O Infinito e o Finito (J. Herculano Pires)

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J. Herculano Pires O Infinito e o Finito Lições de Espiritismo (Crônicas) Editora Espírita Correio Fraterno do ABC

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  • J. Herculano Pires

    O Infinito e o Finito

    Lies de Espiritismo (Crnicas)

    Editora Esprita

    Correio Fraterno do ABC

  • J. Herculano Pires O Infinito e o Finito

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    O Infinito e o Finito J. Herculano Pires

    2 Edio - 3.000 exemplares - Julho de 1989

    Produo: W. Garcia

    Direitos autorais reservados desta edio

    Editora Esprita Correio Fraterno do ABC

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    ndice Herculano e a atualidade de Allan Kardec.................................... 5 1 Nascer de novo...................................................................... 15 2 Pesquisas sobre a reencarnao ............................................. 17 3 Ressurreio e reencarnao na Bblia e nos Evangelhos...... 19 4 Momo escorraado do Olimpo ajeitou-se entre os homens.... 21 5 A didaxis do Natal................................................................. 24 6 Interpelaes sobre a data real do nascimento de Jesus ......... 27 7 Significao do Ano Novo para a concepo esprita............ 30 8 Sucedem-se as civilizaes no processo da evoluo terrena 34 9 Uma nova Terra e um novo Cu............................................ 37 10 O infinito e o finito.............................................................. 39 11 O mundo pelo avesso .......................................................... 41 12 Formas de reao do mundo moderno ao impacto dos

    princpios espritas............................................................... 43 13 Novos caminhos que se abrem para a compreenso da vida 46 14 Lenta a libertao do esprito de atitudes mentais do

    passado ................................................................................ 49 15 Juventude inquieta............................................................... 52 16 O que o Espiritismo .......................................................... 54

    I A terceira Revelao .................................................. 54 II Alicerce de uma nova era.......................................... 56 III A Cincia Esprita ................................................... 57 IV A Filosofia Esprita ................................................. 58

    17 Escndalo para as religies e loucura para a humanidade.... 60 18 Do racional e do misterioso nos princpios doutrinrios...... 62 19 Sobrevivncia e imortalidade .............................................. 65 20 Sobrevivncia e comunicabilidade dos espritos atravs

    dos tempos........................................................................... 69 21 Da comprovao cientfica da fenomenologia esprita ........ 72

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    22 Da necessidade das sesses espritas e das condies para a sua realizao ................................................................... 75

    23 Irredutveis os fatos espritas a explicaes de ordem hipntica.............................................................................. 78

    24 O milagre da doutrinao .................................................... 82 25 O mistrio da mediunidade.................................................. 84 26 Exorcismo e doutrinao ..................................................... 87 27 Por que doutrinar espritos?................................................. 90 28 As bases medinicas da Religio e sua verificao na

    atualidade ............................................................................ 93 29 So os espritos uma das foras da natureza, em ao

    permanente .......................................................................... 96 30 Moiss aprovava a mediunidade e Paulo ensina a fazer

    sesses................................................................................. 99 31 Diferentes doutrinas foram erguidas sobre os alicerces da

    mediunidade ...................................................................... 102 32 Mensagens espritas no exterior confirmam as recebidas

    no Brasil ............................................................................ 105 33 Do corpo e do esprito na organizao religiosa ................ 108 34 Est promovendo o Espiritismo uma nova revoluo

    coprnica ......................................................................... 111 35 Das teorias obscuras da cincia s frmulas infantis de

    Kardec ............................................................................... 114 36 Cuidado dos dirigentes de Centros em face s confuses

    doutrinrias........................................................................ 117 37 Melhor rejeitar nove verdades do que aceitar uma mentira 120 38 Maneiras particulares de ver criam confuses doutrinrias 122 39 No basta compreender a doutrina: preciso sobretudo

    assimil-la ......................................................................... 126 40 Quadros nos Centros ......................................................... 129

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    Herculano e a atualidade de Allan Kardec

    Todo fazer humano, cincia, uma disciplina, s recebe seu conceito claro quando o homem domina esse campo preciso. Quem no-lo afirma Manoel Garcia Morente, em seu Lecciones Preliminares de Filosofia. D-nos ele uma idia do que seja a vivncia indispensvel para tanto, valendo-se de um exemplo de Bergson.

    Para se conhecer uma cidade, por exemplo, no basta estudar-se o mapa, o traado, examinar ngulos diversos atravs de foto-grafias, decorar nomes de bairros e ruas. Esse conhecimento autntico exigiria que nela se penetrasse como se entra numa selva, para explor-la. Dessarte, entre vinte minutos de passeio a p por uma rua de Paris e a mais vasta e minuciosa coleo de fotografias, haveria um abismo.

    Sob tal enfoque, nossa viso de J. Herculano Pires revela-o, portanto, na vivncia acima definida, sem a qual, certamente, pouco teria para nos transmitir.

    Durante a existncia toda ter percorrido minuciosamente os livros da Codificao para avaliar e comparar, como autodidata e, posteriormente, como mestre no preparo de suas aulas, as quais, configuradas em artigos, foram sendo trazidas a lume, durante anos.

    Algumas delas, assinadas com seu pseudnimo Irmo Saulo, extradas de sua coluna no Dirio de So Paulo, esto reunidas neste volume com o ttulo sugestivo de O Infinito e o Finito. Professor e jornalista por vocao e profisso, colocou toda sua riqueza didtica e cultural a servio da divulgao doutrinria.

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    Herculano Pires desempenha hoje um papel de importncia indiscutvel no panorama esprita brasileiro. E o verbo mantm-se ainda no presente, mesmo aps seu desencarne em 1979, uma vez que seus livros permanecem a postos, como sentinelas inarred-veis, realizando seu trabalho especfico.

    Acima de todas as atividades ligadas Doutrina Esprita, J. Herculano Pires esteve sempre ocupado (e preocupado) com a defesa de uma tese que nos parece haver-lhe instrudo basicamen-te as produes jornalsticas, literrias e filosficas desde o incio: a da completa atualidade de Allan Kardec. Este ter-lhe-ia sido, a nosso ver, o tema subjacente de todas as obras, a bandeira de sua caminhada missionria.

    E essa postura tem sua razo de ser. Houve sempre uma atitude de resguardo da parte do mundo

    cientfico-cultural materialista que se recusava a admitir a Doutri-na Esprita como hspede de seu contexto geral, negando-lhe o direito de nele se posicionar. Correu constantemente essa negativa por conta e responsabilidade dos que no lhe conseguiram enten-der a estrutura monstica. Nesse aspecto, todavia, encontramos a defesa lcida e pronta de Herculano Pires, que explicou essa concepo monista em termos de estrutura orgnica da realidade em que esprito e matria preenchem o cosmo, mantendo-se o esprito como o estruturador da matria.

    E essas noes reforam-se quando, em Reviso do Cristia-nismo (e outros), subvencionado por informaes sobre as con-quistas do mundo cientfico oficial, lembra ainda que a descoberta de energias fora do campo atmico conhecido (antimatria), capa-zes de conjugar-se com as da matria, na constituio do Univer-so, restabelecera a unidade conceitual e efetiva de um mundo s, dividido em campos diferenciados. E acrescentaria, depois, para dar uma noo ainda mais coerente tese defendida: o perisprito

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    ou corpo espiritual poderia ser a forma da humanidade de um mundo de antimatria.

    Num contexto cultural como o nosso, em que mesmo os que apreciam a leitura como fonte de informao, conhecimento e at fruio para o esprito, que mesmo estes nem sempre tero dis-pensado a ateno necessria pesquisa do texto kardeciano, de se avaliar a importncia de uma ao constante como a de Hercu-lano Pires no sentido de proclamar a necessidade e a urgncia do reinteresse pelas obras bsicas da Codificao. Talvez por isso mesmo tenha ele colocado tanto empenho na elaborao da pgina com a qual prefacia a edio de Lake, em 1957, de O Livro dos Espritos comemorativa do centenrio de seu lanamento.

    Muito bem feita essa anlise estrutural e de contedo da fonte da Codificao. Nela mostra como o Codificador esmerou-se ao estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional, mas livre dos prejuzos do esprito de sistema, uma vez que este, se existen-te, seria a prpria negao dos objetivos da doutrina. Para Hercu-lano ficava explcito que o Espiritismo e os seus problemas no plano da cultura espiritual, com O Livro dos Espritos saam do terreno da abstrao para se tornarem acessveis investigao racional e at mesmo pesquisa experimental.

    Contra as falsas interpretaes sobre um possvel antropo-morfismo, derivadas da linguagem simples instrumento de inteligibilidade utilizada por Kardec para tratar de Deus, por vrias vezes Herculano Pires deixava demonstrado que o Codifi-cador no humanizara a Deus, desde que resguardara Sua nature-za suprema como inteligncia infinita e causa primria. Nessa mesma pgina, Introduo a O Livro dos Espritos, j citada, nosso autor defende o Espiritismo contra a pecha de pantesta, remetendo o leitor anlise adequada do captulo I, item 14, daquele volume. Consolidava esta defesa, posteriormente, em nota de rodap, pgina 268.

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    De fato, alguns telogos catlicos e protestantes pretendem acusar de pantesta a Doutrina Esprita. Este princpio a lei natural a lei de Deus, eterna e imutvel como Ele mesmo a causa de tais acusaes.

    Aps salientar as divergncias expressivas entre as concep-es de Deus mantidas por Espinosa e pela Doutrina Esprita, Herculano admite algumas concordncias, dentre as quais a mais flagrante a que nega o antropomorfismo , este sim, defendido por catlicos e protestantes.

    Socorreu-se, nesse ensejo, do exemplo oferecido pela posio espinosiana em que o grande filsofo no confunde a natureza material com Deus, mas apenas a natureza inteligente para explicar a mesma viso do assunto pelo Espiritismo que tambm faz essa confuso pretendida por seus detratores, mas estabelece que as leis de Deus so uma coisa e Deus mesmo outra. Per-cebeu ainda outros aspectos da mesma questo, completando: No h possibilidade de confuso entre Espiritismo e Pantesmo, a menos que se admita como pantesta a doutrina da imanncia de Deus, por fora mesmo de sua transcendncia; e, nesse caso, catlicos e protestantes tambm seriam pantestas.

    No enfoque da metodologia utilizada por Kardec at atingir a sntese doutrinria, Herculano acendeu as luzes de velho lidador no campo da Filosofia curso que teria efetuado para melhor servir doutrinariamente a fim de orientar-nos.

    Sim. Hegel estabelecera as bases trplices do processo dialti-co: tese, anttese, sntese.

    Em lugar de dar nfase contradio em si, luta dos opos-tos explica-nos o mestre paulista em sua pgina introdutria anteriormente citada Kardec teria efetuado a fuso da tese e da anttese para uma nova criao. E nesse sentido que se desen-volve o dilogo em O Livro dos Espritos.

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    De fato, o mtodo dialtico processo natural do desenvol-vimento do pensamento percorrido por Kardec sob esse prisma, levou-o sntese doutrinria contida nessa obra bsica. Segundo Herculano, de pergunta em pergunta, ia Kardec obtendo seu texto definitivo, trazido pela maiutica, seguindo as linhas dialticas da busca socrtica da verdade.

    Na anlise de cada um dos passos do Codificador, o arguto crtico de Vampirismo foi refazendo, como num roteiro de proces-sos lgicos, a escalada kardeciana. Da apontar com preciso cada momento em que o mestre de Lyon abordava o Espiritismo como uma Cincia de observao tal qual ocorre na primeira etapa do texto de O Cu e o Inferno, por exemplo ou como uma Cincia de pesquisa, quando investiga objetivamente a situao dos esp-ritos aps a morte.

    No decorrer de sua obra toda, o professor de Curso Dinmico de Espiritismo revela sua preocupao no sentido de manter inc-lume e inatingvel a Doutrina Esprita, perante acusaes de esp-ritas que ainda desconhecem o Espiritismo em profundidade. Querem esses crticos apressados concluir por uma pretensa desa-tualidade de Kardec.

    Na defesa da doutrina, utiliza pginas e pginas para demons-trar a saciedade com que o desenvolvimento da Cincia oficial corre na direo desses mesmos postulados que vo sendo com-provados apesar da posio tradicionalmente reacionria de seto-res determinados.

    Preocupara-se j ao redigir sua memorvel pgina introdut-ria, em demonstrar que mediante a posio tambm cientfica do Espiritismo, o esprito e os seus problemas saam do terreno da abstrao para se tornarem acessveis pesquisa racional e experimentao.

    Ao mesmo tempo em que realava essa caracterstica, todavi-a, lembrava, com toda clareza que lhe era peculiar, que no se

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    confundisse, porm, o mtodo doutrinrio com os mtodos de investigao cientfica dos fenmenos espritas, os quais, no passado, permaneceram com a Metapsquica e atualmente rece-bem novo enfoque nas mos da Parapsicologia.

    Essa distino fazia-se indispensvel a todos os que se propu-sessem a estudar a doutrina.

    No trato medinico no domnio de uma metodologia desen-volvida por Kardec e registrada didaticamente em O Livro dos Mdiuns permanecia firmada a convico na existncia do esprito e na possibilidade da comunicao.

    Est claro, portanto e ele fez questo de frisar bem esta cir-cunstncia , que tal posio no estaria e nem poderia estar, por enquanto, nos domnios da Cincia acadmica, para a qual tudo permanecia ainda a descoberto e posta em dvida at mesmo a existncia do esprito como individualidade independente de um corpo fsico esperando comprovao por processos e mtodos que os investigadores escolheriam.

    Alis, essa diferenciao na metodologia, se explica os pon-tos de partida e os objetivos diversos entre os dois campos de investigao, tambm caracteriza o avano das pesquisas no cam-po da paranormalidade pela Parapsicologia, que, para melhor adaptar-se s exigncias do critrio cientfico, adotou o mtodo quantitativo, com base na estatstica.

    Ainda nesse terreno, como bom professor, J. Herculano Pires deixou contribuio inestimvel. A sua obra Parapsicologia Hoje e Amanh, da Edicel, j se encontra na quarta edio, atualizada.

    Uma campanha de real proveito iniciada pelo autor de O Rei-no foi a de modificar ou pelo menos trabalhar nesse sentido a mentalidade reinante entre grande nmero de espritas, de que a Parapsicologia comprometeria o equilbrio do arcabouo doutrin-rio.

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    De fato existe, ainda hoje, uma atitude reacionria de alguns espritas rechaando a validade e a oportunidade dos estudos parapsicolgicos pelas vrias correntes da Cincia acadmica, pretendendo com essa atitude negativa defender a Doutrina Esprita dessas concluses na verdade, muitas delas, as mais dspares possveis subordinadas aos dois campos ideolgicos em que se reparte o pensamento cultural da atualidade.

    No entanto, Herculano acalma essa preocupao generalizada quando nos ensina a separar a Parapsicologia propriamente dita das interpretaes parapsicolgicas.

    Importante se torna argirmos o seguinte: no estariam tam-bm os espritas adversos s perquiries parapsicolgicas, dei-xando-se pressionar por preconceitos que eles prprios fomen-tam? Se tal fato estiver ocorrendo, no nos arriscamos a cair, por nossa vez, no mesmo fosso de radicalidade que durante tantos anos apontamos (porque a detectamos) no campo da Cincia oficial com referncia fenomenologia produzida pelo esprito imortal que ela sempre negou?

    Se no entendermos bem o que se passa e no fizermos dis-tino conforme nos pede Herculano entre a Parapsicologia propriamente dita e as interpretaes parapsicolgicas, com essa atitude refratria, sujeitar-nos-emos a repassar para nosso prprio campo de atuao esse lastimvel posicionamento anticientfico, preconceituoso.

    Por isso representou tanto a publicao da obra de Herculano sobre a nova disciplina cientfica vista sob a tica esprita. Ela significa a libertao do pesadelo que ameaa enquistar certos redutos doutrinrios, colocando-os margem da cultura esprita brasileira, com todas as conseqncias que tal posicionamento possa acarretar.

    A propsito, no teria sido gratuita esta afirmao constante em Cincia Esprita e suas Implicaes Teraputicas: A Para-

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    psicologia atual simplesmente o elo de ligao da Cincia Aca-dmica com a Cincia Esprita. Sem esse elo, os dois campos cientficos permaneceriam separados, impedindo a viso global da realidade, necessria compreenso verdadeira do mundo, do homem e da vida.

    Alm do mais, a Parapsicologia a denominao recente do Espiritismo afirma-nos Herculano Pires nessa mesma obra, e seu batismo ocorreu na Universidade de Duke, para ser admitido entusiasticamente, por sua vez, na URSS e no Vaticano. De rou-pa nova, linguagem grega e seguindo as pegadas de Kardec, para atingir os seus mesmos objetivos, nada ofereceu de novo ao mun-do atual alm de sua roupagem tecnolgica.

    Outrossim, com rara acuidade o autor de O Centro Esprita foi capaz de relacionar inmeras conquistas do mundo cientfico acadmico com os pontos que caracterizam e oferecem validade s teses defendidas pelo Codificador. E, com isso, restabelece a convico aos que a haviam perdido na extrema atualidade de Kardec.

    Pendncias, dvidas, acusaes a tudo dispe-se Herculano a responder, restituindo confiana anterior os que se deixavam comprometer pela insegurana, revidando aos ataques de maneira elegante, dentro de sua intelectualidade e indiscutvel vivncia.

    Flagrante, por exemplo, a sua resposta s vozes discordantes sobre a criao dos espritos. Simples e ignorantes? Como?... Se tudo quanto Deus criou deveria ser perfeito?...

    Eis o argumento recolhido de nota de rodap em O Cu e o inferno: Deus criou-nos em potncia, como sementes que tm em si mesmas todas as potencialidades futuras. Assim, criou-nos perfeitos. Quanto a ns, caber-nos-ia desenvolver as nossas potencialidades a fim de as atingirmos em ato, como seres espiri-tuais. A responsabilidade, indispensvel nossa perfeio, vamos obtendo aos poucos, graas ao treino do livre-arbtrio.

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    Seu esforo esteve dirigido tambm para a erradicao do fa-natismo. Herdeiros todos de uma cultura religiosa que no prima-va pelo uso exclusivo da razo assevera-nos ele nem o meio esprita conseguiria mesmo fugir totalmente dessa influncia sob as mos de multides ignorantes e obtusas, nossos redutos espri-tas transformados muitos deles em novos muros de lamentaes.

    Em O Mistrio do Ser ante a Dor e a Morte deixa um repto a ns, espritas, diante do mundo atual, nos albores da Era Csmica.

    Os espritas, primeiros chamados para a compreenso da Ci-ncia Integral e que na sua maioria refugiaram-se num beatismo de sacristia esto intimados a alijar dos ombros as cargas do misticismo igrejeiro para poderem assumir a herana do sculo.

    Persistira em transmitir o gosto pela anlise objetiva, embora otimista, preocupado com a postura daqueles que fora de se imaginarem capazes de uma redeno pronta, global e a toque de caixa, permanecem curvados, modulando a voz, tentando atitudes artificiais com olhares lnguidos e cheios de lgrimas. Marcou poca esta sua frase: A luta da vida no se destina a angelizar as criaturas, mas a virilizar o esprito, predispondo-o para vos de guia e no para o esvoaar das borboletas.

    No mesmo volume demonstrou sua preocupao com a fragi-lidade de inmeros mdiuns, entre os quais os de curas, arriscados perda dessa oportunidade atual, entre tantos engodos e suposi-es fantasiosas que lhes podem cavar abismos atravs da vaidade e da ambio (Cincia Esprita e suas Implicaes Teraputicas).

    E quanto aos problemas da moral? Ainda nessa obra, nosso autor resumia: a moral flui da conscincia. Lembrava-nos, ainda, na pgina seguinte, que Kardec tomara como medida das situaes do esprito o seu maior ou menor grau de apego ao mundo material, como se pode ver na Escala Esprita.

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    Por isso mesmo, ensinava-nos ele em Cincia Esprita e suas Implicaes Teraputicas que o Espiritismo visa libertar o esprito humano do visgo da matria, para que ele possa alar o vo da transcendncia. E reala o papel terico da tica, regendo toda a normativa prtica da moral.

    Alm do mais, os costumes dos povos modificam-se atravs da evoluo e avanam na direo dos princpios autnticos que so de natureza eterna, de tal sorte que se nos torna fcil reconhe-cermos o verdadeiro conceito esprita de moral.

    Aquele que deseja reforar seus conhecimentos kardecianos aps constante estudo das fontes, encontra posteriormente, em Herculano, o destrinar de cada assunto no enfoque do mundo de nossos dias.

    Livre, de esprito aberto e formao filosfica condio in-dispensvel para a tomada de 360 graus no exame de cada pro-blema luz do Espiritismo J. Herculano Pires permanece pre-sente em nossa vida doutrinria atravs de seus livros chave decisiva, cada um deles, para a compreenso, em profundidade, dos textos de Allan Kardec. Melhor dizendo, para a conscincia plena de sua completa atualidade.

    Helena M. C. Carvalho

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    1 Nascer de novo

    Os mistrios da natureza vo sendo desvendados pela Cin-cia. Cada sculo marca um avano do conhecimento sobre a igno-rncia e a superstio. O nosso sculo tem como misso, segundo dizia Lon Denis, esclarecer o mistrio da sobrevivncia espiritu-al. Todas as cincias avanam atualmente nesse sentido. A Fsica descobre a antimatria, a Psicologia investiga os fenmenos para-normais ou medinicos, a Biologia mergulha nos segredos das estruturas submicroscpicas, a Astronomia reconhece a pluralida-de dos mundos habitados, e assim por diante.

    O ensino de Jesus a Nicodemos: preciso nascer de novo, que tantas controvrsias tem suscitado no campo religioso, torna-se agora objeto de investigaes cientficas. S podem abalanar-se, atualmente, a discutir a reencarnao em termos dogmticos os que ignoram as pesquisas a respeito ou os que desejam sustentar posies sectrias. As provas da reencarnao se acumulam dia a dia. E a lgica do princpio reencarnacionista j no pode mais ser confundida pelos sofismas. A alma humana imortal e evolui atravs das encarnaes ou vidas sucessivas, pois a continuidade e a evoluo de todas as coisas lei universal.

    Perguntam-nos alguns leitores sobre o caso do menino Teren-ce, renascido na cidade de Bfalo, no Estado de Nova York, segundo reportagens publicadas na imprensa mundial. o mesmo caso de Shati Devi, na ndia, to comentado h anos passados. o mesmo caso de tantas crianas citadas na bibliografia esprita e metapsquica, no correr de mais de um sculo. o mesmo caso das vinte pesquisas publicadas recentemente pelo professor Ian

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    Stevenson1 nos Estados Unidos. O mesmo dos quinhentos fatos registrados pelo professor Banerjee, na ndia, em seu arquivo da Universidade de Rajastan.

    Nascer de novo no apenas regenerar-se moralmente. A lei evanglica enunciada por Jesus, e que Nicodemos no compreen-deu, uma lei natural. O apstolo Paulo ensina (I Corntios) que temos corpos materiais e corpos espirituais e que todos ressuscita-remos. H duas formas de ressurreio: a do corpo espiritual e a do corpo material. Esta ltima a reencarnao, renascer da gua e do esprito, segundo o ensino evanglico.

    1 Existe j a traduo desse livro para o portugus, pela EDICEL, So

    Paulo. (Nota da editora.)

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    2 Pesquisas sobre a reencarnao

    As pesquisas cientficas sobre a reencarnao tm mais de um sculo. Durante alguns anos foram postas de lado, relegadas como absurdas, pois contrariavam o pensamento cientfico em desen-volvimento, todo ele voltado apenas para os problemas de matria e energia. Mas agora se reiniciam em melhores condies, com mais recursos conceptuais e tcnicos, em ambiente mais arejado e, portanto, mais favorvel. J se tornou intil e at mesmo ridculo querer colocar o problema em termos de simples discusses teri-cas. A reencarnao hoje uma questo de pesquisa cientfica e no de discusses e palpites.

    Enquanto nos Estados Unidos o livro do professor Ian Ste-venson sobre casos de reencarnao provoca o mais vivo interes-se, na ndia o professor Hamendras Banerjee, da Universidade de Rajastan (Jaipur) relaciona seiscentos casos e elabora um plano de pesquisa mundial a respeito. A revista mensal da Duke University (EUA), hoje rgo oficial da Fundao para a Pesquisa da Nature-za do Homem, dirigida pelo professor Joseph Banks Rhine e sua equipe, Journal of Parapshychology, divulga e comenta em seus ltimos nmeros a publicao de estudos em folhetos, revistas e livros sobre o binmio sobrevivncia e reencarnao.

    O professor Hamendras Banerjee, que conta ainda apenas 38 anos de idade2, conseguiu despertar o interesse de vrios cientistas russos para o problema. Graas a isso (um milagre moderno) a Universidade de Rajastan organiza uma equipe de pesquisadores

    2 Esta era a sua idade na ocasio em que Herculano Pires escreveu esta

    crnica (Nota da editora.)

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    indianos e russos que dever percorrer vrios pases, inclusive o Brasil. As notcias a respeito provocaram o interesse do Instituto Paulista de Parapsicologia, que no momento procura entender-se com a referida Universidade, a fim de facilitar, na medida do possvel, os trabalhos da sua equipe em nosso pas.

    Os incrdulos ainda perguntam (como se acaso se tratasse de uma questo de crena!) de que maneira se pode provar cientifi-camente a reencarnao se ainda no se provou a sobrevivncia. Esquecem-se de que a prova da reencarnao implica naturalmen-te a da sobrevivncia. Sob o aspecto psicolgico mais fcil a pesquisa da reencarnao, que se faz no prprio ser vivo e no atravs de fenmenos paranormais (memria de vidas passadas e pesquisa hipntica de regresso da memria) do que a da sobrevi-vncia, que exige o exame de todo o complexo da fenomenologia medinica. No Espiritismo a sobrevivncia e a reencarnao constituem princpios apoiados h mais de um sculo em pesquisas cientficas que tiveram frente Allan Kardec, Albert De Rochas, Friedrick Zllner, Alexandre Aksakof, Gustave Geley e muitos outros.

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    3 Ressurreio e reencarnao na Bblia e nos Evangelhos

    Ningum pode aceitar atualmente a velha teoria da reencarna-o pitagrica, ou metempsicose. O Espiritismo jamais a adotou. Da mesma maneira, ningum pode aceitar a velha tese teolgica da ressurreio em carne e osso, no Juzo Final. Somente a f cega, alheia aos argumentos da razo e s conquistas cientficas, pode ainda admitir essas teorias absurdas. No obstante, o Espiri-tismo sustenta a existncia das duas coisas: da ressurreio e da reencarnao, ambas explicadas luz da razo.

    Os judeus antigos acreditavam em ambas, mas no tinham i-dias precisas a respeito. Por isso, encontramos na Bblia (ou Velho Testamento) vrias passagens em que ressurreio e reen-carnao se confundem. J nos Evangelhos (Novo Testamento) as coisas se esclarecem. Cristo ressuscitado, por exemplo, no quer dizer reencarnado. O apstolo Paulo explica, de maneira bem clara, que a ressurreio o nascimento espiritual, depois da morte material. Porque, escreve ele em I Corntios, 15:14: Se-meia-se o corpo animal, ressuscitar o corpo espiritual; pois h corpo animal e corpo espiritual.

    Quando Jesus ensina a Nicodemos que necessrio nascer de novo, acrescenta: nascer da gua e do esprito. Ora, s uma pessoa inculta ignora que a gua, na antiguidade, simbolizava a matria, o elemento gerador dos corpos materiais. A confuso dos antigos judeus bem clara numa passagem de Isaas, em que o profeta declara: Os teus mortos vivero; os meus a quem tiraram a vida, ressuscitaro. (Isaas, 26:19). Kardec compara, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, trs verses diferentes do Livro de J: a

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    catlica, a protestante e a ortodoxa-grega, mostrando que em todas elas J se refere reencarnao (J, 14: 10-14).

    Em geral, as pessoas que contestam a existncia da reencar-nao na Bblia e nos Evangelhos apegam-se unicamente a princ-pios dogmticos, a pontos de f. O Espiritismo no admite a f cega, a crena imposta pela autoridade exegtica. Analisando as Escrituras Sagradas luz da razo essa luz que Deus nos deu para buscarmos a Verdade , o Espiritismo nos mostra que a ressurreio e a reencarnao so dois princpios antigos, que esto presentes na Bblia e nos Evangelhos. Somente aquele que no quer v-los pode neg-los, tapando o sol com a peneira.

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    4 Momo escorraado do Olimpo

    ajeitou-se entre os homens

    Curiosa histria de um deus linguarudo No participou da guerra dos deuses Mas no to feio quanto o pintam

    Momo um deus pago que conseguiu imortalizar-se no culto popular, graas leviandade. Os outros deuses, que eram deuses srios, foram todos destronados pelo Cristianismo. verdade que, apesar disso, muitos deles conseguiram sobreviver com outras roupagens. O politesmo greco-romano no se deixou derrotar completamente pela concepo espiritual do Cristo. Exatamente como se d nas guerras humanas, o Olimpo no se entregou de graa ao Calvrio. Foi necessrio um armistcio e um Tratado de paz, e nesse tratado entraram as condies que prati-camente transferiram o politesmo para o meio cristo, inclusive com suas formas rituais, seus princpios mgicos e sua idolatria, to malsinada pelos judeus e pelas primeiras geraes crists.

    Houve um deus que no participou de nada disso. Nem das batalhas entre o Olimpo e o Calvrio, nem dos entendimentos para o tratado de paz. Esse deus era Momo, filho da Noite e do Sono. Sua natureza onrica jamais lhe permitira participar inteiramente da realidade, nem mesmo da realidade olmpica. Era, pois, um deus marginal. J o haviam expulsado do Olimpo por causa de sua lngua terrvel, de seu intolervel costume de zombar de tudo e de todos. Um deus-moleque, insuportvel, mormente num mundo de deuses, onde se tratam das coisas mais srias possveis, que so as coisas divinas. Dizem que chegou a morder a lngua de raiva, por

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    no ter encontrado nada, mas absolutamente nada, para criticar ou zombar, em Vnus.

    Esse deus irreverente, que no queria poupar nem mesmo a beleza de Vnus, estava no mundo, divertindo-se entre os homens, quando estourou a guerra entre o paganismo e o cristianismo. Percebeu logo que o Olimpo viria abaixo, mas no se importou com isso. Tratou de ir preparando a sua morada definitiva aqui mesmo, na plancie humana, e conseguiu ajeitar-se bem. Finda a guerra, os cristos vitoriosos entenderam que Momo devia entrar nas condies de tratado de paz. A Igreja chegou a conceder-lhe ateno, situando suas festas antes da quaresma e tentando adapt-las ao meio cristo. Mas o deus-moleque no aceitou a oferta. Nada tinha a ver com os deuses derrotados do Olimpo, que j o haviam tocado de casa, e queria viver por conta prpria.

    Da por diante, comearam a persegui-lo. Mas ele no se deu por vencido. Sabia que os homens o adoravam. Cristos, pagos, ou l o que fossem, no podiam passar sem ele. Na Idade Mdia, sob a mais asfixiante dominao da Igreja, momo consegue resta-belecer o seu reino folio, tornando-se clebres os carnavais de Veneza, Nice, Turim, Roma. Todo o ardor das antigas festas romanas, as saturnais, as lupercais e as bacanais, agora que seus patronos olmpicos estavam derrotados, Momo incorporava ao seu reinado.

    O carnaval, portando, no mais do que uma festa pag que o cristianismo no conseguiu absorver. Enquanto outras festas, inclusive cerimnias religiosas, foram facilmente transferidas para a nova religio, a de Momo resistiu a tudo. Nunca lhe faltaram adeptos, pois sabemos que, no imenso processo da evoluo hu-mana, o fermento do passado resiste com espantosa intensidade. Alm disso, justo que Momo conserve o seu poder. Se outros deuses olmpicos, atravs do disfarce, conseguiram no somente sobreviver no Cristianismo, mas at mesmo influir neste, pagani-

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    zando-o em tantos sentidos, porque razo o pobre Momo, um deus marginal, deveria ser sacrificado?

    O Espiritismo no encara o carnaval como um perodo satni-co, um reinado demonaco, mas apenas como um resduo pago que se mostrou irredutvel, no mundo semi-pago em que vive-mos. claro que no trduo carnavalesco, havendo maior liberao dos instintos inferiores, h tambm uma participao mais intensa e ativa dos espritos apegados a esses instintos. Mas quem acom-panha a evoluo dos costumes, sabe que o carnaval tambm est se modificando. As festas de hoje j no so to grosseiras e impuras como as de antigamente. O sentimento de beleza e de graa vai superando o desregramento moral, os descontroles e os excessos sensuais. E na proporo em que a evoluo humana se acentuar, nos caminhos da renovao espiritual do homem, o deus-moleque do Olimpo tambm se modificar, ou acabar fugindo para outro planeta. No fundo, Momo no to feio quan-to o pintam. Somos ns mesmos que o fazemos perigoso ou no, segundo o que trazemos em nosso ntimo.

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    5 A didaxis do Natal

    Os grandes mestres j trazem a vocao de ensinar ao nascer. E por isso costumam ensinar desde cedo. Jesus, ainda menino, quando os outros esto aprendendo, ensinava aos doutores do Templo em Jerusalm. Fatos semelhantes ocorreram com muitas criaturas geniais em todo o mundo. Mas no h registro positivo de algum que fizesse de toda a sua vida, desde o ato de nascer at a morte, uma didaxis contnua, uma lio incessante. Este um dos fatos que destacam o Mestre Supremo entre todos os mestres, que caracterizam o Gnio dos gnios.

    Gotama Buda era prncipe e nasceu num palcio. Viveu nos esplendores da corte at descobrir as dores do mundo. Mas Jesus escolheu para bero a manjedoura. Nasceu na pobreza e na humil-dade. E assim viveu, para depois morrer na ignomnia. Aquele que devia salvar o mundo e redimir os homens fez-se o menor e o mais desprezado de todos. Seu nascimento foi a primeira lio que ele dava aos orgulhosos e poderosos da Terra. Depois ensina-ria que no se necessita de ttulos, de posies, de riqueza e de poder temporal para remover o mundo da rbita da ignorncia. E por fim nos deu duas espantosas lies finais: a morte na cruz e o tmulo vazio, mostrando-nos que a injustia eleva o justo e que a morte desaparece luz da ressurreio.

    Mas o didaxis do Natal tem a sua simbologia. Foi a sua pri-meira parbola, no falada, mas vivida. O fato de Maria dar luz num estbulo no era estranho na Judia do tempo. Os estbulos eram dependncias da casa que podiam servir tambm s criaturas humanas, particularmente no inverno, quando o calor dos animais domsticos ajudava a aquecer o ambiente. Os estbulos de inver-

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    no eram geralmente montados numa gruta, para que os animais ficassem mais defendidos nas noites glidas. Os rigores do inver-no obrigavam os homens a se fraternizarem com seus irmos e servidores mais humildes, os animais domsticos.

    Nascendo assim num estbulo, Jesus no incidia em nenhuma excentricidade, mas dentro dos prprios costumes do povo, como faria em toda a sua vida, transmitiria aos homens a mais bela parbola. A criana divina entre as palhas da manjedoura era como a mnada celeste lanada no seio da matria. Os animais que a cercavam ajudam Maria a dar-lhe o calor do sangue e da carne. A centelha celeste era assim envolvida na ganga da encar-nao terrestre, com os instintos animais da carne a prend-la ao cho do mundo, mas com a ternura espiritual de Maria a fortalec-la para a vitria do esprito. A visita dos Magos, relatada por Mateus, mostra-nos a sabedoria terrena curvando-se reverente ante o saber celeste e prestando-lhe as suas homenagens. A fria de Herodes o Grande e de Jerusalm com ele revela-nos a hostili-dade ciumenta dos grandes da Terra contra os verdadeiros emiss-rios do Alto. A convocao dos principais sacerdotes e dos escri-bas do povo pelo rei alarmado o incitamento dos poderes huma-nos contra os poderes divinos.

    Temos assim, na didaxis do Natal, a primeira prova da legiti-midade da misso de Jesus. Quando o Buda nasceu os jardins do palcio rebentaram em flores e perfumes. Mas quando Jesus nasceu os anjos cantaram na fimbria do horizonte e os pastores se ajoelharam nos campos nevados, trmulos de emoo, sem senti-rem o frio do inverno. No queremos desmerecer a grandeza espiritual do Buda e de outros grandes missionrios espirituais, mas a didaxis do natal nos lembra que o Messias judeu era real-mente o Mestre dos mestres, o professor por excelncia.

    O Espiritismo encara os Evangelhos, na sua realidade histri-ca, como textos inspirados mas de redao humana, sujeitos s

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    influncias culturais da poca e do meio em que foram redigidos e tambm s condies pessoais de cada evangelista. Mas reconhe-ce a legitimidade dos seus ensinos espirituais e morais e tem o mais profundo respeito pelo sentido alegrico de episdios como o do Natal. Por isso o Natal esprita no se reveste de formalida-des exteriores, mas no deixa de considerar o sentido espiritual do grande evento cristo.

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    6 Interpelaes sobre a data real

    do nascimento de Jesus

    Quando uma efemride mitolgica se transfere para o plano histrico Os espritas e o Natal

    As celebraes do Natal despertam sempre a curiosidade de alguns leitores, a propsito da posio dos espritas em face do problema do nascimento de Jesus. Qual a maneira pergunta um missivista pela qual os espritas explicam a aceitao da data de 25 de dezembro, como sendo a do nascimento histrico do Cristo, se conhecida a impossibilidade de qualquer determinao dessa data? A maneira de explicar isso fcil, pois decorre da prpria situao histrica da efemride em causa. Quer dizer: a tradio espiritualista a explicao natural dessa aceitao dos espritas. Porque a data de 25 de dezembro corresponde s mais remotas celebraes do advento do Messias. Trata-se de uma efemride pag, de origem mitolgica, ligada ao mito-solar, e que foi adap-tada ao Cristianismo, da mesma maneira porque tantas outras datas, festas e celebraes pags tambm o foram.

    Um leitor que conhece o assunto faz-nos, ento, esta pergun-ta: Como e por que o Espiritismo aceita essa incorporao do Paganismo ao Cristianismo? Se o leitor conhecesse melhor o Espiritismo veria que no h, do ponto de vista doutrinrio, ne-nhum impedimento a respeito. As religies mitolgicas pertencem fase de preparao do advento do Cristianismo. As revelaes que antecederam a mosaica e a crist eram to legtimas como estas ltimas. No h motivo, pois, para qualquer repugnncia

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    nesse sentido. Por outro lado, o Espiritismo no pretende reformar a histria crist, mas apenas esclarec-la. A tradio do Natal tem quase dois milnios. Substitu-la por uma novidade imprecisa seria absurdo. Alm disso, a data de 25 de dezembro traz com ela uma impregnao milenar de adorao, que de grande importn-cia para os que conhecem o problema das vibraes espirituais. Tornou-se, por isso mesmo, a mais apropriada celebrao do Natal de Jesus.

    Da mesma maneira porque o mito cristo ligou-se revelao de Jesus, de forma indissolvel, a partir do momento em que Jesus passou a ser considerado o Cristo transportou-se do plano das esperanas judaicas do Messias para o plano universal do mito grego , a data de 25 de dezembro deixou de ser apenas um marco mitolgico na histria das religies para se transformar num marco histrico do processo de formao da religio crist. Quan-do, pois, os espritas celebram essa data, como a do nascimento de Jesus, com pleno conhecimento da sua natureza convencional (no plano histrico), sabem tambm que ela possuiu um aspecto de legitimidade histrica (no plano espiritual), em virtude do sentido profundo (antigamente chamado oculto) do mito-solar.

    No importa que Jesus tenha nascido em outra data, como no importa a simbologia mitolgica do episdio evanglico do Natal. O que importa compreender que a histria do Natal, profundamente ligada tradio espiritualista da evoluo terrena, traz para o homem de hoje a mensagem eterna da renovao humana, atravs dos sculos, pelo desenvolvimento das foras do esprito. nesse sentido que o esprita, sinceramente, celebra o Natal de Jesus, acompanhando a tradio, sem com isso prejudicar a sua compreenso espiritual do Cristianismo. O processo de desenvolvimento espiritual do homem vasto e complexo, abran-gendo milnios e envolvendo aspectos demasiado complexos, que

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    o Espiritismo procura esclarecer de maneira racional, mas no pretende submeter a nenhuma transformao violenta.

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    7 Significao do Ano Novo para a concepo esprita

    Importncia da medida relativa do tempo no processo de evoluo espiritual do homem Uma lio de A Gnese

    Encontramos no captulo sexto de A Gnese, de Allan Kar-dec, esta curiosa definio: O tempo apenas uma medida rela-tiva da sucesso das coisas transitrias. Devemos ento despre-zar o tempo, no nos importarmos com as convenes do calend-rio? O fim do ano, por exemplo, nada mais seria do que um limite convencional, sem maior significao para a vida humana? Nem o tempo nem o espao existem, para o homem que conhece o eterno, afirmou o pensador indiano Khrishnamurti. Os espritas e os espiritualistas em geral, que conhecem a eternidade da vida e a imortalidade da alma, no deveriam levar em considerao as medidas relativas de espao e de tempo?

    Todo esse captulo sexto de A Gnese, a que nos referimos, trata dos problemas fundamentais de espao, tempo, matria, esprito, criao e vida. E se nos mostra a relatividade de nossos conceitos, tambm nos demonstra a importncia do relativo, no processo de nosso desenvolvimento espiritual. Trata-se do famoso captulo sobre uranografia geral, recebido do esprito de Galileu, pelo astrnomo e mdium Camille Flammarion, na Sociedade Esprita de Paris, entre 1862 e 1863. Kardec o incluiu em A Gne-se, sob a orientao do Esprito Verdade, como um dos pontos essenciais do livro.

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    Conhecemos a concepo do Universo como estrutura trpli-ce, que nos dada no captulo segundo de O Livro dos Espritos. O Universo se constitui de dois elementos fundamentais: esprito e matria, subordinados ao poder supremo de Deus. Assim, a trindade universal, como assinala Kardec, esta: Deus, Esprito e Matria. No citado captulo sexto de A Gnese vamos encontrar a apreciao dos conceitos de espao e tempo, em funo dessa mesma concepo do Universo. Ambos nos so apresentados como formas conceptuais e, portanto, finitas, condicionadas relatividade dos sentidos humanos, daquilo que poderamos cha-mar o imenso infinito da realidade superior que nos escapa.

    Esquematizando o problema, para torn-lo mais compreens-vel, podemos exp-lo assim, dentro da prpria explicao do texto:

    1) O Universo, na sua constituio trplice, infinito em to-dos os sentidos: tanto espacial, quanto temporal e concep-tual.

    2) O espao apenas a medida relativa da extenso, qualida-de perceptvel da imensidade. Quer dizer: existe a imensi-dade, da qual percebemos a extenso, que nos permite formular o conceito de espao.

    3) O tempo apenas a medida relativa da sucesso das coi-sas, na durao, que a qualidade perceptvel da eternida-de. Quer dizer: existe a eternidade, da qual percebemos a durao, que nos permite formular o conceito de tempo.

    4) Imensidade e Eternidade, como aspectos do Absoluto, que mal podemos imaginar, pertencem Realidade superior, ao plano supremo da Criao, onde conseguimos intuir a presena de Deus.

    A medida do tempo, que nos leva a marcar os dias, os meses e os anos, embora convencional, tem, portanto, uma realidade que

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    a fundamenta. Contando os anos, estamos contando a nossa per-cepo do fluir da durao na eternidade, da mesma maneira por que, contando os quilmetros, estamos contando o fluir da exten-so na imensidade. E tanto o tempo quanto o espao so reais para ns, em nossa condio de seres que vivem no mundo do relativo. No podemos viver sem cont-los, sem levar em considerao a existncia real do espao e do tempo.

    Mas o que importa, do ponto de vista esprita, compreen-dermos a relatividade das coisas, de maneira a nos servirmos delas como necessidades imediatas, sem transform-las em reali-dades absolutas. O espao e o tempo devem ser, para ns, que conhecemos o Eterno, instrumentos de compreenso da Realidade superior, e no formas de apego realidade transitria. Foi isso que Jesus ensinou, ao declarar que aquele que se apegasse vida perd-la-ia, mas aquele que a perdesse encontr-la-ia. Porque se apegar vida ligar-se inteiramente aos conceitos relativos de espao e tempo, considerando a passageira encarnao terrena como a nica forma de vida, depois da qual s existe a morte. Mas desapegar-se da vida compreender a sua relatividade, a sua natureza transitria, e por isso mesmo aprender, com os ensinos de Jesus, a utiliz-la como simples meio de progresso espiritual, para a nossa ascenso a uma vida maior.

    Cada ano que finda, em nossa existncia temporria na Terra, uma frao do tempo que usamos, bem ou mal, em nosso pro-cesso evolutivo. O fim do ano assim uma oportunidade para avaliarmos o nosso bom ou mau uso do tempo, realizando o ba-lano de nossa vida, da mesma maneira porque as empresas co-merciais procedem ao seu balano anual de atividades, lucros e perdas. to errado pensarmos que o fim do ano nada significa quanto lhe atribuirmos excessiva importncia. O ano chega ao fim: pensemos no que fizemos durante o seu transcurso e vejamos o que podemos fazer de melhor, no decorrer do novo ano. Mas, se

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    verificarmos que perdemos o ano que finda, no nos desespere-mos. Temos pela frente um novo ano, ainda intacto, como um presente do Eterno, para o nosso desenvolvimento na durao.

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    8 Sucedem-se as civilizaes no processo da evoluo terrena

    A vida procura de novas formas, na sua constante expanso Analogia entre o papel do Cristianismo,

    perante o mundo antigo, e o do Espiritismo no mundo moderno Uma advertncia de Lodge

    O Espiritismo, como o Cristianismo primitivo, vai se impon-do ao mundo de maneira irresistvel. A mitologia greco-romana era ainda senhora do mundo antigo e seus deuses de pedra ou metal dominavam nos templos do Imprio, quando o Cristianismo comeou a se espalhar pela terra, como erva humilde que se alas-tra no solo, pisada pelos homens e desprezada pelos poderosos. Pouco a pouco, os princpios cristos se infiltraram na gigantesca estrutura do Imprio, substituindo o vazio angustiante das religi-es mitolgicas e a v sabedoria das escolas filosficas dominan-tes.

    O mundo se renova constantemente, porque o seu destino a evoluo. A sua lei bsica, irredutvel, a lei do progresso. Pere-cem as formas numa sucesso contnua, ao ritmo do desenvolvi-mento universal. Atravs das formas a vida cresce, se expande e exige novos instrumentos de manifestao. As civilizaes, como as plantas, os animais e os homens, nascem, crescem, se desen-volvem, atingem o apogeu, entram em declnio e morrem. Mas no morrem apenas. Porque renascem tambm. Cerca de vinte civilizaes j passaram na Terra. Suas estruturas desapareceram, mas o esprito que as animava ressurgiu nas seguintes. A grega foi

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    herdeira da egpcia e da babilnica, a romana da grega, a nossa da grega e da romana.

    Cada nova civilizao traz consigo um novo e mais poderoso sopro do esprito. Segundo as observaes de Dilthey e Whitehe-ad, o esprito racionalista dos gregos fundiu-se no tempo com a mentalidade jurdica dos romanos e o providencialismo judeu-cristo, para a criao da conscincia moderna, estruturada lenta-mente no caldeiro ideolgico da Idade Mdia. Dessa elaborao milenar resultou o esplendor da Renascena. O prprio nome atribudo ao fenmeno revela a sua natureza: a Renascena nada mais foi do que um renascimento do esprito das antigas civiliza-es numa nova forma, num corpo novo. claro que no usamos a palavra forma no sentido aristotlico, mas no sentido comum de estrutura, de configurao exterior.

    O Cristianismo constituiu o grande alicerce ideolgico sobre o qual se ergueu o edifcio de um novo mundo, de uma nova civilizao, a partir da decadncia do Imprio Romano. Mas os ideais do Cristianismo no puderam concretizar-se perfeitamente e desenvolver-se em plenitude na civilizao moderna. A nova estrutura, herdeira da antiga, conservou muito daquela, da mesma maneira por que o organismo do filho repete as caractersticas paternas. O Cristianismo uma revoluo em marcha, suas trans-formaes continuam em desenvolvimento. Prevendo a amplitude dessa revoluo, o prprio Cristo anunciou, como vemos no E-vangelho de Joo, a vinda de um novo consolador, o advento do Esprito de Verdade, incumbido de restabelecer a pureza dos seus ensinos e dar novo impulso evoluo terrena.

    O Espiritismo o cumprimento dessa promessa. Surgindo na hora precisa, em meados do sculo passado, no momento exato em que os princpios do Cristianismo, ameaados pela estagnao dogmtica, se defrontavam com o livre exame da nova mentalida-de cientfica, ele abriu perspectivas inesperadas ao prosseguimen-

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    to da civilizao crist. Kardec acentua esse fato, com palavras claras e precisas, em O Evangelho Segundo o Espiritismo e A Gnese. O Espiritismo tambm um renascimento, o que Em-manuel chamou a renascena crist. Por isso, no momento em que o mundo moderno vacila, entre as crenas que no mais o satisfazem e as promessas do esprito cientfico, o Espiritismo se infiltra em toda a sua estrutura, para salvar o futuro, preparando as bases da nova civilizao.

    Todos os golpes desferidos contra o Espiritismo so to in-teis como os que foram desferidos no passado contra o Cristia-nismo. A fora do Espiritismo a da prpria vida procura de nova forma, mais adequada manifestao de seus novos desen-volvimentos. Pouco importa que sua posio seja marginal, na cultura moderna. Tambm os esticos e epicuristas, os rabinos de Jerusalm e os sbios de Roma e de Atenas consideravam margi-nal e supersticioso o Cristianismo. As lies da histria deviam servir para alertar os espritos mais arejados, chamando-lhes a ateno para afirmaes como a de sir Oliver Lodge, o grande sbio ingls, para quem o Espiritismo uma nova revoluo coprnica.

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    9 Uma nova Terra e um novo Cu

    A Terra se renova sempre aos nossos olhos. a mesma, e ao mesmo tempo no . Mas todas as suas renovaes assemelham-se ao passar das estaes que anunciam a Primavera. H uma grande renovao que nos aguarda no futuro. Semelhante criatu-ra humana, que passa da infncia adolescncia, desta mocida-de, desta madureza e desta velhice, mas mesmo na velhice no completa o seu ciclo, assim a Terra, nosso planeta, nosso mundo e nossa me. O homem, diz o filsofo Heidegger, um ser que se completa na morte. S a ltima transformao, a que se refere na Bblia o Livro de J, completa o ser humano na sua elaborao terrena.

    O Apocalipse, ltimo livro do Novo Testamento, anuncia-nos em seu captulo 21 um novo Cu e uma nova Terra. E logo aps o Juzo Final, quando a Morte e o Hades (Inferno) so lanados no lago de fogo e desaparecem na segunda morte. A simbologia proftica do Apocalipse confunde os leitores. Os que se apegam letra tiram do texto interpretaes absurdas. Mas os que penetram no esprito do livro compreendem que o novo Cu est se abrindo sobre a nova Terra. Tudo o que inquo, tudo o que errado e condenvel ser lanado no lago de fogo, onde se d a segunda morte, ou seja, onde os resduos da evoluo passam por nova transformao.

    Os estudiosos divergem na interpretao do Apocalipse. Mui-tos o consideram como profecia j cumprida, referente apenas queda do Imprio Romano. Mas a verdade que os fins de ciclos se assemelham. Se a viso do apstolo na ilha de Patmos se apli-cava ao seu tempo, tambm se aplica ao nosso. Estamos na hora

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    em que um novo ciclo da evoluo terrena chega ao fim. Uma nova Terra comea a se mostrar aos nossos olhos. um planeta diferente, cheio de uma populao renovada, de uma nova Huma-nidade que sonha sob as bnos de um novo Cu.

    Cumpre-se mais uma vez a viso apocalptica. O Juzo Final se realiza. O homem velho lanado no lago de fogo e enxofre para que o homem novo aparea e domine o planeta. Nossa Me Terra geme nas dores do parto. Mas aps as dores haver alegria, a intensa alegria do corao materno que se debrua sobre o sorri-so de uma criana. Louvemos a Deus por nos haver reservado para esta hora do mundo. E maneira de Joo, repitamos as pala-vras da bno: A graa do Senhor Jesus seja com todos!

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    10 O infinito e o finito

    Deus o esprito infinito, o Criador. Ns somos as criaturas, espritos finitos. A idia de Deus nos d a perspectiva do Infinito. A idia do homem nos mostra a estreiteza do finito. O Infinito aquilo que no podemos conceber, pois a nossa mente finita no pode abrang-lo. Deus o Ser dos seres e tudo abrange na sua oniscincia e na sua onipotncia. O homem o ser entre os seres, pequenina criatura apegada crosta de um diminuto globo, de um gro de areia dos desertos da imensidade. Deus uno e a sua unidade encerra as dimenses do Universo e alm do universo. O homem mltiplo e a sua multiplicidade se espalha na face da Terra como a poeira na plancie.

    Quem ousaria confundir Deus com o homem e o homem com Deus? O Criador dos seres e das coisas, de tudo quanto existe, existiu e est para existir, no cabe na limitada e mesquinha forma humana. Ele nos criou sua imagem e semelhana porque nos criou espritos. nisso que nos assemelhamos a Deus, como o reflexo de nossa imagem numa gota dgua se assemelha a ns. Porque, na sua onipresena, Deus est em tudo. Ele o princpio inteligente do Universo, esse poder misterioso que move os to-mos na pedra, faz circular a seiva no vegetal, controla os instintos nos animais e acende no homem a luz da razo.

    Um s Esprito impregna o Todo. Um s Esprito vela por to-dos. o Esprito Supremo, Deus, nosso Pai. Mas os espritos finitos, criados por ele, so muitos. Criados e semeados no uni-verso, como as semeaduras no campo, os espritos germinam na carne e crescem na vida. Deus fez o homem do barro da Terra. Formou-se nas entranhas da matria e soprou-lhe nas ventas o

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    sopro da vida. Essa imagem bblica reflete o milagre da Criao. O sopro o esprito, a ruach hebraica, o pneuma grego, o spiritus latino. Esse esprito um s em todos os homens, mas cada ho-mem a sua manifestao particular. E em cada homem esse esprito finito anseia pelo Esprito Infinito.

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    11 O mundo pelo avesso

    Dizia-me recentemente um amigo: Esto virando o mundo pelo avesso! E a impresso que se tem ao abrir os jornais, ligar o rdio ou a televiso, correr os olhos por uma vitrina de livraria ou dar uma volta pelas ruas precisamente essa. Algum enfiou a mo no fundo e puxou o avesso do mundo. Todos os princpios morais esto sendo atirados no lixo. Matar, violar, achincalhar, agredir e desrespeitar so as novas palavras de ordem. E tudo isso por que?

    H um sculo o Espiritismo proclamou a existncia de uma lei de evoluo dos mundos e demonstrou que o nosso mundo, o planetinha humilde em que viajamos no espao, est passando por uma nova etapa de sua evoluo. Quem conhece um pouco de geologia sabe que j fomos um mundo primitivo, sem vida. Quem conhece um pouco de histria e de Antropologia sabe que j fomos uma humanidade animalesca, selvagem, evoluindo para as civilizaes agrrias e avanando depois, lenta e penosamente, at os nossos dias. E quem enxergar um palmo adiante do nariz est vendo que damos agora um salto para uma nova civilizao.

    fcil compreender que esse salto coletivo exige enorme es-foro. O mundo contrai os seus msculos, a humanidade se atira no vcuo. A viso de futuro fascina, deslumbra os que a podem compreender, mas tambm aturde e desorienta os que apenas conseguem vislumbr-la. Todos sabemos que temos de mudar, de passar de um sistema de vida para outro, de reformar as nossas idias, mas nem todos compreendemos o que isso. A maioria das criaturas est procedendo como ratos de navio na hora do naufrgio. a hora do vale tudo.

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    Ningum se engane, porm, diante do tumulto do mundo. No caminhamos para a confuso, para a anarquia, para a bader-na, mas para um mundo melhor. Os que lutam pelo bem e pela ordem, pela preservao dos grandes princpios morais que digni-ficam a vida humana, pela cultura e a beleza, pela bondade e a fraternidade, acabaro vencendo. Os pacficos herdaro a Terra, como ensinou Jesus. Os baderneiros sero simplesmente transfe-ridos para mundos inferiores, pela ao compulsria da morte. Contra ela no h recursos; nem transplantes nem plulas milagro-sas podem valer. O mundo se renova pela sucesso das geraes.

    Quantas civilizaes desapareceram da Terra? Mais de vinte! Quantas instituies milenares foram reduzidas a p? Milhares! Tudo passa e a vida continua triunfante o seu curso evolutivo. O Espiritismo nos ensina que esta hora do mundo como a das trevas que precedem o alvorecer. Mas preciso estud-lo para bem compreender o que se passa. Uma leitura atenta de O Evan-gelho Segundo o Espiritismo e um estudo srio de O Livro dos Espritos nos deixaro tranqilos nesta hora de agitaes, de guerras e rumores de guerras.

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    12 Formas de reao do mundo moderno

    ao impacto dos princpios espritas

    Na batalha contra os preconceitos, a maior luta deve desenvolver-se no seio do movimento doutrinrio Confuso do Espiritismo com seitas religiosas

    Trabalho para os pregadores

    So vrias as formas de preconceito existentes no mundo, com referncia ao Espiritismo. Essas formas tm a sua origem comum na incompreenso do processo da evoluo espiritual do homem. Essa incompreenso, por sua vez, deriva de duas fontes culturais: de um lado, a cultura materialista do nosso tempo, que conserva a atitude preconceituosa do movimento cientfico nos dois ltimos sculos, com relao s questes espirituais; de outro lado, a cultura religiosa, de tipo teolgico, em que no h lugar para o livre pensamento.

    H, portanto, dois tipos fundamentais de anti-espiritismo. Um deles o cientfico, dominante nos meios do padro cultural elevado. Outro o religioso, que se reveste nas altas classes de aspecto filosfico, mas no seio do povo se revela apenas pela agressividade do sectarismo. As pessoas que alimentam o primei-ro tipo costumam aferrar-se ao sentido positivo das cincias, negando qualquer possibilidade de verificao positiva dos prin-cpios espritas. Consideram o Espiritismo como simples revives-cncia do passado animista do homem. As pessoas que alimentam o segundo tipo, o preconceito religioso, acusam o Espiritismo de

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    demonaco, hertico, e procuram confundi-lo com as formas de fetichismo do passado e do presente.

    claro que essas duas atitudes representam uma grande bar-reira difuso dos princpios espritas. So, por assim dizer, duas formas eficientes de reao do mundo moderno ao poderoso impacto do Espiritualismo, que ameaa a sua estrutura. Aquilo que costumamos chamar a civilizao crist, e que de Cristia-nismo no tem mais que o fermento do Evangelho, possui, como todas as civilizaes, o seu instinto de conservao. Ao sentir que o Espiritismo, na sua feio de Cristianismo Redivivo, constitui uma grave ameaa para os seus padres de cultura e de conduta, reage violentamente contra ele. Da mesma maneira, alis, por que a civilizao greco-romana reagiu contra o poderoso impacto do Cristianismo Primitivo, que realmente lhe ameaava a estrutura.

    A maioria esprita, constituda por homens do povo, como to-das as maiorias, no possuindo a viso total da doutrina, nem a compreenso exata do processo de evoluo espiritual, rebela-se contra essas reaes do mundo moderno. A rebelio se manifesta, por sua vez, numa forma de auto-defesa. Os organismos doutrin-rios se fecham, como verdadeiros redutos da nova f, isolando-se do meio profano. Exatamente o que acontecia com os primeiros ncleos cristos no mundo antigo. E o Espiritismo, transformado assim numa nova seita religiosa, confunde-se com as demais seitas e com elas se empenha na velha luta que caracteriza a vida religiosa no mundo.

    A grande batalha do Espiritismo contra os preconceitos tem de ser travada, portanto, em primeiro lugar, dentro do prprio movimento esprita. Antes de se defender contra a reao natural do mundo moderno aos seus princpios renovadores, o Espiritismo precisa enfrentar essa defesa no mbito interno do movimento doutrinrio, procurando elevar os seus adeptos verdadeira com-preenso da doutrina. imprescindvel que os oradores e confe-

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    rencistas espritas procurem insistir nesse ponto, mostrando aos adeptos a grandeza da doutrina, a fim de que ela no continue a se confundir com as formaes sectrias. No interessa ao Espiritis-mo a luta religiosa. O que interessa o alargamento da compreen-so religiosa do homem, a superao do sectarismo.

    Conquistada a compreenso geral dos espritas, elevada a conscincia do movimento doutrinrio a um plano superior, a batalha estar ganha, porque a derrota dos preconceitos a que acima aludimos uma questo de tempo. As foras da evoluo trabalham pelo Espiritismo. Da mesma maneira por que os pre-conceitos culturais de gregos e romanos e os preconceitos religio-sos do mundo antigo no foram capazes de deter a poderosa cor-rente do Cristianismo, os atuais preconceitos no detero a corren-te esprita, que dia a dia se avoluma. O fundamental, portanto, o trabalho interno, o esclarecimento constante do prprio movi-mento esprita. Empenhemos, nesse sentido, todas as nossas for-as e estejamos tranqilos quanto ao futuro, que, como dizia Bozzano, pertence ao Espiritismo.

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    13 Novos caminhos que se abrem para a compreenso da vida

    Trs objetivos do Espiritismo F iluminada pela razo e razo iluminada pela f Como se pode naturalizar a religio"

    O grande trabalho do Espiritismo no mundo mostrar aos homens a realidade da sobrevivncia, a finalidade evolutiva da vida terrena e a necessidade de orientao evanglica do indiv-duo e da sociedade. A sobrevivncia, ao mesmo tempo em que liberta o homem do terror da morte, sobrecarrega-o de responsabi-lidades morais. A compreenso de seu destino evolutivo, alargan-do-lhe os horizontes mentais, aprofunda-lhe o senso dessas res-ponsabilidades. E o Evangelho ento lhe aparece na sua verdadei-ra significao de cdigo divino, para orientao das criaturas terrenas em direo ao cu.

    No somente o Espiritismo que prega a sobrevivncia. To-das as religies o fazem. No ele apenas que ensina a lei da evoluo, atravs das vidas sucessivas. Numerosas escolas espiri-tualistas o fazem. No s ele que indica ao homem o roteiro do Evangelho. Todas as religies crists o pregam. Mas acontece que o Espiritismo rene, em sua estrutura doutrinria, tudo quanto mais condiz com o esprito do homem moderno: a sobrevivncia no apenas pregada por ele, mas sobretudo demonstrada, atravs de observaes e pesquisas cientficas; a reencarnao no ensinada como um dogma de f, mas como uma lei natural, que se pode comprovar em toda a natureza, e suscetvel tambm de investigao cientfica; o Evangelho no apontado como um

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    cdigo misterioso, em que as contradies ou dubiedades tenham de ser respeitadas, mas como um livro humano em que se refletem os ensinos divinos de Jesus, que a mente esclarecida deve saber separar dos elementos circunstanciais.

    De um lado, pois, a misso do Espiritismo restabelecer no esprito moderno, atravs da razo e da Cincia, a f religiosa. De outro lado, porm, libertar essa f das imposies dogmticas e dos convencionalismos sociais. Provando a sobrevivncia, atravs de demonstraes cientficas, o Espiritismo refora a crena espi-ritual do homem, mas ao mesmo tempo transfere os motivos dessa crena, do terreno da f dogmtica, do crer pelo crer, para o terre-no da razo. Demonstrando a realidade da reencarnao, como uma lei natural, o Espiritismo reafirma os ensinos de vrias religi-es e ordens teosficas ou ocultistas, mas no o faz de maneira mstica ou por motivos apenas tradicionais, e sim mediante o raciocnio e a pesquisa. Indicando ao homem os rumos do Evan-gelho, o Espiritismo restabelece a velha orientao crist, mas no por obedincia a costumes e sistemas, e sim pela compreenso da verdade dos princpios do Cristo.

    O Espiritismo se apresenta, assim, como um elemento reor-ganizador da vida espiritual do mundo moderno. Suprime as divergncias entre Religio, Filosofia e Cincia, reintegrando esses trs ramos do conhecimento no contexto da conscincia contempornea, como trs formas distintas do conhecer, mas necessariamente ligadas na harmonia do todo. Graas sua posi-o renovadora, desloca os fatos espirituais do terreno incerto do miraculoso, para transport-los ao da razo. Com isso, transforma a alma e o esprito, de objetos de suposies e especulaes abs-tratas, em objetos de observao e pesquisa cientfica. Podemos dizer, repetindo uma expresso de Labriola, que o Espiritismo naturaliza a Religio.

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    claro que toda essa revoluo parece hertica, para as pes-soas apegadas ao misticismo religioso. Dificilmente uma criatura que se acostumou a crer por crer, a aceitar o que lhe disseram desde criana, a ter f no mistrio e a encarar o mundo e a vida como coisas procedentes do sobrenatural, poder aceitar a posio renovadora do Espiritismo. Mas, por outro lado, as pessoas, cada vez mais numerosas, que no podem aceitar as crenas tradicio-nais, e que flutuam entre a crena e a descrena, encontraro no Espiritismo um rumo seguro para a sua prpria renovao espiri-tual.

    A f esprita, como dizia Kardec, iluminada pela razo, mas a razo esprita, por sua vez, iluminada pela f, de maneira que no pode ser confundida com a razo ctica. Enquanto esta espiritualmente estril, a razo esprita espiritualmente fecunda, abrindo para a mente humana perspectivas cada vez mais amplas de compreenso do homem, do mundo e da vida.

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    14 Lenta a libertao do esprito

    de atitudes mentais do passado

    Acusaes de h dois mil anos, que se repetem no presente Formas arcaicas de combate doutrina

    Religio e Cincia

    A posio do Espiritismo no mundo moderno assemelha-se bastante do Cristianismo no mundo antigo. De um lado, vemos a repulsa das religies crists aos princpios espritas, sob pretextos idnticos e no mesmo tom de agressividade com que o Judasmo repudiava os princpios cristos. De outro lado, a cultura mun-dana a repelir e condenar o Espiritismo, com desprezo semelhante cultura antiga pelo Cristianismo nascente. Se, para gregos e romanos, os cristos no passavam de feiticeiros ou de ignorantes, e para os judeus eram mais do que hereges, para a sabedoria mun-dana dos nossos dias e para os cristos das igrejas atuais os espri-tas no merecem outras classificaes.

    No raro ouvirmos expresses como esta: No posso me conformar com o fato de fulano ou sicrano, to bons e to cultos, serem espritas! Vai implcita nessa inconformao a mesma acusao de demonismo que se fazia no passado aos cristos, e qual o prprio Cristo no escapou. Se Fulano e Sicrano so bons, no deviam ser espritas, porque o Espiritismo mau. Se so cultos, muito menos, porque o Espiritismo inculto, ou mais ainda, representa mesmo a anti-cultura, o que de mais primitivo e tosco pode existir em matria de concepo do mundo e da vida. Se ainda estivssemos na era escravagista, o Espiritismo seria

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    acusado de religio de escravos, como o foi o Cristianismo. Mas, para no falar nem mesmo nessa semelhana, h pessoas que o chamam de religio de negros.

    O que espanta, nisso tudo, ser possvel no mundo moderno, com as conquistas realizadas pelo humanismo no plano da frater-nidade e a vitria dos princpios de liberdade de pensamento, repetir-se o episdio histrico do advento do Cristianismo. Em compensao, no temos o suplcio nos circos, na cruz, no apedre-jamento ou nas chamas. A ausncia do martrio fsico assinala a evoluo dos tempos, mas a sumria condenao intelectual mos-tra como lenta essa evoluo. Os costumes se modificaram, ao impacto dos princpios renovadores, ao longo de lutas sangrentas e infindveis disputas verbais. Os espritos, entretanto, continuam apegados, no seu foro ntimo, aos velhos esquemas mentais da intolerncia e da presuno.

    Em geral, condena-se o Espiritismo sem conhec-lo. Repe-tem-se acusaes descabidas, com uma irresponsabilidade de arrepiar. Confunde-se a mais pura doutrina crist, restabelecida em esprito e verdade na codificao de Kardec, com as prticas fetichistas de escravos e ndios, misturadas a crendices do catoli-cismo popular. Pouco importa a verdade, pois o que preciso acusar e condenar. Ainda h pouco, um dos grandes dirios pau-listanos trazia expressivo anncio, convidando os interessados em combater o Espiritismo a se alistarem numa nova cruzada, e acen-tuando: No necessrio conhecer a doutrina. Por vrios dias, esse anncio permaneceu em exposio no Clube dos Jornalistas Espritas,3 como exemplo vivo da maneira por que se pretende sufocar a doutrina.

    3 O Clube dos Jornalistas Espritas foi a primeira sociedade do gnero

    no mundo, fundada em So Paulo. Herculano foi um dos seus presi-dentes. Atualmente, o clube no mais existe. (Nota da editora.)

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    Os livros e artigos publicados contra o Espiritismo refletem o esprito de intolerncia e presuno do passado, repetindo acusa-es absurdas, j largamente desmentidas por espritas e no-espritas. As posies do anti-espiritismo so as mesmas de sem-pre: o fanatismo religioso e a presuno cientfica. O mundo em que vivemos, entretanto, no comporta mais essas atitudes senti-mentais, desprovidas de qualquer base racional. O homem moder-no j se libertou do temor do desconhecido, que impedia as via-gens martimas, e lanou-se conquista do espao. O Espiritismo, com seu clima de absoluta liberdade espiritual, de livre indagao, contrrio aos tabus religiosos e s crendices ou supersties, no pode ser confundido, por nenhuma pessoa de mediana cultura, com formas de magia ou de sincretismos religiosos.

    Os princpios espritas so firmados na lgica e comprovados pela experimentao cientfica e o que mais srio , realizada esta por cientistas no-espritas, de renome universal. Com isto, o Espiritismo no pretende reduzir a Religio Cincia, mas pro-var, como de fato prova, que a Religio, quando despida do for-malismo e do dogmatismo do passado, pode ser amplamente confirmada pela Cincia. A f inabalvel somente aquela que pode encarar a razo face a face, em todas as etapas da evoluo humana. Esse dstico, inscrito por Kardec na porta de O Evange-lho Segundo o Espiritismo, define a posio da doutrina em face dos problemas, aparentemente contraditrios, de Religio e Cin-cia. Como se v, combater uma doutrina dessa natureza com os recursos sectaristas do passado fazer como Dom Quixote, que atirava sua lana contra as hlices poderosas dos moinhos, para espanto do seu escudeiro. Os pobres Sanchos que ainda hoje acompanham, aos milhares, certos fidalgos cavaleiros, acabaro espantados com a falta de raciocnio de to ilustres cabeas.

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    15 Juventude inquieta

    Os jovens tocam a rebate em toda renovao, escreveu Jos Ingenieros em seu catecismo cvico para a juventude latino-americana, As Foras Morais. A juventude sempre foi inquieta, inconformada, sonhadora. Graas a ela o mundo se renova. Mas jamais houve tanta inquietao juvenil como hoje. Porque o mun-do passa por uma fase de transio evolutiva, como sabemos, e as novas geraes no vieram para se acomodar, mas para buscar novos caminhos. claro que a juventude esprita no poderia ficar margem desse processo. Ela tambm se inquieta.

    Muitos dos espritas veteranos (os quadrados, como dizem alguns jovens) assustam-se com isso e querem frear os jovens de uma ou de outra maneira. O Livro dos Espritos, porm, nos ensi-na que ningum pode deter a evoluo. No h freios que possam segurar o avano dos jovens para o futuro. No obstante, h um meio de ajud-los na sua inexperincia muitas vezes perigosa. Os jovens mais afoitos pretendem lanar o movimento esprita nas agitaes polticas deste momento do mundo. Acham que o Espi-ritismo se acomodou e pretendem espore-lo para que avance. Mas se esquecem de que o Espiritismo j , em si mesmo, o co-meo do novo mundo que eles desejam criar na Terra.

    No devemos temer esses jovens nem conden-los. Mas cla-ro que devemos e precisamos corrigir os seus enganos. No fcil corrigir um jovem e muito menos um grupo avanado. Quando, porm, se trata de jovens espritas, dispomos da arma poderosa da prpria doutrina. Podemos ser todos quadrados, acomodados ao sculo, compromissados com as injustias do mundo atual. Mas se apesar disso formos capazes de mostrar aos jovens que a doutrina

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    no se coaduna com os seus impulsos juvenis, com a sua pressa e a sua precipitao, talvez sejamos ouvidos.

    Nenhum esprita consciente, realmente conhecedor dos prin-cpios doutrinrios, pode se conformar com a corrupo do scu-lo, como dizia o apstolo Tiago. Todo esprita convicto anseia pelo estabelecimento do Reino de Deus na Terra. Mas, pelo fato mesmo de ser convicto, sabe que esse reino no vir por sinais exteriores. As injustias do mundo tm suas razes no corao do homem, pois o homem quem faz o mundo. A poltica mundana, em todos os seus aspectos, dominada pela astcia, a sagacidade e a violncia dos instintos animais do homem. O Espiritismo luta contra esses instintos, conservados pelo egosmo. A ao esprita s pode ser poltica no bom sentido da palavra: ao pessoal para melhorar-se cada um no seu corao, e ao social para consertar os erros do mundo atravs do amor e da caridade. No se pode construir com dio, violncia e astcia um mundo de justia e pureza. Os materiais de construo so outros: o amor, a mansi-do e a verdade. Assim, a batalha do Espiritismo de construo e jamais de destruio.

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    16 O que o Espiritismo

    I A terceira Revelao

    O Espiritismo a ltima Revelao divina recebida pelos homens, de acordo com a promessa de Jesus no Evangelho de Joo: E eu rogarei ao Pai, e ele vos dar outro Consolador, a fim de que esteja para sempre convosco. (Joo, 14:16).

    Sua misso guiar os homens Verdade, restabelecendo o ensino do Cristo em sua pureza primitiva e abrindo novos hori-zontes compreenso humana da vida: Tenho ainda muito que vos dizer, mas vs no o podeis suportar agora; quando vier, porm, o Esprito da Verdade, ele vos guiar a toda a Verdade; porque no falar por si mesmo, mas dir tudo o que tiver ouvido, e vos anunciar as coisas que ho de vir. Ele me glorificar, por-que h de receber do que meu, e vo-lo h de anunciar. (Joo, 16:12-14).

    Com Moiss, os homens receberam do Alto a primeira Reve-lao da realidade espiritual da vida. Essa revelao, que foi reunida pelos hebreus na grande codificao da Bblia, sobrepu-nha-se a todas as formas religiosas do tempo, e conduziu o povo hebraico concepo do Deus nico. Mas na prpria Bblia en-contramos o anncio da segunda Revelao, do advento do Mes-sias, que se cumpriu com a vinda de Jesus, oferecendo ao mundo a mais elevada forma de Religio at ento possvel. E foi o pr-prio Messias quem anunciou, como vimos no Evangelho de Joo, a terceira Revelao, destinada a restabelecer os seus ensinos, que

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    seriam deturpados pelos homens, e a ampliao de acordo com as novas necessidades da evoluo terrena.

    A primeira e a segunda Revelaes foram pessoais e locais, transmitidas por Moiss e Jesus a um determinado povo: o he-breu, incumbido de transmiti-las aos demais povos. A terceira Revelao no foi pessoal nem local, mas espiritual e universal. Os espritos a transmitiram em todo o mundo, atravs de suas comunicaes, e Allan Kardec as codificou, como os hebreus codificaram a Bblia e como os cristos codificaram o Evangelho. Os hebreus reuniram os vrios livros escritos sobre a primeira Revelao e deles fizeram a Torah, ou a Bblia que hoje conhe-cemos. Os cristos tiveram de reunir os vrios livros escritos sobre a segunda Revelao, ou seja, os relatos dos quatro evange-listas, as epstolas e o Apocalipse, e com eles formar o Evangelho ou Novo Testamento. Os espritas, pelas mos de Kardec, o mis-sionrio, reuniram as comunicaes mais esclarecedoras dos Espritos do Senhor, que constituam a Falange Luminosa do Esprito da Verdade, e com elas formaram a Codificao do Espi-ritismo.

    Assim como a primeira Revelao foi rejeitada por muitos hebreus, tendo Moiss de agir com energia para imp-la ao seu povo, e assim como a segunda Revelao foi rejeitada por quase todo o povo hebreu, a ponto de Paulo precisar lev-la aos gentios para que ela se difundisse no mundo, assim tambm a terceira Revelao foi rejeitada por judeus e cristos, sendo aceita apenas por uma minoria. E assim com as igrejas judaicas da poca cha-maram Jesus de embusteiro e de instrumento do Diabo, levando-o condenao e ao suplcio, assim as igrejas crists de hoje cha-mam Kardec de embusteiro e o Espiritismo de instrumento do Diabo, tentando aniquil-lo. Mas assim como as duas primeiras Revelaes triunfaram, a terceira tambm triunfar. Porque essa a vontade do Pai, que est nos Cus.

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    II Alicerce de uma nova era

    A revelao esprita, ou a terceira Revelao, como seqncia natural e necessria das duas anteriores, a de Moiss e a do Cristo, tem por fim estabelecer na Terra uma nova era. O Espiritismo se apresenta, assim, como o alicerce sobre o qual se erguer o edif-cio da nova civilizao terrena.

    No se deve confundir o Espiritismo com uma seita religiosa, sob pena de no se poder compreend-lo. Seitas religiosas sempre houve no mundo, em quantidade, e nunca serviram seno em sentido local e restrito. O Espiritismo, a exemplo do Mosasmo e do Cristianismo, toda uma revelao, e sua misso universal. Assim como o Mosasmo renovou o mundo antigo e o Cristianis-mo reformou a Terra, o Espiritismo tem por fim efetuar uma nova e mais profunda reforma.

    A primeira Revelao, dada aos homens numa poca distante, nos primrdios da evoluo da civilizao terrena, conseguiu reformar apenas uma parte do mundo, modificando a concepo judaica da vida. Os reflexos dessa reforma, porm, se fizeram sentir por toda parte, graas disperso dos judeus. A segunda Revelao, aparecendo em poca mais adiantada, exerceu influn-cia maior e mais profunda. Sobre os seus princpios construiu-se a chamada Civilizao Crist, em que ainda hoje vivemos. A tercei-ra Revelao ter influncia ainda maior, no se limitando me-tade da Terra em que se espalhou o Cristianismo, mas envolvendo o mundo inteiro e fazendo surgir a verdadeira Civilizao Crist, no cumprimento da promessa do Consolador.

    Os prprios espritas, em geral, ainda no compreendem esse alcance gigantesco da doutrina. Sem essa compreenso, entretan-to, a viso que podemos ter do Espiritismo se torna bastante es-treita. Essa compreenso nos mostra que o Espiritismo uma ideologia e no apenas uma seita religiosa. Como ideologia, como

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    forma geral de interpretar o mundo e a vida, o Espiritismo encerra em si os trs ramos fundamentais do conhecimento: a Cincia, a Filosofia e a Religio.

    Todas as pessoas que quiserem bem compreender o Espiri-tismo precisam pensar na doutrina dessa maneira global. E ser bastante lerem com ateno a Introduo e o Captulo I de O Evangelho Segundo o Espiritismo, para terem uma explicao clara e perfeita do que acabamos de escrever.

    III A Cincia Esprita

    J demonstramos, nesta seo, que o Espiritismo a terceira Revelao, na seqncia lgica e natural das revelaes crists. Demonstramos, a seguir, que o seu papel no mundo, a exemplo do que fizeram a primeira e a segunda Revelaes (Moiss e Cristo), a de reformar inteiramente o homem e a sociedade, com vistas ao estabelecimento do Reino de Deus na Terra. E demonstramos ainda que, para cumprir essa misso, o Espiritismo se apresenta como verdadeira sntese do conhecimento, englobando na sua estrutura doutrinria os trs ramos fundamentais do saber huma-no: a Cincia, a Filosofia e a Religio.

    Na ordem natural, a evoluo se processa em sentido contr-rio ao daquele em que colocamos essas palavras. A princpio, o homem religioso; depois, aprende a filosofar, e por fim, desco-bre a Cincia. Mas, na estrutura doutrinria do Espiritismo, temos em primeiro lugar a Cincia. Porque, sendo o Espiritismo uma doutrina, sua origem formal est na razo. A marcha natural da evoluo se inverte no plano racional. Assim, temos primeiramen-te a Cincia Esprita, que se constitui da classificao e exame, observao e experimentao dos fenmenos espritas.

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    A Cincia Esprita, ou o Espiritismo Cientfico, uma disci-plina que vem sendo elaborada por todos os que se dedicam ao estudo dos fenmenos de ordem psquica. No trabalho exclusi-vo dos espritas. Pelo contrrio, muito contriburam e contribuem para a sua elaborao os cientistas materialistas e de variadas convices espiritualistas. William Crookes, por exemplo, verifi-cou os fenmenos e estudou-os antes de ser esprita. Charles Richet construiu o edifcio da Metapsquica, tambm antes de se tornar esprita. Atualmente, Joseph B. Rhine, da Universidade de Duke, Carolina do Sul, Estados Unidos, fundou a Parapsicologia, sem ser esprita.

    Assim, a parte cientfica do Espiritismo a que se refere ao estudo cientfico dos fenmenos de comunicao medinica, materializao de espritos, voz direta, movimentos de objetos, raps ou pancadas, e todos os demais. Esse estudo, comprovando a existncia independente do esprito, e portanto a sobrevivncia do homem, a base slida sobre a qual se revelam a Filosofia e a Religio Espritas.

    IV A Filosofia Esprita

    A Filosofia Esprita a interpretao dos fenmenos verifica-dos e estudados pela Cincia Esprita. Esses fenmenos revelam ao homem a estrutura do Universo, que a seguinte, como vemos em O Livro dos Espritos, de Allan Kardec: Deus, Esprito e Matria. Uma vez constatada essa realidade e descoberto o meca-nismo pelo qual o esprito se manifesta atravs da matria, cessa o trabalho da Cincia, para comear o da Filosofia.

    Geralmente se define a Filosofia como reflexo. Enquanto a Cincia investigao, pesquisa, a Filosofia pensamento, elaborao mental. A Filosofia Esprita nos oferece, pois, com

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    base nos resultados da investigao da Cincia Esprita, uma viso geral do Universo e suas leis. Essa viso perfeitamente orgnica, de tal maneira que podemos compar-la a uma grande sinfonia, dirigida por Deus. Com a regncia da divina batuta, a msica universal transpe os sculos e os milnios.

    A Filosofia Esprita, como disse Kardec, pertence generica-mente ao que costumamos chamar Filosofia Espiritualista, porque a sua viso do Universo no se prende matria, mas vai at o esprito, que considera como causa de tudo o que percebemos no plano material. Englobando na sua interpretao cosmolgica a Cincia Esprita e tendo como conseqncia a Religio Esprita, a Filosofia Esprita encerra em si mesma toda a doutrina. por isso que O Livro dos Espritos, obra fundamental da doutrina, no propriamente um livro cientfico ou religioso, mas um tratado filosfico.

    Algumas pessoas estranham a forma dialogada desse livro, e os filsofos e estudantes de Filosofia, em geral, costumam coloc-lo parte, no o considerando obra filosfica. Por que acontece isso? Porque O Livro dos Espritos, como j anteriormente acon-teceu com os Evangelhos, no est escrito na linguagem tcnica da Filosofia. Mas a sua estrutura a de um tratado, os seus pro-blemas so essencialmente filosficos e, como se verifica nos seus prolegmenos, a inteno de Kardec no foi oferecer ao mundo um tratado sistemtico, mas uma Filosofia racional, livre dos prejuzos do esprito de sistema. Esse o esprito da Filosofia Esprita, como foi o esprito da Filosofia crist primitiva, que os homens acabaram sistematizando e deturpando.

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    17 Escndalo para as religies

    e loucura para a humanidade

    Uma das maiores dificuldades da prtica do Espiritismo no da prtica de sesses, mas da vivncia esprita, da aplicao dos princpios doutrinrios vida prtica, reside na falta de compre-enso dos objetivos da Doutrina. As pessoas que ingressam no Espiritismo, vindas do campo religioso, pretendem pratic-lo maneira de uma nova seita. As que provm do campo materialista, ou simplesmente do descampado da descrena, querem acomod-lo ao dolce far niente a que estavam habituadas.

    Nenhuma dessas duas atitudes corresponde aos objetivos do Espiritismo. O esprita no pode ser um religioso do tipo comum, apegado aos santos de sua devoo ou aos Espritos Guias, aferra-do fanaticamente s tendncias msticas do passado, porque o Espiritismo o liberta desse condicionamento emocional, chaman-do-o responsabilidade prpria, atravs do uso da razo. O espri-ta no pode ser, tambm, um indiferente aos problemas religiosos, um crtico amargo da religiosidade alheia, um homem apegado ao mundo com unhas e dentes, porque o Espiritismo lhe ensina a respeitar as etapas evolutivas da humanidade e ao m