ponto de vista, é insuficiente quando, com efeito, insiste demasiado vigorosamente sobre um só aspecto desta vida: sobre a ativida-de de Jesus como pregador escatológico, desequilibrando o papel que os evangelhos dão ao Cristo terreno. É certo que os textos judaicos nos falam de outras atividades do profeta: deve também

Cf. acima, p. 35 e 59 s.

Page 63: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO (&

fazer milagres, deve restabelecer as tribos de Israel, vencer as potências deste mundo e lutar contra o Anticristo.96 No entanto, não se trata aí da missão específica do profeta, mas antes, de elementos vindos de outra parte - talvez da noção de Messias - e transferidos ao profeta dos últimos tempos. Ora, a obra terrena de Jesus Cristo, tal qual a compreenderam os primeiros cristãos, não se limita à pregação escatológica; ela não encontra sua consumação senão na remissão dos pecados e, antes de tudo, no ato que coroa esta obra redentora: sua morte expiatória. É assim que, segundo o testemunho dos evangelhos, o próprio Jesus entendeu sua obra, e nesta perspectiva também a igreja nascente compreendeu Sua pregação.

É verdade que temos constatado um elo entre a pessoa do profeta e a do Servo de Deus. No entanto, o sofrimento e a morte, no sentido de uma substituição consciente e voluntária, não são especificamente parte da função do profeta escatológico. Para o profeta, o sofrimento não é mais do que uma consequência inevitável de sua pregação; ele não é, propriamente falando, sua missão, como o é no caso do Servo Sofredor. O profeta não é, em suma, mais do que o pregador que se levanta no fim dos tempos para chamar os homens ao arrependimento. Tudo o que concerne, ademais, à sua pessoa e obra desaparece frente a esta função essencial. Ora, na vida de Jesus é justamente o contrário: sua pregação e seu ensinamento decorrem inteiramente do fato dele ter consciência de que lhe é necessário sofrer e morrer por seu povo. Por isso, não é tanto a noção de profeta mas a de Ebed Iahweh que caracteriza essencialmente a vida terrena de Cristo, e isto - voltaremos a tocar nessa questão - aos olhos do próprio Jesus. Não é senão vinculando estreitamente a noção de profeta à de Ebed Iahweh que aquela pode, a rigor, explicar a vida terrena de Cristo. De outro modo ele não seria só insuficiente, mas ainda daria uma falsa imagem da pessoa e da obra de Jesus tal qual a descreve o Novo Testamento.

'"'Cf. acima, p. 43.

Page 64: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

Oscar Cuiimann

Porém, a insuficiência de uma cristologia centrada inteiramente sobre a noção de profeta se torna mais patente se tentamos explicar a obra presente e futura de Cristo. Não há lugar algum para uma função presente do profeta, pois a ideia de profeta não prevê um intervalo temporal entre sua atividade terrena, já escatológica, e seu retomo. Temos constatado, é verdade, que o profeta esperado pelos judeus da época de Jesus era considerado como já tendo vivido antes sobre a terra. Esta doutrina pode, pois, ter preparado os espíritos para a ideia de uma dupla vinda de Jesus. Porém, há uma diferença: segundo a crença judaica, a primeira vinda do profeta não tinha um caráter escatológico, enquanto que para a fé da igreja primitiva tratava-se, em ambos os casos, de uma aparição escatológica de Jesus. Segundo a esperança judaica, o Reino de Deus se estabeleceria com poder a partir do momento em que o profeta retornado à terra completasse seu chamado ao arrependimento. Não se prevê que ele deva seguir exercendo sua função posteriormente. Por esta razão, a noção de profeta não pode aplicar-se à obra do Cristo glorificado, àoKyrios que a igreja confessa. Ou seja, uma das funções escatológicas mais importantes para o Novo Testamento é estranha ao conceito de profeta.

Colocando-se no ponto de vista escatológico judaico de então pode-se e deve-se falar, a propósito do cristianismo, de um "adiamento daparusia". Há, com efeito, um verdadeiro adiamento da realização esperada; porém, sobre a base de uma fé em um cumprimento antecipado neste mundo que não está ainda liberto do pecado e da morte. A convicção de que "o Reino de Deus já veio até vós" (Mt 12.28), que "Satãcaiu do céu como um raio" (Lc 10.18), e que "os cegos vêem, os aleijados andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, e a boa nova é anunciada aos pobres" (Mt 11.5), é um elemento novo no evangelho que o distingue do judaísmo e até das formas mais elevadas do profetismo judaico. Desde que se considere o tempo presente nesta perspectiva, o processo escatológico admitido nesta época pelo judaísmo deve, necessariamente, ser modificado, porque aí se insere, então, uma época - por certo breve-de realização parcial.

Page 65: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 71

A discussão sobre a "escatologia consequente" deveria, pois, tratar do verdadeiro lugar do "adiamento da parusia"; deve ele ser considerado como um motivo teológico com alcance decisivo para o cristianismo pri-mitivo97 - (é o que pensam A. Schweitzer e seus discípulos, como também mais recentemente, R. Bultmann518) -ou não marca ele, antes, precisamente a fronteira que separa o judaísmo do evangelho de Jesus? A escatologia de Jesus não é nem "realizada" (Dodd) nem "somente futura" (A. Schweitzer). A tensão existe já no ensinamento do próprio Jesus. O adiamento da parusia na igreja nascente tem, quando muito, por conseqtíência uma insistência maior sobre o já realizado . As palavras já mencionadas dos evangelhos sinópticos provam que o próprio Jesus admitiu um tempo de realização já cumprido durante sua vida, sem deixar de esperar com intensidade a consumação final, muito próxima; porém, que chegaria somente depois de sua morte.100

A posição central que o Cristo presente e glorificado ocupa na fé da igreja nascente basta para mostrar que o título de profeta não contribui para uma solução satisfatória do problema cristoló-gico. Para o judaísmo tardio, o profeta esperado já viveu uma vez sobre a terra; porém, a consumação de sua missão escatológica, quando voltar, marcará o termo definitivo de sua ação. Não há, pois, lugar nesta concepção para uma atividade prolongada até o presente. Seu papel é exclusivamente preparatório, o que torna, de início, impossível uma prolongação de sua missão.

VI Não contestamos, no entanto, que a Igreja nascente tenha constatado um adiamento posterior da parusia. Porém, afirmamos que o esquema cronológico da história da salvação não provém desta postergação: existia desde o princípio. A Emescha-tologisierwig consiste em diminuição da tensão entre o presente e o futuro. E. GRÂSSER, Das Problem der Parusieverzõgertmg in deit synoptischen Evangelien und der Apostelgeschichte(BZ.NW, 22), 1957, tenta juntar todos os textos à sua tese segundo a qual a igreja nascente não só teria crido em uma presença então atual do porvir escatológico pelo fato da parusia não se ter produzido. Já refutamos esta tese em nosso artigo "Parusieverzógung und Urchristentum" (ThLZ, 83,1958, col. 1 ss).

s Cf. seu artigo em NTS, 1, 1954, p. 5 ss. '"Cf. a este respeito nossa discussão com F. BURI no artigo: "Das wahre durch die

ausgebliebene Parusie gestellte neutestamentliche Problem" (ThZ, 3, 1947, p. 177 ss. e 422 ss.).

""'Ver a este respeito: W. G. KÚMMEL, Verheissung und Erfiillung, 2a edição, 1953. Cf. igualmente abaixo, p. 303 s.

Page 66: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

.72 Oscar Ctdlmann

Também, não se pode, a partir da noção de profeta, entendei* tampouco a terceira fase, o período futuro e escatológico da obra de Jesus. Segundo a crença judaica, o papel do profeta acaba quando começa o Reino de Deus. A vinda do profeta é, por certo, objeto de esperança e ele é, inclusive, uma figura puramente escatológica. Porém, ele é esperado como precursor e não como executor da consumação, pois esta, por definição, não entra no âmbito de sua missão. Aqui aparece uma vez mais a dificuldade que se experimenta ao querer reduzir a este título a cristologia dos primeiros cristãos. Só os que esperavam o advento do Reino de Deus durante a vida de Jesus é que não tinham necessidade de considerar uma pro-longação de sua missão, e podiam contentaf-se em ver nele o profeta dos últimos tempos. Por outro lado, a fé cristã primitiva, tal qual está atestada por todos os escritos do Novo Testamento, parte da morte e ressurreição de Jesus e se dirige ao Cristo presente e àquele que há de voltar. Pode-se, ademais, demonstrar que o próprio Jesus contou com uma prolongação - muito breve sem dúvida - de sua obra de mediador antes de vir o fim dos tempos.'01

Se o título de "profeta do fim dos tempos" não pôde impor-se para explicar a pessoa e a obra de Jesus, deve-se isto, sem dúvida,

ALBERT SCHWEITZER emitiu, como se sabe, a opinião de que Jesus havia crido, antes de tudo, que o Reino de Deus viria durante sua vida e que só mais tarde pensou que o advento do Reino coincidiria com sua morte. É esta uma hipótese que deve ser levada em consideração e que tem exercido uma influência fecunda sobre os estudos neotestamentários. Porém, não é mais que uma hipótese e A. SCHWEITZER é um sábio demasiado sério para não ter-se dado conta disso. Em todo caso, hoje já nenhum especialista do Novo Testamento a defende sob a forma que ele lha deu; e ela foi pelo menos seriamente enfraquecida, em particular por W. G. KUMMEL, Verfteissung une! erfiilhmg, 2a ed., 1953. Porém, isto não impede os discípulos de Berna e de Basiléa de A. SCHWEITZER, os representantes da escatologia chamada "consequente" (entre os quais não se encontra nenhum especialista do Novo Testamento) de aderir a ela com singular dogmatismo, acusando de improbidade científica ("recurso a escapatórias") ou de tendências católicas àqueles que não admitem esta hipótese e admitem que Jesus tenha pensado que o Reino de Deus não viria senão depois de sua morte, mesmo se ele tivesse crido que o intervalo não fosse de longa duração. Cf. a este respeito F. BURI, "Das Problem der ausgebliebene Parusie" (Schweiz. Theol. Untschait, 1946, p. 97 ss.) e nossos artigos da ThZ e da ThLZ citados mais acima, p. 45 cf. Também abaixo, p. 270 s. e 303 s.

Page 67: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO _T3

a que não abrange a ação pós-pascal do Cristo "vivo". Ora, esta ação - voltaremos a isso - representa para a comunidade primitiva o acontecimento cristologico por excelência, o qual deu um impulso decisivo a toda a cristologia do Novo Testamento.

Enfim, não se pode relacionar diretamente à noção de profeta a preexistência do Cristo, da qual falam diferentes passagens do Novo Testamento. Quando muito, se poderia sustentar que o profeta já aparecera sobre a terra sob formas diferentes, e que isto pressupõe a existência de uma espécie de "protótipo" do profeta e, portanto, uma certa forma de preexistência. Porém, esta é profundamente diferente da que, no Novo Testamento, atribui-se a Jesus, onde se trata de uma existência eterna junto a Deus. Somente admi-tindo-se uma relação entre o Logos joanino, o "Verbo que r\o princípio estava com Deus", e o profeta - o qual é essencialmente a personificação do Verbo Divino - se poderia, rigorosamente, contemplar, com base nesta relação, a possibilidade de uma certa identificação entre o profeta e Jesus.

,-.••'*; 'ara concluir diremos, pois, quq a noção de profeta dod últimos tempos é demasiado estreita para dar conta da fé primitiva em Jesus Cristo. Esta noção não alcança plenamente mais que um aspecto da vida terrena de Jesus; necessita ser completada por outras noções mais centrais, como a de Servo de Deus. Por outro lado, ela não pode concordar com os títulos cristológicos que se relacionam ao Senhor presente, pois exclui a ideia de um intervalo entre a ressurreição e a parusia. É, por conseguinte, incompatível com a perspectiva a partir da qual o Novo Testamento inteiro considera o evento da salvação, isto é, a vinda, morte e ressurreição de Jesus como o ponto central, divisor do tempo. A teologia do "profeta" não pode acomodar-se a esta perspectiva, já que por sua própria natureza o profeta não pode desempenhar senão um papel preparatório. Se Jesus é só o profeta, então o evento decisivo da história ainda não se produziu; neste caso não há lugar para uma fé no Cristo-Kyrios atualmente presente. Pois, para o Novo Testamento, a fé no Cristo atualmente presente, como a fé em seu retorno, pressupõe a certeza de que a decisão soteriológica foi incluída

Page 68: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

7,4 Oscar Cuitmcmn

na pessoa do Jesus encarnado, mesmo quando a manifestação desta decisão seja ainda algo esperado.

Não é, pois, surpreendente que na cristologia do judeu-cristianismo, regida pela ideia de profeta, a morte de Cristo - ou seja, o acontecimento central da história da salvação - careça de grande importância teológica.

* * *

&' Temos visto que nem Jesus nem seus discípulos imediatos aplicaram a noção de profeta a Sua pessoa e a Sua obra. Trata-se antes de uma opinião popular sobre Jesus. Os elementos válidos que ela encerra foram retomados pelo Evangelho de João e pela Epístola aos Hebreus, para serem incorporados a outras concepções cristológicas. O único sistema cristológico inteiramente fundado sobre a crença no "profeta" é o dos judeu-cristãos, tal como o encontramos nos Kerygmata Petrou - portanto, em um ramo herético do cristianismo antigo. O futuro pertencia a outras soluções. No entanto, se reservava a esta cristologia o desempenhar, mais tarde, um papel histórico não já no cristianismo, mas, no Islã..02

Sabemos hoje que a religião muçulmana se constituiu sob a influência do judeu-cristianismo difundida nos países sírios. A figura do "profeta" revive aí sob uma forma nova. Há ainda, no entanto, muitas investigações por fazer a propósito dos elos intermediários que unem a religião do Islã ao judeu-cristianismo.

NaMogmática posterior, não encontramos vestígios da cristologia do "profeta", a não ser na ideia áemunus propheticum Christi. E ainda assim, sob uma forma bem diferente.

11,1 Cf. W. RUDOLPH, Die Abhãngigkeit des Korcms von Judentum und Christentuin, 1922; A. J. WENSINCK, "Muharnmed und die Prophetie" (Acío oííenífl/iíi II, 1924); TOR ANDRAE, "Der Ursprung des Islams und das Christentum" (Kyrkohistorisk Arsskrift, 1923-25); J. HOROVITZ, Qoranische Untersuchungen, 1926; W. HIRSCHBERG, Jiidische und christliche Lehren im vorund frultisla mischen Arabien, 1939; H. J. SCHOEPS, Theologie undGeschichtedes Judenscliristeiitums, 1949, p. 334 ss.

Page 69: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CAPÍTULO II

JESUS, O SERVO SOFREDOR DE DEUS

(Ebedlahweh, Jtccíç QeoíiJ

Com o título de Ebed Iahweh, chegamos ao centro da cristo-logia do Novo Testamento. No entanto, não se lhe concede geralmente o lugar a que teria direito. Assinalemos um primeiro fato importante: a explicação cristológica que ele implica remonta, como o emprego do título de "Filho do Homem", ao próprio Jesus. Por outro lado, é essencial observar que a ideia principal que há em sua base - a de substituição - constitui o princípio mesmo à luz do qual o Novo Testamento vê desenvolver-se toda a história da salvação. Sem a ideia de uma substituição progressiva (de uma minoria a uma multidão e depois finalmente de um indivíduo a uma minoria), é impossível compreender a noção neotestamentária da história que começou na criação. Ora, esta ideia de substituição encontra sua encarnação exemplar, em certo sentido, na pessoa do Servo Sofredor de Deus. "Servo de Deus" é um dos títulos mais antigos outorgados à pessoa e à obra de Jesus. Por razoes que investigaremos, desapareceu muito rápido.

A significação da figura do Ebed Iahweh no Antigo Testamento tem sido objeto de numerosos estudos'"3; em compensação, sua aplica-

^Cf. a este respeito H. H. ROWLEY, "The Servant of the Lord in theLiglit ofTliree Decades of Criticism". The servant of the Lord and the Other Essays on the OU! Testament, coleção de estudos, 2a ed„ 1954, pp. 1-58.

Page 70: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

76 Oscar Cullmcmn

ção a Jesus tem chamado muito menos a atenção. O estudo já antigo de A. Harnacktaj e o mais recente de E. Lohmeyer105 tratam a questão unicamente do ponto de vista da comunidade primitiva, sem averiguar se Jesus já se considerara ou não chamado a preencher a função deste ''Servo de Deus" de que fala o segundo Isaías. Só no curso destes últimos anos se reconheceu plenamente a importância desta questão para o Novo Testamento, tendo-se-lhe dado alguma consideração em monografias. À parte um estudo que nós mesmos consagramos a este problema,"*1

temos que citar, sobretudo, a obra de H. W. Wolff,"17 como também o artigo Jtoâç redigido por J. Jeremias no Theol. Wõrteibiich zuni Neuen Testamento

O problema esboçado pela designação de Jesus como Ebed é mais importante quanto mais nova luz possa projetar sobre a muito debatida questão da relação entre Jesus e o apóstolo Paulo.

Consagramos a este título os parágrafos seguintes: 1) Sua significação no judaísmo. 2) Jesus e o Ebed lahweh. 3) A fé da comunidade primitiva em Jesus considerado como Ebed lahweh (uaTç 0£oí>). 4) A doutrina do Ebed lahweh como solução do problema cristológico.

1. O "EBED IAHWEH" NO JUDAÍSMO

Como o profeta do fim dos tempos, o Ebed lahweh é uma figura essencialmente judaica. Perguntaremos, antes de tudo, o que

l(HA. HARNACK, "Die Bezeichnung Jesu ais Knecht Gottes und ihre Geschichte in der alten Kirche" (SB Bediner Akad. d. Wiss., 1926), p. 212 ss.

1I,SE. LOHMEYER, Gottesknecht und Davidsohn, 1945 (reimpr. 1953). l(lsO. CULLMANN, "Jesus, Serviteur de Dieu" (Dieu vivant, 16, 1950, p. 17 ss..). 1117 H. W. WOLFF, Jesajct 53 im Uivhristentum, 2a ed., 1950. mTtx\VbNT, tomo V, p. 636 ss. A obra de T. W. MANSON, The Servant-Messiah,

A Síitdy ofthe Public Ministry of Jesus, 1953, estuda as condições prévias da ideia de "Servo de Deus" na vida de Jesus e contém interessantes indicações a propósito de sua relação com a ideia que Jesus fazia de seu ministério; porém, não se ocupa especialmente de suas relações com o Ebed lahweh do Antigo Testamento. Um artigo de CHR. MAURER, "Kneclit Gottes uncl Sohn Gottes im Passionsbericht des Markusevangeliums" (ZThK 50, 1953, p. 1 ss.) tenta, mediante um estudo profundo, mostrar a influência de uma "cristologia do Servo" sobre Marcos.

Page 71: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

C.RJSTOLOGIA C)0 NOVO TESTAMENTO 77

ele significa no Antigo Testamento; em seguida, que papel desempenha no judaísmo tardio; limitando-nos, ademais, a formular tão-somente os problemas. Os textos do Antigo Testamento relativos a esta figura se encontram em Is 42.1-4; 49.1-7; 50.4-11; 52.13-53.12. As passagens que nos interessam particularmente, em razão de sua aplicação posterior a Cristo, são os primeiros versículos do cap. 42, assim como o célebre capítulo 53.

Eis aqui os versículos:

Is 42.1-3: "Eis aqui o meu servo, aquem sustenho; o meu escolhido, em quem a minha alma se compraz; pus sobre ele o meu Espírito, e ele promulgará o direito para os gentios. Não clamará, nem gritará, nem fará ouvir a sua voz na praça. Não esmagará a cana quebrada, nem apagará o pavio que fumega; em verdade promulgará o direito."

Estes versículos são importantes, por um lado, para compreendermos o batismo de Jesus e, por outro, porque o Evangelho de Mateus os cita (Mt 12.18 ss.).

Is. 52.13-53.12: "Eis que o meu servo procederá com prudência; será exaltado e elevado e será mui sublime. Como pasmaram muitos à vista dele, pois o seu aspecto estava mui desfigurado, mais do que o de qualquer outro, e a sua aparência, mais do que a de outros filhos dos homens. Assim, causará admiração às nações, e os reis fecharão a sua boca por causa dele; porque aquilo que não lhes foi anunciado verão e aquilo que não ouviram entenderão.

Quem creu em nossa pregação? E a quem foi revelado o braço do Senhor? Porque foi subindo como renovo perante ele, e como raiz de uma terra seca; não tinha aparência nem formosura; olhamos para ele, mas nenhuma beleza havia que agradasse. Era desprezado e o mais rejeitado entre os homens; homem de dores e que sabe o que é padecer; e, como um de quem os homens escondem o rosto, era desprezado, e dele não fizemos caso. Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus e oprimido. Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados. Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviara pelo caminho,

Page 72: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

— Oscar Cullmann

mas o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de todos nós. Ele foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca; como cordeiro foi levado ao matadouro; e, como ovelha muda perante os seus toso,uiadores, ele não abriu a boca. Por juízo opressor foi arrebatado, e de sua linhagem, quem dela cogitou? Porquanto foi cortado da terra dos viventes; por causa da transgressão do meu povo, ele foi ferido. Designaram-lhe a sepultura com os perversos, mas com o rico esteve na sua morte, posto que nunca fez injustiça, nem dolo algum se achou em sua boca. Todavia, ao Senhor agradou moê-lo, fazendo-o enfermar; quando der ele a sua aima como oferta pelo pecado, verá a sua posteridade e prolongará os seus dias; e a vontade do Senhor prosperará nas suas mãos. Ele verá o fruto do penoso trabalho de sua alma e ficará satisfeito; o meu Servo, o Justo, com o seu conhecimento, justificará a muitos, porque as iniquidades deles levará sobre si. Por isso, eu lhe darei muitos como a sua parte, e com os poderosos repartirá ele o despojo, porquanto derramou a sua alma na morte; foi contado com os transgressores; contudo, levou sobre si o pecado de muitos e pelos transgressores intercedeu.

As expressões de que se serve o profeta para descrever o Ebed são ao mesmo tempo precisas e misteriosas. Sabemos assim, de uma maneira bastante exata, em que consiste sua obra; temos até detalhes sobre a sua morte. E, no entanto, não sabemos quem é este "Servo do Senhor". O profeta não nos diz nem quando nem em que circunstâncias ele aparece. Segundo I. Engnell,109 o motivo principal destes cânticos seria a ideologia real, bastante valorizado pela escola de Upsala;E. Lohmeyer110 estabeleceu uma relação entre o título deEbedc o de "Filho de Davi", enquanto que A. Bentzen1'' tenta compreender esta figura pelas crenças relativas à sorte do profeta e, sobretudo, pelo Moisés ressuscitado - crenças às quais já nos referimos no capítulo precedente. A pergunta que

' T ENGNELL,Studiesin Divíne Kútgsfiip in the Ancient Near East, Upsala 1943, p. 48; id. "The Ebed Jahwe Songs and the Suffering Messiah in Deutero-Isaiah", no BulletinoftheJohn Ryland's Library,31,1948 (correção inglesa de um artigo: "Till fraagan om Ebed-Jahve-saangema", Svensk Exeget. Aarsbok, 1945).

110 Cf. acima, p. 76, nota 105. 111 A. BENTZEN, "Messias, Moses redivivus, Menschensohn" (AThANT, 17), 1948,

p. 42 ss. O autor desenvolve aqui sua tese em oposição a EngneU e à crítica que este faz de sua concepção.

Page 73: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 79

faz o eunuco em Atos 8.34 a propósito do cap. 53 de Isaías é ainda a que hoje em dia os exegetas do Antigo Testamento fazem. De quem fala o profeta assim? É de si mesmo ou de algum outro? O profeta podia, sem dúvida, supor que esta figura fosse conhecida aos seus leitores; porém, para nós jamais será possível resolver o enigma que esboçam estas passagens sem recorrermos a uma hipótese; e a ciência bíblica já se tem empenhado nisso muitas vezes.

Encontrar-se-ão indicações sobre o estado atual da questão nos estudos de C R. Nortli, The Suffering Servant in Deutero-Isaiah, 1948; H. H. Rowley, "The Suffering Servant and the Dovidic Messiah" Oudtestamentische StudiSn, tomo VIII, 1950, p.100 ss.); W. Zimrnerli, Art. i taíç, no ThWbNT, tomo V, p. 655 ss. Outras referências bibliográficas em O. Eissfeldt, Einlettung in das A. T., 3a ed., 1957, p. 399 s.

Podemos reduzir o problema a esta questão: o "Servo do Senhor" é um indivíduo ou uma coletividade? Não é fácil responder a esta pergunta. Há, nos cânticos consagrados ao Ebed Iahweh, passagens que parecem identificá-lo com todo Israel (Is 49.3): "E me disse: Tu és o meu servo, és Israel, por quem hei de ser glorificado". Em troca, há outros que não vêem nele mais que uma parte do povo, sem dúvida, "o remanescente". Outros, enfim, reduzem ainda mais esta coletividade para fazer do Ebed Iahweh um indivíduo.

Não temos de tratar aqui em detalhe este complexo assunto. No entanto, é essencial sublinhar de inicio que toda solução que leve em consideração só uma categoria de passagens, não pode ter valor. Ademais, as três explicações não se excluem de maneira nenhuma. Para o pensamento semítico, a assimilação de uma coletividade e de seus representantes individuais é coisa corrente.112

Na ideia de substituição - ensinamento teológico principal dos cânticos do "Servo" - não há nada de estranho em que a maioria

112 Cf. a este respeito C. R. NORTH, op. cit., p. 103 ss. - W. ROBINSON, "The Hebrew Conception of CorporatePersonality", (BZAW, 66,1936, p. 49 ss). - A. R. JONHNSON, The One and the Many in the hraelite Conception of God, 1942, p. 1 ss., e muito particularmente O. EISSFELDT, Der Gottes Kttecht bei Deuterojesaja (Jes. 40-55) im Licht der Israel. Anschauung von Gemeiítschaft und Individuam, 1933.

Page 74: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

.80 Oscar Cullinann

se reduza progressivamente e que uma minoria, sempre mais reduzida, assuma a missão que na origem deveria pertencer ao conjunto. Em nosso livro Christ et le temps,m tentamos demonstrar como a história da salvação se desenvolve do começo ao fim segundo o princípio da substituição, sob a forma de uma redução progressiva: da criação total passa-se à humanidade, da humanidade ao povo de Israel, do povo de Israel ao "remanescente"; do "remanescente" a um só homem, Jesus. Este desenvolvimento da história da salvação é prefigurado pelo Ebed Iahweh, que é, ao mesmo tempo, povo, "remanescente" e indivíduo. Esta complexidade é um elemento essencial da ideia de substituição expressa nestes cânticos - ideia que é, de certo modo, personificada pelo Ebed Iahweh. Vê-se assim a importância extraordinária desta figura para uma compreensão bíblica da história da salvação.

Segundo estes textos, o traço essencial desta substituição é o fato de que ela se opera no sofrimento. O Ebed é o Servo de Deus que sofre. Substitui-se, por seu sofrimento, um grande número de homens que deveriam sofrer ao invés dele. Outro traço essencial é que a aliança concluída por Deus com seu povo é restabelecida graças à obra substitutiva do Ebed. Este é, pois, o mediador desta aliança. Será, pois, necessário pensar nestes dois pontos quando tratarmos de Jesus como o Ebed Iahweh.

No judaísmo tardio,114 o problema principal posto pelo Ebed é o da relação entre sua figura e a do Messias. Aqui devemos cuidar para não darmos uma resposta que simplifique o problema, portanto, falseando-o. Era inevitável que estas duas noções se encontrassem no seio do judaísmo, já que um e outro - o Messias e o Ebed - receberam por missão o restabelecimento das relações rompidas e distorcidas entre Iahweh e seu povo, fazendo voltar, assim, este povo à vocação que lhe havia sido assinalada por divina eleição. Lohmeyer115 afirma também que a este respeito o Ebed

113P. 81 ss. 114Encontrar-se-á a documentação necessária em DRIVER-NEUBAUER, The 53rd

Chapter oflsaiah According totheJewish Interpreters, vol. MI, Oxford, 1876. 115 Op. Cf/., p. 98 ss.

Page 75: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 81

lahweh e o Messias - sobre terreno judeu - têm entre si relações mais fortes do que as que existem entre o Ebed lahweh e o "Filho do Homem", não sendo este último uma figura exclusivamente judaica. O Servo do Senhor deve ser o "ungido" do Espírito. Em todo caso, é certo que o Ebed lahweh e o Messias resultam de esperanças relacionadas. Segundo Engnell, este parentesco se explicaria pela relação comum com a ideologia real.

A LXX parece interpretar messianicamente Is 52.13-53.12, segundo o resultado de diversas observações filológicas.116

No livro de Enoque, como nos Apocalipses de Esdras e de Baru-que, o Messias é identificado indiretamente com o Ebed lahweh,ni

já que são atribuídas a ele certas características do Ebed. Porém, no judaísmo do tempo de Jesus, esta identificação ficou reduzida a algo puramente exterior. Pois a missão específica do Ebed- o sofrimento substitutivo - não se transferiu ao Messias. Se a passagem do Test. Benjamin 3.8 fosse verdadeiramente pré-cristã, teríamos talvez aí a ideia de um Messias saído da tribo de José-Efraim que deve morrer pelos ímpios.118 Seja como for, estamos aqui fora da grande corrente messiânica de então, para a qual a ideia de um "Messias sofredor" era estranha. No judaísmo, pode-se, no máximo, observar alguns ligeiros indícios de semelhante concepção.119

Temos visto que o sofrimento já era um dos traços característicos do profeta. Porém, não se tratava de um sofrimento substi-

116 Cf. K.F. EULER,Z)r<; Verkundigungvomleidenden Gottesknecht aus Jes. 53 in der griechischeii Bibel, 1934, p. 122 ss. Pode-se perguntar, no entanto, como fazer concordar esta opinião com a constatação feita por J. JEREMIAS em seu artigo rccrtç (cf. acima, p. 76, nota 108), segundo a qual o judaísmo helenístíco, diferentemente do judaísmo palestino, não conheceria mais que a interpretação coletiva dos cânticos do "Servo".

117 Cf. H. W. WOLFF, op. cit., p. 42 ss. Sobre Enoque, cf., também, JEREMIAS, ThWbNT, V, p. 686 s.

"8 Pronunciam-se, por exemplo, porsuaorigem pré-cristã: J. JEREMIAS, em ThWbNT, V. p. 685; G. H. DIX, "The Messiah bem Joseph" (JThSt, 27, 1926, p. 136): J. HÉRING, Le Royaume de Dieu et TO venue, 1937, p. 67, nota 1. Porérn, não é seguro que "a pregação celestial" se relacione a Is 53.

w Cf. a prudente discussão das passagens em questão por W. D. DAVIES, Paul and Rabinic Judaism, 1948, p. 274 ss.

Page 76: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

.82 Oscar Cullmcom

tutivo, voluntariamente assumido por ele para expiar os pecados de seu povo; mas, antes, algo considerado como sorte inevitável. Na medida em que o profeta dos últimos tempos pôde ser identificado com o Messias, se poderia, eventualmente, falar do "Messias sofredor". E como as diferentes concepções que havia no judaísmo para caracterizar a missão de um enviado especial de Deus se influenciaram reciprocamente, é possível que a ideia de um Messias sofredor tenha surgido aqui e ali no seio do judaísmo.

Temos de acrescentar que o culto do rei conduziu tanto à noção de Messias como à de Servo de Deus. Esta origem comum é reconhecida sem dúvida e com razão por H. H. Rowley.120 Ademais, este não crê na identificação destas figuras no seio do judaísmo e relega a uma época posterior, e pós-cristã, todas as especulações relativas a um Messias ben Efraim. Segundo ele, o culto do rei teria conduzido aqui a duas figuras paralelas, porém, não idênticas.

As duas noções se influenciaram reciprocamente de uma maneira ou de outra; esta é a parte de verdade que contém a tese exposta por J. Jeremias121 e recentemente defendida por M. Buber.122

H. Riesenfeld também aderiu aela,12-1 apoiando-se principalmente na explicação judaica de Génesis 22.

Esboça-se outro problema no tocante à relação entre o "Mestre de Justiça", dos textos recentemente descobertos em Qumran, e o Ebed lahweh. Já temos visto124 que este "Mestre de Justiça" deve

l-°Cf. op. cit. Oudtestamentische Studien, VIK, 1950), p. 133. 1-' J. JEREMIAS, "Erlõser und Erlõsung im Spatjudentum und Urchristentum"

(Deutsche Theologie, 2,1929, p. 106ss). Ele tenta, apoiando-se em algumas passagens da literatura judaica tardia, demonstrar que o judaísmo rabínico já conhecia, na época pré-cristã, a interpretação messiânica de Is 53 e, por conseguinte, também a ideia do Messias sofredor - Cf. também, da mesma forma: óurvòç xov 6eov -roxíç 9eoú (ZNTW, 34, 1935, p. 115 ss); "Zum ProblemderDeutung von Jes. 53 im palâstinischen Spatjudentum" (Aux sources de la Tradition cltrétietute, Mélanges Goguel, 1950, p. 113 ss). Enfim, no artigo jtaíç fteoO de ThWbNT, tomo V, ele buscou, novamente, apoiar sua tese com uma exegese aprofundada destes textos.

1-'M. BUBER, "Jesus und der Knecfit" (Festchr, G. vau der Leeuw), 1950, p. 71. m H. RIESENFELD, Jesus Transfigure 1947, p. 81 ss. 124Cf. acima, p. 40.

Page 77: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 83

também sofrer, porém, não é coisa segura que tenha sofrido o martírio. Como quer que seja, o sofrimento desempenha um papel muito importante nestes textos, sobretudo nos Salmos;125 e a tese de W. H. Brownlee,126 segundo a qual a função do Servo de Deus sofredor teria sido confiada à própria seita para ser realizada concretamente na pessoa do Mestre de Justiça, deve ser revada em conssderação.m

Brownlee, ademais, não identifica o Mestre com o Messias.128

No entanto, o sofrimento do Mestre de Justiça é, antes, da mesma natureza que o do profeta; é mais uma consequência de sua pregação que uma parte essencial de sua missão. Sem dúvida é verdade que em Israel todo sofrimento se reveste, em maior ou menor grau, de um caráter substitutivo.129 No entanto, há uma diferença essencial entre o sofrimento expiatório e voluntário áoEbed Iahweh e aquele imposto ao profeta pelo seu destino. João 10.17 s.

125 A. DUPONT-SOMMER, "Le livre des Hymnes découvert prés de la mer Morte" OQH), Semítica, VII, 1957, insiste em sua introdução (p. 16 ss.) e em suas notas especialmente sobre este ponto.

IMW. H. BROWNLEE, "The Servant of the Lord in the Qumran Scrolls" (Bailei, of the Americam School ofOrien.. Research, 1953, p. 8, ss: 1954, p. 33 ss.). Cf. ainda, do mesmo autor, "Messianic Motives of Qumran and the New Testament", NTS, 1956, p. 12 ss.

I27M. BURROWS, Les Manuscrits de la mer Morte, Paris, 1957, p. 306 s., mostra-se, é verdade, critico com respeito a esta tese. - Seguindo DUPONT-SOMMER, M. PHILONENKO sustenta que as pretensas Interpolações cristãs no Testamento dos Doze Patriarcas (Diplârne dei ' Ecole pratique des Hautes Etudes, Sect. des Sciences Religieuses, 1955) provêm, na realidade, de adeptos da seita de Qumran. Se esta tese fosse verificada, naturalmente teria importantes consequências para a questão que nos ocupa.

1211 Cf. o artigo citado mais acima, nota 126, NTS, 1956, p. 21 ss. 12'J É o que afirma em último lugar E. SCHWEIZER, "Erniedrigung und Erhõhung bei

Jesus und seinen Nachfolgern" (AThANT, 28), I955,passiin. -Para as consequências que ele tira daí, cf. abaixo p. 99 s. Igualmente J. A. SANDERS, "Suffering as Divine Discipline in the Old Testament and Post-Biblical Judaism" Colgate Rochester Divinity Schooi(Bulletin, 28,1955), por um estudo penetrante dos textos põe em evidência o caráter expiatório que reveste, em Israel, todo sofrimento. Ver também ED. LOHSE, Mãrtyrer und Gottesknecht. Unterstichung zur urchristliclien Verkundiguiig vom SiihnetodJesu Christi, 1955, que sublinha, por outro lado e com razão (p. 110), que este aspecto expiatório atribuído de uma maneira geral ao sofrimento nãoequivalejamaisaum perdão definitivo. Igualmente, o judaísmo ignora a ideia segundo a qual Deus mesmo poderia encarregar-se dos pecados humanos.

Page 78: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

'84 Oscar Cuiimann

opõe a morte de Jesus à dos demais profetas e, sobretudo, ao destino dos chefes dos zelotes, que são, sem dúvida, os "ladrões" e "roubadores" de que se fala no mesmo capítulo (10.8), que não poupam a vida de seus partidários (10.12). Enquanto que ao bom pastor que dá a vida por suas ovelhas, ninguém lhe tira a vida; mas ele a dá voluntariamente (10.18).130

Mesmo que textos claros do judaísmo da época de Jesus, os de Qumran por exemplo, atestassem a ideia de um redentor escatológico que assumiria conscientemente o papel de Ebed Iahweh, não se trataria, evidentemente, senão de uma crença periférica, pois a ideia de que o Messias deva sofrer é estranha à crença messiânica oficial. O Targum de Is 53, estudado não somente por J.Jeremias mas também porPHumbert,m G. Kittell,32 P. Seidelin,,13

e por H. Hegermann,11'4 prova, em todo caso, que a ideia de um Messias sofredor era dificilmente aceitável para os rabinos. É verdade que o autor deste Targum identifica o Ebed Iahweh de Is 53 com o Messias; porém, com a ajuda de uma exegese muito curiosa e totalmente arbitrária, elimina tudo o que se relaciona ao sofrimento do Ebed, e dá assim ao texto uma interpretação contrária ao seu verdadeiro sentido.

Citemos somente alguns exemplos desta singular interpretação: Lemos em Is 53.2: "Não havia nem beleza nem esplendor para atra

ir nossos olhares e seu aspecto não tinha nada para agradar-nos". O Targum explica esta passagem da maneira seguinte: "O aspecto do Ebed não é banal, e o temor que inspira não tem nada de ordinário; seu esplendor é um esplendor sagrado. Quem o olha, olha-o com respeito." É claro que o rabino faz o texto dizer aqui exatamente o contrário do que

n"Cf. a respeito O.CULLMANN, "La significationdes textes de Qumran..." (Positions luthêriennes. No. 4, 1956, p.5 ss) e Dieu et César, 1956, p.25.

131 P HUMBERT, "Lemessie tÍansleTargoumdesProphètes"(/?7VifVí, 43,191 l,p. 5 ss,). 152G. KITTEL, ''Jesu Worte iiber sein Sterben" (Deutsche Theologie,9, 1936, p. 177). 13:1 P. SEIDELIN, "Der Ebed Yahve und die Messiasgestalt iin Jesajatargum" (ZNTW,

35, 1936, p. 197 ss.). 1ÍJH. HEGERMANN, Jesajet 53 in Hexapla, Targum und Peschitta, 1954 (chega,

assim como JEREMIAS, a conclusões diferentes das nossas).

Page 79: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 85

na realidade diz - e isto com a única intenção de descartar o sofrimento da pessoa do Ebed, identificado com o Messias.

Em Is 53.3 o profeta diz: "Desprezado e abandonado pelos homens, homem de dor e habituado ao sofrimento, semelhante àquele de quem se desvia o olhar, o temos desdenhado, e não fizemos caso algum dele." Eis aqui a interpretação rabínica: "Embora ele seja objeto de desprezo para os povos, porá, no entanto, fim a todos os impérios."' Serão debilitados e sumirão no luto, como um homem de dor habituado ao sofrimento, como se a face de Deus se houvesse afastado deles: E assim que somos desprezados e expostos ao opróbrio". De uma maneira absolutamente arbitrária o exegeta muda simplesmente o sujeito da frase. Enquanto o texto diz que o Ebed é desprezado o rabino o faz dizer que nós é que somos desprezados. Enquanto o texto diz que nós afastamos dele o rosto porque o desprezamos o rabino interpreta este versículo como se Deus afastasse seu rosto de nós.-Ele emprega do começo ao fim esta curiosa exegese Os exemplos citados bastam no entanto para mostrar que seu fim único é aplicar ao Messias o cap 53 de Isaías relativo ao Ebed luhweh porém desooiando o Servo de Deus de seu caráter essencial o sofrimento substitutivo Segundo a opinião dos rabinos isto é com efeito incompatível com a verdadeira missão do Messias

Seria naturalmente possível que este Targum, sob sua forma atual, tivesse sido retocado contra a identificação cristã de Jesus com o Ebed Iahweh.n(l A isto se poderia objetar que não se pode encontrar neste texto nenhuma marca certa de polémica anticristã; e que esta interpretação de Is 53 não dá a impressão de ter sido escrita para combater uma

1,5 P. SEIDELIN, op. cit., p. 207, traduz, baseando-se em outra leitura (p. 211): "Épor isso que a gloria de todos os impérios chegará a ser objeto de desprezo e desaparecerá". JEREMIAS admite aqui (ThWbNT, V,p. 692 s.) indício de uma interpretação mais antiga, que mais tarde, na segunda leitura adotada por SEIDELIN, teria sido aplicada aos impérios. Porém, mesmo que se aceite a leitura mais frequentemente admitida, segundo a qual o "desprezo" se aplica ao Messias, não é de nenhum modo forçoso pensar que havia ali um indício da concepção de um Messias sofredor. Igualmente a segunda passagem (Tg. de Isaías 53.12): "entregou sua alma à morte" não deve ser necessariamente interpretada no sentido da morte do Messias, como o próprio JEREMIAS o reconhece.

IMÉ o que sublinha fortemente J. JEREMIAS em seu artigo publicado nos Mélanges Goguel (cf. acima, p. 82, nota 121). Cf. igualmente ThWbNT, V. p. 693, Do mesmo modo, antes dele, G. DALMAN, Jesus-Jeshtta, 1922, p. 156 (opinião diferente id.. Der leidenderi und der sterbende Messias der Synagoge iin ersten tiachchristHcheit Jahrtausend, 1888, p. 43 ss.). Cf. igualmente H. HEGERMANN, op. cit., p. 121.

Page 80: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

86 Oscar Citllmaim

opinião contrária. Parece, antes, que o fim visado pelo rabino tenha sido a utilização messiânica positiva deste texto. Segundo J. Jeremias, se teria reorganizado o texto original paradar-lhe um sentido anticristão; porém, não existe prova alguma disso. Enfim, outro fato do qual teremos ainda que falar deve ser considerado: no seio do cristianismo primitivo, a explicação da pessoa e da obra de Cristo por Is 53 foi de curta duração, de sorte que a existência de uma polémica a este respeito é pouco provável.

Em conclusão, o judaísmo palestino oficial na época de Jesus não havia incorporado à sua noção de Messias a ideia de um necessário sofrimento expiatório; talvez existissem, à sombra do judaísmo oficial, meios ou indivíduos para quem esta ideia não estivesse excluída, porém, não se pode demonstrar este fato como conhecimento certo. Os textos recentemente descobertos em Qumran, sobretudo os Salmos, que insistem sobre a ideia de sofrimento, não atestam até agora, exceto indiretamente, a ideia de um Messias que deveria sofrer; pois, segundo os documentos publicados até aqui, quem sofre é antes o profeta e não o Ebed, que aceita voluntariamente o sofrimento expiatório substitutivo. A possibilidade de estabelecer um elo entre o profeta sofredor e o Servo de Deus sofredor não é, no entanto, contestável.

2. JESUS E O "EBED IAHWEH"

Como a principal função do "Servo de Deus" reside em seu sofrimento e sua morte substitutiva nos perguntaremos, antes de tudo, de forma geral, que lugar tem o sofrimento e a morte na mensagem de Jesus. Buscaremos em seguida descobrir se Jesus considerou que sua missão consistia precisamente em realizar a obra do Ebed Iahweh tal qual ela é descrita pelo profeta. Reuniremos primeiramente as palavras de Jesus que tratam de sua morte, sem referência direta a Is 53, e, a seguir, reuniremos aquelas que fazem alusão ao Ebed Iahweh.

Jesus considerou seu sofrimento e sua morte como parte integrante da missão que devia desempenhar na execução do plano divino da salvação? A maior parte dos representantes do "libera-

Page 81: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 87

lismo1' teológico costuma responder, a priori, de uma maneira negativa a esta questão: o próprio Jesus não teria atribuído a sua morte nenhum valor expiatório. Na realidade, esta ideia teria sido introduzida pelo apóstolo Paulo.

R. Bultmann crê poder, em seu Theologie des Neuen Testaments,w

resolver esta questão em uma frase: "Pode-se duvidar que estas (as previsões de sofrimentos) não sejam todas vaticinia e,x eventu?" No entanto, ele não poderia certamente negar o fato incontestável que a cristologia do Ebed, baseada na ideia de sofrimento expiatório, não era muito divulgada na igreja nascente.

É verdade que Jesus não pôs sua própria pessoa, e em particular seus sofrimentos e sua morte, no centro de sua pregação do Reino de Deus, como o apóstolo Paulo logo haveria de fazê-lo. Porém, Jesus se sentia mais chamado, durante sua carreira terrena, a viver sua obra expiatória que a ensiná-la. É por isso que não se limitou a pregar o perdão dos pecados por Deus: senão que ao curar os enfermos, também outorgou efetivamente este perdão: "teus pecados estão perdoados". Isto tem uma importância capital para o problema da relação entre Jesus e Paulo. Já segundo os sinópticos, o perdão dos pecados está ligado à pessoa de Jesus, pois que é ele mesmo quem perdoa: é esta uma afirmação cuja historicidade não poderia ser posta em dúvida. Porém, então, há que se perguntar: como Jesus podia atribuir-se tais plenos poderes (é^oixsía)? Se tomarmos esta pergunta a sério, deveremos postular nele a consciência de ter sido enviado ao mundo para realizar precisamente esta missão.

Paralelamente a esta reflexão prévia, numerosas palavras de Jesus apresentam, sem equívoco possível, seu sofrimento e sua morte como parte integrante da obra que deve realizar para cumprir o plano divino de salvação.

Há, evidentemente, um método fácil - demasiado fácil - para nos livrarmos das implicações destes textos: afirma-seapriorisuainautentí-

Ia edição, 1953, p.30

Page 82: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

• 88 Oscar Cullmann

cidade e se \hes considera, a todos, cOTVIo criações da comunidade primitiva que, desta maneira, quis fazer concordar o ensinamento de Jesus com o do apóstolo Paulo. A questão de sabermos se este método, demasiado arbitrário, é legítimo, deveria ser esboçada por razões objetivas e científicas antes que apologéticas.

Comecemos por indicar rapidamente as principais declarações de Jesus que entram aqui em consideração.

Nos evangelhos sinópticos, trata-se primeiramente do logion relativo ao jejum, em Mc 2.18 ss. O versículo 20 ("dias virão, contudo, em que lhes será tirado o noivo")138 supõe, da parte de Jesus, a convicção de que ele deve morrer. Porém, se sua presença é tão importante que ela pode dispensar os discípulos da obrigação do jejum, é claro que sob a imagem do esposo Jesus se designa aqui como o enviado de Deus. Sua afirmação de que será tirado pela morte supõe que para ele esta morte faz parte de sua missão messiânica. Objetar-se-á que se trata aqui de um vaticinium ex eventu destinado a explicar por que a comunidade jejuava enquanto que os discípulos de Jesus não o faziam.139 Porém, se responderá que uma comunidade com o sentimento de viver não no "tempo de luto", mas antes, no "tempo da salvação" teria dificilmente inventado o versículo 20.140

Em Lc 13.31 ss.,Jesus coloca-seasi mesmo na categoria humana dos profetas: "Não convém que o profeta pereça fora de Jeru-

E. LOHMEYER, Das Evangeliumdes Markus, 1937, p. 60, contempla a possibilidade de uma alusão a Is 53.8: aipetoa àitó xfiç y-ty; TI Çcon, ocú-roú. Cf. E. KLOSTERMANN, "Das Markus Evangelium" (HdbNT), 3a ed., 1936, ad loc.\ E. LOHMEYER, Das Evangelium des Markus, 1937, adloc; cf. igualmente R. BULTMANN, Die Geschichtedersynoptischen Tradition, 2a ed., 1931, p. 17 s. ' É o que sublinha igualmente H. J. EBELING, "Die Fastenfrag Mc 2.18-22" (ThStKr, 1937-38, p. 387 ss.). Para ele, é verdade, o "tempo de luto e de jejum" não se relaciona ao tempo da comunidade (que não teria jejuado) senão 30 das "dores messiânicas" futuras, e nega a Jesus a paternidade de todo este discurso. Ao contrário, para W. G. KUMMEL, Verheissung und ErfuUung, 2a ed., 1953, p. 69 s,, a oposição de Mc 2.19 e 20 não pode relacionar-se senão ao tempo que precede e segue à morte e ressurreição; de sorte que ainda se o fim desta passagem pôde desenvolver-se pelas ideias e crenças da comunidade, conta com "uma separação mais ou menos longa de Jesus e seus discípulos depois de Sua morte".

Page 83: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 89

salém." Porém, é possível que o verbo TÊXEIO^OI, empregado no versículo 32, indique uma missão divina particular que Jesus se atribui e que se realizaem sua morte. Com efeito, em Lc 12.50 a mesma palavra se aplica a sua morte, qualificada de "batismo" (como em Mc 10.38: "podeis ser batizados com o batismo com que devo ser balizado?"). Aqui a morte não aparece somente como o epílogo mas como parte integrante da obra de Jesus.

No logion sobre o sinal de Jonas (Mt 12.39 s.),141 Jesus anuncia não só sua morte, como também (no caso do vers. 40 ser autêntico) sua ressurreição, quando diz: "Assim como Jonas esteve três dias e três noites no ventre de um monstro marinho, assim também o Filho do Homem estará três dias e três noites no seio da terra." Há aqui, é verdade, razões bastante sérias para não considerar como autêntica senão a primeira parte do logion: "Não será dado a esta geração pecadora e adúltera outro sinal que o de Jonas" (vers. 39). Segundo esta explicação, o "sinal de Jonas" remeteria à pregação do arrependimento feita pelo profeta.142

Não é, contudo, fácil explicar a inserção posterior do vers. 40, pois se os cristãos quisessem introduzir subsequentemente no texto uma alusão à morte e à ressurreição de Jesus, a que está em questão não é adequada. Os "três dias e três noites" de que se fala não concordam com os relatos da ressurreição, segundo os quais o corpo não ficou mais do que duas noites no túmulo. Esta consideração poderia ser invocada em favor da autenticidade de todo o logion. Neste caso, não teria que se atribuir aos "três dias e três noites" uma precisão cronológica; esta expressão

1 Cf. a este respeito o estudo profundo de P. SEIDELIN, "Das Jonaszeiclien" (Studia Theologica, 5, 1951, p. 119 ss.).

' Assim, E. KLOSTERMANN, Das MaithãussEvangeliium, 2" ae,, ,927, ad loc; ;f. igualmente W. G. KfJMMEL, Verheissung und Erfiillung, 2a ed., 1953, p. 61 s. Outra solução em J. JEREMIAS, Art. 'IÍOVCÍÇ (ThWbNT, III, p. 412 s.). Pela autenticidade do fragmento transmitido por Mateus (v. 40) se pronunciam entre outros: A. SCHLAÍTTEY\,Der Evangelist Matthíius, 2a éd., 1933,adloc.; J. SCHNIEW1ND, "Das Evangelium nach Matthaus" (NTD, 1937), ad loc; M. J. LAGRANGE, Evangile selon saint Matthieu, 1941, ad loc; W. MICHAELIS, Das Evangelium nach Matthaus, II, 1949, ad loc. - Cf. também A. T. NIKOLAINEN, Der Auferstehungsglaitbe in der Bibel und ihrer Umwelt, II, 1946, p. 49.

Page 84: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

90 Oscar Cullmann

designaria simplesmente um tempo breve. No entanto, a questão fica aberta.4

Temos que mencionar ainda três passagens nas quais Jesus prediz sua própria morte. Segundo os sinópticos - que talvez tenham dado a elas um certo esquematismo - elas seguem a confissão de fépetrinaem Cesaréia de Filipe: Mc 8.31; 9.31 e 10.33. No primeiro destes textos, Jesus corrige em dois pontos o que se chama correntemente a "confissão de Pedro": I o - troca em sua resposta o título que Pedro lhe deu pelo título de "oíòç toíj ãvcptórcou (veremos mais adiante que isto corresponde a uma tendência que se pode observar em Jesus); 2o - acrescenta que o Filho do Homem que, segundo Daniel, virá sobre as nuvens do céu, deverá, primeiro, sofrer muito. Se se admite que foi a igreja quem colocou estas previsões na boca de Jesus, deve-se também considerar como inautêntico o fim do relato, cuja invenção é muito pouco provável, haja vista a severa palavra que dirige a Pedro: "Para trás de mim, Satanás!"144

Os outros textos que têm a ver com isto são Mc 12.7 - a parábola dos lavradores maus: "Eis aqui o herdeiro; venham, matemo-lo!" - e Mc 14.8 - a palavra de Jesus na ocasião da unção em Betâ-nia: "Ela de antemão ungiu meu corpo para a sepultura". Estes são, é verdade, dois logia cuja autenticidade alguns contestam.145

Uma só vez encontramos em uma palavra de Jesus uma citação direta de Is 53. Está em Lc 22.37: "Pois vos digo: é essencial que esta palavra que está escrita se cumpra em mim: 'Ele foi con-

u 5 Compreender-se-ia, ademais, que em razão deste desacordo com os relatos dos evangelhos se tivesse mais tarde eliminado este verso 40. LAGRANGE supõe que esta reflexão levou JUSTINO a suprimir este versículo da citação que faz desta passagem. (Dial. c. Tryph. Iud., 107, I).

,J4 Com razão E. SCHWEIZER, Erniedrigung und Erhóhiutg, 1955, p. 16, sublinha a unidade do relato. Por esta razão não vê possibilidade de considerar a profecia da paixão como uma adição e recusa, também, a hipótese segundo a qual toda a cena seria desprovida de valor histórico.

u5 Sobre Mc 12.1 ss. verW. G. KUMMEL, "Das Gleichnis vondenbõsenWeingartnern" Mélanges M. Goguel, 1950, p. 120 ss.) e abaixo, p. 376 s.

Page 85: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 91

tado com os malfeitores'. E o que a mim se refere está a ponto de ocorrer." Esta é uma citação do texto hebraico de Is 53.12 e não da LXX. A autenticidade desta palavra também tem sido contestada. Que falte em Marcos e em Mateus não é razão suficiente para recusá-la. Por outro lado, como H. W. Wolff146 o assinala com razão, o próprio evangelista em nenhuma parte relaciona os sofrimentos de Cristo com Is 53.

Ao lado desta citação única há, no entanto, toda uma série de passagens em que a alusão a Is 52-53 não pode ser posta em dúvida. Encontramo-la muito particularmente nas palavras da instituição da Ceia,147 e permitem supor que na maior parte dos logia em que Jesus fala de uma maneira geral da necessidade de sua morte, Is 53 está por trás. Não temos necessidade de comparar aqui as quatro variantes em que as palavras da instituição da ceia nos foram transmitidas (Mc 14.24, Mt 26.28, Lc 22.20, 1 Co 11.24). Em detalhe, as diferenças são apreciáveis; porém, os quatro textos concordam sobre o ponto mais importante: no momento em que Jesus distribui o pão e o vinho, anuncia que derramará seu sangue por muitos homens. O fato de que os diferentes relatos não coincidam sobre os demais pontos, dá ainda maior peso a este acordo fundamental.

É quase impossível contestar a tradição unânime segundo a qual Jesus teria anunciado nesse instante sua morte expiatória "por muitos", e teria feito o ato sacramental acompanhar esta predição. As expressões íutèp pipxòv, -úítTp (TtEpi) )QXKJWV sãsãomuns aoa quatro relatos (salvo o manuscrito D em Lc). Todos contêm também a palavra ôiaBriKTi. Agora, é justamente isto o que importa para a questão que nos ocupa, pois temos visto que as ideias de substituição e de aliança são os dois aspectos principais da obra

H. W. WOLFF, Jesaja 53 i/n Urchristentwn, p. 57. Por uma via independente em relação à nossa, E. LOHSE, Mãrtyrer und Gottesknecht, 1955, p. 122 ss., chega a conclusões análogas, embora diferentes quanto aos detalhes. Por outro lado, a relação entre as palavras, a instituição e a ideia do Ebed é negada porF. J. LEENHARDT, Le sacrement de la Saint-Cène, 1948, p. 27, nota 1 e por E. SCHWEIZER, "Abendmahl" em RGG, 3a éd., I, p. 13 ss.

Page 86: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

9.2 Oscar Culhncuw

que, segundo o Antigo Testamento, o Ebed Iahweh deve realizar. A preposição "por", "em lugar de", que é essencial para a ideia de substituição, desempenha um papel muito importante em Is 53. Por outro lado, Is 42.6 e 49.8 atribuem ao Ebed Iahweh a missão de restabelecer a aliança entre Deus e seu povo148 e, na realidade, segundo o contexto, o Ebed é a própria berit em pessoa.149

No momento em que Jesus tomava sua última ceia com seus discípulos, anunciava, pois, o que realizaria no dia seguinte na cruz.150 Esta palavra projeta assim uma luz sobre os demais logia que temos citado. Veremos que o título de Ebed Iahweh, aplicado a Jesus, não estava mais em uso na igreja primitiva quando os evangelhos sinópticos foram redigidos. Estes deram lugar e preferência a outros títulos, em particular o de "Cristo". Isto é tanto mais notável que os três, assim como o apóstolo Paulo, no relato da última ceia, mencionam que Jesus atribui a si mesmo, nesse momento decisivo, o papel do Ebed Iahweh.t;i]

Por conseguinte, não há razão válida para negar a autenticidade de outro logioti (Mc 10.45), que contém igualmente uma alusão muito clara a Is 53, e atribuí-lo, com R. Bultmann, a uma "soteriologia do cristianismo helenístico".152 "O Filho do Homem veio não para ser servido mas para servir e dar sua vida em resgate (Vóxpov) por muitos homens". Trata-se aqui do tema principal dos

"8 É nesta 5ia6f|Kr| que se tem que pensar nas palavras da instituição da santa ceia, e não no sangue da circuncisão que, entre os rabinos, pode também ser chamado de "sangue da aliança" (Cf. STR.-BILLERB., I,p. 991). Pensou-se mais tarde também em Jr 31. Porém, a menção de sangue prova que, em sua origem, essa passagem não podia ter nenhuma relação com Jeremias 31.

""Cf. G. DALMAN, Jesus-Jeshua, 1922, p. 154; assim como H. W. WOLFF, op. cit., p. 65.

15l> É lamentável que W. G. KUMMELque, diferentemente de muitos de seus colegas alemães, não tem o hábito de executar sumariamente, sem justificação, uma opinião oposta à sua, possa contentar-se em declarar simplesmente, em Verheissuiig und Erfiillung, 2aed., 1953, p. 66 s.: "As palavras de instituição da ceia tampouco estabelecem a relação entre a morte de Jesus e a morte expiatória do Servo de Deus".

151 Se as palavras da instituição da Ceia se relacionam com a ideia do Ebed Ihaweh já não é então necessário considerar toda esta cena como uma "lenda cultural etiológica".

152Cf. Gesch. d. synopt. Tradition, 2" éd., 1931, p. 154.

Page 87: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 93

cânticos do Servo, e a alusão a Is 53.5 é clara.153 É como se Jesus dissesse: "O Filho do Homem veio para realizar a missão do Ebed lahweh." Jesus conscientemente reuniu em sua pessoa as duas grandes figuras judaicas: a do Bamasha e a do Ebed.

Resta-nos ainda falar de uma passagem particularmente importante para o problema que nos ocupa. Seu exame nos permitirá, ao mesmo tempo, dar um passo a mais e responder à pergunta a respeito de quando Jesus adquiriu a certeza de que ele devia realizar a missão do Ebed lahweh. Esta passagem chave é aquela que relata a voz celestial ouvida por Jesus durante seu batismo no Jordão (Mc 1.11 e par.). É necessário subllnhar, com efeito, que as palavras: "Tu és meu filho bem-amado, em ti me comprazo", devem ser compreendidas como uma citação de Is 42.1. Ora, no Antigo Testamento elas são dirigidas ao Ebed lahweh; além disso, formam a introdução a todos os cânticos do Servo.

Pode-se considerar como demonstrado que esta voz do céu é realmente uma citação de Is.1 4 O fato de que aqui Ebedtenhã sido traduzido por Dtóç e não por TCCITÇ (como na LXX e Mt 12.18) não constitui uma objeção séria. Convém, com efeito, recordar que rotíç significa ao mesmo tempo "servo" e "filho", o que pode ter consequências também para a tradução grega do Ebed.]i* Além disso, o epíteto bachir que a ele se acopla em Is 42.1 e que Mt 12.18 traduz por àvotitritóç, evoca a imagem do filho e pode ter favorecido a tradução por "uióç. A LXX traduz bachir (Is 42.1) por èK^EKTÓç. Segundo uma leitura bem atestada e provavel-

153 W. G. KÚMMEL, op. cit., p. 67, reconhece, também, que há ali "sem dúvida alguma ideias tiradas de Is 53". Porém, então pode-se perguntar por que nas outras palavras de lesus ele recusa a priori toda alusão a Is 53. Segundo ED. LOHSE, Mãrtyrer und Gottesknecht. Untersuchung zur urchrisúichen Verkilndigung vom SaímetodJesu Christi, 1955, p. 117 ss., trata-se, em nosso logion, de um elemento da tradição palestina mais antiga.

,Í4Cf. a este respeito: O. CULLMANN,Le baptême des enfants et la doctrine bibliqtie du baptême, 1948, p. 16 s., tf 1; J. JEREMIAS, em ThWbNT, V, p. 699: CHR. MAURER em ZThK, 50, 1953, p. 30 ss.

lí5 Seguindo J. JEREMIAS, ThWbNT, V, p. 677, CHR. MAURER, op. cit., p. 25 ss., chama particularmente a atenção sobre Sab. de Salomão 2.13-20, e crê dever tirar daí consequências importantes para a questão do sumo sacerdote (Mc 14.55 ss.).

Page 88: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

94 Oscar Cullmann

mente original,156 o Evangelho de João, citando a voz celestial, traduz bachir, como a LXX, por èKXeKTÓç. O que prova que reconheceu na voz celestial a citação de Is 42.1;157 e é igualmente possível que o texto de Salmos 2.7 "Tu és meu Filho, eu hoje te gerei" se tenha imposto como paralelo do texto de Isaías e tenha facilitado a tradução por viòç Esta hipótese é apoiada pela variante ocidental de Lc 3.22, segundo a qual, a voz celestial teria simplesmente citado Salmos 2.7.

A voz celestial, assim compreendida, aparece como um chamado dirigido a Jesus para que aceite a missão daquele que, no começo dos cânticos do Ebed(\$ 42.1), recebe um chamado similar. Por conseguinte, foi no momento do batismo que Jesus deve ter adquirido a convicção de ser aquele que deveria assumir o papel do Ebed. Ao mesmo tempo, a voz celestial dá a resposta à pergunta que os primeiros cristãos se fizeram posteriormente, a da significação de um batismo para remissão de pecados do próprio Jesus.158 Os outros judeus vão em busca de João Batista a fim de serem batizados por seus próprios pecados. Jesus, por sua vez, no momento de ser batizado como todo o povo, ouve uma voz celestial que lhe anuncia implicitamente: "Tu não serás batizado por teus pecados, mas pelos de todo o povo, porque tu és aquele cujo sofrimento expiatório pelos pecados de outros foi predito pelo profeta." Sem dúvida, é nesta perspectiva também que temos de compreender a palavra referente ao "cumprimento de toda justiça" (Mt 3.15).159 Isto significa, pois, que Jesus foi batizado em vista de sua morte, e que, ao morrer, levaria o seu povo inteiro num batismo. Ele carrega, de certo modo, sobre si todos os pecados que os

líflCf. A. HARNACK, Studien zur Geschichte des Neuen Testanients und der Alten Kirche, 1931, p. 127 ss.; A. LOISY, Le quatriéme EvemgHe, 2a éd., 1931, ad loc; enfim, C. K. BARRETT, The Gospel According to St. John, 1955, p. 148 s. Cf. também O. CULLMANN, Les sacremems dons Vevangile johwmique, 1951,p. 33.

157E. LOHMEYER, Gottesknecht imd Davidsohn, 1945, p. 9, sublinha igualmente o parentesco dos termos "filho" e "servo".

158Cf., para o que segue, O. CULLMANN, Le baptême des enfants et la doctrine bibliqtte du baptême, 1948, p. 13 ss.

l,IJCf. nesta mesma ordem de ideias: H. LJUNGMANN, Das Gesetz erfuUen, Mt 5.17 ff. imd 3.15 wttersucht (Lunds Univ. Arsskr. N. F, 50, 1954, p. 97 ss.).

Page 89: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

L-R1STOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 95

judeus levam ao Jordão. Ou seja, no instante de seu batismo ele recebe, ao mesmo tempo, o "programa" do papel que deve desempenhar na história da salvação.

Esta explicação é confirmada pelo fato de que nas duas únicas declarações de Jesus que contêm o verbo pccimcOfivai (Mc 10.38 b e Lc 12.50), a expressão "ser batizado" é sinónima de "morrer".160 É por esta razão que Jesus, a partir do momento em que começou a agir independentemente do Batista, não batizou mais com água. Depois de ouvir esta voz, não havia para ele mais que um só batismo: sua morte.

A maneira em que o Evangelho de João relata o batismo de Jesus: sob a forma de um testemunho do próprio Batista (João 1.29 ss.), dá forte apoio a esta tese. Temos aqui o comentário mais antigo deste acontecimento. Está fora de dúvida que, para o autor do quarto evangelho, a voz celestial era efetivamente um apelo dirigido a Jesus para que assumisse a missão do Ebed Iahweh. Do contrário não se compreenderia por que o testemunho do Batista sobre o batismo de Jesus é enquadrado por estas palavras: "Eis aqui o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo" (vv. 29 e 36). Estas palavras estabelecem uma clara relação entre o batismo de Jesus e o sofrimento substitutivo. Esta relação é comentada pela voz celestial, que repete para Jesus a palavra de Is 42.1 dirigida ao Ebed Iahweh. No evangelho joanino onde, segundo a leitura que pode ser considerada como a original, o texto se mantém mais perto do Antigo Testamento,161 o fato aparece mais claramente ainda que nos sinópticos.

Encontra-se de novo esta ideia em Inácio, quando ele diz em Ef 18.2: "Ele (Jesus) foi batizado a fim de que purificasse a água por seu sofrimento". Inácio cita nesta carta antigos elementos da confis-

'""W, G. KUMMEL7Vi/f, 18, 1950, p. 37 ss) tenta debilitar este argumento alegando que se pode encontrar no A.T. uma forma análoga de expressar-se. Porém, as passagens frequentemente citadas em apoio desta tese (SI 42.7 s.; 69.2 s.; 69.14; Is 43.2) dificilmente podem ser seriamente consideradas como paralelas aos textos em questão.

'"'Cf. acima, p. 92 s.

Page 90: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

•96 Oscar Cullmarm

são cristológica. Porém, ainda que ele tivesse sido o primeiro a fazer assim esta afirmação, sua frase provaria que a igreja de então conhecia o vínculo entre o batismo de Jesus e seu sofrimento expiatório.

Insistimos sobre a importai!cia deste duplo testemunho, o joanino e o inaciano, em favor de nossa tese (exposta em O batismo de crianças e a doutrina bíblica do batismo, 1948, p.16 s., e em Os sacramentos no Evangelho joanino, 1951, p. 33 ss.). pois certos exegetas têm reagido contra ela rápida e quase automaticamente, como costuma suceder ao suspeitar-se de qualquer tese que permita unir e harmonizar os elementos diversos do Novo Testamento: rejeitam-na afirmando que ela repousa sobre uma construção inspirada por um "desejo de síntese" (cf. p.ex. W. G. Kiimmel, ThR, 1950, p. 39 s.; L. Cerfaux, RHE, 1949, p. 586). Certamente, devemos evitar as tentações de harmonização que façam violência aos textos e devemos deixar subsistir as dificuldades que neles se encontrem de maneira efetiva. Porém, como especialistas do Novo Testamento, não corremos o risco de sucumbir a um tipo de deformação profissional que consiste em experimentar uma alegria quase insana ao constatar contradições e a nos irritarmos contra toda tese que estabeleça um elo ou uma relação - ainda que fosse entre Jesus e Paulo? No que concerne a nosso problema, J. A. T. Robinson""2, aliás, tentou demonstrar que a relação entre o batismo de Jesus e sua morte é um motivo que se aclia em todo o Novo Testamento.

É, pois, mnito provável que no momento de seu batismo, ao ouvir a voz celestial, Jesus tenha começado a tomar consciência de ser Ele o Ebed. Eque, desde então, seu caminho já estava traçado. É legítimo situar esta tomada de consciência em um momento determinado de sua vida? Veremos no capítulo seguinte16-1 que o autor da Epistola aos Hebreus não hesita em falar de um "desenvolvimento interior" na vida de Jesus.

Chegamos à conclusão de que a designação de Jesus como Ebed lahweh, assim como a de "Filho do Homem", remonta ao

62 J. A. T. ROB1NSON, 'The One eaptism as a Category of New Testamene Soieriologyg Scotttsh JJurnal ofTheology, y, 6,53, p. 252 ss).

" Cf. abaixo, p. 132 s.

Page 91: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 97

próprio Jesus. Não é, portanto, a comunidade primitiva a primeira a estabelecer uma relação entre estas duas noções cristológí-cas fundamentais: resta-nos ver o lugar que nela tem a designação de Jesus como Ebed Iahweh.

3. JESUS, O "EBED IAHWEH" NO CRISTIANISMO PRIMITIVO

Já temos mencionado que a cristologia doEbednão é, propriamente falando, a dos evangelistas. Encontramos poucas passagens em que os autores dos sinópticos estabelecem uma relação direta entre Jesus e a figura do Servo de Deus.

Em Mt 8.16 s., a propósito das, curas operadas por Jesus, trata-se, contudo, de uma reflexão feita pelo próprio evangelista: "Expulsou os espíritos com uma palavra, curou a todos os enfermos, a fim de que se cumprisse o que havia sido anunciado por Isaías o profeta: ele tomou sobre si nossas enfermidades e levou nossas doenças". O evangelista cita textualmente uma passagem de Is 53 (v.4), com a fórmula habitual de introdução õTWOÇ ^Xr|pcú6fj. Porém, o que interessa aqui não é precisamente o pensamento central deste capítulo de Isaías, o sofrimento substitutivo. Não é a morte de Jesus, mas suas curas, que ele considera como o cumprimento da profecia. Enquanto o profeta pensa que o Ebed, por seus sofrimentos e sua morte, toma sobre si as enfermidades de outros, Mateus visivelmente interpreta o texto em outro sentido: ele "tomou sobre si (levou embora)" as enfermidades. A luz da teologia cristã primitiva, esta explicação não é, por certo, falsa, posto que as curas operadas por Jesus representam, de certo modo, uma antecipação de sua obra definitiva que realizará por sua morte. Contudo, não é menos singular que o evangelista não tenha citado Is 53 a propósito da obra salvadora central de Jesus. No relato da Paixão, Mateus, que se refere tão espontânea e frequentemente ao Antigo Testamento, não faz nenhuma alusão ao Servo Sofredor. No cap. 12.18-21, cita uma passagem do cântico do Ebed Iahweh (Is 42.1 ss.); porém, ali também não se

Page 92: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

.98 Oscar Cullmann

interessa senão por um elemento secundário - o fato de que Jesus proibira aos enfermos que curou darem-no a conhecer.

No Evangelho de Marcos, não encontramos nenhuma alusão do próprio autor ao Ebed Iahweh nem aos cânticos do Servo.

E verdade que Chr. Maurer, em seu artigo já citado,1M demonstrou que a ideia de Servo de Deus contribuiu de uma maneira decisiva para a formação e elaboração do relato da Paixão no Evangelho de Marcos. Porém, como nisto ele mesmo concorda,[to esta influência se exerce muito menos sobre o próprio evangelista do que sobre a tradição em que Marcos se inspirou.

O autor do quarto evangelho concedeu maior importância a esta noção? A primeira vista se poderia crer que a identificação de Jesus com o Servo de Deus lhe é totalmente desconhecida. Convém, no entanto, reagir contra o preconceito segundo o qual a ideia da morte expiatória teria sido inteiramente relegada, no Evangelho de João, a segundo plano em favor do conceito de glorificação.166 Basta recordar, por exemplo, o relato de João 2.19 ss. e a explicação que o próprio autor dá acerca do templo: "... ele falava do templo que era seu corpo"; e, sobretudo, a declaração de João 3.14 relativa à elevação de Cristo (sobre a cruz): "Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do Homem seja levantado"; e, ainda, no vers. 16: "Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu seu filho único." "EÔcoKev é aqui tomado ao mesmo tempo no sentido dertapé§roKev. Pode-se ainda mencionar o relato das bodas de Cana (cap. 2), em que a alusão à "hora" que ainda não é chegada, se refere, sem dúvida alguma, à morte de Jesus.167

164 Cf. acima, p. 76, nota 108: "Knecht Gottes im Passionsbericht des Markusevangeliums" (ZT/iK, 50,1953, p. 1 ss)) V. TAYLOR chega à meema conclusão em "The Origjn ol the Marcan Passion Sayings" (NTS, I, 1955, p. 159 ss.).

165 Op. cit., p. 2. '*6Cf. por ex. R. BULTMANN, Theologie des Neuen Ttzstaments, 1953, p. 400 s:, id.

Das Evangeliwn des Johannes, 1941, p. 293 e passim. '*7 Cf. O. CULLMANN, Les sacrements dans l'Evaitgile johannique, p. 36 s.

Page 93: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CkisTOLOCii A DO Novo TESTAMENTO 99

Porém, há ainda outros testemunhos mais diretos que provam que o autor do quarto evangelho não relegou a segundo plano a ideia de morte expiatória. Citaremos João 10.11: "Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas." Este versículo e os que seguem são perfeitamente claros, sobretudo o vers. 17 s.: "O Pai me ama porque eu dou a minha vida para retomá-la. Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou". A nosso ver, estas palavras sublinham precisamente a diferença que existe entre o sofrimento do profeta e o doEbedlahweh. É até permissível questionar se não temos que relacionar este versículo com o vers. 8 do mesmo capítulo - "todos quantos vieram antes de mim são ladrões e salteadores" - para evocar então figuras tais como as de Judas o Galileu, ou ainda a do "Mestre de Justiça", da seita de Qumran (mesmo que ele não tenha sofrido o martírio sob a forma de execução).168

No quarto evangelho não se trata de uma necessidade geral da morte de Cristo.169 No capítulo primeiro (vs. 29 e 36), o testemunho do Batista contém alusões diretas e precisas a Isaías 53: "Eis aqui o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo". Já temos visto que toda esta passagem confirma nossa interpretação do relato sinóptico do batismo de Jesus.170 Os estudos de C. F. Burneym e de J. Jeremias172 têm mostrado que a expressão grega

É impossível admitir com A. SCHLATTER, Der Evangelist Johaiines, 1930, p. 236, que se trate de "herodianos, rabinos e chefes de partidos" do tempo de Jesus. Esta hipótese é recusada, com razão, por R. BULTMANN, Das Evaiigelium des Johmmes, 1941, p. 286. Cf. também O. CULLMANN, Dieit et César, 1956, p. 25. E. SCHWEIZER, "Erniedrigung und Erhõhung bei Jesus und seinen Nachfolgern" (AthANT, 23, 1955, p. 57 s.) não contesta a importância atribuída por João à morte de Jesus, realização suprema da sua carreira entregue à obediência. Porém, como crê que no pensamento da comunidade primitiva o título de "Servo de Deus" não se limita à morte expiatória mas designa, de uma maneira geral, a Jesus como o Justo Sofredor (p. 84 s), afirma faltar quase totalmente no quarto evangelho a idtíia da morte expiatória de Jesus. Cf. acima, p. 94 ss. C. F. BURNEY, The Aramaic Origin of the Fourth Gospel, 1922, p. 107 s. foi precedido por C. J. BALL (Expository Times, 1909-10, p. 92). J. Jeremias, 'Au,vòç w o ÔEOÚ - i ta íç toí> Btov iZNTW, ,4, 1935, p, 115 ss.s

Page 94: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

>Q0 Oscar Culhnann

àfivòç xou ôeov corresponde muito provavelmente às palavras aramaicas í í n ? ^ ÍÍ;?P, que significam ao mesmo tempo "cordeiro de Deus" e "Servo de Deus". Como, por outro lado, a expressão "cordeiro de Deus" não se emprega correntemente no Antigo Testamento para designar o cordeiro pascal, é provável que o autor tenha pensado, antes de tudo, no Ebed Iahweh. A tradução por àpvòç se explica, ademais, tanto mais facilmente pelo fato de que a ideia de Ebed Iahweh é aparentada à de cordeiro pascal, e que, por outro lado, o segundo Isaías (53.7) compara o Ebed a um cordeiro. O emprego do verbo cdpeiv, que parece aplicável somente ao cordeiro pascal, poderia ser explicado pelo fato, mencionado por Strack-Billerbeck,17-1 que o verbo aramaico 7D3 pode traduzir-se em grego indiferentemente por aípeiv ou por (pépeiv. O título de cqxvòç xox> Oeoft de João 1.29 e 36 poderia, portanto, ses considerado como uma variante de TtaTç Beou, OU seja, como um equivalente grego do título hebraico de Ebed Iahweh™

Porém, mesmo no caso de não provar-se correta esta derivação do aramaico tiH7K1 fí vD, a ideia cristológica de Jesus "cordeiro de Deus" deve ser compreendida como uma variante da do Ebed Iahweh. A primeira vista, é verdade, parece que o cordeiro pascal, que nas outras passagens (1 Co 5.7, 1 Pe 1.19) é identificado com Jesus, expressa outra ideia. O sacrifício do cordeiro pascal tem por objetivo, para os judeus, obter a expiação dos pecados do povo (Ex 12). Nas origens deste rito, encontramos a ideia judaica do sacrifício oferecido a Deus. A noção do

'7'Tomo II, p. 370. 174 C. H. DODD, The Interpretation ofthe Fourth Gospel, 1953, p. 235 s., vê no título

ctu.vòç muito mais uma alusão ao Messias, rei de Israel. Por outro lado, sublinha também que a ideia de Servo Sofredor tem uma importância muito particular para o quarto evangelho, embora não adote a explicação filológica de C F. BURNEY e de BALL. Ver a propósito da noção de "cordeiro de Deus" também C. K. BARRET, "TheLambof God" (NTS 1,1955, p. 210 ss.), que parte da relação estabelecida por C. H. DODD entre o cordeiro e o Messias-Rei, porém, coloca em primeiro plano a ideia pascal inspirando-se na teologia e na liturgia do cristianismo primitivo. Sobre a importância cristológica da noção de cordeiro no Apocalipse joanino ver P. A. HARLÉ, "L'Agneau de 1'Apocalypse et le Nouveau Testamet" (Eludes Théologiques et religieuses, 1956, p. 26 ss.), que põe em evidência a linha que leva, por um lado, a Is 53 e, por outro, à liturgia do cristianismo primitivo.

Page 95: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMEf TO 101

EbedIahwehsupôs também a ideia de sacrifício; contudo, ela está dominada pela ideia da substituição voluntária. O cordeiro pascal, por sua natureza, é puramente passivo: ele tira os pecados sendo passivamente sacrificado. O Ebed Iahweh, em compensação, toma voluntariamente sobre si os pecados de outros, e é unicamente assim que ele os tira. Trata-se, pois, de duas ideias aparentadas, cada uma das quais põe em relevo um aspecto determinado da morte expiatória. Pode-se dizer que a ideia de cordeiro sublinha sobretudo o fim, e a do Ebed Iahweh, o meio pelo qual este fim é alcançado - a saber, o sofrimento voluntariamente substitutivo. O parentesco destas duas ideias é, no entanto, tão grande que se pode admitir que o profeta, quando descreve o Ebed Iahweh no cap. 53, tenha pensado também no cordeiro pascal. E por isso que introduz na descrição a comparação com a obediência de um cordeiro (vers. 7): "semelhante a um cordeiro que se leva ao matadouro". Este estreito parentesco explicaria muito bem porque se pôde empregar uma expressão que tivesse, ao mesmo tempo, uma e outra significação. Naturalmente, isto supõe que o texto de João se baseia em um texto aramaico ou que, no mínimo, o evangelista pensava em aramaico.

Deve-se, contudo, reconhecer que em outro lugar do Evangelho de João (19.36), o autor pensava unicamente no cordeiro pascal. Trata-se do crucificado, cujos ossos não foram quebrados, contrariamente ao usual. O evangelista explica este fato por duas passagens da Escritura que se relacionam com o cordeiro pascal (Ex 12.46e Nm 9.12). Isto não prova, contudo, que em João 1.29 e 36 o pensamento acerca do Ebed Iahweh não seja predominante. Admitido o estreito parentesco das duas ideias, é perfeitamente possível que o evangelista expresse ambas.

No relato do batismo de Jesus é o Evangelho de João1" que menciona a citação que a voz celestial faz do começo dos cânticos do Servo. É o único que traduz exatamente por èicXeicTÓÇ a palavra hebraica de Isaías 42.1. Para ele, a vocação batismal de Jesus foi um chamado a assumir a missão do Ebed Iahweh.

Temos de mencionar, enfim, que pelo menos em um lugar (Jo 12.38) se encontra ainda uma citação textual de Isaías 53.1, "Quem creu em nossa pregação, e a quem foi revelado o braço do Senhor?"

Cf. acima p. 92 s.

* * *

Page 96: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

1-02 Oscar Cullmann

Passemos agora a Atos dos Apóstolos. Este livro, mais que nenhum outro, prova que já nos tempos mais antigos do cristianismo existia uma explicação da pessoa e da obra de Jesus que poderíamos chamar - de forma um tanto inexata - "cristologia do Ebed lahweh", ou talvez mais corretamente "paidologia". Podemosir ainda mais longe e afirmar que aí temos provavelmente a solução mais antiga do problema cristológico. Pode-se pensar antes de tudo no relato da conversão do eunuco etíope (At 8.26 ss.), que prova que Jesus foi explicitamente identificado com o Ebed lahweh no primeiro século e que se conservou a lembrança de que o próprio Jesus havia compreendido assim sua missão divina.176

Porém, à parte este relato, há em Atos outras passagens que não contêm, é verdade, a citação textual de Isaías, porém, que não são menos importantes para a questão que nos ocupa. Dá-se nelas, com efeito, abertamente a Jesus o título de Ebed lahweh, em grego jraíç xox> Geoíi, termos sue e aXX emprega aara traduzir a expressão do Dêutero-Isaías. Trata-se de quatro passagens. Coisa importante: encontram-se todas na mesma parte do livro (caps. 3 e 4), e são as únicas em todo o Novo Testamento.177

A primeira destas passagens é Atos 3.13, que se refere a Isaías 52.13; a segunda (3.26) que fala de "Jesus-Pais", como mais tarde se dirá correntemente "Jesus-Cristo". As outras duas passagens (4.25 e 30) dão igualmente a impressão que naiç foi empregado como uma espécie de termo técnico com tendência a converter-se em nome próprio, como aconteceu com "Cristo". Isto confirma a existência de uma cristologia muito antiga, que chamava a Jesus de o Ebed lahweh. Ela desapareceu lo<*o, mas deve remontar aos

Temos que levar aqui em consideração também, as passagens de Atos nas quais Jesus é designado com o título d e S í m i o ç , inspirado em Is 53.11: At 3.14; 22.14e, sobretudo, 7.52 (cf. J. JEREMIAS, ZNTW, 34, 1935, p. 119). Contra R. BULTMANN, Theologie des Neuen Testaments, 1935, p. 5 1 ; E. SCHWEIZER,cy). cit., pp. 4 7 e 8 3 , temos que sublinhar aqui, com H. W. WOLFF, op. cit., p. 86 ss., que todo o contexto indica uma relação com o Dêutero - Isaías. Esta é, também, a opinião de J. JEREMIAS, ZNW, 34, 1935, p. 119.

Page 97: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 103

tempos mais antigos, já que é na primeira parte de seu livro que o autor de Atos conservou suas marcas.

Infelizmente, nada sabemos de preciso a respeito desta doutrina cristológica, ou mais exatamente, paidológica. Não obstante, o contexto no qual Atos dos Apóstolos coloca este antigo título permite-nos, talvez, adivinhar em que meios da comunidade primitiva seu emprego pôde generalizar-se mais. Não é provavelmente por acaso que duas das quatro únicas passagens que no Novo Testamento dão a Jesus o nome de TCCUÇ, se encontrem em um discurso atribuído ao apóstolo Pedro e as outras duas em orações pronunciadas em sua presença. É demasiado audaz a conclusão de que o autor de Atos tenha conservado a lembrança de ser Pedro quem dava a Jesus, de preferência, o título de "Servo de Deus"? Não é possível, certamente, esta hipótese ser demostrada, mas ela concorda com o que sabemos de Pedro por outras passagens. Segundo Mc 8.32, é justamente ele quem, em Cesaréia de Filipe, se havia revoltado contra a necessidade dos sofrimentos de Jesus e o havia chamado à parte para dizer-lhe: "que não te ocorra semelhante coisa", de sorte que Jesus, vendo nele o mesmo Tentador que uma vez já havia querido desviá-lo de seu caminho, teve de repreendê-lo dizendo: "Para trás de mim, Satanás!" Compreendemos que este mesmo apóstolo, o primeiro mais tarde a ver o Ressuscitado (cf. 1 Co 15.5)) tenha também sido o primeiro a proclamar a necessidade destes sofrimentos e desta morte de Jesus, coisas das quais não havia querido nem sequer ouvir antes da Paixão - e que tenha até feito destes sofrimentos e desta morte o centro de sua explicação da vida terrena de Jesus.178

A este propósito, é interessante recordar também que a Primeira Epístola de Pedro cita com insistência as passagens do livro de Isaías que se relacionam ao Ebed Iahweh (cf. 1 Pedro 2.21 ss.). Para o nosso problema, esta constatação conserva seu valor, seja ou não autêntica a Epístola de Pedro, pois ainda que ela não seja

A lembrança de sua negação de Jesus explica também, em Pedro, esta mudança radical. Cf. O. CULLMANN, Saint Pierre, 1952, p. 57 ss.

Page 98: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

104 Oscar Culhneuin

dele, o autor deve ter sabido, como o de Atos, que Pedro havia aplicado regularmente a Jesus a ideia de "Servo Sofredor".

Se é exato, como afirma Papias, que a tradição oral na qual se baseia o Evangelho de Marcos deva ser posta em relação com as pregações de Pedro, podemos dar um passo a mais na direção da posição de Chr. Maurer,179 que tenta demonstrar que a tradição de Marcos está fortemente impregnada da ideia do Ebed Iahweh. Talvez se encontre aí, outra vez, a influência do apóstolo Pedro.

Em resumo, podemos enunciar as seguintes suposições: a cristologia do apóstolo Pedro (se nos é permitido empregar esta expressão, apesar dos poucos dados que possuímos sobre o pensamento do apóstolo) era muito provavelmente dominada pela ideia do Ebed Iahweh. Aquele que quis desviar Jesus do caminho do sofrimento e que até o negou no instante decisivo da Paixão, teria sido, depois da ressurreição, o primeiro a compreender a necessidade deste escândalo. Ele não podia expressar melhor esta convicção senão pelo título de Ebed Iahweh, tanto mais pelo fato de que o apóstolo devia saber da importância que o próprio Jesus havia dispensado a esta ideia de "Servo de Deus". A posteridade, frequentemente, foi injusta com Paulo ao colocá-lo à sombra de Pedro. Porém, em relação à teologia, não temos sido injustos com Pedro, ao colocá-lo muito facilmente à sombra da teologia paulina?

* * *

Fica demonstrada a antiguidade do título "Jesus, Servo de Deus" também por este outro fato: Os documentos em que durante mais tempo ele se manteve, são os mais conservadores por sua própria índole, a saber: as antigas liturgias.

É assim que na antiga liturgia da comunidade romana, contida em 1 Ciem. 59.3-61.3, lemos em diversos lugares: "Jesus, teu servo", ou, em relação ainda mais estreita com o cântico do Ebed Iahweh, "por Jesus Cristo, teu servo bem-amado" (59.2, 3, 4).

Cf. acima, p. 76 n. 108.

Page 99: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

C^RISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 105

Ou ainda nas célebres orações eucarísticas do Didaquê: "Nós te agradecemos, ó Pai, pela santa vinha de Davi, teu servo, que tu nos tens feito conhecer através de Jesus, teu servo." (9.2); e ainda: "te agradecemos pelo conhecimento, a fé e a imortalidade que nos tens feito conhecer por Jesus, teu servo" (10.2). Observemos que são as orações eucarísticas as que chamam a Jesus "Pais". Não atuaria aí a lembrança de que o instante decisivo em que Jesus abertamente proclamou diante de seus discípulos sua missão de Servo de Deus, foi o da última ceia? Temos visto, de fato, que as palavras pronunciadas por Jesus não podem ser compreendidas de outro modo.

Não é por acaso que, nos fins do século primeiro e começos do segundo, encontramos o título de Pais aplicado a Jesus só nas liturgias, pois já havia desaparecido do pensamento cristão.

* * *

Qual foi a atitude do apóstolo Paulo no que se refere à figura do Ebed Iahweh e a sua identificação com Jesus? Se se considera que a morte de Cristo ocupa um lugar central em sua teologia, em princípio se é tentado a supor que esta identificação lhe foi particularmente cara. Porém, na realidade, se o vemos designar a Jesus como "Páscoa" (1 Co 5.7),18° quase não encontramos nele citações explícitas de Isaías 53. Uma só citação direta, Isaías 53.4, se encontra em Rm 4.25; porém, a passagem em 2 Co 5.21, relativa àquele que "não conheceu pecado", faz clara alusão a Isaías 53.6. E quanto aos textos de Isaías 52 citados em Rm 10.16 e 15.21, se relacionam com a pregação missionária e não propriamente com a obra do Servo de Deus. As passagens que acabamos de citar bastam para demonstrar que a aplicação da ideia de Ebed Iahweh a Jesus não era desconhecida para o apóstolo; no entanto, a ausência de outras citações dos cânticos do Servo, como também a ausência do título Pais em suas epístolas, reclamam uma explicação.

Cf. acima, p. 100 s.

Page 100: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

106 Oscar CuUmartn

Primeiramente, temos de assinalar que se faltam citações diretas, as três passagens das epístolas de Paulo, talvez as mais importantes do ponto de vista cristológico, sublinham, sem dúvida alguma, a ideia do sofrimento substitutivo do Servo de Deus (1 Co 15.3; Fp 2.7 e Rm 5.12 ss.). Em 1 Co 11.3, trata-se de uma antiga confissão de fé que não é obra do próprio Paulo, pois ele declara explicitamente havê-la "recebido". A primeira afirmação deste Credo - sem dúvida o mais antigo que existe181 - é a seguinte: "Cristo morreu por nossos pecados segundo as Escrituras". Quase não cabe dúvida de que as "Escrituras" designam aqui Isaías 53.182 Como Paulo recorre aqui a uma confissão de fé já existente, se encontra assim confirmado que a cristologia do Ebed lahweh remonta aos tempos mais antigos da Igreja e que não foi Paulo quem criou a doutrina da morte expiatória de Cristo.

Se, como pretende E. Lohmeyer, Paulo citou em Fp 2.6-11 um antigo salmo da comunidade,183 esta observação é válida também para o segundo dos textos cristológicos fundamentais mencionados. Examinaremos este texto detalhadamente nos capítulos sobre o "Filho do Homem",184 e sob o título de Kyrios.^5 Porém, já temos que destacá-lo aqui pois nesta passagem também nos deparamos com a ideia de Ebed lahweh aplicada à humilhação de Cristo feito homem: jiop(pfiv ÔoíAou ocpoòv (v. 7). Aqui, Ebed é tra-

por duzido por ôcô^oç.186

mCf. O. CULLMANN, Les premières Confessions de foi cltrétienne, p. 17, 36, 43. K2 É possível, na verdade, que Paulo faça alusão à Sagrada Escritura em geral (é o que

sustenta J. HÉRING, La Première Epitre de Paul aux Corinthiens, 1949, p. 134 s.); mas isso não é muito provável. E. LICHTENSTEIN, "Die ãlteste christliche Glaubensformer ZKG, 63, 1950, p. 17 ss.) admite também que Paulo tenha pensado, antes de tudo, em Isaías 53.

la3E.LOHMEYER,"Kyrios Jesus. EineUntersuchungzuPhil. 2.5-11" (SBHeidelberg, 1928) ; cf. também J. HÉRING, Le wyaume de Dieu et sa venue, 1937, p. 159 ss.

184 Cf. abaixo, p. 228 ss 185 Cf. abaixo, p. 284 s. "6E. LOHMEYER, Gotteshtecht itndDavidsohn, 1945, p. 3 ss., sublinha, com razão,

que esta tradução é possível. Para V. TAYLOR, o emprego da expressão u.o<<pr|v SoúXov justifica sua opinião segundo a qual Paulo, apesar de ser-lhe familiar a

Page 101: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 107

Se bem que Paulo utilize nestas passagens um elemento da tradição primitiva, não é menos certo que fez seu o conteúdo dela. Isto é o que prova o terceiro dos textos que nos toca examinar aqui, odeRm5.12ss. O apóstolo não reproduz aí uma confissão já existente, mas formula, de uma maneira pessoal, sua solução cristológica. Aqui, como emFl 2.6 ss., as duas ideias cristológicas essenciais que remontam a Jesus mesmo, a de "Filho do Homem" e a de "Servo de Deus", se encontram reunidas. O v. 19 mostra claramente que o apóstolo pensou no "Servo" do livro de Isaías: "pela obediência de um só muitos serão justificados". É uma alusão a Is 53.11: "meu servo justificará a muitos". Talvez pudéssemos pensar aqui também no famoso í^aaTnpiov de Rm 3.25.

A questão fica, contudo, de pé: Por que o apóstolo não emprega o título de rcoíiç para expressar sua fé em Jesus. Sem dúvida é porque esta designação se aplica, antes de tudo, à obra terrena de Jesus encarnado, enquanto que a cristologia paulina se interessa muito mais pela obra que o Cristo, elevado à destra de Deus, realiza na qualidade de Kyrios.

É verdade que se lê também em Is 52.13: "Eis que o meu servo procederá com prudência; será exaltado e elevado e será mui sublime"; em seguida trata-se do assombro dos povos e dos reis. Esta passagem oferece uma possibilidade de aproximação muito importante à crença cristã segundo a qual o Ebed Iahweh é, ao mesmo tempo, o Filho do Homem que virá nas nuvens do céu.187 Contudo, o Dêutero-Isaías não nos dá nenhum detalhe sobre esta obra futura que ele deve realizar depois de Sua glorificação; e o essencial, nos cânticos do Ebed, segue sendo o sofrimento substitutivo do Servo de Deus, sofrimento que lhe permitirá chegar a esta glorificação.

ideia de Servo de Deus, teria evitado o título mesmo, por considerar que a palavra "Escravo" não conviria para designar o Kyrios (The Atonement in the New Teswment Teaching, 2a ed., 1945, p. 65 s.).

is? H. W. WOLFF,o/;. cit., p. 31, sublinha, seguindoG. VON RAD, "Zur prophetischen Verkiindigung Deuterojesajas" (Verk. u. Forschtmg, 1940, p. 62) que o Dêutero-Isaías fala dos sofrimentos e da morte do Servo de Deus, do ponto de vista de sua glorificação.

Page 102: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

M)8 Oscar Culhftaitn

Em todo o caso, na época do Novo Testamento, é esta ideia da morte expiatória que evoca no ouvinte ou leitor o título de Pais-Ebect,

Esta é, em suma, a razão pela qual ele só pode ser aplicado à obra terrena de Jesus. Ademais, Paulo, que não vê o Cristo senão à luz da Ressurreição, deve servir-se de outro título para caracterizar sua obra e sua pessoa, o título de Kyrios, de Senhor glorificado que faz a sua Igreja participar dos frutos de sua morte expiatória e que, ao mesmo tempo, prossegue sua obra de mediador.

Pela mesma razão, e desde muito cedo, as ideias ligadas à figura do Ebed lahweh desapareceram cada vez mais dos antigos escritos cristãos, à exceção de algumas liturgias que o retiveram por um pouco mais de tempo. Encontramos constantemente, é verdade, citações de Isaías 53 aplicadas a Jesus;188 porém, elas não têm uma importância capital, e não é a ideia especificamente cristo-lógica do Ebed lahweh que, por exemplo nos Pais apostólicos, se põe em evidência nessas citações.

Assim, encontramos uma longa citação de Is 53 em 1 Ciem. 16. Todas as passagens importantes do cap. 53 são reunidas aqui e aplicadas a Jesus. Porém, trata-se muito menos de explicar, pela cristologia do Ebed, a pessoa e a obra de Jesus, que de exortar os cristãos de Corinto à mesma humildade que houve em Jesus. "Pois Jesus - s e diz aí-deve ser contado entre os humildes, não entre aqueles que se elevam acima do rebanho. O cetro da majestade divina, Cristo, não se manifestou com pompa, ostentação e orgulho - embora houvesse tido a possibilidade disso - senão na humildade, como o Espírito Santo o havia predito..." (segue uma citação de Is 53.1 ss. sobre o aspecto exterior do Ebede o desprezo de que é objeto). No fim da citação, o autor acrescenta: "Vejam, meus bem-ama-dos, que modelo nos é proposto. Pois se o Senhor foi tão humilde, que devemos fazer nós, que por ele temos sido submetidos à sua graça? Não temos aí uma utilização cnstológica real da ideia de Ebed Iahweh. A única coisa que importa ao autor é demonstrar pela Escritura um traço do caráter de Jesus: sua humildade.

Na Epístola de Barnabé, encontramos uma passagem mais importante, pois o autor aí compara Jesus com a vítima oferecida pcios Judeus

Cf. a este respeito H. W. WOLFF, op. cit., p. 108 ss.

Page 103: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO

para reconciliação (Barn. 7.6; 8.1). No cap. 5.2, ele relaciona essa ideia com o Ebed lahweh e cita Is 53. Porém, esta passagem está isolada nesta epístola.

* * *

Podemos agora resumir os resultados a que temos chegado. 1. O judaísmo, na época do Novo Testamento, pôs o nome de

Ebed lahweh em relação com o do Messias; é até possível que em certos meios (talvez esotéricos) se tenha formado a imagem de um Messias sofredor. Por outro lado, no messianismo judaico oficial, a ideia principal dos cânticos do Ebed lahweh, a do sofrimento substitutivo e da morte expiatória, está ausente.

2. Jesus não atribuiu a si o título de Ebed lahweh, senão que, segundo os sinópticos, como também segundo o Evangelho de João, aplicou a sua pessoa a ideia do sofrimento e da morte substitutivos, assim como a ideia da aliança restaurada entre Deus e seu povo pelo Ebed. Foi provavelmente na ocasião de seu batismo que ele adquiriu a convicção de ser esta a maneira em que deveria realizai* sua obra terrena.

3. O cristianismo primitivo conservou a lembrança de ter o próprio Jesus consciência de realizar a obra do Ebed lahweh. No Evangelho de João, a Jesus se dá o nome de "cordeiro de Deus". Em Atos 3 e 4, o título Ttcdç xox> Geou, tradução orega ad Ebed lahweh, é empregado como verdadeiro título cristológico. Este emprego supõe a existência de uma cristologia muito antiga, inteiramente fundada sobre a ideia de Ebed lahweh, que parece ter sido, em particular, a do apóstolo Pedro. É possível que a formação da tradição oral dos evangelhos (em particular a dos relatos da Paixão) tenha sido influenciada por ela.

4. Em Paulo, a morte expiatória de Jesus ocupa um lugar central. É verdade que ele não emprega o título de Ebed lahweh. Os dois textos cristológicos mais importantes que reconhecem a Jesus a missão de Servo de Deus (1 Co 15.3, Fl 2.6 ss.) são tomados por ele da tradição da Igreja, tradição esta que ele faz sua. EmRm5.12 ss., ele

Page 104: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

rio Oscar Cullmann

utilizou igualmente as ideias relativas ao Ebed Iahweh e sua obra expiatória.

5. Embora tratando-se de uma das soluções cristológicas mais antigas e mais importantes, pois pode ser atribuída ao próprio Jesus, rapidamente passou a ocupar um lugar secundário. É só nos textos litúrgicos do Didaquê e em uma oração registrada em 1 Ciem. que encontramos ainda o título de TCaíç aplicado a Jesus. Por que este título desapareceu tão rapidamente? Sem dúvida, em razão de seu caráter limitado. Já fizemos sobre isso uma alusão a propósito de Paulo, e voltaremos a esta questão.

4. A DOUTRINA DO "EBED IAHWEH" COMO SOLUÇÃO DO PROBLEMA CRISTOLÓGICO

Recordemos, em primeiro lugar, que a noção cristológica de "profeta do fim dos tempos" pode, por certo, aplicar-se à obra terrena de Jesus, tal como é descrita no Novo Testamento; porém, que não cobre mais que um aspecto dela, a saber, sua obra de pregador e de curador. Por outro lado, esta noção não pode explicar a função presente e futura de Jesus. A explicação trazida pelo título de Ebed Iahweh não é uma opinião popular que o Novo Testamento se limitaria a reproduzir sem partilhar dela (como é o caso para a assimilação de Jesus ao Profeta); podemos concluir, a priori, que nesta relação nossa conclusão será mais positiva - tanto mais pelo fato de que o próprio Jesus entendeu desta maneira sua obra na terra.

No que concerne a esta obra, a noção de Ebed Iahweh permite captar o acontecimento cristológico central de uma maneira perfeitamente adequada ao testemunho de todo o Novo Testamento. Pois a morte expiatória de Jesus não é só o ato central de sua vida terrena; é também o acontecimento central de toda a história da salvação, desde a criação até a nova criação no fim dos tempos. Deste ponto de vista, a cristologia do "Servo" deve ser considerada como uma solução capital do problema cristológico neotesta-mentário: Jesus aparece como aquele que realizou, no momento decisivo, a obra definitiva designada por Deus para a salvação do

Page 105: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRIÍTTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 111

mundo. O princípio de toda a história da salvação encontra aqui sua expressão clássica. Quando muito, se pode objetar que esta concepção deixa de lado a pregação de Jesus. Porém, à exceção dos sinópticos, este aspecto da atividade de Jesus não aparece senão em segundo plano no Novo Testamento, ou antes, se acha implícito na obra redentora que ela anuncia. Podemos, pois, concluir que a noção de EbedIahweh caracteriza a obra e a pessoa do Jesus histórico de uma maneira perfeitamente de acordo com o testemunho cristológico do Novo Testamento.

À primeira vista, a figura do "Servo de Deus" não parece admitir uma prolongação que se aplique a uma ação presente e futura de Jesus. No entanto, o cântico central sobre o sofrimento do Ebed começa pela visão de um tempo em que o Senhor "subirá e se elevará bem alto" (Is 52.13); e ao fim se diz dele que "verá a sua posteridade e prolongará seus dias" (Is 53.10), que ele terá "sua parte com os grandes" (Is 53.12). Daí não se conclui, é verdade, uma continuação propriamente dita de sua obra; trata-se, antes, de um epílogo. Porém, tudo o que o Novo Testamento diz acerca do Reino presente de Cristo pode encontrar aqui seu ponto de partida. Enquanto o profeta escatológico, por sua própria natureza, não tem mais que uma função preparatória, a obra realizada pelo Ebed Iahweh já tem um caráter definitivo e proporciona a redenção: ela representa o ponto decisivo da história da salvação. A partir daí, pode-se, com efeito, traçar uma linha tanto para frente como para trás, para o passado como para o futuro. Mesmo que a obra realizada pelo Ebed Iahweh basta-se a si mesma como obra terrena, anuncia, em virtude mesmo do seu caráter decisivo, as consequências que esta obra deve ter para além da vida terrena de Jesus. Isto significa que a noção de Ebed Iahweh pode perfeitamente aliar-se às noções que fazem ressaltar a obra do Cristo presente, futuro e preexistente.

Em princípio, o Novo Testamento poderia ter resolvido, pois, o problema cristológico dando a Jesus o título de Pais. Pois, partindo da importância decisiva reconhecida pelos primeiros cristãos à morte redentora de Cristo, era possível considerar sua obra,

Page 106: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

1-12 Oscar Cullmatin

presente e futura, como incluída neste título. Pode-se até dizer que isso convinha bem à teologia cristã primitiva, para a qual a morte de Cristo domina absolutamente a história da salvação. O rápido desaparecimento de Pais deve-se ao fato de que o Cristo presente determinou de uma maneira muito imediata a vida das comunidades cristãs primitivas, de forma que sua fé em Jesus estava mais ligada à ideia do "Senhor" presente, do Kyrios. Ainda que a obra histórica realizada por Jesus no passado ocupasse um lugar central no pensamento dos primeiros cristãos, a fé nas consequências desta obra, istoé, a fé no £jy/ms elevado à destra de Deus e reinando sobre a igreja e o mundo teve, para a vida quotidiana dos cristãos e para a igreja, uma importância maior ainda que a própria obra. E ao Str\\\or presente que as orações se dirigiam, e no "partir do pão" também a alegria de sua presença ultrapassava até a lembrança de sua morte. Isto nos permite compreender porque o título de Ebedlahweh devia desvanecer-se frente a outros títulos apesar da importância capital que a teologia continuava atribuindo à morte de Cristo.

No entanto, este título cristológico mereceria mais atenção que a que se lhe concede, de ordinário, a teologia moderna. Não só por ser uma das mais antigas respostas à pergunta: "Quem é Jesus?", mas também por remontar ao próprio Jesus. É pois por ele que melhor podemos decifrar o segredo da consciência messiânica de Jesus. Não seria mais exato falar de sua "consciência de ser o Servo de Deus", que de "sua consciência messiânica"? Porém, veremos logo que ainda uma outra ideia tem para ele uma importância fundamental de sorte que, tampouco para ele a noção de Ebed basta para abarcar toda a sua obra. Assim, ele atribuiu a si mesmo um outro título que, por outro lado, vinculou ao de Ebed, a saber: o de "Filho do Homem".

Antes nos será necessário, no entanto, falar de outro título neotestamentário que se refere principalmente à obra terrena de Jesus - título que ademais, só apareceu depois de sua morte e serviu unicamente em certos meios para resolver a questão cristo-lógica: o de Sumo Sacerdote.

Page 107: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CAPÍTULO III

JESUS, O SUMO SACERDOTE (àpXi£p£Í>ç)

Ao ser aplicada a Jesus, a noção de sumo sacerdote guarda estreita relação com a de Servo de Deus. Poder-se-ia até considerá-la como uma variante desta última. Contudo, cabe consagrar-lhe um capítulo à parte, pois, por um lado, a aplicação da noção de Sumo Sacerdote a Jesus teve, no cristianismo primitivo, um desenvolvimento muito distinto - e, por outro, esta noção apresenta aspectos estranhos à figura do Ebed lahweh. É, com efeito, uma concepção cristológica mais complexa que a de Profeta ou a de Servo de Deus, por não relacionar-se exclusivamente à obra do Jesus terreno.

Diferentemente dos títulos que havemos de estudar nos capítulos seguintes, não temos de nos perguntar aqui se existem analogias no paganismo.

1 .0 SUMO SACERDOTE, FIGURA IDEAL DO JUDAÍSMO

O sumo sacerdote é uma figura essencialmente judaica. Pode parecer supérfluo, no entanto, consagrar aqui, como se fará para outros títulos cristológicos, um parágrafo particular à ideia que se fazia no judaísmo acerca do sumo sacerdote, já que o redentor esperado pelos judeus não parece, à primeira vista, ter traços sacerdotais. Não obstante, encontramos no judaísmo tardio certos indícios de uma possível relação entre o Messias-Rei e o Sumo Sacerdote. Mencionemos, em primeiro lugar, as especulações que

Page 108: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

114 Oscar Cullmanii

se relacionam ao misterioso rei Melquisedeque, citado em Gn 14.18 ss. eSl 110.4.

Em Génesis 14.13-24 lemos como Abraão liberta seu sobrinho Ló das mãos de Kedor-Laomer, rei de Elam, e de seus aliados. Quando Abraão volta como vencedor da batalha, Melquisedeque sai ao seu encontro e o abençoa e Abraão lhe dá o dízimo de seu saque. O livro de Génesis não nos informa nada mais a respeito deste misterioso rei Melquisedeque diante de quem Abraão, assim, se humilhou. Sua pessoa também estimulou desde a antiguidade a imaginação dos judeus.

No célebre SI 110, que os cristãos não deixam de citar, lemos no vers. 4: "Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque". Estas palavras se dirigem ao rei, a quem são atribuídas as funções sacerdotais de ordem mais elevada. Incluem-se no quadro da festa judaica da entronização.189 Assim como o misterioso rei da época cananéia era ao mesmo tempo sacerdote, aquele que se espera deve, também, assumir uma função sacerdotal que se eleve muito acima do sacerdócio ordinário - um sacerdócio que não perece, mas que é eterno. Se aqui trata-se do sacerdócio ideal do rei - ideia que se pode encontrar em todo o Antigo Oriente - e se a ideologia real está na base mesma do messianismo, tem-se o incentivo para uma interpretação messiânica da figura do sumo sacerdote.

Que Jesus cite o salmo 110 afim de mostrar que a descendência davídica do Messias é problemática, pressupõe que o rei do qual fala este salmo, e que deve ser sacerdote pela eternidade segundo a ordem de Melquisedeque, não é outro senão o próprio Messias (Mc 12.35 ss.).190 Tal é também o sentimento dos LXX.

""'Cf. H. SCHMIDT, Die Psalmen, 1934, p. 203; A. WEISER, "Die Psalmen" (ATD), 1950, p. 459 ss. Sobre a relação entre Melquisedeque eZadoque, cf. H. H. ROWLEY, "Melchizedek and Zadok" (Festschrift A. Bertholet, 1950, p. 461 ss.).

1911 Esta constatação conservaria seu valor se, como o admite R. BULTMANN, Gesch. d. synopt. Tradition,2* éd,, 1931, p. 145 s., este trecho de Mc 12.35 ss. não devesse ser atribuído a Jesus mas à comunidade primitiva, o que, por outro lado, é pouco provável (cf. abaixo, p. 174 s.).

Page 109: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 115

Contudo, temos que assinalar que nenhum testemunho apoia semelhante tese nos escritos rabínicos anteriores à segunda metade do terceiro século de nossa era.191 Talvez seja porque o judaísmo tendia, por razões de polémica anticristã, a diminuir a figura de Melquisedeque.192

Como em Génesis 14.19 Melquisedeque nomeia primeiro a Abraão e a Deus somente em segundo lugar, tira-se-lhe o sacerdócio supremo para transferi-lo a Abraão (Ned. 32 b; Sanh. 108 b)."-1 No tratado Abot R. Nat. 34, o sumo sacerdote fica expressamente subordinado ao Messias. Aí se diz (tal é ao menos o sentido geral): "Tu Messias, tu és príncipe superior a Melquisedeque; e tu és, por conseguinte, mais amado de Deus que este sacerdote messiânico."

No entanto, tudo leva a crer que no tempo de Jesus não só já se interpretava messianicamente o Salmo 110 mas que, sobre a base de certas especulações teológicas, o judaísmo identificava o próprio Melquisedeque, se não com o Messias, ao menos com outras figuras escatológicas. O capítulo 7 da Epístola aos Hebreus, assim como certas tentativas patrísticas posteriores de ver em Melquisedeque um tipo, uma prefiguração do Cristo, supõem a existência de uma tradição judaica sobre o alcance escatológico da figura do Rei-Sacerdote. É assim que num Midrash (tardio é verdade) do Cântico dos Cânticos,194 o Rei-Sacerdote não está longe de assumir a função de um mediador messiânico. Por um lado, o Elias ressuscitado aparece sob o duplo aspecto de profeta e sacerdote do fim dos tempos.195 Este Rei-Sacerdote pode também assumir, em certas especulações, os traços de Adão con-

vn STR-BILLFJRBECK, IV, p. 452. Para o que se segue, ver todo o excursus: "Der 110. Psalm in der altrabbinischen Literatur", IV, p. 452 ss.

v>- Ver a este respeito, M. SIMON, "Melchisédech dans la polemique entre juifs et chrétiens et dans la legende" (RHPR, 17, 1937, p. 58 ss.)

n3Cf. STR-BILLERBECK, IV, p. 453 s. l,J4 Midr. Cantique de Cantiques (100b); cf. Pesiq. 51a. li,5Cf. J.JEREMIAS, art.'HX(e)íccç (ThWbNT, III p. 934 s.);; também STR-B1LLERBECK,

IV, p. 462 s.

Page 110: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

r1 6 Oscar Cuttmann

siderado como o homem ideal.196 Ocorre, por outro lado, que um sacerdote escatológico apareça na qualidade de Kohen zedek, ao lado de Elias.197 Enfim, devemos mencionar que Fílon assimila o Logos a Melquisedeque e o chama "Sacerdote de Deus".198

Os Pais da igreja falam de certas especulações cristãs gnósticas relativas a Melquisedeque.199 Sem dúvida, aludem a antigos temas judaicos fundidos com ideias gnósticas. E. Kãsemann200 parece, em todo caso, ter razão ao postular a existência, anterior à Epístola aos Hebreus, de especulações relativas a Melquisedeque, de origem em parte judaica e em parte cristã-gnóstica, que assimilavam o sumo sacerdote a personagens dos primeiros e dos últimos tempos, tais como Sem, o arcanjo Miguel, o primeiro homem Adão, Metatrom.201

É preciso ainda citar, a este propósito, o "Mestre de Justiça" "d seita de Qumran. Por um lado, ele apresenta caracteres escatológicos; por outro, como o mostra o Comentário de Habacuque,202 é

lW,F. J. JEROME, Das geschichtUche Melcíiisedek-Blld und seine Bedeutung im Hebrãerbrief, 1920.

is? STR-BILLERBECK, IV, p. 463 s., recorda-nos que o "Mestre de Justiça" da seita de Qumran também é sacerdote, V. abaixo, p. 154 s.

mLeg. Alleg., III, 79; De congr. erud.. 99. ""AMBRÓSIO, Defide, III, 11; JERÓNIMO, ep. 73; EPIFÂNIO, Haer, 55, 5; 67, 3

e 7. Em HIPÓLITO, Refut. Vil, 36; X, 24 e em outros Pais, também se trata de "Melquisedequianos" que colocavam a Melquisedeque acima de Cristo. V. a este respeito G. BARDY, "Melchisédec dans la tradition patristique" (Revue Biblique, 1926, p. 496 ss.; 1927, p. 25 ss.).

200E. KÃSEMANN, Das wandernde Gottesvolk, 1939 p. 130. 201 V. sobre as especulações concernentes a Melquisedeque, além dos autores já cita

dos: M. FRIEDLÀNDER, "Melchisédec et 1'Epitre aux Hébreux" (Rev. des Etudes Juives, 1882, p. 188 ss; 1883, p. 186 ss.); G. WUTTKE, "Melchisédech der PriesterKõnig von Salem. EineStudiezurGeschichte der Exegese" (BZNW, 1927); H. STORK, Die sogenannten Melcliisedekianer, 1928: H. W. HERTZBERG, "Die Melchisédecli traditionen" (Journ. of the Palestime Oriental Society, 1929, p. 169 ss.); O. MICHEL, Art. MeXxioeSÉK (ThWbNT, IV, p. 573 ss.); id. DerBriefa an die Hebriíer, 1949, p. 160. Cf. igualmente J. JEREMIAS em ThBl 1937, p. 309; outras indicações bibliográficas em C. SPICQ, L'Epitre aux Hébreux, II, 1953, p. 213 s.

2111II, 8; K. ELLIGER, Studien zum Habakuk-Kommentar vom Toten Meer, 1953, p. 168.

Page 111: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 117

sacerdote. Convém também mecionar os Testamentos dos Doze Patriarcas, em parttcular Testt Levi 18, onde se anuncia a vinda de um "novo sacerdote'1.203 Se a tese de Dupont-Sommer é exata (e são muitos os argumentos que apontam a seu favor) este "novo sacerdote" não seria outro senão o próprio "Mestre de Justiça".204 Seja como for, os textos de Qumran (IQS 9.11 e IQSa 2.12 ss.), mesmo o Documento de Damasco (12.23; 14.19; 19.10; 20.1) eos Testamentos dos Doze Patriarcas (Rub. 6.7 ss., Sim.7.2 e pass.), distinguem um Messias sacerdotal e um Messias-Rei político, um Messias de Levi e um Messias de Judá, "Messias de Aarão" e "Messias de Israel", o Messias real estando subordinado ao Messias sacerdotal.205 É importante advertir que nestes textos a identificação do sumo sacerdote com o Messias se realiza.

Chegamos, pois, à conclusão que o judaísmo já conhecia um sacerdote ideal que devia consumar, no final dos tempos, o sacerdócio judaico, como o único sacerdote verdadeiro. A noção judaica de sacerdócio deveria, inevitavelmente mais cedo ou mais tarde, fazer surgir semelhante esperança, por ser, em virtude de sua função, o Sumo Sacerdote o verdadeiro mediador entre Deus e seu povo e ocupar, em razão disso, uma posição soberanamente elevada. O judaísmo possuía, na pessoa de seu sumo sacerdote, um homem que já podia satisfazer, dentro do quadro cultual, a necessidade do povo de contato com Deus. Porém, quanto mais o sacerdote existente decepcionava as altas esperanças que nele se depositavam, tanto mais era inevitável que a esperança do fim dos tempos, em que todas as coisas haveriam de encontrar sua consu-

,J Cf. também 8,11-18. J. JEREMIAS cita ainda emThWbNT, II, p. 934, nota30, toda uma série de trechos que considera, com razão, de origem pré-cristã.

11 A. DUPONT-SOMMER, Nouveaux aperçus sur les mamtscrits de la mer Morte, 1953, p. 63 ss. A este propósito se pode mencionar que M. FRIEDLÀNDER, no artigo já citado da Revue des éutdes juives (cf. acima, nota 201), já havia declarado a hipótese de que as especulações relativas a Melquisedeque, e ainda à seita dos Melquisedequianos, teve sua origem no Essenismo.

"K. G. KUHN, "Diebeiden Messias Aarons und Israels" (NTS, 1, 1955, p. 168 ss.)e STAUFFER, "ProblemederPriestertradition" (Theol. Lit. Ztg., 1956, col. 135 ss.), cf. abaixo, p. 143, nota 241 e p. 155.

Page 112: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

1.18 Oscar Cullmann

mação, englobasse também a imagem de um sumo sacerdote ideal, cuja figura se aproximava cada vez mais da do Messias.

Porém, este sumo sacerdote esperado não somente realiza o cumprimento do sacerdócio, mas deve, antes de tudo, superar as insuficiências do sacerdócio representado pelo sumo sacerdote empírico. Sua missão é, pois, determinada por oposição ao papel deste último. É importante esta observação para compreendermos como esta noção de sumo sacerdote foi transferida para Jesus.

2. JESUS E A CONCEPÇÃO DE SUMO SACERDOTE

É possível falar, num sentido cristológico, da atitude de Jesus para com a noção de sumo sacerdote? Alguém poderia sentir-se tentado a descartar, de inicio, esta questão como carente de objeto e passar imediatamente à ideia de 'ITICTOÍÍç àpxiepcóç no cristianismo primitivo.

Com efeito, parece à primeira vista impossível que Jesus tenha atribuído a si mesmo funções sacerdotais quando se pensa, por exemplo, em sua atitude para com o templo. Mesmo se a purificação do templo teve por objetivo não sua supressão, mas a restauração de sua autêntica missão, não é menos certo que Jesus pronunciou palavras que põem diretamente em questão o culto do Templo. Por exemplo, quando disse: "Há aqui alguém maior que o Templo" (Mt 12.6). Ou ainda, a palavra que desempenha um grande papel no processo de Jesus - palavra que os sinópticos apresentam como "falso testemunho" (Mc 14.58 par.), que porém, o quarto evangelho cita de uma forma ligeiramente diferente, como uma palavra pronunciada por Jesus (Jo 2.19). Atrás destas palavras há, certamente, uma declaração de Jesus que anunciava o desaparecimento do Templo. Na interpretação que o Evangelho de João lhe dá (2.21), o próprio Jesus se apresenta como aquele que substitui o Templo.

Tenha ou não compreendido sua missão desta maneira, em todo caso Jesus estava persuadido de que, com a sua vinda, inaugura o fim dos tempos, o culto do templo não podia permanecer

Page 113: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

-RiSTOLOGIA DO INovo TESTAMENTO 119

como antes; ele deve pois ter tido uma atitude crítica com respeito à perenidade da função do sumo sacerdote judaico. Se os evangelhos se fazem sobretudo o eco de sua polémica contra os fariseus, não temos que tirar daí a conclusão de que ele tenha estado mais próximo do partido sacerdotal dos saduceus. Os relatos sinópticos do processo de Jesus - mesmo influenciados pelas tendências da comunidade primitiva - têm conservado, incontestavelmente, a lembrança de que os inimigos de Jesus, aqueles que queriam a sua morte, pertenciam, sobretudo, aos meios sacerdotais. João 11.47 dá provas disso.

A atitude crítica de Jesus para com o sacerdócio não deve, no entanto, fazer-nos recusar a ideia de que ele tenha podido integrar a noção de sumo sacerdote à concepção de sua missão. Temos visto que já no judaísmo, a crítica ao sacerdócio empírico seguia paralela à esperança de um sacerdócio ideal. No Salmo 110, em que o rei é chamado "sacerdote segundo a ordem de Melquisede-que", ele não é só colocado acima do sumo sacerdote judaico, como também é posto, de certo modo, como seu concorrente.

Não se descarta que Jesus tenha aplicado a si mesmo, se não o título ao menos a ideia de um sumo sacerdote "segundo a ordem de Melquisedeque". Pode-se dizer mais. Foram conservadas duas palavras de Jesus nas quais aplica expressamente o salmo 110 ao Messias. Trata-se, primeiro, da pergunta feita aos escribas a respeito do Filho de Davi (Mc 12.35 ss. par.). O próprio Jesus cita aqui o Salmo que - conforme adiante206 - teve uma importância capital para a teologia cristã primitiva. Trata-se da passagem do Antigo Testamento citada com mais frequência no Novo. A explicação dada por Jesus a este Salmo em Mc 12.35 ss. é, para sermos francos, uma das falas mais difíceis que os sinópticos nos transmitiram. De nenhuma maneira é certo que com esta fala Jesus negue ser de ascendência davídica. Pergunta-se também se falava de si mesmo ou se se limitava a uma declaração geral sobre o Messias.

V. abaixo, p. 292 s.

Page 114: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

1'20 Oscar Cutimann

Examinaremos logo este texto e veremos que a chave de sua interpretação deve ser buscada em Mc 3.33.207 Em todo caso, a hipótese de Bultmann208 segundo a qual trata-se de um relato criado pela igreja primitiva, não é razoável: pois é difícil admitir que se tenha inventado uma palavra que necessariamente suscitaria imensas dificuldades teológicas. Porém, podemos supor que Jesus fala de si mesmo. Se tal foi o caso - e bem parece que seja assim, em razão do contexto e da intenção segundo a qual Jesus cita o Salmo - isto seria de suma importância para o conhecimento da consciência que Jesus tinha de si mesmo: ele saberia ser o Rei-Sacer-dote "segundo a ordem de Melquisedeque". Poderíamos, nesse caso, admitir que a ideia de ter que realizar o verdadeiro sacerdócio não lhe foi estranha.

A segunda passagem em que Jesus cita o Salmo 110 é mais clara. Trata-se de sua resposta ao sumo sacerdote em Mc14.62. Jesus uniu aqui, em um só pensamento, Daniel 7 e o Salmo 110: "Vereis o Filho do Homem sentado à direita do poder de Deus vindo sobre as nuvens do céu." O estar "sentado à direita" liga-se indissoluvelmente à imagem do Rei-Sacerdote "segundo a ordem de Melquisedeque". Não é significativo que Jesus aplique a si mesmo a palavra relativa ao Sumo Sacerdote eterno no preciso instante em que comparece diante do sumo sacerdote judaico, que o interroga sobre a pretensão ao messiado? Por sua resposta suben-tende-se que o seu messiado não é o do Messias nacional que os judeus esperavam; mais ainda: não reivindica nem a função de sumo sacerdote terreno que tem diante si; senão que quer ser o Filho do Homem celestial e o Sumo Sacerdote celestial. Esta resposta é, pois, paralela à que dá a Pilatos no Evangelho de João (18.36): diante do representante terreno da autoridade, afirma que Sua soberania não é deste mundo; frente ao sumo sacerdote terreno, afirma que também o Seu sacerdócio não é deste mundo.

V. abaixo, p. 174 s. Cf. Gesch. d. synopt. Tradition, 2a ed., 1931, p. 145 s.

Page 115: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA 1X5 NOVO TESTAMENTO 121

Jesus considera, pois, sua missão como uma consumação do sacerdócio. Há aí perspectivas muito ricas para descobrir e compreender a consciência que Jesus tinha de si mesmo. De qualquer forma, vê-se que a explicação sacerdotal que principalmente a Epístola aos Hebreus dá do problema cristologico encontra um ponto de contato com os duas passagem em que Jesus cita o Salmo 110.

3. JESUS O SUMO SACERDOTE, SEGUNDO O CRISTIANISMO PRIMITIVO

Temos que falar, antes de tudo, da Epístola aos Hebreus. ' Apxiepeúç,, sumo sacerdote, não é sem dúvida o único título cristologico atribuído a Jesus neste escrito, já que também lhe designa o de Kyrios, Senhor; e, sobretudo, como íaòç xov GEOÍ>, Filho de Deus. Isso não impede que seja principalmente como sumo sacerdote que a Epístola aos Hebreus, no conjunto, fale de Jesus.

O título fiecÍTqç, mediadorr -ermo técnico dd erdem jurídicc, com o qual se designa o árbitro ou o fiador - não é mais que uma variante do título de sumo sacerdote. Não é, pois, necessário consagrar a este termo um capítulo especial. Encontramo-lo também na Epístola aos Hebreus (8.6; 9.15; 12.24) como também em I Tm 2.5.

O centro da Epístola aos Hebreus é o capítulo 7. Apoiando-se em Génesis 14 e no Salmo 110, que Jesus mesmo havia citado, o autor, fundamentando-se sobre a Sagrada Escritura, designa a Jesus como o verdadeiro sumo sacerdote. Enquanto outros cristãos intentavam então provar, com auxílio do Antigo Testamento, que Jesus era o Messias esperado pelos judeus, o autor da Epístola aos Hebreus se esmera em demonstrar que Jesus consuma, de forma absoluta, a função do sumo sacerdote judaico, i.e, que esta função tinha para os judeus só um caráter passageiro e imperfeito e que, em razão dessa mesma insuficiência, ela anuncia um sacerdócio que a supera.

A argumentação do capítulo 7 repousa sobre uma interpretação tipológica do Antigo Testamento relacionada com uma tradi-

Page 116: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

122 Oscar Cullmatm

ção judaica relativa a Melquisedeque.209 O autor busca no próprio Antigo Testamento indícios em favor da ideia sobre a qual insiste com tanta frequência: O sacerdote do antigo pacto nada tem de definitivo, de absoluto, e que, pelo contrário, tem de ser substituído pelo sacerdócio, desta vez definitivo e absoluto, do novo pacto. O elemento novo é a realização deste sacerdócio na pessoa de Jesus Cristo: ele é o Sumo Sacerdote no sentido absoluto e definitivo; ele é o cumprimento de todo sacerdócio, de sorte que, daí em diante, desqualifica e torna supérfluos todos os demais sacerdotes.

Apoiando-se na tradição judaicajá mencionada, o autor encontra este sacerdócio absoluto e perfeito prefigurado já na figura misteriosa deste Melquisedeque de Gn 14. Não nos toca dar aqui uma exegese detalhada de Hb 7. Importa, contudo, familiarizarmo-nos com as grandes linhas da especulação cristológica elaborada pelo autor acerca de Melquisedeque, embora sua cristologia não se limite a esta figura de Cristo, que haverá de ocupar a imaginação da igreja antiga, após a do judaísmo.

Antes de tudo o autor - com argumentos um tanto arbitrários do ponto de vista exegético - estabelece um vínculo entre Melquisedeque e Jesus. E se esforça em seguida por demonstrar a superioridade deste rei sacerdote, que prefigura a Jesus, sobre os levitas, os sacerdotes da antiga aliança. Seu argumento é o seguinte: o antepassado dos levitas, ou seja, da tribo sacerdotal judaica, é Levi. Este, era um descendente de Abraão e, segundo a teoria judaica quanto a descendência- teoria que o autor faz sua - Levi existia já nos "rins" de Abraão; assim, o que aconteceu a Abraão também foi a Levi. O fato de haver Abraão recebido, segundo Génesis 14, a benção de Melquisedeque, demonstra que aquele é inferior a este: pois quem abençoa é superior ao abençoado. Levi, e todo o sacerdócio israelita que dele descende, está assim subordinado a Melquisedeque. Este abençoa e recebe o dízimo. É o Sumo Sacerdote por

Cf. acima, p. 114 s., G. SCHILLE, "Erwãgungen zur Hohenpriesterlehre des Hebrãerbriefes"(ZíVH/

T46 1955, p. 81 ss.), supõe a utilização de uma tradição cristã em razão da permuta entre íepeíiç e ctpx\zazx>c.

Page 117: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 1_23

excelência. Ora, este sacerdócio verdadeiro encontrou sua realização em Cristo, que é para sempre o verdadeiro Sumo Sacerdote, o verdadeiro mediador entre Deus e os homens. Toda essa linha de raciocínio parece peculiar para nós especialmente em seus detalhes (alguns eruditos a têm considerado até como um Midrash de Gn 14 e SI 110.4).210 Porém, em sua base se encontra um pensamento teológico profundo: Jesus Cristo, o Sumo Sacerdote verdadeiro, não só pôs fim ao antigo sacerdócio judaico, ele o consumou em sua pessoa.

A noção de sumo sacerdote não está muito distanciada da de Ebed lahweh. Para este último o caráter voluntário de seu sacrifício é um ponto essencial. Encontra-se de novo uma afirmação análoga na Epístola aos Hebreus, que transforma a antiga concepção judaica de sacrifício para por em primeiro plano o caráter voluntário do sacrifício oferecido pelo sumo sacerdote: "Ele se ofereceu a si mesmo" (Hb 7.27). Aqui o autor se liberta das especulações judaicas relativas ao sacerdócio, pois sendo Jesus designado como sumo sacedote, a ideia sacerdotal se associa automaticamente à de Ebed. A função do sumo sacerdote é oferecer sacrifícios. Porém, Jesus mesmo é a vítima. É ao mesmo tempo o sacrificador e o sacrificado, quer dizer, ele só pode sacrificar a si mesmo.

Uma relação direta entre Isaías 53.12 e Hebreus 9.28 pode ser estabelecida; onde se diz que Cristo foi sacrificado de uma vez por todas a fim de "tirar os pecados de muitos homens". Nesta passagem, só a ideia de sacrifício oferecido pelo mediador para expiar os pecados do povo depende da noção judaica de sumo sacerdote. A ideia de um sacrifício voluntariamente consentido lhe é estranha.2" Deste ponto de vista, o título de Ebed lahweh expressa

'Cf. H. WINDISCH, Der Hebrãerbrief (Hdb. z. N.T), 2a ed., 1931, p. 59. É possível que a ideia de um sacrifício sacerdotal voluntário para a expiação dos pecados de outros tenha surgido já no seio do judaísmo. O mártir Eleazar, que considera sua morte um sacrifício expiatório por seus compatriotas (4 Mac 6.29), é um sacerdote. Igualmente, o suposto martírio do "Mestre de Justiça", da seita de Qumran, toma uma importância particular pelo fato deste Mestre ser sacerdote. Em seu conjunto estes sacrifícios se relacionam antes com a ideia da virtude expiatória do sofrimento do justo.

Page 118: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

124 Oscar Cullmaw

com maior exatidão o que Jesus mesmo e a igreja primitiva consideravam como sua obra. Em outros termos, a vinculação das noções de sumo sacerdote e de Ebed corrige o que a noção judaica de sacerdócio tem de equívoca e imperfeita.

O elemento novo e valioso que entra, no entanto, na cristologia, graças à concepção judaica de sumo sacerdote, é a ideia de que Cristo, ao sacrificar-se, manifesta suasoberania sacerdotal; isto é, que a espécie de passividade do cordeiro pascal é descartada ainda mais cabalmente do que na noção deEbedIahweh. E precisamente sacri-ficando-se, indo, portanto, ao mais fundo da humilhação, que Jesus exerce a função mais divina que se conhece em Israel: a de mediador sacerdotal. Daí o elo estreito que aparece na Epístola aos Hebreus entre a ideia de Soberano Sacerdote e a de Filho de Deus. A dialética própria ao Novo Testamento, que descobre a majestade mais alta na humilhação mais profunda, se manifesta, graças à noção de sumo sacerdote, na morte expiatória de Jesus. Aí reside a grande importância desta concepção cristológica. Jesus realiza de uma vez o antigo sacerdócio judaico e cumprindo-o, o torna supérfluo

Em Hebreus 10.1 ss., o autor afirma que o sangue dos touros e de bodes não pode tirar os pecados. Isto quer dizer que no verdadeiro ofício sacerdotal, tal como Jesus o realiza, o sacrificador e a vítima são um só.

A cristologia da Epístola aos Hebreus tem ainda um outro aspecto: Jesus, o sumo sacerdote, leva a humanidade a sua "perfeição" tornando-se ele mesmo "perfeito". Ele restabelece assim o pacto com Deus. O termo TÉAxioç e as expressões que lhe são aparentadas têm um papel importante e permitem uma aproximação à noção de Filho do Homem. Como o sumo sacerdote é mediador entre Deus e o homem, a realização do homem perfeito representa a coroação de sua obra. O termo TÉA-EIOÇ evoca a ideia de perfeição e plenitude. 212

21 2C. SPICQ, L'Epttre ctux Hèbreux, II, 1953, p. 39e/;«ísim, aproxima, por esta razão, o teXeicDv da Epístola aos Hebreus à palavra de Jesus sobre a cruz, tetéXeoTai, que Jo 19.30 relata.

Page 119: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 125

Têm razão os comentários quando sublinham o caráter cultual e sagrado da "perfeição" de que aqui se trata. Voltamos a encontrar este termo, inclusive, na linguagem dos mistérios, e na LXX tem o sentido de "consagrar" "dedicar a"213. Na Epístola aos Hebreus, no centro da qual se ergue a figura do sumo sacerdote, temos que partir desta significação litúrgica e sagrada para compreender o verbo T-eXeiow, sem que seja necessário por isso, excluir toda ideia de perfeição moral ou dizer que este termo é "neutro do ponto de vista ético".2''' Pois se diz de Jesus Cristo que o Pai o tornou perfeito (Hb 2.10; 5.9; 7.28) e, por outro lado, enquanto sumo sacerdote, ele mesmo leva seus irmãos à perfeição (Hb 2.10 s.; 10.14), uma interpretação puramente cultual é demasiado estreita.215 Quando é Jesus Cristo quem dá conteúdo à noção de sumo sacerdote, este se vê elevado a um nível que ultrapassa a esfera puramente litúrgica; é por isto que o termo cultual Te^evovv toma um acento geralmente mais humano e supõe necessariamente também a ideia de uma perfeição moral, tanto para Jesus, o perfeito sumo sacerdote, como para seus irmãos, perfeitamente "santificados" por Ele (2.11).

Muitos teólogos temem falar da perfeição "moral" de Jesus, como se isso devesse necessariamente significar uma recaída na concepção liberal da vida de Jesus. O autor da Epístola aos Hebreus, talvez mais que nenhum outro dos autores do Novo Testamento, teve a coragem de falar da humanidade de Jesus em termos às vezes chocantes;216 e, no entanto, é quem mais fortemente sublinhou a divindade do Filho.

Para conduzir os homens à perfeição deve o próprio sumo sacerdote percorrer as diferentes etapas de uma vida humana. É justo e

213Porex. Ex 29.9 ss.; Lv4.5 ("enchera mão"). Cf. a este respeito (além dos comentários de WINDISCH e de MICHEL sobre Hb 5.9) o tratamento detalhado de C. SPICQ, op.cit., p. 214 ss , na qual se encontra também uma importante bibliografia.

2HPor ex. J. KÓGEL, "Der Begriff TÊAELOW ira Hebráerbrief' (Theol. Studienf. M. Kàhler, 1905, p. 35 ss.).

2,5É o que expressa com razão H. WINDISCH, Kommentar ad 5.9, p. 45. 216Este aspecto não aparece suficientemente no estudo, mesmo assim notável, de M.

RISSI "Die Menschlichkeit Jesu nach Hebr. 5.7 und 8" (ThZ, II, 1955, p. 28 ss.).

Page 120: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

126 Oscar Cuiimann

natural, antes de tudo, pensar na fase final desta vida, na Paixão considerada como sua "consumação". Porém, acentuar a necessária humanidade do sumo sacerdote é afirmar que é através de sua vida inteira, até ao sacrifício final de sua morte voluntária, que ele deve realizar a leXeíoaaiç. Embora tenha conhecido uma condição humana inteiramente semelhante à nossa, foi o único a mos-trar ao mundo o que é ser um homem sem pecado: "tentado como todos nós em todas as coisas, sem cometer pecado" (Hb 4.15).

A impecabilidade de Jesus já havia sido afirmada antes da Epístola aos Hebreus; porém, seu autor se interessa por ela de uma maneira muito especial em razão do caráter sacerdotal de sua cristologia. Insiste neste ponto não somente no capítulo 4.15, como também nos caps. 7.26 e 9.14. Encontra-se novamente, ao menos implicitamente, a ideia em 2 Co 5.21; 1 Pe 1.19; 2.22; 3.18; Jo 7.18; 8.46; 14.30. Os Sinópticos devem ter compartilhado desta ideia já que atribuem a Jesus o poder de perdoar os pecados. Com respeito a Mateus pode-se afirmar isto com certeza, senão não teria modificado a declaração de Mc 10.18: "Por que me chamas bom?" para "Por que me interrogas tu sobre o que é bom?" (Mt 19.17). Evidentemente, ele considerou que a interrogação, tal qual a relata Marcos, punha em dúvida a impecabilidade de Jesus. Porém, a compreendeu bem, para modificá-la assim? A maneira em que Marcos relata esta pergunta parece discordar da afirmação de ser Jesus isento de pecado. A contradição desapareceria se fosse interpretado o fato de "não ser bom" no sentido de cco*6éveta, como possibilidade de estar sujeito à tentação. Em todo caso, para o autor da Epístola aos Hebreus, o fato de Jesus poder ter sido tentado não atenta contra sua impecabilidade. Talvez seja este mesmo o pensamento de Marcos; ele estava persuadido da perfeição moral de Jesus, afirmando ao mesmo tempo, com toda a tradição sinóptica, que Jesus foi tentado.

Porém, nos Sinópticos, Jesus (salvo talvez na cena do Getsêmani) não aparece como verdadeiramente atingido pela tentação. A Epístola aos Hebreus, por sua parte, mesmo mencionando a ausência de pecado, pressupõe, enfaticamente, apossibilida-

Page 121: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 1_27

de de pecar. Por isto a possibilidade de Jesus ser tentado desempenha um papel muito mais importante nela do que nos Sinópticos. Veremos, ademais, que sobre este ponto a Epístola aos Hebreus sublinha a humanidade de Jesus mais vigorosamente que os evangelhos ou qualquer outro escrito do primeiro século. É que o sumo sacerdote deve não só entrar totalmente na humanidade, mas também, no seio da humanidade, participar de tudo o que é humano. Se pensarmos na importância dada ao fato de que Jesus poderia ser tentado, compreendemos que a ideia de uma "perfeição" moral do sumo sacerdote não resulte chocante a nosso autor.

Muito pelo contrário, é pelo fato de Jesus poder ter sido tentado que sua impecabilidade alcança todo o seu sentido. De outra maneira ela não teria, no fundo, sentido algum.217 A diferença profunda entre Jesus e os demais homens aparece plenamente, na Epístola aos Hebreus, por sua cabal incorporação ao género humano. A noção de sumo sacerdote dá todo seu rigor à dialética desta cristologia.

A dupla afirmação de que Jesus podia ser tentado e de não haver sucumbido à tentação dá a sua ausência de pecado (Hb 4.15) um caráter menos dogmático que nas outras passagens mencionadas há pouco, ainda que aqui também apareça, como pano de fundo, a ideia da vítima sem mancha (como em 1 Pe 1.19) ou a de Ebed Iahweh (como em 1 Pe 2.22).

Para medir todo o alcance da expressão x^P^ç ccfictpTÍaç = sem pecado, temos que ler o começo do versículo no qual se encontra: "Porque nós não temos um sumo sacerdote que não possa se compadecer de nossas debilidades; pelo contrário, ele foi tentado como nós em todas as coisas" (4.15). Esta declaração relativa à humanidade de Jesus é raramente apreciada em toda sua força, em todo seu imenso alcance. Sem dúvida, aqui o autor não pensa somente no relato da tentação narrada pelos Sinópticos, por tratar-se

H. WINDISCH, Der Hebrãerbrief, 2a e<±, 1931, p. 39 parece equivocar-se completamente ao dizer: " Pode-se afirmar que é sem pecado, no sentido estrito do termo, aquele que era exposto, exatamente como nós, à sedução das tentações?"

Page 122: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

128 Oscar Cullmaiw

de uma tentação especificamente messiânica à qual só Jesus podia ser submetido. Quando o autor de Hb 4.15 afirma que Ele foi tentado como nós em todas as coisas (íte7ieipáo|o,evov Kccrà návxa Ka8' óu,oiÓTtyca ), as palavras agregadas a jre7te£paou,évoç indicam que o termo não se aplica exclusivamente ao relato da tentação, nem às passagens nas quais se vê a Jesus "tentado", posto à prova, pelos debates doutrinários (cf. Mc 8.33; 12.15; Jo 8.1 ss.): trata-se verdadeiramente de uma tentação geral devido à nossa debilidade humana, à que estamos todos expostos pelo fato de sermos homens. A expressão "como nós", não se emprega como mera fórmula; ela tem um sentido profundo.

Esta declaração da Epístola aos Hebreus, que vai mais longe que o testemunho dos Sinópticos, é talvez a afirmação mais ousada de todo o Novo Testamento sobre o caráter absolutamente humano de Jesus. Esta observação breve, porém carregada de consequências, lança uma luz particular sobre a vida de Jesus e atrai nossa atenção a aspectos desta vida que não conhecemos, e que o autor da Epístola aos Hebreus seguramente tampouco conhecia. Temos de tomar muito cuidado para não buscarmos nela um tema de novela, pois nada de concreto sabemos destas tentações Kaià Ttávra: o essencial, do ponto de vista cristológico, é a afirmação de que Jesus foi tentado em todas as coisas como nós mesmos, porém, sem sucumbir.

A plena participação do sumo sacerdote na humanidade é afirmada do mesmo modo em Hb 2.17: "Em consequência, ele se fez semelhante em tudo a seus irmãos, para vir a ser misericordioso e fiel sumo sacerdote no serviço de Deus, para fazer expiação pelos pecados do povo: pois como ele mesmo padeceu sendo tentado, é capaz de socorrer os que são tentados."

A ideia da debilidade de Jesus, ele também sujeito à tentação, domina ainda o começo do cap. 5. O autor menciona aqui uma tentação concreta (v. 7 s.): "Foi ele quem, nos dias de sua carne, havendo apresentado com grande clamor e lágrimas orações e súplicas àquele que podia livrá-lo da morte e, tendo sido escutado e se livrado da angústia aprendeu, embora sendo Filho, a obediên-

Page 123: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 129

cia pelo que padeceu." Que o autor tenha pensado aqui no Getsê-mani parece-nos evidentemente a explicação mais provável.3I8

As expressões "clamor" e "lágrimas" são tão concretas que devem referir-se a um acontecimento determinado em que Jesus tenha orado para ser salvo da morte. Esta descrição, no entanto, não se enquadra bem na crucificação, a despeito da menção do grito de Jesus. Só pode referir-se à terrível tentação do Getsêmani, onde a Jesus ficava, todavia, a possibilidade de escolher outro caminho que o da obediência que devia levá-lo à cruz.219

Tampouco compreendo como, em presença de duas possíveis traduções de eiaaKoixrfleiç àrcò xfjç eyX,aJÍ£Íccç "ouvido e livrado de sua angústia" ou "escutado por causa de sua piedade", se possa decidir cm favor da segunda."" Todo o contexto leva a dar a eíActpeía o sentido de "angústia"."' Justamente aí está a tentação de Jesus, éa í que se mostra sua ào"9évera: como todo homem, teme morrer. Porém, Deus respondeu à sua oração já que ele superou suaangústiac pôde dizer: "não o que eu quero..."

Estes versículos são de suma importância para a cristologia. Não há neles o menor traço de docetismo: Jesus é verdadeiramente homem e não simplesmente um Deus disfarçado de homem. O autor emprega expressões que mostram que a seus olhos a angústia de Jesus foi mais terrível ainda do que o relato dos evangelhos permite supor. Na cena do Getsêmani, tal como a conhece-mos, tem de ser acrescentado que Jesus em sua angústia mortal

-,|SÉ também a opinião de J. HÉRING,"L'Epítreauii Hchreux" Cominem, d\t Noiíwtin Tem.), 19M, a<i loc. Contra esta tese, M. R1SSI, op. <.7r, p. 39. Em nosso estudo, Ininorleilité de \'âme OH résurrecúon des morts, 1956, p. 25 ss., insistimos sobre a angústia de Jesus ao nos referi mios precisamente a este trecho da Epístola aos Hebreus.

;ií,Cr. O. CULLMANN, Dieu et César, 1956, p. 42 s. 2-"Se não se leva em conta o contexto, as duas traduções são admissíveis. O. MICHEL

c C. SPICQ, em seus comentários, preferem aqui a segunda tradução (um e outro dão, igualmente, um resumo da história da interpretação deste trecho); igualmente M. RISSI, op. cit., p. 31Í. Por outro lado, os comentários de J. HÉRING c de H. WIND1SCH traduzem como o temos proposto (este último, no entanto, com um sinal de interrogação).

2-' A conjectura muitas vezes citada de HARNACK (o acréscimo da partículaoòic) não se justifica, nem é necessária para explicar o texto assim traduzido.

Page 124: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

)3t) Oscar Cullmann

gritou e chorou. Ele não considerou a morte, como um estóico resignado, como a passagem natural de um estado para outro. Viu nela algo terrível que Deus detesta: o "último inimigo", como diz o apóstolo Paulo (1 Co 15.26).222

O autor da Epístola aos Hebreus teve, à sua disposição, uma tradição independente da dos evangelhos? Sobre isto não é possível pronun-ciar-se com certeza. É possível que em outros lugares ainda faça alusão a fatos precisos da vida de Jesus transmitidos somente pela tradição oral, por exemplo quando escreve no capítulo 12.3: "Considerai aquele que sofreu contra sua pessoa tal oposição da parte dos pecadores". Porém, talvez pense aqui só em episódios já relatados pelos evengelhos.

A confirmação mais nítida do ensino da Epístola aos Hebreus sobre a plena humanidade de Jesus é a afirmação segundo a qual ele aprendeu a obediência (5.8). Esta expressão (a qual, se tem tentado atenuar, mas sem nenhum êxito, a meu modo de ver) supõe um desenvolvimento interior, uma evolução da pessoa de Jesus. A vida de Jesus não seria verdadeiramente humana se não se pudesse descobrir nela algum desenvolvimento. Outra passagem do Novo Testamento (Lc 2.52) o diz por outro lado claramente: "Jesus crescia (TcpoéKOJtxev) em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e dos homens."

Este £U.cc6ev de Hebreus 5.8 esclarece também a expressão Te^eioOv, da qual já falamos e que aparece precisamente no versículo seguinte. Paralela à passagem onde se diz que Jesus "aprendeu" a obediência, lemos, de fato (2.10), que ele foi "levado à perfeição pelo sofrimento". Há aqui uma indicação evidente de um certo desenvolvimento, de um progresso moral que encontra seu coroamento na obediência expiatória, obediência que Jesus precisou "aprender", para levar a bom termo a missão de Ebed lahweh. A "obediência" de Hebreus 5.8 recorda a mesma expressão em Fl 2.8. A gradação que se expressa lá por u.é%pi

-n Só na medida em que se leva a sério a morte, pode-se também levar a sério a ressurreição, Cf. nosso estudo: Immortalitê de i'âme ou résurrection desmorts, p. 32 ss.

Page 125: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO .TESTAMENTO 131

supõe, ademais, um certo progresso no caminho da humilhação: "obediente até a morte".

Para a Epístola aos Hebreus, o essencial não é tanto a maneira em que Jesusfoi feito homem, mas, antes, que foi homem. Nisto reside sua função propriamente sacerdotal. Ao Cur deus homo de Anselmo a Epístola aos Hebreus responde baseando-se na ideia de sumo sacerdote: é necessário que este sofra com os homens, para poder sofrer por eles.

A ideia de um desenvolvimento interior de Jesus é, para muitos teólogos, mais insuportável ainda que a de uma perfeição moral.223 Vêem nela o espectro, muito justamente desacreditado, da imagem liberal de Jesus. Este é um temor injustificado: tirar, com a Epístola aos Hebreus, todas as consequências da encarnação de Jesus, e mostrar que como feito homem, foi homem, não significa ipso facto, entregar-se a uma interpretação "psicologizante". Seria, antes, necessário precaver-se de outro perigo: o do docetismo que, desde as origens e já no Novo Testamento, representa a heresia por excelência. Escandalizar-se por estes traços tão humanos de Jesus prova que não se tem compreendido o que o Novo Testamento entende por "fé em Cristo". Pois esta fé é, essencialmente, a fé apesar do escândalo da humanidade. Os escritos do Novo Testamento que insistem mais vigorosamente sobre a divindade de Cristo são também aqueles que mais sublinham sua humanidade; e é justamente na Epístola aos Hebreus onde a divindade de Cristo é afirmada com mais ousadia, já que o Filho é aí interpelado como criador do céu e da terra (1.10).

Tampouco seu autor teme, celebrar as qualidades e atributos humanos de Jesus: lemos que tornou-se "um sumo sacerdote misericordioso e fiel" (2.17); trata-se inclusive da fé de Jesus. A doutrina sacerdotal da epístola quer, com efeito, que Jesus - "chefe e consumador da fé" (12.2) - tenha, ele mesmo, também crido,224 e que tenha conduzido os homens a crer em sua obra.

"'Cf. acima, o. 124 s. , , , „ r , , . . . . . . , . ,• . ' - Í , ' - ? 1 Esta interpretação se toma lícita também qb^âb sêíJiía-o^meco do •camitnio rynn

Page 126: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

132 Oscar Cullmann

Segundo a doutrina fundamental da Epístola aos Hebreus, Jesus o Sumo Sacerdote, graças à sua humanidade, "santifica" nossa humanidade; a "completa", a torna "perfeita". É o que já temos constatado a propósito do termo xeXeiovv. E. Kãsemann tem razão ao estabelecer aqui uma relação com a figura do primeiro homem celestial.225 Pode-se mencionar, a título de comparação, o mito gnóstico segundo o qual o Redentor teve de ser resgatado para chegar, assim, a ser chefe dos demais.

Fica-nos, todavia, por colocar em evidência um aspecto da obra sacerdotal de Jesus que, não obstante o paralelismo indicado, mostra o abismo que separa a teologia de hebreus da mitologia e da gnose: é o caráter único da obra do sumo sacerdote, o ètpánaÇ. Esta unicidade está em oposição total à constante necessidade que persegue o sacerdote do antigo pacto de repetir seu ministério. Desse ponto de vista também, Jesus não somente realizou o antigo sacerdócio judaico como também eliminou todas as suas imperfeições.

Por isso a Epístola aos Hebreus insiste tanto no ècpámí;. A obra de Jesus é ato definitivo e decisivo que, precisamente por ser único, traz aos homens a salvação. Aqui a ideia essencial é que não se trata de um ato a ser renovado pelo próprio sumo sacerdote. Porém, um outro pensamento se encontra ainda como pano de fundo: este ato tampouco pode ser renovado pelos irmãos, apesar da solidariedade do sumo sacerdote com a humanidade destes. "Uma vez", ècpá7ta%, significa aqui "de uma vez por todas": "entrou de uma vez por todas no lugar santíssimo com o seu próprio sangue, tendo obtido uma redenção eterna" (Hb 9.12); veja também 9.26; "somos santificados pelo sacrifício do corpo de Jesus Cristo, de uma vez por todas" (10.10). No capítulo 10.14, "uma vez" significa igualmente "para sempre" (eíç tò ôirjveKéç). O acontecimento histórico único, irrepetível, possui um valor redentor decisivo e infinito. O que Jesus, o sumo sacerdote, realizou sobre o plano terreno é, por conseguinte, o centro de toda a história da salvação,

E. KÃSEMANN, op. cit. (cf. p. 116, nota 200), p. 136 s.

Page 127: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOI.CHUA MO NoVO I -:.STAMI-:NTO 133

o divisor (meio) do tempo. Todo o cullo posterior centra-se neste acontecimento histórico: a vida humana vivida de uma vez por todas por este sumo sacerdote, coioada <U> uma vez por todas pela morte expiatória que dá a esta vida sua plenitude e sua perfeição.

Deste ponto de vista o culto cristão não c possível senão sob a condição de respeitar absolutamente este é<ptxTtaS;. É verdade que é inexato qualificar a missa católico-romana como ''repetição" do sacrifício de Jesus, como o fazem, amiúde, os protestantes.226 Os teólogos católico-romanos sempre recusaram esta interpretação e têm afirmado que se trataria de uma "atualização" do sacrifício de Cristo. Porém, não é isto já um ataque ao è<pcbia£ da Epistola aos Hebreus, em particular quando se qualifica a missa de ''sacrifício"? O sacrifício, como tal, não pode ser "atualizado". Senão, corre-se o perigo de recair ao nível do antigo sacerdócio judaico, no qual o sumo sacerdote deve repetidamente oferecer o sacrifício. Um culto cristão fiel aoè(pá7tc(£ deve evitar toda tentação, por débil que seja, de "reproduzir" este ato central em lugar de deixá-lo ali onde o próprio Deus o Senhor dos séculos o tem colocado: em um momento preciso do terceiro decénio da nossa era Oqueéatual operante c eficaz em nosso culto são as consequências deste ato salvador e não o ato em si O Senhor presente no culto é o Kyrios da igreja e do mundo elevado à destra de Deus o Senhor que sobre a base de seu ato expiatório continua sua obra de mediador é o ressuscitado A relação entre sua crucificação e a celebração da eucaristia é indicada pelas palavras Eic tfiv éufiv àváuvnõ"iv "em memória de mim" o que quer dizer:em lembrança do ato que eu realizei em virtude do qual eu estarei no meio de vós como o Senhor ressuscitado

É por isso que o autor da Epístola aos Hebreus insiste tanto sobre o fato de Jesus ser, na qualidade de sumo sacerdote, o mediador de um novo pacto com Deus: "É por isso que ele é o mediador de um novo pacto" (9.15). No capítulo 12.24, igualmente se lhe chama SiaOfjicriç véocç u,£0"í/niÇ. Aqui o sumo sacerdote se une de novo com o Ebed lahweh, que tem também por função o restabelecimento do pacto com Deus.

'•"Cf. O. CULLMANN, Christ et le Temps, p. 120.

Page 128: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

134 Oscar Cullmaim

Chegamos assim ao problema do efeito duradouro e permanente deste ato único sobre os crentes. Cristo torna-se o àp^rr/óç, o chefe de uma nova humanidade, o autor (ocmoç) da salvação para quantos o obedeçam (Hb 5.9). A correspondência é perfeita: obedecem ao Cristo, como o próprio Cristo obedece ao Pai. Já vimos que ele faz deles xéXeioi, assim como Ele próprio tor-nou-se o TéXeroç. Em um plano mais elevado, ,hes dá capaciiação para apresentarem-se diante de Deus, assim como o sacerdote do antigo pacto lhes tornava aptos para render-lhe culto. "Por um só sacrifício conduziu para sempre à perfeição aqueles que são santificados" (Hb 10.14). TeXeioíjv é quase sinónimo de áyiáÇeiv. Igualmente, no capítulo 2.11: "Pois o que santifica e aqueles que são santificados provêm de um só".

A Epístola aos Hebreus não diz como se deve representar a relação entre o ato único de Jesus e a santificação daqueles que são levados à perfeição, fazendo-se abstração da fé de cada um. A Epístola se limita a constatar o efeito deste ato. Por analogia com Rm 5.12 ss., pode-se talvez pensar que esta relação é paralela à que existe entre Adão e a humanidade pecadora. Porém, na Epístola aos Romanos, esta relação tampouco é explicada senão meramente constatada.-27 A interpretação que Agostinho dá sobre ela não se encontra explicitamente no Novo Testamento.

Considerando a importância dada à humanidade de Jesus, a sua solidariedade conosco na qualidade de sumo sacerdote, existiria a tentação de se buscar esta relação em uma Imitatio Christi. De fato, uma expressão tal como ctp%n.YÓç poderia sugerir uma explicação deste género e se pode descobrir já na Epístola aos Hebreus alguns indícios do que será mais tarde a ideia de "imitação de Cristo". Contudo, a importância capital dada ao ètpáTca^ mostra que, segundo nossa Epístola, uma imitação de Cristo não é possível sem a condição de se reconhecer de antemão que não podemos imitar a Jesus: ele é sem pecado e nós somos pecadores; ele oferece o sacrifício de sua morte expiatória, do qual somos

Cf. abaixo, p. 223 ss.

Page 129: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 135

incapazes. O ato decisivo de obediência que, precisamente, faz de nós, TÊXEIOI, é inimitável.228 Assim, como em Paulo, a relação entre nossa perfeição e a do sumo sacerdote se encontra unicamente na fé no ècpáixa^ do ato sacrificial de Cristo.

* * *

Em Hebreus 6.20, encontramos no termo irpó5popioç, precursor, outra maneira de caracterizar as relações entre o sumo sacerdote e os crentes. Este título apresenta um novo aspecto da obra sacerdotal de Jesus: o de glorificado. Até aqui temos visto que o Cristo, graças a sua vida humana que culmina em sua morte expiatória, se converteu no autor (ocíxioç, àç>%r|yóç, Hb 5.9) da salvação dos homens. Porém, ao "penetrar mais além do véu", como precursor, leva também consigo os seus em sua ressurreição e suas consequências. Certamente, este segundo aspecto está inteiramente subordinado ao primeiro; é por isto que neste capítulo temos introduzido a noção de Jesus Sumo Sacerdote no grupo dos termos cristológicos que se relacionam, antes de tudo, com a obra terrena de Jesus. No cap. 9.12b lemos ainda que "Ele entrou de uma vez por todas no lugar santíssimo, com seu próprio sangue", porém, ao escrever isto, o autor se refere também à ressurreição, e a expressão rcpóôpouoç indica um pensamento próximo à afirmação que encontramos em Paulo229 e no Apocalipse de João:230 Jesus tornou-se por sua ressurreição o ApcuTÓTotcoç ixõv vefcpcòv A relação entre a ressurreição de Jesus e a nossa é análoga à que Paulo estabelece em 1 Co 15 12 ss

Porém, o autor sublinha, ademais, que desde então o sumo sacerdote permanece no lugar santíssimo, e que ali continua sua obra. Expressa ainda a mesma ideia quando, inspirando-se no Salmo 110.4,

" s Em INÁCIO DE ANTIOQUIA não ocorre o mesmo. Parece, com efeito, que afirma que a perfeição pode ser encontrada pelo mártir que dá sua vida por Cristo.

" 'Rm 8.29; Cl 1.18. Cf. 1 Co 15.20: ÒLiuxp%r\ tâx K£KOip<onÉvcovc -;"> Ap 1.5.

Page 130: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

I'36 Oscar Cullinann

o proclama o sacerdote eiç tòv aíôva, por toda a eternidade (Hb 6.20), £iç xò 8ir|V£Kéç, para sempre (7.3). Sacerdote "segundo a ordem de Melquisedeque" tem o mesmo sentido que "sacerdote por toda a eternidade". Na segunda metade do cap. 7, estas expressões "por toda a eternidade", "para sempre", formam o leitmotivm que corresponde ao leitmotiv que é o è(pánaií,. Na qualidade de Sumo Sacerdote, Jesus cumpre pois um duplo ministério: por um lado, o do ato expiatório já realizado de uma vez por todas; por outro, o daquela prolongação, da extensão desta obra que dura por toda a eternidade. No fundo, não se trata verdadeiramente de um ministério duplo, já que tudo repousa sobre o seu sacrifício único: "mas ele, porque permanece eternamente, possui um sacerdócio imutável" (Hb 7.24). Aqui este sacerdócio é chamado à7tapápccTOÇ, imperecível. Isto é, que o reino atual do Cristo é considerado também como uma obra sacerdotal. A noção de sumo sacerdote permite, pois, ao autor estabelecer uma relação tão estreita quanto possível entre a obra atual de Cristo e sua morte sobre a cruz: "é também por isso que ele pode salvar perfeitamente aqueles que por meio dele, se aproximam de Deus, vivendo sempre para interceder por eles" (Hb 7.25). Trata-se aqui, incontestavelmente, de um sacerdócio que o Cristo exerce desde a ressurreição e continua exercendo eíç, TO navce^éç, para todo o sempre.

A ideia da mediação sacerdotal do Cristo presente está expressa nesta passagem (Hb 7.25) de um modo verdadeiramente clássico, quando aqueles a quem aproveita esta mediação são chamados 7r.pooepxóu.evoi ÒY cunoí) TÔ> Beô> "aqueles que se chegam a Deus por meio dele". Por certo este acesso repousa inteiramente sobre o sacrifício realizado no passado por Jesus; porém, o autor pensa aqui no efeito, na prolongação deste sacrifício, ou seja, na obra que Jesus Cristo, o Sumo Sacerdote, realiza agora que está assentado à destra de Deus.

:"C.. igualmente cap. 10.13 s

Page 131: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 137

lim que consiste o ministério sacerdotal que Jesus Cristo realiza iitualmente por nós? Aquele que "vive para sempre", "intercede por nós" (èvix>yxávei, 7.25); comparece "por nós diante de Deus" (9.24). Em outros termos: sua obra consiste em interceder pelos seus. O autor insiste em que é o Cristo presente quem intercede, o designado como o itáviOTE Çrôv (7.25), o Cristo vivo.112

A intercessão de Cristo - que, em virtude de sua obra realizada de uma vez por todas, é sempre eficaz - é ação autenticamente sacerdotal. No sentido de que "vive para sempre" deixou de interceder por nós de uma maneira exclusivamente coletiva, como em sua morte expiatória; agora intercede, também particularmente, por cada um de nós diante Deus. Vemos, pois, novamente, o quanto ambos os aspectos do ministério sacerdotal de Jesus, a obra realizada de uma vez por todas, e a obra que prossegue no presente, estão estreitamente relacionadas, mantendo sua diferença: "Jesus Cristo, o mesmo ontem e hoje..." (Hb 13.8).

Se o Cristo vivo pode interceder por nós ainda agora é por que ele é o mesmo que viveu sobre a terra, sendo homem e tentado em tudo como nós. Só por isso pode ainda hoje solidarizar-se conosco. Sua encarnação não foi, pois, necessariamente tão só para realizar seu sacrifício único e perfeito, mas também para poder interceder, hoje ainda, em nosso favor. A ideia de intercessão contínua, presente, do Cristo é de importância capital para a cristologia; e a dogmática deveria levá-la mais em conta. Veremos, aliás, que não se trata de uma opinião particular do autor da Epístola aos Hebreus. Voltaremos a vê-la em Paulo e, mais explicitamente ainda, nos discursos de despedida do Evangelho de João.

Temos na Epístola aos Hebreus uma linha que, partindo do sacerdócio de Jesus Cristo, conduza ao terceiro aspecto de sua

•'1•'Já a expressão familiar ao Amigo Testamento, "o Deus vivo," que reaparece muitas vezes na Epístola aos Hebreus (3.12; 9.14; 10.31; 12.22), indica que Deus opera de uma maneira constante. Enquanto que o Verbo Çíyv, aplicado a Cristo no cap. 7.8 (como em Lc 24.5 e Ap 1.18) evoca, sobretudo, a vitória obtida sobre a morte pela ressurreição, aqui (cap. 7.25) o autor deve ter pensado na ação de Cristo que continua.

Page 132: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

138 Oscar Cullinann

obra, o escatológico? À primeira vista, parece que não. Em todo caso, o autor não desenvolve a ideia de que quando Jesus voltar tenha de exercer uma função sacerdotal particular. No entanto, em Hb 9.28 encontramos uma passagem que faz alusão a este aspecto do problema: "Igualmente Cristo, que se ofereceu uma vez para levar os pecados de muitos, aparecerá, sem pecado, uma segunda vez, àqueles que o esperam para sua salvação". Aqui é, sobretudo, a expressão EK ôevcépov que é interessante, porquanto faz uma evidente alusão à parusia.

Equivocadamente, se tem sustentado que o Novo Testamento não fala de um "retorno de Jesus". Em nossa passagem, os termos empregados mostram, sem equívoco possível, que se trata de uma "segunda" vinda de Jesus.23-1

A expressão &K SEtccépov caracteriza a obra escatológica do sumo sacerdote, assim como o ècpáTa£, caracteriza sua obra terrena e èiç TÒ ôiTiv8Kéç, sua obra presente. Contudo, o autor não diz expressamente em que consistirá a obra especificamente sacerdotal de Jesus no fim dos tempos. Limita-se a indicar pelas palavras "sem (relação com o) pecado"; ou seja, não para expiar nosso pecado, mas para levar-nos à plenitude de nossa santificação. Quando tudo estiver consumado, a humanidade terá ainda, mais uma vez, necessidade de um ministério mediador do Cristo sacerdote. O judaísmo havia concebido a figura do sumo sacerdote ideal, precisamente em relação com a esperança escatológica. Não é, portanto, surpreendente que a Epístola aos Hebreus, o único livro do Novo Testamento que nos oferece uma cristologia completa do sumo sacerdote, tome também em consideração este aspecto de seu ministério, esta consumação escatológica da reconciliação da humanidade com Deus.

Acabamos de constatar que a noção de sumo sacerdote fornece, na Epístola aos Hebreus, uma cristologia completa. Engloba

'A ideia de um retorno sobre a terra era já familiar ao pensamento judaico antes da morte e da ressurreição de Cristo: é o que demonstra a crença no retorno do profeta, em particular no retorno de Elias. Cf. acima, p. 33 ss.

Page 133: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 139

os três aspectos fundamentais da ação de Jesus: a obra terrena única (è(páKot ), a obra presente do Cristo glorificado (éiç TO 5vr|VEKéç) e a do Cristo que volta (ÈK Ôeutépovj); "ontem", "hoje", "eternamente" (Hb 13.8). Poder-se-ia, quando muito, objetar que neste esquema a obra do Cristo preexistente não foi levada especialmente em consideração. No entanto, mesmo fazendo abstração da frase ousada (1.10) que faz de Cristo o Criador do céu e da terra, as especulações relativas a Melquisedeque apresentam ao menos alguns indícios neste sentido. Por outro lado, o autor atribuiu a Jesus, além do título de sumo sacerdote, outro título cristológico que indica justamente sua preexistência: "Filho de Deus".

Ademais, a doutrina do sumo sacerdote estabelece um elo entre a história da salvação, tal qual se desenvolve no Antigo Testamento, e as afirmações características do Novo Testamento: Cristo cumpriu todo o sacerdócio do povo de Israel, como cumpriu em sua pessoa a função do Templo e o substituiu. O sacerdócio do antigo pacto tornou-se supérfluo, pois Jesus compreende em sua pessoa toda a vida cultual do povo escolhido. Isto é o que também faz supor a passagem de Mateus (27.51), em que se diz que o véu do Templo se rasgou em dois: o evangelista deve ter pensado que Jesus é o Sumo Sacerdote que nesse momento penetrou no lugar santíssimo.

Em conclusão, podemos dizer que, entre as doutrinas cristo-lógicas examinadas até aqui, a que diz respeito ao sumo sacerdote é a que expressa, de modo mais exaustivo e adequado, a ideia que o Novo Testamento faz acerca de Jesus. Sua vantagem apóia-se em unir os três aspectos da obra de Jesus, embora o último, o aspecto escatológico, seja mais mencionado do que desenvolvido. Ademais, a relação recíproca destes três aspectos concorda com o conjunto do testemunho do pensamento cristão primitivo, já que, por um lado, o sacrifício da cruz se encontra no centro da obra sacerdotal de Jesus e, por outro, sua função mediadora presente assume uma importância que corresponde ao interesse atual da igreja pelo Kyrios glorificado.

* * *

Page 134: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

140 Oscar Culhnann

É, então, na Epístola aos Hebreus que se encontra a única cristologia completa que gire em torno do sumo sacerdote. No entanto, a encontramos mais ou menos explicitamente em outros escritos do Novo Testamento.-^ É por isso que o Filho do Homem que aparece no meio dos sete castiçais (Ap 1.13), é representado na figura do sumo sacerdote: "vestido de longas túnicas e cingido pelo peito com um cinto de ouro". O autor não dá muita atenção a esta imagem, já que a do "Cordeiro" tem para ele maior importância.

A cristologia do sumo sacerdote se apresenta mais vigorosamente e com maior relevo no Evangelho de João. De todos os livros do Novo Testamento é este o que, também a partir de outros pontos de vista, mais se aproxima da Epístola aos Hebreus. Não é surpreendente, pois, encontrar aí novamente a ideia de Sumo sacerdote. C. Spicq2-35 fez notar que segundo Jo 18.15 o discípulo bem-amado era conhecido do sumo sacerdote judaico. Suas relações com os meios sacerdotais explicariam seu interesse pela função sacerdotal de Jesus.m A tese de Spicq, segundo a qual o autor da Epístola aos Hebreus haveria tão-somente tomado emprestado sua cristologia sacerdotal dos escritos joaninos, não se impõe necessariamente: com efeito, esta concepção remonta, de maneira definitiva, ao próprio Jesus; e a igreja primitiva inteira aplicava o

'M A interessante tentativa de G. FRIEDR1CH, "Beobachtungen zw messianishen Hohepriestererwartimg in den Synoptikerrí' (ZTIiK, 53, 1956, p. 265 ss.) de descobrir, por onde quer que vá nos Sinópticos, indícios de uma cristologia do sumo sacerdote, revela numerosas relações entre a ideia do sumo sacerdote e o resto da cristologia do Novo Testamento, mesmo que, em muitos casos, estes continuem problemáticos. O autor parte da pressuposição de que a messianologia do judaísmo tardio dependia em grande parte da ideia de sumo sacerdote messiânico.

21Í C. SPICQ, "L'origine johanniqtie de la concepcion du Christi-prêtre dans 1'Epítre aux Hiíbreux" (Ata Sources de ia tradition chrétieitne, Mélanges Aí. Goguet, ,950, p. 258 ss.). Sobre o mesmo tema, cf. também, O. MOE, "Das PriestertumChristi im Neuen Testament ausserlialb des Hebracrbriefs" (TliLz, 72, 1947, col. 335 s.); E. CLARKSON, "TlieantecedentsoftheHigh-PriestTheme in Hebrews" (Atiglican. Theol. Ri'v., 1947, p. 92 ss.).

2w Ademais, C. SPICQ chama a atenção ao fato de que a túnica de Jesus que, segundo João 19.23, era sem costura, lembra a vestimenta do sumo sacerdote.

Page 135: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CÍOÍÍTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 141

SI 110 a Jesus. Assim, pois, pode não ter havido nenhuma dependência direta.

É primordial reconhecer, contudo, que o autor do quarto evangelho adere espontaneamente a esta concepção. Pensemos, antes de tudo, no capítulo 17. Esse capítulo forma parte dos discursos de despedida e geralmente é intitulado de "oração sacerdotal". Este título não é tão antigo como se poderia crer. Os Pais da igreja não o conheciam; embora, por exemplo, Cirilo de Alexandria assinala a propósito de Jo 17.9 que Jesus opera aqui como sumo sacerdote.2" O título, "oração sacerdotal", só foi aplicado ao conjunto deste capítulo na primeira metade do século XVI, pelo teólogo protestante Chytraeus, e logo se impôs, tanto na teologia protestante como na católica.

Chytraeus não se equivocou ao empregar esta expressão. Com efeito, toda esta oração não se explica senão pela consciência que tem quem a pronuncia de realizar uma função sacerdotal. Jesus dirige esta oração ao Pai, a fim de que santifique aos seus e os torne capazes de recolher os frutos do sacrifício que ele, jesus, vai oferecer. A oração pela santificação dos seus (17.17) e por sua separação do mundo (17.11 ss.) é uma oração tipicamente sacerdotal, com a diferença de que no Antigo Testamento tinha um caráter cultual enquanto aqui deve entender-se num sentido moral, já que Jesus cumpriu o sacerdócio israelita. Como o próprio Cristo foi santificado pelo Pai (10.36), da mesma maneira os seus devem ser santificados. Pe. Spicq faz notar, com razão,2-58 que a mesma ideia de santificação se encontra em Hb 10.10.

Porém, é principalmente o segundo aspecto da cristologia da Epístola aos Hebreus que se desenvolve nos discursos de despedida: a ideia de que Jesus em sua qualidade de "iniciador" (àp^iryóç) e "precursor" (7tpóôpou.oç) precede os seus e continua assim no presente seu ofício sacerdotal de mediador. Este é o sentido da passagem da oração sacerdotal em que Jesus pede que aqueles que

17 MPG, 74, col. 505. Cf. C. SPICQ, op. cit., p. 261, nota 4. ,KUEptire aux Hébreux, I, 1952, p. 122 s

Page 136: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

Ij)2 Oscar Cuiimaim

o Pai lhe tem dado estejam com ele onde ele estiver (17.24). Igualmente a palavra relativa à "preparação das moradas na casa do Pai" (14.2 ss.) corresponde, como mostrou Spicq, à "preparação da cidade celestial" em Hb 11.16.

Os escritos joaninos também são os que, com a Epístola aos Hebreus, mais insistem na ausência de pecado em Jesus: "Quem dentre vós me convence de pecado?" (Jo 8.46); "nele não há pecado" (1 Jo 3.5).2-19

Porém, é a ideia de Paracleto a que mais nos parece estar em relação com a de sumo sacerdote. Tem-se advertido, muito justamente, sobre o caráter jurídico do Paracleto.240 No momento, este caráter está em relação com o papel de mediador do sumo sacerdotete: "Se, todavia, alguém pecar, temos um rcccpáioliitoç, advogado, junto ao Pai, Jesus Cristo, o justo" (1 Jo 2.1). A função de Jesus é descrita da mesma maneira em Hb 7.25 e 9.24. Segundo as passagens do Novo Testamento que citam o SI 110, Jesus segue operando atualmente como aquele que está à direita de Deus. Igualmente, o Evangelho de João afirma que Ele sustenta aos seus na terra pelo Paracleto. Jesus parece inclusive resumir todas as orações que dirige ao Pai e, portanto, toda sua função sacerdotal, pedindo a Deus que envie aos seus outro Paracleto, a fim de que permaneçam eternamente com Ele (Jo 14.16). É este Paracleto que, de agora em diante na terra, tem de "santificar" aos crentes; é ele, "o Espírito de verdade, a quem o mundo não pode receber", o que conduzirá em toda verdade aqueles que pertencem a Cristo. Ademais, se Jesus, em seus discursos de despedida, recomenda a seus discípulos dirigirem-se a Deus "em seu nome", indica com isso que continuará, uma vez glorificado, sua função sacerdotal, encar-regando-se, ele próprio, de apresentar a Deus suas orações. Tal é o sentido da fórmula com que os cristãos terminam suas orações: 8ux 'Iricot) Xpiccoí).

Ver também a expressão de 1 Jo 3.7, onde Jesus é chamado "justo". TH. PREISS, "La justification clans la pensée johanníque" (Hommage et reconnaissancc Por ocasião do óO* aniversário de K. Barth, 1946, p. lOOss.).

Page 137: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 143

Temos constatado que a ideia de Cristo Sacerdote não é exclusiva da Epístola aos Hebreus, como se costuma pensar, mas que está na base das afirmações cristológicas de outras passagens do Novo Testamento. É verdade que nelas esta ideia não tem a coesão que tem na Epístola aos Hebreus; e temos de reconhecer também que muito rapidamente a figura do sumo sacerdote deixará de ser tomada por centro de toda a cristologia, embora não tenha nunca desaparecido completamente, e que tem, na história dos dogmas, um papel muito maior que a antiga cristologia do Ebed lahweh, por exemplo. Mais adiante ela servirá, sobretudo, para pôr em evidência um aspecto cristológico ao lado de outros, a saber, o múnus sacerdotcáe do Cristo.241 Se esta cristologia sacerdotal se perpetuou assim, é sem dúvida porque se encontra no centro de um dos escritos canónicos do Novo Testamento, a Epístola aos Hebreus.

* * *

Temos chegado assim ao término da primeira parte do nosso estudo, em que nos propusemos estudar os títulos cristológicos primordialmente relativos à obra terrena de Jesus.

241 A distinção feita por HIPÓLITO entre o Messias de Judá e o de Levi, unidos na pessoa de Jesus, é sumamente interessante. Esta distinção é importante também porque os textos de Qumran, o Documento de Damasco, e o Testamento dos Doze Patriarcas, falam de uma esperança de dois Messias (Messias de Aarãoe Messias de Israel) (cf. acima, p. 116 s.) L. MARIÈS, "LeMessieissudeLevíchezHíppolytede Rome" (Mélanges j . Lebreton, \,Rech. Sc. Rei, 1951, p. 381 ss.) provou que Hipólito devia conhecer a tradição referida pelo Testamento dos Doze Patriarcas. Ver também, J. T. MILIK (Revue Biblique, 1953, p. 291).

Page 138: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

SEGUNDA .PARTE

OS TÍTULOS CRISTOLOGICOS REFERENTES À OBRA FUTURA

DE JESUS

Page 139: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

PEQUENO INTRÓITO

Antes de tudo, e para evitar qualquer mal entendido, é necessário começarmos sublinhando aqui que nossa divisão cronológica de nenhuma maneira tem a pretensão de encerrar cada título cristológico nos limites estreitos do período a que cada um corresponde. Se estudarmos, nesta segunda parte, os títulos e noções que se relacionam, principalmente, com a obra escatológica de Cristo, cabe-nos sublinhar este "antes de tudo". Como já temos visto, não ocorre, praticamente nunca, que um título se relacione exclusivamente a um só dos quatro aspectos cristológicos que temos distinguido. Por exemplo, temos visto que a concepção de sumo sacerdote se refere, sobretudo, à obra terreena de Jesus, porém, concerne também em grande parte à obra presente do Cristo glorificado e, inclusive, à sua obra futura. A distinção que temos feito se justifica por razões práticas; seria, pois, completamente falso ver nesta distinção uma espécie de esquema imposto à força à cristologia do Novo Testamento. Ela tem, essencialmente, um valor metodológico: permite distribuir a matéria e tratá-la de uma maneira conforme à teologia do cristianismo primitivo e evita estabelecer de um modo arbitrário a ordem das noções a serem examinadas; permite-nos, pois, apoiarmo-nos sobre as ideias do Novo Testamento preferivelmente às interpretações cristológicas da dogmática posterior.

Por outro lado, temos de repetir que as diversas noções que estudamos não são na realidade tão rigorosamente diferenciadas umas das outras, como poderia parecer. Influenciam-se reciprocamente em grande medida e esta interpretação já se efetuou, por um lado, no seio do Judaísmo, mesmo antes de serem aplicadas a Jesus.

Page 140: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

T48 Oscar Cullmann

Ocorre frequentemente que um título abarque não somente concepções que lhe sejam próprias como também outras que se ligam a um outro título.

Não é possível, então, traçar limites absolutamente rigorosos entre cada título ou função cristológica mencionada no Novo Testamento. Convém operar por distinção e analisar as diversas concepções uma após a outra, mas sob a reserva expressa de que não se poderia excluira priori a possibilidade de influências recíprocas.

Esta reserva já se impõe para o prirne ho destes títulos, ode Messias. Embora aprovemos, em suas linhas gerais, a tese principal exposta por Jean Héringem sua obra: Le Royaume de Dieu etsavenue, 1937242 -obra particularmente importante para esta parte de nosso estudo - pare-ce-nos que o autor não escapou ao perigo de esquematização contra o qual nos pomos em guarda.

1Cf., igualmente, os complementos <jue ele fez a este texto em seu artigo "Messiejuif et Messie chrétien" (RHPR, 18, 1938, p. 419 ss.) Uma tese análoga foi defendida por A. VON GALL.

Page 141: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CAPÍTULO I

JESUS, O MESSIAS (XpiGTÓÇ)

Este capítulo trata de um título cuja origem jaz, antes de tudo, na esperança escatológica do Judaísmo. Recordemos que o adjeti-vo "messiânico" é empregado quase como sinónimo de "escatológico" . Porém, sua aplicação a Jesus - no cristianismo primitivo, cuja concepção de tempo implica uma tensão característica entre o presente e o futuro - teve, por consequência inevitável que englobar também outras concepções cristológicas do Novo Testamento.

Este título tornou-se como que um ponto de cristalização: do ponto de vista exterior, quase todas as outras concepções ficaram-lhe subordinadas. É por causa disso, ademais, que falamos de "cristologia" sem termos exclusivamente em vista a noção de Mes-sias-Cristo.

Já no seio do Judaísmo, todas as noções relativas ao fim dos tempos têm a tendência de vincular-se ao título de Messias, mesmo quando quase não têm pontos em comum.

Na época de Jesus, encontramos entre os judeus ideias muito diversas e que costumam diferir radicalmente entre si acerca do Mediador do fim dos tempos. Não existia, então, uma concepção única e firme acerca do Messias. Costumamos falar do Messias judaico, como se se tratasse de uma figura bem conhecida, com contornos rigorosamente demarcados. Sem dúvida, a esperança de todos se resumia num Redentor, que apresentava sempre traços nacionais judaicos. Porém, dentro deste enfoque comum a todos, podem apresentar-se os conteúdos mais

Page 142: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

150 Oscar Cuítmann

diversos.243 É verdade, também, que na época do Novo Testamento, um certo tipo de Messias se tornou predominante: aquele que se pode chamar, grosso modo, o "Messias político", ou simplesmente, o "Messias judaico". Neste capítulo, o empregaremos nes-te sentido para simplificar; porém, sem esquecer que a palavra "Messias" não é ainda um termo técnico para designar unicamente esta concepção, embora, esteja em vias de chegar a sê-lo. Com efeito, certas ideias judaicas sobre o Redentor se formaram deliberadamente por oposição ao tipo de Messias predominante, embora todas elas se classifiquem sob o mesmo termo comum: o de "Messias". No Novo Testamento os que adquirem preponderância são, precisamente, os conceitos e títulos cristológicos judaicos que têm um caráter diferente do de Messias político. Contudo, os primeiros cristãos nem por isso deixaram de adotar o título de "Messias" para designar a Jesus.

Para nos convencermos da importância que davam a este título, basta lembrar que, desde a época do Novo Testamento até nossos dias, "Messias" chegou a ser para os cristãos o título cristológico por excelência: pois a palavra grega Xpurcóç (derivada de xptfo, ungir) não é outra coisa que a tradução da palavra hebraica maschiach, o Ungido. Desde muito cedo, os cristãos adquiriram o hábito de associar o título de "Cristo" ao nome de Jesus. Jesus Cristo, pois, significa Jesus-Messias. Já nos mais antigos escritos cristãos que nos chegaram, as Epístolas de Paulo, o termo "Cristo" mostra a tendência a converter-se em nome próprio (embora Paulo, invertendo às vezes a ordem usual, escreve "o Cristo Jesus", evidenciando, assim, que não esquece a verdadeira significação deste título). Na época apostólica, o verdadeiro sentido do título de Messias é, pois, conhecido. Deveríamos sempre nos lembrar, ao ler o Novo Testamento, que, no espírito de seus autores, "Jesus Cristo" significa correntemente "Jesus o Messias".

'É o que mostram F. J. FOAKES JACKSON e K. LAKE, The Beginnings of Chrisúanity,I, 1920, p. 356. Cf. também, A. E. J. RAWLINSON,T/ie NewTestament Doctrine of the Christ, 1926 (3" ed.. 1949)) p. 12 ss.; W. MANSON, Jesus The Messiah, 1946, em particular p. 134 ss.

Page 143: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 151

No entanto, não temos que deduzir daí que as ideias ligadas ;u> título de "Messias" provenientes do judaísmo tiveram uma importância particular para os autores cristãos que o aplicaram a Jesus. Se assim fosse, deveríamos consagrar a este capítulo um lugar bem central. Na realidade, só alguns traços - aliás, importantes - da imagem predominante do Messias foram apropriados pelos cristãos, enquanto que outros aspectos essenciais do Messias judaico não foram aplicados a Jesus. Se o título "Messias" acabou por impor-se de uma maneira quase exclusiva, isso prova que podia englobar noções muito diversas; e que, por sua vez, se devia recorrer a ele, se se quisesse tornar compreensível aos judeus o papel escatológico de Jesus.

Porém, se se pensa no caráter político tão marcante deste título judaico, estas vazões não bastam para explicar seu emprego exclusivo por parte dos cristãos. É necessário que alguns traços tirados da imagem predominante do Messias judaico e aplicados a Jesus tenham tido, para os primeiros cristãos, uma importância teológica particular. Será, pois, necessário examinarmos isto com muita atenção.

O grande êxito do título "Messias-Cristo" é tão mais surpreendente quando notamos que o próprio Jesus - voltaremos a falar sobre isso - sempre manifestou uma singular reserva quanto ao seu emprego, cada vez que se o fazia para designar sua pessoa e sua obra. Que precisamente este epíteto de Messias (em grego: Xpiotóç) ficou para sempre associado ao nome de Jesus, poderá parecer irónico; como também o fato de ser este título aquele que nomeou a nova fé: foi em Antioquia que seus adeptos receberam pela primeira vez o nome de "cristãos", ou seja, de "messianistas" (At 11.26). Não é possível que tenham recusado completamente a imagem tão especificamente judaica de Messias.

Porém, temos de demonstrar, antes de tudo, que o próprio Jesus jamais se autodelegou a missão que seus contemporâneos atribuíam, de maneira característica, ao Messias esperado. Um exame da concepção acerca do Messias político corrente na época de Jesus, no pensamento e na esperança da grande massa do povo judeu, nos permitirá descobrir aí certos traços, ao menos, que

Page 144: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

152 Oscar Cullmann

podem ter sido atribuídos a Jesus e que justifiquem, assim, em alguma medida,o êxito deste título.

1. O MESSIAS NO JUDAÍSMO244

O particípio mâschiach significa o "Ungido"; é empregado ne.ste sentido para designar em particular ao rei de Israel, a quem se chama "O Ungido de Iahweh" - alusão ao rito da unção real (1 Sm 9.16; 24.7). Porém, este título não se reserva unicamente ao rei: todo homem de Deus, encarregado de uma missão para com seu povo, também pode tê-lo. É assim que em Ex 28.41 o sacerdote é chamado o "Ungido", mâschiach; e, segundo I Reis 19.16, Eliseu deve ser "ungido" como profeta. Mesmo um rei estrangeiro e pagão pode receber este título quando o Senhor o encarrega de uma missão particular, ou seja, quando é instrumento do plano divino de salvação. É assim que em Is 45.1, o próprio Ciro é chamado de "Messias", ungido.245

Para dizer a verdade, no período monárquico o enviado especial de Deus é o rei de Israel e a expressão o "Ungido de Iahweh" geralmente indica o rei. O rei tem um caráter divino; a realeza israelita é, pois, de "direito divino". São-lhe atribuídos, como sinónimos de "Ungido do Senhor", títulos que expressam a origem divina de sua função: 2 Sm 7.14, por exemplo, o chama "Filho de Deus". Na base destas invocações se encontra a ideia de ser Iahweh o verdadeiro rei de Israel; e o rei terreno, seu lugar-tenente que exerce esta função divina.

Cf., entreoutros, aeste respeitoP VOLZ,D/VEschatirf'>giederJiidischeitCeitieittáe im iwutestamentlidwii Zeituiter, 2a c<J., 1934; partie. p. 173 ss. - H. GRESSMANN, Der Messias, 1929. - W. KUPPERS, "'Das Messiasbild der spaijiidísclien Apofcalyptifc" (Ini, kirclil. Ztschr., 2.1, 1933, p. I'J3 ss.; 24, 1934, p. 47 ss. -J. HÉRING, Le Royawiie de Dieu et sa vrnite, 1937.- S. MOWINCKEL, Han son koiumcr. 1951; cd. inglesa: He theit Cometi), 1956. - A. BENTZEN, ftiiif; and Messialu 1954-Com uma abundante bibliografia, O. EISSFELD, art. "Chrisius 1" (RAC, l. H, col. 1250 ss.). Cf. ;i CSK* respeito E. JENNI, "Die Rollc efes Kyrios bei Dculcrojesaja" (77/Z, 10, 1954, p. 241 ss.).

Page 145: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA f>0 NOVO TliSTAMF.f^O _153

Conforme 2 Sm 7.12 ss., Deus havia prometido a Davi que seu reinado duraria eternamente. E embora esta predição tivesse sido brutalmente desmentida pela história, a esperança escatológica não fez senão aderir com maior vigor a esta esperança não realizada: é assim que o "Ungido de Iahweh", o "Messias", torna-se, pouco a pouco, uma figura escatológica (embora - coisa singular- o termo mâschiach não seja empregado no Antigo Testamento como título escatológico).

Isto não significa que este "Ungido" aparecerá fora do âmbito terrestre. A palavra ''escatológico" deve ser tomada aqui em seu sentido etimológico, ou seja, temporal. Pensa-se que é preciso uma realeza terrena para trazer a salvação futura. É assim que lemos no Salmo 89.3 ss.: "Fiz aliança com o meu escolhido e jurei a Davi, meu servo: Para sempre estabelecerei a tua posteridade e fumarei o teu trono de geração em geração". Trata-se de uma esperança escatológica que deve realizar-se inteiramente na esfera terrena.

Provavelmente foi durante o exílio, época em que o trono de Davi já não existia mais, que a promessa feita a Davi se projetou para um futuro distante, em que a salvação deveria ser realizada certamente no âmbito terrestre, porém, de uma maneira definitiva. "Nesse dia, diz Iahweh Zebaoth, os filhos de Israel servirão ao seu Deus e a Davi, seu rei, que eu levantarei para eles." (cf. Jr 30.8 ss.). Os Salmos 2 e 72 anunciam, por sua vez, que todos os povos deverão submeter-se ao rei de Sião estabelecido por Iahweh.

Quando do exílio, é particularmente Ezequiel quem confere ao futuro rei os traços precisos que caracterizarão, doravante, a figurado Messias. Segundo Ez 37.21 ss., o dia virá em que o reino de Israel inteiro será unido sob o cetro de Davi, eeste reinará eternamente.

Porém, a esperança da vinda de um rei da casa de Davi no fim dos tempos assumiu suas formas mais vivas posteriormente, quando, sob a dominação grega, o nacionalismo judaico alcançara seu desenvolvimento máximo. Esperava-se então um rei totalmente icrreno, político, e não um ser celestial que apareceria sobre a terra de uma forma milagrosa. Segundo uns, por exemplo o redator

Page 146: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

]^4 Oscar Cullmann

da profecia de Zacarias 9.9 s., seria, antes, um rei pacífico, o qual não estaria impedido de desempenhar um papel essencialmente político. Para outros, muito numerosos, haveria de ser um soberano belicoso cuja primeira preocupação seria a de vencer todos os inimigos de Israel. É assim que aparece em particular nos Salmos de Salomão. Nos Salmos 17 e 18 deste livro, o rei futuro, descendente de Davi, é chamado Xpictóç246. Tomemos especialmente esta oração dos Salmos de Salomão em 17.21 s., em que a esperança messiânica, em voga na época do Novo Testamento, encontra sua expressão clássica: "desperta-lhes um rei, o filho de Davi, no tempo que tenhas escolhido para que reine sobre teu servo Israel; cinge-o com o teu poder de modo que aniquile os tiranos ímpios e purifique a Jerusalém dos pagãos que a mancham com seus pés..., que os destrua com vara de ferro e destrua com a palavra de sua boca os pagãos ímpios; que suas ameaças façam os pagãos fugirem e que castigue aos pecadores por causa dos pensamentos de seus corações. Então ele reunirá um povo santo que ele governará com equidade, e julgará as tribos do povo santificado pelo Senhor seu Deus, e dividirá entre eles o país..., e os estrangeiros não terão o direito de habitar no meio deles..., submeterá os pagãos sob seu jugo, para que lhe sirvam, e glorificará publicamente ao Senhor aos olhos do mundo inteiro, e ele tornará Jerusalém pura e santa, como era no começo." Tais eram as esperanças que corriam nos tempos de Jesus entre os fariseus.

Junto a esta esperança messiânica "clássica" é normal encontrar a ideia de que este rei não realizaria o reino definitivo - que o próprio Iahweh haveria de estabelecer2'" - mas algo de caráter provisório. Converte-se assim o rei messiânico em precursor de Deus. Salta à vista que duas concepções originariamente diversas

246E J. FOAKES JACKSON e K. LAKE, op. cíi. (cf. p. 150, nota 243), p. 356, sublinham o fato de que a palavra "Messias" aparece aqui pela primeira vez em seu sentido propriamente escatológico. No entanto, mesmo que a cronologia dos textos de Qumran não esteja ainda estabelecida de forma segura, agora temos de levar em consideração os trechos em que eles falam do Messias.

247Ed 7.26 ss.; 11-14 ; Ap. Baruque 29; 30; 40; cf. ainda Sanh. 96 b ss.

Page 147: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CwsTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO _155

tenham se combinado aqui: segundo uma, o rei messiânico instaura o reino definitivo, segundo a outra (sem dúvida a mais antiga) é o próprio lahweh quem o fará. Onde ambas ideias se apresentam assim acopladas, o rei messiânico (que, naturalmente, reveste muito mais os traços de um soberano terreno) inaugura uma época que já não é a nossa, nem tampouco ainda a do "século vindouro", senão que resulta ser, no fim das contas, uma época escatológica intermediária. Importa muito à concepção de tempo, própria do cristianismo, que houvesse, em certas correntes de pensamento judaico, esta "época intermediária".

No Apocalipse de Esdras, o caráter político do reino messiânico aparece a plena luz.248 O Messias-rei aniquila os pecadores e concede sua graça aos bons que esperam, então, o fim dos tempos. Igualmente no Apocalipse de Baruque, o rei aniquila os inimigos de Israel e estabelece sobre a terra um estado de perfeição: a natureza é mais fecunda, os animais perdem sua maldade, os eleitos gozam de longa vida e de saúde perfeita.249 Verdade é que muitos destes escritos do judaísmo tardio que descrevem o futuro não mencionam expressamente o Messias; porém, fora de toda dúvida, pressupõem sua função.

Temos exposto, grosso modo, as concepções judaicas de um Messias-rei político. Porém, não esqueçamos que elas se associam, muitas vezes, a outras ideias sobre o Redentor esperado. É assim que no Documento de Damasco e nos textos de Qumran, o "Messias proveniente de Aarão e Israel" assume visivelmente, também, os traços de sumo sacerdote. Esta mesma associação pode ser encontrada, novamente, nos Testamentos dos Doze Patriarcas.250

Antes de examinarmos como esta concepção de Messias foi aplicada a Jesus, resumiremos os pontos essenciais.

1. O Messias cumpre sua missão em um plano puramente terreno.

'"Cf. 4Ed. 11 s,, 13 e7.26 ss. J ,Ap. Bar. 72 ss. '"Cf. acima, p. 116 e os artigos de K. G.KUHN e E. STAUFFER lá citados.

Page 148: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

156 Oscar Cullmanii

2. Segundo a opinião atestada pelos Salmos de Salomão, ele inaugura o fim dos tempos; segundo opinião mais recente, um período intermediário. Porém, em todo caso, o eon em que aparece não é mais o "século presente". Do ponto de vista temporal, o Messias se distingue, pois, do profeta escatológico.

3. A obra do Messias é a de um rei político de Israel, seja seu caráter pacífico ou guerreiro.

4. O Messias judaico é da casa de Davi. É por isso que leva também o título de "Filho de Davi".

2. JESUS E O MESSIAS

Jesus considerou a si mesmo como o Messias? Este é um dos grandes problemas no estudo de sua vida como de sua doutrina. Quando se fala da consciência messiânica de Jesus, geralmente se dá a este adjetivo uma acepção muito ampla, e não a restrita dos Salmos de Salomão, por exemplo. Porém, neste capítulo, é este sentido preciso e limitado o que adotamos ao indagar em que medida Jesus aplicou a si mesmo, ou recusou, as ideias particulares que no judaísmo estavam associadas ao título de Messias.

A este respeito temos de examinar três textos sinópticos: Mc 14.61 s. par.; 15.2 ss. par. e 8.27 ss. par. Em Mc 14.61 s. a questão se põe com toda clareza. Trata-se do processo de Jesus. Caifás pergunta a Jesus: "És tu o Messias, o filho do Deus bendito?"251 Evidentemente, quer jogar-lhe um laço a fim de comprometê-lo, em qualquer que seja a sua resposta. Indubitavelmente esperava uma declaração afirmativa, já que estimava que Jesus havia exercido seu ministério com pretensão messiânica. O sumo sacerdote necessita de uma declaração messiânica pronunciada pelo próprio Jesus, para poder substanciar a acusação preparada contra ele e denunciá-lo aos romanos como agitador político. Pois pretender o título e a função de Messias, significaria que Jesus quer restabelecer o trono de Davi; portanto, estabelecer um

Para a vinculação entre "Messias" c "Filho de Deus", cf. abaixo, p. 367.

Page 149: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 157

governo independente. Desta maneira o sumo sacerdote teria um motivo de acusação. Até mesmo uma resposta negativa não lhe seria necessariamente desfavorável, pois desacreditaria Jesus aos olhos do povo: este, decepcionado, se desligaria dele, ou ainda, se voltaria contra ele. A resposta de Jesus, qualquer que fosse, devia, portanto, comprometê-lo.

Porém, qual foi sua resposta? Aqui se esboça, antes de tudo, um problema exegético e filológico. Segundo a explicação corrente, que parece também a mais natural, Jesus teria respondido de uma maneira muito clara e sem equívocos pela afirmativa. Contudo, veremos que esta explicação não é tão segura como parece, se examinarmos os textos sinópticos paralelos e se nos referirmos ao original aramaico, cuja existência devemos supor, ao menos segundo Mateus.

Por outro lado, Jesus acoplou à sua resposta uma frase pela qual ele se atribui um papel discordante com o do Messias político esperado pelos judeus. Segundo o texto grego de Marcos, Jesus respondeu: éyíí) eijii.252 Sem dúvida, isto significa "sim". No entanto, os textos paralelos de Mateus e de Lucas são diferentes. Em Mt 26.64, lemos: cri) eírcaç, "tu o disseste". Esta expressão grega deveria sem dúvida significar "sim". Em compensação, as palavras aramaicas correspondentes (FTXlK ÍÍDK) - supondo que devamos admitir aqui uma correspondência literal - não têm, de nenhum modo, o sentido de um "sim" perfeitamente claro. Estas são, doravante, um meio de evitar uma resposta unívoca; podem, inclusive, encerrar um "não" dissimulado. O sentido seria, então, mais ou menos o seguinte: "És tu quem o diz, e não eu". Se é permissível compreender assim esta resposta, Jesus não teria respondido claramente nem sim nem não à pergunta capciosa do sumo sacerdote.

v A variante GX> èutocc çõi KTX., ,testadd asmente eor rlggns ma mt se ri tos, ,eve eer lido por origem uma tentativa de harmonização com Mateus. Muitos exegetas (por exemplo LOHMEYER, TAYLOR) no entanto crêem dever atribuir-lhe a prioridade, porque graças a ela os textos de Mateus e de Lucas se explicariam mais facilmente. Neste caso, Marcos também teria conhecido a existência de urna resposta evasiva de Jesus.

Page 150: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

158 Oscar Cullmann

Esta interpretação, que traz consequências para outras passagens do Novo Testamento,25-1 porém, à qual os comentaristas quase não dão consideração, foi exposta no estudo sólido e bem documentado de A. MERX, Das Evangeiium Matthaeus nach der syrischeni im Sinaikloster gefundennn Palimpsesthandschrift (t. II, 1, de uma obra mais vasta: Die vier kanonischen Evangeiien nach ihrem ãltesten bekannten Texte), 1902, p. 382 - 384. Sua tese foi adotada particularmente por J. HÉRING, Le Royaume de Dieu et savenue, 1937 p. 112s. Porém, já na antiguidade, a resposta de Jesus não foi sempre considerada como afirmativa. Temos de citar, antes de tudo, ORIGENES. Em seu Comentário de Mateus (MPG 13, col. 1957), escreve expressamente que a resposta de Jesus não foi nem afirmativa nem negativa. "Ele não nega ser o Filho de Deus porém não o declara expressamente". Orfaenes admite, pois que Jesus deu uma resposta evasiva

Não há certeza absoluta de que as palavras gregas ai> eircaç tenham em sua origem o equivalente aramaico exato n~)D>í KFiK.

C ± T - — T T —

Mas isso é muito provável e, em todo caso, o sentido das duas palavras aramaicas não é duvidoso, não significam "sim". Ademais, como já temos observado, a frase agregada a estas palavras evoca uma ideia que não corresponde à imagem corrente e oficial do Messias. Em todo caso, no texto de Mateus de nenhuma maneira temos uma precisão ou uma interpretação; é o que indica a conjunção nXr\v que introduz a frase: "Mas vos digo: vereis o Filho do Homem sentado à direita do poder de Deus, vindo sobre as nuvens do céu". A conjunção itkúv tem o sentido de um "mas" acentuado, ou seja, que opõe a uma afirmação recusada outra afirmação^54 Pressupõe, pois, uma resposta prévia negativa. Então, Jesus haveria dito assim: "Eu não respondo a esta pergunta mas digo outra coisa." E esta "outra coisa" que se segue não concerne ao

Mí Na obra que vamos citar, A. MERX não toma por ponto de partida nosso trecho, mas a resposta de Jesus à pergunta de Judas durante a última ceia: "Mestre, sou eu? (Mt 26.25). Ai, também, uma resposta evasiva de Jesus ("És r« quem o dizes"), que se harmoniza, notavelmente, com o contexto.

254 Segundo BLASS-DEBRUNNER,GroJ/i«i. D. neutest. Griechisch,!* ed., 1943, par. 449, em Mateus e Lucas: "no entanto, não obstante"; em Paulo: "em todo caso". Cf. também W. BAUER, Wõrterbuch, 4a ed., 1952, ad voe.

Page 151: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 159

Messias tal qual os judeus esperavam, senão ao Filho do Homem, com quem Jesus se identificava.

Falaremos no capítulo seguinte danoção de "Filho do Homem" que Jesus opõe aqui, de certo modo, à de Messias. Por agora, tra-ta-se somente de descobrir a atitude de Jesus com respeito a aplicação a sua própria pessoa da ideia judaica de Messias. A afirmação relativa ao "Filho do Homem sentado à destra de Deus e vindo sobre as nuvens do céu" não pertence à ideia messiânica que caracterizamos no parágrafo precedente. O Filho do Homem é, com efeito, um ser celestial; não é um rei terreno que deva dominar sobre o mundo depois de ter vencido os inimigos de Israel. Sob a forma que Mateus dá à resposta de Jesus, a oposição é clara. É por isso que ele parece ter dado uma tradução mais fiel do original aramaico. Poder-se-ia, pois, traduzir da seguinte forma: "És tu quem o tem dito; porém, eu te digo" - seguido logo da declaração relativa ao Filho do Homem.

Contudo, temos de reconhecer que neste caso se esperaria um èycò bem destacado. Sua ausência se explica, talvez, pelo fato de que o evangelista, escrevendo em grego, já não compreendesse muito bem o sentido aramaico das palavras cru etnocç. É certo que, em todo caso, Marcos não se deu conta de sua significação negativa, e que as tomou como uma afirmação ao traduzir èyá> £ÍUA.2SS Porém, isto não exclui fundamentalmente a hipótese segundo a qual o matiz aramaico - que não equivale de nenhuma maneira a uma resposta afirmativa - se encontrasse na base do texto de Mateus, e talvez até na de Marcos.

A passagem paralela de Lucas (22.67 ss.) é um argumento em favor desta explicação e confirma a suposição segundo a qual

'^ Esta interpretação pode também ter sido favorecida em Marcos pelo fato de que, no plano geral de seu evangelho, a declaração messiânica de Jesus, nessa passagem ocupa um lugar importante: depois de haver sido reconhecido como Messias primeiro pelos demónios e logo depois pelos discípulos, eis aqui que, no ponto culminante de sua vida, seus inimigos lhe reconhecem como tal. - Sobre este plano de conjunto, comparar a obra instrutiva de J. M. ROBINSON, "Das Geschichtsverstãndnís iles Markus-Evangeliums" (AThANT, 30), 1956.

Page 152: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

16() Oscar Cuilmann

Mateus teria conservado, por uma tradução literal, a expressão aramaica original. À pergunta do sumo sacerdote, perguntando-lhe se é o Messias, Jesus responde: "Se vô-lo disser, não o acreditareis; também, se vos perguntar, de nenhum modo me respondereis. De agora em diante, o Filho do Homem estará sentado à direita do Deus Todo-poderoso". Vê-se que Lucas nos conservou a lembrança de Jesus haver respondido evasivamente à pergunta do sumo sacerdote: se nega a responder por um sim ou por um não, e acrescenta ainda uma declaração relativa não ao Messias, mas ao Filho do Homem. Assim, encontra-se confirmado o texto de Mateus tal qual deve ser compreendido segundo o original aramaico: Jesus se nega a reivindicar para si, sob esta forma, o título de Messias; porém, não responde, no entanto, diretamente com um "não", já que, então, a ideia de Filho do Homem devia ser posta em relação, de uma maneira ou de outra, com a de Messias.

Porém, o resultado mais importante a que nos conduz o exame dos textos de Mateus e de Lucas é que, em todo caso, mesmo fazendo abstração do original aramaico, Jesus corrige conscientemente a pergunta do sumo sacerdote, substituindo o título de Messias pelo de Filho do Homem. Jesus sabe que as ideias messiânicas judaicas* são essencialmente políticas, e nada está mais longe dele que semelhante maneira de compreender sua missão. Para prevenir de antemão todo mal entendido, evita escrupulosamente o emprego do título de Messias. Porém, para sublinhar bem que nem por isso é menos certo que está encarregado de executar o plano divino de salvação para seu povo e para a humanidade, e que tem disso consciência, acrescenta logo a declaração sobre o Filho do Homem que, como um ser celestial, está, a bem dizer, mais próximo a Deus do que o Messias. A recusa ao título de Messias não significa, pois, de nenhuma maneira que Jesus renuncie à sua pretensão soteriológica. Muito pelo contrário, pois o Filho do Homem, no sentido que o livro de Daniel lhe dá, este ser celestial que vem nas nuvens do céu, excede e transcende a figura de um Messias puramente político. O que Jesus recusa é, por conseguinte, somente o papel político do Messias rei.

Page 153: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 161

Ao mesmo tempo, ele adota diante do Sinédrio a mesma atitude que em outros casos quando seus adversários, por formularem perguntas capciosas, querem comprometê-lo qualquer que seja sua resposta. No presente caso é justamente nesta intenção que o sumo sacerdote lhe põe a questão sobre o seu messiado. Jesus, desta vez, não se compromete tampouco, já que não responde, nem por "sim", nem por um "não". E o fez sem parecer insincero, pois na realidade aqui, como em outras ocasiões, sua resposta transcende a questão apresentada.

O segundo texto que nos toca examinar é Mc 15.2 ss. par. Jesus comparece diante de Pilatos, que lhe pergunta: "És tu o rei dos judeus?" O título de "Messias" se traduz aqui em categorias romanas. Para o governador romano, o Messias é o "rei dos judeus": é somente nesta perspectiva que o assunto é susceptível de interessar-lo.256 Em sua denúncia, os Judeus, provavelmente, devem ter empregado o termo "rei". Jesus responde: "Tu o dizes" (cn> Xéyeiç). A resposta é literalmente a mesma em Mateus e em Lucas. É provável que aqui também os evangelistas tenham compreendido a expressão gregací> XeYeiç no sentido de "sim". Contudo, é possível igualmente se pensar em uma resposta evasiva. O diálogo relativo ao rei "que não é deste mundo" - diálogo que, no Evangelho de João, segue a pergunta de Pilatos (Jo 8.33 ss.) -poderia, em todo caso, fazer compreender o texto nesse sentido e isto estaria em perfeito acordo com a conclusão que se depreende do interrogatório de Jesus diante do sumo sacerdote, tal qual o relatam os Sinópticos. E, com efeito, notável que, sempre segundo Mc 15.2 ss., Pilatos não reaja como seria normal de se esperar se Jesus houvesse realmente afirmado ser "rei dos Judeus". No texto paralelo de Lucas, depois de haver escutado a resposta de Jesus, Pilatos declara: "Eu não encontro culpa alguma neste homem" (23.4). Como poderia haver dito isto, ele que era encarregado, em nome do Império Romano, de reprimir e castigar toda pretensão à

•"* Sobre o papel dos romanos no processo de Jesus, cf. nosso estudo, Dieit et César, 1956, p. 27 ss.

Page 154: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

,162 Oscar Cullma/m

realeza nas províncias submetidas à sua autoridade, se houvesse compreendido a palavra de Jesus como uma resposta afirmativa à sua pergunta? Como não haveria interrompido imediatamente o interrogatório, já que a acusação teria sido, incontestavelmente, provada?

O terceiro texto concerne à cena, muitas vezes já mencionada, de Cesaréia de Filipe (Mc 8.27 ss. par.) e em particular à confissão de Pedro. "Pedro lhe disse: Tu és o Messias" (Mc 8.29). Segundo a explicação geralmente admitida, Jesus nesta ocasião haveria aceitado expressamente que Pedro proclamasse seu messiado. Porém, esta interpretação é influenciada pelo texto de Mateus que insere neste lugar a famosa declaração: "Tu és Pedro... etc", declaração que, sem dúvida, não pertence a este contexto.257 É, então, em Marcos que devemos examinar mais de perto a reação de Jesus à confissão de Pedro. Lemos em Mc 8.30: "Advertiu-os Jesus de que a ninguém dissessem tal coisa a seu respeito. Então, ele começou a ensinar-lhes que era necessário que o Filho do Homem sofresse muito, que fosse recusado pelos Anciãos, os principais sacerdotes e os escribas e que fosse morto e ressuscitasse depois de três dias".

Admite-se comumente que, ao proibir a Pedro e aos outros discípulos falar disso, Jesus implicitamente teria aceitado a confissão messiânica de Pedro, e que somente teria acrescentado que devia sofrer e morrer. Porém, já temos visto, ao estudarmos a noção de Ebed lahweh, que o sofrimento é dificilmente compatível com a esperança messiânica judaica.

Na realidade, devemos constatar que aqui também, frente à declaração messiânica de Pedro, Jesus não diz nem sim nem não. Antes, mantém silêncio acerca desta confissão e fala, como nas outras passagens citadas, do Filho do Homem que deve sofrer muito. E quando Pedro quer desvia-lo deste sofrimento, lhe atira no rosto a tremenda acusação: "Para trás de min, Satanás!" (Mc 8.33).

Cf. O. CULLMÂNN, Saint Pierre, 1952, p. 154 ss. e abaixo, p. 366 s.

Page 155: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 163

Que significa esta repreensão, senão que Jesus vê uma tentação satânica na concepção de Messias que Pedro defende aqui, e que já tinha, sem dúvida, no momento de sua confissão? Jesus admite, pois, que o diabo, que desde o batismo lhe havia proposto aceitar o papel de Messias político, se serve desta vez do discípulo Pedro para desvia-lo de sua verdadeira missão e para leva-lo a assumir um papel político.258 A extraordinária vivacidade com que Jesus reage em Cesaréia de Filipe mostra o quanto a intervenção de Pedro o afetou. Não se trata de ser rei de Israel desta maneira, pois sem dúvida desde seu batismo, como o temos visto, Jesus tem a firme convicção de ter de cumprir sua missão pelo sofrimento e pela morte, não pelo estabelecimento de uma dominação política.

Não é por coincidência que, segundo os Sinópticos, o diabo ataca a Jesus imediatamente depois do batismo. Os três evangelhos sinópticos estão de acordo em colocar aí a cena da tentação. Se a explicação que temos dado ao relato do batismo de Jesus é cxata, então nesse momento ele adquiriu a certeza de que devia realizar sua função divina morrendo pelo seu povo como Ebed Iahweh. É contra isto que o diabo se lança prontamente, por compreender que a realização desta missão, da parte de Jesus, significaria o fim de seu próprio reinado. Por outro lado, sabe que o outro caminho, o do Messias rei político, faria de Jesus seu servo obediente. Assim lhe mostra "todos os reinos do mundo e sua glória" dizendo-lhe: "Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares". (Mt 4.8 s.). É Com razão que Mateus coloca esta tentação, que revela o sentido de toda a cena, como uma coroação ao fim do relato; e como também depois em Cesaréia de Filipe, na presença de Pedro, a resposta de Jesus é também: "Para trás de mim, Satanás!" A oferta que o diabo faz a Jesus de dar-lhe todos os reinos da (erra, corresponde, com efeito, exatamente ao que o judaísmo oficial esperava do Messias.

'1!!Cf. também I. M. ROBINSON, op. cit., p. 75.

Page 156: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

1-64 Oscar Cullmann

Esta maneira de conceber seu papel de Salvador devia, no entanto, ser particularmente sedutora para Jesus; é de fato suatentação particular. Não se pode ser tentado senão pelo que nos atrai secretamente. Jesus não deve ter sido, pois, inteiramente impermeável à ideia corrente de um Messias político.259 Por isso combateu esta tentação com tanta energia, desde o seu batismo. Por outro lado, a proposta de Pedro a Jesus mostra até que ponto esta concepção o tocava de perto, inclusive àqueles que o rodeavam mais proximamente; pois Pedro, neste caso também, deve ter sido o representante de todos os discípulos. Não sem razão Marcos escreveu que Jesus olhou para todos (Mc 8.33) lançando a Pedro esta palavra severa: "Para trás de mim, Satanás!" Ele conhecia bem o sonho secreto que agitava o cérebro de todos os seus discípulos, a esperança de vê-lo assumir a função gloriosa de um Messias político; pois eles haveriam de beneficiar-se com isso. Para eles fazer parte dos íntimos de um Messias, rei poderoso, seria algo muito diferente de ser discípulo de um condenado à morte. O pedido dos filhos de Zebedeu em relação aos lugares de honra no reinofuturo, mostra claramente que tipos de pensamentos abrigavam. Se abandonaram a seu mestre no momento de sua prisão e tomaram o caminho da fuga, isso não se explica somente por sua debilidade humana, mas também por sua desilusão ao ver que Jesus não correspondia, absolutamente, à imagem judaica do Messias rei.

Não é errado buscar também nesta desilusão a razão subjetiva da traição de Judas Iscariotes.260 Os relatos sinópticos mostram que, deaccr-do corn a mais antiga tradição, a cobiça não pôde ser o motivo principal. Judas Iscariotes aparece como representante extremo de um pecado que jazia latente em todos os discípulos. O relato de Cesaréia de Filipe mostra que o diabo não somente estava ativo em Judas como às vezes tam-

2WEm nosso estudo já citado, Dieit et César, p. 15 ss., mostramos como Jesus tinha constantemente que lidar com a questão dos zelotes.

2M1 Sobre a históriadas explicações desta traição, cf. K. LUTHI, Judas Iscariot in der Geschichte der Auslegung von der Reformation bis in die Gegenwart, 1955.

Page 157: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMEÍ TO 165

bém em Pedro, o representante de todos. É o pecado de todos os discípulos que se personifica em Judas. O diabo que está ativo em todos em Judas triunfa. A coisa seria tanto mais plausível se Judas Iscariotes tivesse pertencido ao partido dos zelotes (como se pode supor se vincularmos "Iscariotes" a sicaríius).26'

Importa sublinhar que Jesus via por detrás da concepção messiânica do Judaísmo de então, a obra de Satanás. Assim se explica o que se chama, desde W. Wrede, o "segredo messiânico".262

Não temos, pois, que interpretar a proibição feita por Jesus de proclamá-lo como o Messias - proibição que reaparece sempre nos Sinópticos - como o faz Wrede; com efeito, não se trata de algo inserido posteriormente destinado a explicar aos primeiros cristãos porque Jesus, durante a sua vida, não foi reconhecido como Messias.263

Seria levar ao extremo o princípio da "a história formativa" (já aplicada por Wrede antes da aparição da Formgeschichte propriamente dita), não investigar sequer se tal ou qual motivo dos Evangelhos (neste caso, o segredo messiânico) tern um fundamento na própria história. Esta não pode reduzir-se a uma soma de teorias apologéticas da comunidade primitiva.

•'"' Cf. a este respeito O. CULLMANN, Dieu et César, p. 18 s. :''2 W. WREDE, Das Messiasgeheimnis in den Evangelien, 1901. Cf. a este respeito H.

J .EBELING, Das Messiasgeiíeimnis unddie Botschchaft des Marcus-EvangeUsten, 1939, e E. PERCY, Die Botschaft Jesu, p. 271 ss. Veja-se também abaixo, p. 187, nota 302, e 204, nota 330.

•''•' H. J. EBELING, op. cit., p. 167 ss,, sublinha, ademais, um motivo literário paralelo dos evangelistas: a incompreensão dos discípulos, contrastando como um fundo sombrio com o esplendor radiante da revelação trazida por Jesus. - E. PERCY, op. í.7/., adota, em linhas gerais, a tese de WRÉDE, modificando-aem um ponto: admite a existência, desde o começo, de uma tradição relativa à consciência messiânica de Jesus; esta havia sido transformada mais tarde por meio da teoria do "segredo messiânico", de modo a corresponder à fé em Cristo, tal qual se havia constituído à luz da cruz e da ressurreição. O "segredo messiânico" serviria para justificar a ideia (.(ue a comunidade fez do Cristo depois da cruz e da ressurreição. Temos que reconhecer que os sinópticos não revelam nenhum indício sério em apoio desta tese. Encontra-se, em troca, no quarto evangelho. Cf. O. CULLMANN, Les sacrements dans VEvangile joliannique, 1951, p. 19 ss.

Page 158: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

166 Oscar Ciálmann

Esta proibição provém, na realidade, do próprio Jesus, e se explica muito naturalmente por seu cuidado em impedir uma proclamação que pudesse favorecer uma falsa interpretação de sua missão - precisamente a que reconhecera e combatera como uma tentativa diabólica. Daí sua reserva até o último momento com respeito ao título de messias.264

O próprio fato de que se trate de uma reserva, e não de uma recusa, me parece ser a melhor prova de que aqui estamos diante da história, e não diante de uma teoria cristã primitiva. Convém afirmá-lo também contra R. Bultmann, que em sua Theologie des Neiten Testanients, 1953, p. 32, se alia inteiramente à tese de Wrede.í<í5 Não é só nas "frases redacionais" que aparece a reserva de Jesus. Se Bultmann não pode admitir que a ideia de Messias foi recusada por Jesus em favor da de Filho do Homem, é porque nega igualmente a Jesus toda convicção de ser o Filho do Homem.

As três passagens sinópticas que temos comentado estão, pois, inteiramente de acordo no que concerne à atitude de Jesus com respeito à ideia de Messias. Jesus não recusa verdadeiramente o título de Messias, mas antes, manifesta para com ele grande reserva. Ademais, quando os sinópticos empregam a palavra, quase nunca é o próprio Jesus quem a aplica a si; são outros que lha atribuem.266

Não ocorre o mesmo no Evangelho de João267 que ainda confirma nossa conclusão de um outro ponto de vista. Sem voltarmos

1M E. PERCY, op. cit., p. 272, está de acordo com WREDE em recusar a opinião expressa aqui. Seus argumentos são de um caráter geral e, por conseguinte, pouco convincentes. Segundo cie, Jesus, em geral, não se guia por considerações de prudência. Porém, é sobretudo o argumento seguinte que - em relação aos textos citados acima - parece-me dificilmente compreensível: "a gente se pergunta, com WREDE, por que Jesus não diz simplesmente que ele não tem nada que ver com o Messias político". E, no entanto, é o que Jesus deu a entender de uma maneira inequívoca e não somente segundo o Evangelho de João. Se não recusou expressamente o título de Messias, é porque o título não está necessariamente ligado à imagem do Messias político. Daí sua reserva, em lugar de recusa.

;í5Cf. também sua Geschichee der synoptischcn Tradition, 2" ed., 1931, p. 371 s. "asCf. V. TAYLOR, The Naines of Jesus, 1953, p. 19. 2f,7Cf. V. TAYLOR, op, cit., p. 20. Um só trecho parece contradizê-lo: Jo 4.26, a res

posta de Jesus à samaritana. Porém, aqui o evangelista atribui, sem dúvida, a Jesus, por iniciativa própria, o qualificativo corriqueiro de "Cristo".

Page 159: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

C^IUSTOLOGIA DO rsovo TESTAMENTO 167

ao diálogo com Pilatos em que Jesus afirma que seu reino não é deste mundo, temos que mencionar João 6.15, no qual o povo quer torná-lo rei e onde Jesus, reconhecendo sua intenção, foge-lhes retirando-se, só, para a montanha.

Chegamos, portanto, à conclusão de que Jesus sempre observou a mais extrema reticência no tocante ao título de Messias, e que, inclusive, considerou como tentação satânica as ideias específicas que se agregavam a ele. Em certos momentos decisivos, substituiu o título "Messias" pelo de "Filho do Homem", como que opondo um ao outro.268 Temos, enfim, visto que opõe conscientemente a ideia de Ebed Iahweh à de um Messias político. Que ironia o fato de ter sido Jesus crucificado pelos romanos precisamente como Messias político!

A seita de Qumran parece também ter se oposto ao ideal messiânico político, já que coloca o Messias sacerdotal acima do Messias real.269 Porém, esta oposição é colocada em um plano muito diferente do de Jesus.

Mas, não houve pelo menos um aspecto do messianismo judaico que Jesus tenha podido aceitar? No que concerne ao título de Messias, não houve de sua parte uma recusa direta, senão uma grande reserva frente a todas as imagens que se concentravam em torno do messianismo político.

Se não o recusou categoricamente, é porque, em seu tempo, este título já não estava mais circunscrito a seu aspecto político; comportava um elemento positivo que podia harmonizar-se com a concepção que tinha de sua missão. Neste título de Messias se expressa, com efeito, a continuidade entre o Antigo Testamento e a obra realizada por Jesus. O Messias cumpre este papel de medi-

•''*E. STAUFFER, "Messia oder Menschensohn" (Novum Testamentum, I, 1956, p. 81 ss.) expõe, como J. HERING antes dele, uma tese análoga que leva, contudo, a uma posição extrema, quando pretende que Jesus nunca tenha se autodesignado como Messias - inclusive no sentido apolítico. Pensa, com efeito, que ao designar-se como Filho do Homem, Jesus não poderia, sem contradizer-se, designar-se também como Messias.

•'"''Cf. acima, p. 116 s. e 155 s.

Page 160: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

W>8 Oscar Cullmann

ador que o povo escolhido de Deus tinha que ter assumido em sua totalidade. Esta ideia se encontra, ademais, na base da maior parte dos títulos cristológicos de origem judaica; o Messias o compartilha, em consequência, com outras figuras escatológicas do Judaísmo; porém, é neste título onde se encontra sua expressão mais vigorosa. A concepção judaica de Messias tem um caráter nacional profundamente arraigado. O sentido de toda a história de Israel se condensa nesta figura. O elemento do messianismo que se pode aplicar a Jesus é o fato de que o Messias, como tal, realiza a missão de Israel. Porém, a maneira em que Jesus a cumpre se opõe à esperança judaica, tomada em seu sentido mais restrito.

Muitas declarações de Jesus indicam haver ele designado a si mesmo a tarefa de cumprir a função de Israel. Compreende-se, pois, porque admitiu, com certas reservas, ser chamado Messias, melhor dizendo, porque não recusou absolutamente o título mas se contentou em evitá-lo.

Jesus não poderia, em vista de sua obra vindoura, escatológica, tomar alguns traços à imagem do Messias que ele devia categoricamente recusar para sua obra terrena. O fato de citar o Salmo 110 em sua resposta ao sumo sacerdote (Mc 14.62 par.) faz supor que tenha incluído em sua esperança escatológica a ideia de uma futura dominação do mundo, - aqui e como sempre - porém, excluindo dela os caracteres políticos. Contudo, fica estabelecido que ao falar diante do sumo sacerdote sobre sua obra futura, ele não se nomeia o Messias, mas, Filho do Homem, portanto, seguindo a Daniel, como um ser que transcende a história.

Fica-nos por examinar outro título que é uma variante do título de Messias; ou, de preferência, que designa o Messias de acordo com a sua origem: filho de Davi.

Temos aqui duas questões independentes uma da outra: Ia Jesus é verdadeiramente proveniente da família que a tradição fazia descender da casa real de Davi? 2a Considerou Jesus a

Page 161: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 169

origem davídica como uma condição essencial à realização de sua missão? Do ponto de vista cristológico, em suma, só a segunda questão é importante; porém, como a primeira lhe está relacionada, nos é necessário falar dela brevemente.

Haveria também uma terceira questão: em que medida a comunidade primitiva atribuiu uma importância fundamental à filiação davídica, e como a combinou com a afirmação do nascimento virginal? Porém, esta questão não vai ser discutida aqui, mas unicamente a atitude de Jesus a este respeito. Ela não entra em consideração senão na medida em que teria influenciado sobre a tradição evangélica relativa às declarações de Jesus sobre esta questão.

Começaremos, pois, por averiguar se a família de Jesus retrocede sua genealogia até Davi. Só se pode pôr o assunto desta maneira, pois seria impossível verificar historicamente a exatidão de semelhante tradição, no caso de ter existido.

A maioria dos historiadores crê cumprir um dever ao negar a existência de uma tradição familiar davídica na família de Jesus;270

o argumento que empregam, mais frequentemente, é que esta tradição teria sido criada mais tarde pela igreja, para responder à polémica judaica; pois, o Messias esperado devia sair da família de Davi. A comunidade primitiva teria, pois, postulado e afirmado posteriormente a filiação davídica de Jesus. Porém, esta hipótese não se impõe tão facilmente como muitas vezes se crê.

Não podemos, por certo, nos apoiar nas genealogias dadas por Mateus e por Lucas, por causa de suas divergências: elas diferem uma da outra em pontos importantes e estabelecem a vinculação entre Jesus e Davi por linhas genealógicas muito diferentes. Desde Annius de Viterbe (cerca de 1490), costuma-se resolver estas divergências admitindo que a genealogia dada por Lucas seria a de Maria, enquanto que a dada por Mateus seria a de José. Isto supõe que Maria também tinha ascendência davídica, como muitos pensa-

Cf., por exemplo, as considerações de M. GOGUEL, Jesus, 2a ed., 1950 p. 195 ss.

Page 162: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

1.70 Oscar CuUmann

ram desde o século II.27' Porém, não possuímos testemunhos mais antigos do que estes acerca desta opinião. Como quer que seja, a confrontação das duas genealogias faz surgir dificuldades que não podem ser descartadas, senão, graças a hipóteses e combinações complicadas.272 Por outro lado, pode alguém se perguntar se a afirmação da origem davídica de Maria não provém já de um desejo de harmonizar as duas declarações justapostas no Novo Testamento, uma das quais proclama a filiação davídica de Jesus "segundo a carne", enquanto a outra declara que nasceu de uma virgem.273 Em razão destas dificuldades - às quais se acrescenta ainda o fato que em certos meios rabínicos já havia genealogias bem prontas do Messias esperado - sem dúvida é preferível não partir das genealogias dadas pelos Evangelhos para saber se existia, na família de Jesus, uma tradição que a fizesse descender de Davi.

Estas duas genealogias entram, no entanto, em consideração, pois provam que entre os anos 70 e 90 já existia uma tradição bem estabelecida, segunda a qual a família de Jesus seria proveniente da família real de Davi. Deve ser, por outro lado, sensivelmente mais antiga, por já ser atestada por Paulo no começo de sua Epístola aos Romanos (Rm 1.3); e como o apóstolo cita aí muito provavelmente uma confissão de fé da comunidade primitiva,274 pode-se concluir que esta tradição se formou bem cedo. Isto é importante,

Referências em W. BAUER, Das Leben Jesu im Zeitalter der neutestamentlichen Apokryphen, 1909, p. 13 ss. Um exemplo muito antigo de tentativa de harmonizar as duas genealogias é apresentado por um texto de JULIUS AFRICANUS, conservado por EUSÉBIO, Hist. EccL, 1, 7. Sobre o valor histórico das tradições genealógicas aí utilizadas, cf. G. KUHN (ZNTW, 22, 1923, p. 225 ss.). K. BORNHÀUSER, Die Gebwis-und Kindheitsgeschichte Jesu. Versuclt einer zeitgenôssischen Auslegung von Matthãus I und 2 und Lukas 1-3, 1930, p. 22 ss., recusa, é verdade, a possibilidade de que a genealogia dada por Lucas seja a de Maria; porém, a solução que ele propõe para reconhecer as duas genealogias como "históricas" e fazê-las concordar entre si, apelando ao costume do levirato, nos parece bastante artificial. Cf. CULLMANN, Les premières cotifessions de foi, 1934, p. 4. Ver também, O. MICHEL, em seu Commentaire, p. 30 s.

Page 163: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 171

pois, na ocasião os membros da família de Jesus ainda viviam. Não é absolutamente impossível, ainda que difícil, admitir que, sob seus olhos, essa tradição não se apoiasse em nenhuma informação que remontasse à época do próprio Jesus. É, pois, bem possível que a família de Jesus pretendesse, com efeito, remontar-se a Davi.275 No tempo de Jesus não ocorreu a nenhum membro dessa família confirmar esta tradição pelo estabelecimento de uma genealogia completa, e se pode admitir que seja a igreja quem, mais tarde, se ocupou disto. Em sua origem, poderia tratar-se simplesmente de uma tradição de família, que não se preocupava em demonstrá-la. Não podemos esquecer que para os judeus, pertencer a tal ou qual linhagem era importante para situar cada família

povo. no seio de seu povo.276

Hegesipo, autor judeu-cristã o de uma história da igreja antiga, da qual nos foram conservados alguns fragmentos, relata, segundo Eusébio,-77

que o imperador Domiciano, preocupado, apesar da destruição de Jerusalém no ano 70, com assegurar-se da lealdade dos judeus, teria ordenado certo dia investigar e fazer comparecer diante de si a todos os descendentes de Davi. Devia, pois, saber que os levantes messiânicos judaicos estavam ligados à esperança de um descendente de Davi que, fundamen-tando-se sobre sua pretensão à realeza, se lançariam contra os romanos. Hegesipo conta que nesta ocasião se denunciou e prendeu, também, aos netos de Judas, irmão de Jesus. O imperador lhes teria perguntado se eram da família de Davi, ao qual responderam afirmativamente. Aí mesmo se havia informado de sua condição, para saber que todos estes não possuíam mais do que 9000 denários e que trabalhavam a terra para poderem viver. Para prová-lo, teriam mostrado suas mãos calejadas. Domiciano, convencido de que estes descendentes de Davi eram pobres e inofensivos os teria libertado desdenhosamente. Citamos esta história para demonstrar que a tradição davídica relativa à família de Jesus de fato não era contestada.

275Tese sustentada, entre outros, por J. WEISS, Das Urchristemum, 1917, 89; G. DALMAN, Die Worte Jesu, 2a ed., 1930, 262 ss.; E. STAUFFER, Theologie des Neuen Testaments, 1948, p. 261 s.

™ A este respeito, podemos nos recordar que Paulo, também, parece ter possuído uma tradição familiar, segundo a qual ele era proveniente da tribo de Benjamim (Fl 3.5).

'"EUSÉBIO, História Eclesiástica, 3, 19 s.

Page 164: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

1.72 Oscar Cuttmcum

Estes testemunhos datam, é verdade, do fim do primeiro século, ou seja, de uma época em que os parentes de Jesus, por causa deste parentesco, estavam à frente do judeu-cristianismo na Transjor-dânia.278 Poder-se-ia, pois, ver na afirmação acerca da origem davídica de Jesus um produto tardio de um interesse "dinástico" legitimador por parte dos judeu-cristãos. No entanto, a passagem citada de Rm 1.3, mostra que muito antes e, até muito antes de Paulo, a filiação davídica de Jesus era indiscutível; e se nesta época, então, Tiago, irmão do senhor, já desempenhava um papel importante na igreja mãe de Jerusalém, não parece ter reclamado, todavia, para si - no que lhe concernia particularmente - a filiação davídica. Ora, seria singular que a origem davídica de Jesus fosse afirmada tão cedo, sem que Tiago nada tivesse sabido acerca disto antes, pois esta afirmação lhe concernia de maneiramuito particular. Sem dúvida, este argumento não é decisivo. Parece-nos, no entanto, apoiar a hipótese segundo a qual a família de Jesus (como provavelmente outras famílias da época) possuía, senão uma arvore genealógica,279

ao menos, uma tradição oral, segundo a qual ela pertencia à linhagem de Davi. Isto não tinha nada de excepcional, pois, devia haver ainda outras famílias que faziam remontar sua origem a Davi.280

Resta-nos, no entanto, apresentar uma questão mais importante: Jesus se autodesignou como o "filho de Davi"? Só temos um texto que nos possa informar a este respeito, é Mc 12.35 ss. par.: "Jesus continuava ensinando no templo e disse: Como dizem os escribas que o Cristo é o filho de Davi? Davi mesmo animado

sCf. H. J. SCHOEPS, Theologie und Geschichte des Judenchristentums, 1949, p. 282 ss.

2nDeviam existir famílias providas de árvore genealógica: JOSÉPHE, em sua vita, nos dá indicações detalhadas sobre seus ancestrais. Sobre outras famílias davídicas da época judaica tardia epós-cristã, cf. TH. ZAHN, Das Evangeliuin des Mailhãus, 2a ed,, 1905, p. 43, nota 6 . -A título de curiosidade, mencionamos aqui o exemplo de diversas famílias aristocráticas da Basileia que fazem remontar sua genealogia a Carlos Magno. A comparação, todavia, é imperfeita, pois, entre os judeus a questão da origem familiar não respondia a um mero interesse histórico: tinha uma importância teológica, já que dela dependia a situação da família no seio de seu povo.

Page 165: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA I -1 NOVO TESTAMENTO 173

pelo Espírito Santo disse: o Senhor disse a meu Senhor: Senta-te à minha direita, até que ponha a todos teus inimigos por estrado de teus pés. Davi mesmo lhe chama Senhor: como é ele então seu filho?" Temos aqui das palavras de Jesus, uma das mais difíceis de ser interpretada; daí que esta declaração foi explicada de maneiras muito diversas. A dificuldade consiste, em grande parte, na extrema concisão com que, segundo os Sinópticos, Jesus se expressa aqui. Quase se tem a impressão de que os próprios evangelistas já não sabiam mais qual era exatamente o sentido destas palavras.

Segundo uma explicação muito generalizada, Jesus teriaexpres-samente negado, nesta passagem, sua origem davídica.25' Porém, isto não é tão certo como pode parecer à primeira vista. Em todo caso, é pouco provável que os evangelistas, que nos transmitiram esta perícope, tenham-na compreendido desta maneira. Eles mesmos, com efeito, estavam persuadidos da filiação davídica de Jesus, e dificilmente transmitiriam um logion no qual ela fosse contestada. Porém, é possível compreender estas palavras de outro modo. O que Jesus nega não é necessariamente sua ascendência davídica, mas a importância cristológica dada pelos judeus a esta ascendência para a obra de salvação que ele haveria de realizar.

Jesus utiliza aqui o método de demonstração em voga na sua época. Cita o célebre Salmo real 110, do qual já temos falado em outro contexto diferente e do qual tornaremos a nos ocupar.!S2 Ora, segundo a tradição, todos os Salmos são obra do rei Davi. É nisso que Jesus funda sua argumentação. Segundo a intenção primitiva do salmista, a palavra XvWas no nominativo significa, naturalmente, Deus; a palavra Kyrios no dativo designa o rei; é, pois, este último a quem se chama "meu Senhor". Originalmente, o sentido do Salmo era tão só este: "Deus disse ao rei: senta-te a minha direita, etc." Porém, o sentido do Salmo hebraico muda a partir do momento em que alguém se convence que não tenha sido composto para

-S1Ct\ a tranqiiila segurança com a qual, por ex., E. MEYER, Urspntng und Anféinge áes Christentums, II, 1921, p. 446, expressa esta opinião.

•" Cf. acima, p. 118 s. e abaixo, p. 292 s.

Page 166: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

174 Oscar Cullmann

honrarão rei, mas,pelo próprio rei, Davi. OKyrios no nominativo segue sendo Deus, porém o Kyrios no dativo não pode mais ser considerado como o rei, já que é o mesmo quem fala. As palavras "meu Senhor" devem, pois, designar o Messias.

Uma coisa em todo caso é clara: Jesus combate aqui a opinião segundo a qual a ascendência carnal do Messias seja determinante. Busca refutar esta opinião mostrando então que Davi não poderia chamar ao Messias de seu "Senhor"; não poderia, com efeito, dar a seu descendente, a seu filho, o título de "Senhor", se dava alguma importância ao fato de ser o Messias seu descendente segundo a carne. O Messias que Davi chama seu "Senhor" deve, pois, ser maior que Davi. Consequentemente, sua origem verdadeira não pode remontar a Davi, mas a alguém maior. Por detrás desta palavra de Jesus estaria então a ideia desenvolvida, por exemplo, no Evangelho de João, segundo a qual o Cristo deve, na realidade, sua origem não aos homens, mas a Deus.

Se esta explicação é exata, a atitude de Jesus relativa ao título de "filho de Davi" seria totalmente análoga à sua atitude para com o título de Messias em geral. Isto é, que por oposição à esperança messiânica corrente, ele recusa, também aqui, o ideal de um Mes-sias-rei político, e o recusaria tanto mais pelo fato de ser conhecida sua ascendência davídica.

Segundo R. BuHmann;f;j e outros, não se trata de uma palavra autêntica de Jesus, senão de um relato inventado mais tarde pela igreja. Porém, não se vê com clareza onde poderia ter-se originado este theologounienon. Pensa-se, por exemplo, em uma origem helenística; esta explicação choca-se com maiores dificuldades que a tese da autenticidade, poisa afirmação segundo a qual Jesus teria "nascido da descendência de Davi segundo a carne" (Rm 1.3) parece ter pertencido a uma confissão de fé geralmente admitida. Ademais, o sentido do logion de Mc 12.35 ss., deveria ser mais claro, se se tratasse de uma afirmação da teologia posterior da comunidade.

Cf. Gesch. d. .ynoptt Tradilion, 2' ed.. 19331 p. 145 s.; e também: Theologie des Neuen Testaments, 1953 p. 28 s.

Page 167: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 175

Nosso texto não implica, pois, necessariamente que Jesus tenha negado o fato de sua filiação davídica. Isto se mostra quando confrontamos o texto com outra palavra de Jesus, na qual não nega seu parentesco segundo a carne com sua família, mas onde ele nega a isto qualquer importância decisiva. Trata-se de Mc 3.31 ss.: "Nisto chegaram sua mãe e seus irmãos e, tendo ficado do lado de fora, mandaram chamá-lo. Muita gente estava assentada ao redor dele e lhe disseram: Olha, tua mãe, teus irmãos e irmãs estão lá fora à tua procura. Então, ele lhes respondeu, dizendo: Quem é minha mãe e meus irmãos? E, correndo o olhar pelos que estavam assentados ao redor, disse: Eis minha mãe e meus irmãos. Pois, qualquer que fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe."

Aqui também Jesus fala de uma filiação ou de um parentesco diferente do da carne. É, pois, possível que em Mc 12.35 ss. Jesus negue todo valor cristológico à filiação davídica, sem por isso negar necessariamente sua ascendência davídica. Sendo assim, Jesus haveria, pois, mostrado a respeito do título de "filho de Davi" a mesma reserva que ao título de Messias, sem recusar por isso, categoricamente, os títulos em si.

Assim, se encontra também excluída toda explicação psicológica que fizesse derivar a "consciência messiânica" de Jesus da existência, em sua família, de uma consciência de sua ascendênciadavídica.iSJ Se Jesus deprecia tão categoricamente esta origem, este elemento psicológico, consequentemente, não poderia ter desempenhado um papel decisivo sobre sua "consciência messiânica".

Chegamos, pois, à seguinte conclusão: Jesus não recusou diretamente o título de "filho de Davi" quando outros davam-lho,285

porém, recusou energicamente a ideia de uma realeza política, associada a este título.

•sl A. E. J. RAWLINSON, The New Testament Doctrine of the Christ, 3a ed., 1949, p. 42, nota 3, contém uma observação neste sentido; esta tese havia sido defendida em particular por F. SPITTA.

2t" Marcos e Lucas não contêm, a este respeito, mais que uma só referência: Mc 10.47 s. (Lc 18.38); porém, encontramos ainda outras cinco em Mateus (Mt 9.2.7; 12.23; 15.22; 21.9; 21.15).

Page 168: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

176 Oscar Cultinann

No entanto, devemos fazer aqui uma observação análoga à que fizemos a propósito do título de Messias. Na medida em que Jesus tinha consciência de realizar a missão do povo de Israel, a ideia de realeza não estava em contradição com sua vocação; porém, ele dá a ela um conteúdo novo: segundo a expressão joanina, trata-se de uma realeza que "não é deste mundo".

3. A COMUNIDADE PRIMITIVA E O MESSIAS

Temos indicado que o título de Messias se impôs a ponto de apagar, ou ao menos de subordinar os demais títulos cristológicos: nenhum destes teve a honra de permanecer ligado para sempre ao nome de Jesus.

A comunidade palestina primitiva estava bem longe de compartilhar da reserva de Jesus em relação ao título de messias; pelo contrário, à luz do acontecimento da Páscoa e da espera de um fim próximo, a fórmula "Jesus é o Messias (Cristo)" se converteu em profissão de fé. No Evangelho de Marcos, o qualificativo de Mes-sias-Cristo atribuído a Jesus é ainda relativamente raro. Torna-se mais freqtiente em Mateus e Lucas, como também no Livro de Atos.286 Temos de observar, no entanto, que nestes escritos o título não tinha chegado ainda a ser nome próprio. Mesmo no Livro de Atos (que neste ponto é, sem dúvida, influenciado por fontes mais antigas), o sentido original da palavra "Cristo" segue dominando.

Porém, quando o título "Cristo" torna-se nome próprio, é indício de que a concepção especificamente judaica de Messias está em retrocesso. Esta evolução deve ter se produzido, em particular, sobre o solo das comunidades helenísticas, onde não existia um interesse messiânico, no sentido original do termo. Resulta, paradoxalmente, que a transformação do título de "Cristo" em nome próprio - transformação favorecida por seu emprego cada vez mais frequente - o aproxime da ideia que o próprio Jesus se fazia acerca

Cf. íi este respeito V. TAYLOR, The Names of Jesus, 1953, p. 19 s.

Page 169: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

C^RISTOLOGIA DO NOVO ThSTAM;iNTU 177

do Messias: este título é despojado, assim, de seu caráler nacional e político.

Podemos constatar em Paulo o início dcsla evolução. Certamente ele tem clara consciência de não ser a palavra "Cristo" nome próprio; pois, costuma colocar o título de Crislo antes do nome de Jesus.287 Porém, nos demais escritos do Novo Testamento, a transformação em nome próprio não cessa de progredir.

Mas, como explicar que a comunidade palestina, contradizendo a atitude de Jesus, tenha empregado com predileção e conscientemente este título de Messias? Sobre este problema, temos que mencionar aqui, em primeiro lugar, as discussões entre os primeiros cristãos e os judeus. Com o auxílio deste título era possível fazer os judeus de então compreenderem a fé dos discípulos de Jesus.288 A isso se ajuntam razões teológicas. Recordava-se, por certo - os Sinópticos o provam - que Jesus mesmo desconfiava do título de Messias e o havia substituído pelo de Filho do Homem; porém agora, à luz de sua morte e sua ressurreição, se podia considerar legítimo proclamá-lo como o "Cristo". Conforme a vocação que reconhecera a si mesmo, Jesus cumprira a missão de Israel; e este cumprimento resplandecia agora com tal luz que as diferenças se apagavam entre o Messias político esperado pelos judeus e o Filho do Homem.

Na medida em que a comunidade primitiva tomava consciência de já viver nos tempos da consumação e de ser o "povo de Deus", o povo eleito, a ideia que o messiado se havia cumprido também em Jesus devia impor-se; não segundo o esquema político, mas segundo o esquema da história da salvação. A fim de trazer

!t7 Tampouco cremos que Rm 9.5 seja a única passagem onde Paulo tenha empregado a palavra "Cristo" no sentido de "Messias", como pensa V. TAYLOR, op. cit., p. 21 (e ainda aí com um sinal de interrogação). - A. STUIBER (RAC, t. 3, col. 25) utiliza, como nós, este critério: achar no emprego da palavra "Cristo" antes do nome de Jesus uma pista para buscar, na Igreja antiga, impressões da sobrevivência de sua significação primitiva.

**K Ver por ex. o papel que a ideia de Messias tem na obra apologética de JUSTINO: Diálogo com o judeu Trifo.

Page 170: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

178 Oscar Cullmann

à luz a continuidade entre o antigo e o novo pacto, sublinha-se também a filiação davídica de Jesus,289 à qual o próprio Jesus havia dado tão pouco valor. Assim, o título de "Filho de Davi" adquiria uma importância tal que passou a estar inserido nas confissões de fé (Rm 1.3; Inácio, Esmirna 1.1; Trall. 9.1). O sentido profundo da realeza davídica era realizado no reinado de Jesus, elevado à destra de Deus. O fim ao qual tendia a realeza em Israel era, assim, alcançado.

Esta convicção da consumação em vias de realização permitia tomar emprestado certos traços do Messias político. Pelo fato de já não ser mais o povo de Deus uma entidade política, mas a comunidade de discípulos de Jesus, estes traços purificaram a si mesmos: a realeza do filho de Davi era, acima de tudo, a realeza que exercia sobre a igreja. Quanto mais vigorosa era a fé neste cumprimento, tanto mais potente tornava-se, também, a esperança da manifestação final e total de sua consumação. Pois tornamos a achar no cristianismo primitivo, como no próprio Jesus, a tensão entre "o já cumprido" e o "por cumprir-se".

Jamais a comunidade primitiva situou a realeza de Jesus somente na instituição da Igreja. A esperança escatológica do cristianismo primitivo era demasiado forte para que esta tensão pudesse ser eliminada, como haveria de ocorrer mais tarde na igreja Católica. A tese desenvolvida por J. L. Leuba em L'"mstitution et Vevénement, 1950 (tese do paralelismo neotestamentário entre a ideia da "instituição" e a do "acontecimento" profético) deveria ser examinada à luz da tensão temporal entre o cumprimento já realizado e a consumação final.

Segundo a fé dos primeiros cristãos, é unicamente no futuro que a realeza de Jesus se manifestará de modo visível. Porém, aqui pode existir o perigo de uma interpretação política do messianismo de Jesus, e talvez não tenha sido sempre evitado no que diz respeito à segunda vinda de Cristo. Em Paulo, em todo caso, não se encontra nenhum traço de semelhante interpretação. Sem dúvi-

2KV Sobre a relação entre a filiação davídica e o nascimento virginal, cf. abaixo, p. 386 s.

Page 171: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMEPÍTO 179

d;i, ele também espera a aparição visível de Cristo no fim dos tempos, porém, mesmo assim a ação escatológica do Cristo jamais tem um aspecto político. Por outro lado, quando a ideia da realeza futura de Jesus se concentra em um reino de mil anos (como ocorre no Apocalipse, cap. 20.4), então as ideias recusadas pelo próprio Jesus para sua missão terrestre podem novamente surgir, mas sob uma nova forma e aplicadas à Igreja visível do fim dos tempos.290

Em conclusão, devemos reconhecer que o Cristianismo primitivo não só adotou a terminologia relativa ao Messias (assim como indicamo-lo no começo deste capítulo) como também aplicou a Jesus, à luz do "cumprimento" e transformando-as em um sentido cristão, certas ideias próprias da esperança messiânica judaica. E isto, das três maneiras seguintes: Jesus apareceu sobre a terra como filho de Davi; exerce a realeza sobre a comunidade dos fiéis; virá como Messias no fim dos tempos. Estas ideias cristo-Jógicas retrocederam frente a outras, desde que o termo "Cristo" passou a ser empregado como nome próprio, o que havia de pro-duzir-se sobretudo no seio das comunidades helenísticas.

1"Com J. HÉRING, "SaintPaula-t-ilenseignédeuxrésurreçiions?(RHPR, 12, 1932, p. 300 ss.), nós não vemos (contra A. SCHWEITZER) a possibilidade cie incorporar a crença tio "reinado de mil anos" à esperança escatológica de Paulo. Antes de tudo, a ideia de uma "segunda" ressurreição em vista do juízo nos parece incompatível com a doutrina da ressurreição, desenvolvida pelo apóstolo em 1 Co 15.35 ss. Paulo não conhece mais do que uma ressurreição: aquela em que os ressuscitados se revestirão do soma pneumatikòn. Sobre este ponto, H. BIETENHARD, Das tausendjãhrige Reich. Eine biblisch-Theologische Studie, 1944, p. 65 ss., não trás tampouco argumentos convincentes.

Page 172: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CAPÍTULO II

JESUS, O FILHO DO HOMEM (bamasclia, mòç TOÍ> >vQpómov)

Com a noção de Ebed Iahweh, a de Filho do Homem é uma das mais importantes das que estudamos. Sua aplicação cristológica também remonta ao próprio Jesus. Contudo - coisa singular - as preciosas ideias cristológicas que aí estão contidas, nunca foram utilizadas em dogmática como mereceriam sê-lo. Nos sistemas oficiais de dogmática, e especialmente nas discussões dos séculos IV e V, a ideia de Logos ocupa um lugar tal que todas as demais concepções cristológicas ficaram, mais ou menos, relegadas a segundo plano. Daí o fato de não possuirmos uma verdadeira cristologia baseada na ideia de Filho do Homem. Já temos visto que a noção de Ebed Iahweh explica de uma maneira exaustiva a obra de Jesus encarnados, sobretudo, o ato central da salvação: sua morte. Veremos, no curso deste capítulo, que a noção de Filho do Homem é mais ampla e que, mais do que nenhuma outra, é suscetível de descrever a obra total de Jesus.

Um primeiro fato basta, de per si, para demonstrar a importância deste título messiânico, a saber: este é o único que, segundo os Evangelhos Sinópticos, Jesus aplicou a si mesmo, enquanto que jamais designou a si próprio como "Messias". Intencionalmente, sem dúvida, substituiu o título de Messias pelo de Filho do Homem. É isto tanto mais importante pelo fato de que os próprios evangelistas jamais empregam este título quando querem expressar sua fé em Jesus. Já em sua época, é a invocação messiânica "Cristo" que domina. Mesmo este fato sendo claro colocam, não

Page 173: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

182 Oscar Ctillmann

obstante, na boca de Jesus o título de Filho do Homem, provando que reproduzem uma tradição já fixada, segundo a qual o próprio Jesus se autodenominou desta maneira.291

1. O FILHO DO HOMEM NO JUDAÍSMO

Como de costume, tomamos por ponto de partida a significação que o judaísmo dá à expressão que examinamos. Aqui se reveste de especial importância porquanto ao mencionar-se como "Filho do Homem" Jesus evoca uma concepção determinada, difundida em certos meios de seu povo. E necessário, inclusive, desobstruir os limites do judaísmo: com efeito, trata-se - como para o título de Logos que estudaremos mais tarde - de um conceito difundido nas outras religiões (se bem que com caracteres diferentes). Poderia, pois, parecer indicado inserir aqui um parágrafo especial consagrado a esta concepção nas religiões pagãs. Nos limitaremos, não obstante, a tratar este problema no quadro do judaísmo, pois não cabe admitir uma influênciadireta da ideia pagã de Filho do Homem em Jesus e no cristianismo primitivo. O contato com a figura de um "homem" celeste forânea ao judaísmo se produziu em solo judaico, de sorte que a relação entre Jesus Filho do Homem, e o Filho do Homem pagão passa pelo judaísmo.

A primeira questão que se esboça aqui é esta: o que significa a expressão mòç TOÍ> àvBpámox> do ponto de vista puramente filológico*? Teremos de remontar ao aramaico: mòç xo\) ctBppÓTWOcorresponde ao aramaicoNti?7 "13. Bar, como se sabe, é o equivalente aramaico do hebraico ben = filho. Encontramos este termo em diversos nomes próprios tais como Barnabé, Bar-jonas, Bartolomeu etc. Nascha, derivado da mesma raiz que o hebraico isch, plural anaschim, significa "homem". Barnascha é pois a expressão aramaica à qual corresponde o grego mòç xox> ÓCV9pG)7tOt>.

Cf. abaixo, p. 205.

Page 174: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO

Pois bem, o termo aramaico bar costuma ser empregado em sentido figurado. Diz-se, por exemplo, em lugar de "mentiroso", "filho da mentira"; os pecadores são chamados "filhos do pecado"; e um rico é um "filho da riqueza". Nesta construção o genitivo que segue a bar designa, portanto, a espécie à qual pertence a pessoa em questão. Bamascha é, portanto, em aramaico, aquele que pertence à espécie humana e significa simplesmente "homem" (mais ou menos como em alemão se diz Menschenkind292). A tradução grega tàòç TOÍ> àvôpcíwtoi) é pois, no fundo, o,exata por ses demasiado literal. Bamascha deveria ser traduzida em grego simplesmente por avGpcorcoç. Porém, o problema não se resolve com recordar este fato filológico tão conhecido. Falta-nos, pois, ainda saber em que sentido Jesus pôde qualificar a si mesmo de "homem", segundo o uso linguístico judaico de seu tempo.

H. Lietzmann consagrou em 1896 seu primeiro estudo a esta questão.293 Segundo ele a expressão não poderia ser, entre os judeus, um título messiânico; baseando-se em considerações filológicas chega a um resultado negativo, hoje geralmente abandonado. A partir de um fato exato bamascha ssgnifica ssmplesmente "homem") conclui que o judaísmo do tempo de Jesus não pôde nomear assim ao Messias; a atribuição que Jesus houvesse feito a si mesmo deste nome, tão vago e tão geral, não teria, consequentemente, nenhum sentido. Em Dn 7.13, onde o "Filho do Homem" aparece pela primeira vez, esta expressão não teria, segundo ele, nenhum caráter messiânico. Tratar-se-ia, nesta visão, unicamente de um ser humano, por oposição aos animais que se mencionam na mesma passagem. Seria a comunidade primitiva quem teria posto o termo na boca de Jesus, dando a este "homem" uma interpretação messiânica e convertendo esta expressão em título cristológico.

Esta tese à qual se havia aliado - com certas reservas, é verdade -J. Wellhausen, Skizzen und Vorarbeiten, VI, 1899, p. 187 ss., foi logo

M-Igualmente, a expressão hebraica correspondente, benadam (Ez 2.1; SI 8.4; 80.18). M H. LIETZMANN, Der Menschensoh.. Ein Beitrag zur neutesíamentlichen

Theologie, 1896.

Page 175: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

184 Oscar Cuttmanti

rejeitada com razão.2!M Sua refutação por G. Dalman, Die Worte Jesu, 1898, p. 191 ss., nãoé, contudo, inteiramente satisfatória: pois ele tenta demonstrar que a expressão bartiasckci não era corrente em aramaico-galileu no sentido geral de "homem". Porém, esta afirmação não pode sustentar-se como tem demonstrado P. Fiebig, Der Menschensolui, Jesu Selbstbezeichnung tnit besonderer Berilcfcsichtigung des aramãischeti Sprachgebrauchsftir Mensch, 1901: filologicamente, bariiascha significa simplesmente "homem"; porém, a conclusão que Lietzmann e Wellhausen tiraram daí, a saber, que não podia ser uni título messiânico, é falsa.

A literatura judaica tardia indica que este termo geral, "homem", serviu, na época de Jesus, para designar um salvador escatológico: é o título que ostentaria um mediador especial a aparecer no fim dos tempos.295

Onde o encontramos pela primeira vez, em Dn 7.13, não se pode saber se já se trata de um salvador individual. O "Filho do Homem" aparece por oposição aos quatro animais; estes, segundo a explicação que segue, são os reis de quatro grandes impérios. Em seguida se diz: "Eu estava olhando nas minhas visões noturnas e eis que vinha com as nuvens do céu um como o Filho do Homem, e dirigiu-se ao Ancião de dias, e o fizeram chegar até ele. Foi-lhe dado domínio, e glória, e o reino, para que os povos, nações e homens de todas as línguas o servissem; o seu domínio é domínio eterno, que não passará, e o seu reino jamais será destruído (ver. 13 s.). Segundo a explicação dada em seguida pelo visionário (v. 15 ss.), este "Filho do Homem" representa os "santos do Altíssimo".

LIETZMANN mesmo, mais tarde, a abandonou. Cf'., a este respeito, W. BALDENSPERGER, Die messianisch-apokaiypíischen Hoffnungen des Judeniitms, 3a ed., 1903, p. 91 ss.; A. V. GALL, BaaiXeía xav 6Eoíi, 1926, p. 409 ss.; W. BOUSSET, Die Religion des Judeniums im neutestainentlichen Zeitalter, 3a ed., 1926;G. DUPONT, Leflls de 1'homme, 1927; C. H. KRAELING, Anthropos andSon ofMctn. A Study tu the Religious Syncretism ofthe Hellenistic Orient, 1927; H. GRESSMANN, Der Messias, 1929, p. 343 ss.; R. OTTO, Reich Gottes tutd Meiíschensohn. Ein religionsgesclticlitlicher Versuch, 1934. - E, sobretudo, recentemente E. SJÕBERG, Der Menschensoltn im cithiopischen Henochbitch, 1946, em partic. p. 41 ss.

Page 176: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 185

Identifica-se aqui, pois, o Filho do Homem com povo de Deus: não se pode perder de vista esta fato. Porém, por que, nesta visão, o povo dos santos aparece precisamente como um "homem", por oposição aos animais? Notou-se, com razão,296 que há na explicação da visão uma certa inconsequência, um ligeiro desequilíbrio, no sentido de que os animais são compreendidos como reis, isto é, como os representantes dos quatro grandes impérios, enquanto que o Filho do Homem aparece como o próprio povo de Deus. Pode-se, pois, supor que originalmente o "homem" tenha simbolizado (da mesma maneira que os animais) o representante do povo dos santos. No judaísmo, se passa facilmente de um ao outro. Já conhecemos a importância da ideia de substituição: o substituto, o representante, pode ser identificado com a coletividade que representa. Em nosso capítulo sobre o Servo de Deus já mencionamos este fenómeno tão importante para a cristologia neotestamert-tária297 e teremos ainda ocasião de encontrá-lo. Como quer que seja, o Filho do Homem anunciado por Daniel (7.13) foi posteriormente considerado pelos judeus como uma figura individual m

E como tal que ele aparece também em outros escritos apocalípticos tardios. No Apocalipse designado com o nome de 4° livro de Esdras, o Filho do Homem surge das ondas do mar e se eleva sobre as nuvens como um salvador.299 Dele se afirma que o Altíssimo o manteve por muito tempo reservado a fim de salvar a criação por meio dele. Ele aparece também nesta obra com o nome de Messias.

Porém, é sobretudo nos caps. 37-71 do livro etíope de Enoque que a figura do "homem" é interpretada assim.300 Em termos gerais,

''Cf. porex. H. GRESSMANN, Der Messias, 1929, p. 345 ss. 7Cf. acima, p. 79 s. * Cf. JUSTINO, Dial. c. Tryplt. 31 s. ''4 Esdras 13. "R. H. CHARLES, The Ethiopic Version ofthe Book of Enoque, 1906, p. 86 s., supõe que o demonstrativo "este" (este Filho do Homem) do texto etíope é a tradução do artigo definido do modelo grego. Sobre esta questão muito discutida, cf. E. SJÕBERG, op. cit., p. 44 ss„ que, ademais, chega à conclusão de que o "Filho do Homem" é um título messiânico.

Page 177: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

líi6 Oscar Culbnann

esta obra judaica tardia é muito importante para a compreensão dos começos do cristianismo. Os capítulos mais importantes em que se trata do "Filho do Homem" são Enoque 46, 48 s., 52, 62, 69, 71; porém, outras passagens também são consideradas. Pode dar-se por demonstrado que não se trata aqui, como em Dn 7.13, de uma personificação do povo de Israel; mas antes, de uma personalidade individual (ficando bem entendido, contudo, que a ideia de Filho do Homem, por sua origem e em virtude do próprio sentido da palavra, supõe que os homens são representados por um homem).

N. Messel Der Menschensohn in den Bilderreden des Henoche, 1922) tentou, sem êxito, fornecer a prova de uma interpretação puramente coletiva. Não pôde fazê-lo sem eliminar, como interpolações cristãs, toda uma série de textos importantes. M. J. Lagrange Le judaísnte avanT Jèsus-Christ, 1931, p. 242 ss.) buscou também, sob outra forma, demonstrar a presença de interpolações cristãs no livro de Enoque. Porém, de nenhum modo se torna forçoso admitir esta hipótese, à qual é demasiado fácil recorrer quando se trata de explicar escritos judaicos tardios - às vezes por razões apologéticas com a intenção de assinalar bem a distância que os separa dos escritos cristãos primitivos. A constatação de afinidades existentes deveria, pelo contrário, nos lançar na busca da novidade do Evangelho onde ela se encontra verdadeiramente. O que dizemos aqui se aplica também à confrontação atual dos textos de Qumran com as ideias que se expressam no Novo Testamento.

No livro etíope de Enoque, o "Filho do Homem" é aquele cujo nome é pronunciado pelo "Ancião de dias" no começo da criação; aquele que, por conseguinte, foi criado antes de todas as demais criaturas.-101 Até no fim dos tempos, quando vier para julgar o mundo e exercer sobre ele o domínio, ele mesmo, entretanto,

™l ENOQUE48.2, 6.-Como assinala com razão E. SJOBERG,í>p. «í.,p. 94, o Filho do Homem do livro de Enoque não é unicamente um anjo, como pensa M. WERNER, Die Entstehtmg des chrísúichen Dogmas, 2a ed., 1953, p. 302 ss. Cf. também a este respeito W. MICHAEUS, Zur Engelchristologie im Uivhristentum, 1942.

Page 178: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

I^RJSTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO 2§7

permanecerá oculto.-102 Aliás, tudo o que é relativo a ele e ao fim dos tempos depende de uma doutrina secreta. Neste livro se lhe dá, às vezes, o nome de Messias.303

A espera do "Filho do Homem" parece, por conseguinte, ter sido acolhida especialmente nos meios esotéricos do judaísmo. Se na verdade (como se havia suposto no começo) o rolo que continha o Apocalipse de Lameque - rolo achado entre os manuscritos de Qumran o qual não pôde ser aberto por dificuldades técnicas - teve afinidades com o livro de Enoque, isso seria, naturalmente, sumamente importante para a questão da origem do Filho do Homem. Infelizmente esta suposição não foi confirmada; e entre os Hinos publicados nesse meio tempo não se mencionaem nenhuma parte o "Filho do Homem". Por outro lado, não se exclui que em um trecho do Manual de Disciplina, se encontre a noção de segundo Adão, noção que - voltaremos a falar sobre ela - é uma variante da de Filho do Homem.304 Porém, esta esperança no Filho do Homem confirma, no entanto, que a vida religiosa na Palestina era muito mais rica e mais diversa do que poderia fazer crer o esquema corrente, que se limita a distinguir entre fariseus e saduceus. O livro de Enoque nos faz conhecer um certo meio no qual a esperança messiânica tem um caráter distinto daquela do judaísmo oficial. Aqui já não se espera um Messias político que tenha de destruir os inimigos de Israel em uma guerra terrena e estabelecer um reino terreno, mas se espera o "Filho do Homem" como um ser celestial sobrenatural: é o soberano celestial e não um rei deste inundo. O fato de que seja chamado "homem", ou seja, que tenha uma figura humana não deve induzir-nos a erros, pois sua

1(liR. OTTO, Reich Goíles und Menschensohn, 1934, sublinha particularmente este caráter •'oculto". Porém, é quase impossível fazer derivar daí o "segredo messiânico", como o propõe E. SJÕBERG, op. cit., p. 115. Pode-se, quando muito, fazc-lo intervir como motivo secundário para explicar este segredo. Sobre o motivo principal, cf. acima, p. 107 s.

** ENOQUE 48.10; 52.4. - Cf. a este respeito E. SJÕBERG, op. cit., p. 140 ss. 3I1J Cf. I QS IV, 23. é E. DINKLER quem destaca o problema posto por esta passagem

(Schweiz. Monatshefte, 36, 1956, p. 277).

Page 179: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

188 Oscar Cullmann

majestade divina não pode ser excessivamente sublinhada: não é, com efeito, um ser celestial preexistente que vive nos céus desde a origem dos tempos, antes de vir à terra no fim dos tempos?

Então, por que a este mediador se lhe chama "homem"? Não é sair do quadro de um estudo histórico examinar seriamente esta questão. Pelo contrário, não é uma singular falta de curiosidade científica Hmitar-se a constatar que no seio do judaísmo subitamente tenha surgido uma figura do Salvador que, por um lado, se associa à imagem do Messias e, por outro, relega essa mesma imagem a um plano secundário, e que tem o título de "homem" ou de "Filho do Homem"? Se esperaria, ao contrário, que semelhante mediador fosse designado de modo tal que indicasse sua origem celestial. Ora, o chamam simplesmente "homem". Os textos judaicos não nos permitem explicar este fato singular. Isso prova haver uma relação com as concepções não judaicas de um "homem" que, sendo realmente homem, possui uma dignidade divina particular; com efeito, a história das religiões nos ensina que existem especulações relativas a um "primeiro homem", protótipo divino da humanidade.

Isto não quer dizer que o judaísmo tenha simplesmente tomado esta concepção do mundo ambiente como um corpo estranho. Há também no património espiritual judaico e bíblico uma ideia que se inclina neste sentido e pode dar um fundamento sólido a esta concepção: a criação do homem à imagem de Deus. Partindo daí, compreendemos que seja justamente o "homem" (na medida que representa a imagem fiel de Deus) o destinado a salvar a humanidade decaída. É verdade que em nenhum texto judaico se tiram tais consequências da imago Dei; porém, trata-se tão-so-mente de encontrar o ponto de contato do judaísmo com esta doutrina do "primeiro homem".

Esta doutrina era muito difundida entre as religiões orientais que rodeavam o judaísmo; inclusive, era um elemento de seu património comum; porém, é muito difícil de captá-la na forma plenamente desenvolvida. Se bem que sobre este ponto os representantes da história comparada das religiões às vezes se têm

Page 180: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO J_S9

excedido em suas construções,305 não é menos certo que se encontram alusões a este protótipo ideal de homem nas religiões iraniana,305 caldaica, egípcia,307 nocultode Átis,308 entre os Mandeus,309

os Maniqueus310 e de uma maneira geral, na Gnose. Esta noção parece haver-se estendido tanto como a deLogos divino. A verdade é que ela não assumi, em todas as partes, a mesma forma; assim, a ideia segundo a qual o primeiro homem deva ser salvo, ele mesmo, para poder salvar aos homens - ideia característica da maior corrente do gnosticismo - não constitui, necessariamente, uma parte integrante desta crença.31'

Seria interessante reunir todos os textos da história das religiões relativas ao "primeiro homem".3'2 Porém, não podemos examinar aqui, em todos os detalhes, a questão tal qual se põe aos historiadores das religiões. O que importa para a cristologia do Novo Testamento é a identificação deste homem celestial ideal com Adão. Vinculada à concepção escatológica do retomo final

""É, no entanto, graças a eles que a atenção tem-se voltado para estas relações -Cf. em particular, W. BOUSSET, Hauptprobleme der Gnosis, 1907, p. 160 ss., 238 ss.; Id., Kyrios Christos, 2a ed., 1921: R. REITZENSTEIN, Das iranische Erlõsungsmysterium, 1921; R. REITZENSTEIN- H. H. SCHAEDER, Studien zum antiken Synkretismus aus Iran und Griechenland, 1926; resenha crítica de W. MANSON, Jesus the Messiah, 1946, p. 237 ss.

1"<' Cf., etu particular,os estudos citados de REITZENSTEIN e SCHAEDER. Insistem, sobretudo, em Gayomart, o "primeiro homem" na religião iraniana. Cf. também a este respeito as reservas de G. QUISPEL.

'"7 REITZENSTEIN chama a atenção sobre o Poimandres. A respeito deste escrito cf. E. HAENCHEN, "Aufbau und Theologie des Poimandres" (ZThK, 53,1956, p. 149 ss.). Também C. H. DODD, The Bible and the Greeks, 2a ed., 1954, que dá especial atenção ao "primeiro homem", do Poimandres.

3<la H. HEPDING, Attis, seine: Mytthen und sein Kuit, 1903, em partic. p. 50 ss. •""Cf. Além dos estudos já citados: R. REITZENSTEIN, Das mandáische Buch des

Herrn der Grõsse und die Evangelienuberlieferung, 1919. 110 W. HENNING, Gebitrt und Entsendung des mankháischen Umienschen, 1933. -

Cf. também H. CH. PUECH, Le manichéisme, 1949, p. 76 ss. 311 É igualmente falso, nos estudos atuais relativos ao gnosticismo da seita de Qumran,

considerar a presença, ou ausência, deste mito como critéri o para determinar o cará-ter gnóstico, ou não gnóstico, desta seita.

"2Recentemente, C. G. JUNG aplicou à ideia de Filho do Homem sua teoria do "arquétipo".

Page 181: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

iy0 Oscar Cttllmann

da idade de ouro, conduz, com efeito, à esperança de que o primeiro homem tem de voltar no fim dos tempos para salvar a humanidade.

É difícil estabelecer esta identificação no seio do judaísmo devido ao fato de não estar claramente estabelecido o elo entre o primeiro homem e o "homem" escatológico, ou "Filho do Homem"; além disso: não pode ser estabelecida sem mais nem menos, já que o primeiro homem se encontra relacionado à origem do pecado. Veremos que só no paulinismo este problema achará solução. Porém, nesse momento, trata-se de demonstrar o porquê, no judaísmo, a noção de arquétipo da humanidade e a de Filho do Homem que virá seguiram, em seu desenvolvimento, caminhos separados e, consequentemente, porque seu parentesco original deixou de ser visível. Pois este deve ter existido; senão, como compreender que o salvador escatológico seja chamado "homerrT?

Insistiremos na exposição que se seguirá sobre a necessidade interna do desenvolvimento separado destas duas noções: pois de outro modo, a identificação que cremos dever estabelecer entre o "Filho do Homem" e o "segundo Adão" poderia parecer arbitrária. Por isso geralmente esta identificação não é reconhecida sob pretexto de que os documentos judaicos, tanto quanto os do cristianismo primitivo, não permitem fazer-nos perceber nenhuma relação entre ambas as concepções.

É assim que na visão de Daniel (cap. 7) e, sobretudo, nas especulações relativas ao Filho do Homem que se lhe acoplam nos Apocalipses do quarto livro de Esdras e no de Enoque se desenvolva unicamente o aspecto escatológico, enquanto que as demais ideias acerca do "primeiro homem" só tenham traços isolados. Tampouco, trata-se de uma verdadeira encarnação: o Filho do Homem surge do mar, ou vindo sobre as nuvens do céu, não se encarna na humanidade pecadora.313 É verdade que leva, às vezes,

E. SJÕBERG, op. CÍV., p. 147 ss., tenta demonstrar que a identificação com Enoque não é mais levada em conta, dado que, originalmente, este só se torna Filho do Homem depois de sua ascensão. A questão da encarnação poderia, quando muito, pôr-se para o problemático Metatron. Ver, a este respeito, H. ODEBERG, 3. Enoch or the Hebrew Book of Enoch, 1928.

Page 182: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 191

atributos do Ebed Iahweh - por exemplo, os epítetos de "servo" cm 4 Esdras (7.28; 13.32) ou de "justo", de "eleito", de "luz das nações" em muitas passagens de Enoque. Porém, em nenhuma parte reveste a forma de servo sofredor.3141

Junto com esta utilização escatológica da concepção de "primeiro homem" o judaísmo não abandonou a ideia (que brota da mesma raiz) de um primeiro homem perfeito, visto que, como já tem sido indicado, a afirmação bíblica daimagoítei se lhe aproximava. É assim que nasceu, nos escritos apócrifos e nos escritos místicos surgidos dos meios rabínicos, toda uma literatura relativa a Adão.315 Porém, também achamos os vestígios do problema de Adão na grande corrente da literatura judaica tardia. O problema era, em suma, o seguinte: a ideia primitiva de uma identidade entre o homem celestial e o primeiro homem buscava constantemente penetrar no judaísmo; porém, não podia consegui-lo, pois, segundo o Antigo Testamento, Adão pecou. De acordo com o relato bíblico foi, com efeito, o primeiro homem aquele que despojou a humanidade de seu caráter divino e é precisamente por causa dele que se fez necessário que o homem celestial leve os homens ao seu verdadeiro destino. A ideia extrajudaica do primeiro homem devia, pois, sofrer uma profunda transformação antes de poder arraigar-se no judaísmo; é por isso que, ainda no seio do cristianismo primitivo, as noções de "Filho do Homem" e de "segundo Adão" parecem totalmente diferentes, quando, em sua essência, estão estreitamente enlaçadas.

Posto que os dois conceitos, o de Filho do Homem e o de "segundo Adão", representam dois aspectos de uma mesma ideia cristológica, não consagraremos um capítulo especial ao de "segundo Adão".

114 O sofrimento do Filho do Homem, admitido por J. JEREMIAS, "Erlõserund Erlõsung im Spãtjudentum" (Deutsche Theol., 2, 1929, p. 106 ss.) continua problemático. Cf. E SJÒBERG, op. cit., p. 116 ss.

115 25 Cf. em part.: Vita Adae, 12 ss.; Enoque (Eslav,), 30. - Textos rabínicos também devem ser considerados. Cf. B. MURMELSTEIN, "Adam. Ein Beitrag zur Messiaslehre" (Wiener Ztschr. f d. Kunde d. Morgenlandes, ,128, p. 242 ss,; ;929, p. 51 ss.).

Page 183: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

•192 Oscar Cidimann

O fato de que Jesus seja chamado "segundo Adão" e não simplesmente Adão, já nos mostra por que era necessário se distinguir "Adão" de "Filho do Homem". Permite-nos, igualmente, reconhecer onde residia, para o judaísmo, a dificuldade de adotar a ideia, tão frutífera do ponto de vista teológico, de Filho do Homem. Por um lado, trata-se de pôr a ideia de homem divino, do bamascha em relação com o tempo da criação: o homem celestial é o homem tal qual Deus quis, quando o criou à sua imagem. Porém, como por outro lado, o relato da criação está ligado ao da queda do primeiro homem, era impossível aos judeus introduzir, pura e simplesmente em sua teologia, o homem celestial identificado com Adão. Será que é por isso que as especulações relativas ao barnascha não se desenvolveram no seio do judaísmo oficial, mas antes nos meios esotéricos que o Apocalipse de Esdras e o livro de Enoque nos têm dado a conhecer? Nós só podemos esboçar a questão. Talvez seja pela mesma razão que os autores dos Apocalipses rodearam estas concepções de tanto mistério e não falaram delas, senão em termos fechados e valendo-se de alusões.

Para superar estas dificuldades existiam duas possibilidades bem diferentes, e ambas foram tentadas. Podia-se não insistir na identificação do homem celestial e o primeiro Adão, ou antes se podia negligenciar o relato da queda de Adão. No livro etíope de Enoque, o Filho do Homem desempenha um papel particularmente importante. Ali - e isso é sintomático - se passa, purae simplesmente, em silêncio a queda de Adão. Isto poderia ser uma coincidência carente de importância, se justamente este livro não se esforçasse por explicar a origem do pecado. Porém, fala disso - o que não pode deixar de surpreender-nos - sem mencionar a queda de Adão. Nos capítulos 83-90, encontramos um resumo da história do mundo desde a criação até o estabelecimento do reino messiânico: não se encontra aí uma só palavra sobre a queda. Quanto ao livro eslavo de Enoque, este afirma que o diabo tentou somente a Eva e não a Adão, e não se trata aí de uma mera coincidência; antes, pelo contrário, da tendência evidente de inocentar Adão do pecado original. Para explicar a origem do mal o livro de Enoque

Page 184: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO fsovo TESTAMENTO 193

escolheu outro relato de Génesis: o da queda dos anjos (Gn 6). Em muitos lugares encontramos desenvolvida uma teoria do pecado nessa conexão. O autor descreve as consequências que decorrem das relações culpáveis de anjos com as filhas dos homens: é daí que vem todo o mal, toda a violência, todo pecado e em particular, toda idolatria.

Segundo esta interpretação, o mal, por conseguinte, não tem sua fonte na queda do primeiro homem. Não é, de nenhum modo, abusar do argumento e silentio, emitir a hipótese seguinte: o autor do livro de Enoque - que eé ,ecorddmoss ,do sscritores sudaicos s que utiliza mais conscientemente a noção de Filho do Homem -pôde conservar inconscientemente a lembrança de ser obarnascha, que tem de voltar no final dos tempos, idêntico ao primeiro homem. No entanto, não se atreve a dar o passo decisivo e identificar abertamente o Filho do Homem com Adão. Porém, não se atrevendo tampouco a negar expressamente a queda de Adão, se contenta com passá-la em silêncio.

O passo decisivo foi dado pelos judeu-cristãos gnósticos, cujas especulações nos foram conservadas nos escritos pseudoclemen-tinos.-116 Embora reconhecendo Jesus como o Cristo, eram, em sua atitude, muito mais judeus do que cristãos. Podemos quase consi-

H. J. SCHOEPS, Theologie mui Geschichte des Judenchristentums, 1949, p. 305 ss., procurou refutar seu caráter gnóstico, contra W. BOUSSET e contra nossa própria tese (Le pwblème iiuéraire et historique du roman pseudo-clémentin, 1930). Sua tentativa não parece ter tido êxito. Pois ao afirmar, rigorosamente, a origem rabínica das concepções pseudoclementinas não prova nada contra seu gnosticismo. R. BULTMANN objetacom razão Gnomon 26,1954, p. 177 ss.) que o gnosticismo havia penetrado nos meios rabínicos. G. BORNKAMM (ZKG, 1952-53, p. 196 ss.) refuta também a argumentação de SCHOEPS. Ct, igualmente O. CULLMANN, "Die neiwiudeckten Qttmrdantexteu. das Judenchristeniunt der Pseudoklemenimen (Tlwot. Sud.f. R. BULTMANN, 1954, p. 35 ss). -Recentemente H. J. SCHOEPS mesmo em "Das gnostische JudentumindenDeadSeaScrolls"(Zfíe/if:/ Religions-u. Geistesgeschichte, 1954, p. 277) reconheceu: "Até aqui o resultado, para mim, mais importante é que o "judaísmo gnóstico da época pré-cristã'", qualificado de problemático e improvável em meus dois livros, realmente existiu". A gente se surpreende então de o ver, em sua última obra, Urkirche, Judenchristentum und Gnosis, 1956, retomar, a respeito da gnose, suas antigas posições e afirmar que todos os elementos gnósticos do judaísmo são só "pseudognósticos".

Page 185: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

•194 Oscar Cullinann

derá-los como uma seita judaica; e, quanto à sua teologia, pertencem, sem dúvida alguma, ao judaísmo.317 Temos de incorporá-los, em todo caso, ao judaísmo no que concerne ao desenvolvimento da ideia de Filho do Homem. Com efeito, a forma pela qual eles resolveram o problema da identidade do protótipo divino da humanidade com Adão, se relaciona diretamente com o ponto de vista que encontramos no livro de Enoque.

Já vimos que a obra pseudoclementina chamada Kerygmata Petrou tem a Jesus como o "verdadeiro profeta".318 Neste livro se identifica o verdadeiro profeta com Adão. Deram, portanto, o passo decisivo: o Filho do Homem e Adão são um só e o mesmo ser. Segundo estes judeu-cristãos, o verdadeiro profeta se encarnou em diversas ocasiões, a primeira das quais foi em Adão.

Porém, como eles compreendem esta identificação? Como podem considerar a encarnação do verdadeiro profeta, este, do qual a Bíblia nos diz que foi o primeiro pecador? Aqui os judeu-cristãos gnósticos não vacilam em ir mais longe que o livro de Enoque: em lugar de passar em silêncio sobre relato da queda, declaram simplesmente que é falso. Conforme sua teoria da syzygies,319 Adão representa o princípio do bem, Eva, o do mal. Adão, portanto, não pecou. A obra pseudoclementina não pode arriscar esta ousada afirmação sem apoiar-se sobre sua singular teoria das "falsas períco-pes", que estariam contidas nos cinco livros de Moisés. O recurso a um ensinamento secreto permitiria eliminar estas mentiras, insinuadas na bíblia pelo Diabo, das quais uma das mais graves é o relato da queda de Adão, o primeiro homem. Uma vez desmascarada esta mentira pode-se, sem dificuldade, identificar Adão com Jesus, o verdadeiro profeta.

Assim, os judeu-cristãos professam por Adão a maior veneração e o glorificam como valoroso adversário do diabo. Encontramos uma glorificação semelhante de Adão, ligada a idêntica

É o que mostra, também, a relação com a seita de Qumran, indicada em nosso artigo precedentemente citado. Cf. acima, p. 59 ss. Cf. acima, p. 63 s.

Page 186: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO JVOVO TESTAMENTO 195

oposição entre ele e o diabo, nas teorias judaicas apócrifas, sobretudo na "Vida de Adão".32íl Porém, foi entre os judeu-cristãos que esta teoria mais se desenvolveu; graças à recusa total do relato da queda de Adão, ela se vê livre de todo obstáculo.

Adão - segundo esta doutrina - foi ungido com o azeite da árvore da vida. Ele é o sacerdote eterno que se reencarna em Jesus, o homem perfeito, o protótipo da humanidade. No momento da criação, Deus apresentou a cada criatura um protótipo: aos anjos, um anjo; aos espíritos, um espírito; às estrelas, uma estrela; aos demónios, um demónio; aos animais, um animal; e ao homem, enfim, apresentou o homem - o homem por excelência, que apareceu na pessoa de Adão. Estamos aqui diante da origem comum das noções de "Filho do Homem" e de segundo Adão. Entre os judeu-cristãos, é verdade, não se trata de um segundo Adão, mas do próprio Adão: a partir do momento em que negam a queda, não têm necessidade de um segundo homem, já que o primeiro preencheu verdadeiramente o papel que lhe havia sido designado por Deus.

Segundo esta teoria, a salvação reside então, simplesmente, em um retorno perfeito da primeira idade. Abandona-se a concepção bíblica de um tempo que progride de maneira contínua; e de preferência, nos vemos na presença da concepção grega de um lempo cíclico: todas as coisas voltam ao mesmo ponto; e não há, falando propriamente, progresso no tempo. Já temos sublinhado321

que os Kerygmata Petrou apresentam influências gnósticas. Ora, a concepção gnóstica acerca do tempo não é a da bíblia, mas a do helenismo; pressupõe o retorno de todas as coisas. Contrariamente a ela, o Messias do judaísmo oficial, como o "Filho do Homem" da escatologia do livro de Enoque, não se limita a repetir o que existia desde o começo da criação: traz algo novo. Deste ponto de vista também os cristãos não podiam simplesmente assimilar a ideia de Filho do Homem àquela sobre o primeiro homem. Pois,

'•'" Vita Adae, 12 ss.; 39. Enoque (Eslav.) 30.11 ss. Cf. a este respeito o artigo de B. MURMELSTEIN, citado acima, p. 191, nota 315.

'•'• Cf. acima, p. 193, nota 316 e ainda p. 61.

Page 187: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

196 Oscar Cullmcmn

segundo a doutrina bíblica, Adão rebelou-se contra a vocação que lhe havia sido designada por Deus; e a idade de ouro, no que concerne ao homem, existiu no começo, na intenção de Deus; porém, não foi realizada.

Temos de ver ainda como Fílon, o grande filósofo judeu de Alexandria, resolveu o problema esboçado pela aparição da ideia de Filho do Homem no judaísmo. Nele esta noção também desempenha um grande papel. Se no seio do judeu-cristianismo, a identificação do homem celestial com Adão não era possível senão graças a uma recusa do relato da queda de Adão, em Fílon encontramos uma solução menos rigorosa e menos radical do problema. Ele também aceita, é verdade, a identificação do homem celestial com o primeiro homem; porém, busca, ao mesmo tempo, afirmar esta identidade e conservar o relato bíblico da queda. As soluções radicais, como a dos pseudoclementinos, não eram de seu agrado; não se esforçou, durante toda sua existência, por conciliar com o Antigo Testamento sua filosofia de inspiração puramente grega. De maneira que tampouco recorreu àquele método desesperado, que consiste em tirar da Bíblia as passagens que apresentam dificuldades. Quando estas se lhe contrapõem, busca dar-lhes, graças a uma interpretação alegórica, um sentido que se harmonize com suas convicções filosóficas. E conseguiu desta maneira, ao mesmo tempo, conservar os relatos bíblicos e os tornar inofensivos por uma espécie de "desmitologização".

Graças a este método exegético Fílon realizou a proeza de afirmar a identidade do homem celestial com o primeiro homem e ainda aceitar o relato da queda de Adão. Porém, aqui se vale de um método que não só é alegórico, mas especificamente rabínico, que consiste em confrontar duas passagens da Escritura. Segundo Fílon, no relato bíblico se distingue duas personagens diferentes que levam o mesmo nome de Adão; o Génesis conhecia, pois, a dois "primeiros homens". Baseia esta afirmação em uma interpretação assaz arbitrária de duas passagens: Gn 1.27 e 2.7. Em Gn 1.27 lemos: "Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou".

Page 188: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 197

E em Gn 2.7: "Então formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra, e lhe soprou nas narinas o fôlego da vida, e o homem passou a ser alma vivente."

Em duas ocasiões encontramos em Fílon especulações relativas a estes textos: na "interpretação alegórica das leis" (Leg. alleg. I,31 s.) e no tratado "Sobre a Criação do Mundo" De opif. mundii 134 ss.). Nestas obras, confronta os dois textos de Génesis e conclui que no primeiro (Gn 1.27) trata-se de um outro Adão, distinto do do segundo (Gn 2.7). O Adão de Gn 1.27 é idêntico ao homem celestial ideal: formado à imagem de Deus, vem do céu e possui a virtude do Espírito Santo. Nele nada há de perecível. É o homem tal qual Deus quis quando o criou à sua imagem. Puro de todo instinto sexual, está situado para além da distinção entre homem e mulher. É o ser humano em si, o homem celestial. Tudo o que as religiões orientais ensinam sobre o "primeiro homem", o ser perfeito, o protótipo divino da humanidade, Fílon aplica ao Adão de Gn 1.27.

Por outro lado, ele pensa que no capítulo seguinte, em Gn 2.7, se nos fala da criação de outro Adão, e tudo o que é relatado depois, acerca do pecado e do castigo de Adão, se aplicaria a este outro Adão que é, verdadeiramente, o homem pecador, o autor do pecado. Ele não foi criado à imagem de Deus, nem vem do céu, mas da terra. Deus o formou do pó da terra; e assinala que mesmo que Deus tenha escolhido, o pó mais nobre, para o modelar, ainda teve que soprar em suas narinas o sopro da vida, para que este Adão, surgido da terra, se tornasse alma vivente.

Assim, a partir destes dois relatos da Criação de Génesis (que a pesquisa atual explica pela existência de duas fontes), Fílon concluiu que Deus havia criado dois homens diferentes, dois Adões: o homem celestial, protótipo do homem ideal, que aparece em Gn 1.27 para desaparecer em seguida do relato; e o outro, o homem que transgrediu o mandamento divino, aquele de que trata Gn 2 e 3.

O fato de Fílon ter desenvolvido esta teoria em dois tratados diferentes prova que lhe dava uma importância particular. Encontramo-la também na literatura rabínica, porém, muito mais tarde

Page 189: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

J98 Oscar Cullmarm

para que se possa suspeitar que Fílon a houvesse tirado dali, apesar do caráter especificamente rabínico de sua demonstração.322

Como quer que seja, era necessário estudar esta teoria de Fílon para compreender o desenvolvimento da ideia de "Filho do Homem" e de "segundo Adão" no Novo Testamento; pois veremos que é muito provável que o apóstolo Paulo a tenha conhecido.

A explicação filoniana da relação entre o homem celestial e o primeiro homem tem, em relação às outras soluções judaicas edo ponto de vista que nos interessa aqui, a vantagem de não recusar o relato da queda de Adão. Porém, (e mesmo fazendo abstração de seu fundamento exegético arbitrário) tem a mesma falha que a teoria gnóstica judaico-cristã. No fundo, ela delata claramente seu caráter grego: o homem celestial, figura ideal, se encontra nela desde o começo e, como entre os judeu-cristãos, não há mais a possibilidade de uma nova ação deste homem-espírito na sucessão do tempo, já que desde o começo ele realiza o absoluto. Fílon não conhecia nenhuma encarnação, nem um retorno escatológico deste homem; para ele não pode haver novas revelações divinas no tempo; por conseguinte, não poderia haver também desenvolvimento desta revelação, e a salvação não poderia inscrever-se numa história.

* * *

Chegamos, pois, no que toca à concepção judaica de Filho do Homem, à conclusão seguinte: o homem celestial, que é também conhecido pelas religiões extrabíblicas, aparece no judaísmo sob duas formas diferentes.

1. Sob a forma de um ser celestial que - agora ainda oculto -aparecerá somente no fim dos tempos, sobre as nuvens, com o objetivo de julgar o mundo e de realizar o povo dos santos. Encon-

A utilização de uma tradição antiga não fica, contudo, totalmente excluída, ao menos em Leg. aííeg. I, 31. Cf. H. LIETZMANN, An die Korinther 1-2 (Hdb. z. NT),4"ç<l., 1949, p. 85.

Page 190: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 199

iramos esta figura exclusivamente escatológica em Daniel, no livro de Enoque e no 4o Esdras.

2. Sob a forma de um homem celeste ideal que se identifica com o primeiro homem desde o inicio dos tempos. Esta concepção se desenvolve em Fílon de Alexandria e se encontra também tios Kerygmata Petrou, como também nas especulações rabínicas relativas a Adão.

A primeira destas formas corresponde ao pensamento judaico e particularmente à concepção judaica de tempo. Os textos judaicos que falam do homem celestial futuro, não contêm reflexões sobre sua origem. Supõe-se, no entanto, que está no céu e que no final dos tempos descerá do céu (ou surgirá do mar). Portanto, deve ser tido como preexistente. No livro de Enoque chega-se a dizer que, antes da criação do mundo, foi eleito e escondido por Deus. (Enoque 48.3-6; 62.7; 70.1).

A segunda destas formas se encontra de preferência nos textos que ostentam traços helenísticos. Estes não se interessam primordialmente pela escatologia, mas, ao contrário, pelo que ocorreu no começo dos tempos - o que concorda com a tendência da filosofia e do gnosticismo. Por isso, estes textos afirmam a identidade do "Filho do Homem" com o primeiro homem.

Porém, a despeito das diferenças existentes entre as duas formas trata-se, no fundo, de uma só e mesma ideia, a de "homem", do homem celestial. Em ambas as categorias de textos encontramos o barnascha. Nos dois casos, trata-se do homem que permanece fiel à sua vocação divina, que consiste em ser a imagem de Deus. Aí está a raiz comum da duas formas que devemos distinguir. A passagem de uma a outra se manifesta no fato de que Daniel, Enoque e o Apocalipse de Esdras postulam a preexistência do "Filho do Homem" escatológico; se se o representa como já existindo antes do fim dos tempos, pôe-se, implicitamente, a questão da sua origem. Num e noutro caso, no entanto, a ideia de uma encarnação do Filho do Homem segue sendo totalmente forânea aos judeus. Não resulta dos textos escatológicos nem dos textos de caráter filosófico e helenístico, que o próprio Filho do Homem

Page 191: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

200 Oscar Cullntann

deva tornar-se um homem entre os homens. Mesmo o Filho do Homem, que vem sobre as nuvens do céu no fim dos tempos, não se incorpora realmente à humanidade. É verdade que nos escritos pseudoclementinos, o verdadeiro profeta, que primeiramente viveu sobre a terra na pessoa de Adão, reaparece sob a figura de muitas personagens bíblicas. Porém, não se trata, precisamente, de uma encarnação do homem celestial, mas, antes como jáfoi visto,323 de um regresso muitas vezes repetido do profeta. Tem-se conectado aqui a ideia de Filho do Homem com a de profeta, surgida de um complexo de concepções completamente diferentes.

Quanto ao sincretismo oriental que achamos no gnosticismo exterior ao judaísmo, cie sabe muito menos ainda acerca de uma encarnação do homem celestial. Sem dúvida trata-se de sua descida à terra. Conforme o mito conhecido que encontra sua expressão clássica, por exemplo, no Hino dos Nassênios (Hippol., Philos., V. 6-11), o próprio salvador também tem de ser salvo. Porém, não é sua encarnação aqui o verdadeiro fundamento da salvação; ele não sai fora do domínio mitológico para entrar no domínio histórico. Como o diz com razão R. Bultmann, Theologie des Neuen Testaments, 1953, p. 166 s.: somente se "disfarçou" de homem. Por isso, todos os gnósticos são docetas.

2. JESUS E A IDEIA DE FILHO DO HOMEM

Jesus qualificou a si mesmo de "Filho do Homem", e em que sentido? É esta uma das perguntas frequentemente mais tratadas e das mais controversas da ciência do Novo Testamento. Temos citado no parágrafo precedente o estudo de H. Lietzmann.324

Recordemos a tese que sustenta: Jesus não se considerou o "Filho do Homem". Lietzmann se apoiava sobre o fato indiscutível, do ponto de vista filológico, de que a expressão x>iòç tox> àv6pÓKO"o significa simplesmente "homem". Porém, isso não exclui que Jesus

Cf. acima, p. 60 s. Cf. acima, p. 183, nota 293.

Page 192: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 201

tenha podido atribuir-se, por meio deste título, um papel particular de Salvador, já que no judaísmo esta expressão, "o homem", pode ser um título de majestade e evocar, de maneira precisa, um ser celeste.

Sobre apenas um ponto é possível fazer uma concessão à tese de Lietzmann: existem, talvez, uma ou duas falas de Jesus em que a expressão mòç xov ccvQpcMWD não se reporta a aua própria pessoa, mas que designa ao homem em geral. Poderia ser tal o caso para o logion, bem conhecido, relativo ao sabat (Mc 2.27). Trata-se da resposta de Jesus à pergunta dos fariseus que interrogavam-no sobre se era permitido trabalhar no dia do sabat. "O sábado foi estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do sábado". Aqui a palavra aramaica bamascha se traduz correta-mente em grego por avGpamoç. Trata-se evidentemente do homem em geral: não do homem celestial, do Filho do Homem. No versículo seguinte (Mc 2.28) lemos: "de sorte que o Filho cio Homem (uíòç xoí> >v0pó>7toi>) é éenhor ata dd sábado". Se tivéssemos que tirar, sem ideia preconcebida, a conclusão que se depreende do v. 27, teríamos que entender que Jesus fala aqui do homem em geral: todo homem é senhor do sabat, já que o sabat foi feito para o homem. Porém, no v. 28 não temos, como no versículo precedente, a simples palavra avGpcoiraç, "homem", mas a expressão mòç xox) àvGpcorayu "Fiiho do Homem".

Pode deduzir-se disso que Marcos tenha pensado que ao empregar o título de "Filho do Homem", Jesus queria designar a si mesmo como o Senhor do sabat; senão, teria usado simplesmente a palavra "homem", como no versículo precedente. O evangelista, pois, teria interpretado esta palavra num sentido análogo ao de Jo 5.17, onde Jesus explica de uma maneira cristológica sua liberdade com respeito às leis sabáticas. Porém, nesse caso, a conexão lógica entre vs. 27 e 28 não aparece com clareza. É, pois, possível (apesar da interpretação do evangelista) que Jesus não tenha aplicado a si mesmo esta segunda frase. Falava em aramaico e, portanto, empregava nos dois versículos a mesma palavra bamascha. Podemos admitir que esta palavra tem o mesmo sentido em ambos

Page 193: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

202 Oscar Cullntann

os versículos, isto é, que se aplica ao homem em geral e não ao "Filho do Homem", Jesus.

Não afirmaremos, contudo, que a interpretação do evangelista deva necessariamente ser recusada. T. W. Manson, depois de haver partilhado primeiramente da opinião segundo a qual o oiòç xox> àvÔpcÓTtou de Mc 2.28 repousa em uma má interpretação de barnascha (empregado em um sentido geral), propôs, recentemente, outra solução.,:5 Admite que o barnascha do v. 27 designava, não o homem em geral, mas o Filho do Homem: "O sabat foi feito para o Filho do homem e não o Filho do Homem para o sabat". Esta interpretação é possível somente na condição de se dar, como o faz Manson, um sentido coletivo à expressão "Filho do Homem". O Filho do Homem para quem o sabat foi feito e que é Senhor do sábado, é Jesus com seus discípulos, que em conjunto formam o "povo dos santos do Altíssimo". Sem dúvida alguma, há uma ideiajustanabase desta interpretação interessante; porém, não se pode sustentá-la sob uma forma tão extrema.326 Por outro lado, a proposição feita por Th. Preiss, Leftís de 1'homme, 1951, p. 28 s., merece ser levada em conta. Partindo do duplo sentido da expressão barnascha, que designa, ao mesmo tempo, a cada homem e ao "homem" - a saber, o homem que representa a coletividade - supõe que Jesus quis dar a este logion um duplo sentido: "Se o homem em geral é o fim do sabat, com quanto maior razão o Homem será senhor do sabat, ele que veio para salvar os homens!"

Outra passagem que poderia ser considerada é a de Mt 12.31 s. (Lc 12.10), embora aqui a hipótese de uma interpretação errada da palavra aramaica, por parte do evangelista, seja mais incerta: "Por isso, vos declaro: todo pecado e blasfémia serão perdoados aos homens; mas a blasfémia contra o Espírito não será perdoada. Se alguém proferir alguma palavra contra o Filho do Homem, ser-lhe-á isso perdoado; mas, se alguém falar contra o Espírito Santo, não lhe será isso perdoado, nem neste mundo nem no porvir". O importante é o versículo 32, com o deslocamento de ícaxà iox> mo> TOÍ» áv0p(ujr.oi). Segundo o texto grego e a opinião do

m T. W. MANSON, "Mark 2.27 s." (Coniect. Neotest. 11, 1947, in honorem A. Fri-dricftsen, p. 138 ss.).

326Cf. também a este respeito, abaixo, p. 204, nota 330.

Page 194: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 203

evangelista, deveria tratar-se aqui de um pecado contra Jesus, de maneira que o sentido seria este: o pecado contra Jesus será perdoado, porém, o pecado contra o Espírito Santo não será perdoado.327 Mas, aqui também é possível que originalmente se tratasse dos homens em geral: se alguém fala contra os homens isto lhes será perdoado. Um fato ao menos apela a favor desta interpretação: na passagem paralela de Mc 3.28, e desde a primeira frase ("todos os pecados e as blasfémias serão perdoados aos homens"), o evangelista emprega para "homens" a expressão DÍOÍ -ccòv ávGpámwv, "filhos dos homens": aqui se trata, evidentemente, dos homens em geral.328

Há, pois, dois logia de Jesus nos quais é possível que a expressão "Filho do Homem" não se aplique a Jesus, mas aos homens em geral.329 Nas demais falas de Jesus esta explicação fica excluída. Os evangelistas, que escrevem em grego, geralmente fazem distinção terminológica entre "Filho do Homem" Jesus e o "homem" em geral, já que traduzem a mesma palavra aramaica bamascha por àv9pú)7toç, quando se trata dos homens, e por moç w ò ávGpánot), quando se trata de Jesus. Em aramaico,

A. FRIDRICHSEN, u'Le péché contre le Saint-Esprit" RHPR, 3, 1923, p. 367 ss.), vê nesta palavra uma criação da comunidade, e atribui sua formação ao interesse missionário da igreja primitiva: àqueles que recusaram a Jesus quando ainda estava vivo antes da ressureíção (isto é, os judeus no que se refere à questão da conversão) seus pecados serão perdoados; àqueles que o rejeitam, depois de sua ressurreição, não serão perdoados. J. WELLHAUSEN, Das Evangelium Matthaei; 1914, p. 60 s.; R. BULTMANN, Gesch. d. synopt, Tradition, 2a ed., 1931, p. 138, e alguns outros vêem na variante de Marcos o texto original; a variante de Mateus e Lucas que fala de uma "blasfémia contra o Filho do Homem" nasceu de uma falsa interpretação de uíot TWV àvxptúJtwv de Mc 3.28. TH. PREISS, Le Fils de Vhomme, 1951, p. 31, tenta também aqui, como faz com a palavra relativa ao sabat, explicar as duas versões, a de Marcos e a de Mateus - Lucas, como concordantes com a intenção de Jesus: Jesus pensa sempre, ao mesmo tempo, nos homens e em si mesmo, na qualidade de representante da humanidade.

'A palavra de Mt 8.20 relativa ao "Filho do Homem que não tem onde repousar sua cabeça" também foi interpretada desta maneira. R. BULTMANN, Gesch. d. synopt. Tradition,2* ed., 1931,p.27 pensa em um antigo provérbio que fala de uma maneira geral do homem, sempre errante sobre a terra. Sobre esta interpretação cr, também abaixo, p. 214 s.

Page 195: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

204 Oscar Cullmmw

por outro lado, não há diferença; assim, é possível que em tal ou qual lugar se tenham equivocado na tradução do termo bamascha, cujo sentido é equívoco.

Porém, talvez o próprio Jesus deu à expressão "Filho do Homem" um duplo sentido; o que é bem possível, já que no livro de Daniel o termo tem uma significação coletiva330 e já que, em virtude de sua própria origem, supunha a ideia de que a humanidade perfeita estava personificada no primeiro Homem.3-11 Voltaremos ainda a este assunto; porém, se esta hipótese fosse tida como válida nós não seríamos mais colocados, pelos textos que temos citado, diante de uma alternativa rigorosa.

Tão numerosas são as palavras sinópticas em que Jesus aparece designando-se como o "Filho do Homem" que não precisamos mencioná-las todas. É demasiado simples e sumário afirmar que os evangelistas foram os que puseram este título nos lábios de Jesus, apoiando-se para isso na teologia da comunidade cristã. Só um fato basta para tornar insustentável esta tese: a designação de Jesus como "Filho do Homem" não é, de modo algum, corrente no cristianismo primitivo. Este argumento, válido já para o título de Ebed Iahweh,m é muito mais ainda no caso presente. Se fosse certo que foram os evangelistas que introduziram o título de "Filho do Homem", como se explica o fato de o empregarem somente

É, sobretudo, T. W. MANSON quem não parou de sublinhar, com razão, o sentido coletivo, originado no livro de Daniel, que apresenta a ideia de Filho do Homem em numerosos logia cie Jesus: The Teaching of Jesus, 2a ed., 1935, p. 231 ss.; The Sayings of Jesus, 1949, p. 109. Cf. também o artigo citado mais acima, p. 202, nota 325. Segundo ele, Jesus designa pela expressão "Filho do Homem", ao mesmo tempo, a si mesmo e aos seus, considerados como o "povo dos santos do Altíssimo". MANSON vai, talvez, um pouco longe demais na afirmação desta tese, justificada em si quando por exemplo explica o segredo messiânico recorrendo à ideia de Filho do Homem "coletivo'' ("Realized Escfiatology and ttie Messianic Secret", Studies m the Gospe/s, In memoriam R. H. LIGHTFOOT, 1955, p. 209 ss). - Cf. também a este respeito A. E. J. RAWLINSON, The New Testament Doctrine of the C/jmr, 3a ed., 1949, p. 247 ss. e os estudos citados mais abaixo, p. 206, nota 334. Th. PREISS tentou levar esta ideia até suas últimas consequências, em seu estudo citado mais acima, p. 203, nota 328. Cf. acima, p. 86 s.

Page 196: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA oo Novo TESTAME^O 205

quando é Jesus quem fala?333 Jamais o mencionam por si mesmos c nenhum de seus interlocutores nunca dá a Jesus tal nome. Fato este que seria inexplicável, se verdadeiramente eles tivessem sido os primeiros a pô-lo nos lábios de Jesus. Na realidade, nos foi conservada a lembrança precisa de ser somente Jesus quem se autodenomina desta maneira.

E o que faz ressaltar, entre outros, W. Manson, Jesus the MessUih, 1946, p.160, e G. Kittel, art. "Menschensohn" (RGG1 t. III, col. 2119). Este últinio propõe com razão esta pergunta: "Por que a tradição não fez Pedro dizer, por exemplo, quando do diálogo de Cesaréia de Filipe, o que teria sido a fé da comunidade: Tu és o Cristo, o Filho do Homem?'

Temos de distinguir aqui duas categorias de falas de Jesus: aquelas em que se atribui o título de "Filho do Homem", pensando em sua obra escatológica a ser realizada no futuro; e aquelas cm que o faz pensando em sua missão terrestre. As primeiras correspondem à noção que encontramos em Daniel, no Apocalipse de Esdras e no livro de Enoque: inegavelmente, é um título de majestade. Temos visto, com efeito, que já nos meios judaicos o termo "Filho do Homem", tomado neste sentido, designava a máxima função escatológica. Jesus, pois, se auto-atribuiu, para o fim dos tempos, o papel mais elevado que se possa conceber e é quase certo que (como em Dn 7.13, onde este título é empregado coleti-vamente), ao dar-se Jesus este título, tem consciência de representar, em sua pessoa, o "remanescente de Israel" e, por meio deste

m Este argumento não se debilita pelo fato de que em certas passagens, entre as quais certamente Mt 16.13, o fazem equivocadamente. Uma só vez, em At 7.56, o título de "Filho do Homem" é aplicado a Jesus por outro', por Estevão. Por ser justamente um "helenista" quem emprega esta expressão, parece-nos que se trata de uma lembrança exata do autor. Temos, em demasia, o costume de não estimar em seu justo valor o papel dos "helenistas". Do ponto de vista que nos ocupa - e também de outros pontos de vista - eles nos parecem pertencer a estes meios judaicos cujas opiniões e crenças o próprio Jesus compartilhou. Cf. O. CULL.MANN, La Samarie et les origines de la mission chéúeniie (A/muaire de VEcole pratique des Hautes Etudes. Paris, 1953, p. 3 ss); e também abaixo, p. 241 s.

Page 197: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

206 Oscar Cutlinatm

"remanescente", a humanidade inteira.334 Pois na passagem de Daniel, na qual Jesus se refere expressamente diante do sumo sacerdote, o termo "Filho do Homem" se aplica ao povo dos santos.335

No entanto, é a figura de um Salvador individual a que está em primeiro plano, e é a que se depreende também do Apocalipse de Esdras e do livro de Enoque.336 Porém, já temos visto que, no pensamento judaico, uma não exclui a outra.

É ao Filho do Homem que há de vir que se referem as palavras sobre os "dias do Filho do Homem" (Lc 17.22 ss.) e sobre o "advento do Filho do Homem" (Mt 24.27 e 37 ss.), sobre sua vinda "na gloria de seu Pai com os santos anjos" (Mc 8.38). Pode-se, é verdade, reconhecer a autenticidade destas palavras sustentando que Jesus, ao pronunciá-las, não pensa em si mesmo, mas em outro "Filho do Homem": porém, esta explicação esboça mais problemas do que resolve.337

A palavra que, sobretudo, merece ser levada em consideração é a que Jesus pronuncia diante do sumo sacerdote (Mc 14.62

"4T. W.MANSON, The Teaching of Jesus, 2aed., 1935, p.227 ss., põe em relevo este aspecto (rapidamente recusado por E. PERCY, Die Botschaft Jesu, 1953, p. 239, nota 1); igualmente V. TAYLOR, Jesus andhis sacrifice, 1948, p. 24 ss.; e também M. BLACK Expôs. Times, 6.0, 1949, p. 33 s.). F. KATTENBUSCH, "Der Quellort der Kirchenidee" (Festgabe f. A. Hnmack, 1921, p. 143 ss.) tirou consequências importantes para a ideia de igreja em Jesus.

í,5Cf. acima, p. 184. ,,w Sobre a tese insustentável de MESSEL, segundo a qual o Filho do Homem, no livro

etíope de Enoque, seria uma figura coletiva, cf. acima, p. 185 s. " 7 É assim que R. BULTMANN, Theol. d. NT, 1953, p. 26 ss.. está disposto a considerar

estas palavras como autênticas; porém, à questão de saber se Jesus se identifica a si mesmo com o Filho do Homem anunciado, responde negativamente. O argumento decisivo, segundo ele, é o seguinte: as profecias de Jesus relativas a seu sofrimento não dizem nada sobre o porvir; as profecias relativas ao porvir não dizem nada acerca de sua morte. A ideia de que o Salvador deva morrer seria, pois, inconciliável com a esperança do Filho do Homem; e o Filho do Homem escatológico, esperado por Jesus, não poderia, portanto, ser identificado com um homem que já tivesse aparecido sobre a terra. Só a igreja, para a qual a morte de Jesus era um fato consumado, pôde estabelecer uma relação entre as duas séries de declarações e identificar o Filho do Homem esperado com o Jesus sofredor. Porém, este juízo se fundamenta na tese afirmada, sem provas, por BULTMANN, segundo a qual todas as pregações de Jesus sobre os seus sofrimentos seriam Vaticinia ex eventu. Cf. acima, p. 87

Page 198: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CmsTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO 207

par.) e que já estudamos no capítulo precedente ao falarmos acerca do Messias.338 Recordemos que Jesus não aceita sem mais o título de Messias e que talvez até o recuse, se na verdade as palavras aramaicas "tu o dizes" contêm uma negação implícita. Em todo caso - e temos dado uma importância muito particular a esta afirmação - Jesus agrega imediatamente (em Mateus com um nXT\V -porém, fortemente adversativo) uma declaração relativa não ao Messias, mas ao Filho do Homem. Fala do Filho do Homem que há de vir nas nuvens do céu nos mesmos termos que Daniel, associando a isto a declaração do SI 110, relativa ao "Senhor" que se senta à direita de Deus.339

A função essencial do Filho do Homem que vem (como já nos livros judaicos antigos e particularmente no livro etíope de Enoque) é o juízo. Na importante passagem relativa ao juízo final das "ovelhas e dos bodes" (Mt 25.31-46), sem dúvida o juízo é pronunciado pelo Filho do Homem. Ocorre o mesmo em Mc 8.38 par., onde semelhante aos anjos do judaísmo tardio, ele exerce a função de testemunha contra aqueles que dele se envergonharam.340 A atribuição a Jesus do juízo (que no Novo Testamento costuma atribuir-se também a Deus) está diretamente relacionada com a noção de Filho do Homem. Não temos necessidade de consagrar um capítulo especial a Jesus como "juiz": esta qualificação não representa senão um aspecto da ideia de Filho do Homem.

Ainda que em Paulo, como nos demais escritos do Novo Testamento, seja Deus, também, quem exerce o juízo (1 Ts 3.13; Rm 3.5; 14.10), o apóstolo está, contudo, convencido de que "todos devemos comparecer

l l s Cf. acima, p. 156 ss. -™E. PERCY, Die Botschaft Jesu, 1953, p. 226, elimina rapidamente esta palavra como

não sendo autêntica, antes de tudo porque lhe parece impossível explicar, satisfatoriamente, como esta declaração poderia ser considerada como "blasfémia". Esta questão se relaciona ao problema mais geral do aspecto jurídico do processo de Jesus. Parece-me certo que aqui os Sinópticos (diferentemente do Evangelho de João) modificaram a situação jurídica real; porém, a autenticidade do título de Jesus não é, por isso, afetada. Cf. também nosso estudo, Dieu et César, em partic. p. 44 ss.

•"0Cf. a este respeito TH. PREISS, op. cit., p. 36 s. e abaixo, p. 240 s.

Page 199: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

20 8 Oscar Cutlmann

diante do tribunal de Cristo" (2 Co 5.10; cf. também 1 Co 4.5). É assim que Jesus aparece tia qualidade de juiz, nas parábolas de Mt 25.1-13 e 14-30. Em At 10.42 Jesus ostenta o título de "juiz de vivos e mortos"; e em 2 Tm 4.8, é chamado "o justo juiz". Em At 17.31 se encontra estabelecida a conexão entre a antiga concepção segundo a qual Deus mesmo exerce o juízo e a concepção - associada à ideia de Filho do Homem - que faz de Jesus o juiz supremo: Jesus foi estabelecido juiz por Deus; Ele julga, por assim dizer, em seu nome. Daí provém, talvez, que Jesus, Filho do Homem apareça diante do tribunal ao mesmo tempo como testemunha, por exemplo em At 7.56, onde Estêvão já não vê -como de costume, conforme o Salmo 110- o Filho do Homem assentado, à direita de Deus.341 De todas as maneiras, a Ele pertence a decisão no juízo, já que toda soberania lhe tem sido dada, como proclama o hino de Fil. 2.6 ss. Deste modo se chega à fórmula antiga inserida na confissão de fé, segundo a qual "virá para julgar os vivos e os mortos" (2 Tm 4.1; At 10.42; 1 Pe 4.5. Cf., também, Polyc. ep. 2..1 2 Clemen. 1.11)

Esta função de juiz, atribuída a Jesus, adquire particular importância no Evangelho de João onde ostenta, por outro lado, a marca da concepção joanina sobre o Juízo, porém, sem que se esqueça seu vínculo com a escatologia. Isto surge da alusão ao "dia final" em João 12.48 (passagem que junto com João 6.39,40,44,54, não pode ser simplesmente eliminada, como gostaria Bultmann).M- Mas, mais interessante é João 5.27: "Deu-lhe autoridade para julgar, porquanto é o Filho do Homem". Aqui também a ideia cristológica de juízo, deixa raízes na de Filho do Homem.

A forma em que Jesus adotou e transformou esta ideia de juízo mostra o que tem de novo em sua concepção de Filho do homem. Tendo surgido como um homem entre os homens e, nessa condição, assumido o papel de Ebed Iahweh é, ao mesmo tempo, o Filho do Homem que há de julgar o mundo; a ideia de juízo recebe aí um caráter novo e profundamente diferente, ainda que se conserve o quadro escatológico. Por um lado, o juízo está, desde então, estreitamente vinculado à obra expiatória do Servo de Deus; por outro, o veredicto a ser pronunciado pelo Filho do Homem se baseará na atitude dos homens para com os seus semelhantes, na pessoa dos quais Jesus, o Filho do Homem, está presente.

Cf. também C. F. D. MOULE, SNTS Bulletin, 3, 1952, p. 46 s. Cf. R. BULTMANN, Das Johaniiescvangelium, 1950, aá. loc.

Page 200: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 209

Vê-se isso de forma impressionante no relato do juízo final de Mt 25.31 ss.: "Eu afirmo que, quando vocês fizerem isso ao mais humilde dos meus irmãos, de fato foi a mim que fizeram." A alternativa entre uma significação individual e uma significação coletiva de Filho do Homem desaparece.-143 É aqui que a ideia de Filho do Homem-juiz adquire toda sua profundidade, no sentido de que quem tem de julgar é Jesus; ao mesmo tempo, homem encarnado, Servo de Deus que sofre substitutivamente e "homem futuro".344 A relação entre o "homem futuro" e o "homem" encarnado é aqui tão estreita quanto possível.

Isto nos leva a pôr a tão discutida questão de saber se Jesus pôde ou não atribuir a si mesmo a função de Filho do Homem, pensando em sua vida e obra terrenas. O que temos dito acerca da ideia de juízo já contém, implicitamente, uma resposta afirmativa. Há quem pense que Jesus não pôde falar de sua função de Filho do Homem, salvo no seu sentido escatológico, posto que se apoiava no livro de Daniel, onde o Filho do Homem só aparece em relação ao fim dos tempos. Porém, seria um erro afirmar que o ensino cristológico de Jesus concorde inteiramente com as concepções judaicas. Muito pelo contrário, sua convicção de haver-se inaugurado com sua pessoa o reino de Deus devia, necessariamente, acarretar consequências para esta auto-aplicação da ideia de Filho do Homem. Mesmo aquelas noções que no judaísmo tinham caráter

13 Em relação ao trecho que nos ocupa, T. W. MANSON, The Sayings of Jesus, 1949, p. 249 ss. destacou muito este elemento; cf. acima, p. 204, nota 330, J. A. T. ROBINSON interpreta diferentemente: "The Parable ofthe Sheep and lhe Goats" NTS, 2, 1956, p. 225 ss.).

4 TH. PREISS, lamentavelmente falecido tão novo, dedicou-se ao aspecto "jurídico" da ideia de Fiifio do Homem. Depois de sua morte, o esboço de um curso sobre o problema do Filho do Homem foi publicado no opúsculo muitas vezes citado: Le Fils de 1'Homme (Eludes Théol. et Relig., Montpellier), 1951 e 1953 (continuação). Porém, o que havia de novo em sua maneira de encarar o problema não pôde ser reproduzido senão no quadro de considerações gerais sobre a cristologia neotes-tamentária: de sorte que, a este elemento novo, não se tem dado seu total valor. É lamentável que não tenha podido levar seu estudo a bom termo. Segundo PREISS, a identidade do Filho do Homem e os homens seria o grande "mistério" que não teria sido revelado senão em Mt 25.31 ss.

Page 201: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

210 Oscar Cullmarm

exclusivamente escatológico, deviam ser transpostas para o presente quando Jesus as aplicava a si, já que para Ele sua vinda significava o começo do fim dos tempos. Tal é o que põe em claríssima evidência a resposta de Jesus ao Batista (Mt 11.4 ss.). "Ide, e anunciai a João o que estais ouvindo e vendo...", ou ainda a palavra de Mt 12.28, par.: "Se, porém, eu expulso os demónios pelo Espírito (Lc: dedo) de Deus, certamente é chegado o reino de Deus sobre vós." - e muitas outras declarações mais.345

Daí que Jesus, durante sua encarnação terrena, pudesse se auto-designar como "Filho do Homem", mesmo que não tenha descido à terra "nas nuvens do céu". Ideia nova é esta da encarnação do Filho do Homem, feito no seio da humanidade um homem entre os homens, tanto no que concerne a Daniel ou Enoque, como a Fílon: até agora, não se descobriu traço algum dela em nenhuma parte do judaísmo.

Verdade é que Jesus nunca faia de uma "segunda" vinda do Filho do Homem.346 Nos Sinópticos nunca diz: "Eu voltarei". Ao fazer sua, a esperança judaica, fala unicamente da "vinda", da "parusia", do Filho do Homem. Não dá, tampouco, o nome de "parusia" à sua aparição sobre a terra, a seu nascimento; por esta expressão estar demasiado ligada á ideia de gloria messiânica. Não especula sobre sua preexistência; nem sonha em falar de sua encarnação, nem situá-la paralelamente à parusia, como se haveria de fazer mais tarde. Nem tampouco nos informa sobre a passagem de sua vida humana e terrena - que será coroada por sua morte-para a parusia.347 E, no entanto, certamente concebeu sua dupla missão (presente e futura) como unidade indivisível, se se admite que considerou a si mesmo como o Ebed Iahweh.

Cf. W. G. KUMMEL, Verheisswtg und Erfullimg, 2a ed., 1953, em part, p. 98 ss. Trata-sede uma segunda aparição, portanto de um retorno, em Hb. 9.28; cf. acima, p. 136 ss. Mais tarde em JUSTINO, Dial. com Tryph. 14.8; 40.4. Na resposta ao sumo sacerdote (Mc 14.62), rtãoé, ademais, somente Dn 7.13 queé citado, mas também o SI 110, ao qual Jesus já se havia referido anteriormente (cf. acima p. 173 s.). O "sentar-se à direita de Deus" constituía, também, um laço temporal entre a vida terrena de Jesus e sua vinda no final dos tempos; embora, de acordo com o logion, não seja contemplado senão no fim.

Page 202: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CfUSTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 211

O título de Filho do Homem, quando Jesus o aplica a sua missão terrena, expressa, também, sua humilhação. Em outros termos: pôde Jesus, em certos momentos decisivos, relacionar estreitamente o título de "Filho do Homem" e os sofrimentos do Ebed Iahweh. Pensemos na clássica passagem em que Jesus exclamou: "O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos" (Mc 10.45). Ou naquela outra: "É necessário que o Filho do Homem padeça muito e seja rejeitado pelos anciãos, pelos principais dos sacerdotes e pelos escribas e ser morto" (Mc 8.31). Nesta pregação Jesus emprega o título de "Filho do Homem" e lhe associa a ideia348 de Servo sofredor de Deus. Esta associação, de importância fundamental para a consciência que Jesus tinha a respeito de si, se expressa também na declaração citada em Mc 2.10: "O Filho do Homem tem sobre a terra autoridade para perdoai' os pecados".34í>

Cabe perguntar por que Jesus não preferiu simplesmente o título de Ebed Iahweh e não subordinou ao mesmo a ideia de Filho do Homem.350

De fato, das duas, a noção de Filho do Homem é a mais exaustiva, porquanto se relaciona, por um lado, à obra futura de Jesus; e por outro, à obra de Jesus encarnado, em cujo caso a sua humanidade está referida. Entende-se, pois, a subordinação da ideia de Ebed Iahweh à de Filho do Homem. Em Jesus, a missão do Ebed Iahweh converte-se, em certo sentido, no conteúdo essencial da obra terrena do Filho do Homem. Desde o momento em que a noção de Filho do Homem se aplica a uma vida terrena (o que, como já o temos dito constituiria uma total inovação no desenvolvimento desta noção) ambos os títulos cristológicos capitais: Filho do homem e Servo sofredor de Deus deveriam forçosamente, encontrar-se.

Portanto, as duas noções, a de Filho do Homem e a de Ebed Iahweh, já existiam no judaísmo; porém, o realmente novo é que

348 Portanto, não somente o título em 4 Esdras e Enoque. 348 Se pensarmos que devemos sempre levar em consideração a significação coletiva

de "Filho do Homem", o trecho deMt 18.18 ss., no qual Jesus dá a seus discípulos o pleno poder de ligar e desligar "sobre a terra", se esclarece a nossos olhos. Cf. TH. PREISS,i* Fils de 1'komme, 1951, p. 27.

VM Cf. também a este respeito W. MANSON, Jesus the Messiah, 1946, p. 156 s.

Page 203: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

Í]2 Oscar Culhnann

Jesus as tenha reunido, que tenha misturado ambos os títulos, o primeiro dos quais expressa a majestade mais soberana que se pode conceber, enquanto que o outro é a expressão da humilhação mais profunda. Mesmo admitindo-se que o judaísmo já conhecia a ideia de um Messias sofredor é impossível demonstrar que tal sofrimento tenha sido associado à imagem do homem celestial que vem nas nuvens do céu.351 Temos aí a obra absolutamente nova, consumada por Jesus, de haver reunido em sua consciência as duas vocações aparentemente contraditórias, e de haver expressado sua unidade por seu ensinamento e por sua vida.

No entanto, uma condição prévia importante para esta vinculação já existia no judaísmo, no sentido de terem em comum, o bamascha e o Ebed Iahweh, a noção de substituição: o "Fiiho do Homem", segundo sua significação mais profunda, expressajá pelo próprio termo, representa a humanidade (segundo Daniel, o "povo dos santos"), e o Ebed Iahweh representa o povo de Israel. Em uma e outra figura a coletividade é representada por um indivíduo. No capítulo sobre o Servo de Deus demonstramos como todo o sentido da história da salvação reside nesta ideia. Ela encontra sua expressão nos títulos cristológicos mais importantes.

Já vimos que Jesus opôs a ideia de Filho do Homem à de Messias nos momentos decisivos de sua vida, para expressar a consciência que tinha de si mesmo: em Cesaréia de Filipe, onde é ele quem formula a seus discípulos a pergunta "cristológica",352 e diante do sumo sacerdote, onde é a ele a quem se faz a pergunta. Verdade é que em Cesaréia de Filipe trata-se de sua obra terrena, e diante do sumo sacerdote trata-se de sua obra futura. Em Cesaréia

Em 4 Esdrase no livro etíope de Enoque as relações entre o Filho do Homem e o Servo de Deus são puramente formais e não concernem ao sofrimento. Cf. acima, p. 190. Segundo E. PERCY, Die Botschaft Jesu, 1953, p. 227 ss. (e também segundo R. BULTMANN, Gesch. d. Synopl. TradUion, p. 276), este relato não deveria ser considerado como histórico. É verdade que PERCY - diferentemente de BULTMANN - crê que Jesus se considerou ser o portador escatológico da salvação. Porém, não encontra a prova senão em Mt 11. 4 ss. par. (resposta ao Batista); Mc 2.19 s. (palavra do esposo); e ainda em Mt 10.35 e Mt 12.41 s. par.

Page 204: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMEÍ TTO 213

de Filipe o termo "Filho do Homem" expressa, pois, sua humilhação, enquanto que diante do sumo sacerdote expressa sua soberania. Porém, o fato de que, em ambos os casos, Jesus oponha ao título de Messias o de Filho do Homem, prova justamente que para ele tratava-se de dois aspectos diferentes de uma mesma função.

Na antiga dogmática se opunha frequentemente o "Filho do Homem" ao "Filho de Deus". Do ponto de vista do dogma "verdadeiro Deus e verdadeiro homem", proclamado mais tarde, a qualificação de "Filho do Homem" era considerada como expressando unicamente a natureza "humana" de Jesus, por oposição a sua natureza "divina". Não se conhecia, então, as especulações judaicas relativas à figura do Filho do Homem e não se percebia que Jesus, ao aplicar-se este título, conferia a si mesmo um caráter celestial, até divino. Reagindo contra esta errada interpretação, muitos dos atuais exegetas do Novo Testamento afortunadamente sublinham u.iu«io L A V ^ U U UVJ n V * " i v j m i i i w i i u , a i ir i iui iuuui i iwi i .1 . , auun i i i i tuu

a pretensão à soberania que supõe a adoeão deste título por parte de Jesus. Porém, talvez vão demasiado longe neste sentido; pois é possível que a antiga utilização do título "Filho do Homem" contenha um elemento de verdade. Certamente a ideia de "Natureza" é forânea a Jesus. Porém nos parece que ao adotar este título igualmente para sua vida terrena, Jesus quer por em relevo sua humilhação. No instante em que se admite que o Filho do Homem se encarne que deva sofrer muito e ser morto a ideia de humilhação - consequência da encarnação do homem celestial - se impõe necessariamente ao espírito Encontramos também esta ideia na base do hino de Fl 2 6 ss do qual nos ocuparemos no'parágrafo seguinte Aqui nos limitamos a sublinhar que Jesus ao aplicar a sua obra terrestre o título de Filho do Homem alude também a sua humilhação Há uma confirmação disso' nas palavras de Mt 8 20: "As r inosas têm covis e as aves do céu têm ninhos mas o Filho

do Homem não tem onde reclinar a cabeça. Mi Igualmente em

'Para outra explicação (se se tratasse de homens em geral), cf. acima, p.203, nota 329. E também possível reunir as duas explicações como o tem feito igualmente aqui TH. PREISS, op. cit., p. 29 (e também para Mt 11.19, cf. ibid., p. 30), já que Jesus tem consciência de representar a humanidade.

Page 205: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

214 Oscar Cullmann

Mt H.19 a palavra relativa ao Filho do Homem que "veio comendo e bebendo" tem de ser tomada no mesmo sentido.

Veremos que, ademais, Jesus se considerou como "Filho de Deus". Em consequência, o emprego do título "Filho do Homem", a despeito da pretensão à soberania que supõe, deveria necessariamente evocar a ideia de humilhação.-354 O sentido etimológico de "homem" por oposição a Deus, não pôde ser, com efeito, inteiramente suplantado pelo sentido técnico tirado da dogmática escatológica; e tanto mais pelo fato de que Jesus tinha consciência de achar-se em uma relação muito particular, única, com Deus. Ao identificar em sua pessoa o "Filho do Homem" celestial e o Ebed Iahweh sofredor, não pôde ignorar todas as passagens do Antigo Testamento, e particularmente os Salmos, em que a expressão ben-adam (filho do homem), indica a debilidade, a precariedade do homem frente ao poder de Deus.

É necessário recordar aqui, ademais, que a ideia de Filho do Homem como a de Ebed Iahweh supõe a noção de substituição: "o homem" representa "os homens" e ele, na qualidade de Filho do Homem, participa, por conseguinte, da debilidade deles.

Creu Jesus em sua preexistência? Temos visto que os textos judaicos não mencionam uma encarnação do barnascha, mas somente sua aparição em gloria, no final dos tempos; e, no entanto, admitem sua preexistência. Como as ideias judaicas eram, por certo, familiares a Jesus, pode-se perguntar se ele refletiu sobre a sua própria preexistência. Esta questão, que voltaremos a encontrar no capítulo relativo a Jesus Filho de Deus, se põe já a propósito do título Filho do Homem. Na verdade, aqui é difícil respondê-la. A fórmula quase técnica de "o Filho do Homem veio..." poderia, no entanto, nos permitir supor uma resposta afirmativa.

Tampouco Jesus disse algo acerca de sua relação com Adão, salvo uma vez em que parece expressar a convicção de uma cor-

Segundo W. MANSON, Jesus the Messiah, 1946, p. 159 s. Jesus opõe também o "Filho do Homem" ao "Filho de Deus", e isto no relato da tentação, onde o diabo disse: "Se tu és o filho de Deus", e onde Jesus responde com Dt 8.3: "não só de pão viverá o homem." O Targwn de Jonathan escreve aqui, para "homem", barnascha.

Page 206: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 215

rupção geral da humanidade, quando disse: "Vós sendo maus..." (Mt 7.11). Porém, não se poderia interpretar esta palavra no sentido de uma especulação sobre a origem do pecado. No máximo podemos supor que ao qualificar-se como "Filho do Homem", de uma ou outra maneira, pôs sua obra em relação com a criação do homem e, talvez, inclusive com Adão. Com efeito, se ao empregar este título para designar sua pessoa e sua função, pensou, por um lado, no Filho do Homem que vem sobre as nuvens do céu e, por outro, em sua primeira vinda, para sofrer e morrer em lugar dos homens é possível admitir que contemplasse sua obra em relação à criação do homem "à imagem de Deus". Em todo caso, na base do relato sinóptico da tentação de Jesus se encontra a ideia de uma oposição entre a desobediência de Adão e a obediência de Jesus, diante da tentação diabólica.

Chegamos assim à seguinte conclusão: Jesus - abstração feita de duas ou três passagens em que é possível que esta expressão designe todos os homens - expressou pelo título "Filho do Homem" sua convicção de haver realizado a obra do homem celestial. E isto de duas maneiras: por um lado, no fim dos tempos na gloria conforme a esperança de certos meios judaicos; e por outro, na humilhação da encarnação no seio da humanidade pecadora (ideia alheia a todas as concepções anteriores acerca do "Filho do homem"). Quanto à relação que Jesus estabeleceu entre si mesmo, na qualidade de "Filho do Homem", e o "primeiro homem", só se pode arriscar, neste momento, conjecturas.

3. A CRISTOLOGIA DO FILHO DO HOMEM FOI APRESENTADA DE UMA MANEIRA PARTICULAR NO SEIO DO CRISTIANISMO PRIMITIVO?

Já vimos que a cristologia do Filho do Homem não é a dos evangelistas sinópticos. Embora a expressão "Filho do Homem" apareça mais frequentemente nos três primeiros Evangelhos que em qualquer outro escrito cristão primitivo (aparece 69 vezes) não expressa a fé pessoal de seus autores em Jesus. Para eles, Jesus é o

Page 207: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

2lfi Oscar Culhnann

"Cristo"; onde lemos "Filho do Homem" - sempre na boca de Jesus - trata-se de uma tradição existente antes deles, a qual simplesmente reproduzem. Quais eram pois, no cristianismo primitivo, aqueles círculos que viam no título "Filho do homem" - j á tão importante para Jesus - a solução do problema cristológico? Lohmeyer, em sua importante obra: Gahlãa und Jerusalém, 1936, busca resolver esta questão pela geografia. Houve na Palestina -sustenta - em essência, dois cristianismos primitivos: o galileu e o hierosolimitano. Daí surgem duas tradições, assim como duas cris-tologias, cada uma das quais tem uma origem geográfica distinta. A da Galileia: a cristologia do Filho do Homem (e do Kyrios); e a de Jerusalém: a cristologia do Messias.

Lohmeyer, certamente, tem razão quando distingue diferentes correntes no seio do cristianismo palestino primitivo. Temos sublinhado, já em muitas ocasiões, a extrema variedade que o judaísmo palestino apresenta.. Os textos de Qumran recentemente confirmaram esta opinião. E muito provável que também haja variedade análoga no seio do cristianismo palestino primitivo. A distinção corrente Pa\esúna.-diáspom é éfetiva e endubiiavelmente insuficiente. Porém, não cremos que a delimitação de diversos grupos no interior da Palestina possa ser feita, como o propõe Lohmeyer, utilizando-se de um critério geográfico. Uma repartição esquemática das crenças cristãs primitivas entre Galileia e Jerusalém é um tanto fictícia e arbitrária, e mal pode apoiar-se nos textos. Não encontramos, na tradição cristã primitiva, mais que uma divergência onde atua a oposição geográfica Galileia - Jerusalém; a saber: nas aparições do Ressuscitado. Porém, nada nos permite estabelecer análoga distinção no domínio das crenças cristológicas

Por outro lado, encontramos em Jerusalém, no seio da comunidade primitiva, o grupo dos helemstas, ao qual se deveria conceder muito mais importância, para o estudo das origens do cristianismo, do que a que se costuma dar usualmente,355 no estudo das

Em nosso artigo sobre a importância dos textos de Qumran para o estudo da literatura cristãprimitiva (Positions luthériennes, 4, 1956, p. 5 ss.;cf. acima, p. 84, nota

Page 208: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

V^RISTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO 217

origens do cristianismo. O helenismo - ou mais exatamente: o sincretismo oriental helenístico - não existe somente fora da Palestina. Desdenhar este fato em favor de uma concepção excessivamente esquemática acarreta muitas vezes uma localização muito prematura dos escritos cristãos primitivos: pensemos, por exemplo, no Evangelho de João.

Temos que relacionar a questão dos "helenistas" palestinos com a da cristologia do Filho do Homem. Sobre outros pontos -por exemplo: a atitude frente ao Templo - eram eles mais fiéis que outros grupos ao ensinamento de Jesus.356 Não terão sido também mais fiéis que os Sinópticos à consciência que Jesus tinha de sua própria pessoa e de sua obra? Porém, dado que sua maneira de compreender o evangelho não era a predominante no seio da comunidade primitiva, não possuímos senão magros indícios de suas opiniões peculiares. No entanto, não devemos perder de vista estes indícios.

No judaísmo - já o temos visto - a esperança no Filho do Homem já era tida em certos meios esotéricos quase como uma doutrina secreta. Jesus deve ter entrado em contato, de uma maneira ou outra, com estes meios. Não será possível que, durante sua vida, alguns de seus discípulos fossem provenientes daí? O grupo dos "helenistas" não se formou, por certo, subitamente e, por assim dizer, ex-nihilo, depois da morte de Jesus. Suas origens remontam, muito provavelmente, à época da vida terrestre de Jesus. Assim se abrem certas perspectivas susceptíveis de projetar uma nova luz sobre as relações entre certas correntes do cristianismo

130) emitimos a hipótese de que as relações entre a seita de Qumran e o cristianismo primitivo passariam por estes "helenistas"'. 'EM/nviaTcá não designa os judeus que "falam grego", mas aqueles que vivem à maneira grega: como, igualmente, para 'EppocTov não se pode citar um texto que prove de uma maneira certa que se tratava somente de uma designação linguística. Sobre a questão dos "helenistas" em Atos dos Apóstolos, cf. JACKSON-LAKE, The Beginníngs ofChristiamtv, vol. V. 1933, p. 59 ss. Sobre o conjunto da questão, cf. abaixo, p. 239 ss.

'^Cf. O. CULLMANN, IM Samarie et les origines de la mission chrétierme (Annuaire de VEcoh pratique des Haittes Eutdes, Paris, 1953, p. 3 ss). Cf., ademais, o arligo citado na nota precedente.

Page 209: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

2.18 Oscar Cuitmaim

primitivo e esses círculos esotéricos Judaicos.357 O termo "helenis-tas" se explicaria então muito simplesmente pelo fato de não existir então outra expressão com que designar o judaísmo "sincrético-helenístico".

Limitamo-nos, no entanto, neste parágrafo, a esboçar a questão. Antes de buscar resolvê-la, armando-nos de toda a prudência necessária, estudaremos os caracteres que apresentam, nos diversos escritos neotestamentários, à parte os Sinópticos, as concepções relativas ao "Filho do Homem".

4. A NOÇÃO DE "FILHO DO HOMEM" SEGUNDO O APÓSTOLO PAULO

Começaremos com o apóstolo Paulo, em quem encontramos acristologia mais desenvolvida do cristianismo primitivo; no entanto, o título de "Filho do Homem" não aparece em seus escritos -ao menos na forma em que nos é familiar nos Evangelhos. Das duas noções judaicas que têm suas raizes comuns na ideia de "primeiro homem", Paulo parece não ter conhecido senão aquela que se refere a Adão. Com efeito, é especialmente neste aspecto do problema que ele se interessa. Contudo, a teologia e a cristologia paulinas estão tão profundamente banhadas na escatologia que Paulo chama ao "segundo Adão" o "último Adão" (ó £ox«.xoç 'Aôáu., 1 Co 15.45) ou o "Adão que há de vir" (ó u.éX,Xtov, Rm 5.14). Ainda se suas declarações, relativas ao "homem", não contêm nenhuma alusão direta a Daniel 7, nem por isso deixam de participar na crença segundo a qual o Cristo há de vir nas nuvens do céu. Em 1 Ts 4.17 escreve que "nós seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens para o encontro do Senhor nos ares, e assim estaremos para sempre com o Senhor". Esta esperança deve

,57Cf. nossos artigos citados p. 142 sobre os textos de Qumrane ainda particularmente nosso estudo "Secte de Qumran, Hellénistes des Actes et IVe Evangile", na obra coietiva Les manuscrits de la mer Marte; COLLOQUE DE STRASBOURG, 25-27 mai./1955, Paris, 1957, p. 61 ss., no qual expusemos nossa tese detalhadamente.

Page 210: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO XBSTAMENTO 219

ter sua origem em Dn 7.13, onde o Filho do Homem vem "nas nuvens".

No entanto, o interesse de Paulo se concentra primordialmente no homem celestial encarnado, no "segundo Adão". É que Paulo pode olhar para trás, em direção ao "Filho do Homem" que já apareceu. Porém, dá também grande importância à relação entre o Encarnado e o "último homem" que há de vir no fim dos tempos. Vê-se isto claramente nas passagens de 1 Co 15.45ss. que teremos de comentar logo, cujo quadro é totalmente escatológico.

Paulo trouxe a solução cristã ao problema judaico da relação entre o Filho do Homem e Adão, de maneira totalmente em acordo com a consciência que Jesus tinha de si mesmo. Parte, por certo, de especulações judaicas cuja finalidade, segundo temos visto, era tornar possível a identificação (em si irrealizável) do Filho do Homem com Adão. Porém, ao mesmo tempo, assinala o caminho que permite superar estas especulações. O elemento absolutamente novo é que, antes de tudo, o Filho do Homem se vê identificado com um homem histórico que viveu sobre a terra em um momento determinado da história do mundo. Portanto, já não se trata do eterno retorno do homem celestial, ensinado por certos meios judeu-cristãos, nem tampouco do mito gnóstico da descida à terra de um ser celestial disfarçado de homem. Tudo isto fica superado. Porém, de fato, a relação entre o Filho do Homem e Adão assume um aspecto cabalmente distinto.

Para compreendermos perfeitamente a originalidade da solução paulina do problema, temos de conhecer e ter constantemente presente a teoria dos "dois homens", desenvolvida por Fílon de Alexandria e que já foi exposta acima.

Três passagens merecem aqui reter especialmente nossa atenção: 1 Co 15.45 ss.. Rm 5.12-21 (passagem já ciiada no capítulo consagrado ao Servo de Deus);353 e enfim, Fl 2.5-11 (este hino já estudado também, a propósito do Servo de Deus).359

Cf. acima, p. 106 s. Cf. acima, p. 106 s.

Page 211: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

220 Oscar Cullmann

Começaremos por 1 Co 15.45-47: "O primeiro homem, Adão. foi feito alma vivente; o último Adão, espírito vivificante. Mas não é primeiro o espiritual, senão o animal, e depois o espiritual. O primeiro homem, sendo da terra, é terreno, o segundo homem é do céu". Parece-nos haver aqui clara alusão polémica a uma doutrina muito análoga à de Fílon. Como tomou Paulo conhecimento dela? Leu-a no próprio Fílon, talvez em um de seus tratados? Não é muito provável. Poder-se-ia, de preferência, admitir que teve conhecimento destas coisas nos meios rabínicos, pesando-se o fato de não haver, na literatura rabínica, texto antigo em que ela se encontre.360 Fílon não foi o único, por certo, a defendê-la.

Seja isso como for, parece-nos certo que Paulo parte desta doutrina testemunhada em Fílon,íúl ao mesmo tempo em que a combate em todos os seus pontos essenciais. Ele fala de um "primeiro" e de um "último" Adão: 7rpccTroç e êa%ocTo<; 'Aôáu. No demais, não encontramos em nenhuma outra parte a expressão "último Adão". Paulo, portanto, a criou simplesmente por analogia com o Ttpóòxoç 'Aôáu.. Nesta antítese ela deve ter a mesma significação que "segundo homem", ôeíiTEpoç ávOpomoç, expressão que lemos no v. 47: ó ôewepoç avGpcoTtoç è£, oúpavoí). É patente aqui a relação entre o "homem" encarnado e o "homem" futuro. O v. 48 explica porque aparecem neste capítulo, sobre a ressurreição, estas considerações. Trata-se da relação escatológica entre o caráter celestial do Filho do Homem e os homens que lhe pertencem.

Paulo retoma, assim, a teoria do homem celestial, porém, identifica este com um personagem histórico, Jesus de Nazaré: neste ponto a relação com a tradição judaica se torna nítida. Mas, que dizer quanto à identificação do homem celestial com Adão e, portanto, do problema particular posto ao pensamento judaico? Neste ponto Paulo se separa deliberadamente da doutrina Filoniana à

'"Cf. STR.-B1ILLERBECK, III, p. 478. - Quanto à possível existência de tradições mais antigas cf. acima, p. 198, nota 322.

11 É também a opinião de J. HÉRING, Laprimière Epitre de Saint Paulaux Cormthiens, \9A9,fií/. loc; cf. também, do mesmo autor, Le Royawne de Dieuetsa venue, 1937, p. 153 ss.

Page 212: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 221

qual ataca expressamente. O v. 46 o mostra com clareza: não é o espiritual, xò jcvEvpaTiKÓv, o primeiro (isto é, não é o "último Adão" paulino) senão o animal, TÓ XIÍ XVKÓV, ou seja, o primeiro Adão; só depois vem o espiritual. É evidente que esta frase carece de sentido, a menos que Paulo pense em uma doutrina que afirma precisamente o que ele nega.

Em outros termos, o homem celestial não deve ser identificado (como em Fílon) com o primeiro homem criado, nem mesmo sob a forma atenuada que esta identificação toma em Fílon. A originalidade do pensamento de Paulo consiste em que, se ele retoma a doutrina do homem celestial e também relaciona este com o primeiro homem criado, recusa, em troca, absolutamente sua identificação. No princípio o homem celestial não era precisamente o primeiro homem da criação. Não há dois "primeiros homens" que teriam sido criados no começo do tempo. Não há mais que um Adão que foi o primeiro criado; e não há mais que um Adão que, infiel a sua missão divina, transgrediu o mandamento de Deus. Inversamente, o homem celestial ideal, o protótipo perfeito da humanidade, não pertence à história da criação do homem relatada em Génesis; não é senão mais tarde, EJTÊITCÍ, que apareceu como homem encarnado.362 A ordem cronológica de Fílon se inverteu.

Certamente Paulo crê, também, na preexistência do homem celestial. Já vimos que no judaísmo, inclusive ali onde o Filho do Homem desempenha só um papel escatológico (como em Daniel, 4 Esdras ou Enoque), sua preexistência é implicitamente admitida; e justamente aí se encontra a relação entre as duas doutrinas: a puramente escatológica e a que acentua a relação corri o primeiro homem.if>í Porém, não encontramos em Paulo (como tampouco nos textos escatológicos do judaísmo) nenhuma

'2 K. BARTH, Christus itnd Adam nach Rom. 5. "Ein Beitrag zur Frage nach dem Menschen und der Menschheit" (Theol. Stud. 35), 1952, não leva suficientemente em consideração esta última determinação cronológica da relação entre Adão e Cristo. Por outro lado, reconheceu e sublinhou a importância que representa para a antropologia a teoria paulina Cristo - Adão. J. HÉRING demonstra muito bem as consequências teológicas da doutrina Cristo-Adão, em seu estudo: "Les bases bibliques d'um liumanisme chrétien" RHPR, 1945, p. 17 ss.

w,Cf. acima, p. 198 s.

Page 213: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

222 Oscar Culimattn

especulação relativa a esta preexistência; pára ele é um fato: o "segundo Adão" vem do céu, onde está como a "imagem de Deus".

Como representar esta preexistência? O Novo Testamento responde a esta pergunta partindo não da ideia de Filho do Homem, mas da de Logos,M que lhe esta vinculada: o Evangelho de João nos diz, com efeito, que o Logos estava "com Deus".

Segundo Paulo, o homem celestial Jesus, não só não é idêntico a Adão, mas, pelo contrário, veio reparar a falta de Adão, isto é, cumprir a missão que o primeiro homem não cumpriu. Paulo não admite que haja dois "primeiros homens", dos quais o primeiro seria o de Gn 1.27 e o segundo o de Gn 2.7. Para ele trata-se de um só e mesmo Adão. Cita unicamente, é verdade, a Gn 2.7, onde se diz que Adão foi formado do pó da terra e que Deus soprou em suas narinas para convertê-lo em ser vivente. Porém, Paulo não pensa, em nenhum momento, em opor esta passagem ao de Gn 1.27, que afirma ter sido criado o homem à imagem de Deus. Não pode haver aí oposição pelo fato de Gn 1.27 não se referir a um homem celestial, que mais tarde se encarnaria em Jesus: o Adão, criado à imagem de Deus é o que caiu em pecado. Verdade é que, segundo vimos, ao homem celestial Jesus, se lhe considerava preexistente; porém para Paulo o relato de Génesis não contém alusão alguma a este Jesus preexistente; como em todo o Novo Testamento (exceto João 1.1 ss.), esta preexistência é mais implicitamente suposta que descrita. Na passagem que nos ocupa (1 Co 15.45 ss.) Paulo expressa, com meridiana clareza, a opinião de haver aparecido o Filho do Homem pela primeira vez na terra na pessoa de Jesus, ao cumprir-se o tempo antes do qual na terra só existia o Adão pecador. Paulo representa o Filho do Homem como o mediador da criação (1 Co 8.6; Cl 1.15). Em seu pensamento não cabe, pois, a ideia de ter ele existido no começo como um "homem" criado e encarnado. Sua preexistência é anterior à criação.365

Cf. abaixo, p. 327 s.. Cf. a este respeito o que se diz mais abaixo, p. 231, sobre a ideia da "imagem de Deus", EÍKÔV.

Page 214: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CíUSTOL0Gt& DQ NOVO TESTAMENTO 2TÍ-

No entanto, se houver uma identidade entre Adão e o Filho do Homem Jesus, esta não reside em sua pessoa mas em sua missão,366 a missão de representai" a imagem de Deus. Porém, no que diz respeito à execução da missão, se opõem radicalmente um ao outro: Adão foi infiel, pecou; e, por conseguinte, toda a humanidade se tornou pecadora; isto é, ela deixou de ser a imagem de Deus. Um só ser é a exceção: o homem celestial que já existia desde o começo e que não estava na terra e que não veio a ela senão como "homem" encarnado muito mais tarde, EFEITO;.

Sua vinda à terra não está, no entanto, desprovida de relação com o "primeiro homem", já que ele vem expiar o pecado deste. Ainda que esta idéía não estejadiretamenteexpressa em 1 Co 15.45-47 o está, ao menos, implicitamente. Por conseguinte, o "Filho do Homem" se situa em uma dupla relação com Adão: positivamente, partilha com ele a missão divina de representar a imagem de Deus, negativamente, deve reparar a falta de Adão. Um e outro aspecto são dignos de atenção.

* * *

Este aspecto "reparador" ocupa o primeiro plano em outra passagem paulina onde voltaremos a encontrar a ideia de Filho do Homem: Rm 5.12 ss. A resposta dada por Paulo ao problema de Adão-Filho do Homem, ao qual o judaísmo não pôde dar uma verdadeira solução, aparece aqui com nitidez. Com efeito, tentar fazer recair o pecado dos homens não sobre Adão, mas sobre a queda dos anjos (Enoque), ou negar pura e simplesmente a queda de Adão (judeu-cristãos), ou ainda, defender uma solução intermediária pelo desdobramento do "primeiro homem" (Fílon), não resolveria o problema. Somente Paulo poderia apresentar uma verdadeira solução já que, segundo ele, o Filho do Homem não se

s KARL BARTH, no estudo citado mais acima, p. 221, nota 362, insiste sobre o fato de que em Rtn 5, tudo o que se diz de Adão tião se torna compreensível senão à lux do segundo Adão, do Cristo: ele tem razão no sentido de que, segundo Paulo, o homem imago dei não apareceu verdadeiramente senão com Jesus.

Page 215: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

'224 Oscar Cullmemn

limitou a meramente repetir o que já existia desde o princípio, mas proporcionou algo radicalmente novo. Paulo contempla toda a história da salvação a partir do "homem" encarnado; chega a compreender o que é o "Filho do Homem" baseando-se na encarnação. Em outras palavras, capta todo o alcance da encarnação do homem celestial. Isto lhe permite manter a relação entre o Filho do Homem e Adão no sentido já indicado, mas ao mesmo tempo recusar categoricamente sua identificação: só no final dos tempos, inaugurado pela vinda de Jesus, é que a semelhança do homem celestial com Deus se tornará eficaz para a humanidade criada, tanto na obra expiatória efetuada por seu pecado, como na transformação do seu corpo de pecado em corpo de glória.

Os versículos que, em Rm 5.12, têm uma importância decisiva para a questão que nos ocupa são os seguintes: "Assim como por um só homem o pecado entrou no mundo e pelo pecado a morte, assim a morte se estendeu a todos os homens... (v.12). Porém, não assim com o dom gratuito como a ofensa, pois se pela ofensa de um só muitos morreram, com muito maior razão, a graça de Deus e o dom da graça vindo de um só homem, Jesus Cristo, foram estendidos abundantemente sobre muitos... (v. 15). Assim, como por uma só ofensa, a condenação alcançou a todos os homens, da mesma maneira, por um só ato de justiça, a justificação que dá a vida, se estende a todos os homens. Pois assim como pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, pela obediência de um só, muitos se tornarão justos" (vs. 18, 19).?S7

Nestes versículos, o apóstolo insiste, sobretudo, na obra expiatória realizada pelo homem Jesus. As noções de "Filho do homem" e de Ebed Iahweh estão pois estreitamente vinculadas.

J. HÉRING, em seu Cominentaire (Cf. acima, p. 220, nota 361) e anteriormente jií em Le Royaume de Dieu et sa venite, 1937, p. 155 ss., propõe traduzir £iç-etç por "um-outro". Esta tradução não me parece impor-se: trata-se, com efeito, da oposição "um-muitos", e o apóstolo quer mostrar que esta mesma oposição aparece nos dois casos, com Adão e com Jesus.

Page 216: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO _225

Poderia, à primeira vista, parecer arbitrário querer encontrar neste texto uma alusão à ideia de Filho do Homem. É-nos necessário examinar, pois, sobre que fundamento descansa tal confrontação estabelecida aqui entre Adão e Cristo. O v. 14b diz acerca de Adão que é o TÍITCOÇ TOÚ u,éXXovT,oç, portanto, do ecr^ccToç, do ôeútepoç 'ASáu.. Porém, é evidente que em nosso texto esta noção, de "segundo Adão", tem a mesma raiz que a ideia de Filho do homem. Esta terminologia não deve induzir-nos aqui a conclusões erróneas. Verdade é que a expressão xúòç w ô ccvôpíújtov não se encontra nestes versículos; porém, no v. 15 Jesus é designado por estas palavras: eíç ôtv6pamoç 'ITICTOOÇ. Agora, sabemos que entre os evangelistas a palavra simples av0pco7toç, assim como inòç TOÍ> àvSprójtoT), ,raduz z mesmo oocábulo oramaico: :antascha. Neste texto, que comentamos atites (1 Co 15.45 ss.), onde se trata do homem celestial, Paulo emprega igualmente a palavra ctvepcúJtoç. Pois bem ele nunca emprega a expressão rjíòç TOO àvQpá>nox>. Esta se encontra somente nos Evangelhos, em Atos dos Apóstolos e no Apocalipse de

Page 217: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

226 Oscar Cullntann

João.368 A razão é que os evangelistas, inclusive João, conservavam ainda a impressão de haver Jesus atribuído a esta expressão um sentido particular: a fim de que a expressão "Filho do Homem", que Jesus utilizou para qualificar-se a si mesmo, não corresse o risco de confundir-se com a palavra corrente para designar simplesmente ao "homem", empregam a expressão "oiòç xov àv&pá>nox> quando lhes parece que Jesus lhe atribuía um sentido cristológico. Porém, em Paulo não ocorre o mesmo; não se poderá portanto deduzir daí que ele queira excluir a interpretação cristológica do termo bamascha quando escreve somente ctv9píú7ioç. Em 1 Co 15.21, também, (5i' ccvôpómov» àváotaoiç) deve-se tomar bamascha em um sentido cristológico. A ideia (que sem dúvida já era de Jesus) segundo a qual o "Filho do Homem" representa também a humanidade é tão familiar ao apóstolo que, em grego, ele não estabelece diferença entre o "homem", no sentido específico (Jesus), e o "homem" em geral, como tampouco se faz em aramaico.

Compreendemos como Paulo pôde e precisou ver nesta junção das ideias de "Filho do Homem" e de Ebed lahweh a solução do problema "Filho do Homem-Adão" que os judeus não tinham resolvido. Estes dois conceitos têm em comum a ideia de substituição. A noção de "homem celestial" supõe absolutamente dita ideia, e inclusive se baseia nela, já que o homem celestial tem por missão salvar aos homens fazendo com que eles sejam o que ele mesmo é: a imagem de Deus. Agora, os homens pecaram; Adão, o primeiro homem, o representante de todos os homens, pecou e este pecado tem que ser expiado. O homem celestial, o protótipo divino da humanidade, a fim de poder livrá-la de seus pecados tem de incorporar-se à humanidade pecadora.

Não basta que, como no gnosticisnio helenístico, para salvar os homens, o homem celestial desça à terra e logo suba ao céu (cf. por exemplo, o Hino dos Naasenianos segundo Hipólito, Philos, V, 6-11). Pois no judaísmo e no cristianismo não se trata de livrar o homem da matéria, mas do pecado. Para isso uma simples "aparição" sobre a terra não basta. O que se necessita é a expiação pelo "homem".

E também em um versículo da Epístola aos Hebreus, que é uma citação do Salmo ! (Hb 2.6).

Page 218: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

C-RISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO Tp

Vemos aqui como, em terreno cristão, a noção de Filho do Homem devia necessariamente reunir-se à de Ebed Iahweh, que descansa sobre o conceito de substituição quanto ao pecado. Paulo mostra, por outro lado, como Adão também desempenhou por seu pecado este papel de substituto, embora para o mal, é verdade.

No entanto, o apóstolo faz ressaltar no v. 15 (que deve ser logicamente considerado como um parêntese) que existe a este respeito uma diferença fundamental. Um só homem, Adão, bastou para fazer de todos os homens pecadores. A obra da graça de Jesus tem idêntico cará-ter substitutivo por quanto livra, a todos os homens, do efeito do pecado: esta é sua semelhança. Porém, Paulo quer, também, expressar neste versículo que o poder do ato expiatório deve ser maior que o do pecado: esta é sua diferença. Uma imagem nos fará compreender melhor: basta uma só faísca para atear fogo em todo o bosque; porém, para apagar o incêndio é necessário uma força superior. No caso da obra expiatória do segundo Adão, esta força desencadeada provém, da mesma forma, de um só indivíduo, e quem realiza este milagre é o Filho do Homem.

No judaísmo - já o vimos - a noção de Filho do Homem já supunha o conceito de substituição,369 ainda que a relação entre o pecado humano e o Filho do Homem não se contemplava nele da mesma maneira: em Daniel 7.13 ss. é o Filho do Homem, segundo a interpretação que se dá à visão, quem representa o "povo dos santos", assim como os quatro animais representam os reis dos grandes impérios. Porém, em Daniel, o papel destinado ao Filho do Homem é só o da salvação sem a expiação feita em vista desta salvação. Em nossa passagem da Epístola aos Romanos, ao contrário, a ideia fundamental é que o único homem Jesus incorpora em si toda a comunidade de homens libertos do pecado. No fundo se encontra, sem dúvida, a ideia de igreja - corpo de Cristo - que, também, guarda relação com o conceito de substituição.

Toda a humanidade presente está, pois, localizada entre dois pólos, designados pelos nomes de Adão e de Jesus, entre o pri-

'*'Isto vale igualmente para a ideia de "primeiro homem" fora do judaísmo.

Page 219: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

. 228 Oscar Cullmann

meiro Adão e o segundo Adão. Como pecadores estamos relacionados com Adão, o primeiro homem; como resgatados, estamos com Cristo. Aqui também aparecem, com clareza, a unidade e a diferença entre o primeiro homem e o homem celestial. Em sua ação, um e outro, englobam uma multidão: em um pelo pecado, no outro pela expiação, cuja força tem de ser necessariamente superior à do pecado. Deste modo Paulo resolveu o antigo problema judaico da relação entre o primeiro Homem e o homem celestial.

Sem dúvida, temos de situar na mesma perspectiva os desenvolvimentos paulinos relativos ao velho homem e ao novo homem. Verdade é que nas passagens em que se trata disto, o aspecto subje-tivo e antropológico ocupa o primeiro plano e, portanto, o alcance destas noções sobre os iroXkoi, sobre a humanidade. Porém, no fundo, indubitavelmente, está a ideia desenvolvida em Rm 5.12 ss., segundo a qual o velho homem é determinado pelo primeiro Adão e o novo homem pelo segundo, Jesus. Em Cl 3.9 s., o apóstolo escreve: "Não mintais uns aos outros, uma vez que vos despistes do velho homem com os seus feitos e vos revestistes do novo homem que se renova no pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou." A expressão "revestistes do novo homem", claramente paralela à expressão "revestistes de Cristo" de Gl 3.27 (cf. também Rm 13.14), mostra que Paulo pensa aqui que ao ser transformado de "velho homem" em "novo homem" passa da incorporação a Adão à incorporação a Cristo. Por outro lado, a menção do homem criado à imagem de Deus aludia igualmente a Adão e ao Filho do Homem: é unicamente graças àquele que representa a imagem do Criador em toda sua pureza e clareza que podemos ser renovados segundo a imagem do Criador. Este "homem", o único que é e continua sendo a imagem do Criador, pode modelar-nos conforme esta imagem se nos "revestirmos do novo homem". O KOCT' eiKÓva provém, com segurança, de Gn 1.26. Achamos um pensamento análogo na passagem paralela de Ef 4.24: "e vos revistais do novo homem, criado segundo Deus". Aqui, também, encontramos a expressão que corresponde a "revestir-se

Page 220: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CEUSTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 229

de Cristo"; e, também, a alusão à criação do homem à imagem de Deus e, por conseguinte, à lembrança de haver sido Adão (e com ele toda a humanidade pecadora) infiel à sua missão: a de representar a imagem de Deus, enquanto que Jesus, sim, cumpriu esta missão.

* * *

Resta-nos considerar uma terceira passagem paulina na qual aparece a ideia de Filho do Homem: Fl 2.5-11. Este texto extraordinariamente rico, do ponto de vista cristológico, reúne três noções: a de Filho do Homem, a de Servo de Deus, e a de Kyrios: voltaremos novamente a esta passagem ao considerar o título Kyrios.

Limitar-nos-emos aqui a citar os versículos que são considerados particularmente por causa da ideia de Filho do Homem e por sua relação com Ebed Iahweh (Fl 2.5 ss.). "Haja em vós o mesmo sentimento que houve em Cristo Jesus que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas a si mesmo se esvaziou, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens. E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até a morte, e morte de cruz."

E. Lohmeyer370 supõe, como se sabe, que Paulo cita aqui um antigo salmo aramaico cristão. Esta tese, com efeito, é muito provável, embora não se possa demonstrar com certeza absoluta. Porém, pode, em todo caso, considerar-se como demonstrado que este texto contém aramaísmos.

Outros admitem que Paulo tenha tomado aqui um velho hino judeu-gnóstico adaptando-o à sua teologia cristã.371 Neste caso, o modelo judaico teria cantado a aparição do homem celestial sobre

E. LOHMEYER, "Kyrios Jesus, Eine Untersuchung zu Phil. 2.5-11" (SB HeidelbergerAk. d. Wiss., phil. -hist. KL, 1927-1928). Todos os estudos exegéticos posteriores deste texto se apoiam neste estudo fundamental. Cf. também a divisão do hino em duas estrofes de seis tercetos. LOHMEYER vê nas palavras "e morte de cruz" do v. 8, uma interpretação acrescentada por Paulo. Por ex. P. BONNARD, UEpitre de Sctint Paul attx Philippiens, 1950, p. 49.

Page 221: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

•230 Oscar Cullmann

a terra. Porém, como quer que seja J. Héring372 parece-me ter demonstrado, de maneira definitiva, que se trata, neste texto, do homem celestial e até do homem celestial em sua relação com Adão. Com Lohmeyer, J. Héring admite que se trata de um salmo pré- paulino cuja origem busca na Síria. Porém, a maneira em que este hino - já o veremos - põe o homem celestial em paralelo com Adão e o identifica, por outro lado, com oEbedIahweh, harmoni-za-se tanto com a argumentação de Paulo em 1 Co 15.45 ss. e Rm 5.12 ss. que toda esta passagem não pode ser compreendida senão à luz destes textos paulinos. Não encontramos esta teoria, ao menos nesta forma, nem no judaísmo nem na comunidade primitiva: isto é o que temos sempre de sublinhar ainda que com Lohmeyer, Héring e outros, tivermos que admitir a existência de um modelo.

E. Kãsemann, "Kritische Analyse von Phil. 2.5-11" ZthK,47,1950, p. 313 ss.), insiste, vigorosamente, em que nosso texto tem suas raízes no pensamento helenístíco, único, segundo ele, que pode permitir-nos compreender este hino. Jazeria no fundo o mito helenístico do "primeiro homem-salvador". Assim se explicaria o carííter exclusivamente soterio-lógico (e não ético) desta passagem. Porém, em compensação, o quadro mítico foi rompido pela escatologia especificamente cristã. Seguramente do ponto de vista da história comparativa das religiões, pode este texto de Paulo ter analogias distantes nas especulações sincretistas relativas ao primeiro homem. Porém, partir daí para explicar esta passagem não me parece o mais indicado, já que não se pode demonstrar que tenha havido uma influência direta deste mito gnóstico; e, sobretudo, já que o desenvolvimento do pensamento de Fl 2.5 ss. repousa essencialmente sobre o relato de Génesis e não pode ser compreendido senão a partir do mesmo: a ideia de p.op(pr| é tirada de Gn 1.26 e não é necessário invocar nisto concepções helenísticas e gnósticas. Todos os paralelos propostos (por ex. com Herm. 1.13 ss.) são, na verdade, interessantes do ponto de vista da história das religiões; porém, muito pouco probantes do ponto de vista exegético.

372J. HÉRING, "Kyrios Anthropos" (RHPR, ,6, ,196, p. 196 ss.); Le Royoume ed Dieuet sa venue, ,937, pp .62 2.s *'Les sases síbliqqes sdun humanisme cfirétíen" (RHPR., 1945, p. .7 ss.). HÉRING ccmpletouu ,d ema maneira aecisivv, a axplicação de LOHMEYER, ao menos no que concerne à significação da ideia de noptR.

Page 222: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 231

A relação com Adão e o relato da criação em Génesis se torna indubitável graças ao emprego da expressão nopcpfi. J. Héring faz notar, com razão, que esta palavra grega corresponde ao hebraico mETI, de Gn 1.26. A Peschitta estabelece a mesma relação quando, na passagem que nos ocupa, traduz j-iop(pri por demutha. Deste fato u.opcpri de Fl 2.6 se aproxima estreitamente da ideia expressa por eitcóiv; pois a palavra semítica original rnf"T ou seu sinónimo u?X pode corresponder a estes dois vocábulos gregos.3" Porém, nesse caso o v. 6 não evoca a "natureza" divina de Jesus, mas a imagem de Deus que Jesus representou desde o princípio. E nós nos achamos assim dentro do campo das concepções do homem celestial, único a cumprir a missão confiada ao homem de ser imagem de Deus. Esta terminologia corresponde perfeitamente às afirmações paulinas que encontramos em outros escritos do apóstolo. Vem à mente em especial, Cl 1.15, onde se diz que Cristo é o eiKtòv do Deus invisível.374 Ou ainda 2 Co 4.4: "O Deus deste século cegou o entendimento dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem (eiKóv) de Deus." Vemos, pois, que é uma ideia familiar a Paulo a que se expressa a partir do início deste hino no v 6: Cristo a única imagem verdadeira de Deus o "homem" celestial É daí que Paulo parte para afirmar que nossa renovação não pode operar-se senão por uma "transformação" à imagem de Cristo - que é a imagem de Deus

Esta afirmação reaparece em diversas ocasiões no apóstolo; encontra-se implicitamente expressa na passagem já citada de Cl 3.10, onde nosso "novo homem" formado à imagem de Deus é oposto ao "velho homem". Porém, a relação entre a "metamorfose" e a imagem aparece com absoluta nitidez em 2 Co 3.18; "E todos nós, com o rosto desvendado, refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transformados (pETa^op(poOaSai) na mesma imagem (ei-Któv) de glória em glória..." A mesma ideia aparece também em Rm 12.2 onde a "imagem" não é mencionada expres-

573 Comparar a tradução de D?X em Gn 1.26 s. e ern Dn 3.19 (LXX). 374Cf. CH. MASSON, LEpítre de SaBÀfô^QfljífcÇdlosSieiís,, 195Q, p. 98.

Page 223: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

232 Oscar Citllmanri

sãmente, porém, onde está contida no verbo |X8TaLiopcpoí>o"8ca: "Mas transformai-vos pela renovação da vossa mente".375

Daí decorre a esperança de nossa transformação definitiva no final dos tempos (o apóstolo pensa, sem dúvida, no corpo espiritual do qual nos revestiremos) - transformação que se efetua igualmente por nossa conformação à imagem de Cristo, o homem celestial. E assim que lemos em Rra 8.29: "Aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes (<ráu,p,op(poç) à imagem (EÍKÓV) de seu Filho, a fim de que ele seja o primogénito entre muitos irmãos." Temos de notar que encontramos aqui, também, a raiz popcpn. ao lado de EÍKGJV e isto nos confirma na opinião que no começo da passagem da Epístola aos Filipenses temos que pensar, efetivamente, em Gn 1.26. Desta mesma forma se diz nesta Epístola aos Filipenses: "Transformará o corpo de nossa humilhação (pexaaxTjpaxtÇeiv; cf. a^fj(ic em nosso texto, Fl 2.7), fazendo-o semelhante (cK>jiu,op(poç) ao corpo de sua glória." (3.21). E finalmente 1 Co 15.49 - esta passagem se reveste de particular importância pois vem logo em seguida à argumentação relativa aos dois Adões e porque representa, por assim dizer, sua aplicação ao nosso corpo terreno e à sua transformação. "Assim como trazemos a imagem do terreno (isto é, a do homem terrestre, Adão) levaremos também a imagem do celestial (ou seja, do homem celestial)." Novamente encontramos repetida a palavraetKtbv, pela qual se indica a semelhança do homem celestial com Deus.

Temos que pôr todos estes textos em relação com o começo de nossa passagem da Epístola aos Filipenses (2.6) e veremos que contribuem muito mais para a sua explicação do que todos os paralelos gnósticos. Pois somente assim podemos compreender o que o apóstolo entende neste versículo por "forma de Deus" na qual Jesus existia no começo: trata-se do homem celestial, único representante da verdadeira imagem de Deus. Vê-se, pois, novamente, que a designação de Jesus como Filho do Homem não

Cf. J. HÉK1NG, Le Royaume de Dieu et savenue, 1937, p. 164 ss.

Page 224: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 233

visa, em primeira instância, sua humilhação, mas sua soberania: pois Jesus é o Filho do Homem, o homem celestial preexistente, a pura imagem de Deus: é já o homem-Deus em sua preexistência.

Tal é a forma, a jiopqyn, que Jesus Cristo, o Filho do Homem, possuiu. Os textos que acabamos de citar mostram, consequentemente, que a expressão u,opcpri designa esta semelhança com Deus e deve ser compreendida no sentido do hebraico mD"l, D^S S do grego ÊÍKCÒv. Porém, por outro lado, os textos paulinos citados supõem a concepção teológica que encontra sua expressão mais clara em Fl 2.6 ss. Esta é uma razão a mais para sublinhar o caráter paulino deste salmo: pois ainda que se inspire num modelo, seu conteúdo corresponde inteiramente à cristologia do apóstolo dos gentios.

A afirmação segundo a qual Jesus existiu em forma de Deus, se segue esta passagem difícil: "subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus." Esta frase, também, só se explica como um paralelo antitético entre o homem celestial e Adão. Pois, sem a doutrina paulina dos dois Adões, não compreenderíamos este versículo sem nos perdermos em especulações dogmáticas forâneas ao cristianismo primitivo.-376 Para se compreender esta passagem basta pensar na promessa da serpente: "Assim que comerdes sereis como Deus" (Gn 3.5). Adão, tentado peio diabo quis ser como Deus; este foi seu pecado, foi assim que perdeu o que possuía de mais precioso: a semelhança com Deus. O homem celestial, em troca, não quis arrebatar esta "presa" e, por conseguinte, permaneceu fiel à sua vocação de imagem de Deus. O que se manifesta precisamente no fato de haver-se "despojado", vale dizer que resolveu tornar-se um homem e incor-porar-se à humanidade decaída da semelhança de Deus.

A igualdade com Deus deve, pois, ser considerada aqui como xxxm.reírapienda?11 Aquii precisamente, reside o pecado de Adão:

"fiP. HENRYdáumaboa visão de conjunto da bibliografia relativa a este tema em seu artigo "Kértose" do Dicúonnaire de la Bible, supl. Vol. V, col. 7 ss.

1,7 Não se pode, pois, aceitar a conjectura engenhosa de A. FRIDRICHSEN (RHPR, 3, 1923, p. 441), segundo a qual deveríamos ler em lugar de aprosynóv, õinpor/jAov=apoio.

Page 225: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

234 Oscar Çidimaim

por orgulho não se contentou com a alta missão que Deus lhe havia confiado de ser sua imagem terrestre.

Há uma velha controvérsia relativa à questão de se saber se o verbo èicévocrev écroxóv, "se despojou", refere-se ao ser preexistente ou ao ser encarnado. Provavelmente o Apóstolo, neste texto, tenha pensado em ambas as coisas ao mesmo tempo. Primeiramente em que o "Homem" se fez "um homem"; e logo em seguida - como o afirma o vs. 8 - que assumiu o papel de Ebed lahweh. Pode-se, com efeito, separar estes dois aspectos; num e noutro, o "Filho do Homem", contrariamente a Adão, é quem demonstrou sua obediência (/ÍJTUÍKOOÇ, V. 8). É esta obediência o que importa, por residir o pecado de Adão precisamente em uma desobediência. Encontramo-nos aqui novamente com algo análogo ao que vimos em Rm 5.19, onde também Adão é caracterizado pela desobediência, e ao Filho do Homem, Jesus, pela obediência. A semelhança com Deus se revela pois na obediência, e esta se manifesta de duas formas: Jesus se fez homem, e se humilhou até à morte, assumindo assim a função do Ebed lahweh. Para poder tomar a uopcpfi ÔcóXOD previamente lhe foi necessário tomar a forma de homem, isto é, de um homem participante da decadência humana. Tal é o significado da expressão "tornando-se semelhante aos homens" (èv àaouòpoca àvGpwicov, v. 7). Este sentido deóuoíoua justifica-se perfeitamente.'378 Tanto mais quanto que a frase seguinte sublinha que Jesus, "o homem", ao encarnar-se aceitou cabalmente a condição dos "homens". Quem por essência era o único homem-Deus, o único a ostentar legitimamente este título, em virtude de sua semelhança com Deus, se fez, por obediência a sua vocação de homem celestial e para consumar sua obra expiatória um homem encarnado na carne decaída.

Tendo o título de ávOpcojraç sido assim explicado, em sua dupla referência ao homem celestial e ao homem encarnado corrompido pelo pecado de Adão, o v. 8 desenvolve e justifica o epíteto de ôoftÁ.oç; o papel do Ebed lahweh se apresenta ao Filho do

"8 Pode-se recordar por exemplo Rm 5.14: èíri t<£i ónoiwnceu Tf\ç jnapaftóaewoçASá^.

Page 226: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 235

Homem como conteúdo e coroação da obediência; é uma obediência até a morte. Estas palavras não têm, bem entendido, um sentido cronológico: elas não podem meramente significar que Jesus foi obediente "durante toda a sua vida". Ao contrário, com elas se considera a morte como o grau culminante da obediência; daí que se lhes ajunta "até a morte de cruz", que quer dizer que Jesus cumpriu tão plenamente a missão do Ebed lahweh que aceitou a morte mais ignominiosa. Para os homens da antiguidade era a cruz o que para nós é a forca. É precisamente o maior oicávôccXov, a morte por enforcamento, que constitui para o Ebed lahweh o máximo da obediência, como também constitui o máximo da obediência para o bamasha, em oposição à desobediência de Adão (Rm 5.19).

Várias vezes sublinhamos o parentesco estreito que une os conceitos de "Filho do Homem" e de "Servo sofredor de Deus", em virtude da ideia de substituição, que lhes é comum. A ideia de obediência nos conduz ao mesmo resultado: o homem celestial, por sua própria essência, há de ser obediente em sua capacidade de segundo Adão com o encargo de reparar a falta do primeiro Adão, que - nisto consiste seu pecado - não contentou-se em ser a imagem de Deus. Pois bem, a obediência é também a característica essencial do Servo de Deus, que sofre substituindo.

Assim se encontra confirmada nossa tese segundo a qual este hino, assim como Rm 5.12 ss., uniu a ideia de bamaslia e de Ebed lahweh - união que, à parte o paulinismo, não encontramos senão no próprio Jesus (por certo, uma forma teologicamente menos precisa). Se com Lohmeyer e outros admitimos que Paulo toma aqui um salmo da igreja devemos, consequentemente, admitir, ao mesmo tempo, que esta união remonta à comunidade primitiva. O que não é impossível porquanto Jesus já havia reunido estas duas ideias. Porém - e isto é que é o essencial - este salmo corresponde, precisamente nesta forma, à essência mais íntima do paulinismo.379

O. MICHEL chega ao mesmo resultado: ("Zur Exegese von Phil. 2.5-11", Theologie ah Glaubenswagnis, Mélanges K. Heim, 1954, p. 79 ss.). Porém, para provar esta relação, parte da afirmação do v. 7 e não faz mais que tocar de leve na exegese do v. 6 que damos aqui.

Page 227: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

236 Oscar Cidimann

Como já foi enfatizado, às duas ideias de "Filho do Homem" e de "Servo de Deus" este texto reuniu a de Kyrios, de sorte que estes poucos versículos nos oferecem, de maneira condensada, uma cristologia completa. No capítulo relativo ao Kyrios explicaremos os versículos 9-11, que falam do senhorio conferido a Jesus depois de sua morte. Porém, teremos de mencionar aqui a relação lógica que neste texto fundamental se estabelece entre os três títulos cris-tológicos. Ela reside no verbo Ú7r,£pvj\|/coCTev (v. 9). Geralmente o verbo ímepini/ffvv é considerado como uma espécie de pleonasmo enfático que não significaria mais do que í)í|rorjv.ííu Contudo, J. Héring observou que neste lugar o verbo composto í>jt£p-m|/ó(o deve significar mais do que o verbo simples i)yò(tim, de sorte que não se deve traduzi-lo por "ele o elevou soberanamente" mas antes: "ele fez mais do que elevá-lo." Se Jesus era já, em sua preexistência, a imagem de Deus - é, com efeito, do v. 6 que é preciso partir de novo (èv u,op(pfj Geoí>) - e se agora se diz que Deus fez mais do que elevá-lo, não significa isto que, depois de sua morte, Jesus não voltou tão-somente à existência que tinha antes de sua encarnação quando na qualidade de homem celestial preexistia junto a Deus, mas que em virtude de uma nova função, entrou em relação ainda mais estreita com Deus relação que lhe confere o título de Kyrios com plena soberania sobre o universo inteiro? O título de Kyrios é com efeito a tradução grega do hebraico Adonai que desistia a Deus o'Pai n2 Dito de outra maneira isto significa que Deus rx>r causa da obediência testemunhada pelo Filho do Homem Jesus lhe confere doravante seu prÓDrio nome com toda a soberania A igualdade com Deus esta igualdade que o homem celestial com sua obediência nãoquis "arrebatar como uma presa" ele a'recebe agora do próprio Deus

Não que Jesus tenha sido elevado à categoria de divindade naquele instante. Não estamos aqui com a doutrina do adocia-

3íflE. LOHMEYER, DerBriefandie Philipper, 1930, p. 97 n. 2: •bitEpwyoíiv é idêntico a So^áÇeiv (Is 52.13; Test. Naftali 5; Test. Jos. 10.3).

3:1 J. HÉRING, Le Royawne de Dieu et sa venue, 1937, p. 163. 3e2Cf. abaixo, p. 264 s.

Page 228: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

(^RISTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO 237

nismo, que na antiguidade e ainda em nossos dias tem querido se passar por cristologia do Novo Testamento, segundo a qual, Jesus não havia recebido seu caráter divino senão depois de sua elevação.383 Se se afirma que Jesus tinha a |K>p(pf| (imagem) de Deus, isto não quer dizer outra coisa que o que afirma o prólogo do Evangelho de João ao proclamar que no começo ele estava com Deus como "Verbo". Segundo Fl 2.6 ss., ele possuía a divindade desde o princípio, em sua preexistência como homem celestial e divino. Já, então, estava vinculado a Deus como o ser mais alto que se possa conceber: a imagem perfeita, resplendor de Deus, como disse Paulo em outro lugar. Porém, agora graças a sua obediência, se acrescenta a isto a igualdade com Deus, mediante o exercício total da soberania divina. Em tudo isto, de nenhum modo estamos aqui diante de especulações sobre as "duas naturezas" mas diante da história da salvação: algo novo se agrega kfunção de Jesus. Todas estas afirmações devem ser entendidas a partir da história de Adão. Este havia sido criado à imagem de Deus, semelhança que perdeu por querer "arrebatar como uma presa" a igualdade com Deus. O homem celestial, que representa a verdadeira imagem de Deus em sua preexistência, pelo contrário se humilhou na obediência. Não só não perdeu a semelhança com Deus senão que recebeu com o título e função de Kyrios, a igualdade com Deus, não como presa arrebatada, mas como um dom. Depois de ter sido vióç, agora chega a ser mòç %ov Qeov èv ôvjvápei (Rm 1.4). Segundo a expressão do autor de Atos (2.36), foi "feito" Senhor.384

Temos visto como Paulo, nestas três passagens essenciais, uniu, de maneira tão harmoniosa, a ideia de Filho do Homem à

Em seu artigo citado, p. 153, nota 1, P. HENRY não vê outra solução que o adocia-nismo, no caso de que wtepíntrwcsv significasse que o Cristo, por sua elevação, recebeu mais do que o que possuía na preexistência, antes da encarnação. Assim, ele crê que deve recusar este sentido que, contudo, é mais plausível. Porém, na realidade a consequência admitida por ele desta explicação não resulta de todo necessária: trata-se de uma nova função no plano da salvação. Cf. abaixo, p. 283 s.

Page 229: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

238 Oscar Cullmann

sua concepção cristológica geral: sua interpretação cristológica conflui assim com a consciência que Jesus tinha de si mesmo.

5. O FILHO DO HOMEM NOS OUTROS ESCRITOS DO NOVO TESTAMENTO

Temos perguntado em que meios do cristianismo primitivo o título de Filho do Homem, com as ideias que lhe estão associadas, havia sido considerado como a solução do problema cristológico. Certamente Paulo trouxe uma contribuição decisiva a esta aplicação da ideia de Filho do Homem a Jesus: não se pode, contudo, admitir que ele tenha sido o primeiro a retomar para o compreender teologicamente, este título que Jesus dava a si mesmo. Temos visto que abundam razões para sustentar a tese de Lohmeyer, segundo a qual o texto de Fl 2.6 ss., tão importante para a questão que nos ocupa, teria por base um hino cristão pré-paulino. Por outro lado, não pudemos aderir à outra tese do mesmo autor, segundo a qual o berço da cristologia do Filho do Homem deveria ser buscado na Galileia. Finalmente, temos chamado a atenção ao fato de que a espera do Filho do Homem aparecia, de preferência, fora dos muros do judaísmo, nos meios esotéricos, quase como uma doutrina secreta. Jesus deve ter entrado em contato com estes círculos. Temos de buscar, então, entre os discípulos originários deste judaísmo "periférico" ou, pelo menos, relacionados a ele, os primeiros paladinos de uma cristologia do Filho do Homem. Defendemos a hipótese de que poderia tratar-se de membros palestinos da comunidade primitiva, designados em Atos dos Apóstolos pelo nome de "helenistas". Temos indicações que poderiam apoiar esta hipótese ou mesmo torná-la provável?

Para responder a esta pergunta estudaremos a posição adota-da pelos demais escritos neotestámentários em relação ao título de "Filho do Homem".

Em várias partes temos tido ocasião de mencionar que a cristologia do Filho do Homem não é a dos Sinópticos, ainda que esta expressão apareça neles mais frequentemente que em qual-

Page 230: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CEUSTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 239

quer outro escrito do Novo Testamento, já que ela ocorre não menos de 69 vezes. E ainda que não se conte mais que uma vez a menção deste termo nas passagens paralelas, fica de pé todavia a metade daquela cifra. O Evangelho de João a emprega só doze vezes. Também assinalamos que os Sinópticos recorrem a este título unicamente quando é Jesus quem fala. Agora, como sua intenção primordial é reproduzir as palavras de Jesus tal qual ele as havia pronunciado,385 e não - como no quarto Evangelho - de reencontrar, sob a inspiração do Paracleto (Jo 14.26), o Jesus da fé da igreja no Jesus da encarnação, não temos de tirar, desta diferença numérica, a conclusão de ser a cristologia do "Filho do Homem" privativa dos Sinópticos. A cristologia destes é antes a do "Messias". Portanto, se eles põem o título de Filho do Homem unicamente naboca de Jesus e jamais nade seus interlocutores, se deve a que, fiéis às tradições dos Logia, sabiam que este título, empregado por Jesus, não era corrente em outras bocas, à parte a sua.

É verdade que os Sinópticos, quando traduzem em grego a palavrabamascha, ,fzem uma diferença eetre e oentido oristoló^ico desta palavra (uíòç TOÍ> àvGpwjrou) ) eeu uentido ordinário od "homem" (avOpomioç). Isto prova simplesmente que os evangelistas - sem uma noção muito clara - tinham consciência de que Jesus associava a este título certas ideias precisas e conhecidas.

O livro de Atos talvez contenha um indício no sentido de que é neste círculo dos "helenistas", tão pouco conhecido e, no entanto, tão importante, que se deve procurar os adeptos da cristologia do "Filho do Homem". Com efeito, se esta expressão não se encontra mais que uma vez em Atos, é pela boca do "helenista"

381 Não se trata de recusar por isso a legitimidade do método da "história da forma" para o estudo dos Evangelhos Sinópticos. Porém, este método não deve levara eliminação de toda diferença entre os Sinópticos e o Evangelho de João. Se é verdade que nos Sinópticos também a consciência da igreja amiúde influenciou a maneira de repetir as palavras de Jesus, trata-se de uma tendência inconsciente e coletiva; enquanto que o autor do Quarto Evangelho tem o desígnio deliberado de apresentar juntos o Cristo encarnado e o Cristo glorificado e fazer-lhes, por assim dizer falar a um e a outro, simultaneamente.

Page 231: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

•240 Oscar CuUmann

Estêvão que é proferida (7.56). Em seu apedrejamento, o primeiro mártir exclama: "Eis que vejo os céus abertos, e o Filho do Homem, que está em pé à mão direita de Deus." Destaca o autor que Estêvão, ao pronunciar estas palavras, "foi ficando cheio do Espírito Santo". Como foi dito por Jesus diante do sumo sacerdote (Mc 14.62) também aqui trata-se da glorificação do Filho do Homem.386 Porém, enquanto que Jesus, referindo-se ao SI 110, fala do Filho do Homem, assentado à direita de Deus, Estêvão o vê de pé (èoxòxa): aqui, pois - diferentemente de outras passagens - Jesus não aparece como juiz387 mas antes, como testemunha, como advogado.388 Não se deve atribuir esta menção ao Filho do Homem a Lucas, mas fazê-la chegar a uma tradição anterior a ele. Segundo o pouco que sabemos das opiniões teológicas de Estêvão (que talvez fosse o homem mais importante da comunidade primitiva, à parte o apóstolo Paulo), ele deve ter captado melhor que ninguém o que havia de novo no ensinamento de Jesus. Não é de surpreender, pois, ouvir precisamente ele dar a Jesus o título pelo qual o próprio Jesus designava-se a si mesmo. Em todo caso, é digno de menção de que seja na boca de Estêvão que o autor coloque esta expressão, e é a única vez que a ela recorre nos vinte e oito capítulos de seu livro. Recordemos que em Atos, Pedro chama a Jesus "Servo de Deus".389 Admitimos que devia tratar-se de uma lembrança digna de confiança. Tal como pode ser também no caso em que é precisamente Estêvão, o "helenista" palestino, quem fala do Jesus glorificado como o "Filho do Homem".

Lucas, em seii relato da paixão, recorda a palavra de Jesus relativa ao Filho do Homem "sentado à direita de Deus", sem associar a ela a vinda "sobre as nuvens do céu''. Cf. acima, p. 207 s. Cf. também acima, p. 208, nota 341. - TH. PREISS, Le Fils de Cliomme, 1951, deduz disso consequências de grande alcance para a ideia de Filho do Homem, que ele aproxima à de Paracleto. Ele faz a observação seguinte a propósito de Atos 7.56 (op. cit., p. 23): "No instante em que a justiçados homens condena seu testemunho terreno, o Filho do Homem celeste se ergue como testemunho, intercessor e Paracleto, garantia diante de Deus para justificá-lo (cf. Mc 8.38)". Cf. acima, p. 103.

Page 232: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA ÍX> NOVO TESTAMENTO 241

Esta conclusão pode parecer ousada. Porém, ganha veracidade, no entanto, ao recordar que, além disso, já nos vimos levados a formular a hipótese de que os "helenistas" palestinos -como o próprio Jesus - devem ter tido contato com esse grupo judeu esotérico que os livros de Enoque - e mais recentemente os textos de Qumran - nos têm dado a conhecer. Estes "helenistas" devem ter desempenhado na formação do cristianismo um papel muito mais importante do que aquele que o relato de Atos nos permite supor. Entre os autores do Novo Testamento, Lucas e o autor do Quarto Evangelho são os únicos - como o demonstramos em outro trabalho390 - que nos permitem, ao menos, suspeitar esta importância. O Evangelho de João nos parece, inclusive, empreender uma verdadeira reabilitação destes "helenistas" ao afirmar pela boca de Jesus (4.38) não ser os doze os que fundaram a missão em Samaria mas os akXoi, em cujos trabalhos os doze não têm feito mais do que "entrar". Esta palavra nos remete a Atos 8.4 ss., onde os "helenistas" são apresentados como os fundadores da missão cristã, havendo os doze limitado-se a sancionar sua obra. Porém, se o Evangelho de João toma partido a favor dos "helenistas" e se interessa por eles é permitido concluir que provavelmente se tenha originado em um meio próximo a eles. Observemos ademais que as ideias contidas no Quarto Evangelho denotam certo parentesco com esse judaísmo esotérico 3"

í0Cf. nosso artigo citado mais acima, p. 217, nota 356: La Sumarie et les origines de la mission chétienne, p. 3 ss.

311 Isto é o que H. ODEBERG, adiantando-se a seu tempo, havia já reconhecido, com razão, em seu livro infelizmente tão difícil de conseguir: The Fourth Gospel, 1929. Suas observações têm sido grandemente confirmadas pelos textos descobertos em Qumran. - Cf. a este respeito K. G. KUNH, "Die in Palástina Gefundenen hebrãischen texte unddas Neue Testament", (ZThK, 1950, p. 193 ss.); como também os artigos citados mais acima, p. 194, nota sobre os textos de Qumran e o cristianismo primitivo. F. M. BRAUN, "Hermétisme et johannisme" (Revue Thomiste, 1955, p. 22 ss. e 259 ss.) chega a conclusão análoga, considerando também o pensamento hermético. Ver ainda W. F. ALBRIGHT, "Recent Discoveriesin Palestina and theGospelof St. John", Melanges C. H. Dodd, 1956, p. 153 ss.

Page 233: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

•242 Oscar Cullmann

Se esta filiação: judaísmo esotérico - Jesus - os "helenistas" - Evangelho de João, for defensável,392 compreende-se porque a cristologia do Filho do Homem tenha de ser especialmente importante para o Evangelho de João - paradoxalmente, muito mais importante que para os Sinópticos. Isto nos leva a examinar a posição do autor do Quarto Evangelho relativa à noção de Filho do Homem. Nele, Jesus se designa como "Filho do Homem" só doze vezes. O que, comparado com os Sinópticos, é pouco. Porém, não temos que nos deixar impressionar por esta estatística, pois o que importa no Quarto Evangelho não é a reprodução textual das palavras de Jesus mas o seu sentido, a maneira em que o Espírito permite entendê-las. Estas convicções cristológicas pessoais influem muito mais em sua maneira de formular os discursos de Jesus do que no caso dos Sinópticos. Nós podemos pois admitir que as ideias relativas ao Filho do Homem lhe foram muito familiares, já que emprega este título e estas ideias em passagens decisivas.39-3

Da mesma forma que os Sinópticos, João escolhe a tradução oíóç x0$ àvBpcímoi) e não meramente otvtJptonoç, como o faz Pauto. .sso indica que neste ponto, ao menos, segue uma tradição comum aos Sinópticos, e que se empenhava em distinguir, graças a esta tradução grega, o sentido técnico do sentido geral em que se costumava empregar o vocábulo barnctscha.

Muitas vezes quando o Cristo joanino qualifica-se a si mesmo como "Filho do Homem" a concepção característica de Filho do Homem está claramente implícita. Isto é certo em Jo 3.13: "Ninguém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu, a saber, o Filho do Homem." Não cabe dúvida que não se emprega aqui a expressão "Filho do Homem" por acaso; este termo evoca, indiscuti-

M2O judaísmo ebionita também parece confirmar esta tese. Cf. o tópico seguinte, p. 247.

393 Isto é evidente também para S. SCHULZ, Untersuchungen zur Meiíschensohn-cltristologie irn Johannesevangelium, 1957, que pensa encontrar, no emprego fre-qiíente que faz o Quarto Evangelho da noção de Filho do Homem, a prova de que este Evangelho tem suas raízes nas ideias apocalípticas do judaísmo tardio.

Page 234: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 243

velmente, ao homem celestial preexistente e divino que desce do céu, aparece sobre a terra, se incorpora à humanidade decaída e volta ao céu em glória. Coisa característica para o Evangelho de João: ao empregar este título quase sempre o faz para sublinhar a majestade do Filho do Homem e não para pôr em relevo a debilidade inerente à sua humanidade. A maneira especificamente joanina de unir o Cristo encarnado ao Cristo glorificado394 é muito adequada para expressar o pensamento cristológico fundamental da ligação do Filho do Homem celestial e do Servo de Deus. Com efeito, se diz imediatamente depois (v. 14) que é preciso que o Filho do Homem seja "elevado". Ora, sabemos que, segundo o uso joanino, o verbo ín|/co9fjvca significa ao mesmo tempo "ser levantado sobre a cruz" e "ser elevado à destra de Deus."395

Em Jo 12.23 e 13.31 de novo Jesus se qualifica como "Filho do Homem" pensando em sua glorificação, embora aqui ela seja contemplada simultaneamente com sua morte: "A hora é chegada em que o Filho do Homem deve ser glorificado".

E mesmo nas passagens em que se emprega o título Filho do Homem em relação à missão terrena de Jesus é título de soberania, que designa o homem celestial e divino. Assim em Jo 1.51 se diz que "os anjos de Deus sobem e descem sobre o Filho do Homem", enquanto reside ainda na terra. Observar-se-á que a escada que une o céu e a terra - alusão a Gn 28.12 - já não aparece relacionada a um lugar determinado mas hpessoa de Jesus Cristo, na qualidade de "Filho do Homem". O céu, com efeito, está "aberto" desde que o Filho do Homem dele desceu para vir e estar com os homens. Eles podem agora contemplar o céu graças àquele que é a imagem de Deus.

Em Jo 5.27 se evoca a função jurídica do Filho do Homem: "E lhe deu autoridade para julgar, porque é o Filho do Homem".

Cf. a este respeito O. CULLMANN, Les sacrements dans 1'Evangile johannique, 1951, p. 9ss. O. CULLMANN, "Der johanneische Gebrauch doppeldeutiger Ausdriicke ais Schlussel zum Verstãndnis des vierten Evangeliums" (ThZ, 1948, p. 360 ss.).

Page 235: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

244 Oscar Cullmann

Wendt3% crê que seja conveniente suprimir o genitivo àvGpcòjtoi) e ler: "porque é o Filho". Esta conjectura não é necessária nem convincente, já que a função de juiz pertence à própria essência do Filho do Homem,397 seja o juízo futuro ou presente, ou ambos ao mesmo tempo (como no Evangelho de João).

Em Jo 6.27 e 53, o Filho do Homem aparece novamente como o Senhor glorificado da Igreja, que outorga, pelo sacramento da eucaristia, o pão da vida. Seria interessante investigar a ideia de que se o Cristo glorificado dá seu corpo como alimento, isto é, como a imagem de Deus limpa de toda corrupção, o faz na qualidade de homem celestial, de "Filho do Homem".

Este título, "Filho do Homem", tomado em seu sentido especificamente cristológico reaparece por todo o Evangelho de João. Não é, pois, surpreendente ler no relato da cura do cego de nascença esta pergunta (Jo 9.35): "Crês tu no Filho do Homem?"398

A forma em que a pergunta é feita supõe que o leitor sabe de que se trata. Devemos, então, admitir que as ideias associadas ao Filho do Homem são tão familiares ao Quarto Evangelho como a Paulo e ainda mais, que elas constituem o fundamento de sua cristologia. Isto concorda plenamente com nossas suposições relativas ao meio no qual este Evangelho deve ter vindo à luz e donde - já no seio do judaísmo - o Filho do Homem era objeto de reflexão teológica.

Ao afirmarmos que a ideia de Filho do Homem é uma concepção cristológica fundamental do Evangelho de João, tropeçamos inegavelmente em contradições, dado que, segundo opinião amplamente difundida e imposta pelo prólogo, Jesus é sobretudo oLogos, a "Palavra". Por certo, não se trata de minimizar a importância da ideia de Logos no Quarto Evangelho; voltaremos a isso. Porém, isto não modifica o fato de ser muito mais importante para

H. H. WENDT, Das Johannesevaitgeliuni, 1900, p. 121. Cf. acima p. 207 s. A maior parte dos exegetas estão de acordo em considerar a leitura mòç TOTÍ 6EO0 como secundária. Cf. a este respeito as reflexões de J. H. BERNARD, The Gospel According to St. John (ICC, 3a, 1949, p. 338).

Page 236: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 245

o Quarto Evangelho, tomado em seu conjunto, a ideia de Filho do Homem que a de Logos.

Por outro lado, do ponto de vista da preexistência, a noção de Filho do Homem não está tão distante da de Logos. O Logos também estava no começo com Deus, e é revelado com Deus. Mesmo assim chegou-se a afirmar - e talvez com razão - que se na célebre passagem do prólogo (Jo 1.14) o Evangelho de João emprega a palavraaáp^ em lugar da palavra avôpamoç, que se esperaria, é por saber, o autor, que esta "Palavra", que estava no começo com Deus, já era um homem celestial, no sentido que temos indicado. Por isso não nos disse: "se fez homem", mas: "se fez carne",399

Esta hipótese seria mais provável ainda se, como se supõe,400

houvesse na base do prólogo do Evangelho de João um hino pré-cristão em honra do primeiro homem.

Em todo caso, os últimos versículos do prólogo (v. 14-18) parecem relacionar-se diretamente com a ideia de Filho do Homem: "Temos contemplado sua glória (ôó^a), glória como do Filho único vindo do Pai". Este versículo recorda as considerações paulinas relativas a Jesus imagem de Deus: em virtude de ser Jesus Cristo a imagem de Deus, nós também podemos agora conhecer ao próprio Deus; é sua própria glória a que vemos, ao ver a de Cristo: "Ninguém jamais viu a Deus; o Filho único que está no seio do Pai, é quem o revelou." A mesma ideia também tem um papel importante na primeira Epístola de João.

No Apocalipse a expressão "Filho do Homem" aparece duas vezes: "E no meio dos sete castiçais, vi a um semelhante ao Filho do homem" (1.13); "Olhei, e eis uma nuvem branca, e sentado sobre a nuvem um semelhante ao Filho do Homem" (14.14). Ambas as passagens aludem evidentemente a Daniel 7.13; e a expressão Õfxoioç indica seguramente - como em Daniel 7 . 1 3 - 0 caráter

Cf. J. HÉRING, "KyriosAnthmpos" (RfíPfí, 16, 1936, p. 207 ss,). R. REITZENSTEIN - H. H. SCHAEDER, Studien zitm andken Syncretismus aus Iraii und Griechenland, 1926, p. 306 ss.

Page 237: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

246 Oscar Cullmarm

misterioso e apocalíptico do Filho do Homem.401 Pode-se encontrar também em Apocalipse 12.3 ss. uma alusão indireta a Jesus, o segundo Adão; com efeito, a mãe do Messias, fundador da nova humanidade, que é perseguida pela serpente recorda, incontestavelmente, a mãe da humanidade decaída, seduzida pela serpente.

A Epístola aos Hebreus merece uma menção especial. Levan-do-se em conta sua afinidade com o Evangelho de João (coisa a que não se costuma dar a devida consideração) deve-se esperar que a ideia de Filho do Homem ocupe nela um lugar importante. Efetivamente lemos já no v. 3 do primeiro capítulo que o Filho é "o reflexo (ânavyocCTpa) da glória de Deus e a imagem (xapctKTrin) de sua pessoa". Temos de mencionar também Hebreus 2.5 ss. onde se trata da superioridade do Filho do Homem sobre os anjos, e a este propósito o autor cita o célebre Salmo 8 (v. 4): "que é o homem, que dele te lembres, e o Filho do Homem que o visites?"

Aqui este salmo é aplicado a Jesus, Filho do Homem. Com esta citação e a interpretação que lhe dá, o autor da Epístola aos Hebreus demonstra ter opiniões muito precisas sobre a doutrina acerca do Filho do Homem.

* * *

Em conclusão, no seio do cristianismo primitivo, foram os "helenistas" e os círculos representados pelo Evangelho de João que - concordando estreitamente com o pensamento do próprio Cristo - expressaram sua fé em Jesus valendo-se da ideia de Filho do Homem - ideia que Paulo particularmente aprofundou.

"R. H. CHARLES, The Revelation of St. John, 1920, p. 27, afirma que <&; uiòç àvGpwjtoi), não significa outra coisa na Apocalíptica que o ó víòç TOO àvBpcíiitou dos Evangelhos e de Atos. Pergunto se o èv op.oiopp.aTi àvGpwjtoo de Fl 2.7 pode ser aproximado a õpoioç de Ap 1.13 e 14.14, Em lodo caso O. MICHEL, em seu artigo citado mais acima, p. 235, nota 379, vê nesta expressão de Fl 2.7 o "'estilo apocalíptico perifrástico".

Page 238: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 247

6. OFILHODOHOMEMNOJTJDEU-CRISTIANISMOEEM IRINEU

Apesar de nos limitarmos, neste estudo, aos escritos do primeiro século, isto é, aos livros do Novo Testariiento, neste ponto estenderemos nossas investigações até o segundo século. Sem citar todas as passagens em que ocorre a expressão "Filho do Homem" falaremos, ao menos, de dois autores cristãos antigos que têm importância no desenvolvimento da ideia de Filho do Homem. Por um lado se trata do escritor judeu-cristão Hegesipo, e por outro de um autor milito mais essencial do ponto de vista teológico: Irineu Pai da igreja que viveu e escreveu na segunda metade do século II

O relato de Hegesipo pode lançar luz, sobre os círculos cristãos onde subsistia o título "Filho do Homem". Este texto, conservado por Eusébio, (H.E., II, 23,4-18), nos relata 0 que segue:

A Tiago, o irmão do Senhor, se pede que fale ao povo. Conduzido em seguida ao templo, lhe dizem: "Justo, em quem todos temos de confiar, visto que o povo se deixa extraviar seguindo a Jesus o crucificado, declara-nos qual é a porta de Jesus. E ele respondeu em alta voz: por que me interrogais acerca do Filho do Homem? Ele está sentado no céu à direita do Todo poderoso, e virá nas nuvens do céu".402 Hegesipo nos recorda em seguida que os escribas e fariseus logo lançaram a Tiago do alto do templo e o apedrejaram. Porém, como ainda vivesse, um soldado o matou com seu bastão.

Segundo este texto, citando as palavras do próprio Jesus diante do sumo sacerdote, Tiago havia qualificado a Jesus de "Filho do Homem". Pelo menos, tal é o título que o judeu-cristão Hegesipo pôs em sua boca. E. Lohmeyer crê ver nele uma confirmação de sua tese segundo a qual a esperança do Filho do Homem se localizava na Galileia,403 porém, sem que se compreenda muito bem o porquê. Deveríamos, antes, perguntar-nos se não se trata de um esforço judeu-cristão em manter, de uma maneira puramente formal, uma antiga tradição sem captar como Paulo, por exemplo, seu sentido profundo. Agregue-se a isto que as especulações relativas a Adão e ao Filho do Homem (por outro lado, deformadas e associadas à ideia de "Profeta") desempenham um papel importante na obra judeu-cristã pseudoclementina dosKerygniata Petrou. Ali se repre-

1,2Tradução G. BARDY, Sources chrétiennes 3i3 Paris, 1952, p. 87 s, °'Cf. E. LOHMEYER, Galilãa und Jerusalém, 19193 p. 68 ss. Ct. acima, p. 216.

Page 239: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

248 Oscar Cultmann _ _ _ _ _

senta a Adão como o "verdadeiro Profeta" que se encarna sempre de novo e acaba por aparecer em Jesus e no Filho do Homem esperado. Estamos aqui na presença do judaísmo ebionita que depois da queda de Jerusalém se reforma e se deforma ao mesmo tempo do outro lado do Jordão, à margem da evolução geral da igreja, vindo desembocar num legalísmo rígido e ficando, por outro lado, aberto às influências gnósticas e sincréticas. Como cremos haver demonstrado em outra obra,JW este ramo do cristianismo antigo conservou certos traços desse judaísmo esotérico mais ou menos gnóstico, que os textos de Qumran nos deram a conhecer.

Indiscutivelmente as especulações judeu-cristãs concernentes a Adão e ao primeiro homem sofreram essas influências; porém, sublinhamos que elas jamais foram elaboradas teologicamente num sentido cristão, como ocorre no caso de Paulo, mesmo quando neste o título de Filho do Homem não apareça em primeiro plano.

* * *

Com Irineu, nos encontramos em outro terreno. Entre os escritores eclesiásticos do século II ele foi o único a captar, em toda sua profundidade, a concepção paulina de Filho do homem. Nós achamos aqui uma tentativa - única em toda a história dos dogmas - de edificar uma cristologia sobre a ideia de "homem". A oposição Adão-Cristo domina todos seus estudos cristológicos. Em sua obm Adversus Haereses (V, 21, 1), após mostrar o exato paralelismo entre os atos de Adão e os de Jesus diz assim: "Por isto o Senhor se designa como o Filho do Homem, porque volta a tomar em sua própria pessoa a este primeiro homem, para que, pela vitória do homem, regressemos à vida assim como, pela derrota do homem, o género humano desceu à morte. Do mesmo modo em que por um homem a morte obteve sua vitória sobre nós, também por um homem obtemos a vitória sobre a morte."

Segundo Irineu, não se pode compreender a obra de Jesus sem remontar à' história da criação. Jesus completa à criação divina do homem. Preenche o fim para o qual Deus havia criado o homem. Irineu, com efeito, sempre estimou ser sua tarefa principal afirmar diante da gnose a relação entre a criação e a redenção, entre o Antigo e o Novo Testa-

O. CULLMANN, "Die neuentdeckten Qumran-Texte und das Judenchristentum der Pseudoklementinen" (Neutestt.iudicn fiir R. Buhnmnn, 1954, p. 35 ss.)s

Page 240: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVo TESTAMENTO

mento. Sua cristologia inteira se orienta nesse sentido. Pois bem, o elo que liga a cristologia com à doutrina da criação é, precisamente, a noção de Filho do Homem, o "segundo Adão".

É assim que Irineu, em seu tratado Adversas Haereses assim como em seu esboço dogmático "para a demonstração da verdade da pregação apostólica", descreve como Jesus retomou ponto por ponto a obra de Adão, porém, realizando, desta vez, o que Adão não havia realizado e, portanto, reparando a falta deste. No entanto, Irineu insiste muito mais na realização que na reparação. Por isso, reduz ao mínimo o pecado de Adão chegando, inclusive, até a desculpá-lo. Diferentemente do apologeta Taciano que havia ensinado a condenação eterna de Adão, Irineu conta com a possibilidade de sua salvação: a maldição cai antes na serpente que sobre Adão. Irineu trata de representar o pecado de Adão como uma espécie de necessidade: Adão seria igual a um menino e não pecou senão por falta de amadurecimento. Portanto, em sua obra Jesus aparece mais como quem leva a cabo a obra não realizada por Adão, do que como quem repara sua falta.

Irineu insiste mais na criação de Adão segundo a imagem de Deus, que na perda dessa semelhança por seu pecado. Em sua obraEiç èiú8eii;iv (1,1,11 s.), glorifica a criação do homem por Deus: de sua própria mão, Deus o criou e o colocou na terra qual sua própria imagem. O autor logo mostra como Deus tornou Adão senhor de toda a criação. Porém, esta tarefa foi demasiado pesada para ele. Adão era um menino, e faltava-lhe ainda o amadurecimento. Por isso sucumbiu ante o tentador. Vemos aqui que Irineu, diferentemente de Fílon e os judeu-cristãos, tem uma concepção totalmente linear do tempo da história da salvação: tudo está em andamento a partir do começo. A salvação final não é mero retorno ao princípio; vale dizer, o Cristo traz mais do que havia no começo.

No conceito de "Cristo, o homem celeste" de Paulo, se relaciona Jesus com Adão, sem identificá-lo com ele; isto significa que a salvação não reside simplesmente em um retorno a Adão, já que Jesus, por sua encarnação, trouxe algo totalmente novo. Irineu adota esta ideia, porém, a exagera ao sublinhar demasiado exclusivamente o caráter retilíneo do desenvolvimento da história da salvação. Assim, não levou bastante em consideração que Jesus, em sua qualidade de Filho do Homem, assumiu a missão do Ebed lahweh. Irineu não viu tão claramente como Paulo (Rm 5.12 ss.) que a missão de Jesus, quanto a Adão, não consiste tão-somente na consumação da obra não realizada por este; mas mais ainda, e primordialmente, na reparação de sua falta, reparação sem a qual seria impossível o cumprimento de sua missão. Irineu não levou

Page 241: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

250 Oscar Cullmann

suficientemente a sério este ato de rebeldia contra Deus, que constitui o pecado de Adão. Não compreendeu todo o alcance do fato de que por culpa de Adão, de seu pecado, a linha contínua foi quebrada não podendo prolongar-se a menos que sua direção retilínea seja restabelecida pela expiação.

Apesar desta reserva, temos de reconhecer o grande valor dos estudos de Irineu sobre Jesus - "segundo Adão". Consagra-se, com predile-ção, ao fato de corresponder a vida de Jesus, pontualmente, à de Adão; porém, o faz de forma tal que com Jesus tudo se consuma. Assim, Jesus nasceu de uma virgem do mesmo modo que Adão foi formado da terra, ainda virgem por ainda não haver chovido. A queda de Adão foi causada pela desobediência de uma virgem: Eva. Da mesma forma a obra salvadora se realiza graças à obediência de outra virgem: Maria. Vê também Irineu outro paralelismo de natureza mais externa no fato de que o objeto concreto que foi a ocasião da queda de Adão era a árvore de cujo fruto havia comido. Outra árvore lhe corresponde, outro ''madeiro", na história do segundo Adão: a cruz, a árvore da obediência. No Adversus Haereses, Irineu junta ainda outros exemplos que demostram até que ponto está enamorado desta ideia de ser Jesus o "segundo Adão".

Mostra, por exemplo, como Adão sucumbiu à tentação comendo um fruto proibido, enquanto que Jesus resiste a Satanás negando-se a romper seu jejum. Outra comparação estabelecida em Adversus Haereses V, 21,2 tem maior valor teológico: Jesus, tanto como Adão, foi tentado pelo diabo, tratando-se em ambos os casos da mesma tentação já que o diabo oferece tanto a Adão como a Jesus a igualdade com Deus. Em um e outro caso quer levar a sua vítima a ultrapassar os limites que Deus lhe estabelecera. Adão, em sua falta de maturidade se deixa seduzir; porém, Jesus resiste à tentação de cobiçar por orgulhoso a igualdade com Deus. Já temos visto que esta também é a ideia essencial do texto cristológico fundamental de Fl 2.6 ss. Irineu, pois, captou com exatidão esta ideia essencial já que a converte na base de sua própria cristologia.

* * *

Depois disso, a noção especificamente bíblica de Filho do Homem vai caindo paulatinamente no esquecimento. É verdade que o termo "Filho do Homem" costuma aparecer nas exposições cristológicas posteriores; porém, para indicar unicamente a humilhação de Jesus, para ressaltar sua "natureza humana". E por "natu-

Page 242: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 251

reza humana" se entende tão-somente sua encarnação em carne decaída, sua incorporação a uma natureza pecadora. A ideia essencial - a saber, que Cristo já era o Filho do Homem em sua preexistência, e que em sua "pós-existência", ao aparecer em seu retorno seguirá sendo o "Filho do Homem" - j á não é levada em consideração. Esqueceu-se por completo que declarar que Jesus é o Filho do Homem é dizer que ele é a "imagem de Deus". Quando muito se acha, de maneira esporádica e marginal na história posterior da teologia, a ideia de que Jesus é o "protótipo da humanidade" - por exemplo em Sclileiermacher. Só em época muito recente, graças a Karl Barth, se tem voltado a recorrer à ideia da imago Dei para a interpretação da cristologia.405 Porém, fica ainda por pôr-se a plena luz, dogmaticamente, o valor de todos os aspectos da concepção específica de Filho do Homem tal como está contida no Novo Testamento. Seria, portanto, sumamente instrutivo fazer um estudo sobre os vestígios de uma cristologia do Filho do Homem na história do dogma e da teologia.

Porém, seria mais importante ainda que um dogmático moderno empreendesse a tarefa de edificar uma cristologia baseada na ideia neotestamentária de Filho do Homem. Semelhante cristologia apresentaria uma dupla vantagem: primeiro, estaria inteiramente centrada no Novo Testamento e associada a um título que Jesus reivindicou para si mesmo. Em segundo lugar, o problema (no fundo, logicamente insolúvel) das duas naturezas em Cristo, se encontraria transferido a um terreno sobre o qual se pudesse encontrar a solução: o Filho do Homem preexistente, que está com Deus desde o princípio e que existe com ele como sua imagem já é, por sua essência, homem divino. A penosa discussão que outrora dominou as controvérsias cristológicas seria assim superada.

Sobretudo em Kirchl. Dogmatik, III, 1. Cf. a este respeito os comentários de um exegeta do Antigo Testamento, J. J. STAMM, "Die Imago-Lehrc von Karl Barth und die alttestamentliche Wissenschaft" (Antwort. Festch: K. Barth, 1956, p. 84 ss.). No tomo IV, 2, a ideia de Filho do Homem associada à glorificação de Jesus Cristo desempenha um papel importante.

Page 243: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

TERCEIRA PARTE

OS TÍTULOS CRISTOLOGICOS REFERENTES À

OBRA PRESENTE DE JESUS

Page 244: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

PEQUENO INTRÓITO

O aspecto cristológico que passaremos agora a abordar é considerado em seu justo valor nas exposições sobre a teologia do Novo Testamento, porém, ele é frequentemente negligenciado nas dogmáticas protestantes. No entanto, para os primeiros cristãos desempenhava um çaçel de primeira ordem em sua vida eclesiástica, exceto, talvez, em seu pensamento teológico. Por isso, este aspecto da obra de Cristo exige de nós uma atenção particular-Que o Cristo prossiga sua obra desde sua glorificação não é invenção "católica" mas um pensamento fundamental de todo o NovO Testamento, que surge com especial nitidez no Evangelho de João-

Alguns dos títulos estudados até aqui, em particular o de sumo sacerdote, dizem respeito também à obra presente de Cristo elevado à direita de Deus. Porém, o título do qual nos ocuparemos c cuja importância para a cristandade primitiva não se poderá subli-nhar excessivamente: Jesus o Senhor (Kyrios), diz respeito, antes de tudo, ao Cristo glorificado.

O título "Salvador", que aparece de preferência na periferia dos escritos do Novo Testamento tem menos importância; convi-rá, no entanto, estudá-lo também nesta terceira parte.

Page 245: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CAPÍTULO I

JESUS O SENHOR (KYRIOS)

Melhor do que qualquer outro, o título "Senhor", expressa o fato de Cristo ter sido elevado à direita de Deus e de intercedei' atualmente pelos homens, em sua condição de glorificado. Os primeiros cristãos ao darem a Jesus o título de Kyrios proclamavam com isso que Ele não pertencia unicamente ao passado da história da salvação, nem que era meramente objeto de uma esperança futura, mas queé também uma realidade, vivendo no presente; ele está tão vivo atualmente que até pode entrar em relação conosco, e o crente pode dirigir-lhe suas orações, e a igreja invocá-10 em seu culto, para que Ele apresente suas orações a Deus e as torne eficazes. A comunidade inteira, e não só a fé individual do cristão, perfaz a experiência de que Jesus vive e prossegue sua obra. O Senhoí glorificado continua intervindo nos acontecimentos terrestres, razão pela qual a igreja é considerada como o corpo de Cristo. Os primeiros cristãos expressaram esta profunda convicção em sua pro-fissão de fé: Kyrios Iêsous: " Jesus é o Senhor".

1. O TÍTULO "KYRIOS" NAS RELIGIÕES HELENÍSTA CAS ORIENTAIS E NO CULTO AO IMPERADOR

Sobretudo no mundo helenístico o termo Kyrios, aplicado a Jesus, se converte em título cristológico; convém pois investigar a significação deste termo fora do cristianismo, na linguagem religiosa e profana do helenismo. Este vocábulo estava ligado a ideias muito precisas e correntes: pode-se, pois, admitirapriori que quan-

Page 246: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

2.58 Oscar Cuttmaiin

do a fé cristã se implantou nesse meio, tais ideias exerceram influência na consciência dos cristãos. Isto não significa, contudo, que seja preciso admitir a tese muito discutida que W. Bousset expôs em seu Kyrios Christos,406 segundo a qual o título de Senhor foi atribuído a Jesus por exclusiva influência do helenismo e em sua própria esfera. Porém, ainda que após examinada, esta afirmação pareça excessiva, todavia fica em pé o fato de que, graças ao estudo de Bousset, a atenção dos exegetas foi sendo focada na importância capital que o nome Kyrios tinha no paganismo helenístico oriental.

No entanto, não devemos esquecer que, no campo do helenismo, tampouco se emprega o termo Kyrios exclusivamente em relação a certas concepções religiosas; como ocorre com seus equivalentes em todos os demais idiomas, usa-se no sentido geral de "dono", "proprietário"; ou, no caso vocativo Kyrié), como fórmula de cortesia, que não significa nada mais que nosso corrente "senhor". O defeito da tese de Bousset é que - tanto para o vocábulo grego como para seus equivalentes semíticos - não leva em conta a relação que pode existir entre o uso do termo no sentido profano e seu emprego nos sentidos religiosos. Não aceita, portanto, que da ideia geral de superioridade, propriedade, ou potência que designa este termo, se possa passarà idéiada soberania absoluta de um só Kyrios divino. Pois bem, nos escritos do Novo Testamento podemos traçar esta passagem de um sentido ao outro. Porém, Bousset se nega a reconhecê-lo. Segundo ele o emprego do termo em um sentido absoluto seria, no terreno do Novo Testamento ako totalmente inu-sitado que só poderia explicar-se pela influência do helenismo em Paulo e em Lucas, por exemplo. O recurso ao título de Kyrios para designar o caráter único do Senhor divino não pode, segundo ele, ser de origem palestina: na Palestina Jesus não teria sido chamado "Senhor" senão no sentido profano e banal da expressão.

Sublinhemos que esta distinção taxativa entre os usos profano e religioso do termo descansa em um a priori injustificado e

W. BOUSSET, Kyrios Christos, Ia ed., 1913, 2" ed. 1921.

Page 247: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 259

que na realidade - por necessária que seja a distinção - temos que admitir a passagem que há de um ao outro.

É possível, também, demonstrar-se que já no helenismo o sentido profano do termo Kyrios apresenta aspectos que podem conduzir ao Kyrios divino. A este respeito uma comparação entre Kyrios e seu sinónimo ÔEaTtótnç é sumamente instrutiva.407 Sem alcançar ainda o sentido preciso de nosso vocábulo "déspota" o termo ôecríiórriç já contém a ideia de algo arbitrário, enquanto que a ideia associada a Kijpioç corresponde à de uma autoridade legítima. Somente partindo de KÚpioç, e não de ôecTcótriç, pode-se chegar à ideia de um Senhor divino único.

Assim se explica por que a divindade - considerada sob o aspecto de sua potência e de sua superioridade absolutas - pôde ser designada por esta palavra, Kyrios, e que esta tenha chegado, inclusive, a ser o nomepelo qual seu caráter divino era expresso de uma maneira particularmente exclusiva. Neste sentido, encontramos numerosas constatações do vocábulo Kyrios empregado como sinónimo de "Deus" nas religiões helenísticas orientais do Império Romano. As referências tem sido reunidas com suficiente frequência408 para que seja o bastante agora sublinhar o emprego geral e muito difundido desta acepção de Kyrios: nas religiões da Ásia Menor, do Egito e da Síria os deuses e as deusas como Serápis, Osíris e ísis são nomeados Kyrios e Kyria, e isto tanto nas religiões nacionais como nas dos mistérios. Quando no mundo hele-nístico se diz "o" Kyrios, trata-se sempre de uma divindade.

Mal o cristianismo saiu da Palestina deve ter se deparado com este uso do vocábulo Kyrios, vendo-se na necessidade de tomar

Cf. a este respeito TRENCH, Syiionyma des Neuen Testaments, 1907, p. 60; FÒRSTER, Herr ist Jesus, 1924, p. 61 ss., e K. H. RENGSTORF, art. Secitóiriç (ThWbNT, II, p.43 ss.). Cf. F. CUMONT, Les religions orientales dans le paganisme romain, 4a ed., 1929; art. KÚpioç em PAULY-WISSOWA, Realencyclopàdie XXIII, 1924, col. 176 ss. (WILLIGER); art. jcópioç em W. H. ROSCHER, Ausfiirlicheí Lexikon der grieschi-schen und rõmischen Mythologie (II, sect. 1, 1890-94); W. BOUSSET, op. cit.; FÒRSTER,Herr ist Jesits, 1924, p. 69ss.,eart. KÚpioç (ThWbNT, IH, p. 1.038 ss.).

Page 248: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

260 Oscar Cullmann

posição frente a ele. Se fosse preciso corroborar bastaria citar a passagem de 1 Co 8.5 s.. "... como há muitos deuses e muitos Kyrioi, para nós só há um Deus... e um só Kyrios, Jesus Cristo". Para o cristão, que sabe que Jesus desde sua glorificação recebeu a onipo-tência no céu e na terra, estes Kyrioi que existem para os pagãos, já não são mais Kyrioi absolutos; seu poder foi absorvido pelo do único Kyrios. Atrás desta afirmação - à qual voltaremos405* - certamente também se acha a crença segundo a qual estes Kyrioi, estas "potências" e "domínios", como os chama Paulo, foram vencidos por Cristo, lhe foram submetidos e, por conseguinte, já não podem ser Kyrioi num sentido absoluto. Se Paulo diz, por um lado, haver muitos Kyrioi e por outro, não haver senão um só Kyrios, esta maneira paradoxal de expressar-se se explica pela relação que temos assinalado entre os dois usos do termo, o profano e o religioso: estes kyrioi dos pagãos com sua pretensão a serem Kyrios no sentido absoluto da expressão já não são, para os cristãos, senão kyrioi no sentido banal e não têm sobre nós nenhum direito absoluto de soberania.

Outro tanto ocorre com o Kyrios que no Império Romano exigia rigorosamente o reconhecimento de sua soberania: oImpe-rador.4™ E verdade que este título imperial de Kyrios tinha primitivamente um sentido político e jurídico, sem implicar a afirmação da divindade do imperador.411

Cf. abaixo, p. 292 ss. 'Cf. a este respeito A. DEISSMANN, Licht vom Osten, 4a ed., 1923, p. 287 ss.; P. WENDLAND, Die hellenistisch, rõmisclie Kitltitr in ihren Beziehungen zu Judentum und Christentum, 2a e 3a ed., 1912 (Hdb. z,. NT), p. 123 ss.; K. PRÚMM, "Der Herrscherkult im Neuen Testament" Bíblica, 1928, p. 1 ss.); id. Religionsgeschichtliches Handbuchfir den Raitm deraltchristlichen Umwelt, 1943, p. 54 ss.; 83 ss., W. FÕRSTER, Herrist Jesus, 1924, p. 99 ss.; L. CERFAUX, "Le titre Kyrios et ladignité royalede Jesus. Le titre et les róis" (Recueil L. Cerfaux, t. I, Louvain, 1954, p. 3 ss.). - Bibliografia completa em J.TONDRIAU, "Bibliographie du culte des souverains heilénistiques et romains" (Buli. de l'Ass. G. Budé, n. s. 5, 1948, p. 106 ss.) É o que sublinham F. KATTENSBUSCH, Das apostolische Symbol, II, 1900, p. 596 ss., e, sobretudo, W. FÕRSTER em sua monografia, Herr ist Jesus, 1924, e em seu artigo KÚpioç (ThWbNT, III, p. 1.038 ss.). Porém, quando partindo dali estabelece uma separação de princípio entre o emprego político do título Kyrios e o

Page 249: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 261

Igualmente o adjetivoKupicíKÓç,, que achamos empregado com sentido cultual em expressões neotestamentárias tais como KupiaKT) T](iÉpo; e KUpicxKÒv ôetítvov, se encontra também na linguagem administrativa, com o mero sentido jurídico e político de "imperial". É assim que as finanças imperiais são chamadas Kupioxcu yí)<poi e a caixa imperial KupiotKÒç ^.óyoç (W. Dittenberger, Orientis Graecae Inscriptiones Selectae, 1903-05, n°669).

Porém, sabemos também que no Oriente, muito antes da época romana, os soberanos eram honrados como deuses. Os imperadores romanos herdaram esta dignidade divina. Se lhes rendia um culto porque se lhes atribuía ascendência e natureza divinas. Originariamente este culto era devotado só aos imperadores romanos já mortos; porém, mais tarde estendido também ao imperador vivo. No Império Romano, por conseguinte, este culto tinha seu centro no Oriente. No entanto, os imperadores reconheceram bem cedo o proveito que podiam tirar dele para a unidade do Império e o incentivaram com todas as suas forças. Assim, na pessoa do imperador, a divindade toma um caráter visível: o èvap^nç èrcupáveia.

O imperador era chamado, pois, Kyrios como sinal de seu poder político; e por outro lado, era honrado como um deus: o título Kyrios, já associado a seu nome, por força havia de adquirir um caráter religioso a partir do momento que se recorresse frequentemente a este vocábulo para designar os deuses pagãos, o que sucedeu nos tempos do Império Romano.

W.Fõrster Herrisl Jesus, 1924, p. 103 ss, eThWbNT, III, p. 1.052 ss.) e outros insistem muito sobre o fato de que nos textos profanos o título Kyrios não se aplica senão como título político, sem relação direta com o culto ao imperador. Isso é exato. Porém, o que temos dito mostra que não se pode tirar daí a conclusão de que este título designava unicamente ao soberano político e não ao deus. Pois há outros dois fatos igualmente incontestáveis: por um lado, o imperador era honrado como um

culto imperial parece-me cometer a falta que ele mesmo busca combater em BOUSSET; a saber, uma distinção demasiado taxativa entre o uso profano do termo e seu uso religioso. Cf. ainda abaixo, pp. 262 s. e 273.

Page 250: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

262 Oscar Cullmatm

deus; por outro, o termo Kyrios na linguagem corrente do paganismo helenístico oriental, designava uma divindade. Como teria sido possível não evocar o sentido religioso deste termo, cada vez que se conferia este nome ao imperador?

Ademais, não se pode fazer uma distinção categórica entre a lealdade política ao imperador e o culto que lhe é devotado na qualidade de deus. Quando nessa época se empregava a fórmula Kyríos Kaisar, não só os cristãos (Mart. Polyc. 8.2)412 mas também os pagãos subentendiam nela seu sentido religioso e absoluto. O uso profano e político deste nome devia achar-se muito fundido ao seu emprego religioso em razão de na antiguidade entender-se que a soberania sobre o Império era considerada como a emanação da soberania sobre o universo. A profissão de fé política Kyrios Kaisar necessariamente devia ter um verniz religioso e se aproximava de um 0EÒÇ Kcucap, que talvez esteja na base da misteriosa cifra 616 (variante do 666) de Ap 13.18.413

Estavam os judeus dispensados deste culto ao imperador? Eis aí uma questão que não foi ainda perfeitamente esclarecida. Em todo caso suportavam, também eles, as consequências de uma confissão da soberania imperial imposta a todos os súditos do Império, como o demostram os dados referentes aos zelotes.414

Chega-se assim ao problema da significação, para os judeus, deste termo "Senhor" em suas formas aramaica, hebraica e grega. Pode-se dar por coisa certa que a profissão de fé Kyrios lesous Christos, onde ela ocorre no Novo Testamento, representa uma espécie de resposta polémica ao mesmo título Kyrios conferido às

W. FÓRSTER, Herr ist Jesus, 1924, p. 106, tenta, cio mesmo modo, aplicar sua tese (segundo a qual o título Kyrios dado ao imperador se referia unicamente à sua pretensão à soberania política) a este trecho do Martírio de Policarpo em que se pergunta a Policarpo: "Que tem, pois, de mal em dizer: Kyrios Kaisar ...?" Todo o contexto prova que aqui a explicação de FÒRSTER é insustentável. Cf. abaixo, p. 287 s. Cf. a proposição plausível de A. DEISSMANN em Licki vom Osten, 4a ed., 1923, p. 238, nota 3. Cf. também O. CULLMANN, Dieu et César, 1956, p. 85 ss. Cf. em particular JOSEFO, Bell. Jud., VII, 10, 1. Outros textos em W. FÕRSTER, Herr ist Jesus, p. 106 s.

Page 251: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

ORÍSTOLOGIA DO INOVO TESTAMENTO 263

divindades helenísticas e ao imperador; porém, a conclusão de W. Bousset, segundo a qual nenhuma influência judaica contribuiu para sua significação é, incontestavelmente, demasiado apressada.

2. O "KYRIOS" NO JUDAÍSMO415

A palavra grega Kyrios corresponde ao hebraico "JiTK, e ao aramaico "113. Devemos, pois, antes de tudo perguntar-nos se estas duas formas semíticas possuíam, na época do Novo Testamento, uma dupla significação como seu equivalente grego: a significação geral de "amo, proprietário", e a significação absoluta de "o Senhor".

Não é necessário dar exemplos de Adon, tomado em sua acepção geral. Este substantivo não se emprega sozinho, ele é determinado, de uma maneira mais precisa por outro substantivo ou por um sufixo que indica de que Senhor se trata. Assim, pode aplicar-se a Deus, a quem se chama "meu Senhor" ou "Senhor do mundo".

Um fato sumamente importante para o problema que nos ocupa é que os judeus não pronunciavam o nome de Deus: JHVH. A partir de certa época- porém, certamente no século I a.C. e no século I d.C. - o substituíram na leitura litúrgica por Adonai. Não é possível saber em que data precisa este costume se introduziu. Talvez seja anterior ao século I antes de nossa era; talvez seja mais antigo que a tradução dos Setenta. O que se pode admitir com certeza, é que já existia na época do nascimento do cristianismo.416

É verdade que este emprego absoluto de Adonai não se difundiu

Cf. a este respeito W. BAUDISSIN, Kyrios ais Gottesname im Judentum und seine Stelle in der ReUgionsgeschichte, t. 1-4, 1926-29; O. GRETHER, Name und Won Gottes im Alten Testament, 1934; G. QUELL, art "ícúpioç im AT" (ThWbNT, III, p. 1056 ss.);para o judaísmo tardio, W. FÒRSTER, art. xrópioç (ThWbNT, III, p. 1 .08 1 s.); para osLXX e o judaísmo helenístico os dois estudos de L. CERFAUX, "Le nom divin Kyrios dans la Bible grecque" e "Adonai et Kyrios" (Recueil L. Cerfaux, t. I. 1954, p. 113 ss.: 137 ss.). É também a ideia de BAUDISSIN, que tem em geral tendência a atribuir-lhe a data mais tardia possível.

Page 252: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

264 Oscar Cullmann

na língua corrente e não chegou a ser o modo geral de se nomear a Deus. Em troca, outras transcrições do nome divino se fazem correntes por exemplo DÍpftn, o lugar, ou Dííín], oomee

No entanto, está provado que na leitura litúrgica Adonai = Senhor substituía o nome de Deus. Se talvez em outras épocas se tenha insistido excessivamente neste fato, os trabalhos mais recentes parecem não levá-lo suficientemente em conta. Embora o emprego deste termo ficasse limitado ao uso litúrgico, deveríamos, no entanto, perguntar-nos por que os judeus tiveram a ideia de ler precisamente Adonaz em lugar do tetragrama sagrado. Cabe supor que este termo tinha uma ressonância particular aos ouvidos judeus. Costuma-se ver nisso "somente" um uso litúrgico. Não teríamos, pelo contrário, que dizer que se estimava Adonai como o termo que expressava melhor que nenhum outro a soberania suprema, já que lhe foi conferida a função de substituir o nome inefável de JHVH, durante a leitura solene da Palavra de Deus?417

Antes de examinarmos a palavra aramaica mar, que corresponde ao grego Kyrios, é preciso mencionarmos aqui algo sobre o judaísmo de língua grega, o da Diáspora. Aqui também, na tradução grega dos LXX, encontramos ao lado do uso profano da palavra Kyrios, seu emprego em sentido absoluto, onde icópioç torna-se o nome de Deus e serve para traduzir Adonai e JHVH. As razões que levaram os tradutores a empregar a palavra Kyrios neste sentido não foram, até agora, postas plenamente em evidência.

Sobretudo, duas explicações se adiantam: segundo a primeira, este uso teria, nascido por influência helenística, que conferia o título Kyrios aos deuses pagãos; de acordo com a segunda, por influência do emprego litúrgico de Adonai em lugar de JHVH. A primeira explicação deve ser, sem dúvida, descartada porque o emprego da palavra Kyrios para designar a divindade não é testemunhada num período anterior aos LXX. Porém, para com a segunda, também, se formula uma questão de data.

Isto é muito importante para a explicação de Fl 2.9, onde justamente o nome Kyrios é designado como o nome que "está acima de todo nome".

Page 253: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 265

Teríamos, com efeito, de admitir que então já se lia Adonatera lugar de JHVH, o que é contestável.418 Como quer que seja, Adonat deve ter possuído, durante muito tempo, uma ressonância muito especial para o terem selecionado para esta função litúrgica, a mais honrosa de todas. Isto é o que os tradutores da LXX devem, também, ter visto para que traduzissem com tanta naturalidade este termo por ícópioç,.

Além disso, no seio do judaísmo de língua grega, o emprego absoluto dzKyrios em lugar de "Deus" não havia ainda penetrado na língua corrente, porém, era considerado revestido de caráter litúrgico e sagrado. Em Josefo, por exemplo, o encontramos somente nas citações bíblicas e nas orações; à parte isso, ele não costumava empregar a palavra KÚpioç para designar a "Deus".419 Em troca, este uso é muito frequente nos apócrifos e nos pseudepígrafos gregos.

Para o judaísmo da época neotestamentária - tanto na Palestina como na Diáspora -Adon-Kyrios é, em suma, geralmente uma designação litúrgica de Deus.

O que podemos dizer quanto ao equivalente aramaico mar, que nos interessa particularmente, já que os primeiros discípulos -como o próprio Jesus - falavam o aramaico e que - voltaremos a isso com mais detalhe - a invocação litúrgica aramaica da comunidade primitiva, Maranatha, nos é conhecida pelo Novo Testamento? A primeira questão que se coloca é saber se este termo, ao lado de seu sentido geral de "amo, proprietário", e também de seu emprego ordinário como fórmula de cortesia, era, ademais, usado no sentido absoluto de Senhor = Deus, como o temos constatado para os casos de Adonai e Kyrios. No tocante ao período pré-cristão não podemos responder afirmativamente:420 mar jamais é empregado para designar a Deus, nem sequer em Daniel 2.47 ou 5.23. Porém, não podemos perder de vista que todo judeu sabia

Sobretudo por BAUDISSIN, op. cit. Cf. contudo W. FÕRSTER, em ThWbNT, III, p. 1082: e também os estudos deL. CERFAUX citados mais acima, p. 263, nota 415. Cf. A. SCHLATTER, Wie sprach Joseplms von Gotfí 1910. G. DALMAN, Die Worte Jesu,2a ed., 1930, p. 146 ss.

Page 254: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

266 Oscar Cullmaitn

que em hebraico Deus é "o Senhor", Adonai. Por outro lado, na língua corrente, mari é uma maneira particularmente respeitosa de dirigir-se a alguém, algo assim como rabbí, que se emprega da mesma maneira. Pois bem, também rabbí significa algo mais que "doutor" e pode ser traduzido para o grego por Kyrie. Mari expressa uma deferência maior ainda e se emprega para dirigir-se ao rei, ao imperador, ou ainda aos doutores reverenciados. A repetição "Senhor, Senhor" mari, mari), ,gual à reiteração rabbíí,abbí, era considerada como um acentuado sinal de respeito.42' Porém, estamos ainda muito longe do uso desta palavra como designação de Senhor absoluto.

Notamos no parágrafo precedente que, no mundo helenístico, Kyrios havia passado do sentido geral de "senhor" ao sentido absoluto de "o Senhor". O mesmo acontece no caso de Adon. Podendo ser provada semelhante evolução dos termos, não temos o direito de negar a priori a possibilidade de uma evolução análoga para a palavra aramaica mari: este vocábulo, que ao princípio só denotava as relações entre Jesus e seus discípulos durante sua vida terrestre, pôde chegar ao Kyrios Iesous, que caracteriza, em particular, a fé das comunidades helenísticas. W. Bousset - e com ele R. Bultmann - afirma que não se trata aqui de uma evolução, mas de uma brusca passagem para algo totalmente novo por influência do helenismo. Para ele não há solução de continuidade entre o termo "Senhor", que os discípulos empregavam para dirigir-se a seu rabbí, e o único Kyrios Christos, cujo culto não poderia ter nascido, por conseguinte, senão em terreno helenístico. Estas conclusões nos parecem bem discutíveis.

Não podemos trazer a prova desta evolução senão no parágrafo seguinte, quando examinarmos a fé pós-pascal da comunidade no Cristo glorificado. Se os discípulos que, durante a vida de Jesus, haviam simplesmente expressado com as palavras "meu Senhor" sua reverência pelo mestre, depois de sua ressurreição

Ver o exemplo citado por G. DALMAN, op. cit., p. 258. Isto explica a palavra citada de Mt 7.21; "Aqueles que me dizem: Senhor, Senhor..."

Page 255: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 267

empregaram o mesmo termo para designar o Cristo glorificado presente em seu culto, e para reconhecer diante dEle um direito total sobre eles, temos um fundamento para admitir uma passagem, sobre o próprio terreno do cristianismo, do aramaico mari ao grego KÚpioç. Em outros termos, a aplicação a Jesus deste uso helenístico da palavra Kyrios e os trechos da LXX onde Kyrios aparece, não constitui então uma inovação filológica e teológica, mas o registro de um uso aramaico.

W. Bousset afirma que a origem desta veneração cultual de Jesus tem de ser buscada em terreno helenístico e mais precisamente em Antioquia, e não na comunidade palestina. Sobre esta afirmação-cujo fundamento discutiremos - é que ele baseia sua rejeição em admitir que do aramaico mari derive o grego KÚpioç Xpictóç. Não poderemos fazer um juízo global sobre esta tese sem termos estudado primeiro a fé dos primeiros cristãos no Cristo glorificado. Neste momento, trata-se de mostrar que, por analogia ao KÍipioç helenístico e ao Adon hebraico, é filologicamente possível que a palavra aramaica mar, empregada primeiro em sentido profano, tenha sido por fim empregada no sentido teológico do grego icòpioç, com a condição de que, todavia, esta evolução teológica valesse já para os discípulos palestinos, que falavam aramaico. Ora, veremos que se deve admiti-lo. O elo que une, do ponto de vista teológico e filológico, mari e KÚpioç, é a invocação cultual aramaica Maranatha, que trataremos a fundo.

Porém, antes, temos de encarar uma última questão a respeito do termo "Senhor" no judaismo. Esta palavra serviu para designar ao Messias? Os poucos trechos rabínicos em que o Messias recebe o nome de Jahvé*1-- mal podem ser considerados como referências válidas. Eu daria mais importância à interpretação que Jesus dá ao SI 110 em Mc 12.35 ss. par. Disso já falamos423 e a isso voltaremos ainda. Toda a argumentação de Jesus nesta passagem baseia-se no fato de que Davi chama ao Messias

4" W. HEITMÚLLER, Im Nameti Jesu, 1903, p. 273. ""-'Cf. acima, p. 173 s.

Page 256: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

268 Oscar Cullmarm

seu "Senhor". Não se pode, por certo, concluir com certeza que já no judaísmo este título se relacionasse ao Messias. Porém, esta passagem me parece confirmar a ideia de que já no judaísmo a palavra "Senhor", segundo as circunstâncias em que era pronunciada, podia ter uma especial ressonância de majestade, tornanado possível a passagem de sua significação banal à do "nome que é sobre todo nome".

3. "KYRIOS IESOUS" E O CRISTIANISMO PRIMITIVO

Jesus se autodenominou Kyrios, e em que sentido? Trataremos esta questão no exame global da fé primitiva no Kyrios; pois é claro que este título, aplicado a Jesus, não recebeu sua plena significação senão depois de sua morte e glorificação. A associação dos termos Kyrios e lesous é, com efeito, característica da função presente e pós-pascal do Jesus glorificado. É, pois, natural que o uso deste título se tenha desenvolvido junto com a salvação. Isto é o que experimentaram os primeiros cristãos ao proclamarem que Deus/ez de Jesus "Senhor e Cristo" (At 2.36), que é graças a sua obediência de Ebed que ele foi "mais do que elevado" e que Deus lhe deu este nome/S/yráw que está "acima de todo nome" (Fl 2.9).

Não esperamos, pois, encontrar este termo Kyrios - em um sentido absoluto - na boca do Jesus terreno. Aflora, no entanto, pouco a pouco dos seguintes modos: indiretamente, na passagem de Mc 12.35 ss. par., mencionado há pouco onde Jesus cita o Salmo 110 para provar que a descendência davídica não tem valor decisivo para o Messias; diretamente em Mc 11.3: "dizei-lhe: o Senhor precisa dele (do jumentinho)"; ou ainda em Mt 7.21: "os que me dizem, Senhor, Senhor!..." Porém, em nenhuma destas passagens se emprega a palavra Kyrios, no sentido absoluto que o cristianismo primitivo lhe conferiu ao aplicá-lo a Jesus. Podemos ver, portanto, segundo estes três exemplos, que este termo pode ter um conteúdo diferente, segundo o contexto em que é empregado. Ninguém pode contentar-se em dizer que, em todo caso, Kyrios significa simplesmente "amo".

Page 257: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMEhrro 269

É verdade que em Mc 1235 ss. par., o vocábulo não tomou ainda seu sentido absoluto. Trata-se do Kyrios de Davi. Contudo, este título se reveste aqui de uma dignidade muito particular, já que sobre ele repousa toda a argumentação elaborada para demonstrar a superioridade do Messias sobre o rei Davi. Ao mesmo tempo se encontra subentendida a ideia de que uma descendência terrestre não pode ter importância para o Cristo que Davi chama Kyrios.

Com Mc 11.3 as coisas se apresentam de um modo diferente. Encontramos ó icópioç, com artigo; e em Marcos é a única passagem onde Kyrios é empregado assim. Poderíamos supor, então, que temos aqui a lembrança precisa do próprio Jesus haver se expressado desta maneira. Porém, não é possível concluir daí que aqui se autodesignou como o Senhor divino. Pois, por um lado, é muito provável que a expressão aramaica tenha sido "nosso Senhor" ou "meu Senhor"; por outro lado, a Palavra aramaica mar pode ter sido empregada meramente para expressar a relação entre os discípulos e seu mestre. Esta segunda hipótese me parece a mais provável.

Sem dúvida, este é também o caso para o terceiro exemplo citado, Mt 7.21. O próprio logion deve ser autêntico. Temos visto que a reiteração, "Senhor, Senhor" é um sinal de gentileza semítica.424

Deve, pois, também aqui, tratar-se da forma que o discípulo dirige a palavra a seu mestre reverenciado.

Este último exemplo - que poderia ser colocado em paralelo com João 13.13: "Vós me chamais de mestre e Senhor" - mostra, no entanto, que a relação entre o-s discípulos e o rabbí pode, de acordo com a situação, conferir ao título Kyrios uma ressonância que evoca algo muito mais elevado que a dignidade de um simples mestre. Quando este rabbí exige do discípulo a entrega de toda sua pessoa, quando faz dele seu verdadeiro ÔoíAoç e lhe constrange, em virtude de sua autoridade particular, a uma obediência livre e total, então este termo, Kyrios, adquire uma significação que ultrapassa em muito a simples fórmula de cortesia e expressa precisa-

"•-4Cf. acima, p. 26ó.

Page 258: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

270 Oscar Culhnann

mente esta exigência total e absoluta. O uso de KÚpioç, Senhor, neste sentido evoca automaticamente um ôoí)Àoç, servo, correspondente tomado, ele também, em uma acepção total e absoluta. Quando o rabbí, como foi o caso de Jesus, se atribui o poder de perdoar os pecados, então os títulos de rabbí e de mari, qqu es ehe dão significam muito mais que meramente "mestre". Estamos, por certo, muito longe do sentido absoluto que a palavra Kyrios tomará mais tarde, quando os cristãos serão chamados "aqueles que invocam o nome de nosso Kyrios Jesus Cristo.425 Porém, vemos aparecer aqui essa possibilidade da passagem a um emprego absoluto do termo que já temos constatado para o Kyrios helenístico e para o Adon hebraico a partir do momento em que o rabbí Jesus torna-se objeto de um culto, o Mestre e Senhor que fala e age com autoridade deve necessariamente converter-se no único Senhor.

Porém, é exato, como o pretende W. Bousset, que semelhante adoração só tenha podido surgir no âmbito helenístico e quando muito, como ele opina, em Antioquia? Ela é verdadeiramente alheia à comunidade palestina primitiva? Será verdade que para esta só importa o Filho do Homem que há de vir, e não o Senhor glorificado e presente? Se assim fosse faltaria, efetivamente, o elo que permiti unir mar aramaico ao Kyrios tomado em seu sentido absoluto. É nesta forma que se esboça verdadeiramente a questão.

Devemos discutir aqui a tese de W. Bousset não somente porque seu livro (aliás, já antigo) Kyrios Christos é considerado como a obra clássica relativa à questão que nos ocupa,Jí<i mas também porque R. Bultmann conferiu à tese de Bousset nova atualidade, ao retomá-la plenamente, por sua conta, em suaTheoiogee des Neuen Testaments (1953, p. 52 s; 123 ss.).

W. Bousset crê encontrar uma confirmação de sua tese, segundo a qual não haveria nenhuma relação entre a maneira em que se

1 Co 1.2; 2 Tm 2.22; cf. At 9.14, 21. Cf. acima, p. 258, nota 406 - Sobre a questão formulada por ele, ver também E. V. DOBSCHUTZ, Kíipioç '1T\GOX>Ç(ZNTW, 30, 1931, p. 97 ss.).

Page 259: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CfUSTOLOGíÀ DO NOVO L [ J S T A M E J S T O

costumava dirigir-se a Jesus em aramaico e o título de Kyrios, no fato que temos de nos afastar da Palestina para achar atestada a aplicação a Jesus do título Kyrios, tomado em seu sentido absoluto. No Evangelho de Marcos, não se chama a Jesus mais do que uma vez "o Senhor" (11.3) e Mateus jamais lhe dá este título. Por outro lado, isto ocorre frequentemente em Lucas, na parte de seu Evangelho que lhe é própria. Nos demais escritos cristãos primitivos que dizem respeito, de uma maneira ou de outra, ao helenismo, constatamos um emprego cada vez mais frequente de Kyrios tomado em sentido absoluto. Porém, estas observações, por exa-tas que sejam, não provam, contudo, que este uso de Kyrios fosse possível somente em terreno helenista, por ser aí onde havia começado a se render culto ao Cristo. Sem nenhuma dúvida, a crença helenística nos kyrioi divinos, e também - para os judeus da diáspora - a versão dos Setenta, que traduz por Kyrios o nome de Deus, exerceram uma poderosa influência e favoreceram consideravelmente a designação de Jesus como Kyrios absoluto. Porém, isso só foi possível porque Jesus, já antes, foi objeto de veneração cultual.

Pois bem, não fica provado nem pelas observações filológicas que precedem, nem pelo fato histórico de que o termo Kyrios designe os deuses helenísticos, que semelhante culto possa ter nascido unicamente nas comunidades helenísticas. Veremos, inclusive, que é precisamente uma observação filológica que contradiz mais claramente a tese de Bousset. Porém, convém abordar, sem ideias preconcebidas, os textos que nos informam acerca da história do culto primitivo quando se quer investigar se verdadeiramente Jesus não foi objeto de um culto na comunidade palestina primitiva.

Por exemplo, não devemos, sem razões válidas, considerar como anacronismos certas informações que Atos dos Apóstolos nos traz sobre a comunidade primitiva, nem qualificar a priori as opiniões e experiências atribuídas à igreja de Jerusalém como helenísticas. A maneira em que se estabelece espontaneamente a distinção entre o Kerigma da comunidade hierosolimitana, e aquele das comunidades helenísticas, baseia-se, amiúde, em uma confiança verdadeiramente ingénua em hipo-

Page 260: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

272 Oscar Cuttmann

teses puramente subjetivas e artificiais. É assim que, sem mais, se faz da comunidade primitiva uma seita escatológica judaica e se tacha de "helenismo" tudo quanto a distingue essencialmente do judaísmo. A chamada escola da "escatologia consistente", com seus fortes preconceitos, favoreceu consideravelmente semelhante método, tão discutível do ponto de vista científico. Pois bem, as recentes descobertas do Mar Morto deveriam ser particularmente adequadas para pôr fim a semelhantes simplificações, já que elas mostram que o judaísmo palestino não apresenta mais o aspecto dessa entidade homogénea por meio da qual se quis contrapô-lo, em bloco, ao helenismo.

Antes de tudo, como uma comunidade particular, depois da morte de cristo, pôde constituir-se? Se verdadeiramente os adeptos de Jesus o esperavam unicamente para o futuro, se do ponto de vista estritamente cristológico, o Filho do Homem futuro significava algo para eles, não vemos com clareza de onde haveria procedido o impulso que deu nascimento a uma comunidade na qual reinava o entusiasmo e cuja vida inteira era regida pelas manifestações do Espírito.

Certamente a esperança escatológica era particularmente intensa. Mais intensa do que jamais o havia sido no judaísmo. Porém é aí precisamente que está o problema; e a única resposta possível é a convicção dos discípulos de que a ressurreição de Cristo havia inaugurado o fim dos tempos. O que já havia sido realizado dava a sua esperança esta firme confiança na realização total que caracteriza sua atitude. E posto que o fim dos tempos já havia começado, Cristo não podia mais ser para eles meramente o Filho do Homem que havia de vir. Ele devia, também, ter uma significação presente, já que este presente pertencia ao tempo da consumação. A esperança ardente da manifestação próxima do século vindouro não é, pois, a causa, mas a consequência da fé na ressurreição de Cristo. No próprio âmago da fé cristã está a ressurreição de Jesus; e quem ousaria pretender que esta fé tenha nascido unicamente fora da Palestina? Se Jesus ressuscitou dentre os mortos, a morte já está vencida: a passagem do "século presente" ao "século vindouro" é uma realidade.

Page 261: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 273

Mesmo que os primeiros cristãos não tenham contado com mais do que um intervalo assaz breve entre a ressurreição de Cristo e seu regresso, contudo, é necessário que tenham tido uma certa ideia da função atribuída a Cristo durante este intervalo. Morreu, ressuscitou e voltará. Porém, entre estes dois acontecimentos ele deve desempenhar um papel; sua obra não pode interromper-se.

W. Bousset tem razão ao ligar a fé na soberania presente de Cristo ao culto cristão. É ai, com efeito, onde a igreja recebeu a revelação de que Deus não somente havia ressuscitado o Cristo como também lhe havia "tornado Senhor" (Rm 1.3 s.; At 2.36). Porém, este culto já existia na comunidade hierosolimitana; não nasceu unicamente em Antioquia.

W. Fõrster, cuja obra fundamental e cujos artigos em dicionário427

temos já citado amiúde, tem certamente razão quando contesta, resolutamente, que o emprego cristão do título Kyrios date unicamente do cristianismo helenístico. Remete-nos justamente à entrega total que Jesus exige de seus discípulos. Eis aí uma ideia teológica sumamente iniportante. No entanto, ela não me parece explicar suficientemente o nascimento da fé no Kyrios. Fõrster se equivoca ao rejeitar, com o erro de Bousset (a origem helenística desta fé), o que havia de justo em sua tese (a raiz cultual da fé no Cristo Kyrios).

Esta soberania presente do Cristo não devia somente ser experimentada como um chamado a entregar-se a Ele individualmente; devia também ser experimentada coletivamente como uma revelação cristológica, como a maneira de ser atual de Jesus: é isto o que ocorria nas primeiras assembleias cultuais de então.

Nestes cultos, onde se partia o pão "com alegria" (At 2.46), a presença do Cristo ressuscitado era "vivida" repetidamente como uma realidade. Seu fim era precisamente tornar possível a comu-

Além de seu trabalho e o de W. BOUSSET, temos que mencionar, sobre esta questão acerca do nome Kyrios, os diversos estudos de L. CERFAUX, que agora estão no primeiro tomo do "Recueil L. Cerfaux" (Bibl. Ephem. Tlteol. Lovaniensium, vol. 6-7), cf. também seu artigo "Kyrios" (Dict. de la Bible, suppL V, p. 200 ss.).

Page 262: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

274 Oscar Cullmann

nhão com o ressuscitado que aparecera aos discípulos no dia da Páscoa para participar de sua ceia. Tal era o sentido do culto nos primeiros tempos.428 As "ceias da aparição" - se nos é permitido esta construção - deviam levar a comunidade a experimentar repetidamente a presença do Senhor, ainda que não fosse de uma maneira tão direta e manifesta como durante os "quarenta dias" depois da Páscoa.

Não há razão para se contestar que fosse a comunidade hiero-solimitana a que tenha dado a Jesus o título de "Senhor": era considerado como o Senhor invisível que governa sua igreja e que durante o culto aparece "ali onde dois ou três estão reunidos em seu nome", no meio dos irmãos congregados, embora, ao mesmo tempo, esteja sentado à direita de Deus e governe o mundo.

Porém, a tese de Bousset se revela ainda insustentável - já temos feito alusão a isso - por uma razão filológica. Com efeito, a mais antiga fórmula litúrgica que conhecemos contém o título Kyrios em sua forma aramaica. Trata-se da mais antiga oração: Maranatha. No Novo Testamento encontramos esta fórmula no final da primeira Epístola aos Coríntios (1 Co 16.22). O fato de que o apóstolo, em uma carta escrita em grego e dirigida a uma comunidade de língua grega, tenha conservado esta fórmula em sua forma aramaica original, prova sua antiguidade. Paulo deve tê-la recebido da igreja de Jerusalém. Ademais, cita em aramaico orações muito antigas, características da primeira comunidade, como a que cita duas vezes em uma passagem teológica sobre a oração e que começa -çorAbba, Pai (Rm 8.15; Gl4.6), e onde deve tratar-se do começo da oração dominical.429

A fórmula Maranatha se encontra, no fim da Epístola aos Coríntios, em um contexto inteiramente litúrgico. E está transcrita naturalmente em caracteres gregos. Porém, em caracteres hebraicos se apresenta desta maneira fríníO"lft. Que significa? Uma coisa, antes de tudo, é certa: contém o termo aramaico mar, que significa

Cf. em part. O. CULLMANN, Le culte dons 1'Eglise primitive, p. 5 ss., 25. Em sua forma primitiva (sem pronome possessivo) que encontramos em Lc (11.2).

Page 263: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 275

"Senhor". Temos constatado até aqui que esta palavra era empregada como fórmula de cortesia. Agora, aqui, o contexto mostra que este já não pode ser o caso. Temos de estudar, pois, o quadro dentro do qual esta fórmula aramaica era pronunciada, para podermos estabelecer o sentido deste termo "Senhor". Porém, vejamos primeiramente a segunda parte desta expressão.

Trata-se de uma forma verbal do aramaico Kílfrí = vir. Porém, tropeçamos aqui com uma dificuldade pois obtem-se dois sentidos diferentes, segundo a maneira em que se decomponha a fórmula. A separação pode, com efeito, fazer-se de duas maneiras:

Ou, maran atha: KDK ]™ID; Ou, marana tha: KD KHD

No primeiro caso, estamos diante da terceira pessoa do indicativo e se deve traduzir: "Nosso Senhor vem".430 No segundo caso trata-se de um imperativo e deve traduzir-se: "Senhor nosso, vem!". No primeiro caso nos encontraríamos na presença de uma confissão de fé, no segundo de uma oração. A gramática e o sentido permitem ambas as interpretações431 as quais, por outro lado, se situam em um quadro litúrgico.

No entanto, a segunda possibilidade nos parece a mais provável. É mais normal, com efeito, que se tenha conservado, em sua forma original, uma oração em vez de uma confissão litúrgica que precisasse provavelmente ser traduzida. Com efeito, constatamos que no Novo Testamento as fórmulas mais numerosas de confissão de fé são todas traduzidas para o grego, enquanto que, à parte nossa fórmula, outra oração, ou ao menos seu começo, tenha sido conservada em aramaico por Paulo, oAbba, Pai, de que já temos falado.

É possível somar-se ainda outro argumento que parece decisivo. No Apocalipse de João que contém, aliás, numerosos elemen-

3tlCr\ E. HOMMEL, "Maran atha" (ZNW, 15, 1914, p. 317 ss.); E. PETERSON, Etç Qeóç, 1926, p. 130 s.

1,1 É a esta conclusão que se limita prudentemente K. G. KUHN em seu artigo MapavaGá (ThWbNT, IV, p. 470 ss.).

Page 264: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

Í176 Oscar Cullmúnn

tos litúrgicos antigos, se encontra, no penúltimo versículo do último capítulo, um chamado que deve ser certamente a tradução grega desta antiga fórmula e que nos permite, pois, ver que o autor a tinha compreendido como um imperativo, como uma oração: £p%ot> KÚpie, "vem, Senhor !" (22.20).432

Ainda, pode ser apresentado um outro argumento. Em sua forma aramaica esta fórmula se acha outra vez na coletânea de liturgia mais antiga que possuímos: o Didaquê (10.6), onde finaliza uma oração eucarística.113-1 É indubitável que quem tenha reunido estes fragmentos litúrgicos, os tenha considerado como uma oração. Apesar de reproduzir em sua forma grega a oração que a precede, conserva, contudo, para esta invocação, a forma aramaica. Sem dúvida se manteve durante muito tempo a lembrança desta oração estar envolta numa dignidade particular por ter sido a dos primeiros cristãos na comunidade mãe de Jerusalém; vale dizer: comunidade na qual o Senhor havia aparecido. Por isto era pronunciada com o mais profundo respeito e se evitava dar-lhe outra forma que aquela dada na igreja palestina. Porém, como quer que isso seja, o contexto indica, também aqui, que deve tratar-se antes de uma oração.

H. Lietzmann tem, sem dúvida, razão quando vê em Did. 10.6 a fórmula Maranatha inserida numa liturgia antifonal da santa ceia:

O celebrante: Que a graça venha e que este mundo pereça! A assembleia: Hosana ao Filho de Davi! O celebrante: Se alguém é santo que se aproxime; se não o é, que

faça penitência! Maranatha! A assembleia: Amém!434

í3;Creu, talvez, dever traduzi-la, pois seu livro inteiro é mais ou menos uma tradução do aramaico. Quando se traduz tudo, se esquece facilmente de que há certos fragmentos que ganhariam em ser conservados na língua original, assim como o fez o apóstolo Paulo.

J'1? 'EX9ÉTCÚ %ápiç (a tradução copta lê aqui ó KÍ>pioç, o que é talvez a versão original) KOU jrapeXuétw ó KÓOJIOÇ OÍJTOÇ/ ácavvà xQ 9cw Actoíõ/ eí tiç áyióç êfltiv/ èpxÉcôco/ eí Tiç OUK eoW u.EtavoeTT«j/ ^apaváGa àufiv.

1,4 Cf. H. LIETZMANN, Messe Und Herrenmahl, 1926, p. 237.

Page 265: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

\_.R1STOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO

Lietzmann tem certamente razão também ao ver nas fórmulas de saudação das Epístolas de Paulo fragmentos da mais antiga liturgia eucarística; pois o apóstolo sabe que suas Epístolas devem ser lidas durante o desenvolvimento do culto, no momento do partir do pão. O curto parágrafo com que termina aprirt^rira Epístola aos Coríntios, no qual se encontra Maranatha, deve ser também um fragmento da liturgia da santa ceia, análoga à do Didaquê:

Se alguém não ama ao Senhor que seja maldito! Maranatha! A graça do Senhor Jesus seja convosco!

E sumamente importante que Maranatha dê a impressão de ser uma oração eucarística, isso nos permite também desentranhar melhor sua significação, ao mesmo tempo que o sentido que tinha o título Kyrios para a comunidade primitiva. Ao escutai* esta invocação pensamos, antes de tudo, em uma oração escatológica; uma oração que implora a vinda do Senhor no fim dos tempos, sobretudo se se pensa na primeira parte da oração dominical. Porém, sabemos que no cristianismo primitivo todo o culto era considerado como as primícias do Reino de Deus: na igreja reunida já se produzia o que, no fim dos tempos, haveria de ser uma realidade durável. Isto caracterizava o culto conferindo-lhe sua grandeza (acabando por logo esfumar-se). É principalmente durante o "partir do pão" da celebração eucarística, que a "vinda" de Cristo, ou antes, o seu anunciado regresso, acha sua antecipação. Só no fim dos tempos ele voltará à terra; entretanto, volta já agora ao seio de sua igreja reunida para o partir do pão. Não havia prometido que "ali onde estivessem dois ou três reunidos em seu nome" ele estaria no meio deles? A relação entre a eucaristia da igreja nascente e a esca-tologia se enquadra, ademais, perfeitamente ao sentido que o próprio Jesus, durante sua última ceia, deu à distribuição do pão e do vinho. Já naquele momento a relação com o fim dos tempos é evidente já que, segundo os relatos dos três Sinópticos, aludiu, então, ao banquete messiânico onde "beberá de novo do fruto da vide no reino de Deus". A verdade é que estas palavras não se encontram no relato acerca da ceia dado por Paulo em 1 Co 11.23 ss.

Page 266: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

278 Oscar Cullmann

Porém, o apóstolo faz também alusão ao aspecto escatológico quando escreve (v. 26): "Porque todas as vezes que comerdes deste pão ou beberdes deste cálice anunciais a morte do Senhor até que venha" Enfim, temos que recordar, agora, uma palavra do Apocalipse. Já advertimos que este livro considera o culto como as primícias das últimas coisas; e que, por esta razão, se vale naturalmente de imagens e fórmulas litúrgicas em que cita hinos cristãos de sua época para descrever o drama final. Assim em Ap 3.20 trata-se ao mesmo tempo, sem dúvida, do banquete messiânico no reino de Deus e do banquete litúrgico da igreja: "Eis que estou à porta e bato, se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta eu entrarei; cearei com ele e ele comigo." Nada prova que semelhante elo entre o presente litúrgico e o futuro escatológico só seja possível no âmbito do helenismo. De fato, a experiência de uma presença viva do Ressuscitado durante o culto se explica perfeitamente pela esperança judaica da presença do Messias no banquete escatológico e por sua aparição, na noite de Páscoa, no instante em que os discípulos estavam reunidos para sua ceia.

Compreendemos melhor agora tudo o que a igreja esperava quando orava: Maranatha! "Senhor, vem!" Ela não lhe pedia meramente para que apressasse o dia de seu retorno final, mas lhe pedia também que aparecesse no meio dela, à sua mesa, como havia aparecido no domingo de páscoa, para consolá-la e assegurá-la de seu próximo regresso. E para quantos, durante o partir do pão, experimentavam sua vinda, a esperança do retorno definitivo não haveria de ser um dogma no qual se deveria crer somente por adesão à tradição. Eles sabiam, com efeito, por experiência pessoal, que o Senhor podia descer à terra e renovavam esta experiência cada vez que se reuniam e oravam juntos pela vinda do ressuscitado. Sabiam também que o Senhor haveria ainda de aparecer nesta terra quando viesse para a consumação de todas as coisas.

Maranatha, esta antiga oração significava, para aqueles que a pronunciavam, ao mesmo tempo: "Senhor, vem no fim dos tempos para estabelecer teu reino!" e: "Vem já agora enquanto estamos aqui reunidos para a ceia!" A distinção entre o presente e o futuro,

Page 267: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGSA DO NOVO TESTAMENTO 279

entre a antecipação e a vinda definitiva - distinção que nos é necessário fazer do ponto de vista teológico e teórico - quase não podia ser percebida pelos que estavam reunidos para o culto. Para eles, as duas coisas deviam estar tão estreitamente ligadas que ao experimentarem a presença cultual do Cristo experimentavam, em alguma medida de maneira antecipada, sua parusia definitiva. Ao falarmos da escatologia cristã primitiva, deveríamos lembrar, muito mais do que se costuma fazer, que a igreja de então não "esperava" somente o fim dos tempos, mas que o "vivia", de maneira imediata, no banquete eucarístico. O culto cristão é, efeti-vamente, o culto év %v£i>\xaxi (Jo 4.23), este elemento do fim dos tempos. Daí também esta manifestação do Espírito, a glossolalia, que é a "língua dos anjos" (1 Co 13.1).

À luz da experiência vivida da vinda de Cristo no meio dos seus, compreende-se melhor por que Ele pôde ser considerado, ao mesmo tempo, tanto como o Senhor da igreja como o senhor do mundo. Voltaremos mais tarde a este paradoxo singular tão característico referente à ideia que o cristianismo primitivo fazia acerca do Kyrios: O Cristo é o Senhor desta pequena comunidade que representa seu corpo na terra e é a partir daí que exerce sua soberania sobre o mundo inteiro. Com efeito, durante cada celebração da ceia a comunidade experimentava a soberania do Cristo. A igreja aparece, pois, verdadeiramente como o centro da soberania universal do Cristo. O vínculo íntimo que o cristianismo primitivo estabeleceu entre seu culto e o reino futuro, prova que a antiga oração Maranatha implora ao mesmo tempo a presença atual do Cristo e seu retorno definitivo.

Compreendemos melhor agora como interpretar a palavra mar contida nesta fórmula. Temos observado que no Novo testamento este vocábulo traduzido por Kyrios pode ser utilizado sem nenhuma tonalidade particular ou para dirigír-se a um Rabbí. Depois do quanto temos retirado da oração Maranatha, semelhante uso banal ou polido do termo fica aqui excluído. Mar há de ter um sentido muito próximo ao que se expressa na fórmula Kyrios Christos; deve querer dizer "soberano divino". Aquele que vem à

Page 268: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

280 Oscar Cullmann

igreja reunida no partir do pão é o mesmo Senhor que virá no final dos tempos para cumprir todas as coisas, reinando desde o presente, embora de modo invisível.

Temos advertido que a significação de mar, como a de Adon e de Kyrios, é suscetível de evolução e não pode ser determinada senão em referência a seu contexto - daí esta digressão para estabelecer o sentido do emprego de Maranatha no culto do cristianismo primitivo. Ela nos leva a concluir que nos é absolutamente impossível interpretar o termo mar, nesta fórmula, como simples sinal de gentileza, cujo sentido seria tão só o de Rabbi, Com razão A. E. Rawlinson fez ressaltar435 a impossibilidade de se traduzir Maranatha por: "Mestre, vem!" Dizer que Cristo não havia sido ainda invocado no culto da comunidade palestina é, pois, uma afirmação que, longe de estar provada por algum dado, é, pelo contrário, desmentida cabalmente e em particular pelo fato de que a oração Maranatha foi conservada durante muito tempo em aramaico.

Também se a tem denominado justamente o "calcanhar de Aquiles" da tese de Bousset.436 Nem ele nem Bultmann, que adota todas suas conclusões, podem explicar de uma maneira satisfatória como esta oração pôde conservar-se em sua forma aramaica até nas igrejas gregas. Onde se observa nestes autores um certo embaraço. Em Bousset aparece nitidamente: na primeira edição de seu Kyrios Christos (1913) intentou, com muita sutileza, dar uma explicação conforme sua tese acerca da origem puramente helenís-tica do culto devotado a Cristo; porém, não estando, sem dúvida, ele mesmo convencido da exatidão desta explicação a abandonou mais tarde em sua obra posterior Jesus der Herr (1916) - onde a substituiu por uma explicação mais inverossímil ainda - para voltar à primeira na segunda edição de Kyrios Christos. Quanto a Bultmann, também sem dúvida insatisfeito com esta solução, ado-tou em sua Theologie des Neuen Testaments a segunda proposta

The New Testament Doctriíte ofthe Christ, 1926 (reimpr. 1949), p. 245 s. A. E. RAWLINSON, op. cit., p. 235.

Page 269: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 281

feita por Bousset em 1916 e que este julgou não dever mantê-la. Estas vacilações são significativas e mostram que não se conseguiu dar à fórmula aramaica Maranatha outra explicação que a que se impõe naturalmente ao espírito, quando não se parte de uma ideia preconcebida: ela expressa a adoração cultual do Cristo pela comunidade de língua aramaica.

Em sua primeira explicação em 1913,àqual voltou em 1921,Bousset tenta escapar a esta conclusão inevitável dizendo que não está provado que a fórmula deva, necessariamente, ser de origem palestina em razão de sua forma aramaica. Ela poderia ter nascido em território bilingue da Antioquia, Damasco e Tarso e, portanto, em solo helenístico.4:r' Não sem razão, abandonou momentaneamente esta explicação; não é tampouco sem razão que Bultmann não possa adotá-la: pois ela não resiste verdadeiramente ao exame. Uma fórmula aramaica originária de um território bilingue mal teria podido impor-se ao ponto de conservar-sc intacta nos textos gregos. Se lhe foi devotada tanta piedade, isto se deve à memória de que procedia da igreja de Jerusalém; da mesma formase respeitou a fórmula aramaica Abba, Talha Kumi, ou Eli, Eli lama sabachtani, porque se sabia que quem havia pronunciado estas palavras era Jesus.

Bousset mesmo em 1921, não parece ter-se persuadido do valor da explicação que tornou a adotar. Observa, com efeito, que já que a origem palestiniana do título Kyrios é discutível a de Maranatha também deve ser buscada fora da Palestina. Eis aí uma petição de princípio.

A outra tentativa de explicação que o próprio Bousset abandonou por causa de sua improbabilidade, Bultmann retoma, aliás, sem justificá-la/1^ É desprovida de qualquer fundamento: Maranatha seria uma fórmula de juramento dirigida a Deus. Originariamente, pois, não dizia respeito em nada a Cristo.

Na realidade, Maranatha assinala a passagem da fé palestina à fé helenística no Cristo Senhor. A afirmação de Bousset e de Bultmann, segundo a qual haveria neste ponto uma ruptura completa entre a comunidade palestina primitiva e o cristianismo helenístico

m Kyrios Chrisws, T Td.d 1921, p. 84. •"8R. BULTMANN, Theoiogii des Nenen Testaments, 1953, p, 53.

Page 270: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

2fi2 Oscar Cullmann

é uma construção do espírito que prescinde dos elementos legados pela comunidade primitiva sem poder, tampouco, explicar satisfatoriamente a génese da fé helenística em Jesus o Senhor. Pois é evidente que Paulo, por exemplo, sempre que menciona a profissão de fé Kyrios Christos, se refere a uma antiga tradição, cujo conhecimento é a base pressuposta de toda a pregação cristã.

Sem dúvida, no terreno do helenismo, o uso pagão do termo Kyrios, seu vínculo com o culto do soberano e, primordialmente, o fato de que por este termo os LXX tenham traduzido o nome de Deus, contribuíram para fazer de Kyrios o título mais corrente para designar o Cristo. Porém, tal evolução não teria sido possível se a comunidade primitiva já não tivesse invocado o Cristo como "Senhor". O título Kyrios tem sua origem na vida cultual - neste ponto Bousset tem razão - mas na da primeira igreja de Jerusalém.

Não há razão alguma para pensar, com E. Lohmeyer, que foi a Galileia o berço do título Kyrios aplicado a Jesus (cf. Galilãa und Jerusalém, 1936, p. 17, 24).

Partindo-se da invocação cultual e litúrgica do Senhor, se desenvolveu a oração pessoal dirigida a Cristo. Encontramo-la em Paulo que, em certos momentos decisivos, invoca diretamente ao Senhor Cristo (2 Co 12.8; 1 Ts 3.12; 2 Ts 3.2 ss.)) Achamos também a "invocação" de seu nome nas orações dirigidas a Deus que devem ser levadas ao Pai "por Jesus Cristo". É o que constatamos em particular no Evangelho de João (Jo 14.13; 15.16; 16.24 ss.). Porém, Paulo ora também a Deus "por Jesus Cristo" (Rm 1.8; 7.25; 2 Co 1.20; Cl 3.17); semelhante aproximação é importante do ponto de vista cristológico, porque a ideia de poder orar "por Jesus Cristo" pressupõe, com efeito, que possa dirigir-se diretamente a Ele.

* * *

Temos visto que indiscutivelmente deve-se considerar a fórmula Maranatha uma oração e não uma confissão de fé. Isto é, que a confissão de fé, Kyrios Christos, se origina na oração ou ao

Page 271: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

C.RISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 283

menos lhe está muito perto. No cristianismo primitivo, aliás, não há uma distinção nítida entre confissão de fé e oração, e a "invocação" do Kyrios (èriíKaXetoSca) supõe, com certeza, também que se se dirija a ele na oração. Já que a oração Maranatha remonta à comunidade palestina, deve ser o mesmo para a confissão de fé; embora tenhamos de reconhecer, também aqui, que só no terreno helenístico esta confissão de fé adquiriu sua cabal significação, porque ela desmentia a fé nos kyrioi pagãos e, sobretudo, porque se opunha ao Kyrios Kaisar. Se, com Lohmeyer e outros, se reconhece uma base aramaica para o hino a Cristo de Fl 2.6 ss., teríamos aí uma confirmação da origem aramaica desta confissão de fé, porquanto este hino culmina na afirmação do senhorio de Jesus.

Porém, por que não se conservou em aramaico a fórmula da confissão de fé como a da oração? Sem dúvida por conceder-se à oração mais alta dignidade que à confissão de fé; entretanto, pode ter sido principalmente pela grande necessidade de encontrar uma fórmula, um "slogan da fé", que fosse o contraposto mais taxativo possível ao Kyrios Kaisar. E a manutenção da fórmula aramaica não teria preenchido este propósito.

A confissão Kyrios Iesous indubitavelmente é uma das mais antigas que possuímos. Em sua forma comprimida, só pela palavra Kyrios ela expressa toda a fé em Cristo da igreja primitiva. Sem dúvida, este título não remete diretamente senão à função presente de Jesus. Porém, a partir dele se pode abarcar toda a obra de Jesus, sua obra passada e futura assim como a presente. Isto é, sua obra expiatória assim como seu retorno em glória são vistos à luz da convicção triunfante que já hoje Cristo exerce a soberania, ainda que isso seja invisível, ainda que só os crentes sejam os únicos a sabê-lo e que os pagãos creiam, todavia, que haja outros Kirioi que disputam o senhorio do mundo.

Em Atos 2.36 lemos: "Deus o fez Senhor e Cristo, a este Jesus que vós crucificastes."439 Isso significa, claramente, que a digni-

Igualmente em Fl 2.9 ss. (cf. abaixo, p. 286 s.), ele é "feito" Kyrios.

Page 272: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

284 Oscar Cullmann

dade de Kyrios foi conferida a Jesus depois de sua ressurreição, simultaneamente com a dignidade de Messias. De maneira que só a partir de agora é que Jesus pode ser também denominado "Messias", pois é agora verdadeiramente soberano. Não é provavelmente sem intenção que o título Kyrios tenha sido aqui colocado antes do de Cristo; é, pois, somente por causa de sua soberania invisível que as ideias associadas ao Messias-rei podem ser aplicadas a Jesus.

É Paulo sobretudo, quem forneceu a base teológica para a afirmação da soberania presente de Cristo. Primeiramente, no que diz respeito à fórmula mesma da confissão de fé, devemos estudar de perto três passagens: Rm 10.9,Fl2.9e 1 Co 12.3. Porém, quanto ao fundo, convirá, ainda, levar em consideração todas as passagens que tratam da glorificação de Jesus ou de sua vitória e de seu domínio sobre as potestades. Os três textos que contêm expressamente a confissão de fé no Kyrios lesous demonstram, antes de tudo, que Paulo não inventou esta fórmula, mas que a herdou da comunidade palestina junto com as concepções que lhe estão associadas. Mostram também que sua própria fé no Kyrios baseia-se em sua experiência litúrgica da presença do Senhor. Isso aparece com singular nitidez na primeira das passagens citadas (Rm 10.9): "Se, com tua boca, confessares Jesus como Senhor e, em teu coração, creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo." Aqui, "confessar com a boca" e "crer com o coração" estão expressamente ligados. Coisa significativa: quando se trata de "confessar com a boca", a confissão que se impõe naturalmente a Paulo é "Jesus é o Senhor". Inegavelmente, nos achamos diante da confissão de fé por excelência, que está na origem de todas as demais e a todas abarca. É preciso então que antes de pertencer a Paulo, tenha pertencido ao uso litúrgico de maneira geral.

Já nos ocupamos extensamente do texto de Fl 2.6 ss., no capítulo consagrado ao Filho do Homem. Indicamos aí que o hino inteiro culminava nesta mesma confissão de fé, proclamada por todos os seres nos céus, na terra e debaixo da terra. A breve fórmula original se expandiu aí em uma cristologia acabada, abarcando a ação pretérita do Cristo desde o princípio, sua preexistência,

Page 273: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 285

quando Jesus estava ainda "em forma de Deus", tanto quanto sua glória futura e incontestada. Todo este segmento está regido pelo título Kyrios, esse Kyrios que Deus tem "mais que exaltado" (ítnepvycoaev); a dito título também se referem, como já vimos, os outros títulos fundamentais: "Filho do Homem" e "Servo de Deus".

Notamos que este ímep-óii/tooev não é uma mera figura de retórica, mas que o prefixo ímép, "sobre", tem de ser tomado em seu pleno sentido. Cristo, já no princípio, era "em forma de Deus"; porém, como não cobiçou rebeldemente a igualdade com Deus, esta lhe foi dada por Deus em razão de sua obediência até a morte na cruz. Ele foi "feito Senhor" (Atos 2.36). Esta exaltação até a igualdade com Deus se manifesta pelo fato de que Deus lhe concede, daí em diante, um nome que é sobre todo nome; precisamente o de Kyrios. Por que este nome não pode ser sobrepujado por nenhum outro? Porque é o nome do próprio Deus, sendo Kyrios a tradução grega do hebraico Adonai. É evidente que temos de pensar aqui no equivalente hebraico do título Kyrios, e não compreendemos como Bousset - e com ele muitos outros, em particular W. Fõrster440 que, aliás, combate a tese de Bousset - que se possa descartar pura e simplesmente esta derivação. Ademais, o outorgar o nome de Deus não se limita somente a este nome enquanto tal, mas no judaísmo, como em todas as religiões antigas, o nome representa ao mesmo tempo um poder. Consequentemente, se se nos diz que Deus dá a Jesus seu próprio nome, isso significa que lhe transmite, ao mesmo tempo, todo o seu poder. Esta ideia está, certamente, contida na maneira em que os cristãos primitivos compreendiam a glorificação de Jesus, como o veremos mais adiante ao estudarmos a soberania de Cristo segundo as passagens que não contêm diretamente o título Kyrios; porém, que encerram, sob uma forma ou outra, a ideia de seu senhorio.

A soberania concedida ao Kyrios Iesous, doravante igual a Deus, se manifesta concretamente em que todas as potestades da

W. FÕRSTER, Herr ist Jesus, 1924, p. 122; igualmente e de uma maneira muito categórica, L. CERFAUX, La Théologie de Saint Paul, 1951, pp. 347-358.

Page 274: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

286 Oscar Cullmann

criação (inclusive as invisíveis) lhe estão submetidas e que verdadeiramente "todo joelho se dobra nos céus, na terra e debaixo da terra e toda língua confessa que Jesus Cristo é o Senhor". Quando no Novo Testamento se coloca a Cristo em pé de igualdade com Deus, é sempre nesta base.

À luz desta convicção, de haver Cristo recebido "todo poder nos céus e na terra", se considera também sua existência anterior. Assim, em Fl 2.6 ss. o apóstolo mostra como esta soberania final de Jesus foi preparada desde o começo pela obediência daquele que era a imagem de Deus. Mas veremos que em outras passagens do Novo Testamento uma outra espécie de vínculo se estabelece entre a soberania atual do Cristo e sua preexistência. São as passagens que falam da participação de Cristo na criação ou antes de sua função como mediador na criação; os estudaremos na última parte ao tratar os títulos relativos à preexistência de Jesus. Aqui nos limitamos a constatar que a fé no Senhor presente conduz. necessariamente à certeza de estar Jesus predestinado desde o princípio a reinar sobre toda a criação, e consequentemente que a cristologia tem desde o início também um aspecto cosmológico. Assim, a ideia de Filho do Homem é a única que relaciona a cristologia ao relato do Génesis.

Porém, antes de falar das consequências que decorrem da noção de Kyrios (e que fazem com que excepcionalmente Jesus possa simplesmente ser chamado "Deus"), nos falta, todavia, examinar o terceiro texto paulino em que se encontra a fórmula "Jesus é o Senhor".

Paulo pensa aqui na situação das comunidades helenísticas, e o emprego da confissão de fé cristã, fora de toda dúvida, foi influenciado pelo pensamento acerca dos outros kyrioi helenís-ticos, e primordialmente do Kyrios Kaisar. Em 1 Co 12.3, lemos: "Por isso, vos declaro que ninguém que fala pelo Espírito de Deus afirma: Jesus seja amaldiçoado! Por outro lado, ninguém pode dizer: Jesus é o Senhor senão pelo Espírito Santo." Esta palavra se encontra no começo de uma exposição sobre os dons

Page 275: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO iNOVO TESTAMENTO 287

espirituais; costuma-se aplicá-la à glossolalia. E, com efeito, tendo em conta o contexto, se poderia talvez interpretar este versículo deste modo. Só que a glossolalia é uma maneira de falar desarticulada; e aqui se trata de palavras perfeitamente inteligíveis com as quais se trata de maldizer a Jesus Cristo ou de confessá-lo. A situação se assemelha à de Rm 8 onde Paulo quer demonstrar que em toda oração é o próprio Espírito quem fala. Ao fazê-lo, pensa seguramente também naquela forma extrema de linguagem ditada pelo Espírito que resulta na glossolalia; porém, diz em especial que toda oração, portanto também a que se formula com palavras inteligíveis, é obra do Espírito. Em 1 Co 12.3 não se trata da oração, mas da confissão de fé. De forma muito análoga, a confissão é compreendida aqui como operada pelo Espírito. E possível que aqui ainda Paulo pense também nesta linguagem direta do Espírito que é a glossolalia; mas ele pensa antes, de uma maneira geral, em toda confissão de fé - e especialmente na confissão de fé primitiva: "Jesus é o Senhor" e seu contrário: "Maldito seja Jesus!". Ambas as declarações são postas em relação com o Espírito; a primeira, como prova da ação do Espírito; a segunda, como prova de sua ausência.

Acredito que trata-se aqui antes do culto imperial e das perseguições sofridas pelos cristãos, por causa da confissão de fé*. Kyrios Christos. Muito provavelmente haja aí uma alusão à palavra de Jesus que promete aos discípulos a inspiração do Espírito Santo para o dia em que, submetidos a perseguições, tenham de comparecer diante dos juízes e devam confessar sua fé (Mt JO.17 ss.): "Porque vos entregarão aos tribunais e vos açoitarão nas suas sinagogas; por minha causa sereis levados à presença de governadores e de reis, para lhes servir de testemunho, a eles e aos gentios. Mas, quando vos entregarem, não cuideis em como ou o que haveis de falar, porque, naquela hora, vos será concedido o que haveis de dizer, visto que não sois vós os que falais, mas o Espírito de vosso Pai é quem fala em vós."

Cabe-nos comparar este texto com a carta do governador Plínio ao imperador Trajano, em que descreve o procedimento empregado

Page 276: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

288 Oscar Culhnann

contra os cristãos. Por ela nos inteiramos de que para renegar não bastava dizer Kyrios Kaisar e oferecer um sacrifício à estatua do imperador: os cristãos acusados deviam, ademais, maldizer a Cristo, para provar que o sacrifício oferecido ao imperador era sincero. Encontra-se uma situação análoga também no Martírio de Policarpo (8.2), onde o funcionário romano diz a Policarpo: "Que tem de mal em dizer Kyrios Kaisar e fazer o que a respeito está prescrito?" Este fim de frase indiscutivelmente alude à maldição exigida contra o Cristo. Embora, em ambos os casos, se trate de testemunhos do começo do século II, não temos razão alguma para supor que no primeiro século, em que o culto ao imperador era tão celebrado, o procedimento tenha sido sensivelmente diferente. Vemos, com efeito, que em Tessalônica os judeus acusam a Paulo e a seus partidários de atuar contra os éditos de César "dizendo que existe um outro rei, Jesus" (At 17.7).

Se pensarmos nesta situação, a promessa de Jesus lança uma luz particular sobre 1 Co 12.3. Os cristãos que haviam falhado ante os tribunais pagãos, que tinham oferecido um sacrifício ao imperador e amaldiçoado a Cristo, sem dúvida buscaram em seguida desculpar-se diante de seus irmãos amparando-se nas palavras de Jesus (Mt 10.17 ss.) e afirmando que o Espírito Santo, conforme a promessa, havia falado por sua boca no momento do interrogatório, e lhes havia induzido a dizer: "Maldito seja Jesus!" Provavelmente é em tais situações que Paulo pensava ao recordar aos Coríntios que o Espírito Santo, que assiste aos perseguidos, atua exclusivamente ali onde se confessa ao Kyrios lesous. Aquele que na perseguição amaldiçoa a Cristo, mostra, enfim, que o Espírito Santo não falou por ele.

Vemos, pois, que desde muito cedo, a confissão de fé Kyrios lesous adquiriu acentuada importância para os cristãos fora da Palestina, principalmente durante as perseguições. Inquestionavelmente, a ideia da soberania de Cristo já existia, vinculada à fé em sua glorificação e em sua vinda ao seio da igreja reunida para o culto. Porém, esta ideia se concretiza de maneira particular em oposição ao culto imperial, no qual se devia adorar como Kyrios

Page 277: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 289

um ser cuja soberania mundial estava à vista de todos e era, por assim dizer, palpável.441 O caráter vivo, atual, do senhorio do único e verdadeiro soberano, Jesus, se tornava, por contraste, mais preciso. O Estado não podia entender por que os cristãos preferiam morrer a ceder neste ponto. É que a confissão Kyrios Christos careceria de sentido se houvesse ao seu lado outro Kyrios. No Apocalipse de João, que está repleto de alusões ao culto imperial, Cristo é designado expressamente como KÚpioç ícopícov, e "Rei dos reis". Isto significa que o Kyrios é Jesus, e não o imperador (Ap 17.14).

O título PaoiXevç, "rei", é uma variante do título Kyrios e não temos necessidade de consagrar-lhe um capítulo particular. Já vimos que a ideia de Messias-rei não pode ser aplicada senão a essa soberania que Jesus exerce desde sua ressurreição. Não se trata, ademais, do reino terrestre do Messias esperado pelos judeus, mas de um reino que "não é deste mundo".

Jesus é chamado "rei dos judeus" em Mt 2.2; 27.11, 29, 37; Mc 15.2, 9, 12, 18, 26; Lc 23.3, 37, 38; Jo 18.33, 39; 19.3, 14, 19 ss. Aparece como "rei de Israel" em Mt 27.42; Mc 15.32; Jo 1.49; 12.13. A maior parte destas passagens se relaciona à acusação romana contra Jesus. A inscrição posta na cruz, o titulus, dá como causa de sua condenação o haver aspirado à realeza. Esta expressão é pois tomada aqui no sentido político dos zelotes, enquanto que os cristãos lhe atribuíram uma significação não política, relacionada ao título Kyrios.

Se quiséssemos estabelecer uma distinção entre Paoi^eíiç e Kyrios poderíamos dizer que "rei" sublinha mais vigorosamente a soberania de Jesus sobre sua igreja, na medida em que esta é sucessora de Israel, e em que Jesus Cristo leva a realeza de Israel à

Sobre a relação entre o culto ao imperador e o título - puramente político originariamente - de Kyrios concedido ao imperador, cf. acima, p. 259 ss. A lembrança de ter sido o próprio Jesus condenado pelos romanos como pretendente ao trono (como o prova a inscrição colocada sobre a cruz) deve já, por si mesma, ter favorecido, na consciência dos cristãos, esta oposição entre o KúpioçXpicTÓçe o Kúpioç Katoop-Cf. O. CULLMANN, Diett et César, 1956, p. 45 s.

Page 278: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

290 Oscar Cullmann .

sua consumação; enquanto "Kyrios" sublinha, antes, a soberania de Jesus sobre o universo, sobre a criação inteira, visível e invisível.

Porém, a despeito deste matiz, que a rigor se pode descobrir entre os títulos fiaaiXEvç, e Kyrios aplicados a Jesus, constatamos, no entanto, que são termos intercambiáveis. Pois, por um lado, a soberania do Kyrios também tem que ver com a realeza de Jesus sobre Israel, isto é, sobre sua igreja; e por outro lado, o título de rei viza também sua soberania sobre toda a criação. Kúpioç é, então, sinónimo de ftaoiXevç, em todas as passagens onde se ressalta a oposição à pretensão de soberania do imperador. E quando Jesus é chamado "Rei dos reis" e "Senhor dos senhores" (pacnAeúç Ccòv (JaaiA,ewvTtov e K-ópioç tcòv icupieuóvTíov, 1 Tm 6.15; cf. Ap 17.14), o autor pensa, da mesma forma, em sua soberania sobre o mundo. Outro tanto ocorre quando em 1 Co 15.25, referente à realeza de Jesus, se diz: "Porque convém que ele reine (pao"il£Í)Eiv) até que tenha posto todos os inimigos debaixo dos seus pés." Aqui também o apóstolo pensa na soberania de Jesus sobre a criação inteira, sobre todas as potestades invisíveis com as quais são identificados os "inimigos" que ele põe "debaixo dos pés". Enfim, para provar a sinonímia de fkxoiA,EÍ>ç e de Kvptoç, recordemos que o Evangelho de Mateus - o que de todos os Evangelhos, sublinha mais vigorosamente desde o primeiro capítulo a dignidade de Jesus como "rei de Israel" - termina com a afirmação da soberania total do Ressuscitado no céu e na terra: "Todo poder me foi dado no céu e na terra" (Mt 28.18). Veremos, ademais, que a simultaneidade da "soberania sobre a Igreja" e da "soberania sobre o mundo" caracteriza a concepção neotestamentária da ícopicnriç de Jesus. Já achamos a explicação disso no fato de que os primeiros cristãos experimentaram primeiramente a soberania de Jesus no seio de sua pequena comunidade, no curso de suas assembleias cultuais.

W. Fõrster, Herr ist Jesus, 1924, p. 142, crê que tem de excluir inteiramente da fé da cristandade primitiva a significação cósmica da KupiÓTriç de Jesus. É exato que em Rm 10.12 e At 10.36 a expressão icópioç Ttávccov se refere à soberania sobre os homens; e que na citação

Page 279: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 291

do Antigo Testamento de 1 Co 10.26 ("a terra c do Senhor"), é possível que com "Senhor" se designe a Deus. Porem, não devemos nos limitar aqui aos trechos que contenham expressamente o termo Kyrios, antes, temos que estender nosso estudo até àqueles que falam de maneira geral da soberania de Jesus. Se Fõrster recusa a ideia de uma soberania de Jesus no mundo, é por pensar que para os primeiros cristãos, Jesus não é o Senhor senão na medida em que ele faz uma reivindicação absoluta de soberania sobre nós.

* * *

Falta-nos falar das passagens que, sem conter necessariamente os títulos de "Senhor" ou de "Rei", expressam a ideia teológica da soberania de Cristo.442 Unicamente assim, ampliando o campo de nosso estudo, poderemos captar todo o alcance do título e da função de Kyrios para a cristologia do Novo Testamento. Como sobre este ponto reina acordo total entre os escritores do cristianismo nascente443 podemos, contrariando nosso método habitual, apelar aqui, para cada aspecto do problema, a passagens tiradas de diversos autores. Paulo, certamente, ocupará um lugar de honra. Um parágrafo especial será consagrado ao Evangelho de João mesmo considerando que sua concepção não difere da dos demais textos neotestamentários. Este consenso é suficiente para demonstrar a importância capital que o cristianismo primitivo atribui à fé na soberania de Cristo. Nossa pergunta é a seguinte: em que consiste, exatamente, afunção indicada pelo título de Kyrios concedido ao Cristo glorificado?

No que concerne à ideia de "soberania de Jesus", temos de levar em conta todas as passagens (são numerosas) que declaram que Jesus está "sentado à destra de Deus" e que "todos os inimigos lhe estão submetidos". Como vimos no capítulo concernente

^Utilizamos aqui as ideias principais de nosso estudo sobre "Laroyautédu Christ et TEglise dans le Nouveau Testament", Foi et Vie, Paris, 1941.

1H. CONZELMANN estima que sobre este ponto, Lucas tem uma concepção diferente Die Milte derZeit, 1954, p.146 ss. Cf. abaixo, p. 309, nota 461.

Page 280: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

292 Oscar Cullmann

ao sumo sacerdote, trata-se de uma aplicação do Salmo 110 a Jesus, interpretado messianicamente. Não é demais recordarmos que a proclamação da elevação de Cristo à direita de Deus - que muito cedo aparece no Credo - emana formalmente deste salmo real.

Nada demonstra melhor quão central era, no pensamento do cristianismo primitivo, a ideia da soberania presente do Cristo do que as numerosas citações deste Salmo. Estas não se limitam a determinados autores, mas se espalham por todo o Novo Testamento. Inquestionavelmente, não há nenhuma passagem do Antigo Testamento tão citada pelos autores do Novo. Nós a encontramos em: Rm 8.34; 1 Co 15.25; Cl 3.11 Ef 1120; Hb 1.3; 8.11 ;0.13; 1 Pe 3.22; At 2.34; 5.31; 7.55; Ap 3.21 ;Mt 22.44; 26.64; Mc 12.36; 14.62; 16.19; Lc 20.42; 22.69. Voltamos a encontrá-la até nos Pais apostólicos: 1 Ciem. 36.5 eBarn. 12,10.

Dizer que Jesus, cumprindo esta palavra do Salmo, "sentou-se à destra de Deus", é confessar o Kyrios Christos em outros termos. Esta expressão se tornou tão corrente que inclusive era repetida sem referência direta ao Salmo. Até a achamos, já no Novo Testamento, inserida na fórmula de confissão de fé mais desenvolvida que, em 1 Pe 3.22, se destaca nitidamente do contexto: "Está sentado à destra de Deus, havendo subido ao céu e lhe estão sujeitos anjos, autoridades e potestades."444 Os "anjos, autoridades e potestades" são uma alusão implícita aos "inimigos", àqueles que o Salmo 110 diz que serão postos "sob os pés do Senhor". Enquanto o salmo se refere aos inimigos terrenos de Israel, os primeiros cristãos os identificaram com as potestades invisíveis; a menção da "sujeição" destas potências significa Cristo ser agora para eles, o único soberano ao lado de quem não existe outro, nem nos céus e nem na terra. Ainda que estas potestades existam, todavia, todo poder lhes foi tirado.

Um fato demonstra a importância desta certeza para os primeiros cristãos: as mais antigas confissões de fé, as que encontramos no Novo Testamento e nos Pais apostólicos, repetem com

Cf. BO REICKE, The disobedient Spirits and Christian Baptism, 1946, p. 198 ss.

Page 281: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

C-RISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 293

regularidade que Cristo está sentado à destra de Deus e que todas as potestades lhe foram submetidas. Sem tal dominação das potências invisíveis Cristo não seria o Kyrios ao lado de quem não há nem pode haver outro. Assim, lemos na confissão de fé contida em 1 Tm 3.16 "...visto pelos anjos". Além do texto já mencionado de 1 Pe 3.22, encontramos também a ideia da dominação exercida por Jesus sobre os ènoupávux, èjiiycro: e Ko.xaxQò\m na passagem estudada, já muitas vezes, da Epístola aos Filipenses (2.9 s). São estas potestades que confessam que Jesus é o Kyrios e que dobram seus joelhos diante dele. À parte o Novo Testamento, a submissão dos poderes é afirmada nas confissões de fé citadas por Inácio de Antioquia e Policarpo TralL 9.1; Epístola de Pollcarpo 2.1). Em Justino (Apol. 1.42) e em Irineu (Adv. Haer. 1.10, 1), constatamos que a confissão de fé em Cristo "o Senhor" menciona seu domínio sobre todas as forças da criação, visíveis e invisíveis. Sublinhamos este fato para demonstrar a importância desta afirmação para a fé dos primeiros cristãos. Estas antigas confissões conservam, da fé cristã primitiva, só os pontos essenciais e os formulam, da maneira mais concisa possível. Logo, se nestes resumos condensados se menciona com regularidade a soberania de Cristo sobre as autoridades e potências, não é por ser um artigo de fé secundário, mas, pelo contrário, por ser fundamental.

Surge da experiência da presença, do "senhorio" do Cristo, que os primeiros cristãos tinham em seu culto; e é compreensível que este senhorio tenha chegado a ser como a bússola graças à qual podiam orientar-se em todos os acontecimentos que se desenvolveram ao redor deles e neles.

A simultaneidade das declarações relativas à soberania de Cristo sobre o pequeno grupo dos fiéis por um lado, e sobre o universo inteiro, por outro, é notável. Temos visto, também, que os primeiros cristãos confessavam sem cessar como senhor do mundo a este Senhor, cuja presença viva experimentavam no cultoda igreja. Como justificaram teologicamente esta simultaneidade?

Antes de mais nada, precisamos estabelecer o que há de comum entre estas duas "soberanias" de Cristo: sobre a igreja e

Page 282: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

294 Oscar Cullmatm

sobre o mundo. Em primeiro lugar, ambas se relacionam ao mesmo período temporal limitado, no que se distinguem do "reino de Deus".4115 Este viria unicamente no fim dos tempos; o senhorio de Cristo, em troca, assim como a própria igreja, pertence ao período intermediário que vai da ascensão à parusia. Isto é, que a soberania de Cristo, diferentemente do reino de Deus, já começou: "(Deus nos tem) transportado ao reino do Filho do seu amor" (Cl 1.13). Todos os textos que falam de "Cristo sentado à destra de Deus", ou da "submissão" das potestades, se referem, implícita ou explicitamente, à ascensão como ponto de partida cronológico deste Senhorio; todos, excetuando-se Hebreus 10.13 e 1 Co 15.25. Nestas duas passagens, a submissão das potestades é anunciada somente para o fim dos tempos. Encontramos novamente a concepção neotestamentária acerca do tempo, segundo a qual a fase final da história já começou, mas sem que o fim tenha ainda chegado. Assim se explica que, segundo toda uma série de textos, a vitória sobre as potestades seja coisajá conquistada, enquanto que segundo estes dois textos ainda é esperada. Para empregar uma imagem tomada do Apocalipse, poderíamos dizer que estas potestades estão temporariamente "amarradas", devendo aguardar o fim dos tempos para serem definitivamente vencidas

A tensão resultante da coexistência do "já" e do "ainda não", tão característica da situação do Novo Pacto tem então por resultado que, segundo 1 Pe 3.22, asubmissão das potestades hostis já se tenha produzido, enquanto que segundo a Epístola aos Hebreus, o Cristo sentado à destra de Deus ainda a "aguarda" (Hb 10.13). Daí nasce também essa tensão típica entre a "submissão" e a "aniquilação" das potestades. O verbo Kcetcípyeív, que o Novo Testamento emprega livremente nestas duas passagens, tem dois sentidos: "submeter" e "aniquilar". Encontramo-lo em 2 Tm 1.10, onde se trata da vitória já alcançada sobre a morte pelo Crucificado, mas também em 1 Co 15.26 onde sedizquea vitória sobre a morte terá lugar depois do retorno de Cristo. Da mesma forma em Ap 20.14, só no fim dos tempos a morte será lançada no lago de fogo. Em um

115 Sobre a diferença entre o Pai e o Filho, que não concerne senão à obra da salvação, cf. abaixo, p. 382 s.

Page 283: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA E>O Novo TESTAMENTO 295

e outro caso trata-se cie uma vitória: na primeira vez a morte é somente "despojada de seu poder" (2 Tm 1.10), enquanto que na segunda vez é definitivamente aniquilada (1 Co 15.26; Ap 20.14). Outro tanto ocorre com respeito às demais potestades. Entre as duas vitórias, as potências são sujeitadas à dominação de Cristo; porém, estão, ao mesmo tempo, por assim dizer, atadas por um laço que tanto pode encurtar-se como alar-gar-se, de sorte que têm a ilusão de poderem livrar-se. Ilusão, pois na realidade já estão vencidas. A decisão já interveio e a soberania do Cristo, por conseguinte, começou. Cristo é, a partir do presente, o Kyrios.*^

Assim como esta soberania tem um começo, terá também um fim. Qual será a data? O Novo Testamento não o diz; porém, ela coincidirá com um acontecimento determinado: o retorno de Cristo. O senhorio de Cristo começou, pois, com sua ascensão e acabará com seu regresso. É por isso que os dois "homens vestidos de branco" de Atos 1.10 afirmam a analogia exterior dos dois acontecimentos que emolduram a soberania de Cristo: "Este Jesus que foi elevado ao céu do meio de vós, virá da mesma maneira (isto é, nas nuvens) como o haveis visto ir ao céu."

Em Apocalipse e em 1 Co 15.24, o retorno de Cristo e os acontecimentos que o seguem imediatamente, se apresentam como o fim da soberania de Cristo. Depois da vitória final alcançada pelo Filho, este "entregará o reino a Deus o Pai", como disse o apóstolo (1 Co 15.24). De maneira concentrada e definitiva este ato final resume tudo o que se passou antes, logo, o que ocorre na fase atual da história da salvação, principalmente a vitória sobre Satanás e as "potestades".

Dissemos que a soberania de Cristo acaba com seu regresso. Esta afirmação necessita de uma ligeira correção no sentido de que, ao menos no Apocalipse, o reino de Cristo avança um pouco sobre o "século vindouro". Isto é o que surge da ideia de milénio,411 que só encontramos no Apocalipse, e que representa a Igreja tal qual será na época deste aconte-

H,'Cf. sobre o conjunto da questão: O. CULLMANN, Les premiares confessions de foi chrétiennes, 1943. Dieu et César, 1956, p. 97 ss.

117 Sobre esta questão, cf. o estudo recente de H. BIETENHARD, Das tausendjãhrige Reich, 2a ed., 1955.

Page 284: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

2% Oscar Cullmann

cimento final. Não cremos que, para o Apocalipse, este reino de mil anos tenha de identificar-se com todo o tempo da igreja compreendido entrega ascensão e z.parusia, como pensava St. Agostinho, seguindo ao donatista Ticônius. Trata-se de um reino escatológico, no sentido específico do termo, que não se realizará senão no futuro. É, por assim dizer, o último capítulo da soberania de Cristo que invade o século vindouro. Por conseguinte, não temos que identificar o milénio nem com a duração total da soberania de Cristo, nem com a Igreja tal qual é agora. A soberania de Cristo abarca algo a mais, pois, já começou e está ligada ao século presente, por tempo indeterminado. O milénio, por outro lado, do ponto de vista temporal pertence ao momento final desta soberania que começará com seu retorno para, então penetrar no éon futuro. Para o Apocalipse a soberania de Cristo não começará no seu regresso; iá é um fato desde a Páscoa e a Ascensão Com efeito no Apocalipse desde o princíbio lemos que o Cristo tem as chaves da morte e do lugar dos mortos (1 18i equeéorjríncÍDedosreisdatevrad 5 Mais adiante queelegoverrrt^ nações com vara de ferro (12 5' 19 5"l e que o seu nome é "Rei dos rei*;" e "Senhor dos senhores" (19 6)

O tempo da igreja coincide exatamente com o tempo da realeza de Cristo, no qual se encontra a mesma tensão entre o presente e o futuro, e assim como o avanço sobre o século vindouro. A igreja também tem um começo e um fim. Ela também tem por ponto de partida a morte e a ressurreição de Cristo. Certamente o Antigo Testamento já conhecia uma "igreja": o povo eleito de Deus, depois o "remanescente" de Israel que se converteu. Porém, este mera antecipação da igreja verdadeira. Pois esta não existe senão desde o momento em que o Espírito Santo foi dado àqueles que Lhe pertencem, isto é, desde a Páscoa e Pentecostes. O tempo da soberania de Cristo é, efetivamente, o tempo do Espírito Santo e este não pode começar senão depois da glorificação de Cristo (Jo 7.39). Em Mt 16.18 Jesus também refere-se ao futuro: "Eu construirei minha igreja (OÍKOÔOUT|CTG>)", isto é, depois de sua morte e ressurreição.

O fim da igreja coincidirá, também, com o fim da soberania de Cristo, a saber: com a parusia, ainda que penetre também um pouco no século vindouro. É assim que no ato final, Cristo será rodeado daqueles que sobre a terra formaram sua igreja: os após-

Page 285: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 297

tolos se sentarão sobre doze tronos (Mt 19.28) e reinarão com ele (Ap 5.10; 20.4; 2 Tm 2.12). Quanto aos "santos", isto é, todos os membros da igreja, eles julgarão as potestades angélicas (1 Co 6.2 s.). O milénio anunciado pelo Apocalipse será, por conseguinte, a igreja do fim dos tempos.

Quanto à tensão entre o "já" e o "ainda não", ela se dá com a presença do Espírito Santo que constitui a igreja. O Espírito Santo é então ele mesmo as primícias do fim (catapxTi Rm 8.23: àppapdw, 2 Co 1.22; 5.5; Ef 1.14).

Não obstante esta identidade fundamental quanto ao tempo, entre a soberania do Cristo e a igreja, existe entre elas uma diferença essencial ligada não ao tempo, mas ao espaço. O domínio sobre o qual se estende o senhorio do Cristo não coincide com o da Igreja; e esta diferença espacial nos permite distinguir a soberania de Cristo sobre o mundo de sua soberania sobre a igreja. Para bem compreender o caráter da K\)pióiri<; do Cristo, devemos elaborar com cuidado este ponto.

A extensão da soberania de Cristo suplanta infinitamente os limites da igreja. Nenhum elemento da criação lhe escapa: "Todo poder lhe foi dado no céu e sobre aterra" (Mt28.19); "toda criatura no céu e na terra e debaixo da terra confessa que Cristo é o Senhor" (Fl 2.10); "tudo o que está sobre a terra e nos céus" foi reconciliado por Jesus Cristo com Deus (Cl 1.14 ss.).

O senhorio presente de Cristo é exercido não só sobre o mundo visível como também sobre as potestades invisíveis, presentes por detrás dos dados empíricos e de maneira grandiosa e principalmente sobre as potestades invisíveis ocultas por detrás do Estado.

Costuma-se combater como mais ou menos "extravagante" a opinião que defendemos, com outros, segundo a qual para o Novo Testamento o Estado está vinculado às potestades invisíveis, aos èi^oocrícu de que fala Paulo. Seguimos, no entanto, crendo firmemente que em Rm 13.1 o termo è^owícu designa muito provavelmente duas coisas: a potestade empírica do Estado e as potências invisíveis ocultas por detrás dele. A crença do judaísmo tardio na existência de "anjos das nações" nos inclina, também, nesse sentido. Além disso, temos que sublinhar que

Page 286: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

298 Oscar CuUmann

a expressão è^oucvai jamais tem em Paulo outro sentido, e que - pensa; mos por exemplo nos "arcontes" de 1 Co 2.8 s. - a justaposição das potestades invisíveis e seus órgãos executivos terrestres se apresenta correntemente no Novo Testamento. (Cf. a este respeito nossa obra Dieu et César, p. 60 ss. 97-120). Para responder às objeções que também se posicionaram contra os argumentos desta última obra, gostaríamos de insistir no fato de que quando a cristandade primitiva remete ao Salmo 110, os è%0poí que aí são nomeados, isto é, os inimigos políticos de Israel - são entendidos regularmente como "autoridades" e "potestades" invisíveis. Remetemos igualmente ao relato da tentação em Lucas que R. Morgenthaler recentemente estudou sob este aspecto (Cf. "Roma -Sedes Satanae Rõnt. 13.1 jfim Lichte von Lk. 4.5-8" (ThZ, 12, 1956, p. 289 ss., Festgabef. Karl Barth, 2a parte).

O senhorio de Cristo há de estender-se a todos os âmbitos da criação. Se houvesse um só onde este senhorio fosse excluído não seria total e Cristo deixaria de ser o Kyrios. Por isso a esfera do Estado também, e ela principalmente, tem que estar incluída em sua soberania. A confissão de fé Kyrios Christos que se opõe ao Kyrios Kaisar, o prova e mostra quão central é esta ideia para a fé na soberania de Cristo.

Sobre um ponto, contudo, convém formular uma restrição: embora o senhorio de Cristo não conheça limites, seu domínio não coincide pura e simplesmente com a criação, como há de ser no fim dos tempos. No interior desta soberania total subsiste ainda uma potência que havendo sido, sem dúvida, vencida, não foi, todavia, aniquilada: A potestade da "carne", da "morte", que é o "último inimigo". O Espírito Santo, que já está operando, não pode ainda transformar os corpos terrestres em corpos "espirituais"; porém, o fará no futuro (Rm 8.11, 23; 1 Co 15.35 ss.).*18 Falar de "restrição" do senhorio de Cristo não significa, pois, que uma parte da criação Lhe fique excluída. Temos que entendê-lo de preferência da maneira seguinte: por um lado a "carne" e a "morte", embora vencidas, estão, todavia, ativas no interior do domínio submetido a Cristo; por outro, cada elemento da criação pode, aparentemente, escapar à submissão a Cristo e rejeitá-lo; assim o Estado pode tornar-se "demoníaco" e aparentar ter escapado a este senhorio.449

Cf. O. CULLMANN, Immortalité de Vâme ou réssurrection des morts?, 1956. Cf. O. CULLMANN, Dieu et César, 1956, p. 83 s.

Page 287: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOCÍÍA DO NOVO TESTAMENTO 299

Nas epístolas aos Efésios e aos Colossenses o senhorio de Cristo sobre a criação visível e invisível é representado pela imagem da tce(paXri, a cabeça: "Cristo é a cabeça de todo principado e de toda autoridade" (Cl 2.10). "Deus decidiu, quando se cumprirem os tempos, reunir todas as coisas em Cristo (= reunir sob uma só cabeça: àvaKE<paXaió)cao"9ai), as que estão nos céus como as que estão na terra" (Ef 1.10). Porém, ao mesmo tempo Cristo é apresentado nestas duas epístolas como "cabeça" da igreja (Cl 1.18; Ef 1.22), o que é importante para o problema das relações entre o senhorio de Cristo sobre a igreja e seu senhorio sobre o mundo. Cristo reina sobre a criação inteira, porém, reina também sobre esta pequena igreja terrena.

Depois de havermos constatado a diferença espacial que existe entre os dois domínios da soberania de Cristo, temos de achar o elo que os une a este respeito. Seria erro afirmar simplesmente que Cristo é o chefe da igreja porque ela forma parte da criação representando, assim, um fragmento do universo sobre o qual se estende o Seu senhorio. A importância da igreja para o senhorio total de Cristo é muito maior; pois, do ponto de vista do espaço, ela é o centro apartir do qual Cristo exerce sua realeza invisível sobre o mundo. Em Christ et le temps,450 tentamos representar graficamente esta relação pela imagem de dois círculos concêntricos: o círculo interior representa a igreja, o exterior a totalidade do domínio sobre o qual Jesus Cristo exerce sua soberania.

O Novo Testamento expressa a posição central que a igreja ocupa no senhorio de Cristo denominando a igreja "corpo de Cristo". A igreja é o corpo terreno do Cristo ressuscitado, que desde a ascensão está sentado à destra de Deus, na plenitude da glória do Pai. Porém, ao mesmo tempo, este Cristo também se chama "cabeça" (KetpocJtT)) de toda a criação e "cabeça" da igreja. Disso resulta uma certa incoerência na comparação, pois ele é ao mesmo tempo cabeça e corpo para a igreja, e por outro lado, como está dito em Ef 4.15, o corpo cresce para aquele que é a cabeça. Porém,

2a ed., 1957, p. 134.

Page 288: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

300 Oscar Cullmann

esta incoerência aparente caracteriza, justamente, a relação particular que existe entre a igreja e o senhorio de Cristo: por um lado, a igreja é parte do domínio total submetido a seu senhorio, domínio do qual ele é a cabeça; por outro, Jesus Cristo está presente neste domínio limitado da igreja de uma maneira particular, diferente que no resto do mundo que lhe está sujeito. Este fato situa a igreja em uma tensão muito especial, no sentido de que, por um lado, é o corpo de Cristo, isto é, o que de mais elevado possa haver sobre a terra, e por outro, ela está submetida a Cristo, seu chefe, como todas as demais partes da criação compreendidas pelo seu império.

A fim de captar melhor as relações entre estes dois domínios, dos quais Cristo é a KE(paAr\, é preciso falar ainda de uma outra diferença. Esta concerne aos membros da igreja, no que se refere a tudo quanto está, por outro lado, submetido a Cristo: os membros da igreja conhecem este senhorio enquanto o restante pertence a este senhorio sem ter disso consciência. Se dentro da criação, sobre a qual todo o poder lhe foi dado, Cristo escolheu justamente por centro este espaço estreitamente limitado que é a igreja, esta extrema concentração também há de ter um sentido para seu senhorio total. Ter um senhor significa sempre duas coisas: estar submetido e também, não obstante, ter parte no senhorio. Tocamos aqui na diferença mais importante entre o senhorio de Cristo sobre o Universo e seu senhorio sobre a igreja. Vimos que todas as criaturas no céu, na terra e debaixo da terra, formam parte da esfera sobre a qual Cristo é o Senhor; por conseguinte também todas as autoridades e todas as potestades invisíveis, com seus órgãos executivos, tais como os estados terrenos. Elas estão totalmente incorporadas ao seu senhorio; e assim se compreende porque mesmo aqueles que confessam o senhorio de Cristo devem-lhes obediência (Rm 13.1 ss.).

Contudo, todas estas potestades exteriores à igreja não são membros do senhorio de Cristo senão de um modo muito indireto; pois, não conhecem necessariamente o papel que lhes é destinado no interior deste senhorio. Quando Paulo, e antes dele Jesus, falou sobre a submissão ao imperador e ao Estado, se referia ao Estado

Page 289: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 301

pagão que não conhece a Cristo e seu reino, nem a Deus o Pai de Jesus Cristo. Um Estado pagão, tal qual o império romano, pode, pois, também cumprir, dentro do senhorio de Cristo, a missão que Deus lhe destinou sempre que se limite a sua função de Estado e que permita, assim, à igreja, que ocupa neste senhorio lugar tão importante, "levar uma vida pacífica e tranquila" (1 Tm 2.2). Assim um Estado pagão pode plenamente desempenhar seu papel e ocupar seu lugar dentro deste senhorio sem saber que faz parte dele.

Por isso, segundo o Novo Testamento, a resistência cristã a um Estado nunca pode justificar-se pelo mero fato desse Estado ser pagão. Uma resistência não é legítima salvo quando o Estado, saindo do seu papel, se autodeifica, isto é, quando tenta ultrapassar os limites que o Senhor lhe destina.451

Como o único que conhece esta subordinação do Estado ao senhorio de Cristo é o cristão, para este o Estado tem - o que pode parecer paradoxal - uma importância maior do que para qualquer outro cidadão. Porém, se por outro lado o Estado ultrapassa seus poderes, o cristão é o que mais é afetado, em comparação aos não-cristãos que, talvez, tenham suas dúvidas a respeito. Pois, neste caso, o cristão vê o Estado desfazer-se do senhorio de Cristo. Vê a potência demoníaca safar-se de seus laços e surgir "a besta".

A diferença fundamental entre os membros do senhorio de Cristo, tomados em conjunto, e os membros da igreja reside, pois, em que unicamente os membros da igreja sabem que estão sujeitos ao Senhor universal. Os membros da igreja pertencem, pois, conscientemente ao reino do Kyrios, enquanto que os demais pertencem da mesma maneira, porém, inconscientemente. Assim, do ponto de vista teológico esta pequena comunidade pode ser o centro do senhorio total de Cristo sobre o universo, sobre as potências visíveis e invisíveis. A desproporção aparente entre este pequeno grupo de homens e sua enorme importância para o mundo inteiro,

Cf. O. CULLMANN, Dieu et César, 1956, em part. p. 62 ss.

Page 290: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

302 Oscar Cullmann

é explicado pelo princípio de substituição, que se encontra - j á o temos visto - em toda a história da salvação.452

Os membros da igreja conhecem não somente a situação dos membros inconscientes do senhorio de Cristo: sabem, também, e principalmente, que missão cabe àqueles que confessam o senhorio de Cristo. Por isto, no ato final de sua soberania (Cf. Ap 20.1 ss.), os membros conscientes tomarão parte no juízo feito sobre os membros inconscientes do senhorio de Cristo (1 Co 6.3); reinarão com Cristo como se disse em 2 Tm 2.12: crvju.(JaciÀ£Í>o~o"i>criv. Agora, recordemos que este ato final não faz senão recapitular o que caracteriza o senhorio presente do Cristo. Temos, pois, que tomar desde agora e ao pé da letra, o que Paulo disse em 1 Co 4.8 acerca do "reino" dos cristãos, e o que lemos em Ap 1.6: formamos, desde já, uma PocaiXeícc, um reino.

Porém, em especial, temos que relevar também o outro aspecto deste "reino"45-1, o que supõe esta alta missão: cada qual deve ter consciência de ser escravo, servo, do "Senhor" Jesus Cristo (2 Co 4.5). Conhecer o senhorio de Cristo é, também, ter consciência do domínio total e absoluto do "Senhor" sobre nossa pessoa. Cristo não é somente o Senhor do mundo, o senhor da igreja: é também o meu Senhor. Experimentado e reconhecido como Senhor da igreja é também Senhor de cada um dos que a compõem.

* * #

Este último aspecto é o que se põe particularmente em relevo no Evangelho de João, ao qual consagraremos um parágrafo especial, embora sua concepção acerca doKyrios não seja, basicamente, diferente da do resto do Novo Testamento: encontraremos de novo, no Evangelho de João, tudo o que temos dito até aqui a respeito da fé dos primeiros cristãos no Kyrios, particularmente

Cf. acima, p. 79 s. W. FÕRSTER, op. cit., diferentemente do que se expõe aqui, considera este aspecto como primordial.

Page 291: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 303

tal qual a expressa o apóstolo Paulo. Convém tão-somente ressaltarmos os aspectos que lhe são característicos. No final deste Evangelho encontramos na boca de Tomé esta confissão que é, por assim dizer, a culminação suprema: ó KÚpióç uo> tcai ó 0eóç uou, "meu Senhor e meu Deus" (Jo 20.28). Tomé, que depois de ter duvidado chega à convicção expressa nesta confissão, é também o último que, segundo o quarto Evangelho, viu corporalmente ao ressuscitado. As palavras que Jesus lhe dirige então: "Porque me vistes, crestes? Bem-aventurados os que não viram e creram", deverão, pois, ser consideradas ao mesmo tempo como uma exortação aos futuros leitores a crerem neste Kyrios, especialmente se lembrarmos que a história de Tomé se encontra no fim do Evangelho, já que o capítulo 21 éum acréscimo posterior. A confissão de Tomé é, pois, a coroação do Evangelho.454

Porém, a propósito desta confissão, temos que assinalar, muito particularmente, o emprego do genitivo \LOX>. No Evangelho de João o senhorio de Cristo parece ser compreendido mais particularmente sob o ângulo da relação individualentre o Cristo glorificado e cada um dos seus. Pensa-se também na palavra de Maria Madalena: "Levaram meu Senhor" (Jo 20.13).

À parte estas passagens há outras em que o vocativo ícòpie serve para apostrofar a Jesus: porém, igual aos sinópticos, trata-se simplesmente de uma fórmula de cortesia, sem alcance teológico particular.

Encontramos, não obstante, outras passagens que, sem empregar o termo KÚpioç, afirmam que o Cristo, desde sua ressurreição, exerce um reino soberano. Tal é, em particular, o tema dos "discursos de despedida". Depois de haver deixado a terra e subido ao céu, Jesus não deixara a terra órfã. Pelo contrário - e esta é a ideia principal destes discursos - sua ação na terra será mais eficaz ainda do que durante o tempo de sua encarnação. Em Jo 14.12 Jesus prediz

J?4 Também a importância do título Kyrios para o Evangelho de João nos parece ser muito maior que a que admite, por exemplo, R. BULTMANN, Theologie cies Neuen Testaments, 1953, p. 383, que sublinha que é unicamente no relato da Páscoa que este título é empregado. Porém, isto se deve, sem dúvida, ao fato de que para o quarto evangelista também, Jesus não se tornou Kyrios senão depois de sua ressurreição.

Page 292: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

304 Oscar Cullmwm

que aqueles que crêem nele realizarão obras maiores que aquelas que ele mesmo realizou durante sua encarnação, dando a seguinte razão: "pois vou ao Pai". Isto quer dizer que Cristo atuará, doravante, por intermédio daqueles que creram nele e que esta ação será mais potente ainda do que durante seu ministério terrestre. Estas palavras: "Vou para o Pai" significam pois: "Todo poder me foi dado pelo Pai". Ainda que este Evangelho não se valha destes termos, é claro que o pensamento da soberania cósmica do Ressuscitado não está ausente, muito pelo contrário.

* * *

Depois de tudo quanto foi dito até aqui, se reconhecerá a enorme importância do título Kyrios e do lugar central que ocupa no pensamento teológico dos primeiros cristãos. Não se trata, é certo, de uma noção que, como a de Filho do Homem ou a de Ebed Iahweh, remonte ao próprio Jesus. Antes, temos aqui uma explicação da obra e da pessoa de Jesus que supõe a fé em sua ressurreição.

Ela baseia-se inteiramente em dois elementos essenciais da história da salvação: primeiro, sobre a certeza de que Jesus ressuscitou e, logo em seguida, sobre a convicção que a história da salvação não foi interrompida porque o acontecimento decisivo da ressurreição já foi efetuado embora a manifestação escatológica da vitória de Cristo esteja ainda por vir. Em outros termos, não há uma espécie de "hiato cristológico" entre a ressurreição de Cristo e aparusia. Qualquer que seja a duração deste período intermediário, a função mediadora de Cristo não está interrompida, ela continua.

Este lapso intermediário é algo totalmente novo no tocante ao plano da salvação tal qual os judeus concebiam. Não representa, como afirmam sem cessar os partidários da "escatologia consequente", uma solução de improviso; antes, pertence organicamente ao pensamento do cristianismo primitivo no qual ocupa, inclusive, como já dissemos, um lugar central. Concorda, assim, perfei-

Page 293: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 305

tamente, com a maneira em que Jesus concebia o plano da salvação, já que nele também encontramos a tensão entre o "já" realizado e o "ainda não" de sua manifestação.455 De fato, depois de tudo quanto destacamos, temos de afirmar que, precisamente a incorporação deste período intermediário é o que caracteriza essencialmente a concepção cristã neotestamentária acerca da salvação. Daí a importância da fé no Kyrios Christos. Se as cristologias dogmáticas clássicas do protestantismo não concedem a esta idéia o lugar que lhe corresponde, deve-se a que a teologia protestante não tem reconhecido plenamente a importância deste período intermediário para a compreensão do pensamento do Novo Testamento.456

4. "KYRIOS CHRISTOS" E A DIVINDADE DE CRISTO

Falta-nos ainda falar de um último e importante aspecto da idéia de Kyrios, aspecto que adquire, ademais, importância para a quarta e última parte deste livro, onde falaremos dos títulos relativos à preexistência de Jesus. Até aqui nos temos ocupado principalmente dafunção do Kyrios Ièsous. Porém, a obra e a pessoa de Jesus são sempre inseparáveis. A convicção de que Deus, com o título Kyrios, lhe deu sua própria soberania, tem um alcance imenso para a compreensão da pessoa de Jesus, ainda que fique entendido que a fé nafunção senhorial do Cristo a preceda.

Por exemplo, todas as passagens do Antigo Testamento que falam de Deus podem, em princípio, de agora em diante, ser aplicadas a Jesus. Isto sem dúvida não diz respeito às palavras pronunciadas pelo próprio Jesus; quando cita o Antigo Testamento a palavra Kyrios se refere a Deus. Porém, nas Epístolas, a aplicação a Jesus das passagens do Antigo Testamento referentes a Deus é

!í W. G. KUMMELL o demostrou bem era seu livro Verheissutig und Erfiilluitg, AThANT2Teú,, 1953.

!Í Por outro lado, não se deve dar a este período intermediário um valor absoluto, como o faz a teologia católica. Cf., a este respeito, O. CULLMANN, La tradinon, 1954.

Page 294: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

306 Oscar Culbnaim

muito comum. Temos visto que a tradução grega do Antigo Testamento, chamada Septuaginta, transcreve o nome de Iahweh por Kyrios. Um olhar lançado ao uso deste termo em uma concordância grega mostra que, com frequência, o Novo Testamento aplica a Jesus, sem mais, passagens onde no Antigo Testamento esta palavra refere-se a Deus. É por exemplo o caso de Is 44.23, passagem citada no hino de Fl 2.10 s. que fala das criaturas que dobram seus joelhos e confessam a soberania do Kyrios Jesus.

O exemplo mais surpreendente se encontra em Hebreus 1.10. Trata-se de uma citação do SI 102.25 ss.: "Em tempos remotos, lançaste os fundamentos da terra; e os céus são obra das tuas mãos". O texto bíblico fala aqui manifestamente de Deus, o Pai, o Criador. Porém, o autor da Epístola aos Hebreus, aplicando a Jesus o nome de Kyrios, não vacila em apostrofá-lo com as palavras do Salmo 102 e fazer assim dele o criador do céu e da terra. O v. 8 diz expressamente que esta citação - assim como a citação precedente do SI 45.7 s., onde irrompe inclusive o termo Geóç457 - se refere ao Filho.

Ao nosso modo de ver, não se concede suficiente atenção a este texto ao tratar-se a cristologia do Novo Testamento. Em geral, deveríamos, por outro lado, levar mais em consideração o fato de que os primeiros cristãos, depois da morte de Jesus, lhe transferiram, sem rodeios, o que o Antigo Testamento diz acerca de Deus.458

Isto prova que eles deram toda amplitude à ideia da soberania presente do Cristo. O que diz Fl 2.9 s., de haver Deus "mais que elevado" a Cristo, dando-lhe seu próprio nome e transferindo-lhe todo seu poder, deve ter sido admitido e confessado por toda a igreja primitiva.

Voltaremos a esta citação quando falarmos do título Oeóç atribuído a Jesus. V. abaixo, p. 404 s. W. FÒRSTER, Herrist Jesus, 1924, p. 173, argumenta aqui de uma maneira singular, para diminuir a importância deste fato. Do modo ingénuo, irrefletido, em que o Novo Testamento opera esta transposição, ele conclui que carece de importância. Para justificar sua exegese observa que unicamente 1 Pe 3.15 agrega a explicação: "a saber, Cristo". Porém, é justamente a conclusão oposta que tinha de tirar disso: a maneira tão natural com que é feita esta transposição prova que a convicção da unidade entre Deus e Cristo, fundada sobre a dignidade do Kyrios, estava profundamente enraizada na consciência dos escritores do Novo Testamento.

Page 295: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 307

A fé na "divindade" de Cristo - expressão empregada pela dogmática posterior - tem sua origem na crença da \>7cep\)\ra)oiO" de que fala Fl 2.9. Mesmo que Cristo tenha sido desde o princípio èv jj,op(pfi Qtox>, só com esta glorificação chega a ser igual a Deus. Veremos que isto se dá por entendido também em Rm 1.4, isto é, em um texto que reproduz sem dúvida uma antiga confissão de fé. Segundo esta passagem Cristo é, certamente, o filho de Deus desde o começo; porém, "desde sua ressurreição" é^ àvaotâoecoç, é uíòç XOTJ 9eoí> èv âvvá/iei, expressão, fora de dúvida, sinónima de Kyrios. Doravante é o Filho de Deus èv 5i)váu,xi.

Temos que formular a questão acerca da "divindade" de cristo no Novo Testamento, tomando como ponto de partida o título Kyrios e o senhorio universal e absoluto que supõe. É a única maneira, de foímulá-la. em tecmos bíblicos; pois, utitizar o esquema das "duas naturezas" é pensar em categorias gregas. É inegável que o Novo Testamento presume a divindade de Cristo; porém, o faz sempre em relação ao senhorio que exerce a partir de sua glorificação: trata-se de sua função, antes que de seu ser.

Incontestavelmente, segundo a fé cristã primitiva, este Kyrios também é preexistente. Pois se Cristo é um com Deus desde sua ressurreição é necessário que desde o princípio tenha estado unido a ele. É à luz da soberania presente do Cristo Kyrios e, portanto, de sua função na história da salvação, que se deve compreender a fé da igreja nascente na preexistência de Jesus, na existência do Logos com Deus desde o princípio. É assim, por exemplo, que na confissão de fé binária utilizada por Paulo em 1 Co 8.6, não se menciona a atividade do Jesus preexistente, mediador da criação, senão em função do título Kyrios: "... um só Kyrios, Jesus Cristo por quem todas as coisas são e por quem nós somos." Porque Cristo é hoje para nós o único Kyrios, o Senhor que reina sobre todas as coisas, é preciso que ele tenha já estado, no princípio, em relação com todas as coisas (Ap 3.14) e ele esteve, segundo nosso texto e Jo 1.1 e Cl 1.16, como o mediador da criação. Se quisermos verdadeiramente captar o sentido profundo da cristologia do Novo Testamento, devemos pensar

Page 296: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

308 Oscar Cullmaiin

sempre no lugar central que tem na vida da igreja a certeza triunfante de que Cristo já reina e que, desde sua glorificação, é o único Senhor e único Rei.

Se quisermos compreender a génese e o desenvolvimento do pensamento cristológico temos que partir do título Kyrios como de um centro a partir do qual se situarão as demais funções de Jesus no conjunto da cristologia. Recordemos que dito título já está no centro das primeiras confissões de fé.4ííl

Com isso não pretendemos dizer, de nenhuma maneira, que a cristologiado/^/mr tenha sido, do ponto de vista cronológico, a primeira explicação da pessoa e obra de Jesus. Quase todas as respostas cristológicas que temos examinado rios capítulos precedentes são, de fato, mais antigas. Porém, a partir da cristologia do Kyrios é que se tem empreendido a síntese em que todos os aspectos associados aos títulos cristológicos encontram seu lugar, conforme o papel que têm na história da salvação. Nisto reside a importância suprema da concepção de Kyrios: é a única que torna possível o que podemos chamar de cristologia do Novo Testamento. Poderíamos dizer, talvez, para voltar à imagem paulina de TcetpcAfi, queé tão importante neste capítulo, que o título tcíipioçé, em relação aos demais títulos cristológicos o que a K£<P«XTI é para os demais membros do corpo o que os situa e ordena a todos, sem desqualificar a nenhum.460

A fim de evitar algum mal entendido, teremos de insistir em que ao falarmos do "lugar central" ocupado pela ideia de Kyrios, temos em vista a génese desta síntese cristológica na vida e no pensamento dos primeiros cristãos. Porém, é claro que o centro cronológico no interior desta síntese é a morte e a ressurreição de Cristo.

A atribuição a Jesus do título Kyrios tem outra conseqviência a mais: que todos os títulos dados a Deus - à exceção do nome de

Ai<> Com razão, pois, o Símbolo dos Apóstolos, em seu segundo artigo agrega o título de Kyrios a "Jesus Cristo, seu único filho", e fala do Cristo "sentado à destra de Deus".

460Tem razão E. STAUFFER quando escreve em seu Die Theologie des Neuen Testaments, 1941, p. 94: "De todos os títulos cristológicos odeKyríos é o mais rico pelas relações que gera. Sua história é um compêndio, ao mesmo tempo que uma repetitorium, da cristologia neotestamentária. Pois percorre sucessivamente toda a gama dos títulos cristológicos e desdobra, ante nossos olhos, o caminho que leva da dignidade doutoral e da realeza de Jesus Cristo à sua dignidade divina.7'

Page 297: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRAÍ>TOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 309

"Pai" - podiam, doravante, ser conferidos a Jesus. Se, de acordo com a fé primitiva, o nome "que é sobre todo nome", isto é, o nome mesmo de Deus: "Senhor", Adonai, Kyrios, foi dado a Jesus desde a sua glorificação, a transferência de atributos divinos tor-nou-se ilimitada. Em virtude disso poderíamos, já aqui, junto com o título Kyrios, estudar a aplicação a Jesus do termo "Deus", 6eóç, que aparece no cristianismo primitivo: pois ele não representa de forma alguma, como seríamos tentados a crer, um grau mais elevado que o nome insuperável Kyrios.461 Porém, como esta atribuição subentende o problema da relação entre o Pai e o Filho e ao mesmo tempo o da preexistência, o estudaremos na última parte deste livro, a propósito dos títulos que concernem, antes de tudo, à obra do Cristo preexistente.462

Já nos ocupamos de outro atributo de Deus transferido a Jesus: o de juiz do Juízo final.463 Ademais, todas as funções de Deus, inclusive a de Criador, lhe foram atribuídas.

Porém, tratando-se aqui da obra do Senhor presente, nos resta examinar o título de "Salvador", Sotér.

461 Segundo H. COIVZELMANN, op. cit., p. 146 ss., Lucas diminui o alcance teológi-codestft título. Cf. abaixo, p. 408, ivota655.

v'1 Cf. abaixo, p. 399 ss. 4W Cf. acima, p. 207 s.

Page 298: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CAPÍTULO II

JESUS O SALVADOR (CFtOTlíp)

Quando pensamos no papel que tem no vocabulário de todas as igrejas cristãs o título "Salvador", tão comum e tão popular, particularmente nos meios pietistas, nos surpreendemos principalmente por não ter sido este um dos títulos essenciais de Jesus desde a origem. Nos escritos cristãos mais antigos, salvo uma única passagem da Epístola aos Filipenses, ele não aparece. Aparece relativamente tarde; encontra-se esporadicamente no Evangelho de Lucas e de João; torna-se mais frequente nas Epístolas Pastorais na Segunda Epístola de Pedro e nas epístolas de Inácio. Ten-tou-se explicar a raridade do título Sotér invocando-se o fato de ser o mesmo muito difundido nos meios pagãos do mundo helenístico, o que fez com que seu uso se tornasse suspeito para os cristãos.464 Porém, a mesma coisa poderia ser afirmada, e com maior razão, a respeito do título Kyrios; no entanto, isso não foi obstáculo para que bem cedo chegasse a ser, para o cristianismo primitivo, a principal expressão de sua fé em Cristo. A aparição tardia do título "Salvador", nos parece devida justamente ao papel eminente que desempenhou o de Kyrios: por um lado, a fé no Senhor glorificado permitiu conferir a Jesus o título "Salvador", que o Antigo Testamento atribuiu a Deus, por outro, o nome de Kyrios, que é "sobre todo nome", havia de relegar à sombra, ou atrair a sua órbita todos os outros títulos orientados no mesmo sentido.

Cf. V. TAYLOR, The Names of Jesus, 1953, p. 109.

Page 299: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

312 Oscar Culhnatm

Por conseguinte, não é surpreendente que Sotér seja empregado, amiúde, no Novo Testamento como mero complemento de Kyrios (F13.20; 2Pe 1.1,11; 2.20; 3.2, 18).

Por outro lado, um outro fato deve nos chocar: as Epístolas Pastorais, onde Jesus é mais frequentemente chamado Sotér dão geralmente, e frequentemente na mesma passagem, o título de Salvador, Sotér, a Deus. Isto nos faz supor que tal intttulação cristo-lógica seja um título divino do Antigo Testamento transferido a Jesus, e isto confirmaria que o título "Salvador", como todos os títulos divinos, foi atribuído a Jesus por Eleja haver sido confessado como Kyrios. Sem pretender minimizar a influência do emprego helenístico de Sotér em seu sentido cristão, parece-nos, contudo, indicado falar do título Sotér no judaísmo antes de estudar sua significação no helenismo.

1. O TÍTULO "SOTÉR" NO JUDAÍSMO E NO HELENISMO

No Antigo Testamento Deus é chamado "Salvador". As palavras hebraicas PST., STtthQ e illílUT\ que provêm todas da mesma raiz, são traduzidas por Gcycfjp na LXX.465 Os Salmos4ÉSe os livros de Isaías467 são os que mais reiteram este título; porém, aparece também em outros escritos podendo ser seguido por toda a literatura do Antigo Testamento468 e do Judaísmo.4*59

Temos que considerar sua aplicação a Deus como primitiva. Acontece que este título também é recebido, na verdade, por certos homens de Deus que salvaram, salvam ou salvarão o povo em Seu nome e por Sua ordem. Assim, no passado, Moisés "salvou" a seu povo; e posteriormente outros chefes de Israel foram chama-

A<" Na literatura apócrifa erabínica posterior ao Antigo Testamento, às vezes se emprega ^X/U no mesmo sentido; porém, se aplica mais ao Messias.

j«Por ex SI 24.5; 27.1; 34.3; 61.3, 7; 64.6; 78.9. **7Is 12.2; 17.10; 43.3, II; 45.15, 21; 60.16; 62.11; 63.8. 468 Cf. Jr 14.8; Mq 7.7; He 3.18; I Sm 10.19; Dt 32.15. '"'Cf. I Mac 4.30; Sab. 16.7; Eclo. 51.1; Baruque4.22; Judite 9.11.

Page 300: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 313

dos "salvadores".470 Conforme este uso, o Messias também é considerado como o "Salvador que virá" para livrar definitivamente a seu povo.471 Esta intitulação corresponde perfeitamente à função que o Messias tem de realizar; e é curioso que não seja chamado "Salvador"472 com maior frequência.

* * *

Enquanto que no Antigo Testamento e no judaísmo em geral, o Sotér é essencialmente o libertador do povo, este título assume no helenismo outro sentido.473 Neste caso são deuses, mas também heróis, e mais tarde príncipes, que são chamados "salvadores", dado que libertam ao povo de toda sorte de males físicos e de enfermidades, que os salvam de perigos tais como naufrágios, horrores da guerra e incertezas da existência.

P. Wendland reuniu os textos essenciais relativos a este tema.474

É assim que Asclépio, por exemplo, é o "Salvador" que traz a cura da enfermidade.475 Aqui a ideia de "Salvação" se relaciona à da "Providência", da Ttpóvoía. Porém, ocotrjp é principalmente um dos títulos mais correntes para designar ao soberano divinizado;

4™Por ex. Otoniel e Eúde: Jz 3.9, 15; Cf. também 2 Rs 13.5; Ne 9.27. 471 Is 19.20. 472Deve-se isto ao fato de se sentir que o título "Salvador" está reservado a Deus? ""' Sobre o problema formulado pela concepção do Sotér na história das religiões, cf.

os dois volumes de W. STAERK, Sôter, Die biblische Erlõsererwartung ais religionsgeschicbdiches Problem, I (1933), II (1938).

474 P. WENDLAND, XÍOTTIp (ZNTW, 1904, p. 335 ss.). - Cf. também a este rspeito a W. WAGNER, "ÚberotiiÇeivund seineDerivateim NT" (ZNTW, 1905, p.205 ss.); H. LIETZMANN, Der Weltheiland, 1909; W. BOUSSET, Kyrios Christos, 2a ed., 1921, p. 240 ss.; art. acotfip em PAULY-WISSOWA, Realenc. (2. R., vol. V), 1927, col. 1211 ss. (DORNSEIFF); E. B. ALLO, "Les dieux sauveurs du paganisme gréco-romain" (RSPTh, 1926, p. 5 ss.); DIBELIUS-CONZELMANN, "Die Pastoralbriefe" (Hdb. z. NT), 3a ed., 1955, excursus sobre 2 Tm 1.10.

475 K. H. RENGSTORF, "Die Anfã*nge der Auseinandersetzung zwisclien Chrismsglaube und Asklepiosfrõmmigkeit" (Schriften der Gesellschatt z. Fõrderung der westfàUsclien Laiidesuniversitát zit Miinster, n° 30), 1953, tem a mesma opinião de que o emprego cristológico do título Sotér se deve a um protesto dos cristãos contra a atribuição corrente deste título a Asclépio.

Page 301: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

314 Oscar Cullmann

representa, pois, para o culto ao imperador uma espécie de variante do título Kyrios. O soberano é Sotér na medida em que traz a ordem e a paz.476 Podemos lembrar, a este propósito, a famosa Quarta Égloga de Virgílio.

A noção de Sotér assume outros aspectos nos cultos de mistério. Aqui a divindade salva do poder da morte e da matéria; confere a imortalidade. Para as religiões de mistério este título Sotér tem a importância fundamental que se tem afirmado?477

A questão está aberta à discussão.478 É impossível afirmar com certeza, então, que isso tenha influenciado o emprego cristão do título Sotér.479 Se existe uma relação entre o emprego pagão do título Sotér e sua aplicação a Jesus, temos que pensar, primeiramente, em seu uso no culto ao soberano.

2. JESUS, O SALVADOR, NO CRISTIANISMO PRIMITIVO

Poderia, à primeira vista, alguém sentir-se tentado a fazer derivar unicamente do helenismo a aplicação a Jesus do títuloSotér, já que, segundo temos visto, este título aparece pela primeira vez, quase exclusivamente, nos escritos cristãos nascidos nos meios helenísticos.480 Seu emprego no paganismo pode, com efeito, ter favorecido sua utilização cristã por um desenvolvimento paralelo

Cf. A. DEISSMANN, Licht vom Osten, 4a ed., 1923, p. 311 s.; W. OTTO, "Augustas Soter" (Hermes, 1910, p. 448 ss.); E. LOHMEYER, Christuskult und Kaiserkult, 1919, p. 27 ss. G. ANRICH, Das antike Mysterienwesen in seinem Einfluss auf das Cliristentum, 1894, p. 47 ss.;G. WOBBERM1N, ReUgionsgeschichtliche Studien, 1896, p. 105 ss. Cf. P. WENDLAND, op. eh., p. 353. - Cf. também os trechos relativos a esta questão na excelente obra de K. PRUMM, Religionsgeschichtliches Handbuchfiir den Raum der altchristlichen Uinwelt, Hellenistisch-rõmische Geistesstrõmtingen und Kultur mit Beachtung des Eigenlebens der Provinzen, 1943, p. 339, n. 1. ANRICH, WOBBERMIN, BOUSSETeF. J. DÓLGER (Ichthys, I, 1910, p. 407 ss.) crêem que devem admitir semelhante influência. Tese contrária: P. WENDLAND, op. cit., p. 353 eE. MEYER, Ursprung undAnfãnge des Christentumss,II, ,923, p. 339 1ss Este argumento foi apresentado porL. KÕHLER. "Christus im Altenundim Neuen Testament". TltZ, 9, 1953, p. 42 s., que defende uma origem puramente helenística deste termo quando aparece no Novo Testamento.

Page 302: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 315

ao assinalado a propósito do título Kyrios Iesous Christos. Porém, assim como o nome Kyrios aplicado a Jesus se originou no judaísmo, o título de Sotér deriva mais do Antigo Testamento e do judaísmo que do helenismo. Os primeiros textos cristãos que chamam a Jesus "Salvador", por tardios que sejam, não denotam influência alguma da concepção helenística de Sotér. Bultmann mesmo admite aqui uma influência bíblica e uma influência helenística.481

Porém, a influência helenística nos parece, neste caso, concernir mais à forma que ao conteúdo.

Com efeito, quase todas as passagens em que Jesus é chamado "Salvador" contêm exclusivamente temas cristãos. O que não quer dizer, no entanto, como parece crer Harnack, que esta designação seja consequência das curas operadas por Jesus.'182 É verdade que o sentido restrito de "curai*", por CÓIÇEIv, é, amiúde, encontrato nos textos; porém, nenhuma das passagens em que Jesus é denominado Sotér, contém a menor alusão às curas realizadas por ele.

Durante sua vida Jesus nunca foi chamado Sotér por ninguém, nem se chamou a si mesmo assim; e inclusive na época em que este nome lhe foi ocasionalmente conferido, não se relacionava só a uma das funções de sua obra terrena, mas a toda a sua obra, vista além disso, à luz de sua ressurreição e de sua glorificação. Como o de Kyrios, o título Sotér pressupõe toda a obra de Jesus realizada e sancionada por sua Ascensão.

Já ficou indicado que se chama a Jesus Sotér sobretudo nos escritos que dão o mesmo nome a Deus, acima de tudo nas Epístolas Pastorais, onde Deus é chamado, preferentemente, o "Salvador" (1 Tm 1.1; 2.3; 4.10; Tito 1.3; 2.10; 3.4), mas também no

R. BULTMANN, Theologie des Neuen Testaments, 1953, p. 79. - No que concerne ao judaísmo tardio, H. GRESSMANN, Der Messias, 1929, p. 370, admite que em 4 Esdras 13, o Sotér judaico e o Sotò'helenístico estão associados. Não se compreende bem por que então se nega a admitir análoga associação no cristianismo. A. HARNACK, Die Mission und Ausbreitung des Christentums in den ersten drei Jahrhunderten, I,5oed., 1915, p. 115 55. (tese recusada também porP. WENDLAND, op. cit., p.336). A tese de HARNACK é atualizada por K. H. RENGSTORF, op. cit. (cf. acima, p. 313, nota 475).

Page 303: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

316 Oscar Culhnaiin

Evangelho de Lucas, onde o Magnificai (Lc 1.47) chama a Deus "Salvador", ao estilo do Antigo Testamento onde, por outro lado, o relato de Natal anuncia: "hoje vos nasceu, na cidade de Davi, o Salvador, que é o Cristo, o Senhor" (Lc 2.11).

E a Epístola de Judas dirige a doxologia final (v. 25) "ao único Deus, nosso salvador, por Jesus Cristo nosso senhor". Não é, então, surpreendente que a segunda Epístola de Pedro, tão estreitamente relacionada com a de Judas, empregue naturalmente a expressão owtfip 'Inaoíiç Xpicrcóç associada a KÚpioç, como em Lucas 2.1l.483 O que vem confirmar a ideia de que a elevação de Cristo à soberania divina exerceu influência decisiva no emprego deste título cristológico. É, pois, permitido considerar como fonte secundária o uso deste título no culto ao imperador.

Trata-se, pois, principalmente da transferência a Jesus de um atributo que o Antigo Testamento reserva a Deus. Jesus é o Sotér porque salvará a seu povo do pecado. Assim explica Mt 1.21 o nome "Jesus". Efetivamente, este nome próprio é uma das formas hebraicas de "Salvador", referido a Deus pelo Antigo Testamento. Por isso, ao menos ali onde se deve pressupor um conhecimento do hebraico, temos que levar em consideração a significação do nome "Jesus" para explicar a origem do título ooixrip 'InaoOç. "Jesus", com efeito, não significa outra coisa que CCÚTTP, salvador. Entretanto, o autor do Evangelho de Mateus seguramente não era o único a sabê-lo.

Porém, o vínculo com o Antigo Testamento aparece primordialmente na afirmação de que Jesus veio salvar ao povo do pecado e da morte. A despeito de analogias terminológicas com o culto ao imperador e em particular com sua "epifania",484 é esta ideia do Antigo Testamento que se reflete nas declarações relativas à aparição do "Salvador" Jesus Cristo quando do seu nascimento (Lc 2.11), à "epifania de nosso Salvador Jesus Cristo que destruiu a morte"

Cf. acima, p. 31 11 Cf. também, a este respeito, DIBELIUS - CONZELMANN, Die Pastoralbriefe, 3a ed., 1955, p. 78.

Page 304: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 317

(2 Tm 1.10), e à sua epifania gloriosa futura (Tito 2.13). Após haver evocado esta epifania do fim dos tempos, esta última passagem acrescenta:485 "que se deu a si mesmo por nós para redimir-nos de toda iniquidade, e fazer um povo seu purificado por Ele." E sintomático que este versículo, em que o Cristo é exaltado como o soberano que vem - talvez em oposição consciente ou inconsciente à epifania dos soberanos terrestres deificados - lembre precisamente a obrApassa-ih, terrena de Jesus, sobre a qual repousa sua elevação soberana. Atos 5.31 associa da mesma forma a glorificação de Jesus, sua elevação à destra de Deus como Sotér, à afirmação de que esta glorificação há de trazer a Israel "o arrependimento e o perdão dos pecados". Sem dúvida, aqui estamos dentro de categorias de pensamento que são mais judeu-cristãs do que pagã-cristãs. O Cristo é Sotér porque nos salvou do pecado.

Este título, Sotér, se bem que pode ser considerado, com justiça, como uma variante do título Kyrios - do qual até é possível que provenha - põe em evidência, contudo, uma ideia que aparece com menos nitidez na noção de Kyrios: a obra expiatória de Cristo é condição essencial para sua elevação à categoria de Sotér divino. Lembremos Filipenses 2.9: "Por isso (isto é, por causa de sua humilhação na obediência até a cruz) Deus mais que o elevou" e lhe deu um nome, Kyrios, que " está acima de todo nome". É isto que, em solo cristão, está implicitamente contido no título Sotér. Jesus é Sotér porque reconciliou Deus e o mundo por sua cruz. Um fato a mais o demonstra: mesmo onde, como na doxologia de Judas 25 -conforme o uso do Antigo Testamento - é Deus quem é chamado Sotér, as palavras "por Jesus Cristo nosso Senhor" remetem à obra expiatória de Cristo, fundamento de toda "salvação" divina.

No entanto, o títuloSotér não é mera variante deEbedlahweh, como se poderia crer ao ver quanto a salvação, aacorripía que traz o "Salvador", está inextricavelmente ligada a sua morte expiatória. Pois o sofrimento expiatório pelo perdão dos pecados não adquire

Sobre a construção: xov \ie7Ó<ko\) Qeoí> Kai crroTfjpoç finwv XpiotoO 'Iriaoíi Cf. abaixo, p. 408 s.

Page 305: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

318 Oscar Cullmann

seu sentido senão a partir da sanção divina que ele recebeu pela elevação de Jesus à dignidade d&Kyrios. Neste sentido, Bultmann tem razão ao declarar que nas Epístolas Pastorais, a ideia pauli-na da justificação sofreu certa variação de sentido, pelo fato de que crtóÇeiv substituiu a SIKOCIOÍÍV e campía tomou o lugar de ôiKaioo~óvri.486 Dado que a atribuição a Jesus do título de Sotér pressupõe a cristologia do Kyrios glorificado, só a encontramos relativamente tarde, nas camadas mais recentes da tradição neotes-tamentária e nas Epístolas de Inácio:487 porém a ideia cristológica central do sofrimento expiatório jamais está ausente.

O mesmo acontece nos dois textos joaninos (Jo 4.42 e 1 Jo 4.14) nos quais se chama a Jesus "Salvador do mundo". Temos de admitir que aqui, formalmente ao menos, esta explicação do título Sotér lembra especialmente o culto helenístico ao imperador, e que é até idêntico às fórmulas empregadas, por exemplo, na celebração de Adriano como Sotér, porém, não se pode decidir com certeza se se trata de um paralelismo consciente e proposital ou só de uma influência inconsciente. Pois este epíteto, "Salvador do mundo" não se separa da concepção geral do cristianismo primitivo no que se refere ao alcance e consequência da cruz de Cristo. Podemos, a este propósito, recordar a palavra sobre "o cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo" (Jo 1.29).

Desde quando se chamou a Jesus Sotérl Se bem que seja tardia a generalização deste termo, não foi conhecido relativamente cedo? Entre as epístolas atribuídas a Paulo, não são as Pastorais as primeiras a utilizá-lo. Ainda que tivéssemos que considerar deuteropaulino a passagem da Epístola aos Efésios (5.23), em que Cristo, chefe da igreja, é ao mesmo tempo chamado "Salvador do corpo" e onde, da mesma forma, se faz alusão a sua glorificação, restaria a passagem mais antiga e certamente paulina de Fl 3.20: "Esperamos também (do céu) como Salvador ao Senhor Jesus

4S7 R. BULTMANN, Theologie des Neuen Testaments, 1953, p. 525. Inácio Ef 1.1; Magn. 1.1; Filad. 9.2; Esni. 7.1. Cf. também Man. Polic. 19.2. Temos que mencionar, ademais, uma passagem do Evangelho de Pedro, 4.13.

Page 306: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 319

Cristo". Eis aqui de novo essa característica associação àcSotére Kyrios, diferentemente de 2 Tm 1.10 onde Cristo já consumou seu papel de Sotér, mas concordando com Tito 2.13, é dito que Cristo realizará sua função de Sotér no fim dos tempos. Não há aqui contradição; o que temos é aquela tensão peculiar que se encontra no Novo Testamento e que também se manifesta na cristologia e que já constatamos ao estudar outros títulos cristológicos. Bultmann assinala, acertadamente, que Paulo emprega aqui um título cristológico já cristalizado, pois, à parte esta passagem, Sotér não se encontra nunca nas epístolas que são inegavelmente de Paulo.488 Deve tratar-se então de uma expressão que, sem ter se tornado ainda corrente, era anterior a Paulo. Ademais, seu sentido em Fl 3.20 coincide perfeitamente com a ideia expressa em 1 Ts 1110 (sem a menção do título Sotér): "Esperamos dos céus a seu Filho o qual ressuscitou dos mortos, a Jesus, que nos salva (puóu.£vov) da ira vindoura".

Já vimos que o significado do nome de "Jesus", em terreno semítico, devia convidar a uma aproximação ao título de "Salvador", empregado no Antigo Testamento e que, sem dúvida, não foi o evangelista Mateus o primeiro a fazê-lo (Mt 1.21). Ademais, é evidente que na Palestina, "Salvador" não podia converter-se no título de Jesus, porque nesse caso teria que repetir o nome próprio "Jesus": alesousSotér, corresponderia. leschoualeschoua. Resulta, então, que Jesus só poderia chamar-se "Salvador" ali onde se falava grego. Porém, isto ocorreu, por certo, muito cedo; tanto mais quanto que na igreja palestina já se tinha a convicção de que a Jesus não só se chamava "Salvador" (Ieschoua = Jesus) senão que ele o era.

Porém, o alcance teológico do títuloSotér só chega a sua plena expansão no final da época apostólica, quando este título, associado a outros atributos importantes do nome de Jesus, tomou lugar na antiga fórmula Ichthys: 'ITICTOTJç Xpiaxòç QEOX> Yíòç Ewrfip.489

Cf. R. BULTMANN, Theologie des Neuen Testaments, 1953, p. 79, que menciona igualmente a passagem paralela de 1 Ts 4.15-18, na qual Paulo declara expressamente ser da "tradição". Cf. F. J. DÓLGER, Ichthys, I, 1910, p. 248, 259, 318.

Page 307: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

QUARTA. PARTE

TÍTULOS REFERENTES À PREEXISTÊNCIA DE JESUS

Page 308: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

PEQUENO INTRÓITO

Nesta quarta e última parte estudaremos três conceitos cristoló-gicos: o de "Logos", "Filho de Deus" e "Deus". Partindo do título Kyrios os primeiros cristãos - segundo já se viu - podiam aplicar a Jesus tudo o que o Antigo Testamento diz acerca de Deus. Porém, seria simplificar o problema, e cair em heresia condenada pela igreja antiga, atribuir ao Novo Testamento a ideia de uma identidade total entre Deus e Jesus o Kyrios, e afirmar que na fé do cristianismo primitivo não existia nenhuma diferença entre um e outro. A antiga confissão de fé binária de 1 Co 8.6, por exemplo, prova que a diferença não foi, de modo algum, eliminada, nem ainda ali onde - como nesta confissão de fé - Cristo aparece como o mediador da criação: "Há um só Deus e Pai de (è^) quem procedem todas as coisas e para (eiç) quem somos; e um só Senhor Jesus Cristo por (ôiá) quem são todas as coisas e por quem somos". Aqui a distinção está claramente expressa pelo emprego das preposições: è% e eíç para Deus s eôá parr Cristoo Porém, seria em vão a busca de uma definição mais precisa da relação original entre Deus o Pai e Cristo o Kyrios.

Os títulos Logos e "Filho de Deus" nos permitem aproximar de tal definição, na medida em que atraem a atenção para a preexistência de Jesus, isto é, a sua existência "no princípio". Porém, veremos que estes termos tampouco contemplam uma unidade de essência ou de natureza entre Deus e o Cristo; trata-se de uma unidade de ação, na obra da revelação. Tal é também - já o vimos - o sentido da transferência a Jesus do nome divino Kyrios: Deus e Jesus glorificado são um, do ponto de vista da soberania sobre o mundo (esta soberania é um aspecto da auto-revelação de Deus).

Page 309: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

•324 Oscar Cullmann

O título Kyrios designa, antes de tudo, a soberania divina de Jesus no período presente da história da salvação. Porém é empregado, também, referindo-se à ação mediadora de Jesus quando da criação, por exemplo, no texto citado anteriormente de 1 Co 8.6, ou ainda em Hebreus L10 ss. Esta extensão deriva, no entanto, da fé no Senhor presente, enquanto que a concepção de Logos, por sua própria natureza, faz remontar à obra reveladora de Deus em Cristo ao "começo" de todas as coisas, à ação preexistente e divina de Jesus. Este termo uniu, pois, mais ainda que o título de Kyrios, a criação à redenção; a criação pelo mediador preexistente, "o Verbo"; e a redenção em quem o verbo se encarnou, que agora reina e voltará. Aqui surge, ainda que só perifericamente, a questão da relação de essência entre Deus e o Cristo preexistente; porém, coisa característica, a resposta não é de ordem ontológica: não toma a forma de uma especulação relativa às "naturezas"; mas, permanece firme sobre o terreno da história da revelação. Poderíamos dizer outro tanto do título "Filho de Deus". Este título põe, implicitamente, também, a questão da relação de essência de entre o Pai e o Filho, independentemente da encarnação. Porém, também, aí se encontra a mesma resposta: a unidade deles é a de ser um no ato da revelação que funda, acompanha e consuma a história da salvação.

Sem dúvida se diz acerca do Logos: "No princípio era "o Verbo", o Verbo estava com Deus, era Deus." Porém, como se temesse que toda especulação avançasse mais nesta linha, rapidamente o Prólogo de João passa destas afirmações ontológicas às concernentes ao ato da revelação: "Todas as coisas foram feitas por ele", e "o Verbo se fez carne". Do mesmo modo, porém desta vez não no começo, mas no fim de todas as coisas, Paulo nos leva até o limite de uma assimilação total do Filho ao Pai: quando o Filho terá submetido todas as coisas ao Pai e se submeterá, Ele próprio, a fim de que Deus seja "tudo em todos" (1 Co 15.28).

Como não se pode falar do Filho senão em relação com a revelação de Deus, enquanto que se pode, em princípio, falar do Pai mesmo fora da revelação e como, por outro lado, o Novo Tes-

Page 310: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 325

tamento não tem outro objetivo senão a revelação, resulta daí o paradoxo de que o Pai e o Filho são, ao mesmo tempo, um e diferentes. Se os teólogos posteriores não puderam dar uma explicação satisfatória deste paradoxo, deve-se ao fato de que o tentaram por especulações filosóficas.

Ao estudar os títulos relativos à preexistência de Jesus, teremos, pois, que Hvrar-nos da maneira em que os problemas têm sido esboçados no curso da história, ainda que no Novo Testamento já se comece, aqui e ali, a perceber-se a problemática especulativa destes títulos.

Page 311: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

(^APÍTULO I

JESUS, O "LOGOS"

Este título ocupa um lugar predominante na cristologia clássica da igreja antiga. Inclusive, costuma-se considerá-lo como a expressão mais acabada de toda a cristologia. Porém, no Novo Testamento temos de constatar que unicamente o grupo de escritos joaninos o menciona e ainda assim, em um bem reduzido número de passagens: no prólogo do Evangelho, no começo da primeira Epístola e em uma passagem do Apocalipse (19.13). É um efro crer na preponderância do título Logos no Evangelho de João: na realidade, outro título, como o de "Filho do Homem", aparece muito mais frequentemente. A. Harnack, baseando-se no fato de que o título Logos não aparece senão no prólogo, chegou a sustentar qtie originariamente este prólogo não havia pertencido ao Evangelho, sendo-lhe acrescentado ulteriormente.490 Sua tese, nessa forma, é dificilmente sustentável; no entanto, temos de constatar que, efeti-vamente, este título não aparece senão nos primeiros versículos.

Porém, no lugar em que o autor do Evangelho faz uso deSte título mostra quão indispensável ele é para falar da relação entre a revelação divina na vida de Jesus e a sua preexistência. Não lhe interessa situar, como Marcos, o começo, o ápxf| da história de Jesus, no momento da aparição de João Batista, mas na preexistência, o que remete ao "princípio" absoluto de todas as coisas. No entanto, para excluir todo mal entendido ulterior, como os que

A. HARNACK, em ZThK, 2, 1892, p. 189 ss. Cf. a este respeito E. KÀSEMAHN, "Aufbau und Anliegen d. Johanneischen Prologs" (Mélanges E Delekat, 1957, p. 75 ss).

Page 312: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

328 Oscar Cullmann

encontramos nas discussões cristológicas da igreja antiga, ele sublinha implicitamente, logo no início, que não se trata aqui de uma especulação sobre esta preexistência do Cristo; o evangelista só fala deste "princípio" em estreitíssima relação com o que nos narra em seu evangelho acerca das funções ulteriores do Cristo. Aquele de quem se diz que estava "no princípio com Deus", o mesmo do qual fala todo o evangelho, cuja vida, "na carne", constitui o centro de toda a história da salvação e da revelação. Este mesmo Jesus, que levou a cabo, "na carne", o ato decisivo da revelação, está também ativo na história de Israel (o prólogo alude a isto claramente)49' e é quem, para além de sua morte, continuará atilando no seio da igreja, como os "discursos de despedida" o afirmam.

Temos que partir daí para estimar em seu justo valor a importância que o evangelista dá à preexistência de Cristo. Dado que ele vê no Cristo encarnado, no Filho do Homem, tal qual apareceu "na carne", o centro em torno do qual se ordenam todos os acontecimentos, a questão de sua ação preexistente deve também, necessariamente, delinear-se: aquele que é o centro de toda a história da salvação não pode ter surgido do nada. É por isto que a participação do Cristo preexistente na criação - afirmação já encontrada em outros escritos do Novo Testamento - é valorizada mais que em qualquer outro livro. Tanto a criação como a redenção pelo Cristo encarnado são, com a mesma importância, parte integrante da revelação de Deus.492 Não se pode perder de vista que o Evangelho de João começa com as mesmas palavras que o primeiro

C. H. DGDD, r/tá interpretation ofthe Fourth Gospel, 1953, p. 284, insiste com razão que o prólogo fala, por um ladc>, do Logos que não foi recebido pelo mundo, pela criação; e por outro, de sua perseguição por Israel. M. E. BOISMARD, Le Prologue de Saint Jean, 1953, e C. H. DODD, op.cit., p. 277 ss., fazem notar que Paulo em Rm 1.18 ss. fala dos ímpios que se negam a reconhecer a revelação de Deus em sua criação, de uma forma muito análoga à do Evangelho de João. Ainda que Rm 1.18 ss. não atribua expressamente a Cristo a revelação de Deus na criação, seria certamente falso intefpretá-lo como se fosse possível opor a criação por Deus e a redenção por Cristo. W. BAUER, Das Johannesevangelium, 30cd,,p. 6, escreve, com razão, que as concepções de Paulo relativas ao Cristo preexistente junto ao Pai, unido com Ele e participando com Ele na obra da criação, são muito semelhantes às do Evangelho de João. Cf. Também abaixo, p. 348 ss.

Page 313: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOCTIA DO NOVO TESTAMENTO 329

livro do Antigo Testamento. Se, como os primeiros cristãos da diáspora, estivéssemos acostumados a ler a Bíblia em grego, isto nos impressionaria desde o primeiro momento. "No princípio", èv àpxfi, se encontra no começo de ambos: em Génesis e no Quarto Evangelho. No Antigo Testamento está dito: "No princípio criou Deus o céu e a terra"; e no Evangelho de João: "No princípio era o Verbo, o Logos... todas as coisas foram feitas por ele". Um novo Génesis é o que aqui se nos apresenta, porém, à luz do mediador da revelação.493

Dada a alta frequência de utilização da ideia de Logos antes do cristianismo e simultaneamente a ele, se faz necessário estudá-la tal qual aparece no helenismo e no judaísmo. Se o Quarto Evangelho recorre ao termo Logos, retomando assim uma concepção pré-cristã corrente, é, sem dúvida, por que vê em Jesus a realização dela. Ele se vale precisamente deste vocábulo para expressar a universalidade cristológica.

1. O "LOGOS" NO HELENISMO

Não se trata aqui de dar uma história exaustiva da concepção de Logos. Há numerosos estudos*34 sobre o tema, e a maior parte dos comentários, antigos e recentes, lhe têm atribuído a importância que ela tem na filosofia helenística e nas religiões helenísticas orientais. Nossa intenção se restringe a lembrar que trata-se de uma concepção muito difundida no mundo antigo,495 que o autor

R. BULTMANN reconhece esta relação com o relato de Génesis, tanto em Das Evangeliwn des Johannes (p. 6) como em seu Theologie des Neuen Testameitts (p.411); porém, não mede todo o seu alcance. Cf. as abundantes indicações bibliográficas, por ex., em PAULY - WISSOWA, Realeencyclopaedie, XIII (1927), p. 1035 ss (H. LEISEGANG); e também em ThWbNT, IV,p. 70. Maii anttgo: A. A AL, Geshiclue der Logosidee I: indergiiechiscíien Philosophie, 1896. C. H. DODD, The Interpretation oftlie Fourth Gospel, 1953, p. 265, pensa, é verdade, que a concepção de Logos considerada como uma hipóstase, um mediador, estava menos difundida no Oriente do que se admite geralmente. Porém, pode-se dizer isto a respeito dos materiais abundantes que a história das religiões nos trazem?

Page 314: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

330 Oscar Cullmann

do Quarto Evangelho não poderia ter ignorado. É imprescindível dar-se conta disso para compreender todo o alcance da afirmação: "O Logos se fez carne". Começamos por lembrar que o títuloLogos ocorre já na mais antiga filosofia grega, a de Heraclito,496 e, mais tarde, especialmente no estoicismo.497 O Logos aí é a lei suprema do mundo, que rege o universo e que, ao mesmo tempo, está presente na razão humana. Trata-se pois de uma abstração e não uma hipóstase. Consequentemente, ao falar do Logos, e mesmo que se postule acerca dele que "era desde o princípio", esta alma impessoal e panteísta do mundo, de que fala o estoicismo, é coisa muito distinta do Logos joanino.498 O platonismo também conhecia esta noção: aqui já nos aproximamos mais da ideia de um ser real; "real" no sentido do idealismo platónico. Porém, ainda assim, não estamos diante de uma hipóstase, e a ideia de uma encarnação do Logos é absolutamente inconcebível. A analogia da terminologia não deve induzir-nos a identificar a concepção de Logos atestada no judaísmo tardio ou mesmo a do Evangelho de João com a da filosofia CTrega A incorporação total do Logos na história e na humanidade é completamente estranha ao platonismo S Agostinho também admite haver-se deixado levar pelas analogias formais ao afirmar haver encontrado nos livros de Platão com expressões um DOUCO diversas a doutrina de João relativa aoLogos que "era no princípio" (Conf 7 9) A rigor a analogia está mais rn terminologia que nas concencões

No entanto, esta concepção filosófica do Logos ocupa um lugar essencial na história longa e complicada deste termo, pois influenciou ao menos na forma, as ideias judaicas e pagãs tardias de um Logos mais ou menos personificado. É possível que temas mitológicos tenham influenciado mais profundamente; no entan-

fiH. DIELS, Die Fragmente der Vorsokratiker, 51 ed.. 1934, Fr. . e 2. P. .50 s. 7 Cf. K. PRÚMM, Der christliche Glaube itnddie altheid/iische Weh, II 1935, p, 227

ss; M. POHLENZ, Die Stoa, t. I, 1948 (ver o índice); e também R. BULTMANN, "Der Begriff des Wortes Gottes im Neuen Testament" (Glauben mui Verstehen, I, 1933, p. 274 ss.).

5Tal é a opinião de R. BULTMANN, Das Evangeliuin des Johãtmes, 1941, p. 9.

Page 315: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 331

to, a doutrina filosófica do Logos, incontestavelmente, é uma das fontes destas concepções tardias. Tal é, especialmente, o caso de Fílon de Alexandria, cujos desenvolvimentos relativos ao Logos têm muito espaço nos comentários do Evangelho de João. Embora achemos já nele a ideia de um ser intermediário personificado, a relação da sua doutrina com estas doutrinas filosóficas é evidente. Muito se tem polemizado para saber se Fílon considerava o Logos como pessoal ou impessoal. É incorreto partir de semelhante alternativa, pois a doutrina filosófica do Logos tem mais do que uma fonte.

Com esta reserva se acompanhará a R. Bultmann quando, investigando a origem da doutrina do Logos no judaísmo e em João, discerne no paganismo uma direção de pensamento que, segundo ele, constitui uma preparação mais direta que o conceito dos filósofos gregos e que ele denomina de: a direção do pensamento "gnóstico". Aqui o Logos é um ser mitológico, intermediário entre Deus e o homem. Não é tido só por criador do mundo é, em primeiro lugar, o portador da revelação e a este título, Salvador; pode também, transitoriamente, revestir-se da forma humana, porém, sempre dentro de um quadro mítico e doceta; jamais no quadro histórico de uma verdadeira encarnação.499 Bultmann encontra aqui o mito da humilhação e da ascensão do Salvador, que salva o mundo, salvando-se a si mesmo. Porém, esto Logos é a mesma figura que encontramos nas especulações pagãs relativas ao "primeiro homem".

E sumamente provável que semelhante figura mitológica do Logos tenha existido no paganismo. Porém, é muito difícil captá-la nos textos. R. Bultmann não pode citar, segundo ele mesmo o reconhece em seu Comentário de João, p. 11, senão textos tardios, contemporâneos do cristianismo. Poder-se-á conceder-lhe, no entanto, que as concepções testemunhadas por estes textos podem ser mais antigas que os próprios textos. Em todo caso, a descrição que Bultniann dá do Logos

Com razão R. BULTMANN <iiz a este respeito, em seu Comentário de João, p. 10, que ele está somente "disfarçado" de tiomeP

Page 316: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

332 Oscar Culhnaim

gnóstico e mitológico (op. cit. p. 10 ss.),5l>0 corresponde provavelmente à crença que existia no paganismo pré-cristão. Porém, quando considera esta doutrina gnóstica acerca do Logos como a única fonte da doutrina judaico-alexandrina do Logos e da sabedoria, tal como a encontramos em Fílon, nos livros da Sabedoria e nos textos rabínicos e, também, como a única fonte da noção joanina do Logos, demonstra em demasia uma tendência a ver na doutrina gnóstica da época pré-cristã um todo homogéneo que se poderia captar perfeitamente. As relações reais nos parecem demasiado complexas para podermos reduzir à genealogia esquemática que Bultmann esboça em seu Comentário de João, p. 8, nota 9.

Estas concepções, de um Logos personificado, portador da revelação e da salvação, são prefiguradas nas religiões antigas onde, por exemplo, Hermes501 e o deus egípcio Thot302 ostentam o título de Logos. E verdade que originariamente não se tratava senão de uma explicação filosófica e alegórica dos mitos politeístas que recebiam, assim, uma interpretação panteísta: no entanto, esta interpretação facilitou a personificação do Logos, principalmente para o sentimento religioso popular. Assim se desenvolveu a abundante literatura hermética.503

Com Nous, Logos é a designação preferida para este Salvador; porém, outros títulos lhe são também atribuídos, antes de tudo o de "homem". Encontramos também oLogos associado ao "homem"

itMReferindo-se a R. REITZENSTEIN, Das Iraiúsche Erlósungsmysterium, 1921; RE1TZENSTEIN - SCHAEDER, Studien z. antiken Synkretismus aus Iroit und Griechenland, 1926; H. JONAS, Gnosis und spàtantiker Geist, t. I, 1934, p. 260 ss.

*" PLATÃO, Crat. 407 E ss.; HIPOL., Refut. V, 7, 29; O. KERN, Orphicontm Fragmenta, 1922, 297 a; cf. R. REITZENSTEIN, Poimandres, 1904, p. 88.

5(>;PL(JT., De hide et Osir, 54 s. iW Edição crítica do Corpus Hermeticum(C.H.) por A. D. NOCKeA. J. FESTUGIERE,

Paris; Até agora têm aparecido 4 vol. 1945-54. Sobre o problema da Hermética, cf. J. KROLL, Die Lehren des Hermes Trismegistos, 1914; K. PRUMM, Reli-gionsgeschichtliches Handbuch (cf, acima, p. 208 nota 4), p. 535 ss.; e, sobretudo, recentemente A. J. FESTUGIERE, "La révélation d'Hermes Trismegiste" (Etudes bibliques), t. 1-4, 1944-1954; id., Uhermétisme, 1948. Cf. também C. H. DODD, The Interpretalion ofthe Fourth Gospel, 1953, p. 1 0 ss.

Page 317: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMEhrro 333

nos textos mandeus.504 O parentesco entre a ideia de Logos e a de primeiro homem no paganismo é tanto mais digno de atenção pelo fato de que o encontramos, também, no cristianismo primitivo, mesmo que aqui possa tratar-se apenas de uma influência exercida pela mitologia pagã.

Enfatizemos, desde já, que a noção de Logos estava tão disseminada no pensamento antigo que muitas ideias confluem nesse conceito, sem que possamos fazê-las derivar umas das outras. Coisa igual ocorre, naturalmente, no tocante às concepções do judaísmo e do cristianismo primitivo acerca do Logos. Haveremos de investigar quais destas ideias exerceram direta influência sobre a noção cristã; porém, será necessário, antes, perguntarmos, como a fé cristã, ao trazer novos motivos, transformou a noção de Logos. Assim constataremos que o Evangelho de João não deduziu, da ampla difusão da ideia de Logos, uma revelação geral não necessariamente cristã; pelo contrário, submeteu cabalmente a concepção não cristã ou pré-cristã de Logos à suprema e única revelação de Deus em Jesus de Nazaré, dando-lhe assim forma inteiramente nova.

2. O "LOGOS" NO JUDAÍSMO

Tratamos aqui de duas formas diferentes da concepção de Logos: por um lado, a concepção tardia, segundo a qual o "Verbo" é uma hipóstase e até um mediador personificado e que, certamente, está mais ou menos influenciada pelas ideias pagãs mencionadas; por outro, a concepção autenticamente bíblica que remonta a Gn 1, segundo a qual o Verbo de Deus, odebarIahweh, é entendido em seu sentido primitivo e toma-se, às vezes, em virtude de um desenvolvimento imanente do pensamento, uma hipóstase divina. Esta distinção conserva seu pleno valor, mesmo se constatamos que uma forma tenha influído sobre a outra. É assim que a concep-

GINZA (ed. LIDZBARSKI, 1925), p. 295; cf. W. BAUER, Das Joiíannesevangelium, 3a ed. 1933, p. 10.

Page 318: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

334 Oscar Cullmann

ção tardia certamente não está desvinculada da concepção bíblica. Os estudos da história das religiões, aliás meritórios e, sobretudo, as conclusões que R. Bultmann tirou deles, contribuíram muito para exagerar esta distinção necessária ao ponto de não se querer mais admitir o elemento comum a ambas as concepções. Ora, este elemento comum existe: a ideia de revelação. Não é por acidente que o termo "Verbo" tenha sido escolhido para designar a ambas.

Para estudarmos a ideia de Logos no cristianismo primitivo, não é um método correto levarmos em consideração exclusivamente a doutrina, comprovada no judaísmo tardio, de uma hipóstase divina, sob pretexto de ser a única que, junto com o Evangelho de João e o mito pagão do Salvador, conheceria um mediador mais ou menos personificado. A noção corrente no Antigo Testamento acerca da Palavra de Deus pode, também, ter influenciado direta-mente a concepção cristã, mesmo que se demonstre que a concepção helenística do judaísmo tardio, e até a concepção pagã deLogos, tenham sido familiares a certos meios do cristianismo nascente. Porém, só podemos examinar esta questão estudando antes as declarações joaninas acerca doLogos. O que interessa dizer aqui é que não temos o direito, para compreender a maneira pela qual o judaísmo falou do Logos, de eliminar, a priori como carente de importância, o que o Antigo Testamento disse a respeito

Tal acontece, precisamente, com a maior parte dos comentários chamados "críticos" do Evangelho de João. Inversamente os exegetas "conservadores" costumam levar em consideração tão-somente a ideia, corrente no Antigo Testamento, acerca da Palavra de Deus. Estes dois pontos de vista exclusivos foram evitados no artigo X,éYco, Xóyoq do Tfheol. Wõrterbuch, graças ao método observado nesta obra de distribuir a matéria a ser tratada: ThWbNT, IV, p. 69 ss.; os autores são G. Kittel, A. Debrunner, H. Kleinknecht, O. Procksch, G. Quell e G. Schrenk. De qualquer forma, deveríamos abandonar o costume de qualificar uma exposição de "crítica" ou de "conservadora" pelo simples fato de ressaltarem, seja a concepção judaico-helenística de Logos, seja a concepção atestada pelo Antigo Testamento. Esta questão científica não deveria ser orientada por uma posição teológica.

Page 319: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 335

Há, no Antigo Testamento, toda uma série de passagens nas quais a "Palavra de Deus", se não está personificada é, ao menos, considerada como uma entidade independente e que passa a ser objeto de reflexão teológica em razão do enorme poder de sua ação.505 Esta reflexão se orienta primeiramente à história da criação na qual tudo se realiza por ordem da Palavra pronunciada por Deus; "Haja luz; e houve luz". Meditar nisso é chegar à ideia de que toda a ação criadora de Deus se efetua por meio de sua Palavra; e esta palavra, é o próprio Deus enquanto se comunica ao mundo. Assim lemos no Salmo 33.6: "Os céus foram feitos pela Palavra de Iahweh". Aliás, mesmo depois da criação, a Palavra do Senhor faz a vida surgir do nada. Também os Salmos nos falam, em diversos lugares, da Palavra de Deus como de um mediador; por exemplo, no SI 107.20: "Enviou-lhes a sua Palavra e os sarou"; ou no SI 147.15: "Ele envia as suas ordens à terra e sua Palavra corre velozmente." Aproximamo-nos muito de uma personificação da Palavra ern Isaías 55.10 s.: "Assim como descem a chuva e a neve dos céus e para lá não voltam, sem que primeiro reguem a terra, a fecundem e a façam brotar para dar semente ao semeador e pão ao que come, assim será a Palavra que sair da minha boca: não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz e prosperará naquilo para que a designei."506 Aqui não nos encontramos muito longe da Sabedoria de Salomão (submetida já à influência alexandrina), onde lemos no capítulo 18.15: "Tua Palavra onipotente sai do trono real como um guerreiro implacável..." A expressão memra déjahvé empregada no Targum, e que é a designação aramaica da Palavra de Iahweh, também deve ser mencionada aqui507 O fato de que memra possa ser empregada em lugar do nome de Deus implica uma reflexão particular sobre a "Palavra de Deus" considerada como tal No entanto nãoencontra-

Cf. O. GRETHER, Name und Wort Gottes im Alten Testament, 1934, em part. p. 150 ss. Para paralelos no Oriente antigo, L. DÚRR, "Die Wertung des gõtlichen Wortes im A. T. und im Alten Orient" (Mitt. d. Vorderasiatischen Geselleschaft, 42, 1, 1938). V. HAMP, Der Begriff "Wort" in den aramãischen Bibleiibersetzttngeti, 1938.

Page 320: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

336 Oscar Cuihnann

mos nos textos rabínicos, no que diz respeito à memra de Deus, considerações análogas às que se consagram, por outro lado, ao Logos personificado ou à sabedoria personificada.508

Unicamente no campo da concepção alexandrina, no judaísmo helenístico, é que encontramos verdadeiramente o Logos ou a sabedoria convertidos em hipóstases. Aqui temos que supor, sem dúvida, a influência de concepções pagãs relativas a um mediador mitológico.509 No entanto, também temos que levar em conta a reflexão sobre a atividade criadora da Palavra de Deus, mesmo ali onde já não é o caso da "palavra de Deus", mas, meramente, da "Palavra", nem da "Sabedoria de Deus'", mas simplesmente da "Sabedoria".

É verdade que em Fílon, cuja doutrina acerca do Logos não é homogénea e remonta a diversas fontes,510 a concepção estóica referente ao Logos, considerado como a razão universal, é a que domina.5" Para nós, esta concepção não entra em consideração senão de uma maneira indireta; porém, por outro lado, vemos aparecer nele, em Fílon, em parte por influência platónica e em parte, talvez, por influência mitológica, a ideia de um mediador personificado.512

Porém, foram as especulações do judaísmo tardio acerca da Sabedoria - e os trabalhos de J. Rendell Harris o têm demonstra-dosl3 - as que mais influenciaram a noção de Logos do cristianis-

sos p o r outro ]ado a questão da data é de difícil solução; não se pode determinar com certeza se esta concepção pertence a época pré-cristâ. Cf., a respeito, STRACK-BILLERBECK, t. II. p. 302 ss.

5"*Cf. R. BULTMANN, Johanneskomtnentar, p. 8. 510É o que indica com razão W. BAUER, Das Johannesevangelium, 3a ed., 1933, p. 8.

Para numerosos textos que entram aqui em questão cf. A. AALL, Geschichte der Logosidee, 1896, p. 184 ss. Cf. também E. BREHIER, Les idéesplúlosophiques et religieuses de Philon d'Alexandria. 2* ed., 1925, p. 83 ss.; H,A. WOLFSON, Phiío, t. I, 1948, p. 200 ss; 325 ss.

511 Cf. acima, p. 329 s. 512 Sobre o conjunto da questão das relações entre Fílon e o Evangelho de João, cf. C.

H. DODD, The Interpretado/ ofthe Fottrth Gospel, 1953, p. 54 ss. 5,,The Origin ofthe Prologue to St. John s Gospel, 1917; id., Atltena, Sophia and the

Logos" Bullet. ofthe John Ryland s Ubrary, 1922, p. 56 ss.).

Page 321: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 337

mo primitivo.514 Não está provado, é certo, como o admite Harris, que o prólogo de João remonte diretamente a um hino à Sabedoria. Mas, em todo caso, topamos aqui com concepções muito vizinhas até o ponto em que Logos e Sophia são palavras quase intercambiáveis. Entre os numerosos textos que podemos invocar reteremos só algumas fórmulas particularmente características.515

Em Provérbios (8.22-26), a própria Sabedoria diz: "O Senhor me criou no início de sua obra, antes de suas obras mais antigas. Desde a eternidade fui estabelecida, desde o princípio, antes do começo da terra". E mais adiante: "Antes de haver abismos, eu nasci, e antes ainda de haver fontes carregadas de água. Antes que os montes fossem firmados, antes de haver outeiros, eu nasci. Ainda Ele não tinha feito a terra, nem as amplidões, nem sequer o princípio do pó do mundo." Encontramos a mesma ideia em Eclo. 1.1 ss.; 24.1 ss., e ainda em diversos outros lugares.516 NâSabedoria de Salomão se diz que a Sabedoria é um "reflexo da luz eterna de Deus" (7.26). Para compreendermos o prólogo de João, temos que citar muito especialmente os textos que falam do "ódio" do mundo, ao qual a Sabedoria está exposta (Pv. 1.28 ss.; cf. Sir. 24.7).

Há textos rabínicos que identificam a sabedoria preexistente com a Thorá, que desta maneira se converte, também, em uma hipóstase mediadora da criação e "Filha de Deus".517 É provável que estas especulações derivem daquelas outras da "Sabedoria",518

porém, mostram até onde era familiar, ao judaísmo tardio, a ideia de um ser intermediário que, na qualidade de hipóstase divina, fazia parte de Deus. Temos que mencionar, também, um texto de

514C. F. BURNEY, TheArconaic Originofthe Fourth Gospel, 1922; R. BULTMANN, Der religionsgeschichtliche Hiníergnmd des Prologs zuni Johatnnesevangeliuin (Eucharisterion, 2, 1923, p. 3 ss.); C. SPICQ, "Le siracide et la structure litteraire du Prologue (Mém. Lagrange, 1940, p. 183 ss.); C. H. DODD, op. cit., p. 274 ss.

í ,5Outras referências na bibliografia indicada mais acima, p. 336, nota 510. Textos rabínicos em STRACK-BILLERBECK, t. II, p. 356 s.

516Cf., por ex., FÍLON, Leg. Alleg., II, 49. mCf. STRACK-BILLERBECK, t. II, p. 353 ss.; t. III, p. 131. í l8 Como o diz com razão R. BULTMANN, Johamieskommentar, p. 8.

Page 322: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

. 338 Oscar Cullmatm

Qumran Manual de Disciplina 11.11) no qual "o pensamento divino" está na origem de toda existência.

Temos distinguido, por princípio, duas linhas diretivas no judaísmo; a linha especificamente bíblica acerca da Palavra de Deus, do debar Iahweh, e a linha mais tardia que se desenvolveu por ação de influências exteriores, a da "Palavra" simplesmente. Ambas têm em comum o expressarem a obra pela qual Deus se revela. Porém, a ideia desta obra, esta Palavra dirigida por Deus ao mundo, poder finalmente encarnar-se no quadro histórico de uma vida humana e terrena, é coisa tão estranha a uma como a outra.

3. A IDEIA DE "LOGOS" APLICADA A JESUS

No Evangelho de João o título Logos só é atribuído a Jesus no prólogo; nos demais escritos joaninos, unicamente em mais duas passagens. Não aparece, ademais, em nenhuma outra parte do Novo Testamento; e no tocante a outros escritos do cristianismo primitivo, Inácio de Antioquia é o único a empregá-lo, muito provavelmente sem direta influência do Evangelho de João.519 Não parece, pois, tratar-se de uma concepção cristológica central para o Novo Testamento, como no caso de outros títulos, tais como o de "Filho do Homem" ou Kyrios. No entanto, o título Logos destaca especialmente, um aspecto importante da cristologia dos primeiros cristãos: a unidade, para a história da revelação, do encarnado e do preexistente. Assim ele situa Cristo em relação a Deus.

É claro que a identificação de Jesus com o Logos não se produziu, senão, depois de sua morte. Ocorreu o mesmo quanto à aplicação a Jesus do título tão importante de Kyrios. Porém, enquanto que este tem sua origem, seu Sitz im Leben, no culto cristão, a atribuição a Jesus do título Logos é, certamente, antes

nMagn. 8.2. Cf. a este respeito H. SCHLIER, "Religionsgeschichtliche Untersuchungen zu den Ignatiusbriefen" (BZNW8, 1929). CHR. MAURER,Ig/jati!« vonAntiochien wtddas Joltannesevangeliuin (AThANT, 18, 1949) sustenta que Inácio leu o Evangelho de João; porém, reconhece que o Logos de que se trata neste trecho não se refere, necessariamente, ao quarto Evangelho (p. 41 s).

Page 323: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 339

fruto de uma reflexão teológica; reflexão que, aliás, pressupõe também a experiência litúrgica da soberania do Cristo. Para compreendê-lo, então, temos que levar em consideração, primordialmente, as concepções extra - ou pré-cristãs que podem ser citadas como paralelos, posto que a concepção cristã do Logos se vincula de um modo mais consciente (mesmo que o paralelismo seja, sobretudo, formal) às concepções extracristãs de Logos que os demais títulos cristológicos aos paralelos extracristãos que se possam encontrar para eles.

Cometeríamos, por conseguinte, um erro metodológico se, por causa do caráter mais teológico da reflexão acerca do Logos, o estudássemos exclusivamente em paralelo com a concepção oriental e helenística. Pois sabemos hoje que o Evangelho de João, apesar ou por causa dos elementos helenísticos que contém, pertence a esse vasto domínio do judaísmo palestino influenciado pelo sincretismo, cujos aspectos começam a ser melhor conhecidos graças aos textos de Qumran.520 Disso deduz-se que, muito mais agora, temos de considerar os elementos helenísticos do Evangelho de João na relação que têm com as ideias que remontam ao Antigo Testamento.

Além disso, é indispensável também não perdermos de vista a relação entre as ideias joaninas e o conjunto do pensamento do cristianismo primitivo, e não somente para constatar em seguida entre elas uma oposição. Porque se falta o termo Logos quase de maneira absoluta nos demais escritos neotestamentários, temos que averiguar se não se encontra neles a mesma ideia da preexistência de Jesus e aquela relação específica entre Deus o Pai e Jesus, que caracteriza o Logos Joanino. Veremos, então, que sobre este ponto o prólogo de João não traz uma doutrina essencialmente diferente da que achamos em Paulo ao examinar outros títulos cristológicos; por outro lado, o título "Filho de Deus", presente já na mais antiga tradição sinóptica, parece recobrir bem concepções análogas em alguns aspectos.

Cf. acima, p. 241 s.

Page 324: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

. 340 Oscar Cullmaim

Porém, antes de tudo, temos que ver no quarto Evangelho, assim como nos demais escritos do Novo Testamento, se o uso corrente, isto é, não diretamente cristológico do termo Logos, poderia ser uma das fontes da aplicação deste título a Jesus.521

A palavra de Jesus, ou seja, a palavra anunciada por ele, desempenha em todo o Evangelho de João um papel tão importante que quase não pode admitir-se que o evangelista deixe de pensar nesta "Palavra" quando no prólogo identifica o Logos com Jesus. Esta suposição se impõe ainda mais se tivermos em conta este pensamento fundamental do Evangelho joanino: Jesus não somente traz a revelação, mas, Ele é a revelação. Traz a luz e é, ao mesmo tempo, a luz: dispensa a v idaeéa vida; anuncia a verdadee «a verdade; ou antes: se ele traz a luz, a vida e a verdade, épor ser ele a luz, a vida e a verdade, O mesmo cabe dizer no tocante aoLogos: ele traz a Palavra, porque Ele é a Palavra.

Se consultarmos uma concordância ficaremos sabendo que o termo Logos, no sentido de "palavra pronunciada e anunciada", ocorre com muita frequência no Evangelho de João, e expressa uma de suas ideias essenciais. Segundo o uso corrente, Àóyoç não significa nem mais nem menos que a palavra concreta percebida pelo ouvido (por ex. Jo 2.22; 19.8). Porém, um sentido teológico vem juntar-se ao usual: o Xóyoç que Jesus proclama é ao mesmo tempo a revelação divina eterna, que exige não só um ouvido atento, mas também a compreensão da fé. Esta acepção está implícita no verbo átcofteiv.522 Quando o assunto é "permanecer na Palavra" (8.31), "guardar a Palavra" (8.51), a Palavra que dispensa vida a quem a escuta com fé (5.24), é deste sentido da palavra

5ÍI Com razão este aspecto da questão foi levado em consideração por diversos autores: nos artigos lexicográficos do Biblisch-Theologisches Wõrterbuch des neutestamentlichen Grieschischde CREMER-KÒGEL (111 ed., 1923); no ThWbNT por KITTEL; também por C. H. DODD, The Interpretation ofthe Fourlii Gospel, 1953, p. 265 ss. Cf. ainda J. DUPONT, Essais sur la christologie de Saint Jean, 1951, p. 20 ss.

522 Cf. C. H. DODD, The Interpretation ofilie Fourth Gospel, 1953, p. 266; ele sublinha a distinção que existe entre XaXvx e Xó-yoç em Jo 8.43.

Page 325: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO 341

Logos que se trata. A palavra anunciada por Jesus aqui é idêntica ao kerygma, que constitui uma das noções preferidas da teologia contemporânea. No Evangelho de João é idêntica à "Palavra de Deus" (17.14; v. também 5.37 ss.). Elaé aVerdadc por excelência (17.17). É mais que uma mera (f>covf|. Quando, em Jo 1.23, João Batista, citando Is 40.3, declara ser uma voz, cpwvTi, o autor pensa certamente no prólogo que precede imediatamente e que fala daquele que não é, como o Batista, uma<pa>vr|, mas o Logos (1.8).

No Evangelho joanino, a ideia teológica anunciada acercado Logos conduz diretamente ao Logos que se encarnou em Jesus. Efetivamente, o objetivo do Evangelho é exatamente mostrar que toda vida humana vivida por Jesus é o centro da revelação da verdade divina.

A Palavra de Deus, idêntica ao Àóyoç pregado por Jesus, é a "verdade" (Jo 17.17); agora, o próprio Jesus é a verdade em pessoa (14.6). A designação de Jesus como Logos decorre, portanto, necessariamente do emprego ordinário da palavra Xóyoç no quarto Evangelho. Certamente esta explicação não basta; porém, indica uma orientação do pensamento da qual não se deve, de nenhum modo, descuidar.

Se é sobretudo no Evangelho de João que a palavra Àóyoç assume o sentido absoluto de "revelação", este uso da palavra é, no entanto, considerável na literatura do cristianismo primitivo. No Novo Testamento a expressão ó Xòyoq xox> Qeoí» não designa somente a "Palavra de Deus" particular (debar Iahweh) que no Antigo Testamento é a palavra que responde a uma situação dada e que é dirigida aos profetas sempre novamente. Porém, na maioria das vezes, esta expressão visa, de um modo geral, o anúncio da salvação. É assim que freqéntemente recorre-se à "Palavra" - o genitivo TOV Geoujá não aparece como necessário- para designar a pregação do Evangelho. Podemos encontrar esta acepção de À,óyoç em todos os livros do Novo Testamento.523 Às vezes, o termo está associado a um genitivo que define o conteúdo da palavra prega-

• Por ex Gl 6.6 ; Cl 4.3 ; Mc 2.2; 4.14 ss.; 8.32 ; Lc 1.2 ; At 8.4 ; 10.44; 16.6, etc.

Page 326: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

• 342 Oscar Cuitmann

da: a "palavra da cruz"(1 Co 1.18)oua"palavra da reconciliação" (2 Co 5.19). Porém, aí também o termo Logos denota a revelação definitiva.

O prólogo da Epístola aos Hebreus expressa com muita clareza a diferença entre esta Palavra e aquela dirigida esporadicamente aos homens de Deus no antigo pacto: "Depois de haver KoXv\i£pcòç, Kod 7roVoTpÓJWoç falado aos nossos pais pelos profetas, Deus, nestes últimos tempos nos tem falado pelo Filho". Quando, em seguida, na mesma frase, o autor fala da criação do mundo pelo Filho e nomeia a este no versículo seguinte, como "reflexo da glória divina" x«pcoerrip xf|ç ííTiooxáoewç aínorj, a analogia com o prólogo de João salta à vista. É verdade que o termo mesmo X,óyoç não aparece aí; porém, como em Jo 1.1, o falar de Deus em seu Filho está associado com a criação do mundo e ligado a uma definição da relação eterna entre o Filho e Deus o Pai. De fato, este texto constitui um paralelo muito mais direto que muitas outras passagens as quais se alude geralmente para esclarecer a concepção joanina de Logos. Seja Hb 1.1 ss. mais antigo ou mais recente que Jo 1.1 ss., uma coisa tem que ser lembrada, e é que uma linha contínua vai da maneira em que Deus falava no Antigo Testamento à revelação por excelência que é o Filho, reflexo da glória divina. Nesta linha também se encontra um elo intermediário: o uso da palavra Aóyoç para designar o anuncio definitivo da salvação, que já encontramos no Novo Testamento. Certamente, em Hb 1.1 ss. só se diz que Deus tem falado no ou pelo Filho524

Certamente se formula a questão da relação entre esse Filho e Deus; ela recebe uma resposta análoga àquela que é dada no prólogo de João, porém, não há uma identificação absoluta entre esta "Palavra de Deus" e o "Filho" A este não se chamaLogos Se o primeiro capítulo de João estabelece esta identificação é por tratar-se de um prólogo a uma vida de Jesus vida que é ela mesma o ponto de partida de toda reflexão cristológica ulterior Nesta vida a revelação de Deus se manifesta não só nas palavras ciue Jesus pronuncia mas

èv instrumental.

Page 327: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 343

também nos atos que realiza. O que Jesus faz é o que ele mesmo é. O uso hebraico segundo o qual "palavras" (debarim) pode também significar "história",525 deveria necessariamente, ao considerar-se primeiramente a vida, a "história" de Jesus, favorecer a identificação de Jesus com "a Palavra".

Por conseguinte, se o Evangelho de João ao designar a Jesus como "a Palavra", oLogos, se aproxima das concepções vindas do paganismo e do judaísmo tardio, a identificação repousa, no entanto, sobre uma reflexão imediata relativa à relação entre a vida histórica de Jesus e a origem de toda revelação. A palavra de Deus é reconhecida como suaação, o que estabelece uma relação natural com sua palavra criadora, pela qual já se revelou "no princípio". Quando se formula assim a questão da origem última da auto-revelação de Deus, necessariamente, se é levado a remontar, para além das palavras anunciadas pelos profetas, até a palavra de Deus quando da criação do mundo. Esta concepção é preparada pelos textos bíblicos antes mencionados que já consideram a Palavra criadora e atuante de Deus quase como uma hipóstase.526 As especulações judeu-helenísticas utilizam, por sua vez, a história da criação para sustentar suas doutrinas relativas à hipóstase divina que existia "no princípio". Porém, não é somente por este rodeio dos textosjudeu-helenísticosqueo prólogo de João se vincula a Gn 1: interessa-se, também, diretamente pela relação entre a história de Jesus e a da criação. Se o evangelista começa toda a sua narração da vida de Jesus com as palavras com que o Antigo Testamento abre a história da criação é porque, para ele, esta relação tem importância decisiva; tão decisiva que todas as influências judaicas ou helénicas, que possam ser descobertas, não podem ter senão valor secundário.527

Cf. O. PROCKSCH em ThWbNT, IV, p. 91 s. Cf. acima, p. 334 ss. Temos visto que R. BULTMANN reconhece também, tanto em seu Comentário de João (p. 6) como em sua Theologie des Nenen Testaments (p, 411), que o prólogo de João se relaciona com Gn I; porém, não dá a este fato mais que um alcance menor em sua explicação do prólogo.

Page 328: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

,344 Oscar Cullniami

Se a Palavra de Deus que chamou o mundo à vida ("e fez-se a luz") é a mesma Palavra que se dirige a nós na vida de Jesus, então a identificação desta com o Logos divino se dá espontaneamente. Então, a criação e a vida de Jesus têm ambas por denominador comum a "Palavra", a "revelação". Porém, por este fato o problema da relação entre Jesus e Deus fica implicitamente formulado, e ao mesmo tempo resolvido no sentido do prólogo, isto é, partindo de Génesis 1.1 ss.

Neste prólogo, o evangelista permanece fiel à forma do pensamento do Antigo Testamento,528 quando fala da recusa da revelação: porque assim como a revelação não foi recebida na criação (Rm 1.18 ss.),529 Israel recusou a palavra dos profetas. É a este povo de Deus rebelde que fazem alusão os ííôioi de Jo 1.11,530

As afirmações joaninas relativas ao Logos são fruto de uma reflexão teológica profunda sobre a vida de Jesus, considerada como a revelação central de Deus. As especulações judeu-helenísticas que não podem ser provocadas pelo exame da vida de um homem aparecido na história, mas que surgem de concepções filosóficas e mitológicas, por certo ajudaram o autor a compreender e a explicar o mistério da pessoa de Jesus. Porém, o outro ponto de partida, totalmente diferente, o da reflexão joanina, que é a vida concreta de Jesus, dá à ideia cristã de Logos, em todos os seus elementos, um sentido radicalmente novo.

R. Bultmarm assinala, com razão, que o prólogo de João não diz "Palavra de Deus" mas simplesmente o Logos, a Palavra, sem genitivo explicativo, como se se tratasse de algo bem conhecido.

H. SAHLIN, Zttr Typologie des Johaimesevangeliwiis, 1954, sustentou recentemente que não somente o prólogo mas o Evangelho de João inteiro deveria ser considerado como paralelo tipológico ao pensamento do Antigo Testamento, em particular da tradição do Êxodo. No entanto, a tentativa de SAHLIN (p. 60 s) de incorporar o prólogo de João neste esquema explicando-o pela tradição do Êxodo não é, de nenhuma maneira, convincente. Cf. acima, p. 328, nota 492. Esta é também a opinião de C. H. DODD, op. cit., pp. 270, 272, que, de uma maneira geral, sublinha vigorosamente o fundamento do prólogo no Antigo Testamento.

Page 329: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 345

Poderia isto significar que o autor se refere, de maneira perfeitamente consciente, a concepções judeu-helenísticas ou ainda pagã-helenísticas relativas a um Logos compreendido como hipóstase?SÍI

É difícil dar com certeza uma resposta afirmativa a esta questão. Porém, é muito provável que o evangelista pense também noLogos já personificado, tal qual se encontraria correntemente no helenismo sincrético e no judaísmo helenístico e que, intencionalmente, se refira a uma concepção deste género sem ter em vista, no entanto, um texto determinado. O autor, que colocou este prólogo no começo de seu Evangelho sabe que, ao designar a pessoa histórica de Jesus de Nazaré como o Logos, anuncia algo tão radicalmente novo que pode, serenamente, sem temer um mal entendido filosófico e especulativo, tomar e utilizar o que, no tocante ao Logos, autores não cristãos haviam ensinado em sua época ou ainda antes.

Nem sequer é impossível, segundo admitem atualmente alguns sem dificuldade, que haja, efetivamente, se valido aqui de um hino à Sabedoria"2 ou de um modelo mandeu.533 Porém, a semelhança de termos não implica forçosamente, e especialmente aqui, a semelhança de pensamentos. Quando o evangelista fala do Logos pensa automaticamente em Jesus de Nazaré encarnado, no Verbo feito carne, e que é nesta vida humana de Jesus, a revelação definitiva de Deus ao mundo: é esta uma ideia absolutamente inconcebível fora do cristianismo, ainda que se empregue o mesmo termo.

Ao afirmar, com respeito ao seu Logos, o que pagãos e judeus afirmavam em relação ao deles, o autor chama a atenção para a

O emprego mencionado mais acima, p. 341 s. do termo Xóyoç, sem outra determinação, entra também em consideração; porém, não constitui uma explicação suficiente. Porque não se trata aí mais do que da pregação da palavra; enquanto que aqui o emprego desta expressão é o fruto de uma reflexão teológica amadurecida. Porex. J. RENDELL HARRIS; cf. acima, p. 336 s. RE1TZENSTEIN-SCHAEDER, op. cit.,p. 306 Ss.,eR.B\JLJWÍANN, Jolianneskommcntar, p. 5 ss., como também o artigo de E. KÀSEMANN citado acima, p. 230, n. I. R. SCHNACKENBURG supõe jazer na base um hino cristão ao Logos que se teria originado na Ásia Menor ("Logoshymnus und joh. Prolog." Bibl. Ztsc/u:, NF 1, 1957, p. 69 ss).

Page 330: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

346 Oscar Cullinann

novidade inaudita que ele se propõe anunciar; e isto não somente no prólogo mas em todo o Evangelho. A forma pode ser idêntica, a terminologia não é modificada; porém, o tema já não é mais o mesmo; não é o Logos estóico abstrato, nem o Logos mitológico; mas um Logos que se toma homem e que, justamente por esta razão, é o Logos.

Aqui encontramos, pois, um universalismo autenticamente cristão e em nada sincretista. O evangelista não procede à maneira de certos teólogos modernos adeptos da história comparada das religiões; os quais falam, em primeiro lugar, de uma revelação geral presente em todas as partes, a aprovam, e acabam por chegar a uma revelação cristã especial. Totalmente falso seria interpretar assim o prólogo de João. Se o autor adota afirmações relativas ao Logos tiradas não só do Antigo Testamento como também do helenismo, ele não quer dizer com isto que os gregos, ao falarem do Logos, já possuíam já o conhecimento da verdade que este vocábulo expressa para o evangelista: isso seria uma forma moderna de pensar. Antes, o evangelista sustenta que os gregos falavam do Logos sem conhecê-lo, porquanto estes ignoravam o Logos feito carne. Porém, de um ponto de vista puramente formal, o que eles ensinavam acerca dele era exato. Nisto consiste o universalismo do Evangelho de João: ver a Cristo onde os pagãos ensinavam uma verdade; este mesmo Cristo que, num momento determinado da história, se fez homem.

E pois perfeitamente justificado estabelecer paralelos alicerçados na história comparada das religiões. Porém, quando se trata de explicar a concepção joanina de Logos, semelhantes paralelos não parecem dever ser empregados à maneira de R. Bultmann, por exemplo. Ou seja, procuramos os temas cristãos e bíblicos do prólogo em seu ponto de partida, na óptica teológica adotada por seu autor no instante da redação; e não graças a um processo de "desmitologização" pelo qual nós os encontraríamos livrando o prólogo dos elementos mitológicos que o autor teria simplesmente utilizado por sua própria conta. Dado o caráter do universalismo joanino temos de dizer que os elementos extracristãos do prólogo não são a fonte em que o autor se inspira; mas, pelo contrário, a

Page 331: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 347

prova dele haver tomado conscientemente lemas estrangeiros para dar-llies um tom cristão.

Para compreendermos bem os primeiros versículos do prólogo é preciso sempre ter presente o v. 14 onde se diz que o Logos se fez carne. É verdade que o evangelista ao começar o prólogo remonta para além da criação ao falar do ser do Logos junto a Deus; porém, já então, pensa na função deste Logos em sua ação. A própria essência do Logos é ação, pois é agindo que Deus se revela; o que quer dizer que mesmo se achamos aqui algumas reflexões sobre o ser do Logos, feitas à margem, sabe o autor, no entanto, que o Logos possui o ser unicamente em vista da sua ação, e até que, em última análise, o ser do Logos é essencialmente sua ação.

Não obstante, estamos aqui na presença de uma dessas raras passagens do Novo Testamento que tratam do "ser" da Palavra preexistente. Verdadeiramente descobrimos aqui algo quanto à origem desta ação mediante a qual Deus se revela; e isso tem por objetivo sufocar imediatamente toda ideia de uma doutrina "duo-teísta", como se o Logos fosse um deus, ao lado do Deus altíssimo. Não se pode dissociar o "Verbo" que Deus pronuncia do próprio Deus; "estava com Deus" (fjv npòç tòv 8eóv). Não se pode pois falar, comos arianos, de uma criação exnihilo do Logos; nem com Orígenes, de uma emanação.534 O "Verbo" de Deus é dado, pelo contrário, com o próprio Deus. Tampouco é o Logos um subordinado a Deus, pelo fato de pertencer-lhe. Ele não lhe é nem subordinado, nem justaposto como um segundo ser. Com razão Bultmann sublinha aqui535 que não se pode inverter a frase do v. 1. Não se pode dizer: 0eòç f|v Tipòç TÒV Xó^ov, e isto por ser o Logos, o próprio Deus, enquanto Deus fala, enquanto se revela; o Logos é o próprio Deus em sua revelação. Neste sentido a terceira frase do

51JCf. R. BULTMANN, Johanneskontitientar, 1941, p. 16, que traz sobre este ponto notáveis esclarecimentos.

535 R. BULTMANN, Johanneskommeittar, ibid.

Page 332: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

.348 Oscar Cullmann

prólogo pode proclamar: íccá 6eòç fjv ô Xóyoç. Não temos o direito de mutilar este texto a fim de suavizar o que tem de taxativo e de absoluto.

Muitas tentativas deste género foram empreendidas e as há hoje, ainda. Interpreta-se aqui, por exemplo, 6eóç como sefosse9eToç: "O Logos era de natureza divina". Semelhante interpretação - que Bultmann recusa também em seu Comentário pág. 17 - é insustentável. Se isto fosse o que o autor quisesse dizer teria a sua disposição o adjetivo Geíoç que, aliás, se acha no Novo Testamento (At 17.29; 2 Pe 1.3). Tampouco é possível, com Orígenes, atenuar a força desta afirmação dizendo que falta o artigo antes de 0eóç, mostrando assim o autor que o Logos não é Deus, mas tão-somente de natureza divina, que é uma emanação de Deus.

É, deveras, a opinião do evangellsta aque se expressa aqui, quando chama ao Logos "Deus". Isto é o que a parte final de seu Evangelho mostra quando Tomé, convencido, exclama diante do Ressuscitado: "Meu Senhor e meu Deus!" (Jo 20.28). Com este último e decisivo "testemunho", fecha-se o círculo: o evangelista retorna ao prólogo.

Não obstante, para evitar a qualquer custo o equívoco que consistiria em não distinguir diferença alguma entre Deus e o Logos, o autor em seu prólogo repete insistindo: "Aquele que estava desde o princípio com Deus". Deste Logos, a respeito de quem acaba de afirmar que é Deus, deve, ao mesmo tempo, dizer que estava com Deus. Não são dois seres, e no entanto, não coincidem pura e simplesmente. Pois, pelo menos em princípio, Deus pode ser imaginado independentemente do ato pelo qual se revela, o que não é o caso para o Logos. Contudo, não podemos esquecer que a Bíblia tem por objeto não a Deus enquanto tal, mas a Deus orientado ao mundo em sua revelação.

Devemos deixar este paradoxo subsistir em toda a cristologia. O Novo Testamento não traz solução, antes se contenta em justapor as duas afirmações: por um lado, o Logos era Deus; e por outro, o Logos estava com Deus. Aliás, voltamos a encontrar o mesmo paradoxo no curso do Evangelho; porém, desta vez a propósito da ideia de "Filho de Deus". Nos é dito, com efeito, por um

Page 333: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGI/^ DO NOVO TESTAMENTO 349

lado que "o Pai e o Filho são um" (Jo 10.30), e por outro que "o Pai é maior que o Filho" (Jo 14.28).536

Dado que o Logos é Deus que se revela, que se comunica em sua ação, e dado que o Novo Testamento tem por único objeto esta ação, toda especulação abstrata sobre as "naturezas" do Cristo é não só um empenho vão, como também, em suma, uma recusa de levar em conta o fato de que, em virtude da própria natureza do Logos, não se pode falar dele senão em referência à ação de Deus/137

Sobre o "ser" do Logos não se pode dizer mais do que o que se encontra no prólogo: no princípio estava com Deus, e ele é Deus, nada mais. Pois o prólogo mesmo passa rapidamente à ação do Logos: "Todas as coisas foram feitas por ele". Deus se revela primeiramente na criação. Tal é o que une estreitamente, no Novo Testamento, a criação e a redenção: em ambos os casos se trata de Deus no ato de revelar-se, de comunicar-se. Assim, é o próprio Logos quem aparece em carne como mediador humano, e que havia, já antes, sido o mediador da criação. Precisamente pelo fato do Evangelho de João atrever-se a ver, em uma simples vida humana a revelação máxima de Deus, dá evidências de levar radicalmente a sério o fato de ser toda revelação desde o começo uma obra de Deus em Cristo; isto é que no plano da soteriologia não é possível opor a criação à redenção.

Temos notado, muitas vezes, que esta unidade entre a criação e a redenção caracteriza também o paulinismo. Lembramos especialmente a muito antiga confissão de fé binária que se encontra em 1 Co 8.6, devendo, ,nclusive, ser anterior a Paulo. AH iambém Cristo é o mediador da criação. E também como tal que ele aparece em Cl 1.16, em Ap 3.14 e em Hb 1.2. A reflexão sobre Cristo mediador de toda revelação, mesmo da revelação original, é pois

"''Aqui também estamos inteiramente de acordo com R. BULTMANN, Johanties-kommentar, p. 18.

"7 É o que sublinham também, com clareza gratificante, exegetas católicos tais como J. DUPONT, Essais sur la christologie de Saint Jean, 1951, p. 58, e M. E. BOISMARD, Le prologue de Saint Jean 1953, p. 122.

Page 334: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

•350 Oscar Cullmann

anterior a João. Porém, o Evangelho de João, que captou a concepção de Logos em toda sua profundidade, levou esta reflexão até suas últimas consequências. Ideias já comuns sobre uma hipós-tase divina lhe facilitaram uma identificação ousada entre a revelação (Xóyoc,) e Jesus. Porém, seu ponto de partida é a convicção especificamente cristã de que a vida terrestre e humana de Jesus é o momento capital, exaustivo da revelação divina. Jesus vive a Palavra de Deus ao mesmo tempo que a anuncia: ele mesmo é a Palavra de Deus.

É a esta identificação que deve chegar, necessariamente, a vida de Jesus como revelação decisiva de Deus. Assim como a experiência litúrgica do Kyrios fez nascer a fé na divindade de Cristo, assim também, a reflexão teológica sobre a revelação em Jesus leva à convicção de que Jesus Cristo foi Deus desde o começo; Deus enquanto aquele que se revela ao mundo. Se Deus se revelou na vida de Jesus de maneira que a plenitude de sua doxa divina se fez patente (Jo 1.14 ss.), é preciso que Jesus já tenha sido antes a revelação de Deus aos homens. Então ele é Deus, Deus revelando-se; assim, ele é dado com o próprio Deus desde o princípio.

Vimos que a Epístola aos Hebreus, que, na questão da Palavra de Deus, associa da mesma forma Jesus à criação do mundo, o chama "reflexo" e "imagem" de Deus. Aqui também, a reflexão conduz a uma definição da divindade de Jesus que, não obstante, não apaga sua distinção com respeito a Deus.

E quando Paulo chama a Jesus de "imagem de Deus", nos põe na presença de uma definição bem análoga. Ela remete à ideia de Filho do Homem, tal qual a encontramos por exemplo em Fl 2.6 ss. Lembremos que neste texto a oposição entre a obediência de Cristo, imagem preexistente de Deus, e a desobediência de Adão, criado à imagem de Deus, tem uma importância capital. As duas concepções, a de "Filho do Homem" e a de Logos se tocam; porém, a ideia de Filho do Homem mostra mais em que consiste a redenção pelo "homem" Jesus Cristo, enquanto que a de Logos acentua mais a noção de revelação como tal: a própria doxa divina cuja manifestação estava vinculada, até então, ao lugar de culto de

Page 335: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 35 1

Betei (cf. Jo 1.51), ao Templo de Jerusalém (Jo 4.21), se tornou visível na pessoa de um homem (Jo 1.14: ècKT|Vcooev èv r^iv;53S

2.19 ss.). Certamente o autor do Quarto Evangelho é o único, no Novo

Testamento, a ter desenvolvido e levado à suas últimas consequências a ideia de ser o próprio Deus quem se revela na pessoa do Cristo encarnado; porém, cabe admitir-se que esta ideia faça parte de um património comum do cristianismo primitivo. Com efeito, esta doutrina cristocêntrica da revelação se encontra, de certo modo, na base de todas as concepções cristológicas até aqui estudadas, quer busquem captar a obra do Cristo encarnado, quer se empenhem por descrever sua obra futura e presente. Na primeira Epístola de João, onde se chama a Jesus não simplesmente o Logos, mas comum atributo "o Logos da Vida" (1 Jo 1.1), eem Apocalipse, onde, considerado como a revelação do fim dos tempos, ele é chamando "Logos de Deus", se contempla, igualmente, do ponto de vista da história da revelação, sua relação com Deus. Outro tanto ocorre em todo o Evangelho de João; porém, o prólogo nos leva até o extremo inicial da história da revelação, onde antes da criação, o Logos já estava com Deus; assim como Paulo, valendo-se da doutrina acerca do Filho de Deus, nos conduziu até o extremo final desta história na qual o Filho, depois de haver submetido tudo ao Pai, se submete a si mesmo e onde Deus será "tudo em todos"; onde, portanto, a distinção entre o Pai e a Palavra mediante a qual se revela deixa de ter sentido (1 Co 15.28).

Em resumo, pode-se dizer que para o Novo Testamento a cristologia do Logos é constituída pelos dois elementos seguintes: o primordial é a certeza de ser a vida de Jesus o centro de toda a revelação de Deus, portanto, a certeza de que Jesus é, em sua própria pessoa, aquilo que ele prega e ensina; com auxílio do relato

Esta relação é particularmente visível se se admite, com H. H. SCHAEDER, que aqui o verbo grego èoKnvcooev foi escolhido por causa de sua assonância com a palavra hebraica schekina.

Page 336: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

• 352 Oscar Cullmann

do Génesis, que narra a criação pela "Palavra", uma reflexão teológica acerca da origem de toda a revelação se apoia sobre esta certeza. O elemento secundário é a utilização de especulações contemporâneas sobre as hipóstases divinas. K[o entanto, esta utilização não chega a um universalismo sincretista, mas a um universalismo propriamente cristão.

Page 337: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

(^APÍTULO 11

JESUS, O FILHO DE DEUS

Também o título cristológico "Filho de Deus" costuma ser examinado, na dogmática posterior, exclusivamente do ponto tje vista das duas naturezas. "Filho de Deus" qualificaria a natureza divina de Jesus Cristo; e "Filho do Homem", a humana. Porém, já nos é patente que semelhante maneira de ver é só parcialmente exata, ao menos no que diz respeito ao título de "Filho do Homem" que é acima de tudo (se nos ativermos a Dn 7.13) um título cie soberania. Inversamente, veremos que, se bem que seja verdacie que o título "Filho de Deus" alude à majestade divina de Jesus e a sua unidade última com Deus, subentende, também, como elemento essencial, a obediência de Cristo a seu Pai, sua humildade.

Indiscutivelmente, o título"Filho de Deus" caracteriza de maneira particular e totalmente única a relação entre o Pai e o Filho. É pois com alguma razão que os teólogos da igreja antiga se vala. ram também deste título em suas discussões cristológicas. Porérn devemos cuidar para não atribuir aos primeiros cristãos, nem sequer ao próprio Jesus, a intenção de afirmar, por este título, uma identidade de substância entre o Pai e o Filho. Que o Filho seja geracio pelo Pai e que seja divino são tomados, por certo, em consideração; porém, não no sentido das polemicas posteriores sobre a substância e as naturezas.539

Cabe-nos aqui, também, averiguar o significado que tinha esta expressão "Filho de Deus", na época do Novo Testamento, para

O que não quer dizer que algumas dessas discussões, em relação com afirmaçoes heréticas, não tenham sido necessárias posteriormente.

Page 338: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

, 354 Oscar Culhnann

judeus e gentios. Entre estes e aqueles, o termo era corrente. 0 problema da influência do uso judeu e gentil do mesmo, em seu uso cristão, se esboça de maneira análoga àquela acerca do título Kyrios.540 Nos esforçaremos por examinar sem ideias preconcebidas se a afirmação de ser Jesus o Filho de Deus se relaciona mais com a concepção judaica ou com a helenística referente ao Filho de Deus. Mesmo com o risco de ser tomado por um espírito não crítico e "conservador", será necessário, também neste caso, não excluir a priori a possibilidade de que os primeiros cristãos, e quem sabe o próprio Jesus, tenham podido dar a este termo um conteúdo totalmente novo. Um dogmatismo desta espécie seria cientificamente tão condenável como o dogmatismo "conservador".

1.0 "FILHO DE DEUS" NO ORIENTE E NO HELENISMO

É necessário examinar o emprego do título Filho de Deus no helenismo, tanto mais pelo fato de R. Bultmann, em sua Teologia do Novvo Testamento,54' voltar a tomar, como no caso do título Kyrios, a tese de W. Bousset e declarar que a aplicação do título "Filho de Deus" ao Jesus terreno é impossível não só na boca do mesmo, como também por parte da comunidade palestina. Este título não poderia ter sido conferido a ele senão no cristianismo helenístico e com o sentido que já possuía no mundo helenístico.

R. Bultmann, Theologee des N. T., p. 51, concede somente que a comunidade palestina teria conferido o título de "Filho de Deus" ao Ressuscitado referindo-se ao SI 2. Encontra prova para isso particularmente em Mc 9.7, pois que o relato da transfiguração, com a voz de Deus que se faz ouvir, seria na realidade uma transposição retrospectiva da história da Páscoa (Cf. abaixo, p. 247); assim como na antiga confissão de fé citada por Paulo em Rm 1.3 s., onde Jesus é chamado filho de Davi segundo a carne, Filho de Deus com poder segundo o Espírito desde sua ressurreição.

Com esta diferença, no entanto, temos que nos perguntar se Jesus atribuiu a si mesmo este título. R. BULTMANN, Theologie des N. T„ 1953, p. 128 ss.

Page 339: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 355

O belo estudo de G. P. Wetter sobre o "Filho de Deus"542 contém uma rica documentação sobre os "filhos de Deus" no helenismo. A origem desta noção tem que ser buscada nas antigas religiões orientais onde principalmente os reis eram considerados como gerados pelos deuses. Esta crença estava particularmente espalhada no Egito, onde os faraós passavam por ser filhos do deus sol Rá.543 Ela é atestada também, porém, com menor clareza, na Babilónia e na Assíria. A escola de Upsala,544 de acordo com sua tendência geral, pensa que a ideia da filiação divina do rei se relaciona com as festas de entronização que o Oriente antigo conhecia. Para a época do Novo Testamento, pode-se pensar também nos imperadores romanos e no título de divi filius que lhes era conferido.545

Porém, no helenismo, este título não é monopólio exclusivo de monarcas. Muito pelo contrário, gente de toda classe, a quem se atribuíam forças divinas, era chamada "filho de Deus"; ou reclamavam para si mesmos este título: todos os taumaturgos eram "filhos de Deus", ou, como se dizia também, GEToi âvÔpeç. Por exemplo, Apolônio de Tyana, de quem Filostrato nos relata a vida de uma forma que, em determinados momentos, lembra certas partes do Evangelho; ou ainda Alexandre de Abonouteichos, que conhecemos por Luciano.546 Com esta significação este título era muito difundido. Na época do Novo Testamento era comum encontrar homens que, em virtude de sua vocação particular ou de

í12 G. P. WETTER, Der Solm Gottes. Eine Untersttcluwg tiber den Charakter und die Tendenz des Johannesevangeliums, 1916. Cf. também W. GRUNDMANN, Die Goaesskindschatt in der Geschichte Jesu und ihre reíigionsgeschichtlichen Voraussetzitngen, 1938. Entre os trabalhos mais antigos, cf., p. ex., P WENDLAND, Die hellenistisch-rômische Kulliir in ihren Beziehuingen zti Judentum und Christentum, 2a e 3a ed., 1912, p. 123 ss.; H. USENER, ReligionsgeschichtUche UiUersuchungen I , 1 , Das Weilmaclusfest, 2a ed., 1911, p. 71 ss.

,13Cf. C. J. GADD, Ideas ofDivine Rule in the Ancien East, 1948. í14Cf. acima, p. 43, nota 55. 1-15 Cf. A. DEISSMANN, Licht voni Osten, 4a ed., 1923, p. 294 s.; E. LOHMEYER,

Christuskult und Kaiserkult, 1919. íJÍ'LUCIANO, Alexandre, p. 11 ss. Cf. Também W. BAUER, "Das Johannesevan-

gelitan" (Hdb. z. MT*,), 3a ed., 1933, p. 37.

Page 340: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

•356 Oscar Cttllmann

suas forças sobrenaturais, se apelidavam a si mesmos "filhos de Deus". Este título não tinha, pois, o caráter único e singular que ele apresenta no Novo Testamento. Pela obra de Orígenes contra Celso (7.9), sabemos que na Síria e na Palestina, se podiam achar pessoas que diziam de si mesmas: "Eu sou Deus, o filho de Deus, o espírito de Deus; eu vos salvo".547 Bultmann sublinha energicamente a analogia entre estes 0£Toi âvôpeç e Jesus "Filho de Deus".

A pretensão destes homens de serem "filhos de Deus" baseia-se unicamente na convicção que tinham de serem dotados de "forças divinas". Ademais, no helenismo esta noção está tão vigorosamente arraigada em uma maneira de pensar politeísta que ela dificilmente pode ser transplantada para o terreno monoteísta. Estes taumaturgos carecem da consciência de cumprir o plano divino, aquela consciência de uma unidade de vontade com o Deus único, que encontramos em Jesus. Mesmo nas religiões de mistérios onde o iniciado, o "mista", pode também chegar a ser "filho de Deus", nos achamos em num nível totalmente distinto do dos evangelhos. O que o mundo helenístico nos dá por "filho de Deus" costuma ter um caráter totalmente diferente do que por ele entende o Novo Testamento. Porém, cabe perguntarmos se o monoteísmo do Antigo Testamento já não possui uma noção de Filho de Deus, que sem ser idêntica à concepção cristã, poderia, no entanto, oferecer a esta um ponto de partida mais direto.

2. O "FILHO DE DEUS" NO JUDAÍSMO

No Antigo Testamento esta expressão é empregada de três maneiras diferentes: primeiro, o povo de Israel inteiro é chamado "filho de Deus"; em segundo lugar, o rei porta este título; e, finalmente, certos comissionados especiais de Deus, tais como os anjos e, talvez, também o Messias, são chamados assim. O fato de

Segundo C. H. DODD, The Interpretation ofthe Fourth Gospel, 1953, p. 251, nota 1, tratar-se-ia de cristãos inspirados e exaltados, de maneira que este trecho não poderia ser tomado como referencia.

Page 341: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 357

que o povo todo e seu representante possam ser designados pelo mesmo termo nos lembra aquilo que já temos visto a propósito do Ebed Iahweh ou do Barnascha.

Os textos a considerar aqui são: primeiro, aqueles onde o povo é chamado "fi Vho de Deus". Em Ex 4.22 s., Moisés recebe a ordem de dizer ao Faraó: "Israel é meu filho, meu primogénito". Em Oséias 11.1 Iahweh diz: "E do Egito chamei o meu filho". Em Is 1.2 e 30.1, os israelitas em conjunto são chamados "filhos", e em Jr 3.22 se lhes qualifica de "filhos rebeldes". Em Is 63.16 os israelitas dizem a Deus: "Tu és nosso Pai", e dão a esta palavra uma acepção que implica que Israel é "filho de Deus" em um sentido muito especial. Poder-se-ia, na mesma ordem de ideias, citar ainda outras passagens como Jr 31.20; Is 45.11; SI 82.6; Ml 1.6.548

Em todos estes textos o título "filho de Deus" expressa, ao mesmo tempo, a ideia de Deus eleger este povo com vistas a uma missão particular e a deste povo dever-lhe obediência absoluta.

Isto corresponde exatamente à maneira como Deus chama "filho" ao rei, representante do povo escolhido: "Eu serei para ele um pai eele será para mim um filho" (2 Sm 7.14); ou: "Tu és meu filho; hoje te gerei" (SI 2.7: passagem do Salmo real tão amiúde citado pelos cristãos); ou ainda: "Ele (o rei) me invocará: Tu és meu pai, meu Deus e a rocha da minha salvação" (SI 89.27). O rei é também "filho" como eleito e mandatário de Deus. Não necessitamos averiguar aqui em que medida as noções orientais, forâneas, acerca de uma geração divina puderam, por outro lado, influir nesta concepção israelita de rei.549 Surge, em especial, dos textos citados, que ao rei se chama "filho de Deus" pela mesma razão que ao povo. Se o rei é o filho de Deus, é por sê-lo o povo. É aí onde os anjos aparecem como "filhos de Deus" - sem dúvida trata-se parci-

5JS O israelita de coraçãoretoé chamado "filho de Deus''em Eclo. 4.10; SI. de Salomão 13.9; o povo inteiro em Salmos de Salomão 17.27; 18.4.

in Tratar-se-ia, sem dúvida, essencialmente, do ritual real da cerimónia de entronização. Cf. acima, p. 354s.,G. VON RAD, "Dasjudaísche Kõnigsritital" (ThLZ, 72, 1947, p. 211 ss) eA. AIST., Kleine Scltriften zur GescMchte Israels, II p. 133 s., sublinham a relação entre o ritual real e a adoção do rei como "filho de Deus".

Page 342: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

.358 Oscar Cullmaim

almente de ideias míticas: Cf. os "filhos dos deuses" de Gn 6.2 - a ideia dos autores do Antigo Testamento é sempre a de que são mandatários de Deus.550

O Messias também leva este título? Esta questão foi tratada com frequência sem que, até agora, tenha sido perfeitamente esclarecida. A dificuldade provém do fato de não conhecermos nenhum texto antigo em que, incontestavelmente, o Messias seja chamado "filho de Deus". No livro etíope de Enoque (105.2), trata-se provavelmente de uma adição posterior.551 As passagens do Apocalipse de Esdras (4 Esdras 7.28 s.; 13.32, 37, 52; 14.9) quase não são levados em consideração pois têm em vista, sem dúvida, o rcaíç (no sentido àtEbedlahweh) e não se referem diretamente àfiliação divina.552 Compreende-se, pois, que G. Dalman e W. Bousset551

contestem formalmente que o título "filho de Deus" tenha sido uma designação judaica do Messias e que W. Michaelis554 veja algo totalmente novo na nomeação "Filho de Deus" conferida a Jesus, no Novo Testamento.

Ainda que seja verdade que não temos referências concludentes parece, no entanto, difícil admitir que este atributo real não tenha sido algumas vezes conferido ao Messias,555 tanto mais pelo fato de que a esperança messiânica dos judeus estava estreitamente

siIIJó 1.6; 2.1; 38.7; SI 29.1; 89.7; Dn 3.25, 28. Cf. F. STIER, Gott itndseine Engel im Alten Testament, 1932.

5'lCf. G. DALMAN, Die Worte Jesu, I, 2a ed., 1930, p. 221; isto é confirmado pela ausência deste trecho num fragmento grego de Enoque (cf. C. BONNER, The Last Cliapters of Enoch in Greek, 1937).

532 B. VIOLET, Die Apokalypsen des Esraunddes Baruch in deutscher Gesiati, 1924, ad loc.

S"G. DALMAN, op. cit., p. 223; W. BOUSSET, Kyrios Chrisws, 2aed., 1921, p. 53 s. Ver também E. HUNTRESS, "Son ofGod in Jewish Writings prior to the Chrisúan Era" (JBL, 54, 1935, p. 117 ss).

554 W. MICHAELIS, Ztír Eiigelchristologie im Urchristentitm, 1942, p. 10 ss. 555 R. BULTMANN, Theologie des N. T., 1953, p. 51, admite também esta possibilida

de, como também J. BIENECK, "Sohn Gottes ais Cliristusbezeiclmung der Synoptiker" (ATIiANT, 21), Í9551 p. 25. Porém, este último, ,em dúvida equivocadamente, não pensa que esta questão seja importante. C. H. DODD, The Interpretaúon ofthe Fourth Gospel, 1952, p. 253, considera esta hipótese, se não certa, ao menos provável.

Page 343: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 359

associada à ideia de realeza: o fato de que os Salmos reais tenham sido aplicados ao Messias o demonstra com clareza.556 A identificação do Messias com o Filho de Deus que o Novo Testamento faz, poderia ser, também, uma indicação neste sentido (Mc 14.61; MU6.16; Lc 1.32). É, no entanto, metodologicamente perigoso referir-se a estes últimos textos para o problema que nos ocupa. Veremos, com efeito, que nos sinópticos o título "Filho de Deus", outorgado a Jesus, não decorre de sua dignidade messiânica; e é bem possível que a associação do Messias e do Filho de Deus, em algumas raras passagens, se deva simplesmente ao fato de o cristianismo primitivo ter visto simultaneamente em Jesus o Messias e o Filho de Deus, embora partindo de dois pontos de vista diferentes. Em todo caso, em princípio, temos que distinguir no Novo Testamento o Messias e o Filho de Deus. Se o Messias, então, pôde receber no judaísmo o atributo de "Filho de Deus", isso foi só em virtude desta ideia de eleição que é indispensável para se atribuir o título de "filho de Deus" ao rei.

Em resumo, pois, podemos dizer que para o Antigo Testamento e o judaísmo o que caracteriza o Filho de Deus não é primordialmente a posse de uma força excepcional, nem uma relação de substâcia com Deus em virtude de haver sido divinamente gerado; mas sim o fato de ser eleito para realizar uma missão divina particular, e obedecer estritamente ao chamado de Deus.

3. JESUS E O TÍTULO "FILHO DE DEUS"

Jesus se considerou a si mesmo como "Filho de Deus"? A resposta a esta pergunta é negativa para quantos comW. Bousset e R. Bultmann557 fazem remontar este título, quando o Novo Testamento o aplica ao Jesus terreno, ao seu uso helenístico. Mesmo

iMG. DALMAN, op. cit„ p. 219 ss., nota que o SI 2, que sobretudo entra aqui em questão, foi raramente interpretado messianicamente.

ií7Só a atribuição do título "Filho" ao Ressuscitado pode, segundo BULTMANN, explicar-se pela tradição judaica. Cf. acima, p. 354 s.

Page 344: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

•360 Oscar Cullmann

quando esta tese se revele, diante do exame, ser insustentável, haveremos de perguntar se, todavia, não foi a comunidade primitiva quem considerou a Jesus como o Filho de Deus, por influência do Antigo Testamento, sem que o próprio Jesus houvesse atribuído a si mesmo este nome. Detendo-nos no método da história da forma, investigaremos se no cristianismo primitivo "Filho de Deus" era um título atribuído correntemente ao Cristo. Examinaremos, ao mesmo tempo, se o uso deste termo no Antigo Testamento e no judaísmo basta para explicar a convicção dos primeiros cristãos de que Jesus era o Filho de Deus, sem fazer intervir a consciência do próprio Jesus de ser este Filho.

Se fossemos, ao fim, levados a atribuir a Jesus esta consciência, haveríamos, então, que determinai* em que sentido ele entendia esse título. Tudo que se pode dizer no momento é que, segundo o testemunho unânime da tradição evangélica, o título "Filho de Deus", aplicado a Jesus, deve expressar o que há de único, de incomparável, em sua relação com o Pai.

W. Grundmanníí<! sustentou a tese de que Jesus havia se considerado Filho de Deus no sentido lato e geral, que faz de todos nós "filhos de Deus." Só posteriormente esta filiação geral teria se tornado a filiação particular e única. Neste caso, o título "filho de Deus", aplicado a Jesus, não significaria, para o problema cristológico propriamente dito, nada. Tal simplificação nãoé adequada para resolver o problema. Ela baseia-se inteiramente em uma hipótese que, aliás, não pode se apoiar em nenhum texto; pois já os sinópticos, começando por Marcos, empregam o título "Filho de Deus", seja ou não na boca de Jesus, de uma maneira tal que, nem com a melhor boa vontade do mundo, seja possível crer que tenham pensado em uma filiação geral e comum. Também Paulo, que em Gl 4.4 ss. e Rm 8.14 ss., fala de nossa filiação, a deduz do caráter único da de Jesus. Do ponto de vista teológico, a relação entre a nossa filiação e a de Jesus, é, pois, concebida por Paulo no sentido inverso da que supõe Grundmann.

sCf.seu livro citado mais acima, p. 355, nota 542. Segundo uma publicação mais recente: "Sohn Gottes, ein Diskussionsbeitrag .ZAfH', 47, 1956, p. 113 ss., parece, no entanto, haver seriamente corrigido sua tese.

Page 345: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 361

Começaremos por examinar a questão da origem helenística do emprego deste título, por esta tese gozar hoje de especial acolhimento graças à teoria que R. Bultmann defende em sunTheologie desNeuen Testaments.559 Tentando definir o conteúdo do conceito helenístico de "filho de Deus" já temos observado que este mal pode separar-se do meio politeísta da antiguidade pagã e que a ideia de uma simples posse de forças divinas, característica daqueles Beíoi ÔcvSpeç, aqueles taumaturgos de quem possuímos ainda algumas biografias, não é a da tradição evangélica, quando esta apresenta a Jesus como o Filho de Deus. As principais passagens sinópticas, nas quais Jesus aparece como o Filho de Deus, não o mostram, precisamente, com o aspecto de um taumaturgo ou de um salvador semelhante a muitos outros: muito pelo contrário, eles o distinguem radicalmente de todos os demais homens para os quais ele se sabia enviado, no sentido que eles lhe atribuem a convicção de ter de cumprir sua obra terrena em concordância perfeita e total com a vontade do Pai. Esta separação, este afastamento, não significa em primeiro lugar para Jesus a posse de um poder sobrenatural, mas a obediência absoluta no cumprimento de sua missão divina. É isto que os Sinópticos enfatizam. No relato do batismo, onde se ouve a voz celestial (Mc 1.11 par.), o título de "Filho"-já o vimos, ao examinar o de Ebed Iahweh - é associado ao começo dos cânticos do Servo Sofredor. É até provável que o texto hebraico de Isaías já suponha a ideia de "Filho". Voltaremos a isto. Parece-nos evidente que neste relato, precisamente, os Sinópticos insistiram no elo entre a ideia de "Filho" e a de Ebed; e, portanto, na ideia de ser a filiação de Jesus regida pela afirmação de sua obediência. Porém, o que separa ainda mais radicalmente a Jesus de todos os "filhos de Deus" helenísticos é a história da tentação, tão estreitamente ligada a seu batismo.560 Foi justamente por ter sido chamado "Filho de Deus" no momento de seu batismo que Jesus foi submetido à tentação e, coisa caracte-

JCf. acima p. 354 s. e 359. >É certo que os dois textos já formavam uma unidade na tradição oral (contra R. BULTMANN, Geschichte d. Sytiopt. Tradition, 2a ed., 1931, p. 270).

Page 346: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

362 Oscar Cuílinann

rística, segundo Mateus as primeiras tentações começam pela frase: "Se tu és o Filho de Deus..."561 (Mt43, 6; cf. Lc 4.3,9). Temos visto que o diabo busca impor a Jesus um papel de Messias político que deve preservá-lo do sofrimento. Observemos agora que para seduzi-lo utiliza a convicção que Jesus tem de ser o Filho de Deus, convicção que não é simplesmente um elemento da consciência messiânica.562 É muito significativo que Jesus recuse como diabólica esta concepção "helenística" de filho de Deus que o diabo queria sugerir-lhe, a de um milagreiro. O que o diabo ataca essencialmente nestas duas primeiras tentações, não é a confiança de Jesus em que o poder milagroso de Deus se manifestasse em seu favor por ser seu Filho; o que tenta provocar é a desobediência do Filho para com o Pai, sugerindo-lhe milagres estranhos a sua missão específica de Filho.

Assim J. Bieneck chega, em seu estudo das passagens sinópticas relativas ao Filho de Deus, à conclusão de que estes textos traçam uma "imagem tão pouco grega quanto possível" do Filho de Deus. A única passagem na qual Jesus é chamado "Filho de Deus", em um sentido concordante com o sentido helenístico, seria o da versão dada por Mateus do episódio de Jesus caminhando sobre o mar onde os discípulos exclamam: "Tu és verdadeiramente o filho de Deus" (Mt 14.33). Sem mencionar o fato de que Marcos dá aqui uma conclusão muito distinta, o próprio Evangelho de Mateus não dá a este testemunho maior importância.563

J. BIENECK, Solm Goítes ais Ckrístusbezeicimung der Synoptiker, 1951, p. 64, nota 18, explica corretamente a ausência no escrito de Mateus da fórmula "se tu és Filho de Deus", no começo da terceira tentação, pelo fato de que ali o diabo exige algo muito diferente do que nos dois casos precedentes: um ato de submissão e não um ato de poder. Tampouco há mais coincidência automática entre a consciência de ser Filho e a de ser Messias na questão do Sumo Sacerdote (Mc 14:61), onde os dois títulos são justapostos, ou nas burlas dos que passavam ao pé da cruz (Mc 15.29 ss. par.). Uma dificuldade se apresenta a este respeito: segundo o plano do Evangelho de Mateus, com efeito, é somente a partir de Mt 16.16 que os discípulos reconheceram a Jesus; parece, pois, ilógico que este reconhecimento já seja antecipado em Mt 14.33. J. BIENECK, op. cit., p. 56, tenta explicá-lo admitindo que se trata de um reconhecimento ainda imperfeito: explicação que pode ser levada em consideração, porém, que nos parece um pouco rebuscada.

Page 347: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 363

A sequência do testemunho dos Sinópticos é clara: Jesus é o Filho de Deus não como taumaturgo, mas como aquele que realiza sua missão em obediência e, mais particularmente, como aquele que aceita o sofrimento. Voltaremos a estas passagens; porém, já aqui temos de chamar a atenção para o fato de que na confissão de Pedro (Mt 16.16), tanto como no testemunho do ccnturião ao pé da cruz (Mc 15.39),564 a dignidade do Filho de Deus está associada a seu sofrimento; e que no relato da transfiguração (Mc 9.7, par.), ela é proclamada como a confirmação de sua missão divina e da unidade perfeita com o Pai na execução de sua missão. Esta união estreita se expressa, também, na palavra tão controvertida de Mt 11.27 relativa ao Filho que "só o Pai conhece".565 Esta afirmação tem, é verdade, paralelos na piedade helenística dos mistérios;566 porém, nos Evangelhos Sinópticos guarda conexão com a ideia de que a relação de Jesus com seu Pai é seu segredo, e que para conhecer este segredo deve-se possuir um conhecimento sobrenatural, o qual só pode ser dado a um homem, que lhe vem de fora: quer seja do Pai, como em Pedro (Mt 16.17), quer seja do diabo, como na "confissão" dos endemoninhados (Mc 3.11; 5.7).

A tese da origem helenística do título "Filho de Deus" atribuído a Jesus não pode, então, ser sustentada em relação aos Sinópticos; e a este respeito, ao menos, não temos razões para duvidar a priori da autenticidade de algumas declarações de Jesus nas quais ele se auto designa "Filho". Seria possível, no entanto, como dissemos, que fosse a comunidade palestina primitiva a que houvesse

lj A passagem paralela de Mt 27.54, que não consideramos ser a versão original, em oposição a J. BIENECK, op. cit.,p. 55 (que segue sobre este ponto a SCHALATTER e ZAHN) nos parece antes, próxima a Mateus 14.33.

'5 Sobre a explicação deste logion cf. abaixo, p. 373 ss. "W. BOUSSET, Kyrios Christos, 2a. Ed., 1921, p. 48 s., cita, entre outras, uma ora

ção a Hermes, do papiro mágico de Londres 122,50: "Eu te conheço, Hermes, e tu me conheces; eu sou teu, e tu és meu".

Page 348: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

•364 Oscar Cullmaitn

posto este título em Sua boca; pois "Filho de Deus" é, com efeito, um dos nomes pelos quais os primeiros cristãos expressaram sua fé em Jesus. Veremos, com efeito, que existiu uma breve confissão de fé: "Jesus é o Filho de Deus". No Evangelho de João e na Epístola aos Hebreus, "Filho de Deus" é uma das concepções cristo-lógicas fundamentais. Paulo a emprega igualmente, embora com muito menor frequência que o título Kyrios. Já vimos que os Sinópticos o utilizam também, e não somente na boca de Jesus. Marcos, sobretudo, parece dar-lhe particular importância, já que segundo antigas leituras,567 intitula sua obra "Evangelho de Jesus Cristo, o Filho de Deus". A situação não é pois a mesma para o título "Filho do homem" e para o de "Servo de Deus". Quanto a saber se Jesus havia atribuído a si mesmo o título de "Filho do Homem", e o papel do "Servo de Deus" sofredor pudemos responder de maneira afirmativa, apoiando-nos no fato destes títulos não haverem influenciado no surgimento da fé em Jesus, por parte da igreja nascente; e no fato de que os Sinópticos só se servem da expressão "Filho do Homem" quando Jesus fala de si mesmo, mas nunca quando terceiros falam dEle. Em troca, a fé em Jesus "Filho de Deus" é uma das crenças cristológicas da igreja primitiva, já que este título não se encontra somente nas palavras de Jesus, mas que é frequente nos primeiros autores cristãos, quando estes dele falam.

Por conseguinte, seria possível, em princípio, que a comunidade primitiva houvesse posto posteriormente este título na boca de Jesus. Contudo, temos de observar que, segundo os Sinópticos, unicamente em casos excepcionais e por revelação sobrenatural ele foi, durante sua vida, reconhecido como "Filho de Deus", por Pedro a quem não são "a carne nem o sangue" que o revelam (Mt 16.17); pelo diabo (Mt 4.3, 6); pelos demónios (Mc 3.11; 5.7). Nos demais casos ou bem é a voz celestial que o chama "Filho" (batismo, transfiguração), ou bem, excepcionalmente, é o próprio

Cf. abaixo, p. 384, nota 605.

Page 349: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 365

Jesus quem assim se autonomeia.568 Os Sinópticos recordariam que o reconhecimento de Jesus como "Filho de Deus" remontava ao próprio Jesus?569 Tentaremos, na continuação, responder a esta pergunta.

Uma outra consideração, em compensação, nos parece decisiva: tanto pelas crenças do Antigo Testamento como pelas do judaísmo, a igreja nascente não tinha nenhuma razão aparente para chamar a Jesus "Filho de Deus". Não é impossível, certamente, que o Messias judaico tenha, às vezes, recebido este nome em conexão com a ideia de sua realeza. Porém, a ausência total de um texto que apoie esta hipótese prova que, ao menos, não se trata de um atributo essencial do Messias. Ademais, no próprio Novo Testamento, e mesmo na questão formulada pelo sumo sacerdote a Jesus, o título Filho de Deus não deriva nunca da vocação especificamente messiânica de Jesus.

É verdade que segundo Mc 14.61 o sumo sacerdote pergunta: "'Es tu o Messias, o Filho do Deus bendito?" Segundo Mateus 26.63 sua pergunta é semelhante: "Eu te conjuro, pelo Deus vivo, que nos diga se és o Messias, o Filho de Deus". É possível que tenham sido os evangelistas, para quem Jesus era ao mesmo tempo (embora de dois pontos de vista diferentes) Messias e Filho de Deus, os que posteriormente estabeleceram esta associação, porém, certamente, sem fazer derivar a segunda dignidade da primeira. É possível que Lucas (22.67) siga uma melhor tradição, ao separar a questão relativa ao Messias da concernente ao Filho de Deus, situando-as no interrogatório em dois momentos distintos.

Unicamente na versão de Mateus, a confissão de Pedro une o Messias ao Filho de Deus: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo" (Mt 16.16). Marcos e Lucas falam só do Messias (Mc 8.29; Lc 9.18). Temos aí duas tradições diferentes que se referem, prova-

sMc 14.61 e Mt 27.43 não devem ser levados em consideração, pois nem o sumo sacerdote, nem os zombadores ao pé da cruz, criam na filiação de Jesus.

aO. BAUERNFEIND, Die Worte der Dãmonen im Markusevangelium, 1927, p. 78 ss., faz notar que a menção do testemunho dos demónios não é compatível com a teoria de WREDE sobre o "segredo messiânico".

Page 350: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

366 Oscar Cullmeutn

velmente, a dois acontecimentos históricos distintos, aludindo uma ao Messias e a outra ao Filho de Deus. A primeira se encontra nos relatos de Marcos e de Lucas. Mateus combinou as duas. A resposta de Jesus e a declaração acerca da igreja fazem parte somente da segunda tradição. J. Bieneck570 mostra, com razão, que as palavras (v. 17): "Não foi carne nem sangue quem te revelou, mas meu Pai que está nos céus" (palavras que, com as afirmações famosas sobre a pedra da igreja e o poder de ligar e desligar, não se encontram senão em Mateus) se relacionam à confissão de fé no Filho de Deus e não à identificação de Jesus com o Messias. Marcos e Lucas, depois que Pedro confessa sua fé somente no Messias, não mencionam a resposta de Jesus acerca da inspiração divina da confissão de Pedro. Mas, ainda estudando a atitude de Jesus relativa ao título de messias571 vimos que, segundo a versão de Marcos, Jesus não tinha na verdade nenhuma razão nesse momento para considerar a Pedro como inspirado por Deus, já que ele se equivocou sobre a dignidade messiânica e teve que ser repreendido severamente: "Para trás de mim, Satanás!"

Avancemos um passo a mais: J. Bieneck teve razão em relacionar a palavra de Jesus; "Tu és bem-aventurado, Simão...", assim como a frase relativa à revelação direta de Deus (Mt 16.17), a um só elemento da confissão de Pedro: o que ele diz acerca do "Filho de Deus". Iremos ainda mais longe nesta linha, retomando nossa sugestão de que o relato de Mt 16.17-19 pertencia primitivamente a outro quadro histórico,572 pensamos que Jesus responde aqui a

°Op. cit., p. 50, nota 15 'Cf. acima, p. 161 s. !2Cf. O. CULLMANN, Saiu! Pierre, disciple, apôtre, martyr, 1952, p. 154 ss., e

nossa contribuição aos Mélanges T. W. Manson, que aparecem sob o título de; "Pedro, instrumento do diabo e instrumento de Deus; o lugar de Mt 16.16-19 na tradição primitiva". O fato de nos atrevermos a considerar estas palavras como autênticas nos valeu, como era de se prever, muitas "repreensões". Porém, nossa tese, a saber, o ensaio visando incorporar em outro lugar da vida de Jesus o segmento da tradição relatada porNlt 16.17-19 (e que na origem não tem nada que ver com o quadro de Cesaréia de Filipe, Mc 8.27 ss.), quase não foi discutido por haver excessiva preocupação pela questão da autenticidade.

Page 351: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGI A DO NOVO TESTAMENTO 367

uma outra confissão de Pedro totalmente diferente, que tem um paralelo em Jo 6.69, e onde Pedro teria dito somente: "Tu és o Filho do Deus vivo", ao que Jesus teria respondido declarando-o bem-aventurado porque só Deus podia revelar-lhe isto, já que só o Pai conhece ao Filho (Mt 11.27).

Estaríamos até dispostos a crer que é somente no segmento da tradição referida por Mt 16.16-19 que se trata verdadeiramente de uma "confissão de Pedro". O ponto de Mc 8.27 ss. é, com efeito, muito dilcrenlc, já que não se trata aí em nada de uma confissão de Pedro mas de uiva repreensão que lhe é dirigida por causa de sua faixa noção acerca do Messias. Mateus reuniu aqui, como faz com frequência, duas perícopes entre as quais, de certo ponto de vista teológico, viu uma relação.

É de capital importância o fato de que os Sinópticos distinguem cuidadosamente os títulos "Filho de Deus" e "Messias". Se de fato a igreja primitiva não fez derivar a dignidade de Filho de Deus da "messianidade" que atribuía a Jesus, então não se pode ver o que é que pôde levá-la a afirmar, acerca de seu próprio chefe, que pretendia ser "Filho de Deus". A explicação que se impõe é que o próprio Jesus se autodesignou com este título.

W. G. Kummel, "Das Gleichnis von den bõsen Weingãrtnern", ("Aux sources de la tradition chrétienne, Mélanges M. Goguel, 1950, p. 120 ss.), acredita que deve negar a Jesus a paternidade desta parábola, principalmente por causa do título de "Filho" que aí se acha, mas não dá explicação satisfatória da aparição deste título na igreja nascente. Também reconhece que para os judeus, a noção de Filho de Deus não depende da noção de Messias. Porém, não basta ver, como ele o faz, a origem da afirmação da filiação divina de Jesus na utilização que os primeiros cristãos faziam do SI 2.7.573 Pois ficaria ainda por explicar o que os levou a utilizá-lo assim.

Também é significativo queW. BousseteR. Bultmann tenham se sentido obrigados a recorrer às biografias helenísticas de toda sorte de taumaturgos para explicar que o título "Filho de Deus"

Op. cit., p. .131 ,eguindo C. H, DODD.

Page 352: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

. 36ÍÍ Oscar Cullinann

tenha sido atribuído ao Jesus terreno, e, portanto, não vendo eles a possibilidade de situar a origem deste título na primeira igreja palestina. W. Grundmaiin, que tropeça no escândalo de um Jesus que se toma a si mesmo por Filho único de Deus crê, no entanto, que se deve atribuir o emprego deste título ao próprio Jesus, porém, adotando a tese, um tanto ingénua, segundo a qual para Jesus o título não teria nada de especificamente cristológico, mas que deveria ser entendida num sentido geral de "criança de Deus".

* * *

Em virtude da importância e dificuldade do problema, foi necessário se fazer um desvio antes de se poder precisar em que sentido Jesus se considerou como o "Filho de Deus". Já apontamos que Jesus, sem chegar a recusá-lo diretamente, ao menos, evitou conscientemente o título de "Messias"; em troca, não vacilou em se aplicar o de Filho de Deus. No entanto, raras vezes o emprega; e não podemos considerá-lo como uma designação à que Jesus recorre correntemente como foi o caso do título "Filho do Homem". E, no entanto, a convicção de ser o "Filho de Deus", num sentido totalmente único e especial, há de ter sido um elemento essencial da consciência que Jesus tinha de si mesmo. Ainda neste caso a tese de W. Wrede não nos parece satisfatória. Não podemos falar, é certo, de um "segredo do Filho" como o fizemos do "segredo messiânico". Porém, se nos referimos a Jesus mesmo, a explicação, no entanto, tem que ser buscada na mesma direção que a indicada para o "segredo messiânico": Jesus prefere, em geral, o título "Filho do Homem" ao de "Filho de Deus" por temor de que o título "Filho de Deus" pudesse levar o povo a só considerá-lo sob um dos dois aspectos que este título supõe: a majestade divina sem o outro a obediência da humildade

Junte-se a isso outra razão. O título de Filho de Deus efetiva-mente contém também uma afirmação de soberania, de dignidade divina excepcional. Porém, ela pertence ao mais íntimo da consciência de Jesus, em maior grau que a afirmação de soberania implí-

Page 353: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 369

cita no título Filho do Homem ou no de Messias: com efeito, ela diz respeito à constante certeza de uma congruência perfeita entre sua vontade e a do Pai, e a alegria de saber-se cabalmente conhecido pelo Pai. Temos aqui muito mais que a mera consciência profética de um homem que se sabe um instrumento de Deus; e mais que a "obrigação" experimentada pelo apóstolo quando exclama: "Ai de mim se não anuncio o Evangelho!" (1 Co 9.16). Deus agiu não somente por ele mas com ele. Pode assim reivindicar o direito de perdoar pecados, o qual lhe acarreta, da parte dos escribas, a acusação de blasfémia por igualar-se, dessa maneira, conscientemente a Deus: "Quem pode perdoar os pecados senão só Deus?" (Mc 2.7). Está claro que executa, também, o plano de Deus na qualidade de profeta, de apóstolo. Porém, em tudo isso sente-se um com o Pai. Esta unidade é um segredo de Jesus: seu segredo mais íntimo. Assim também se explica o fato que, como o costume que ele tem de retirar-se a um lugar deserto para orar (Mc 1.35),574 Jesus, segundo os sinópticos só muito raramente fala de si mesmo como o "Filho". E quando o faz, em geral, não é para proclamar este segredo que ultrapassa toda inteligência humana, mas tão-somente para deixá-lo ser adivinhado. Pois para o entendimento humano comum, semelhante maneira de entender-se como o "Filho de Deus" era incompreensível e devia ser interpretada, mesmo na antiguidade, como sinal de exaltação e até de alienação psíquica. Se os taumaturgos do mundo helenístico podiam, sem surpreender demasiadamente, se dizer abertamente "filhos de Deus", é por darem a este título, que compartilhavam com muitos outros, um conteúdo muito distinto. Porém, o caso de Jesus é totalmente outro; daí sua reserva, reserva que nos proíbe, a priori, classificá-lo entre os "casos" psiquiátricos bem conhecidos e que foram considerados análogos.

Nas poucas passagens sinópticas - falaremos mais adiante do Evangelho de João- onde Jesus fala de si mesmo como "Filho dd Deus" ou simplesmente "Filho", aparecem sempre estes dois aspectos: por

Este paralelo mostra que a teoria de WREDE, para explicar a discrição de Jesus, é inútil.

Page 354: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

370 Oscar Cullmarm

um lado, a obediência filial ao plano de Deus, por outro, a experiência contínua, desde seu batismo, de manter com Deus uma relação essencialmente diferentes da dos demais homens.

Se Jesus recorre, para designar esta experiência, à expressão "Filho de Deus" não é - sabemos agora - porque este título satisfazia a ideia judaica de Messias, é antes, mas também não unicamente, em razão de como se expressa o Antigo Testamento acerca do "Filho de Deus". Este título, já o temos visto, é ostentado pelo povo de Israel e seu rei, na qualidade de instrumentos escolhidos para executar o plano divino de salvação. Se a consciência de ser Filho de Deus se expressa em Jesus pela obediência, a relação com esta concepção bíblica é evidente. Porém, como explicação, isto não basta. Em Jesus, se agrega algo novo, próprio de sua pessoa: esta experiência íntima que o acompanha constantemente em sua obediência, de uma unidade integral entre sua vontade e a do Pai. Agora, sobre este ponto, o "Filho de Deus" do Antigo Testamento não nos oferece paralelo algum.

Porém, o fato de que Jesus, ao empregar o nome de "Filho", retome um termo bíblico que pode designar ao povo de Israel inteiro, nos permite estabelecer uma conexão entre este título e os outros que expressam a consciência que Jesus tinha de si mesmo: como nos casos de "Filho do Homem" e EbedIahweh, a ideia de substituição, que é o princípio de toda história da salvação,575 está também compreendida no título "Filho de Deus".

Esta aproximação entre os títulos "Filho de Deus" e "Servo de Deus" é tanto mais importante quanto pelo fato de que, na vida de Jesus, o batismo constitui o ponto de partida dessa sua consciência de ter de cumprir a missão do Ebede, ao mesmo tempo, de ser o Filho de Deus de uma maneira única. É verdade que o começo dos cânticos do Servo (Is 42.1) que ressoa dos céus no momento do batismo de Jesus, não contém em hebraico a palavra ben, "filho". Porém, se tem observado acertadamente que a expressão empregada em seu lugar, bechiri, "meu bem-amado", àyaKrycóc,,

Cf. O. CULLMANN, Christ et le Temps, 1947, p. 81 ss.

Page 355: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 371

supõe a ideia de filiação e ainda a ideia de que o filho em questão é um filho único.576 Daí vem, talvez, que os LXX não traduzam Ebed por ÔOÍJXOÇ mas por ícaíç, palavra que significa ao mesmo tempo servo e filho.577 De todas as maneiras a voz celestial faz recair o acento tanto sobre "tu és meu filho único", como sobre "tu deves assumir o papel de Ebed Iahweh". Esta relação com o tema do Servo Sofredor mostra que junto à soberania a obediência é, para os Sinópticos, um elemento constitutivo da ideia de Filho único de Deus.578

O batismo de Jesus, com a revelação que o acompanha, inicia o Evangelho de Marcos tanto como o Evangelho de João. Abre caminho à compreensão de toda a vida de Jesus e também a toda a cristologia pois, nesse momento, Deus revelou a Jesus, simultaneamente, quem Jesus era e qual a sua missão; e, desde então, a consciência de sua perfeita unidade com o Pai e do dever que o espera não o abandonará nunca. O relato da tentação o mostra em seguida: "Se tu és o Filho de Deus ...", diz o diabo; porém, Jesus resiste ao saber que, precisamente porque é o Filho de Deus, não pode ser nem um taumaturgo, à maneira dos "filhos de Deus" helenísticos,579 nem um soberano do mundo, à maneira do Messias político. Justamente por ser o "Filho", não pode contar com o poder milagroso de Deus, a menos que Lhe obedeça em sua missão e não se jogue do alto do Templo. Entendida desta maneira, a tentação de Jesus, Filho de Deus, corre paralela com a de Adão. É o mesmo paralelo antitético que, segundo a explicação exposta acima, jaz por detrás de Filipenses 2.6 ss., onde a semelhança de Jesus com Deus não o leva a "roubar" a igualdade com Deus, como Adão quis fazer; mas sim à obediência, até a cruz. O sentido do

576Cf. G. SCHRENK, em ThWbNT, II, p. 738; W. BAUER, Wõrterbucli, 4a ed., 1952, p. 10 s.

577É o que indica também L. CERFAUX, Le Christ datis la Théologie de Saint Paul, 1951, p. 340.

5™ J. BIENECK, op. cit., tem o mérito de haver posto em evidência este fato. 57!>Cf. G. DELLING, "Das Verstãndnis des Wunders im N.T." (2, syjf. Th. 1956,

p. 265 ss.).

Page 356: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

• 372 Oscar Cullmann

relato da tentação de Jesus é, pois, que para ele, ser Filho de Deus significa estar constantemente submetido à vontade de seu Pai.

Igualmente, a consciência de sua unidade íntima com o Pai o acompanhará sem cessar desde o momento de seu batismo. O fato de que a voz que se dirige a ele no momento da transfiguração580

reproduza em parte a voz celestial que ele ouviu então, não é certamente devido ao acaso. Precisamente é, naqueles instantes de sua vida em que os limites entre o céu e a terra desaparecem por um momento para Jesus, que se ouve chamá-lo "Filho de Deus". Porém, mesmo à parte esses momentos, tem ele permanente consciência de ser um com o Pai.581 Sabe, assim, que só um conhecimento sobrenatural pode revelar a outros - seja Pedro, seja aos demónios - a natureza única de sua filiação.

Não é certamente por acaso que, de acordo com os Sinópticos, os demónios empreguem, junto ao título "Filho de Deus", somente o de "Santo de Deus" (Mc 1.24). Este nome se aproxima, com efeito, muito ao de

Não há nenhuma razão para considerar este relato como uma cena de aparição do Ressuscitado projetada retrospectivamente à vida de Jesus, como o querem J. WELLHAUSEN, Das Evãiigeiuim Marci, 1909, p. 71 e R. BULTMANN, Geschichie d. synopt. Tradition, 2a ed, 1931, p. 278. A. HARNACK, "Die Verklãritngsgeschichte Jesu" (S. B. de preitss, Ak. D. Wiss., 1922, p. 76 ss.), assim como E. MEYER, Ursprung undAtifãnge des Cltristentuins, I, 1921, p. 152, ss., consideram, pelo contrário, o relato da transfiguração como uma tradição antiga e admitem que este mesmo fato da vida terrestre de Jesus constitui a razão da visão que Pedro teve depois da morte do Senhor. E. LOHMEYER, "Die Verklãrung Jesu nach dem Markusevangeliitm" (ZNTW 21, 1922, p. 185 ss.) contesta igualmente que este relato da transfiguração seja derivado de uma aparição do Ressuscitado; no entanto, não considera a transfiguração como histórica, senão que atribui sua origem a concepções judaicas. O que faz também H. RIESENFELD em seu detalhado estudo: Jesus Transfigure, 1947, onde remete, antes de tudo, à festa judaica dos tabernáculos. Mesmo quando da última tentação no Getsemâni, esta consciência não o abandona. Deve, uma vez mais, dar a medida de sua obediência filial. É somente no instante em que a morte-para ele como para Paulo o "último inimigo"-o alcança é que ele gritará: "Deus meu, Deus meu por que me abandonastes?" Porém, mesmo este grito não é verdadeiramente compreensível senão a partir de sua consciência de ser o Filho de Deus. Cf. a este respeito O. CULLMANN, Immortalité de l'âme ou réssurection des morts?, 1956.

Page 357: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOCJIA DO NOVO TESTAMENTO 373

Filho de Deus,ÍSÍ pois indica, igualmente, a situação excepcional de Jesus, sua posição àparte de todas as criaturas. Podemos pois nos limitar a tratá-lo rapidamente aqui.

Encontramos este título, além de em Mc 1.24, no Evangelho de João e, justamente, no paralelo joanino da "confissão de Pedro". "Nós temos crido e temos conhecido que tu és o Cristo, o Santo de Deus" (6.69). Este texto se apoia, sem dúvida, sobre a mesma tradição que Mt 16.16-19 (passagem que Mateus inseriu no âmbito de Mc 8.27 ss.); podemos ver que as expressões "Filho de Deus" c "Santo de Deus" são quase intercambiáveis. Por aí se pode explicar, sem dúvida, também Jo 10.36: "Ao que o Pai santificou e enviou ao mundo, este c o Filho de Deus". Enfim, o mesmo vínculo se encontra no anúncio do anjo Gabriel a Maria: "Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo", "o ser que nascerá de ti será chamado santo, Filho de Deus" (Lc 1.32, 35). Como, com acerto, o fazem notar M. J. Lagrange, L'Evangile selon Saiitt Marc, 2a ed., 1947, p. 22 e R. Bultmann, Joharmeskommentar, p. 344, "o santo não é título que se atribua ao Messias; deste ponto de vista temos que aproximá-lo do de "Filho de Deus" (cf. a este respeito J. Bieneck, op. cit., p. 46 s )

A palavra dirigida a Pedro: "Na foi nem a carne, nem o sangue quem te revelou, (que eu sou o Filho de Deus)" deve ser classificada com as declarações feitas pelo próprio Jesus, acerca de sua filiação divina. Tornamos a encontrar aqui a rigorosa discrição com que Jesus fala do segredo escondido no mais profundo de seu ser; compreendemos melhor porque ele se atribui só muito raramente o título "Filho de Deus". É por isso precisamente que não se deve ter muita pressa em declarar inautênticas as raras passagens onde Jesus se auto-aplica este título, sobretudo quando se encontra nelas a discrição de Mateus 16.17.

Em primeiro lugar, vejamos a célebre palavra de Jesus em Mt 11.27, que já temos mencionado: "... ninguém conhece ao Filho senão o Pai; e ninguém conhece ao Pai senão o Filho e a aquele a quem o Filho o quiser revelar". Entre os raros logia sinópticos nos

Segundo G. FRIEDRICH (ZThK, 53, 1956, p. 275, ss.), os dois títulos srmeeem à ideia de Jesus como sumo sacerdote.

Page 358: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

,374 Oscar Cullmann

quais o Jesus terreno se nomeia "Filho"583 - unicamente Mc 13.32 •eMc 12.6 (=Mt 21.37) entram em consideração aqui-estáaquele cuja autenticidade foi posta mais rigorosamente em dúvida. Numerosos comentaristas negam inteiramente a Jesus o uso deste título, precisamente porque ele se acha neste texto tão problemático. Não há comentário que não sublinhe o caráter joanino deste título. Já K. von Hase o havia chamado "um meteorito caído do céu joanino".584 Esta observação é perfeitamente exata porque se reconhece aí, imediatamente, um dos temas favoritos de João. Em varias ocasiões temos sublinhado que o quarto evangelista, persuadido de estar em posse do Paracleto, desenvolve naturalmente suas próprias concepções cristológicas no âmbito dos discursos de Jesus. Faz isto convencido de que "o Espírito Santo (o) ensina todas as coisas e (o) lembra de tudo o que Jesus disse" (Jo 14.26) e que somente esta compreensão pelo Espírito "conduz a toda verdade", dado que, durante a vida de Jesus, havia muitas coisas que os discípulos "não podiam ainda suportar" (Jo 16.12). Não cabe nenhuma dúvida que o autor, partindo deste ponto de vista, utilizou-se só de alguns temas, tomados da vida e ensinamento de Jesus, porém, para desenvolvê-los em toda a sua riqueza.585 Mas a opinião generalizada segundo a qual o Evangelista se iludiu ao crer estar atrelado à substância mesma do Evangelho de Jesus, tal qual o conhecemos pelos Sinópticos, é um desses dogmas pseudocientíficos de vida tão pertinaz como a de certos dogmas da igreja. É verdade que, em razão de suas perspectivas muito pessoais, não podemos tomar o Evangelho de João como base para expor a vida e o ensinamento de Jesus, coisa que não temos feito nesta obra. Porém, uma atenciosa análise de seus temas essenciais mostra que estes, estando dispostos de maneira geral segundo as perspectivas que são próprias a este

ÍK:l Como palavra do Ressuscitado, temos que agregar a ordem de batizar em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo (Mt 28.19).

5!tlK. v. HASE, Geschichte Jesit, 1876, p. 422. 5t3Cf'. a este respeito O. CULLMANN, Les sacrements dans VEvangile johamtique,

1951, p. 9 ss.

Page 359: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 375

evangelho, não são pura e simplesmente ajuntados posteriormente à vida de Jesus.

Agora, o tema da unidade total do Pai c do Filho na obra da revelação é um dos temas principais do Evangelho de João. Voltaremos a isto mais adiante. Porém, não será possível reuni-lo ao testemunho dos Sinópticos, ainda que fazendo abstração da declaração de Mt 11.27? Ou há aqui uma contradição com os Sinópticos? Indubitavelmente, a forma discreta em que Jesus falava de sua filiação divina, segundo os Sinópticos, desaparece no Evangelho de João. Porém, isso se deve a que o Paracleto, que fala pela boca do evangelista anuncia, doravante abertamente, o que antes os discípulos "não podiam suportai'". A ideia joanina de que somente uma revelação superior pode comunicar o conhecimento da filiação divina de Jesus, não está aliás de forma alguma em contradição com a tradição sinóptica: a mesma ideia aparece em Mt 16.17, e ainda se quisermos duvidar da autenticidade da palavra de Jesus encerrada neste versículo, a ninguém nunca ocorreu qualificá-la de "joanina". O "céu joanino" não é, neste aspecto, diferente do céu sinóptico; porém apresenta-se com outra claridade. De nossa parte, não vemos em todo caso nenhuma razão para declarar inautêntico o logion de Mt 11.27 pelo único motivo de seu estreito parentesco com um tema favorito do Evangelho de João.586

Não podemos entrar aqui nos detalhes da exegese (cf. sobre as explicações mais recentes, J. Bicncck op. cit., p. 75 ss.). Esta declaração apresenta, ademais, um problema relativo à história do texto. A transposição pela qual a frase "ninguém conhece ao Pai senão o Filho" se encontra localizada no começo; é atestada cm escritores dos séculos II e III, em oposição à tradição dos manuscritos (cf. A. Harnack, Spriiche ittidReden Jesit, 1907, p. 196 ss.). Com A. Schlatter, Der Evangelist Maítáus, 1929, ad. loc;;J. Schniewind, "Das Evctngeliwn netchMatthâus" (NTD), 1937, p. 147, e alguns outros, e contra M. Dibelius, Die Formgeschichte des Evangeiium,, 2a ed., 1933, p. 279 ss., adotamos como lectio dijficiUora versão dos manuscritos: com efeito, a ideia de ser Deus incognoscível

5!f>É o que pensam também, entre outros A. SCHWEITZER, Geschichite der Leben-Jesu-Forschung,2*ed., 1913, p.310,eV.TAYLOR,TheNamesof Jesus, 1953,p, 64.

Page 360: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

• 376 Oscar Culhnann

deve ter sido muito mais corriqueira para as gerações posteriores do que a ideia de o ser Cristo o icognoscível. Pela mesma razão temos que recusar a proposta de eliminar a parte do logion consagrada ao Filho, para conservar somente a afirmação relativa ao Pai (proposta feita por A. Harnack, Spruche undReden Jesu, 1907, p. 189 ss., e T. W. Manson, The Sayittgs of Jesus, 1949, p. 80).

Se a declaração é autêntica então há que se formular com toda a prudência a questão que temos anunciado a propósito de outros títulos; porém, para dar-lhe desta vez uma resposta negativa: Jesus refletiu sobre sua preexistência? Na dignidade de Filho também, trata-se em primeiro lugar da ação pela qual Deus se revela; ação pela qual Jesus experimenta continuamente sua unidade com o Pai. No entanto, conforme o observa com razão A. Schweitzer,587 "o poderoso hino de Mt 11.25-30 dá, contudo, o que pensar"; e o v. 27 pode, com efeito, "ter sido pronunciado em virtude de uma consciência da preexistência". O exegeta e o historiador não podem pretender saber mais. Tal consciência não surge da ciência exegética e histórica. Nas declarações análogas de Jesus no Evangelho de João,588

estamos diante de considerações do evangelista que está persuadido de ser conduzido "a toda verdade" pelo Paracleto. Ademais, é certo que o Jesus da história temia uma tal difusão de seu segredo de Filho. Porém, aqui também, o quarto evangelista poderia apoiar-se em seus sinais momentâneos de revelação cristológica que, segundo os Sinópticos já aparecem esporadicamente na vida e nos discursos de Jesus

Da mesma forma, na outra frase em que Jesus se declara "Filho" (Mc 13.32), trata-se de sua relação com o Pai na perspectiva da história da salvação: "Mas a respeito daquele dia ou hora ninguém sabe; nem os anjos no céu, nem o Filho, senão o Pai." Esta declaração pressupõe, em última análise, a convicção da unidade total entre o Pai e o Filho; e só assim adquire todo seu sentido. Ela indica o único ponto onde esta unidade, durante a encarnação de

A. SCHWEITZER, ibief., ,p .30. Jo 8.56 ss.

Page 361: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 377

Jesus, apresenta uma lacuna: o conhecimento da data do fim. A fixação desta data é além disso, segundo o Novo Testamento, o ato por excelência da soberania do Pai. É Ele quem a fixa por sua própria autoridade (èÇowíoc, At 1.7). Muito mais difícil é explicar esta declaração de Mc 1332 considerando-a como uma invenção posterior da igreja, que atribuí-la ao próprio Jesus. À luz da afirmação da onisciência de Jesus em Mt 11.27 (considerada autêntica) a palavra de Mc 13.32, que restringe esta onisciência torna-se muito mais compreensível, se for considerada como palavra de Jesus. Por outro lado, deve-se perguntar se a igreja primitiva pôde atribuir posteriormente a Jesus, inventando, uma declaração que restringe assim a unidade do Pai e do Filho, em questão tão capital.

Assim, a autenticidade deste logion foi muito menos rejeitada que a de Mt 11.27 (recentemente, contudo, por W. G. Kíímmel no artigo sobre a parábola dos trabalhadores na vinha, citado mais acima, p. 367). Poderíamos, contudo, alegar uma razão plausível para explicar a criação desta declaração pela comunidade: o desejo de justificar o atraso da parusia recorrendo ao próprio Jesus. Porém, pode-se, por outro lado, admitir que a comunidade se tenha arriscado a introduzir no Evangelho uma afirmação tão ousada? Não podemos esquecer que Lucas a tirou de seu Evangelho e que em muitos manuscritos do Evangelho de Mateus foi eliminada, sem dúvida, porque escandalizava a seus leitores. Num caso como este,emque ume outro partido pode trazer argumentos válidos em favor de sua tese, deveríamos determinar-nos a não formular a questão da autenticidade salvo ali onde os problemas da crítica textual, ou razões teológicas obrigam a isso de forma absoluta.

A questão de saber se, na parábola dos trabalhadores da vinha (Mc 12.1 ss.), Jesus pensou em si mesmo ao falar do "filho", depende do juízo geral que se tenha acerca desta parábola. Não nos parece haver razão que obrigue a responder negativamente.589 Neste caso, a ideia de "Filho" está também ligada à missão de Jesus, que veio realizar o ato decisivo da história da salvação. Porém, também aqui, Jesus toma só indiretamente o nome de "Filho", já que

58!> Contra W. G. KUMMEL, op. cit., (cf. acima, p. 376 s.).

Page 362: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

•378 Oscar Cullmann

o faz no âmbito de uma parábola onde esta expressão serve, simplesmente, para fazer compreender, de maneira imaginária, a relação particular e única do último enviado com o "senhor da vinha".

Se esta consciência de ser o "Filho" tem tamanha importância para permitir-nos compreender a pessoa e obra de Jesus, não devemos, tampouco, restringir-nos aqui unicamente aos poucos logia onde se encontra a palavra "filho". Também temos que levar em consideração a maneira em que Jesus fala de Deus como do "Pai". Sempre diz: "meu Pai" ou "vosso Pai", porém, jamais "nosso Pai". Pois a oração que, segundo a versão de Mateus, começa com estas palavras não é uma oração que Jesus pronuncia com seus discípulos, mas uma que ele lhes ensina:"Vós, pois, deveis orar assim" (Mt 6.9 oftxojç 7ipoaeí>X£O0e vfietç). É Justamente esta maneira espontânea, e quase inconsciente, com que Jesus afirma em tais passagens, indiretamente, sua relação pessoal com o Pai, que confirma tratar-se aí de um segredo que lhe é próprio e que deve ser revelado, para ser descoberto por outros; isto explica, ao mesmo tempo, porque Jesus não emprega, salvo por exceção, o termo "Filho".

Para terminar, lembremos da atitude de Jesus com respeito à questão do "filho de Davi". Ao estudar Mc 12.35 ss.590 vimos que esta palavra de Jesus não significa meramente que Jesus simplesmente negue sua ascendência davídica, mas que quer certamente negar a importância messiânica fundamental que os judeus atribuíam a ela assim como Ele, de modo geral, não atribui um valor primordial aos laços de sangue (Mc 3.31 ss.). Se ele finaliza o diálogo perguntando "como, pois, eleé o seu filho (isto é, o filho de Davi)?" não podemos deixar de perguntar-nos se isto não significa que, a seus olhos, a única filiação que verdadeiramente conta é esta outra que faz dele o Filho de Deus. Neste caso teríamos aqui uma ponte que uniria este texto às discussões joaninas no tocante à origem de Jesus, que não vem dos homens, mas diretamente de Deus (Jo 7.14 ss.; 8.12 ss.).

* * *

™Cf. acima, p. 173 s.

Page 363: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

C^RISTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO 379

Entre os títulos que Jesus dá a si mesmo, o que domina não é o de "Filho de Deus", mas o de "Filho do Homem". Ora, tentando penetrar no segredo da consciência que Jesus tinha de si mesmo, temos que completar o título de Filho do Homem não só pelo de Ebed Iahweh, mas, também, pelo de Filho de Deus. Dissemos, no começo deste capítulo, que "Filho do Homem" e "Filho de Deus" são títulos que afirmam, ambos ao mesmo tempo, a soberania e a humilhação. Anexemos ainda que a consciência que Jesus tinha de ser o Filho de Deus remete, como a de ser o Filho do Homem, simultaneamente a sua pessoa e a sua obra. A unidade do Pai e do Filho se manifesta pela ação de Jesus em trazer ao mundo a salvação e a revelação. Esta concepção de Filho de Deus está, também, na base da fé dos primeiros cristãos que, à luz do acontecimento da Páscoa, o confessam como o "Filho".

4. A FÉ DO CRISTIANISMO PRIMITIVO EM JESUS, FILHO DE DEUS

As primeiras "testemunhas da ressurreição" já não tinham por que retardar a proclamação de sua fé em Jesus, Filho único de Deus. Este conhecimento que "o sangue e a carne" não podem revelar (Mt 16.17), lhes havia sido confirmado pela ressurreição de Cristo e, doravante, devia ser anunciado a todo o povo. A declaração de que "Jesus é o Filho de Deus" deve, então, haver figurado entre as primeiras formas de confissão de fé da igreja primitiva. Muito provavelmente era muito utilizada na mais antiga liturgia do batismo, da qual achamos indícios em At 8.36-38. Quando o eunuco pergunta se há algum impedimento para que seja batiza-do,591 Felipe lhe responde (no v. 37, que falta em uma parte dos manuscritos; porém que, mesmo se tivesse sido interpolado, representaria uma adição muito antiga): "Se crês de todo o coração,

Cf. O. CULLMANN, Lê beipiême des enfatus et la doctrine bibHqite dtt baptême, 1948, p. 63 ss.

Page 364: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

380 Oscar Cullmann

é possível". Após o que, o eunuco pronuncia a fórmula que sem dúvida já tinha um caráter litúrgico: "Creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus".

Talvez não seja por mera coincidência que este antigo credo pertença, precisamente, à liturgia do batismo. Não teríamos aí uma lembrança do fato de Jesus ter tomado consciência de ser o Filho de Deus ao ser-lhe dada a revelação no momento de seu batismo no Jordão? Enquanto em outras circunstâncias se empregava a breve fórmula "Jesus é o Kyrios",592 era o batismo uma ocasião especialmente propícia para se confessar a fé em Jesus "Filho de Deus".

Convém lembrar, ademais, que já durante sua vida os demónios (Mc 3.11; 5.7) e também Pedro (Mt 16.16) pronunciaram esta fórmula como uma confissão de fé.

Como credo fundamental a encontramos em seguida na primeira Epístola de João: "Aquele que confessar que Jesus é o Filho de Deus, Deus permanece nele, e ele em Deus" (1 Jo 4.15). Sem dúvida, esta fórmula é posta pelo autor a serviço de suas ideias "joaninas"; porém, é evidente que cita aí um antigo credo da igreja. Falaremos mais adiante da relação que ele estabelece entre a filiação divina de Jesus e a participação dos disccpulos nesta fifiação graças a sua fé no Filho. Em sua polémica contra o docetismo a Epístola se apoia, também, nesta antiga fórmula. Ela parece ser para o autor a expressão suprema da fé. Em 1 Jo 2.23 ele faz, expressamente, o conhecimento da relação entre o Pai e o Filho depender da "confissão": "Qualquer um que nega o Filho não tem o Pai; quem confessa o filho tem também o Pai." Encontraremos a mesma ideia desenvolvida e repetida liturgicamente no Evangelho de João, mesmo que sem citação expressa da fórmula.593 Se lembrarmos até que ponto este Evangelho se preocupa, continuamente em estabelecer uma relação entre a vida de Jesus e o culto cristão 594

12 Sobre as diversas ocasiões nas quais as confissões de fé eram pronunciadas, cf O. CULLMANN, Lês premiares confessions de foi chrétiennes, 1943, p. 13 ss.

" Ela está, no entanto, contida nele como citação na acusação dos adversários (Jo 10.36). 14 Cf O. CULLMANN, Lês sacrements dans 1'Evangile johamiique, 19511 p. 9 ss,

Page 365: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO Novo TESTAME-;NTO 381

podemos considerar estas passagens, de certo modo, como comentários desta antiga fórmula litúrgica.

Sua existência na igreja nascente é ainda comprovada por outras passagens: a Epístola aos Hebreus ao convidar os leitores a "permanecerem firmes na confissão" (4.14) chama a Jesus de o "Filho de Deus"; a fé "no Filho de Deus" é atestada também em uma confissão citada por Paulo e que, de uma forma mais desenvolvida, deve, no entanto, ser muito antiga (Rm 1.3 s.). Enfim, a menção concernente a "Filho"595 se introduziu, de forma permanente, no credo posterior596 e até nas fórmulas que o precederam imediatamente, por exemplo, a que é empregada por Irineu, Adv. Haer 1,1,, l.597

Em Rin 1.3 s., onde o apóstolo cita evidentemente um texto já formulado e transmitido pela tradição,598 se diz que o Filho de Deus nasceu, segundo a carne, da posteridade de Davi e que foi declarado ''Filho de Deus com poder segundo o Espírito de santidade, por sua ressurreição dentre os mortos". Já indicamos que é essencial sublinhar aqui as palavras év Swájiet, Jesus é ''Filho de Deus" desde o princípio. É, ao menos, o que Paulo parece ter pensado quando ao v. 3 faz preceder toda a fórmula acercado título de "Filho de Deus". Porém, desde a ressurreição esta filiação divina que existia desde o começo se manifesta èv SuVccuei: o Filho de Deus se torna o Kyrios.m Por outro lado, a filiação divina ("segundo o Espírito") está associada aqui à ascendência davídica ("segundo a carne"). Enquanto que o próprio Jesus, se nossa suposição é exata6tl"

M5Mais tarde, acompanhado do epíteto "único", tirado do Evangelho de João. Cf. abaixo, p. 388 s.

MSJá na fórmula IX8YX, que representa igualmente uma confissão de fé. Cf. a este respeito o estudo de F. J. DÕLGER, Ichthys, 1910.

597 As fórmulas de confissão contidas nas Epístolas de INÁCIO não mencionam o "Filho". Isto poderia ser devido ao fato de que Inácio, que em outras passagens aplica também a Jesus o título cie "Filho", o chame 6eóç na introdução das fórmulas de Esm. I, 1 e Ef 18.2. Cf. abaixo, p. 408 s.

5 M O . CULLMANN, Les prenderes confessions de foi chrétiennes, 1943, p. 45. R. BULTMANN, Theologie des Neuen Testaments, p. 50, reconhece também a origem pré-paulina deste texto.

,,JÍ>Cf. acima, p. 306 s. mCf. acima, p. 173 s.

Page 366: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

•382 Oscar Cullmann

deprecia em Mc 12.35 ss. a ascendência davídica em benefício da filiação divina, aqui estão reunidas sem que se chegue a considerá-las, no entanto, como equivalentes: pois o que Jesus é segundo o jtveíjncc representa uma mais alta dignidade do que o que é segundo a oápí;, ainda que esta tenha também a sua importância.

* * *

Se agora passamos da confissão de fé citada por Paulo ao próprio Paulo constatamos, antes de tudo, que ele também emprega o título "Filho de Deus" em passagens que não se referem à tradição, como em Romanos 1.3. Por certo o título "Filho" é muito mais escasso em seu escritos que o título Kyrios, pois o de máximo valor para ele é o de "Filho de Deus com podef\ Porém, sabe que se Jesus é o Kyrios é também desde o princípio o "Filho", integralmente consagrado ao propósito de seu Pai. É por isso que o apóstolo insiste em valorizar a ideia que desempenhou um papel tão importante acerca de Jesus, a saber: que por sua vida, e especialmente por sua morte, o Filho de Deus cumpriu o plano divino de salvação. Deus não "poupou" a seu próprio "Filho". É isto o que escreve Paulo em Rm 8.32 pensando no sacrifício de Isaque, que mais tarde é considerado como o tipo de sacrifício do Filho único.601 Ser Filho de Deus é sofrer e morrer. Aqui também estamos a grande distância dos "filhos de Deus" do helenismo. A fim de resga-tar-nos, Deus "enviou" seu Filho (Gl. 4.4). É "pela morte de seu Filho" que somos reconciliados (Rm 5.10). É também o "Filho" de Deus que realiza a obrafutura de salvação, aquele a quem "esperamos dos céus" (1 Ts 1.10). O fim da reconciliação, àqual o "Filho" nos conduz, é fazer de nós também "filhos".602 O apóstolo mostra o

1)1 Recentemente ainda O. MICHEL, Der Briefan die Rõmer, 1955, ad. loc. Sobre a relação estudada, já na igreja antiga, entre Rm 8.32 e Gn 22, cf. D. LERCH, "Issaks Opferung, chrhtlich gedeutet" (Beitr. z. Hist. Theologie, 12), 1950.

112 Paulo compreende, pois, a relação entre nossa filiaçãoe a de Jesus contrariamente à tese de W. GRUNDMANN (cf. acima, p. 360); é por ser Jesus o Filho, de uma maneira muito diferente de nós, que pode tomar-nos filhos.

Page 367: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 383

elo entre nossa filiação e a filiação única de Jesus em Rm 8.14 ss. (cf. Gl. 4.6 ss.), onde une os termos "filho" e "herdeiro" como na parábola dos trabalhadores na vinha (Mc 12.1 ss.). Somos chamados à "comunhão" (KOIVCOVÍO;) com o Filho de Deus (1 Co 1.9).

Paulo menciona também outro aspecto: a soberania do Filho de Deus, que se revela em sua origem. Enquanto "filho" ele é a imagem de Deus desde o começo (Cl 1.14 s.). Épor isso que Deus nos predestinou "a sermos semelhantes à imagem de seu Filho" (Rm 8.29). Aqui o apóstolo aproxima a ideia de Filho de Deusà de "imagem de Deus" que, como já se viu, está por trás da noção de "Filho do Homem".

Resta-nos falar ainda de um texto cristoJógico capital, 1 Co 15.28, que também demonstra que Paulo fala da unidade entre o Pai e o Filho, mas só em relação com a história da salvação, isto é, com a obediência do Filho. Neste texto, o apóstolo nos conduz ao limite escatológico extremo da obra divina da revelação, como o Evangelho de João que, com a ideia de Logos, nos faz remontar até seu extremo limite inaugural. Ser "Filho de Deus" significa estar empenhado na obra de salvação, obedecer até o fim. Agora a última realização desta obra é a submissão final do Filho ao Pai: "Quando todas as coisas lhe estiverem sujeitas então, também, o Filho mesmo se sujeitará àquele que lhe sujeitou todas as coisas, para que Deus seja tudo em todos." Esta é a chave de toda a cristologia do Novo Testamento: falai' do Filho não tem sentido senão em relação à obra de Deus e não em relação ao seu "ser". Se é possível dizer que o Pai e o Filho são verdadeiramente um, é unicamente em relação com a obra de salvação. Do "Filho de Deus", como do Logos, se pode dizer: ele é Deus, enquanto Deus se revela em sua obra de salvação, obra da qual fala todo o Novo Testamento. E por isso que o reino no qual nos encontramos agora, antes de seu fim, é o "reino do Filho" (Cl 1.13).603

* * *

Cf. O. CULLMANN, La royauté du Chríst et l'Eglise, p. 9 ss.

Page 368: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

• 384 Oscar Cullinann

Já falamos, no parágrafo acerca de Jesus Filho de Deus, da atitude teológica dos Sinópticos frente a este título. Porém, qual é a posição peculiar que cada um deles toma quanto à noção de "Filho de Deus"?

Esta noção parece ocupai' um lugar muito importante no pensamento cristológico de Marcos. O Evangelho inteiro parece, com efeito, propor-se a demonstrar Jesus como o Filho de Deus, ainda que, em princípio, o faça de uma maneira dissimulada.604 Ao primeiro versículo do Evangelho, no qual Jesus já é chamado Filho de Deus,605 corresponde no fim a confissão do centurião ao pé da cruz (Mc 15.39). "Verdadeiramente este homem eraFilho de Deus". O fato de que, a despeito desta atitude fundamental, o evangelista recorra ao título Filho de Deus muito raramente, confirma nossas conclusões precedentes: Marcos entende aqui que se trata da revelação mais íntima e mais secreta no tocante à pessoa e obra de Jesus. Também busca respeitar a discrição com que o próprio Jesus a tratou, levando o leitor, muito suavemente pela simples exposição dos fatos, até a confissão do centurião.606

Mateus e Lucas se distinguem ao mesmo tempo de Marcos e de João, este último, aliás, procedendo de uma maneira completamente diferente.607 Eles não partilham do temor respeitoso de Marcos, que se detém ante o limite do mistério da filiação divina de Jesus. Conscientes de sua missão de proclamar abertamente à face do mundo que Jesus é o Filho único de Deus, se esforçam, nos relatos da infância que formam os dois respectivos capítulos introdutórios de seus Evangelhos, por explicar esta filiação divina e levantar o véu que encobre a geração do Filho pelo Pai.608 Para

Cf., por ex., E. LOHMEYER, Das Evangeliwn des Markus, 1937, p. 4 e 348. É verdade que este pedaço da frase falta num grande número de manuscritos; porém, testemunhos dignos de fé (e antes de tudo o texto ocidental) lêem o versículo desta maneira: 'Apxf| toB eí>ayyE>.iou 'Iriaoú Xptcfcoíi \>iox> (TOO) deofi. Como já dissemos, não temos necessidade de aceitar a tese deWREDE para explicar o segredo messiânico. Cf. abaixo, p. 388 ss. As especulações cristológicas posteriores tentarão explicar este mistério de uma maneira diferente e puramente filosófica.

Page 369: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO THSTAMIÍNTO 385

cumprir seu intento utilizam visivelmente, e independentemente um do outro, certas tradições relativas ao nascimento de Jesus que eram correntes na igreja primitiva, às quais se haviam incorporado temas orientais e helenísticos bem conhecidos. No entanto, neles o interesse narrativo cede lugar à preocupação teológica: não querem dizer mais do que o necessário para afirmar que Jesus foi concebido pelo Espírito Santo. Neste sentido, sua preocupação difere fundamentalmente da dos evangelhos apócrifos da infância que, não obstante seu caráter secundário, remontam a uma época relativamente antiga.609

A explicação da filiação divina de Jesus pelo nascimento virginal610 faz surgir logo um problema: como harmonizá-lo com a afirmação contida na confissão de fé citada por Paulo (Rm 1.3 s), segundo a qual Jesus "nasceu da posteridade de Davi segundo a carne"?6" Para este antigo credo não existia ainda o problema: junto à ascendência davídica "carnal", menciona paralelamente a filiação divina "espiritual", "com poder, em virtude da ressurreição"; sem formular a questão do modo desta filiação. Porém, visto que as genealogias de Jesus dadas por Mateus (Mt 1. 1 ss.) e por Lucas (3.23 ss.) passam por José, o pai, o problema não pode ser evitado nestes Evangelhos, pois reproduzem ao mesmo tempo a tradição de haver sido Jesus concebido sem pai humano. Tentaram resolvê-lo supondo que Jesus havia sido admitido por adoção na família davídica de José. Lucas o faz mediante a fórmula obç èvojxíÇeTO (ele era considerado como filho de José), que ele acrescenta no começo de sua genealogia (Lc 3.23); Mateus, pela frase com que, segundo o texto sem dúvida mais antigo, termina sua

Cf. a este respeito a introdução de meu estudo: Apokryphe Kindhetisevangelien, na 3a ed., por aparecer, deE. HENNECKE, Neutestamentliche Apohyphen, publicada porW. SCHEEMELCHER. Sobre os problemas relativos ao nascimento virginal, cf. a volumosa monografia de J. G. MACHEN, The Virgin Birth ofChrist, 1930, A intenção do autor é provar que a crença no nascimento virginal de Jesus é um elemento constitutivo da fé cristã primitiva e que ela permanece, por conseguinte, hoje. Cf. acima, p. 170, s. e 177 s.

Page 370: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

386 Oscar Cullmann

genealogia: "Jacó gerou a José, marido de Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama o Cristo" (Mt 1.16).

Não parece, ademais, esta explicação dos dois evangelistas haver sempre satisfeito; pois muito cedo já aparece outra tentativa de harmonizar a ascendência davídica de Jesus com seu nascimento virginal: Se o faz descender de Davi, não por José, mas por Maria; e não só José como ela também seria de ascendência davídica.''13 E assim que manuscritos posteriores, porém, também antigos, substituem no relato de Natal de Lucas (2.4) odnóv por cròicòç (outros lêem ainda mais claramente àutpoTépoiíç): "porque eles eram da casa e família de Davi". Esta afirmação é também atestada no Proto-evangelho Apócrifo de Tiago (10.1), em Justino, Dial. 43.45, em Irineu, JWV. haer. 3.21 5;3.9,2eemTertuliano, Adv. Marc. 3.17,20. Porém, ela deve remontar ao começo do século II. Pois Inácio de Antioquia emprega, como arma contra os docetas, uma antiga fórmula que, como Mateus e Lucas, afirmava ao mesmo tempo a ascendência davídica e o nascimento virginal. Ele não pode pois ter interpretado o KCCTCC cápica como os evangelistas admitindo uma ado-ção mas deve ter crido que Jesus descendia ca nuamente de Davi por sua mãe Nas posteriores confissões de fé a menção da ascendência davídica desapareceu em razão sem dúvida desta dificuldade A evolução foi pois a seguinte: no princípio a ascendência davídica KOCTÒC OÓCOKCÍ é posta em paralelo à filiação divina KOLXÒL JWEmux (Rm 1 3 s 1 sem que se intente explicar a segunda Mateus e Lucas as juntam explicando o processo da filiação divina pelo nascimento virginal e a ascendência davídica Koctcc CTWDKCI pela adoção A partir do começo do século II novamente aparece a tendência de tomar a expressão Kaxà oáoKCt em seu sentido próprio; mas então deve-se introduzir Maria na posteridade de Davi se se ciuer manter a afirmação do nascimento virginal

É difícil determinar a data exata do surgimento da tradição ado-tada por Mateus e por Lucas para explicar o nascimento do Filho de Deus. O que se pode dizer, com certeza, é que no primeiro século ela não é atestada senão nestes dois evangelistas.613 Todas as tenta-

•^Cf. acima, p. 168 s. 613Encontramo-la mencionada no começo do século II nas fórmulas de INÁCIO,

indicadas mais acima (p. 380 s.). Ela devia, pois, já ser conhecida em Antioquia no fim do século I e começo do II. Alguns quiseram descobrir uma fonte literária

Page 371: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 387

tivas de descobri-la com certeza, explícita ou ao menos implicitamente, nos demais livros do Novo Testamento resultam muito artificiais para serem convincentes. A expressão: "nascido de mulher" (Gl 4.4), pode ser aplicada a qualquer homem e conforme o contexto, deve unicamente afirmar a total incorporação do Filho de Deus à humanidade. Da mesma forma, em Jo 1.13 o singular "qui natus esf\ adotado por um certo número de manuscritos antigos, na maioria ocidentais, ainda se fosse original614 não provaria de modo algum que o autor estivesse pensando aqui no nascimento virginal. Pois se chega, nesse caso, à seguinte tradução: "Ele (o Verbo) deu o poder de se tornarem filhos de Deus aos que crêem no nome daquele que não nasceu nem de sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade de homem, mas da de Deus." Esta é uma ideia bem joanina que encontramos também em Paulo: nossa filiação está baseada na do Filho único e se torna realidade na fé nele.615

Não recusaremos, pois, esta leitura tão resolutamente como o faz R. Bultmann em seu Johanneskommentar, p. 37, nota 7, que não vê na preferência que lhe concedem certo número de exegetas modernos senão o desejo de encontrar, pura e simplesmente, o nascimento virginal testemunhado no Evangelho de João. Isso pode ser certo no caso de vários exegetas; porém, não se deve tampouco, ao recusar esta leitura, se deixar guiar pela ideia de que, necessariamente, ela se origina no desejo de introduzir nesta passagem o nascimento virginal. "Nascido da vontade do homem" significa simplesmente "nascido de homem", por oposição a "nascido de Deus", que esta passagem quer sublinhar. Agora, esta oposição quanto à origem de Jesus, está em todo o Evangelho de João, sem dizer nenhuma palavra do nascimento virginal. A relação entre o novo nascimento do crente e o nascimento daquele "que desceu do céu" (3.13) está também na base do diálogo com Nicodemus. Não poderíamos

comum aos relatos canónicos da infância (L. CONRADY, Die Quelle der Kanonischen Kindheitsgeschicluen, 1900; A. RESCH, Das Kindheitsevangelium, TU 10,5, 1897). MACHEN, op. cit., admitiria que Lucas e Mateus retomam uma tradição já bem estabelecida, o que é difícil de provar.

614 O papiro Bodner II, publicado em 1956, tem aqui o plural. SI5 Cf acima p. 383.

Page 372: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

388 Oscar Cullmann

tampouco, recusar sem mais a proposta de C. F. Burney, The Ammaic Origin ofthe Fourth Gospe,, 1922, p. 34, que explica o plural mediante um recurso ao aramaico. No entanto (contra a opinião de W. Bauer, Das Johantiesevangeliuin, 3a ed., 1933, p. 22), há outras possibilidades de explicação desta mudança do singular ao plural, pois o plural "facilita" a compreensão do texto e o encadeamento das ideias. O fato de que A. Loisy em: Lê Quatrième Evangile, 2a ed., 1921, ad loc, considere o singular como original, para ver nisso (erradamente, sem dúvida) justamente uma negação do nascimento virginal, prova que a discussão sobre a formulação original desta passagem nada tem que ver com a afirmação ou ncaçãodo nascimento virginal. A parte os comentários que citam os estudos antigos relativos a esta questão (em part. o de W. Bauer), temos que indicar como monografia recente: F. M. Braun, "Qui ex Deo natus est" (Aux sources de la tradition chrétienn,, Mélanses M. Gogue,, 1950, p. 11 ss.), que reconsidera toda a documentação e se pronuncia pelo singular vendo nisso um testemunho do nascimento virginal. Mais recentemente, a maioria dos comentaristas por ex.: C. H. Dodd, The Interpretotion ofthe Fourth Gospe, 1953 p. 260 nota 1 e C. K. Barret The Gospel Accorditig to St John 1955 p. 137 s. têm dado sua preferência ao plural

Ao explicar a filiação divina de Jesus pelo nascimento virginal, Mateus e Lucas se distinguem dos demais autores do Novo Testamento, e em particular de Marcos, para quem a fé em Jesus, Filho de Deus, ocupa um lugar muito mais central, embora respeite o segredo com que, o próprio Jesus, havia rodeado este título.

* * #

Nem João nem Marcos intentam explicar amaneira pela qual o filho é gerado pelo Pai recorrendo ao relato do nascimento virginal.616 Mas assim como Marcos, o quarto Evangelho coloca a fé em Jesus, "Filho de Deus", no centro de seu Evangelho.617 Para

616 Nem tampouco a uma especulação sobre a "substância" ou as "naturezas". SI7É o que bem viu R. BULTMANN, Theologie des Nenen Testaments, 1953, p. 380

ss. Sobre a questão do "Filho de Deus" no Evangelho de João, cf., ademais,"W. LUTGERT, Die Johanneische Christologie,2" ed,, 1916, emais recentementeC. H. DODD, The Interpretation ofthe Fourth Gospel, 1953, em part. p. 250 ss.

Page 373: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 389

ele também, o essencial é o fato da filiação divina de Jesus e sua unidade com o Pai e não a explicação deste fato. Jesus saiu do Pai. João o indica, como bem o tem assinalado618 C. H. Dodd, pela preposição 8K; para os demais enviados se emprega coto ou 7tapá. João afirma tão vigorosamente esta "saída do Pai" que a questão de se saber como concorda esta origem com o nascimento humano de Jesus, pelo fato dele ter pais conhecidos (7.27) e que seja oriundo de Nazaré (1.45; 7.41 s.), nem sequer se formula.M'; Mais que o nascimento humano de Jesus, o que importa é que ele é EK 680Í>.

O caráter único da filiação de Jesus não fica debilitado em relação ao que dizem Mateus e Lucas; constitui, pelo contrário, o leitmotiv das discussões joaninas tão importantes sobre a unidade entre o Pai e o Filho. Para fazer ressaltar este caráter os autores empregam a palavra "único" (U.OVOY£VT|ç), mais tarde introduzida no Símbolo dos Apóstolos. Ela aparece, duas vezes, já no prólogo (1.14,18),620 e corresponde ao hebraico TTP. Significa "unigénito" e também, "bem-amado". Encontramos novamente aqui a ideia judaica já encontrada nos Sinópticos: o "Filho de Deus" é eleito desde o princípio; Movoyevfiç não difere, pois, essencialmente, de àyajiTjtóç, já que a ambos os termos se recorre para traduzir TrP. O fato deste atributo poder ser aplicado no judaísmo a todo o povo de Israel621 concorda com o que temos referente ao título "Filho de Deus" em geral. Palavra esta que não se encontra aplicada a Jesus, à parte os escritos joaninos: no Evangelho, além do prólogo, em 3.16,18; e na primeira Epístola (4.9).62-

C. H. DODD, op. cií,, p. 259. Segundo R. BULTMANN, Johanneskommentar, 1941, p. 37, nota 7,eC. H.DODD, op. cit., p. 260, o nascimento virginal seria inclusive excluído pelo Evangelho de João. É verdade que no v. 18, temos que preferi riiovoyevT|ç 6eóç a ó piovoyevfiç moç. Cf abaixo, p. 402 s. Cf. Sal. de Salomão 18.4; 4 Esclras 6.58. Sobre novoyevriç, e também sobre as relações desta palavra com a história das religiões, cf. R. BULTMANN, Johanneskommentar, 1941, p. 47 ss.

Page 374: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

• 390 Oscar Cullmemn

Como expressão quase sinónima de "Filho", achamos nos Sinópticos o título "Santo de Deus".623 Nós temos falado de seu emprego na versão joanina da confissão de Pedro (Jo 6.69), e da explicação de João 10.36 à luz desta expressão. Este título também faz ressaltar a diferença entre Jesus e todas as demais criaturas.

A pregação joanina relativa ao Filho de Deus se distingue, no entanto, em um ponto essencial da de Marcos. Pois se bem que não explique a geração divina comunica, por outro lado, sem a menor reserva em relação aos judeus incrédulos, tanto como aos discípulos, o fato em si da filiação divina de Jesus. O Cristo joanino, por quem o Paracleto anuncia todas as coisas - mesmo aquelas que os discípulos, durante a vida de Jesus, "não podiam ainda suportar" (Jo 16.12)-já não tem mais motivo para falar de maneira velada e discreta acerca de sua unidade com o Pai. Mais amiúde que em qualquer outro escrito do cristianismo primitivo, esta filiação é constante e abertamente proclamada, a despeito de todos os cépticos e adversários que não querem aceitar que Jesus dê testemunho acerca de si mesmo. Ao proceder assim, o quarto Evangelho se diferencia não só do Evangelho de Marcos como também do Jesus histórico.624 Não devemos esquecer aqui que João voluntariamente reorganizou todos os atos e discursos de Jesus em uma perspectiva pós-pascal.

Que conteúdo ele deu à noção de Filho de Deus? Temos visto que o logion de Mt 11.27, cujo caráter "joanino"

sempre chocou os exegetas, está perfeitamente na linha da ideia fundamental que, segundo os Sinópticos, caracteriza em Jesus a convicção de ser "Filho de Deus". Em João também são encontrados

fi;:,Cf. acima, p. 371 s. ^ Pode-se, no entanto, encontrar no Evangelho de João um certo paralelo com a ideia

expressa nos Sinópticos, segundo a qual é necessário uma revelação particular para se reconhecer Jesus como o Filho de Deus (em part. Mt 16.17; cf. acima, p. 364 s.): é a incompreensão dos interlocutores, com os quais Jesus fala de sua união com Deus. Por outro lado, há indícios do segredo messiânico em Jo 10.24: "Se tu és o Cristo diga-nos abertamente". Cf. a este respeito R. BULTMANN, Theologie des Neuen Testainettts, 1953, p. 394; e também abaixo, p. 392 s.

Page 375: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVOTESTAMENTO 391

os dois motivos sinópticos da obediência tio Filho ao Pai e da unidade entre o Pai e o Filho na obra reveladora de Deus. Porém, o segundo motivo é aí mais vigorosamente destacado por ser maior a insistência do Evangelho de João na ideia de que Deus se revela. Neste quadro da história da salvação, a noção de "Filho de Deus" se une à de Logos. O título Logos, em João, sublinha que Jesus é um com o Pai pela obra que realiza sobre a terra. Por outro lado, a afirmação segundo a qual Jesus é o Verbo, ou seja, "Deus que se revela", deve ser provada por todo o relato da vida de Jesus. Assim, a unidade do "Filho de Deus" com o Pai é inteiramente regida pela ideia, que remonta ao próprio Jesus, de ser ele o Filho único e bem-amado, por cumprir em perfeita obediência a missão que, em favor do mundo, Deus lhe confiou: "Nada posso fazer por mim mesmo... e não busco minha vontade mas a vontade do Pai" (Jo 5.30). Se há unidade de essência, é por haver total unidade de vontade na realização da obra da salvação. "Minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou e cumprir a sua obra" (Jo 4.34). A imagem é particularmente eloquente: assim como o corpo não pode viver sem alimento, da mesma forma o dever de fazer o que Deus quer pertence ao ser mais íntimo de Jesus.

Este dever, esta obrigação não é da mesma ordem que a "coação" profética ou apostólica. Pois Jesus não é, como eles foram, um mero instrumento da vontade de Deus; Ele é para Deus um colaborador que Lhe está unido. Isto é o que sua resposta, quando foi acusado de quebrar o sabath (Jo 5.17) traz à luz: "Meu Pai até agora trabalha, e eu trabalho também".625 Como, no sentido escatológico de Hb 4.3 ss, não há ainda um sabath para a obra redentora de Deus, tampouco, Jesus pode repousar. Seu tempo é o tempo de Deus. Encontramos um idêntico pensamento em Jo 9.4. "Devo fazer as obras daquele que me enviou enquanto é dia".

!:l Sobre a relação entre esta palavra e o dia da ressurreição, cf. O. CULLMANN, Sabbat und Soitittag nach dem Johannesevwtgelium, In memoriam E. LOHMEYER, 1951, p. 127 ss.

Page 376: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

392 Oscar Cullmann

Tão longe vai a unidade de vontade e de ação que o Filho inclusive participa na criação da vida, que é a obra por excelência do Pai. Assim como no princípio é o Filho mediador da criação, pode também, em colaboração com o Pai, ressuscitar mortos. Na ocasião da ressurreição de Lázaro, disse Jesus: "Pai, graças te dou porque me ouviste. Aliás, eu sei que sempre me ouves" (Jo 11.41).

Para os Sinópticos, assim como para Paulo, o Filho está especialmente unido ao Pai ao sofrer e morrer. Poderíamos esperar que este tema não se destacasse no Evangelho de João. No entanto, não se diminuem nele, nem o sofrimento, nem a morte, obra central de Jesus.626 É assim que o tão conhecido versículo de João 3.16, que apresenta Jesus precisamente como o Filho "único" ou "bem-amado"627 de Deus, anuncia que ele foi oferecido em sacrifício: "De tal maneira amou Deus ao mundo que deu seu Filho unigénito ("bem-amado")". Em outro lugar temos indicado628 que o verbo EÔcoKev tem aqui o duplo sentido de "enviar" e de "oferecer em sacrifício". Se partimos da dupla acepção da palavra u.ovoyEVT|ç, nos parece sem dúvida haver aí, como há em Rm 8.32, uma alusão ao sacrifício de Isaque.

O que temos dito acerca das obras de Jesus, aplica-se também a seu ensinamento; pois sua ação e seu ensinamento são inseparáveis: tanto num como noutro, se revelam o Pai e oFilho. "Segundo me ensinou o Pai, assim falo" (Jo 8.28). "Minha doutrina não é minha mas daquele que me enviou" (Jo 7.16; cf. também 14.16 b).

A menção do Pai, nestas passagens costuma ser acompanhada pela expressão ó 7téfiyccç ixe que, empregada sozinha, pode ser um sinónimo de "Pai". O que demonstra, mais uma vez, a estreita relação que une a filiação divina de Jesus e sua vinda à terra para executar o plano divino. Porém, o Filho não é meramente um enviado como o foram os profetas e, depois deles, os apóstolos.

s2íCf. acima, p. 97 s. s2 ' H.OVOY£VVJ<;; cf. acima, p. 388 s. *2*Cf. O. CULLMANN, "Der Johannische Gebrauch doppeldeutiger Ausdriicke ais

Schlííssel zum Verstãndnis des vierten Evangeliums" (77iZ4, 1948, p. 360 ss).

Page 377: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO THSTAMI-NTO 393

Já chamamos a atenção para a preposição Ètc que cumpre aqui uma importante função diacrítica. O envio do l-'ilho "junto ao Pai" supõe que estão juntos desde o começo. Não se trata, portanto, de uma vocação semelhante à do profeta, como se vê com clareza cm Jo 5.19, 20: "Tudo o que o Pai faz, também o Filho o faz igualmente; pois o Pai ama o Filho". Esta palavra nos remete ao próprio fundamento da unidade do Pai e do Filho no alo da revelação.629

Assim, ouvimos reiteradamente o leitmotiv "saído do Pai": eu vim de Deus e aqui estou; pois não vim de mim mesmo, mas ele me enviou (Jo 8.42). Porém, a unidade se expressa, também, no fato dele voltar ao Pai: "Eu saí do Pai e vim ao mundo; agora deixo o mundo e vou ao Pai" (Jo 16.28). Dessa maneira não é só na realização de sua obra na terra, mas em tudo o que faz é o Pai que opera, não por ele, mas com ele: "Não sou eu só, mas eu e o Pai que me enviou" (8.16). "...e me deixareis só; contudo, não estou só, pois o Pai está comigo" (16.32).

Sem dúvida, nunca se esquece que "o Pai é maior que o Filho", porém, maior somente enquanto o Filho, portador da revelação, vem do Pai e ao Pai volta. É por isto que o Evangelho pode chegar a fazer afirmações tão vigorosas como esta: "Eu e o Pai somos um" (Jo 10.30); "o Pai está em mim e eu nele" (Jo 10.38); que nos lembram as declarações do prólogo sobre o Logos. O Filho de Deus proclama abertamente sua preexistência: "Antes que Abraão existisse, eu sou" (Jo 8.56).

Todavia, o Evangelho de João sabe, tanto como os Sinópticos que, do ponto de vista do entendimento humano, semelhante pretensão é inaceitável: "Vós dizeis: tu blasfemas! E isto porque eu disse: sou Filho de Deus" (Jo 10.36). Isto se relaciona, indubitavelmente, a uma antiga tradição na qual se vê a "blasfémia" não na pretensão de Jesus de ser o Messias, mas na de ser, ainda que

Ela nos lembra ao mesmo tempo a voz que, segundo os Sinópticos, chama a Jesus "Filho bem-amado" durante seu batismo e lhe dá, implicitamente, a missão de assumir o papel de Ebed lahweh.

Page 378: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

• 394 Oscar Cullmaim

velada, o Filho de Deus. A pretensão de ser o Messias não podia, em suma, chocar senão os romanos.630 Para os judeus, por outro lado, o que devia forçosamente ser escandaloso era a pretensão de ser Filho de Deus, sobretudo na forma que em Jesus esta se apresentava. Os judeus entendem bem esta palavra, ao ver nela uma afirmação de igualdade com Deus: "Tu, sendo homem, te fazes Deus" (Jo 10.33).631

Porém, o que se lhe recrimina, sobretudo, é fundamentar tamanha pretensão unicamente em seu próprio testemunho. O Cristo joanino responde a estes ataques (5.30 ss.; 8.13 ss.); busca provar que seu testemunho é verdadeiro e mostra como esta revelação pode ser reconhecida. O quarto evangelista não procede como Mateus e Lucas que, pelo relato do nascimento virginal, narram, de uma maneira por assim dizer material, como Jesus foi gerado pelo Pai. O Evangelho de João não explica o como. Jesus saiu do Pai, e ele se limita a afirmar que ele veio do Pai. Mas, ele dá bases para esta afirmação. Pode-se dizer que em suas discussões com os judeus (Jo 5 e 8), de certo modo ele apresenta uma "epistemologia cristológica".

Para podermos provar uma afirmação ordinária temos que chamar testemunhas e, geralmente, podemos encontrá-las. Porém, para provar que Jesus tem razão ao pretender ser Filho de Deus, nenhum homem está em condições de dar testemunho, unicamente Deus pode testificar acerca disso, por Ele ser a única testemunha competente, a única possível. A afirmação de ser Filho de Deus faz todos os limites humanos estourarem de tal maneira que não fica

"'Cf. O. CULLMANN, Dieu et César, 1956, p. 27 ss. Inversamente, a pretensão de ser Filho de Deus é desprovida de interesse para os Romanos e não pode escandalizá-los.

11 Esta mesma interpretação está pressuposta em Jo 8,53: "Quem, pois, te fazes ser?" Cf. também o texto mandeu contra Jesus (R. Ginza, I, 200): "Ele disse: Eu sou Deus, Filho de Deus, e foi meu Pai quem me enviou aqui" (M. LIDZBARSKI, Ginza, 1925, p. 29). Na medida que a pretensão de ser Filho de Deus signifique uma pretensão de igualdade com Deus é, entre os judeus, passível de condenação (Ez 28.2 ss.; Dn 6; cf. também At 12.20ss.; Mc 2.7 ss).

Page 379: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

(-RISTOLOGIA DO NOVO T liSTAMM.NTO 395

outra coisa senão o círculo: o próprio Pai deve testificar que Jesus é o Filho; por sua vez, é justamente no Filho que este testemunho divino tem que»ser dado. O Evangelho não conhece pois mais do que dois meios para captar a revelação da filiação divina de Jesus. Io) Temos que conhecer o Pai e fazer sua vontade: "Se alguém quiser fazer a vontade daquele que me enviou, descobrirá se o meu ensino vem de Deus, ou se falo de mim mesmo" (Jo 7.17). 2o) Temos que ver as obras de Jesus: "Se não faço as obras de meu Pai, não acrediteis em mim. Mas se as faço, e não credes em mim, crede nas obras, para que possais saber e reconhecer que o Pai está em mim, e eu nele (Jo 10.37 s.).

Não há, nem pode haver, outro critério cristológico. É só seguindo este caminho, tornando-nos, nós mesmos, "filhos" - aceitando com fé o testemunho que Jesus dá acerca da sua filiação divina e fazendo a vontade de Deus - que poder-se-á reconhecer que ele é o Filho. É só assim que podemos testificar, com os apóstolos, "que o Pai enviou o Filho como Salvador do mundo" (1 Jo 4.14). "Aquele que confessar que Jesus é o filho de Deus, Deus está nele, e ele em Deus (1 Jo 4.15). Já mencionamos este versículo que utiliza o antigo Credo cristão6-12 colocando-o inteiramente a serviço daquilo que denominamos "epistemologia cristológica" do joanismo. O paralelismo com Jo 10.38b é evidente. O que, neste versículo, Jesus diz de si mesmo, pode pois ser entendido por aqueles que crêem que ele é o Filho de Deus.

Em conclusão, podemos dizer que o Evangelho de João penetrou mais profundamente que Mateus e Lucas no segredo da consciência filial de Jesus. Deu acertada expressão, em particular, aos dois aspectos inseparáveis: a obediência e a unidade com o Pai; porém, contrariamente ao Jesus histórico, "proclamou dos telhados" o que Ele disse ocultamente.

* * *

Cf. acima, p. 379 s.

Page 380: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

3% Oscar Cullmaim

Os demais livros do Novo Testamento não empregam este título senão muito esporadicamente. Vimos que para Marcos a fé em Jesus "Filho de Deus" ocupa um lugar primordial ainda que, como o próprio Jesus, evite falar abertamente disso. Paulo fala muito mais do Kyrios sem desconsiderar, no entanto, o título de Filho. Porém, este título está totalmente ausente nas Epístolas Pastorais, na de Tiago e na primeira de Pedro;633 no Apocalipse só aparece uma vez (Ap 2.18) e duas vezes emAtos (At 9.20; 13.33). Parece, consequentemente, que em amplos círculos do cristianismo primitivo muito cedo se perdeu o sentido do alcance que podia ter a consciência de Jesus de ser o Filho de Deus para explicar sua pessoa e sua obra.634

Não ocorre o mesmo no que toca à Epístola aos Hebreus. Já constatamos, repetidas vezes, o estreito parentesco que a une ao Evangelho de João em todas suas afirmações cristológicas essenciais: aqui nos deparamos com ela outra vez.635

Verdade é que o autor desta Epístola se ocupa principalmente do sumo sacerdote. Com efeito, sua contribuição original e pessoal à solução do problema cristológico consistiu em agrupar as afirmações relativas à fé em Cristo em torno desta noção; e já destacamos as vantagens de seu esforço. Porém, também notamos que para falar especialmente da preexistência de Cristo, une ao título de sumo sacerdote o de Filho de Deus. A antiga tradição sobre Jesus "Filho de Deus" lhe era, por certo, conhecida; pois cita a fórmula de confissão de fé dando-a a conhecer expressamente como

Na 2 Epístola de Pedro (1.17), este título aparece somente uma vez onde o autor, recordando a transfiguração, cita o SI 2.7. A explicação que dá V. TAYLOR, The Names of Jesus, 1953, p. 57, ao fato de que alguns dão tanta importância ao título de Filho de Deus, enquanto outros quase não o empregam, não nos parece suficiente. Segundo o autor o título "Filho de Deus" predomina ali onde o interesse se ampara, sobretudo, na pregação, enquanto falta onde se centra particularmente no culto. Se é exato que o autor do Quarto Evangelho deva ser classificado, como o ternos proposto, entre os "helenistas" palestinos de que fala Atos (cf. acima, p. 241 s.), a Epístola aos Hebreus deveria, sem dúvida, ser classificada no mesmo grupo que a Primeira Epístola de João.

Page 381: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TIÍSTAMENTO 397

tal: "Porque temos um Sumo Sacerdote... Jesus, o Filho de Deus, permaneçamos firmes em nossa confissão de fé" (Hb 4.14).

Indiscutivelmente ele captou o sentido profundo desta confissão de fé. Por um lado, vê que a filiação divina de Jesus repousa sobre uma missão: a comunicação da revelação divina. Compreende haver nisso algo de comum entre Jesus e os profetas da antiga aliança. Porém, quer demonstrar, por outro lado, que esta missão de Jesus é maior que a dos profetas pois, exatamente como João, a apoia na unidade do Pai e do Filho. Cristo, também, desde o começo se distingue dos profetas: ele é o "Filho"; "Depois de haver em outro tempo, em muitas ocasiões e de diversas maneiras falado a nossos pais pelos profetas, Deus, nestes últimos tempos, falou-nos pelo Filho" (Hb 1.1 s). Depois seguem os atributos que nos recordam o prólogo do Evangelho de João e que expressam a participação total do Filho na divindade do Pai.636

Para provar o caráter único do Filho, o autor mostra, com a ajuda de citações do Antigo Testamento, que o Filho está acima de todas as criaturas, acima dos anjos (Hb 1.5 ss.), e de Moisés, que não é senão um "servo" (3.6 ss.). Como já assinalamos, nenhum outro escrito do Novo Testamento, à parte o Evangelho de João, afirma tão categoricamente a divindade de Jesus. A expressão "Filho de Deus" expressa aqui a unidade com Deus como em Jo 10.33, 36. Os Salmos (por ex. SI 45.7 s.; 102.25) se aplicam a Jesus e ele pode assim ser chamado diretamente Deus (Hb 1.8 s.), podendo a criação do mundo ser-lhe atribuída (1.10 ss.). Temos que observar muito especialmente a fórmula que introduz estas citações: "E disse ao Filho...". Ser"FilhodeDeus" significa, pois, participar totalmente na divindade do Pai.637

Por toda esta Epístola a cristologia do Sumo Sacerdote está associada à do Filho de Deus. O autor não esquece tampouco que o tema da obediência constitui parte integrante da concepção de Filho de Deus, por concordar, dito tema, tão adequadamente com

Cf. acima, p. 341 s. Sobre o nome de "Deus" diretamente atribuído a Jesus, ver o capítulo seguinte.

Page 382: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

398 Oscar Cuibnann

a noção de sumo sacerdote. No capítulo 5.8 ele afirma expressamente que as duas funções: "aprender a obediência no sofrimento" e ser Filho de Deus (Kcárcep á>v móç) não se contradizem em nada.

É preciso por fim enfatizar a importância especial da comparação feita no capítulo 7 (v. 3) entre a figura central do sacerdote-rei Melquisedeque e o "Filho": à(p(úu.oicop.évoç TGJ vico TOV Geou O estreito parentesco com o Evangelho de João se manifesta novamente, quando no mesmo versículo, se diz que este rei misterioso é "sem pai e sem mãe". A filiação humana carece de importância: Jesus nasceu de Deus. Observamos que o autor não diz somente "sem pai", mas também, "sem mãe": pode-se deduzir que a crença no nascimento virginal, provavelmente, quase não era conhecida nos meios em que a Epístola aos Hebreus surgiu. O que há sobretudo de prodigioso nesta confissão de Jesus "Pilho de Deus", como também para o Evangelho de João, é que c> Filho único, que já participou na criação e saiu diretamente do Pai, participa, no entanto, na qualidade de homem, como verdadeiro sumo sacerdote, da debilidade humana.

O "Filho de Deus" é Deus, em sua auto-revelação: eis o que nos diz o Evangelho de João. Ele será um com Deus quando a história da salvação tiver tocado o seu fim, nos disse Paulo. E a Epístola aos Hebreus afirma, por sua vez: ele é aquele por quem Deus, ao revelar-se ao mundo, "criou os éons"\ pois desde o começo ele é o "reflexo de sua glória" (Hb 1.2b, 3; cf. Jo 17.5).

Page 383: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CAPÍTULO I I I

JESUS CHAMADO "DEUS" (©£OÇ)

Da utilização cristológica que o Novo Testamento faz dos títulos Kyrios, Logos e "Filho de Deus" resulta que eles implicam a poss'2b)'iàaâe àe se chamar a Jesus "Deus": Deus, enquanto soberano presente, que desde sua glorificação rege a igreja, o universo e a vida de cada indivíduo (Kyrios); Deus, enquanto aquele que se revela desde o começo (Logos); Deus, enfim, enquanto aquele cuja vontade e ação são perfeitamente congruentes com as do Pai, enquanto aquele que vem do Pai e ao Pai retorna (Filho de Deus). Mesmo a ideia de Filho do Homem nos conduz à"divindade" de Jesus, já que Jesus se apresenta aqui como a única e verdadeira "imagem de Deus". A pergunta se o Novo Testamento ensina a "divindade" de Cristo, deve-se pois, em princípio, responder afirmativamente; mas, sempre e quando esta afirmação não se associe às especulações gregas posteriores sobre a "substância" e as "naturezas", na condição, pois, de considerá-la estritamente sç>b o ângulo da história da salvação. Fora desta história divina da salvação falar da "divindade" de Jesus careceria de sentido: em tal caso Ele seria simplesmente um dos tantos "heróis" que enchem a história das religiões e nada mais. Inversamente se o situarmos em outro plano que não seja o da história da salvação será coisa igualmente desprovida de sentido distinguir entre Deus o Pai e o Logos que é Deus no ato de revelar-se

Em razão de sua cristologia inteiramente regida pela história da salvação, o Novo Testamento ensina a subordinação de Jesus

Page 384: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

400 Oscar Cullmami

Cristo a Deus, não no sentido do que mais tarde se haveria de chamar "subordinacionismo", mas no sentido de Jesus Cristo ser Deus só enquanto este se revela. A reflexão teológica do Antigo e do Novo Testamento se orienta pela história da salvação; e não esgota, portanto, a essência de Deus. Se as confusões posteriores entre o Pai e o Filho, com razão condenadas pela igreja como heresias, são totalmente estranhas ao cristianismo primitivo, isso se deve, precisamente, a que este tem por tema central a história da salvação. O perigo de semelhantes confusões surge no instante em que se tenta resolver o problema cristológico por meio de especulações acerca da substância e das naturezas.638

Já que o Novo Testamento, partindo de uma série de concepções cristológicas fundamentais, chega à ideia da divindade de Cristo no sentido indicado, a questão de sabei* se Jesus é efetiva-mente chamado "Deus" não tem, senão, importância secundária. Ou seja, examinaremos os textos que devem ser levados em conta, sem esquecermos, nem por um momento, que não são determinantes para saber se Cristo é Deus ou não. Se deste exame resul-tasse que o Novo Testamento não chamou a Jesus Deus, isso não mudaria em nada, portanto, as conclusões a que já temos chegado. Se, pelo contrário, a explicação destas passagens mostra, como o cremos, que Jesus foi, em determinadas ocasiões, chamado "Deus", isso não faz senão confirmar o que foi exposto anteriormente.

É deplorável que mesmo nesta questão, puramente exegética, a decisão dependa, tão amiúde, da cor teológica do exegeta. Aqui, também, não é somente a atitude "conservadora" mas também a atitude oposta que frequentemente influencia o exegeta.

Semelhante confusão prática se manifesta também frequentemente na piedade católica popular. Até hoje o monofisismo domina o pensamento religioso do católico mediano, apesar de sua condenação oficial. Ainda na terminologia ocorre, amiúde, que não se faça distinção entre Deus e Jesus. Tem-se perguntado, com razão, se a necessidade da veneração mariana não se desenvolveu tão fortemente no povo católico porque o próprio Jesus, em razão desta confusão, se tem afastado do crente. Cf., por exemplo, M. THURIAN, "Le dogme de UAssomption,. Verbum Caro, 1951, p. 2-41.

Page 385: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 401

No fundo, as passagens nas quais Jesus leva o nome deKyrios, a saber o nome de Deus, são pelo menos tão importantes, se não mais, para a questão que nos ocupa, que aquelas onde é direta-mente chamado "Deus". Vimos, com efeito, que o cristianismo primitivo não teme aplicar a Jesus, ao dar-lhe o título de Kyrios, tudo o que o Antigo Testamento diz acerca de Deus.639 Causa-nos surpresa que um fato de tamanha importância não tenha chamado mais a atenção. Além disso, constatamos no capítulo precedente que os adversários de Jesus perceberam, no emprego do título "Filho de Deus", uma pretensão à igualdade com Deus, e que Jesus não os contradisse.640

As passagens onde o nome de "Deus" aparece aplicado a Jesus não são muito numerosas e, além disso, muitas delas apresentam dúvidas, do ponto de vista da crítica textual. Já na antiguidade foi atribuída, equivocadamente, muita importância à questão de saber se Jesus foi ou não chamado "Deus". Principalmente em relação às polémicas cristológicas, a designação 0EÓÇ foi tida ora como perigosa, ora como necessária. Daí as numerosas variantes existentes nas passagens das quais nos ocuparemos em seguida.

Não temos que nos deter nos Sinópticos: Jesus não se chamou a si mesmo KÚpioç nem tampouco se designou Geóç, e os evangelistas tampouco parecem querer fazê-lo. Os testemunhos mais claros, e menos equívocos, da aplicação a Jesus do nome 6eóç se acham no Evangelho de João e na Epístola aos Hebreus. No quarto Evangelho há pelo menos duas passagens para as quais toda contestação fica excluída: Jo 1.1 KOÚ GEÓÇ, f\v ó Xòyoç, e Jo 20.28, a confissão de Tomé: ó KÍpióç u,ot> Kotv ò Geóç \iox>. Já dissemos641 que, de certa forma, estas enquadram o Evangelho inteiro.

6WDeve-se classificar na mesma categoria a aplicação ao Filho do Homem, em Ap 1.13 ss, da descrição do "Ancião de Dias" contida em Dn 10.5-7. O fato de que o autor não vacila em descrever sua visão do Cristo exatamente como Daniel descreveu a visão de Deus é importante do ponto de vista cristológico.

MUCf. acima, p. 392 s., a propósito de Jo 10.33, 36; 8.53. fi41 Cf. acima, p. 347.

Page 386: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

4Í)2 Oscar Culbnann

(A história de Tomé é, com efeito, o final do Evangelho; já que o capítulo 21 constitui um acréscimo posterior). Ademais, a confissão de Tomé não só é a última, como também, a coroação de todas as confissões do Evangelho. As últimas palavras do Ressuscitado: "Bem aventurados aqueles que não viram e creram", dizem respeito, também, a todos os futuros leitores do Evangelho: todos devem crer, sem terem visto; vale dizer que o testemunho sobre a vida de Jesus proporcionada pelo evangelista deve levar-lhes, precisamente, a confessar: "Meu Senhor e meu Deus".642 Se o Evangelho inteiro, portanto, culmina nesta confissão e, por outro lado, se o autor escreveu já no primeiro versículo do primeiro capítulo: "e o Logos era Deus", não pode haver dúvida alguma que, para ele todos os demais títulos de Jesus encontrados em sua obra tais como "Filho do Homem" "Filho de Deus", "Senhor" e no prólogo Logos tendem para esta expressão suprema de sua fé cristo-lógica

Já mostramos643 que a afirmação de Jo 1.1 não deve ser enfraquecida como se quisesse dizer: o Logos era "divino"; explicação esta que seria, ademais, impossível para a confissão de Tomé. Mas, por outro lado, deste Logos, que é Deus, se diz igualmente que estava, junto a Deus. Daí concluímos com R. Bultmann que o Logos, Jesus Cristo, não pode ser um segundo Deus ao lado de Deus, nem uma emanação de Deus; mas o próprio Deus, enquanto aquele que se revela. Unicamente neste sentido temos que entender a palavra de Jo 14.28, segundo a qual o Pai, a quem Jesus retorna depois de ter realizado sua obra, é "maior" que ele.

Temos que partir destas duas passagens, cujo sentido é certo, para julgar a terceira, Jo 1.18, onde nem todos os manuscritos lêem: p.ovoyevriç GEÓÇ: os manuscritos gregos tardios, os manuscritos latinos e também o Curetoniano siríaco lêem ó u,ovoyevriç

2 A associação de icbpioç e de Geóç é atestada no Antigo Testamento como designação de Deus; porex., 2 Sm 7.28; I Rs 18.39; Jr 38.17; Zc 13.9. Cf, no Novo Testamento, Ap4.11.

'Cf. acima, p. 347 s.

Page 387: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO fNOVO 1 E5TAMFj]NTO 403

ítióç. A leitura Geóç é, sem dúvida, a melhor atestada, como qualquer edição crítica permite reconhecer. Se certos exegetas/144 no entanto, preferem t>íoç é, principalmente, por causa da dificuldade que a leitura Geóç apresenta em razão do contexto, pois então teríamos que traduzir: "Ninguém jamais viu a Deus; o Único, Deus, que está no seio do Pai é aquele que o fez conhecer." liste texto, inquestionavelmente, parece ser alectio difficilior que se quis tornar mais compreensível colocando víoç em lugar de Geóç. Com efeito, não se concebe como um copista, a fim de atribuir a Jesus o nome de Deus, teria podido transformar inoç em Geóç sem suprimir, ao mesmo tempo, "que está no seio do Pai". Em troca, se a leitura Geóç é original, o fato de encontrar-se no contexto chocará, certamente, a leitores futuros, porém, ela não é inteiramente impossível dentro do âmbito do prólogo de João. Pois, no fundo, o que choca é unicamente o paradoxo cristológico; porém, este já se encontra em Jo 1.1 e é, justamente, característico do Evangelho de João. Ali lemos: "O Logos estava com Deus e o Logos era Deus". Que significa isto senão que Deus estava perto de Deus? Se é assim, está em perfeita concordância com o pensamento joanino que ninguém tenha jamais visto a Deus (o Pai), mas que Deus, enquanto uovoyevTiç, revela a Deus na vida de Jesus que se passará a relatar. Referindo-nos, pois à melhor leitura, e em concordância com a maioria dos comentaristas recentes, agregaremos aos dois anteriores este terceiro texto joanino que declara que Jesus é Deus

E à mesma conclusão que chegam W. Bauer, "Das Johannesevan-gelium" (Hab. z. NT), 3a ed., 1933, p. 29 s - C. F. Burney, The Aramciic origin of the Fourth Gospe,, 1922, p. 39 s., considera também a leitura OEÓÇ como a original, porém, crê dever explicá-la como uma tradução deficiente do original aramaico, segundo o qual deveria haver ali o genitívo (Seoíi): "O unigénito de Deus". Conforme o que foi dito mais acima, esta

1 Por ex.. R. BULTMANN, Johanneskonimentar, ad loc; o mesmo em H. CREMER-KÓGEL, Wõiierbuclt desneutest. Grieciúsch, III ad., ,9223 p. 490 e ttmbém C, K. BARRET, The Gospel According to St. John, 1955, p. 141 - embora estes dois últimos não excluam inteiramente a outra possibilidade.

Page 388: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

4Ò4 Oscar Cullmaiw

explicação não nos parece necessária. Que jj.ovoyevfiç, se se adota a lição ÔEóç, seja empregado como substantivo, não deve apresentar dificuldades acerca dos textos de história das religiões reunidos por R. Bultmann ena seu comentário, p. 47 ss.

Sendo claro o testemunho joanino, parece normal admitir com Windisch-Preisker,645 que a declaração de 1 Jo 5.20 se refira também a Cristo: "Sabemos que o Filho de Deus veio e nos deu entendimento para conhecer ao Verdadeiro; e estamos no Verdadeiro, em seu Filho Jesus Cristo. Este (ovioç) é o Deus verdadeiro e a vida eterna." Esta explicação impõe-se não só por razões filológicas, mas também por causa do próprio conteúdo da passagem que retoma, ao mesmo tempo, a unidade e a diversidade do complexo Pai-Filho próprio do pensamento joanino.

* * *

Uma vez mais, não é de surpreender-se que, à parte o Evangelho de João, unicamente a Epístola aos Hebreus dê, sem dúvida, o nome "Deus" a Jesus. Esta Epístola pertence, com efeito, ao meio joanino. É verdade que a palavra "Deus" é empregada, aliás duas vezes seguidas (Hb 1.8 s.), só em uma citação do Antigo Testamento (SI 45.7 s.): "O teu trono, ó Deus, é para todo o sempre" (v. 8) e "por isso, ó Deus, teu Deus te ungiu ..." (v. 9). Porém, cita-se o Salmo justamente por causa do vocativo "ó Deus" e o autor sublinha expressamente que se relaciona ao Filho de Deus: 7rpòç xòv t>ióv (v. 8). Este vocativo tem, pois, para ele especial importância. Como no Evangelho de João, o que o torna possível é a qualidade única da filiação divina de Jesus. Isto corresponde perfeitamente ao resultado a que chegamos no capítulo precedente. Porém, ao mesmo tempo, se vê aqui que a distinção entre o Pai e o Filho não fica, contudo, eliminada: segundo a interpretação cristã do Salmo, a palavra "Deus" no v. 9 remete, na mesma frase, como

** H. WINDISCH - H. PREISKER, "Die Katholischen Bríefe" (Hdb. z. NT), 3a ed., 1951, p. 135.

Page 389: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 405

sujeito ao Pai, como objeto (no vocativo) ao Filho: "Teu Deus (o Pai) te ungiu, ó Deus (o Filho)." Este texto se baseia num Salmo referente à realeza em que Deus se dirige ao rei, dando-lhe o título de "Deus" (cf. também Is 9.6).646 Assim, por seu modo de empregar esta citação, a Epístola aos Hebreus também como o Evangelho de João, atesta este paradoxo de toda cristologia: que Jesus Cristo, o Logos, está em Deus e é, ao mesmo tempo, Deus, para recorrermos novamente aos termos do prólogo joanino.

Além disso, os versículos seguintes (1.10 ss.) da Epístola aos Hebreus confirmam o que dissemos anteriormente acerca da relação entre o título Kyrios e a divindade de Jesus.647 Encontramos, com efeito, uma citação de outro Salmo (102.25 ss.); aqui aquele a quem o Pai se dirige não se chama "Deus", mas "Senhor", Kirie. Porém, esta citação tem o mesmo propósito que a do versículo precedente, e é provar que o Filho de Deus está acima dos anjos, porquanto se se dirige a ele como a Deus. Entre as designações Kyrios e "Deus" não há diferença essencial; isto vem também do conteúdo da citação; o Kyrios que aqui se identifica com o Filho Jesus Cristo, é o criador do céu e da terra; "Tu, Senhor, tu no princípio fundaste a terra; e os céus são obras de tuas mãos", assim como no prólogo de João ao dizer acerca do Logos: "Todas as coisas foram feitas por ele", não se estabelecia nenhuma diferença entre o criador e o Salvador, tampouco faz-se aqui. Temos sublinhado, desde o começo, que esta distinção posterior favorecida pela divisão trinitária do Credo e que aparece ainda hoje na maior parte das dogmáticas,648 não se acomoda ao Novo Testamento. A distinção entre o Pai e o Filho não é uma distinção entre a criação e a redenção; é uma distinção entre Deus, enquanto se pode, a rigor, falar dele independentemente de sua revelação, e de Deus, enquanto se fala efetivamente dele somente como do Deus que se revela. Tal é também o pensamento da Epístola aos Hebreus.

* * *

Para os demais testemu ti lios no Antigo Testamento, cf. acima, p. 237. Cf. acima, p. 305 ss. A Dogmática de K. BARTH constitui, a este respeito, uma exceção.

Page 390: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

406 Oscar Culíiitann

Se Paulo designa a Jesus como "Deus", não o faz tão abertamente como o Evangelho de João ou a Epístola aos Hebreus. Porém, convém aqui, muito especialmente, lembrar aquela nossa observação inicial de estar bem implícita a divindade de Cristo no título Kyrios. Ora, o emprego deste título é muito frequente em Paulo, o que dá a entender que é por esse título ou na linha deste título que o apóstolo pensava expressar a divindade de Cristo. Dentre muitíssimas passagens, podemos tomar por ex., 1 Co 8.6. O hino cristológico de Fl 2.6 ss. com sua expressão èv p-Opcpf| Geoí> ímápxwv, vai no mesmo sentido. Pois a expressão "imagem de Deus" (Cl 1.15) com a qual o temos relacionado,649 supõe a "divindade" de Jesus (Cl 1.15 s.), tanto como o título Logos de Jo 1.1. Em Cl 2.9, aliás, está claramente dito que em Jesus "habita corporalmente toda a plenitude da divindade". Quaisquer que possam ser as relações desta passagem com as especulações gnósticas, é evidente que semelhante texto, como aqueles citados anteriormente, tem como consequência natural que se veja a "Deus" em Jesus Cristo. O fato de Paulo orar a Cristo (2 Co 12.8)650 prova também que ele podia, dado o caso, chamar a Jesus Geóç; mas, de fato ele o fez? Isto não pode ser estabelecido com certeza. Mas mesmo se fosse isto teria sido nele excepcional Isso não tem de surpreender-nos já que para ele Jesus é o Kyrios e já que este nome, "que está acima de todo nome", expressa claramente a divindade de Jesus do ponto de vista de sua soberania presente; e é isto o que ao apóstolo interessa particularmente

Entre as Epístolas positivamente autênticas há em especial uma passagem que deve ser considerada: Rm 9.5. É a conclusão de uma enumeração de todas as prerrogativas do povo escolhido, Israel: è\ &v ó XpiaTÒç TÒ Kcaà cápKa ó cov èjri návxcov Geòç £Í)XoYnròç eíç xoi>ç aicòvaç, àpfiv. Cabem aqui duas possíveis

M!,Cf. acima, p. 231. *i0Cf. acima, p. 282 s., onde chamamos também a atenção sobre a èTtitccAeíadai do

Kyrios ou de seu nome (1 Co 1.2; Rm 10.12). Esta invocação está, ademais, no limite da oração e da confissão de fé e as supõe ao mesmo tempo.

Page 391: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TIISTAMENTO 407

traduções, segundo a maneira em que se colocar os sinais de pontuação. Ou bem, depois de aápica, pomos um ponto (ou pelo menos uma vírgula) ou não. Sem ponto se obtém a tradução que segue: "... dos quais, segundo a carne, veio o Cristo, o qual é Deus sobre todas as coisas, bendito pelos séculos, Amém." Porém, se colocamos um ponto depois de aápica, a frase final em que está contida a palavra Geóç é gramaticalmente independente de XpiCtóç. Então nos encontramos diante de uma dessas doxologias que Paulo costuma introduzir, ao chegar no apogeu de um de seus raciocínios, e que neste caso se dirigiria a Deus, o Pai e não a Cristo. Depois da enumeração das graças concedidas a Israel, sendo a maior delas o nascimento de Cristo segundo a carne, Deus (o Pai) é bendito por todos os seus benefícios: "Deus, que está acima de todas as coisas, seja bendito eternamente, Amém!"6íl

Não se pode a priori, e por razões teológicas, preferir uma ou outra destas soluções. Mas, não obstante, temos de declarar que se bem que não se possa excluir a segunda, não é esta a que o exame do contexto nos predispõe a adotar.652 Aliás, as doxologias independentes costumam construir-se de outra maneira: começam pelo atributo evXóyTrroç (cf. 2 Co 1.3; Ef 1.3),653 enquanto que neste caso o sujeito apareceria no princípio. Consequentemente, não se trata de uma doxologia propriamente dita e independente, mas de uma aposição doxológica relativa a uma palavra antecedente: como por ex. em Rm 1.25 e 2 Co 11.31, onde Deus é louvado desta forma. Porém, mesmo fazendo abstração disso, a estrutura do primeiro membro da frase referente a Cristo Katá (Tópica exige, como

Segundo uma antiga conjetura do século XVIII, de J. J. WETTSTEIN, à qual K. BARTH, entre outros, adere em seu Rõmerbrief, 2a ed., 1922, p. 314 s (nota), deveríamos ler em lugar de ó div KtX.: WV Ó èiti rcávccov 8eóç Esta conjetura é pouco provável pois o sentido que dela resultaria seria muito artificial: além das graças enumeradas, o Deus onipotente pertenceria também a Israel. Sobre a história da exegese deste versículo cf. O. MICHEL, DerBriefan die Rõmer, 1955, p. 197 s. MICHEL mesmo se pronuncia pela interpretação cristológica. No Antigo Testamento o SI 66.20 não é exceção senão aparentemente. Cf. a este respeito M. J. LAGRANGE, Sawt Paul, Epitre aux Romains, 2° ed., 1922, ad loc.

Page 392: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

408 Oscar Cullmarm

na fórmula de Rm 1.3 s., uma sequência que vá além do Karà oápKa.654 Ademais, as palavras àít\ -návtov são mais facilmente compreensíveis se se referem a Cristo. Passam então de ser mera fórmula retórica e fazem com que a enumeração dos sinais da eleição de Israel culmine nesta afirmação final: de Israel saiu, segundo a carne, aquele que está "acima de todas as coisas". Por conseguinte, se não podemos dizê-lo com certeza, é pelo menos provável que em Rm 9.5 seja Jesus Cristo a quem se chama "Deus".

A crítica textual vacila quanto ao sentido exato de Cl 2.2: "...para conhecer o mistério TOÍ> 8EOÍ> Xpicrtoí) »m qqem estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência". No entanto, esta lição é tida por original pela maioria dos comentaristas, tanto mais quanto ao fato de que a proposição relativa que segue (v. 3), e que se relaciona certamente aXpicrcoí), atribui ao Cristo o que ordinariamente se atribui a Deus.

Em troca, a fórmula contida em 2 Ts 1.12: Kaià TT|V %ápiv iox) Geoíi fipôv Kcd icopíor) 'Iricroí) Xpimou não pode apenas ser considerada como uma simples expressão que se relaciona unicamente ao Cristo, embora esta possibilidade não fique inteiramente excluída. A fórmula análoga, contida em 2 Co 1.2: "Graça e paz àTtò Geoíi itcerpòç rpcov KCCÍ íeopun) 'ITICTOV Xpiatoí)" parece mesmo demonstrar que se trata, em primeiro lugar, de Deus e em segundo de Cristo.

A passagem de Tito 2.13 dá lugar também a muitas interpretações. Porém, a mais provável é que, efetivamente, Cristo seja chamado ali "Deus":655 "Aguardando a bem aventurada esperança e a manifestação gloriosa TOO [iEyáXox> QBOX) KaK GGttrpoç í>pov XpCctov 'Ir|aoí>, quem se deu a si mesmo por nós, afim de...

fiSJ H. CREMER - KÒGEL, Wõrterbuch des neutesit Grieclhsch, 11a ed, 1923, p. 488, chama a atenção, aqui, à oposição basar-ehhim que se encontra no Antigo Testamento.

''"Contra M. DIBELIUS - H. CONZELMANN, "Die Pastoralbriefe" (Hdb. z. NT), 3a ed.,1955, ad loc. Segundo este comentário, nos encontraríamos aqui (como em Lucas) em uma etapa da evolução em que, apesar da possibilidade de uma transferência a Cristo dos atributos de Deus, se teria ainda ensinado uma cristologia estritamente "subordinacionista".

Page 393: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 409

fazer-se um povo que pertencesse a ele, purificado por ele." O fato de que a fórmulaGeòç KO.1 o«XT\P - amiúde empregada pava denotar a Deus656 - não deva ser desmembrada, sem dúvida, já é um argumento contra uma distinção entre Deus e o "Salvador Jesus Cristo."657 Além disso (como em Cl 2.2 s.), o membro final da frase, certamente relativa a Cristo, indica uma função que, de ordinário, só se atribui a Deus.658 Enfim, uma "inanifestação" escatológica simultânea de Deus e de Cristo não corresponde à esperança geral.659

Vale pronunciar idêntico juízo sobre 2 Pe 1.1 onde aparece a mesma combinação de OEÓÇ KoCÍ atoxrip: èv ôiKcaoo"úvr| xov Qzov fipftiv Kcd atotfjpoç 'lT|aoí) Xpiccou A expressão empregada na mesma epístola para designar a Jesus, KÚpioç KOCÍ acoTtíp (2 Pe 1.11; 2.20; 3.2, 18), prova que aqui 0eóç é, junto com oení|p, um atributo de Jesus Cristo. Constata-se pois aqui também que a nomeação cristológica GEòç é uma variante do termo mais corrente icópioç.

Se fizermos abstração de At 20.28, onde a leitura xoí> 0eoiJ é muito incerta,661 chegamos à conclusão seguinte: naquelas poucas passagens do Novo Testamento onde Jesus recebe o título "Deus",

wsIsto é justamente, também, o caso nas Epístolas pastorais. Cf. 1 Tm l1.1 2.3; 4.10; Tt 1.3; 2.10; 3.4; e também, Lc 1.47.

657Como paralelo ao adjetivo xéyaç, que qualifica a Cristo, podemos citar 2 Pe 1.16, onde a jj.£7a>.etóxT\<; é igualmente atribuída a Cristo.

^8Cf. Ex 19.5; Dt 7,6; 14.2, etc. "^ Outro trecho das epístolas pastorais (1 Tm 3.16) nãoé tratado aqui, pois o vocábulo

8EÒÇ é, visivelmente, uma correção de õç. í,w,Em Ap 19.11 s. o cavaleiro é chamado "Logos", "Fiel", "Verdadeiro", mas tem um

"nome que ninguém conhece senão ele mesmo". Seria este o nome de Deus? Aí'1 A leitura Kupíoi) é, também, muito bem atestada. No entanto é difícil reconhecer

qual é a lectio difficilior. A maioria dos comentaristas parece inclinar-se por fleoíi, pois èKKXr|C>ía xov KVpíoi) para qehal lahweh é mais corrente (embora Ne 13.1 também fala de qehal ha-elolúm). E. HAENCHEN, Die Apostelgeschichte, 1956, p. 531, nota 1, fornece uma explicação plausível acercada transferência ulterior de 8EO\) para ícupíoti: havendo sido considerado o TOÚ iôtou como adjetivo qualiííca-tivo de aupctToÇ, se teria substituído 6eou porK\)píoi), a fim de evitar a aparência de patripacionismo.

Page 394: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

4") ( Oscar Cullmann

esta qualificação se liga, por um lado, a sua elevação à dignidade de Kyrios (Epístolas de Paulo, 2 Pedro), e por outro, à ideia de ser, ele mesmo, a revelação (escritos joaninos, Hebreus). De modo que esta qualificação no fundo não soma nada aos demais títulos dados a Jesus e estudados nos capítulos precedentes.

Em troca, a maneira em que Inácio de Antioquia dá mais frequentemente o título de 0eóç a Jesus, (cf. E&tn. 1.1; Ef 1.1; 7.2; 15.3; 19.3) anuncia já as discussões cristológicas ulteriores. No entanto, ele também faz distinção entre o Pai c o Filho (Cf. Esm. 8.1; Magn. 13.2).

Page 395: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CONCLUSÃO

PERSPECTIVAS DA CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO

Ao finalizarmos nosso estudo, o plano que adotamos pura expor a cristologia do Novo Testamento se revela. O exame sucessivo dos diferentes títulos fez ressãk&ras grandes linhas e, em pa.r-ticular, a grande linha mestra, regida pela história da salvação e da revelação. Evitando impor um esquema dogmático à cristologia do Novo Testamento e estudando, em cada caso, os títulos através de todos os seus livros, cremos haver seguido o método mais adequado à finalidade perseguida. Pois em si, o Novo Testamento não nos oferece uma síntese; porém, quer abranger o objeto da revelação partindo de diversos pontos e sempre de um ângulo novo. O resultado, contudo, não é um mosaico esburacado desprovido de coerência e unidade. Pois cada concepção particular tende para urna compreensão geral da pessoa e obra de Jesus; por outro lado, o estudo das relações recíprocas destes diversos conceitos nos permitiu - segundo cremos - escapar ao risco - que poderia resultar do plano adotado - de alinhar uma série de monografias independentes entre si. Ao contrário, demonstramos - esperamos que de fornia convincente - que a complexidade da cristologia do Novo Testamento não impede sua unidade essencial.

Ademais, esta é a forma em que os próprios cristãos primitivos apresentam a síntese da revelação cristológica, ou seja, pç]a análise dos diversos conceitos. Seu intento é responder à pergunta: Quem é Jesus? Seguindo os caminhos indicados pela variedade dos títulos cristológicos.

Page 396: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

412 Oscar Cullmann

De maneira que se nos impõem dois métodos se quisermos construir uma "Cristologia do Novo Testamento". Por um lado o método cíclico; partindo de cada conceito estudado, se estendem linhas para todos os elementos da história da salvação, mesmo que cada um desses conceitos não esclareça em princípio, senão só um desses elementos ou um fragmento deles. Por outro, o método histórico e cronológico que unimos ao primeiro: cada título foi examinado sucessivamente a partir da história das religiões e de seu enraizamento no judaísmo, depois, quando o tema assim o exigia, partindo das palavras e reações de Jesus e, finalmente, a partir do ensinamento particular de cada autor do cristianismo primitivo. O emprego simultâneo de ambos os métodos, fez aparecer o elo que une as diversas soluções cristológicas.

Se, nestas últimas páginas, nos propomos falar brevemente do elemento comum para o qual temos chamado, em cada caso, a atenção, não é para proporcionar, apesar de tudo, uma síntese e fazer, assim, o que os autores do Novo Testamento justamente não fizeram. A rigor, a verdadeira síntese, tal como cremos vê-la, não pode revelar-se senão a quem, com paciência, examina e estuda, separadamente cada um dos títulos cristológicos contidos no Novo Testamento.662 Se, com tal clara reserva pomos, no entanto, em relevo duas ideias principais que achamos a cada passo neste estudo, fizemo-lo para confirmar que o princípio adotado para a classificação dos diversos títulos - o Cristo encarnado, o Cristo que volta, o Cristo presente, o Cristo preexistente - não é um esquema imposto de fora, mas que corresponde efetivamente à própria essência de toda a cristologia neotestamentária, ao princípio da história da salvação. Apesar do método cíclico ou, melhor dizendo, graças a ele (talvez por esta mesma razão devêssemos falar antes de uma espiral) se pôs em evidência uma linha diretriz, um movimento

2Também teremos de sublinhar, unia vez mais, que este livro não é, em primeir;» instância, uma obra de referência que se possa consultar sobre tal ou qual ponto tia cristologia do Novo Testamento. Não se deveria utilizá-lo assim, com efeito, senão na condição de havê-lo lido inteira e atentamente antes.

Page 397: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TILSTAMHNTO 413

A variedade devida à multiplicidade tle títuloso do soluções cristológicas, o constatar que os diferentes títulos crisioló^icos são função da encarnação, do regresso, do senhorio pivsenU* ou da preexistência de Jesus e que não podem, poruinto, si* jtmiar sem inscrevermos todos eles em uma história da salvação, pio vam que o cristianismo nascente não respondeu à pergunta aivr ca de quem seja Jesus por um mito já feito; mas baseado 1*111 certo número de acontecimentos do primeiro século de nossa era, cujo alcance aqueles que então "faziam história" não chegaram a discernir e que podem hoje ainda ser interpretados diversamente, sem ser por isto menos históricos: a vida, a obra e a morte de Jesus de Nazaré e a experiência de sua presença e da continuação de sua obra para além de sua morte, no seio da comunidade de seus discípulos.

Fundada nestes acontecimentos, a cristologia do Novo Testamento foi concebida na perspectiva da salvação. Esta cristologia não é um mito que teria sido imposto de fora a um Kerygma alheio à história da salvação. A forma em que os primeiros cristãos elaboraram as diversas concepções cristológicas, seu desenvolvimento e sua significação teológica, coisa que temos estudado, prova o contrário. Os muitos, já o constatamos, elementos tomados do meio ambiente helenístico para expor a história cristológica da salvação nada muda disto: a cristologia, entendida como uma obra de salvação que se desenvolve desde a criação até a nova criação escatológica e que tem por centro a vida de Jesus, em si, não pertence a ditos elementos helenísticos. E sendo que é em relação a estes acontecimentos do primeiro século, tidos por fundamentais, que o cristianismo nascente chega a sua compreensão cristológica, podemos até dizer que o próprio desenvolvimento desta elaboração cristológica faz parte da história da salvação.

Se reconhecermos que o conhecimento cristológico se desenvolveu de forma paulatina, principalmente seguindo certos acontecimentos históricos, compreenderemos melhor que a própria cristologia também tenha sido entendida como um acontecimento, como uma história.

Page 398: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

4 H Oscar Cullmami

Baseando-nos nos resultados de nossos estudos, intentaremos primeiramente esquematizar, em grandes traços, uma história da formação das crenças cristológicas dos primeiros cristãos; depois da qual, faremos ressaltar os caracteres essenciais que lhes são comuns.60

* * *

O fundamento de toda cristologia é a vida de Jesus. Isto pode parecer uma verdade banal; e, no entanto, não só é necessário afirmá-la diante daqueles que negam a existência histórica de Jesus, como também diante de certas tendências da teologia atual. O problema de se saber quem é Jesus, não se formula unicamente a partir da experiência pascal da primeira igreja. A vida de Jesus já é o ponto de partida de todo pensamento cristológico; por um lado, em razão da consciência "messiânica" de Jesus e, por outro, em razão das reações que sua pessoa e sua obra suscitaram em seus discípulos e no povo.

Desde o seu batismo, Jesus teve consciência de ter de executar o plano de Deus. Isto é, de oferecer sua vida para o perdão dos pecados alheios, conforme a pregação referente ao Ebed Iahweh; consciência também de ter que antecipar já em vida este fim, mediante sua pregação e suas curas; consciência, ademais, de inaugurar o reino de Deus como o "Filho do Homem", que certos círculos judaicos esperavam do céu (mesmo que ele o fizesse provisoriamente, na humilhação de sua humanidade); consciência, enfim, de cumprir esta dupla função de "Servo de Deus" e de "Filho do Homem", em uma unidade perfeita, constante e única com Deus, na qualidade de "Filho".

Não foram na verdade algumas palavras que ele pronunciou a este respeito com voluntária discrição, o que fez com que seus

Teremos de sublinhar, por precaução, que se trata necessariamente de uma visão de conjunto sumária; para quem não tenha lido os capítulos que precedem, este esquema não pode significar grande coisa.

Page 399: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO T INSTAMENTO 415

discípulos já formulassem, durante sua vida, a questão cristológica. Nem o povo, nem os discípulos compreenderam, a princípio, as alusões mais ou menos veladas de Jesus. Foram, antes, as relações cotidianas com ele, o ensino e a ação dos quais foram testemunhas, o que lhes incitou a perguntarem-se quem era Jesus e qual o sentido de sua ação. Isto é, que o problema cristológico devia necessariamente impor-se a seus espíritos, se não quisessem ter Jesus como um alienado, como o tinham os membros de sua família e outros. Com clareza os evangelistas expressaram o que era que lhes forçava a formular a questão cristológica quando declararam que as pessoas que ouviam a Jesus estavam "assombradas",664

assombro misturado com temor diante de sua "autoridade", sua è^ovaia: "ensinava, com efeito, com autoridade e não como os escribas" (Mt 7.29).

Quanto à resposta, não podiam no primeiro momento encontrá-la sem apelar às concepções correntes acerca da esperança judaica do "Profeta do fim dos tempos" ou do Messias-rei político, concepções que não correspondiam à consciência que Jesus tinha de si mesmo. Só em raras ocasiões os discípulos intuíam uma resposta mais válida, mais exata, que não lhes havia sido revelada "por sangue e carne", como diz o Evangelho de Mateus. Acontecimentos extraordinários como, por exemplo, aquele do relato da transfiguração, podem ter dado uma referência histórica a estas revelações imediatas; porém, à parte tais indícios, seguia sendo para eles, todavia, incompreensível, o que Jesus queria significar quando se designava como o "Filho do Homem".

É só à luz de novos acontecimentos, a morte na cruz e, dois dias depois, o encontro com o Ressuscitado, que o problema de Jesus assume teologicamente sua plena significação. Estes acontecimentos confirmaram e explicaram aquelas esporádicas ilumi-

Cf. èxJtXíjcFcrecíTai: Mt 7.28; 13.54; 22.33; Mc 1.22; 6.2; 7.37; 11.18; Lc 4.32: 9.43. Ganhei cocei: Mc 1.27; 10.24; 10.32; Lc 5.9. è^íotao9o(t: Mt 12.23; Mc 2.12: 5.42; 6.51; Lc 2.47; 8.56. 6cconáÇeiv: Mt 8.27; 9.33; 15.31; 21.20; 22.22; Mc 5.20; Lc 4.22; 9.43; 11.14. (poPeTa6aa: Mt 9.8; 10.31; Mc 4.41; 5.15.

Page 400: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

'416 Oscar Culbnann

nações produzidas durante a vida terrena de Jesus, e alguns discípulos, ao menos, alcançaram, então, a compreensão destas suas alusões que, durante sua vida, lhes pareciam tão obscuras.

Sem dúvida, como o era para o próprio Jesus, a esperança do que ele haveria de ser no futuro continuava objeto do interesse cristológico, no sentido de que a aparição do "Filho do Homem" nas nuvens seria, doravante, esperada concretamente como um retomo de Jesus. Ademais, as concepções messiânicas correntes, aplicadas, até então equivocadamente a Jesus, podiam agora ser retomadas: a cruz e a ressurreição, ao mostrar a pessoa de Jesus em uma luz totalmente diferente, haviam purificado estas ideias elevando-as a um nível superior de verdade, sem que por isso o ideal messiânico, recusado por Jesus, deixasse, no entanto, de desempenhar certa função.

Porém, o essencial era ver como a esperança na segunda vinda de Jesus poderia relacionar-se com uma explicação acerca de sua primeira vinda. Já na igreja primitiva, o verdadeiro problema cristológico era constituído pela primeira vinda de Jesus e não tanto pela segunda; e é falso, portanto, repetir constantemente nas exposições da teologia do Novo Testamento, que a igreja primitiva palestina se interessava unicamente pelo Filho do Homem ou pelo Messias que vem; como se não houvesse diferença entre a doutrina judaica e a doutrina judaico-cristã acercado Messias; como se a reflexão cristológica dos cristãos palestinos não tivesse absolutamente sido condicionada pela primeira vinda de Jesus, por sua vida e por sua morte; como se só posteriormente, na igreja pagã-cristã e com Paulo, se tivesse começado a perguntar-se o que significavam a vida terrena e a morte de Jesus. Já é hora de não atribuir à igreja hierosolimitana semelhante incapacidade ingénua de ver os problemas.

Na realidade, desde o momento em que se falava da parusia, a questão acerca de sua relação com a primeira vinda de Jesus havia de formular-se forçosamente. Isto é, que a cristologia já se inscrevia, então, em uma reflexão sobre a história da salvação: Cristo não somente era aquele que vem mas também aquele que já veio;

Page 401: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TKSTAMI-NTO 417

agora, o fato de que o mesmo que havia de vir em glória e tinha sofrido antes a morte, devia ter um sentido que era questão de se descobrir.

É assim que, baseada na lembrança de certas palavras decisivas de Jesus, constitui-se, então, uma cristologia do Ebed Iahweh que interpreta a morte de Jesus dentro da perspectiva cristológica. Ela parece ter adquirido, depois da Páscoa, uma importância particular, ao menos para Pedro, o qual, durante a vida de Jesus, havia se levantado contra a ideia da necessidade do sofrimento e da morte de seu mestre. Nos outros meios e, sem dúvida, nos dos "hele-nistas" palestinos (At 6-8) que, quiçá, tenham tido alguma relação com círculos esotéricos judaicos, aos quais o autor do quarto Evangelho, talvez, pertencera, se buscou a solução de preferência na reflexão sobre o título de "Filho do Homem", que Jesus se atribuía a si mesmo. Pois este título permitia precisamente ligar a segunda vinda de Jesus à primeira. Os conceitos aí associados, não tinham somente um caráter escatológico no sentido de Dn 7; podiam, também, por influência de especulações judaico-orientais relativas ao primeiro homem e a Adão, ter levado a considerar Jesus como o segundo Adão, o homem celestial, a autêntica "imagem de Deus", concepção que, aliás, acharemos plenamente desenvolvida só em Paulo.

Porém, para que todas estas tentativas de explicação cristológica encontrem seu equilíbrio verdadeiro e, ao mesmo tempo, todo o seu alcance, foi necessária a certeza inquebrantável, dominante, de que Jesus, como Senhor presente, reina sobre a igreja, o mundo e a vida de cada um. Foi unicamente a experiência com o Kyrios que deu o impulso determinante para o desenvolvimento de uma cristologia orientada resolutamente para a história da salvação.

No culto, muito particularmente no momento do partir do pão, é que este conhecimento do senhorio atual de Cristo foi dado aos primeiros cristãos e confirmado em todos os demais domínios de sua vida fraternal. Ao lado da vida terrestre de Jesus e da experiência pascal, é este regozijo litúrgico onde o Senhor faz sentir sua presença, ali onde é invocado (maranatha), e confessado (Kyrios

Page 402: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

418 Oscar CuUmann

christos), que é a raiz principal da cristologia do Novo Testamento. Daí se podia tirar as linhas e efetuar as conexões, pois esta nova revelação, dada aos primeiros cristãos no culto, certificava que este Senhor presente era o mesmo Jesus de Nazaré aparecido sobre a terra, crucificado e ressuscitado, e também o mesmo Filho do Homem que devia vir nas nuvens do céu. Assim, a fé no Senhor a quem "todo poder é dado nos céus e na terra" - fé adquirida no culto e na vida eclesial cotidiana - devia incitar novas reflexões.

Por referência ao SI 110, citado pelo próprio Jesus, vimos a relação entre o Senhor vivo e o Jesus terreno na "elevação" do Ressuscitado "à destra de Deus". A frequência com que se citava este texto mostra quão importante era, para os primeiros cristãos, ver garantida desta maneira a identidade do Senhor presente e do Cristo encarnado. A função do Cristo na história da salvação se apresenta com clareza cada vez maior. Toda teologia se convertia em cristologia. Se Jesus era o Kyrios, isso haveria de influenciar todos os demais títulos: a cada qual, portanto, ligou-se, tácita ou conscientemente, a perspectiva geral da história da salvação. Que Jesus tivesse cumprido a missão do Ebed Iahweh, que fosse o Messias prometido a Israel, que houvesse vindo e devesse voltar como "Filho do Homem", tudo isto conservava seu valor, porém, aparecia em uma luz completamente distinta.

Porém, esta reflexão cristológica acerca do "Senhor", permanentemente regida pela experiência de sua presença e compreendida, desde então, como inspirada pelo Espírito Santo, tinha ainda outra consequência: ele, a quem todo poder havia sido dado, a quem todas as passagens do Antigo testamento que falam de Deus podiam ser aplicadas, devia estar agindo mesmo antes de sua vida terrena. Do momento em que se considerava sua vida como a revelação decisiva da vontade divina de salvação, haveria de se prolongar a linha da história da salvação em direção ao passado, para além da aparição de Jesus. Jesus foi reconhecido como o revelador por excelência: onde quer que Deus houvesse se revelado Cristo também estava presente; e assim surgiu, sempre na pers-

Page 403: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 419

pectiva da história da salvação, a questão da relação entre o Cristo encarnado e o Cristo preexistente; a lembrança de certas palavras de Jesus sobre o caráter único de sua filiação se desperta.

A obra terrestre de Jesus, considerada como o acontecimento central, foi assim colocada cronologicamente no meio de uma linha da salvação que aponta para frente e para trás.665 Como ela representa o centro da revelação de Deus, todas as demais revelações divinas devem estar-lhe relacionadas, pois não poderia haver revelação divina que diferisse fundamentalmente da revelação dada em Cristo. É assim que a cristologia se aproxima, por diversos caminhos, do que a dogmática posterior haverá de chamar (em um sentido que não é, aliás, sempre o do Novo Testamento), a "divindade" de Cristo. Os caminhos que aí conduzem são: a consciência que Jesus teria de ser o Filho de Deus; a presença viva do Kyrios no culto, e a reflexão sobre o Logos no pensamento teológico. O Evangelho de João, as epístolas de Paulo e a Epístola aos Hebreus, a despeito de todas as suas diferenças, não estão muito afastados entre si no que toca a esta concepção cristológica fundamental.666 Ademais, noções cristológicas que à primeira vista parecem situar-se em outra perspectiva, por exemplo, a de "Filho do Homem", conduzem, também, à ideia de Jesus "imagem de Deus" e "existindo em forma (p.op(pr\) de Deus" (Fl 2.6).

Todo este processo de reflexão cristológica se desenvolve junto com a ação missionária da cristandade primitiva. Ele era pois seriamente ameaçado pelo contato com o pensamento helenístico e sincrético do mundo ambiente, tanto mais pelo fato de que para fazer-se compreender necessitava estabelecer um vínculo com este pensamento; tomam-se assim dele certas concepções e até certos traços mitológicos. A própria fé no Kyrios adquire um relevo particular, porquanto o paganismo tinha uma concepção bem definida do Kyrios e também porque o imperador se fazia adorar como

SS5O que H. CONZELMANN, Dei Mitte der Zeit, 1954, demonstra a propósito de Lucas não é válido somente para este autor.

66(1 Cf.V/. BAUER, "Das Johannesevangelium" (Hdb. z. NT), 3a ed., 1933, p. 6.

Page 404: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

420 Oscar Cullmcmn

Kyrios. A ideia de Filho do Homem, que também tem suas raízes em antigas concepções de um primeiro homem divino, já havia se desenvolvido em terrenos judaico e pagão, embora num sentido muito diverso. Proliferavam por toda parte as especulações sobre a "Palavra" de Deus nas religiões pagãs e especialmente na filosofia religiosa do helenismo. Tudo isto teve influência no desenvolvimento da cristologia. Porém, insistir que a cristologia do Novo Testamento repousa em um mito gnóstico é condenar-se a não compreender nem os motivos profundos de sua formação, nem sua própria natureza. Abordar os textos com tais premissas - como se costuma fazer hoje com tanta desenvoltura - é inevitavelmente impedir-se de ver os motivos cristãos imanentes, a significação de acontecimentos tais como a vida, morte, ressurreição e presença litúrgica de Jesus para a reflexão teológica; é, sobretudo, condenar-se a desconhecer totalmente as verdadeiras relações entre a cristologia e a história das religiões. Elementos sincréticos e até míticos foram, por certo, adotados. Porém, foram submetidos a um esquema cristológico que, precisamente, não está regido pelo sincretismo, ou pelo helenismo ou pela mitologia, mas, pela história da salvação e por fim submetidos a um esquema, cujo caráter essencial consiste em ter por centro, desde o começo, uma história real.

Os principais temas da cristologia do Novo Testamento estão já formados e presentes no seio da igreja nascente. É aí, onde, vinculados aos acontecimentos desencadeados depois da morte de Jesus, nasceram todas as afirmações cristológicas importantes, como o provam as confissões de fé e os hinos que surgiram da comunidade primitiva. É verdade que é sobretudo nas epístolas de Paulo, no Evangelho de João e na Epístola aos Hebreus (vale dizer, nos escritos originados em ambientes do mundo helenístico) que as diversas concepções cristológicas se desenvolveram e aprofundaram. Porém, não esqueçamos que não somente fora da Palestina mas também, por intermédio do judaísmo, nela o helenismo exercia certa influência sobre a igreja primitiva. Os textos judaicos recentemente descobertos de Qumran que apontam

Page 405: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 421

elementos nitidamente sincretistas e fazem aparecer, por outro lado, pontos de contato importantes com o pensamento do Novo Testamento, mostram como certos grupos do cristianismo palestino primitivo - podemos pensar, por exemplo, nos "helenistas" de que fala Atos dosApóstolos -puderam, desde o começo, estar em contato com o pensamento helenístico. Cada vez mais se reconhece que o Evangelho de João pertencia a estes meios.

Mas então, há de se acabar com o esquema rígido: comunidade primitiva judaica - cristianismo helenístico. Não se pode estabelecer entre a teologia da igreja pagã-cristã e a da igreja hiero-solimitana a distinção taxativa que se costuma fazer. Não somente carecemos de textos que permitam uma delimitação precisa, como também se tem demonstrado, entrementes, que esta oposição taxativa não existe. Fato este que também tem de ser levado em conta pela cristologia, sem desconhecer de modo algum, por outro lado, que as concepções helenísticas influenciaram muito mais poderosamente a igreja em ambiente pagão do que em ambiente palestino.

Também temos de reconhecer que a compreensão cristológica foi se formando por um processo. Porém, o essencial neste processo não é a passagem da igreja palestina à igreja congregada em território pagão, por importante que dita passagem seja. O essencial, antes, são as etapas seguintes: a vida e a morte de Jesus e as alusões que ele faz à missão para a qual foi enviado; a experiência pascal dos discípulos; a presença experimental e vivida do Senhor na vida e principalmente no culto cristão; enfim, a reflexão que se sente dirigida pelo Espírito Santo para com as relações que as funções do Cristo, por separadas que estejam no tempo, têm com a extensão inteira da história da salvação e da criação até a parusia.

Ligado como está ao fato central da vinda de Cristo, desde este ponto de vista, este desenvolvimento pode ser considerado como parte integrante da própria revelação.

* * *

Page 406: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

422 Oscar Cullmann

Se nos empenhamos agora em fazer ressaltai' os traços essenciais comuns a toda a cristologia do Novo Testamento temos que mencionar, em primeiro lugar, esta visão de uma cristologia completa, regida pela história da salvação. Isto não se aplica, por certo, de forma igual a todas as concepções cristológicas. Costuma ocorrer que só uma das funções cristológicas seja esclarecida em todas as suas faces ou antes que a linha que devia religá-la às demais não seja traçada em toda sua extensão. Porém sempre, salvo o caso do Profeta escatológico, as demais funções cristológicas se apresentam de uma maneira ou outra. E sempre está aí, no fundo, implícita, a pressuposição de ser a encarnação - os sofrimentos, a morte e a ressurreição de Jesus - o momento decisivo, no curso do tempo, de toda a obra de Cristo. Qualquer que seja a função particular que se contemple, a identidade do Cristo preexistente, presente ou futura com Jesus de Nazaré, não está assegurada senão quando se reconhece que o Cristo é o centro de toda a revelação. Sem esta referência obrigatória à pessoa e à história de Jesus, se deslizaria diretamente para o docetismo ou o sincretismo. Jesus se converteria em um princípio filosófico-religioso; e sua vida histórica passaria a ser só um disfarce mitológico.

Por isso o docetismo, isto é, a solução cristológica para a qual a obra histórica de Jesus não é o centro de toda a revelação de Deus, já é, para o Novo testamento, a heresia cristológica fundamental: aquele que não confessa que Jesus Cristo veio em carne, o tal é do Anticristo (1 Jo 4.2 ss.). Desde que o centro da revelação deixou de ser o Encarnado, já não estamos mais no terreno da cristologia do Novo Testamento. O elo com a história da salvação, que é uma história real, temporal, nunca falta no Novo Testamento, inclusive ali onde se crê que ele está localizado no plano de um pensamento especulativo como, por exemplo, no prólogo do Evangelho de João. O quanto aí se diga acerca do "princípio", está situado na perspectiva desta afirmação decisiva: "E o Verbo se fez carne e habitou entre nós" (Jo 1.14). Quando este acontecimento temporal é verdadeiramente o centro de toda a história do Cristo, pode-se falar também do Cristo preexistente e de sua relação com

Page 407: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 423

Deus, ou do "Senhor" invisível e presente, sem correr o risco de cair nas especulações gnósticas e sincréticas. Por outro lado, este vínculo com o Cristo preexistente, com o Kyrios, com Deus, deve ser estabelecido, já que toda a revelação de Deus está ligada a este centro.

Esta visão de uma cristologia dirigida pela história da salvação que nos conduz da criação à plenitude, à realização de todas as coisas na nova criação, passando pela reconciliação na cruz e o reino invisível e presente de Cristo, está dominada por dois aspectos essenciais que encontramos repetidamente ao estudarmos as diversas soluções do problema cristológico: por um lado, o princípio de substituição, segundo o qual se desenvolve toda esta história; e por outro, a ideia de Deus que se comunica a si mesmo, a ideia de revelação que reúne as diversas fases da históriada salvação, de sorte que o Cristo mediador da criação pode situar-se no mesmo plano que Jesus de Nazaré, reconciliando o mundo por sua cruz.

Em Christ et le Temps expomos, em detalhe, como o princípio da substituição determina o movimento da história da salvação. Da multidão se passa, por redução progressiva, a um; e deste, que está no centro da marcha das coisas, se volta à multidão: pas-sa-se da criação à humanidade, da humanidade a Israel, de Israel ao "remanescente", do "remanescente" ao Cristo encarnado; e em seguida se vai do Cristo encarnado aos apóstolos, dos apóstolos, à igreja, da igreja ao mundo e à nova criação. Porém, aquele que se encarna no coração mesmo do tempo, age também, de maneira substitutiva, antes e depois. Por isso achamos constantemente nos títulos cristológicos essenciais, esta ideia de substituição; quer se trate do Ebed Iahweh, ou do sumo sacerdote, ou do Filho do Homem, ou do Filho de Deus; porém, em cada caso, sob um ângulo particular.

O Cristo é aquele em quem o próprio Deus se revela: tal é a segunda ideia principal que temos que pôr em relevo nesta breve recapitulação. Ela caracteriza especialmente as soluções cristoló-gicas estudadas nos últimos capítulos Logos, Filho de Deus, Deus),

Page 408: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

424 Oscar Cullmann

porém, não se limita, de nenhuma maneira, a estes últimos. Em última análise, ela é subjacente a todas as concepções cristológicas: principalmente naquelas que, como a de Ebed, e em parte a de Filho do Homem, explicam o Cristo encarnado, a revelação de Deus tornada, por assim dizer, "palpável"; vimos sua. doxa queé a doxa do próprio Deus (Jo 1.14); pôde-se captá-la por todos os sentidos humanos (l Jo .ls ss.). Se a vida humana e a morte expiatória de Jesus, se estes acontecimentos que se podem datar historicamente, constituem a revelação de Deus em sua forma decisiva, então, este conceito de revelação exige uma cristologia regida pela história da salvação; então todo o conjunto da revelação, antes e depois de Jesus Cristo, deve ter por centro a Jesus de Nazaré, crucificado e ressuscitado.

O Evangelho de João, Paulo e a Epístola aos Hebreus levam esta reflexão sobre a revelação até suas últimas consequências: Jesus Cristo é Deus, em sua auto-revelação. O Evangelho de João tira esta última conclusão cristológica identificando Jesus com a Palavra pela qual Deus se revelou desde a hora da criação e pela qual continua revelando-se ao longo da história da salvação; Paulo, considerando Jesus como o Kyrios que reina sobre o universo; e a Epístola aos Hebreus, dando a Jesus Cristo o nome de "Deus". Os primeiros cristãos não conhecem, quanto à revelação, o dualismo entre criação e redenção.

Considerar Jesus Cristo como "o revelador" por excelência supõe também uma afirmação acerca de sua pessoa, e não somente de sua obra; porém, no sentido de não poder falar-se de sua pessoa senão em relação com sua obra A frase conhecida de Melanchton: Christum cognoscere est beneficia eius cognoscere, não significa certamente, se se quiser colocá-la na perspectiva do Novo Testamento, que a cristologia não trata também da pessoa de Jesus. Os termos têm de poder ser invertidos: na obra pode-se reconhecer também a pessoa, isto é, sua relação única com Deus. Se no ápice do pensamento cristológico do Novo Testamento, Jesus Cristo é Deus enquanto aquele que se revela, então, não se pode falar de sua pessoa fazendo-se abstração de sua obra, como

Page 409: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA oo Novo TESTAMENTO 425

não se pode, tampouco, falar de sua obra fazendo-se abstração de sua pessoa. Desde o começo - e inclusive ali onde as consequências finais não foram ainda tiradas - todacristologia une, de maneira absoluta, a pessoa e a obra; e o próprio Jesus tem consciência de assumir, enquanto Filho do Homem, os sofrimentos do Servo de Deus, e de ser precisamente assim o Filho único de Deus, uno com o Pai.

Por verem em Jesus a revelação da salvação de Deus, os primeiros cristãos não podem reconhecê-lo como tal sem apoiarem-se em sua obra, e fundamentalmente em sua obra central consumada por sua encarnação. Por isso, as especulações sobre as "naturezas" caem fora das perspectivas do Novo Testamento. A cristologia que este ensina trata das funções do Cristo.

Toda cristologia é, por conseguinte, história da salvação, e toda história da salvação é cristologia. Daí o fato de que a formulação estritamente cristocêntrica das mais antigas confissões de fé nada sabe de uma distinção entre Deus como criador e Cristo como Redentor, já que criação e redenção são inseparáveis, por serem ambas atos pelos quais Deus se revela ao mundo. Se partirmos da obra humana de Jesus e formos até o fim da reflexão sobre o problema da revelação, fica impossível separar a redenção da criação. A morte expiatória de Cristo tem consequências cósmicas (Cl 1.20; Mt 27.51), e o Kyrios Christos presente não se manifesta somente como Senhor da Igreja mas também como Senhor do universo. Por isso, do ponto de vista da revelação, não pode haver mais que um só Logos um só Kyrios um só Deus. Certamente, a distinção entre o Pai e o Filho se afirma no Novo Testamento, inclusive ali onde se chegou até estas últimas consequências. Porém, não é uma distinção entre Criador e Redentor, mas entre a origem e o fim, de um lado (èí; e EÍÇ, 1 Co 8.6); e o mediador, por outro (ôiá, 1 Co 8.6); entre Deus e sua Palavra que, como tal, é ele mesmo e que, no entanto, não é ele mesmo, mas que está "com ele" (Jo 1.1) ou, como o dissemos mais acima, entre Deus, tal qual existe quando não se volta para nós para revelar-nos sua vontade de salvação, e Deus tal qual se revela ao mundo. Só durante o tempo da revela-

Page 410: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

•426 Oscar Cullmaim

çao, neste tempo que começa com a criação do mundo e dura até o seu fim, tem sentido a distinção entre o Pai e o Filho. Onde não há revelação, falar do Logos, isto é, da Palavra pela qual Deus se revela, carece de objeto. Os escritos dos primeiros cristãos não falam senão do Deus que se revela, do Deus voltado para o mundo; ou seja, da história que se desenvolve desde o "começo", de Jo 1.1, até o''tudo em todos" de 1 Co 15.28; portanto, do instante em que a Palavra começou a surgir de Deus, como Palavra criadora, até o instante em que o Filho, a quem o Pai sujeitou todas as coisas, se sujeita, a si mesmo, ao Pai, depois de haver-lhe sido sujeito tudo o mais.

O Novo Testamento não pode, nem quer, instruir-nos sobre o "ser" de Deus, considerando-o à parte do ato pelo qual se revela; as investigações sobre o"ser", em sentido filosófico, lhe são totalmente alheias.667

Seu propósito é proclamar as magnalia Dei, as grandes obras reveladoras de Deus feitas em Cristo. E se o Novo Testamento faz algumas tímidas alusões a uma realidade situada além da revelação, é só para chamar nossa atenção ao mesmo tempo para a distinção e a unidade entre o Pai e o Filho, e para nos recordar que toda cristologia é uma história de salvação.

* * *

É possível demonstrar aos homens de hoje a verdade desta revelação concedida aos primeiros cristãos? Pode-se provar logicamente que o centro de toda revelação divina reside na vida terrena e na morte de Jesus; e que a esta luz toda revelação há de ser considerada como uma história da salvação que, tendo começado antes da encarnação, continua até o fim? Ainda hoje não há outro "método" de compreender a cristologia, senão aquele que está exposto nos capítulos 5-8 do Evangelho de João. Pois para o

É o que desconheceu a maior parte daqueles que criticaram a maneira em que temos exposto as noções bíblicas acerca do tempo em Christ et le Temps.

Page 411: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLÍJGIA DO NOVO TESTAMENTO 427

homem de então era tão difícil, como é para nós, crer no que para os judeus era um "escândalo" e para os gregos uma "loucura". Não se pode repetir suficientemente que a dificuldade de crer nela não se apoia na "concepção mitológica do mundo" já superada da Bíblia, nem que o progresso tecnológico de nossa época, com a eletricidade, o rádio e a bomba atómica, tenham feito, de alguma maneira, que a fé em Jesus, centro da história divina da salvação, seja mais inacessível aos homens do século XX que ao homem antigo; pois o "escândalo", a "loucura" é que acontecimentos históricos datados - "sob Pôncio Pilatos" - representem o centro indiscutível da revelação de Deus; e que dali tenha que se compreender todas as demais revelações. Isto era também tão difícil de admitir para o homem de então, como o é para o atual.

Vimos que os primeiros cristãos chegaram a esta compreensão por um triplo caminho: primeiro aceitando o testemunho contido navida de Jesus, comos acontecimentos da Sexta Feini Sani;i e da Páscoa; em seguida, pela grande experiência litúrgica e pessoal da.presença do Kyrios, Senhor da igreja, do mundo e tia vida de cada homem, sendo este Kyrios idêntico ao Jesus da história; enfim, pela reflexão, efetuada na fé no Senhor presente e no Filho do Homem crucificado, acerca da relação entre este Jesus Cristo e todas as demais revelações de Deus. Tais são as fontes da convicção cristológica do cristianismo primitivo. Para o homem de hoje não há outra. Mas todas as três, fecundando-se mutuamente, são indispensáveis para compreender quem é Jesus.

Page 412: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

ÍNDICE DE AUTORES CITADOS

A

Aall,A., 329, 336 Albright,W. R,241 Allegro, J. M,. 36 Alio, E. B., 313 Alt, A., 357 Andrae, T., 74 Anricíi, G., 314

B

Baldensperger, W., 50, 184 Bali, C. J., 99, 100 Bardtke, H., 39,40 Bardy, G,, 116,247 Banett, C. K., 94, 100, 388,403 Barth, K., 20, 221 ss. Baudissin, W. v., 263 Bauer, W., 158, 170, 328, 333, 336, 355,

371,388,403,419 Bauerfeind, O., 365 Baumgartner, W., 39, 48 Bell, G. K., 23 Bentzen, A., 36, 43, 78, 152 Bernard, J. H., 244 Bieneck, J., 358, 362, 363, 366, 371 Bietenhard, H., 179, 295 Billerbeck, P., 36,44,56,92, 100,115,116,

220 Black, M., 206 Boismard, M. E., 37, 328, 349 Bonnard, R, 229 Bonnei', C , 358 Bornhausei', K., 170 Bomkamm, G., 25, 60, 62, 193 Bousset,W., 184,189,193,225,358,363,367 Braun, F. M., 49, 241,388

Bréhier, E., 336 Brownlee, W. H., 40, 83 Buber, M., 82 Bultmann, R., 20, 25, 48, 62, 71, 87 8g

92,98,102,114,120, 166, 174,193,203 , 206, 208, 212, 266, 270, 281, 303, 315 318,319, 329, 330 s., 336 s., 343, 3<)5 s

354, 358, 361, 367, 372, 38l 387 ss. 403

Burchard, Ch., 40 Buri.R, 71,72 Burney, C. F., 99,100, 337, 388, 403 Burrows, M., 83

C

Cerfaux, L., 96, 260, 263, 273, 2! Charles, R. H., 185, 246 Chylraeus, 141 Clarksori, E., 140 Conrady, L., 387 Conzelman, H., 291, 309, 313, 316, 408~

419 Cremer, H., 340, 403,408 Cullmann, O., 18, 20, 27, 37, 41, 47; 61,

65, 76, 84, 93, 94, 98, 99, 103, 106,129' 133, 162, 170, 205, 217, 243, 248, 262 274, 289, 295, 298, 301, 305, 366, 370 372, 374, 379, 380, 381, 383, 392, 394

Cumont, f,, 259

D

Dalman, G., 85, 92, 171,265 Davies, W. D., 81 Debrunnei', A., 158, 334 Deissmann, A., 23, 260, 314 Delling, G., 371

Page 413: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

430 Oscar Cullinann

Dibelius, Fr., 54 Dibelius, M., 313, 316, 375, 408 Diels, H., 330 Dinkler, E., 187 Dittenberger, W., 261 Dix, G. H., 81 Dobschiitz, E. v., 270 Dodd, C. H., 23,71, 100, 189,329, 332 336,

340, 344, 356, 358, 367, 388, 389 Dõlger, F. J., 314, 319,381 Dornseiff, 313 Driver, 80 Dupont, C, 184 Dupont, J., 340, 349 Dupont-Somtner, A., 39, 40,41, 83 Díiir, L. 335

E

Ebeling, H. J., 88, 165 Eissfeldt, O., 39, 152 Elliger, K., 40, 116 Engnell, I., 36,43,78, 81 s. Euler, K. F., 81

F

Fascher, E., 32 Festugière, A. J., 332 Fiebig, P., 184 Flemington, W. R, 33 Fohrer, G., 33 Fõrster, W., 260,261, 262,263,265 s., 285,

290, 302, 306 ss. Fridrichsen, A., 203, 233 Friedlânder, M., 116, 117 Friedrich, G., 140, 373 Fuchs, E., 24

G

Gadd, C. J., 355 Gall,A. v., 148, 184 Gastei', Th. H., 40 Goguel, M., 48, 169 Grasser, E., 71 Gressrnann, H., 36, 152, 184, 315 Grether, O., 263, 335 Grundmann, W., 355, 360, 368, 382

H

Haenchen, E., 189, 409 Hamp, V., 335 Harlé, P.A., 100 Harnack, A. v., 25, 76, 94, 129, 315, 327,

372,376 Harris, J. R., 336, 345 Hasse, K. v., 374 Hegermann, H., 84, 85 Heitiníiller, W., 267 Hennecke, E., 60, 385 Henniri",W„ 189 Henry, R, 233, 237 Hepding, H., 189 Héring, J., 47, 81,106, 129, 148, 152,158,

167,179,220,221,224,230,232,236,245 Herrrnann, L., 37 Hertzberg, H. W., 116 Hirschberg, W., 73 Homrriel, E., 275 Horovitz, J., 73 Humbert, P., 84 Huntress, E., 358

J

Jackson, F. J. Foakes, 150, 154, 217 Jenni, E., 152 Jeremias, J., 36, 37, 43, 76, 81, 82, 84, 85,

93,99, 102, 115, 117, 191 Jerome, F J., 116 Johnson, A. R., 79 Johnson, S. E., 39 Jonas, H., 332 Jung, C. G., 189

K

Kaseman, E., 24, 116, 132, 230, 327 Kattenbusch, F., 206, 260 Kern, O., 332 Kittel, G., 84, 205, 334, 340 Kleinknecht, H., 334 Klostermann, E., 61, 88 Kõgel, J., 125, 340, 403, 408 Kõhler, L., 314

Page 414: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

C-RISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 431

Jímeling, C. H., 184 Kroll, J., 332 JGimmel, W. G., 71, 72, 88, 89, 90, 92, 95,

96, 210, 305, 367, 377 Kuppcrs, W., 152 Kuhn, G., 170 Kuhn, K. G., 39, 44, 117, 155, 241

L

Lagrange, J., 89, 90, 186, 373, 407 Lake, K., 150, 154,217 Leenhardt, F. J., 91 Leisegatig, H., 329 Lerch, D., 382 Leuba, J. L., 178 Lichtenstein, E., 55, 106 Lidzbarski, M., 48, 333, 394 Lietzmann, H,, 48, 183, 198, 200 Ljungmann, H., 94 Lohmeyer, E., 23,37,55,58,76, 80 s., 88s.,

94, 157,236,247,282,314,355,372,384 Lohse, E., 83,91,93 Loisy, A., 94, 388 Liitgert, W., 388 Lutlii, K,, Ítí4

M

Maclien, J. G., 385, 387 Manso ti, T. W., 24, 76, 202, 204, 206, 214,

376 Manson, W., 150, 189, 202, 211,214 Mariana, 37 Mai'iès, L., 143 Masson, Ch.,231 Maurer, Chr., 76, 93, 98 s., 104, 338 Medico, dei, 39 Melanchton, Ph., 424 Merx, A., 38, 158 Messel, N., 186, 206 Metzinger, A., 40 Meyer, E., 173, 314, 372 Meyer, R., 34 Michaelis, W., 89, 186,358 Michel, O., 116, 125, 129, 170, 235

Milik, J. T., 143 Moc, O., 140 Molin, G.,40 Morgenthaler, R., 298 Moule, C. F. D., 208 Mowinckel, S., 42, 152 Munck, J., 37, 60 Murmelstein, B., 191, 195

N

Neubauer, 80 Nikolainen, A. T„ 89 Nock, A. D., 332 North, C. R., 79 Nyberg, H. S., 36

O

Odeberg, H., 190,241 Otto, R., 184, 187 Otto.W., 314

P

Percy, E., 165, 166, 207,212 Peterson, E. 48, 275 Pliilometiko, M., 83 Pohlenz, M., 330 Preisker, H., 404 Preiss, Th., 142, 203, 204, 207, 209, 211,

213,240 Procksch, O., 334, 343 Priimm, K.260, 314, 330, 332 Puech, H. Cb,, 48, 189

Q

Quell, G., 263, 334 Quispel, G., 189

R

Rabin, Ch., 38 Rad, G. v,, 107,357 Rawlinson, A. E. J., 150, 175, 204, 280 s. Rehm, B.,61 Reicke, B., 292 Reitzenstein, R., 189, 245, 332, 345

Page 415: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

432 Oscar Cuilfnann

Rengstorf, K. H., 259,315 Resch, A., 387 Reisenfeld, H., 37, 43, 82, 372 Rissi, M., 125, 129 Robinson, J. A. T., 96, 209 Robinson, J. M., 159, 163 Robinson, W., 33, 79 Roscher, W. H., 259 Rost. L., 38 Rowley, H. H., 32, 75,79, 82, 114 Rudolph, W., 74

S

Sahlin, H., 344 Sanders, J. A., 83 Schaeder, H. H., 189, 245, 332, 345, 351 Schechtei', S., 38,41 Sc li i Me, G.. 122 Sclilatter, A., 89, 99, 265, 363, 375 Schleiermacher, D. F, 251 Schlier, H., 48, 338 ScLimidt, H., 114 Schnackenburg, R., 345 Schneemelcher, W., 385 Scliniewind, J,, 89, 375 Schoeps, H. J., 36, 43, 62, 74, 172, 193 Schrenk, G., 334, 371 Scliulz, S., 242 Schweitzer, A., 71, 72, 179, 375, 376 Schweizer, E„ 83, 90, 91, 99, 102 Seidel í ri, R, 84, 85, 89 Sellin, H., 36 Sevenster, G., 24 Simon, M., 115 Sjõberg, E., 184, 185, 186, 187, 190, 191 Spicq, C , 116, 125, 129, 140, 141, 337 Spina, F„ 175 Staerk, W., 38,41,313 Stamm, J. J., 251 Stauffer, E,, 117, 155, 167, 171, 308 Steindorff, 37, 43 Stier, E, 358 Stork, H., 116 Stuiber, A., 177 Sukenik, E. L., 40

T

Taylor, V., 98,106,166,176,206,, 311,375, 396

Teicher, 3, L., 40 Thurian, M., 400 Tondriau, J., 260 Trench, 259 Trever, J. C , 40

U

Usener, H., 355

V

Vaux, R. de, 39 Veil, H., 61 Vermes, G,, 39 Vielliauei', Ph., 46 Violet, B., 358 Volz, R, 34,36,37, 152

W

Wagner, W., 313 Waitz, H., 61 Weiser, A., 114 Weiss, J., 171 Wellhausen, J.,183, 203, 372 Wendland, R, 260, 313 s., 355 Wendt, H. H., 244 Wensinck, A. J., 74 Werner, M., 186 Wetter, G. R, 355 Wettstein, J. J., 407 Williger, 259 Windisch, H., 123, 125, 127, 129, 404 Wobbermin, G., 314 Wolff, H. W., 76, 81, 92, 107, 108 Wolfson, H. A., 336 Wrede, W., 165, 166, 365, 369, 384 Wuttke, G., 116

Z

Zahn, Th., 172,363 Zimmerli, W., 79

Page 416: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

ÍNDICE DE REFERENCIAS BÍBLICAS

ANTIGO TESTAMENTO

Génesis 32.15 - 312 34.3-312 1 - 333, 343 42.7Í. - 95 7.7 -329 JuizÊÍ 45.7s. - 306

1 ss. - 344 3.9; 75 - 313 67.3; 7 -312 ,397 ,404 26 - 228, 230 s. 64.6-312 27 - 197. 222 7 samuel 66.20 - 407

2 - 197 9.16 - 152 69.2 s. - 95 2.7 - 197, 222 7019 - 312 74 ,i. - 95 3 - 197 24 .7-152 72 - 153 3.5 - 233 74.9 - 34 6 - 1 9 3 /7 Samuel 7S.9-312 6.2 - 358 7.12 ss. - 153 80.18 - 183 14- 109, 122 74 - 152, 357 S2.6 - 157 14.13 ss. - 114 28 - 402 S9.3 s. -153

7S ss. - 114 / Reis 7 - 358 79 - 115 18-39 - 402 27 - 358

22 - 82, 404 s. 79.76- 152 102.25 - 306, 397, 405 2S.72 - 243 107.20 - 335

77 Reis 110-114, 119, 120, 121, Êxodo 13.15 - 313 142, 168, 173, 207, 4.22 ss. - 357 208, 210, 240, 267 s.í 12 - 100 Neemias 292,298,41 8 72.46 - 101 9.27 - 313 110.4 - 114, 123, 135 79.5 - 409 73.7 -409 747.15-335 28.41 - 152 29.9 .t.v. - 125 Jrí Provérbios

1.6- 358 1.28 ss. - 337 Levitico 2.7-358 8.22 ss. - 337 4.5 - 125 38.7 - 358

Isaías Números Síi/nwí 1.2 - 357 9.12- 101 2 - 153, 354,358 9.6-357

2.7-94,357,367,396 72.2-312 Deuteronômio 8 -226 7 7 / 0 - 3 1 2 7.6 - 409 8.4 - 183, 246 79-20-313 fi.J -214 24.5 - 312 30.7 -357 74.2 - 409 27 .7-312 40.3-341 18.15-35,60,63 29.7 - 358 42.7 -93,94,95,101,370

7.5 « . - 38 33.6 - 335 7 ss. - 77

Page 417: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

434 Oscar Cullniaim

6-92 12 1 77, ,1, I I1 , 123 7 - 120, 190, 218,417 43.2 - 95 55.10 s. -335 7.13 - 184 ss., 205, 210,

3; 11 - 312 60.16 - 312 219, 245, 353

44.23 - 306 62.11 - 312 13 s. - 184,227 45.7-312 63.8-312 15 ss. - 184

/ / -357 76 - 157 10.5 ss. -401 75.2/ - 312

49.1 ss. - 77 Jeremiíí7.í Oséias 3199 3.22 - 357 11.1 -357 6 - 3 6 M<¥ - 312 S-92 30.5 ,v. - 153 7oe/

50.4 ss. - 77 31 - 9 2 2.25 ss. - 33 52.13 -77', 102, 107, l i I , 31.20 - 351

236 5<S. 7 7 4 402 Miquéias 53.49 ss. - 77 7.7 - 312

53.1 - 101 Ezequiel 1 ss. - 107 2.1 - 183 Habacuque 2 - 8 4 28.2 .«. - 394 3.18 - 312

53.3 - 85 37.21 ss. - 153 4 917 s. 2VíCíiníi.T

5 - 9 3 DOII/ÊÍ 9.9v. - 154 6-105 2.47 - 265 73.9 - 402 7 - 1 0 0 3.79 - 231 S-88 25, 28 - 358 Malaquias 70- II1 5.2.3 - 265 7.6-357 / / - 102,107 6 - 394 4 .5 -36

ESCRITOS EXTRACANONICOS

1 macabeus 24.1 ss. - 337 4 Macabeus 4.39 3 312 48.10 - 43 6.29 - 123

44 w . - 34 7 0 ss. - 3 6 14.41 - 34 57.7 - 312 SibUiims

5.256 ss. - 36 2 Macabeus Sabedoria de Salomão 15.13 ss. -38 2.13 ss. - 93 Enoque (etíope)

7.26 - 337 37 ss. - 185, 192 Judite 16.7- 312 46- 186 9.11 -312 7& 75 - 335 48s. - 186

48.2, 6-186 Baruque Salinos de Salomão 3 ,M. - 199 4.22 - 312 13.9- 357 70 - 187

77j. - 754 52-186 Eclesiásiico 77.27 ÍÍ - 154 52.4 - 187 1.1 ss. - 337 27 - 157 62 - 186 4.10 3 357 18.4 - 157, 389 62.7 - 199

Page 418: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

C -RlST l )!.<)(i| A tJO N<>V<> I I-S"l'AMIÍN'|'<l 435

69 1 186 13.32 1191, 858 ./('.V /íí .3 .' K>

70.1 - 199 37; 52 - 358 71 - 186 14.9 - 358 l'/i/il (/c .-Ir/iíC <•\Y<I

83 .«. - 192 I? .(.V. l'M . P'1!

90.31 - 37 Apocaiipse de Bariu/tie 105.2 3 358 13.1 ss. 7 37 Ptiflillirnli' Ji' l>tiiii,isi !•

29s. - 154 12.23 - M 7 Enoque (Eslav.) 40 1 154 14.9 - 117 30.11 ss. - 191, 195 72 ss. - 155 /9./0 - 117

20. 7 - 117 Ascenção de Moisés Testamentos dos Doze 9.1 ss. - 42 Patriarcas Textos de Qumrtm

fíub. 6.7 ss. - 117 7 QpHab li: 1 s. - 41 4 Esdras Sim. 7.2- 117 8 ss. - 41, 117 6.58 - 389 Levi 8.ll ss. - l17 Vil: 1 s.; 5 - 41 7.2Ó u , - 155 75-42 X: 9 - 4 1

2 5 - 1 9 1 76-42 7 Qso 2; 72 ss. -117 2S s. -358 18 - 117 1 QS 4: 23 -187

77 JJ. - 155 Naftúli 5 - 236 9.11-41, 44, 117, 155 75-155 ,185 ,315 Benj. 5 .8- SI 11111-33%

NOVO TESTAMENTO

Mate tis 77./ M - 4 7 76.13 -205 1.1 ss. - 170 ss., 385 5 - 47, 59 74-38 1.16 - 386 4s.. -210,212 7<5 -363,359,362 s., 380

27-316,319 5 - 7 0 76 ss. - 362,373 2.2 - 289 8 ss. - 44 17 - 3(>3 ss., 375,379,390 5.11 -47 11 -54 17 ss. -366

7 5 - 9 4 74-59 78 - 296 4.3 ss. - 362, 364 78 Í. - 55 17.10 ss. -45

8s. - 163 7 9 - 2 1 4 72 - 43, 59 6.9-378 25 s. - 376 18.18 ss. -211 7.71 -215 27-363,367,373 s., 390 20-277

21 - 266, 268 72.6 - 118 79.77- 126 2 8 - 4 1 5 7 7 - 9 3 28 - 297 2 9 - 4 1 5 78 ss. - 77, 97 27.9 - 175

8.76 Í. - 97 25 - 175, 415 701, - 58 20 - 203,213 28 - 71, 110 75 - 175 2 7 - 4 1 5 57 s. - 203 57-374

9 .8-415 39 s. - 89 46-52 27- 175 41 s. - 212 22.22-415 33 -415 13.54-415 4-/ - 292

10.17 ss. -287 14.33 - 362 s. 23.37-53 5 7 - 4 1 5 75.22 -75 24.27-206 35 ss. - 212 57-415 37 .I.I. - 206

Page 419: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

436 Oscar Cuibnann

25.1 ss., 14 ss. -208 8.27 ss. -22, 156, 162 s., BI ss. - 209 s. 212,367,373

26.25 - 158 2S-58 28 - 91 29 - 162,365

63 - 365 30 - 162 64- 157, 292 Si 9 90, 111 27.11 -31 ,289 32 - 102,341

37 - 289 33 - 128, 162 s. 42 - 289 3S - 205 s., 240 43 - 365 9.2 ss. - 37, 372 51 - 139, 425 7 - 354,363 54 - 363 77 .t.t. - 45

28.18 - 290, 373 7 3 - 4 3 , 5 9 19 - 297 57-90

70.78 - 126 jtZí/itvj.í 2 4 - 4 1 5 1.1 -327,365,384 5 2 - 4 1 5

77 - 93 .!., 361 33-90 )2 s - ^W 38 - W, í> 2 2 - 4 1 5 4 5 - 9 2 211 24 - 372 47 .i, - 175 27-4/5 11.3 - 269 s. 35 - 369 78-415

2.2 - 341 12.1 .t.t. -377 ,383 7 - 3 6 9 6-374 7 .t.t. -394 7 - 9 0 10- 111 75 - 128 12- 415 35 ss. -114, 119, 172 s., /S ,(.Í - 88 268 s., 367, 381 19 s- 312 36 - 292 27,(. -201 s. 13.22 - 43

3.// -363,330 32 - 374, 376 28 - 203 14.8 - 90 3/ .ç.v. - 175, 378 2 4 - 9 1 33 - 120 55 ss. - 93

4.14 • 341 55-118 4/ -415 67 - 359, 362 s.

5 .7-363 s,, 330 67 s. - !S6, 159 / J -4-15 62 - 177, 206, 240,292 20-415 75.2 - 289 41 - 280 2 .t.t. - 156, 161 4 2 - 4 1 5 9; 72 - 289

6.2-415 78.26 - 289 4 - 5 2 29 ss. - 362 14 .t.t. - 53 s.,58 32 - 289 75-57 34 - 281,372 57-415 39-363,384

7.57-415 76.19-292

7.2-341 7 7 - 4 6 32 - 359,373 35 - 373 47-316,409 76-46

2.4 - 386 77 - 316 s. 4 7 - 4 1 5 52 - 130

3.2 - 34, 44 75-48,50 22-94 23 - 385 23 .t.t. - 170, 386

4.3 - 362 5 .t.t. - 298 9 - 362 22, 32-415

5 .9 -415 7.76 - 52 <?,55 - 415 9.8 - 57

7S-365 43-415

70.18 - 71 77.2 - 274

74-415 72.70 - 204 s.

50 - 89, 95 73.3/ .«. - 88 77.22 .t.t. - 206 18.38 - 175 20.42 - 292 22.20 - 91

5 7 - 9 0 67 - 365 <57 ss. - 159 69- 241, 292

23.3 - 289 4 - 161 37 s. -289

24.5 - 137

1,1 -20,73,237,243,307, 342, 347, 401 s,, 404, 425 s.

Page 420: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVo TESTAMENTO 437

1 ss. -222, 327 ss., 341 6.14 599 13.13 3 269 J - 18 14 s. - 43 5 7 - 2 4 3 8- 50, 341 15 - 166 14.2 J".T. - 141 77-344 2 7 - 2 4 4 6 - 3 4 1 13 - 387 .Í2 - 60 12 - 303 14- 245,3293351,424 s., 59 ss- -208 13 2 282,303

389 53 - 244 16 - 142, 392 14 ss. - 245, 350 54 - 208 26 - 239, 374 75 - 50 69 - 377, 390 28 - 349 7 7 - 6 0 7.14 ss. 3 378 330 126 IS 3 389, 202 16- 393 75, Jó -282 2 0 - 5 0 77-395 16.12-376,390 27-34,50 IS - 126 24 JW. -282 25-51,341 2 7 - 3 8 9 28; 32 - 393 2 9 - 9 5 . 99 s., 318 59-296 77-141 29xs. -95 s. 47 ,i, -389 17.5 • 398 56-95,99 s. 8.1 ss. -426 9 -141 45-389 72 ss. - 378 77 ss, - 141 49-2.S9 í i ss .- ViA !4 - 3AQ 57-243,350 76-393 77 -141 ,340

2.7 ss. - 9 8 2S-393 24-141 79-118 57-340 7&7J-140 19 ss. - 98, 350 42 - 393 33 - 289 27-118 45-340 33 ss. - 289 2 2 - 3 4 0 46-126,142 Jó -101

.3.2-60 57 - 340 39 - 289 13 - 242,387 53 - 394 79.5 - 289 74 - 98, 243 56 - 394 8 - 340 76 - 98, 389 56 Í Í . - 393, 394 74 - 289 7S-67 ,389 9.4-391 79 ss. -289 28,30, 31 -50, 51 55-244 25-140

4.79-38 70.S-84 .JO -124 27-351 11 - 99 20.13 -303 23 - 279 72 - 84 28 - 303, 390 2 5 - 3 8 77v. - 83, 99 2í> -166 IS - 84 /tw.r dos Apóstolos 5 4 - 3 9 1 24-390 1.7-377 5S-241 5 0 - 3 4 9 , 3 9 3 /O -295 42-318 33 -395,394 2 .54-292

5 - 3 9 4 56-141,393 56-237,268,273 5 ,w. - 428 37 s. - 395 46 - 273 5.77-201,391 .55 3 395 .í. 13 -102

79, 20-393 11.41 -392 74 -102 24-340 4 7 - 1 1 9 22-36 2 7 - 2 0 8 , 2 4 3 72,13 -289 2 6 - 1 0 2 50-394 25-243 4.25; 30-102 30 ss. - 394 38 - 101 5.31 - 292, 317 57.w. -341 48 - 208 6 ss. - 417

Page 421: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

438 Oscar Cullmann

7.37 - 34, 60 23 - 298 // Coríntios 52 - 102 29 - 135, 232 1.2 - 400 55 - 292 32 - 382, 392 5 - 4 0 7 56 - 205, 208, 240 .JV - 292 20 - 282

8.4-341 9.5 - 177,408 22 - 298 4 ,(,i. - 341 70.9 - 284 5.78-231 26 ss. - 102 72 - 290, 406 4.4-231 34 199 76 - 105 5 - 3 0 2 36 ss. - 379 72.2 - 231 5.5 - 298

9.14; 21 -270 75.7 - 297 70 - 208 20 - 396 / .(.(. - 300 79 - 342

10.36 - 290 74 - 228 27 - 105, 126 42 - 208 14.10 2 207 11.57 - 407 44 -341 15.21 - 105 72-S - 406

Jj\2ó -151 13.13 -19 27.(. -33 7 Coríntios

72.20 ss. - 394 1.2 - 270,406 Gíí/cíM.Í

73.J -33 9 - 383 3.27 - 228 33 - 396 78 - 342 4.4 - 382, 387

16.6-341 2.8,(. - Jj7 4 j.i. - 360 77.7-288 4.5 - 208 6 - 274

29 - 348 8 - 30*. 6 js, - 383 57 - 2(Ja 5.7 - 100, 105

6.2 s. - 298 6.6-341

20.28 - 409 3 - 302 27.70-33 8.5.!. - 260 Efésios íJ.l-f - 1 0 2 6 - 1 8 , 222,307, 324,406 1.3 - 407

9.76 - 369 /<? - 299 /ff>/H<MK« 70.26 - 291 74 - 298 J,j - 170, 178 11.25 ss. - 277 20 - 292 7.5 s. - 273, 354,408 2 4 - 9 1 22 - 299

4 - 237, 307 25 - 132 s. 4.11 - 33 8-282 72.5 - 284, 286 75 - 299

/§ JM. - 328, 344 28 - 33 24 - 228 25 - 427 13.7 - 279 5.23 - 318

3.5 - 207 15.3 - 106, 110 25 - 107 5 - 1 0 3 Filipenses

4.25 - 105 72 ss. - 135 2.5 ss. - 219 5.70-382 75.20 - 135 2.6-231 s„ 235,419

72 ss. - 106,110,134,219, 27 - 126,226 i a.. - 106,208,213,232, 223, 224, 230, 24 - 295 233,237,250,283, 235, 249 25 - 290, 292 284,350,371,406

74-218,234 26 - 130,295 7 - 106, 232,246 79-235 28 - 324, 382, 426 8 - 130

7.25 - 282 35 ss. -55,179, 298 9 - 269, 306 8-287 45 - 220 9 Í. - 130 8.11 -298 45ss. - 222, 223 2.70 - 297

74 ss. -360,383 49 - 232 10 s. - 297 75 - 274 76.22 - 274 3.5 - 171

Page 422: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

CRISTOLOGIA DO NOVO l i s i AMI-,NTO *l 11*

20-312 ,318 Tito 70 - 141, 132, 14.' 21 - 232 1.3 - 315,409 13 - 292

2 .70-209 ,409 13 s. - 136 Colossenses 75-319 ,409 74 - 125, 132, 131, I i / 1.13 2 294, 383 5.4-315,409 57 - 137

14 s. -383 77.16 - 141 14 ss. - 298 Hebreus 12.2 - 131 75-223,231,406 1.1 s. - 68 ,397 5 - 1 3 0 15 s. - 406 7 ss. - 342 22 - 137 16- 18, 307,349 2-349 24 - 121, 133 IS - 135, 299 2 s. - 349, 398 13.8- 137, 139 20 - 425 5-292

2.2 s. - 408 5 M . - 395 / Pedro 9-406 8- 395, 398 1.19- 100, 127 10 - 299 S Í. - 395, 296, 297 .1.21 xv. - 103

3.1 - 292 70 - IS, 131, 139. 3<)7 22 - 126 9 s. - 228 10 ss. - 324, 397, 405 5. /5 • 306 70-231 2.5 ss. - 246 /.M - 126 77 -282 6-226 .'.' 126, 292, 293

4 .5-341 70 - 125, 132 / / - 125

•1. *> ,?()8

/ Tessalonicenses 17 s. - 131 2 Pttho 1.1O 3 319, 382 3.6 - 397 /./ 311, 'HW 5.72 - 282 72 - 137 .( .148

J3-207 4.3 ss. - 391 y / 312 4.15 ss. -319 74 - 40, 397 /íi - 40'J

7 7 - 2 1 8 15 - 126, 127, 128 77 -396 5.7s, - 125 2.20 - 312

2 Tesalonicenses 8- 130, 397 5.2, 75 -312 ,409 7.72-408 9 - 125, 134

2.6 ss. - 60 6.20 - 125, 135 7 /«TO

3,2 M. - 282 7 - 115, 121, 122 7.7 - 227 7.3 - 136, 398 1 ss. -351,424

7 Timóteo 5 - 137 2.7 - 142 7.7-315,409 24 - 136 23 - 380 2.2 - 301 25 - 136, 137, 142 3.5; 7- 141

3 -315 ,409 26 - 126 4.2 ss. - 422 5 - 1 2 1 27 - 123 9 - 389

5.76-293,409 28 - 125 74-318 ,395 4 .70-315 ,409 8.1- 292 75-380,395 6.15 - 290 6 - 1 2 1 5.20 - 404

9.72 - 132 Judas 2 Timóteo 74 - 126, 137 25-317 1,10-295,317,319 15 - 121,133 2.72 - 301, 302 24- 142, 137 Apocalipse

22 - 270 26- 132 1.5- 135, 296 4.7 - 208 28 - 123, 138, 210 6 - 3 0 2

S - 2 0 8 10.1 ss. - 124 75 - 140, 245

Page 423: Oscar Cullmann - Cristologia Do Novo Testamento

440 Oscar Culbnctnn

13 ss. - 246 18- 137. 296

2. IS - 396 3.14- 307,349

20 - 278 21 - 292

4.11 -402 5.10 2 297

12 - 47,296 li-, - 409 / / . j n . - 37 7.? - 332 12.3 n . - 246 20.1 ss- 302

5 - 2 9 6 4-179, 297

13.1S 2 262 4 s.i. - 297 14.14 - 245 14 - 295 77.74 - 289 22.9 - 33 79.5; 6 - 2 9 6 20 - 276

ESCRITOS EXTRA-CANONICOS

DíddCjut 8.1 - 109 Epístola de Policarpo

9.2 - 105 72.70 - 292 2.12 20S, 293

10.2 - 105 J ,t,t. - 18 6 -276 //jíít/fJ

77 ,çi. - 33 £ í 1.1 -318,410 Martírio de Policarpo 7.2-410 8.2 - 262, 288

/ Clemente 75.3 -410 79.2-318

16- 108 18,2 - 19, 95,381

36.5 - 292 79 3 -410 Pseudoclenienliiu is

59 í i . - 104 M<tgn. 1.1 - 318 Hom. ff, /6 i. - 65 s.

8.2 - 338 Il7, 20.2 - 35

// Clemente 73,2-410 /fcc. 7 -36

1.1 - 208 Tra.ll. 9.1 - 178, 293 (50-47 Filad. 9.2 2 318 // 22 - 35

Epístola de Bariiubé Esm. 1.1 - 19, 178,381 /// 67 - 66

5.2 - 109 7.7-318

7.6 j.t. - 109 ss. 3 . / - 4 1 0