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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE COMUNICAÇÃO CURSO DE COMUNICAÇÃO COM HABILITAÇÃO EM JORNALISMO MATHEUS LEITE BURANELLI MANIFESTO ANIMAL Salvador 2018.2

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO

CURSO DE COMUNICAÇÃO COM HABILITAÇÃO EM JORNALISMO

MATHEUS LEITE BURANELLI

MANIFESTO ANIMAL

Salvador

2018.2

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO

CURSO DE COMUNICAÇÃO COM HABILITAÇÃO EM JORNALISMO

MATHEUS LEITE BURANELLI

MANIFESTO ANIMAL

Memória do trabalho de conclusão de graduação em

Comunicação com Habilitação em Jornalismo da Faculdade

de Comunicação da Universidade Federal da Bahia.

Orientação: Rodrigo Rossoni

Salvador

2018.2

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AGRADECIMENTOS

À minha família, especialmente aos meus pais Márcia Leite e Renato Buranelli, e ao meu

irmão, Thiago Buranelli,

Pelos valores, dedicação e amor incondicional.

Aos amigos e amigas,

Pela partilha dos momentos bons e ruins de cada jornada.

Aos meus professores, na figura do meu orientador Rodrigo Rossoni,

Pelos desafios e ferramentas para superá-los.

Aos ativistas,

Pela inspiração.

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RESUMO

Este manifesto é uma zine fotográfica experimental que busca refletir sobre a presença de

animais e derivados de sua exploração na nossa comida. Uma ferramenta de ativismo pelos

direitos dos animais que constrói seu discurso principalmente através da fotografia, que

representa fragmentos da realidade em que vivem e morrem os animais da indústria de

alimentos e nossa naturalização em relação ao consumo desses produtos. Inspirado na

imprecisão do comportamento alimentar de nossa espécie ser natural ou cultural, o projeto se

vale de diferentes gêneros fotográficos buscando tensionar os fatos e fantasias da nossa

própria cultura. Uma série de fotos acompanha a tradição do documentarismo moderno,

enquanto outra série segue a tendência da fotografia contemporânea quanto às possibilidades

de representação do real.

PALAVRAS-CHAVES: fotografia, ativismo, zine, veganismo

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................................7

1. VEGANISMO, IDEOLOGIA ESPECISTA E ATIVISMO ANIMAL

1.1 Veganismo e especismo......................................................................................................9

1.2 Ideologia especista........................................................................................................... 11

1.3 Ativismo animal................................................................................................................13

2. FOTOGRAFIA, ENGAJAMENTO E CONTEMPORANEIDADE

2.1 O fotodocumentário e a transformação social...............................................................16

2.2 A fotografia na contemporaneidade...............................................................................20

2.3 Fotoativismo em diferentes causas..................................................................................27

2.4 Zines e ativismo................................................................................................................30

3. MANIFESTO ANIMAL

3.1 Idealização.........................................................................................................................33

3.2 Produção............................................................................................................................35

3.3 Edição................................................................................................................................37

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................40

5. REFERÊNCIAS.................................................................................................................41

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Foto da série Ocultos (2016) | Hugo Fagundes (p. 15)

Figura 2: The Independent Bootblack (1877) | John Thomson (p. 17)

Figura 3: Lodgers in a Crowded Bayard Street Tenement (1888) | Jacob Riis (p. 17)

Figura 4: Sadie Pfeifer, a Cotton Mill Spinner, Lancaster, South Carolina (1908) | Lewis Hine

(p. 18)

Figura 5: Migrant Mother (1936) | Dorothea Lange (p. 19)

Figura 6: Parade – Hoboken, New Jersey (1955) | Robert Frank (p. 20)

Figuras 7 e 8: Fotos do projeto Cracolândia (2005) | Felipe Dana (p. 23)

Figura 9: Foto do projeto Paisagem Submersa (2002-2007) | João Castilho (p. 24)

Figura 10: Foto do projeto Paisagem Submersa (2002-2007) | Pedro Motta (p. 24)

Figura 11: Foto do projeto Paisagem Submersa (2002-2007) | Pedro David (p. 25)

Figuras 12 e 13: Fotos do projeto The real story of the Superheroes (2012) | Dulce Pinzón

(p. 27)

Figuras 14 e 15: Fotos dos índios yanomami (1971-1978) | Cláudia Andujar (p. 28)

Figuras 16 e 17: Foto do projeto Cores e Flores para Tita (2017) | Adeloyá Magnoni (p. 28)

Figuras 18 e 19: Fotos de Oxalá e Oxum, respectivamente (2018) | Adeloyá Magnoni (p. 29)

Figuras 20 e 21: Fotos em tourada e zoológico na Espanha (2012) | Jon Amad (p. 29)

Figuras 22 e 23: Fotos do projeto The Hidden Death (2010) | Tommaso Ausili (p. 30)

Figuras 24 e 25: Fotos do projeto Manifesto Animal | Matheus Buranelli (p. 36)

Figuras 26 e 27: Fotos do projeto Manifesto Animal | Matheus Buranelli (p. 37)

Figura 28: Foto da zine Manifesto Animal | Matheus Buranelli (p. 38)

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INTRODUÇÃO

O Manifesto Animal é uma zine fotográfica experimental que busca refletir sobre a

presença de animais e derivados de sua exploração na nossa comida. Assim como em outras

esferas da vida cotidiana, nossas escolhas alimentares também são condicionadas pelo

comportamento social. Nossa sociedade é permissiva à exploração de animais não humanos

para alimentação, experimentação científica, vestuário, transporte e entretenimento e estes

hábitos atravessaram a história da humanidade e se naturalizaram. A ordinariedade da

exploração de animais é fruto de uma ideologia baseada no especismo1 que se retroalimenta a

partir das práticas do cotidiano, que ratificam que animais não humanos são mercadoria,

commodities, força de trabalho, máquinas produtoras, cobaias, enfim, passíveis de

exploração.

No inconsciente coletivo a sociedade constrói um senso de realidade que ratifica

valores hegemônicos - entre eles, a exploração animal para alimentação - e este manifesto

tem como objetivo contestar esses valores e apresentar o veganismo enquanto

posicionamento político. Embora seja comum relacioná-lo apenas a questões alimentares,

esse movimento tem propostas que visam a preservação do meio-ambiente e a melhoria nas

condições da saúde humana por meio da manutenção de uma relação ética com animais não

humanos.

Abordar a exploração animal em diversos segmentos exige muito tempo e, por isso,

recortamos o projeto no segmento da alimentação. Visto que a maioria da população faz ao

menos três refeições ao dia, e em casa é comum ter produtos como manteiga, leite, ovos e

carnes, acreditamos que este recorte dialoga com mais pessoas. Vamos, por isso, nos dedicar

apenas ao consumo de produtos de origem animal na comida. A alimentação é um hábito que

a própria pessoa tem autonomia para mudar, se desejar, diferentemente da exploração de

animais pela ciência ou entretenimento - o que elege este como o melhor caminho para mudar

diretamente a realidade dos animais. Sobretudo no Brasil, que segundo pesquisa deste ano da

OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) está em sexto lugar

no ranking mundial de consumo de carne (se dividir o consumo de bovinos, aves, suínos e

ovinos pela quantidade de habitantes) e em segundo lugar na escala de produção.

Esse manifesto tem como objetivo atuar pelos direitos dos animais por acreditar que

há muita desinformação acerca da exploração animal e que é necessário questionar a cultura

1Resumidamente, um sistema de crenças que distribui os animais em castas. Nesta forma de estratificação, cada ser tem

determinado seu destino dentro desse regime a partir da sua filiação a determinada espécie.

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dominante. Para construir esse discurso a linguagem fotográfica é valiosa pelo seu uso

enquanto testemunho, capaz representar nossa percepção da realidade, e pelo seu poder

expressivo, dotado de valor simbólico capaz de criar outras realidades. Influenciado pelas

tendências da contemporaneidade, este ensaio explora o potencial expressivo das imagens,

que admite a autoria do fotógrafo na construção de sentido através da escrita fotográfica e por

isso assumo o veganismo enquanto uma escolha política que também se transfere para as

imagens.

Como se trata de uma ferramenta de ativismo, escolheu-se o formato de zine por ser

uma publicação independente, de baixo custo e fácil circulação. Este material busca provocar

reflexões sobre nossos hábitos de consumo e informar sobre a indústria de alimentos. Por isso

montamos uma narrativa fotográfica híbrida, que envolve na mesma trama imagens de

natureza jornalística, documental, publicitária e alegórica. A heterogeneidade do ensaio é

pensada para intrigar o espectador e gerar tensão entre fato e ficção, natural e cultural.

A permissividade à prática de valores especistas se legitima por tolerância moral e por

isso há muitas pessoas que não se dão conta da exploração animal - além de outras tantas que

já se deram conta e mesmo assim querem se proteger de mais informações. Segundo o

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foram abatidos no Brasil 30.866.663

milhões de bovinos, 43.185.385 milhões de suínos e 5.842.721.214 bilhões de frangos apenas

em 2017 tendo como unidade de coleta estabelecimentos que efetuam o abate sob fiscalização

sanitária federal, estadual ou municipal. Não há como calcular o número de seres marinhos

mortos.

Embora seja chocante pensar que estes índices com bilhões de mortos são zerados e

reiniciados anualmente, o crescimento do movimento em defesa de animais legitima a busca

por uma sociedade mais igualitária também para seres filiados a outras espécies. Segundo

pesquisa do IBOPE Inteligência realizada em abril de 2018, 14% da população brasileira

concorda parcial (6%) ou totalmente (8%) com a afirmação “sou vegetariano” - ou seja, cerca

de 22 milhões dos 207,6 estimados pelo IBGE são vegetarianos(as) ou protovegetarianos(as).

Em relação a 2012, houve um crescimento de 6% no número de pessoas que assumiram uma

dieta vegetariana e atualmente estima-se que cerca de 6 milhões de brasileiros(as) sejam

veganos(as).

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1. VEGANISMO, IDEOLOGIA ESPECISTA E ATIVISMO ANIMAL

1.1 Veganismo e especismo

O veganismo é um movimento político em favor dos direitos dos animais e sua

vertente abolicionista propõe a libertação animal de sua escravidão para alimentação,

vestimenta, ciência, transporte, entretenimento ou qualquer outro uso cuja intenção seja em

benefício humano. Diferentemente do que possa parecer, o movimento em defesa dos animais

não é nada novo. Antes de se ouvir falar em veganismo ou vegetarianismo haviam pessoas

preocupadas com as condições e o próprio direito à vida de outras espécies que não a sua

própria. Na Grécia Antiga pessoas que abdicavam do consumo de carne por princípios éticos

eram chamadas de “pitagóricas” por compartilharem dos princípios de Pitágoras sobre a

prática de infligir sofrimento e morte sem necessidade a outros animais. “Enquanto o ser

humano for implacável com as criaturas vivas, ele nunca conhecerá a saúde e a paz. Enquanto

os homens continuarem massacrando animais, eles também permanecerão matando uns aos

outros. Na verdade, quem semeia assassinato e dor não pode colher alegria e amor”, disse o

filósofo grego por volta de 500 a.C.2

Depois dele, formadores de opinião como Buda, Leonardo Da Vinci e Jean Jacques

Rousseau também legitimaram a luta pelo direito à vida das espécies animais. Em 1847, na

Inglaterra, surgiu formalmente a primeira Sociedade Vegetariana. Setenta anos depois foi

fundada a Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB), em 26 de janeiro de 1917. Em 1931,

quando Gandhi discursou pela Sociedade Vegetariana Inglesa sobre como a alimentação livre

de carne preocupa-se com a ética, não com a saúde, logo surgiram questões sobre o manejo

de galinhas poedeiras e vacas leiteiras, que dividiram opiniões. Eis que, em 1944, Donald

Watson inventou o termo vegan para se referir a quem não consome nenhum alimento de

origem animal. Watson e Elsie Shrigley fundaram a Sociedade Vegana com o objetivo de

cessar a cultura de abusos contra animais não humanos. A Sociedade Vegana define o

veganismo como “uma filosofia e modo de vida que procura excluir - na medida do possível

e praticável - todas as formas de exploração e crueldade de animais para alimentação,

vestuário ou qualquer outro propósito”.

Apesar de a luta pela causa animal ter como principal proposta um tratamento ético

com animais não humanos, a criação de animais para exploração e consumo é um ponto-

chave na contaminação do meio-ambiente e da nossa saúde. Como comprovam as pesquisas

2 A história do veganismo, por David Arioch em artigo para a Agência de Notícias de Direitos Animais (ANDA). Disponível

em: <https://www.anda.jor.br/2017/05/historia-do-veganismo/>

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científicas do Comitê de Médicos por uma Medicina Responsável3 e do livro The China

Study4, uma dieta alimentar abolicionista é mais saudável e eficaz na prevenção de doenças.

Embora seja comum a convicção de que humanos submetem animais não humanos à

essas condições porque são mais inteligentes, este poder não oprime humanos com

dificuldades cognitivas, por exemplo, apenas membros de outras espécies, em diferentes

níveis, medidos a partir do interesse na doma de cada espécie. A essa discriminação de

espécies é dado o nome de especismo seletivo. A própria humanidade criou o regime da razão

e se coloca acima do bem e do mal quando permite o sacrifício de outros seres sencientes5

sem necessidade. A esta forma de discriminação é dado o nome de especismo elitista.6 Se

todas as espécies habitam o mesmo planeta, por que só algumas merecem o direito à vida,

liberdade e autonomia? Não precisamos da força de trabalho animal, de alimentos de origem

animal ou usá-los em experimentações.

A exploração animal já era antiga quando Richard Ryder usou pela primeira vez a

palavra speciesism (especismo), na década de 1970, na Inglaterra, para dar nome a um

conceito fundamental da ética animalista7. Na filosofia tradicional, Aristóteles defendia que,

por serem irracionais, os animais não tinham interesses próprios e esse pensamento se

arrastou historicamente. Anos depois, o filósofo Descartes argumentou que a ausência de

pensamento nos animais significava que não tinham alma e não sentiam dor.

Na Modernidade, o homem usou a ciência para conhecer o mundo, distinguiu as

espécies animais e vegetais e posicionou-se acima delas, guiado pelo pensamento

antropocêntrico. Esta mesma ciência descobriu a senciência dos animais. Acreditava-se que o

neocórtex, a parte do cérebro mais recente no processo evolutivo e presente somente em

humanos, era responsável pelas emoções e sentimentos, mas a Declaração de Cambridge

sobre a Consciência Animal, escrita pelo neurocientista Philip Low e editada por Jaak

Panksepp, Diana Reiss, David Edelman, Bruno Van Swinderen, Philip Low e Christof Koch

provou não apenas que eles são capazes de sentir, mas que também são conscientes.

3 Os médicos do Comitê de Médicos por uma Medicina Responsável (PCRM) Dr. Neal Barnard, Dr. Caldwell Esselstyn, Dr.

T. Colin Campbell e Dr. John McDougall, orientam seus pacientes numa dieta abolicionista que eles chamam de plant based

food. Barnard, McDougall e Esselstyn fazem este trabalho há quase 50 anos e já relacionaram a dieta animalizada a males

como o câncer, diabetes, obesidade e hipertensão (apesar do fator genético, estudos apontam que a epigenética exerce mais

influência no surgimento destas doenças). 4 Estudo feito pelo PhD T. Colin Campbell durante 20 anos que aponta uma correlação entre a dieta animal e as doenças de

65 condados rurais chineses. 5 Isso quer dizer que são sensíveis e conscientes, capazes de sentir dor e prazer, têm emoções e estão cientes de si. 6 As conceituações de especismo seletivo e elitista estão explicadas no livro Acertos Abolicionistas da pesquisadora Sônia

Felipe. 7 Coltro e Ferreira investigam o surgimento da ética animal na filosofia em seu artigo Especismo e a percepção dos animais

(2011).

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A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente

estados afetivos. Evidências convergentes indicam que animais não humanos têm

os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de

consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos

intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos

não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência.

Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras

criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos.

(LOW, 2012, p.2)

Quando a Declaração de Cambridge sobre a Consciência Animal foi escrita, o uso de

animais na alimentação já durava milênios, sustentado por crenças de necessidade e

superioridade evolutiva, desinformação sobre a produção de alimentos e dificuldade de

romper o status quo. Este sistema de crenças que exclui os animais da consideração moral é

especista. Apesar dos direitos garantidos pela Declaração Universal dos Direitos dos

Animais, proclamada pela UNESCO, na Bélgica, em 27 de Janeiro de 1978, a indústria

continua a todo vapor produzindo o máximo possível, com o menor custo, no menor espaço e

em menos tempo.

1.2 Ideologia especista

Crescemos numa sociedade tolerante a práticas abusivas com animais não humanos e

o veganismo é uma contravenção à essa regra. Embora a decisão de não pactuar com a

exploração animal seja transformadora por si só, pessoas preocupadas com a causa animal

muitas vezes assumem o papel de informar sobre as práticas da indústria e questionar

eticamente hábitos de consumo enraizados há gerações, buscando minimizar cada vez mais as

influências de uma ideologia especista naturalizada. Embora minoria, graças ao ativismo

animal o veganismo tem crescido quantitativamente e qualitativamente por ser cada vez mais

conhecido e reconhecido como um movimento político legítimo. Este ativismo, no entanto,

ocasionalmente é taxado como doutrinador, por combater princípios ideológicos comuns,

buscando revertê-los ou neutralizá-los.

Mesmo que muitas pessoas optem pelo vegetarianismo por questões de saúde,

imaginamos para essa pessoa certos princípios filosóficos, modos de enxergar o mundo e

reconhecemos nesta escolha uma postura contra-hegemônica. Mas embora o vegetarianismo

(ou veganismo) seja uma escolha, nem sempre o consumo de produtos de origem animal se

configura dessa forma, como explica a PhD em Psicologia Social, Melanie Joy.

Não vemos o ato de comer carne como vemos o vegetarianismo - como opção,

baseada num conjunto de pressupostos sobre os animais, sobre o nosso mundo e

sobre nós mesmos. Nós o vemos, em vez disso, como um dado, a coisa ‘natural’ a

fazer, o modo como as coisas sempre foram e o modo como as coisas sempre serão.

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Comemos animais sem pensar no que e por que estamos fazendo, pelo fato de o

sistema de crenças que está por trás desse comportamento ser invisível. Esse

sistema de crenças invisível é o carnismo. (JOY, 2014, p. 31)

Embora o termo “carnismo” soe pejorativo, o objetivo da pesquisadora com a criação

da palavra não era de ofender os hábitos de consumo onívoros, mas dar nome a uma

ideologia que exerce influência sem que nos demos conta e, uma vez batizada com uma

nomenclatura, podemos representá-la simbolicamente, entender como opera e nos proteger de

sua influência. Joy defende que o carnismo se sustenta através de uma mitologia que reafirma

que comer carne é normal, natural e necessário. Para ela, estas três justificativas

retroalimentam a ideologia carnista.

As normas nos mantêm em linha, mostrando os caminhos que devemos seguir e nos

ensinando como devemos ser para nos ajustar a eles. O caminho da norma é o

caminho do menor esforço; é a rota que tomamos quando estamos no piloto

automático e não percebemos sequer que estamos seguindo um curso de ação que

não escolhemos de maneira consciente. A maioria das pessoas que comem carne

não faz ideia de que estão se comportando de acordo com os dogmas de um sistema

que tem definido grande parte dos seus valores, preferências e comportamentos.

(JOY, 2014, p. 103)

Esta normalidade da dieta onívora é histórica e começou quando nossos ancestrais,

antes mesmo de desenvolver a agricultura, caçavam para se alimentar. A história de como

este consumo começou leva a crer que seja natural comer carne como parte da dieta da nossa

espécie, que se desenvolveu e terceirizou o predatismo para a indústria. De fato há verdade

neste argumento e podemos interpretar este consumo como natural (o que não significa que

seja), mas práticas como o homicídio e o estupro são pelo menos tão antigas quanto o

consumo de carne e não menos naturais. Para Joy, quando se trata de violência, precisamos

pensar, além do natural, no que é justificável.

Como as normas, muitos comportamentos naturalizados são construídos e não

deveríamos nos surpreender com o fato de serem construídos por aqueles que se

colocam no topo da ‘hierarquia natural’. A crença na superioridade biológica de

certos grupos tem sido usada há séculos para justificar a violência: os africanos

eram ‘naturalmente’ adequados à escravidão; os judeus eram ‘naturalmente’ maus e

destruiriam a Alemanha se não fossem erradicados; as mulheres ‘naturalmente’

destinadas a serem propriedade dos homens; os animais existem ‘naturalmente’ para

serem comidos por humanos. (JOY, 2014, p.105)

A distinção biológica não raramente é usada como justificativa para a dominação.

Especificamente no que diz respeito a doma de animais não humanos para a alimentação, o

mito de que comer carne é necessário está diretamente ligado à crença de que é natural,

afinal, se nosso organismo evoluiu para o consumo de carne, entende-se que foi por

necessidade biológica. Apesar de tudo, esse imperativo biológico é uma mentira, visto que a

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ciência já provou que não dependemos dos alimentos animalizados para sobreviver - nem

mesmo para garantir proteína.

Além dos mitos em torno da dieta onívora, a pesquisadora também defende que

existem questões que estão ligadas à percepção sobre os animais e sobre os alimentos. A

começar pela invisibilização dos processos da indústria, que não apenas omite as

barbaridades por trás da produção da nossa comida, mas estampa animais felizes nas

embalagens e propagandas, criando falsas realidades acerca das condições miseráveis em que

vivem os animais de corte e produção. Não que a população queira ver detalhes do genocídio

animal, mas ela deve pelo menos conhecer a origem da sua comida.

Esta distorção da realidade também se manifesta na maneira como percebemos os

animais. Enquanto atribuímos nomes a cães e gatos, identificamos suas personalidades e lhes

damos nomes, os animais da indústria são destituídos de qualquer singularidade. Acreditar

que todas as vacas, porcos, galinhas e peixes são iguais, indistintos, torna mais fácil a leitura

desses seres como objetos, coisas-vivas cujo único objetivo é servir de alimento. Por isso,

retornando ao início desse subtópico, acredito que é injusto taxar o veganismo de

doutrinador. Pelo contrário, o papel do ativismo animal é desvelar a cultura carnista que nos

induz ao desrespeito com as demais espécies animais.

1.3 Ativismo animal

A permissividade acerca da exploração de animais não humanos pela indústria

alimentícia é um fenômeno cultural e se auto-reproduz, visto que os valores compartilhados

podem ser convencionados e naturalizados. Por essa razão o veganismo se apresenta

principalmente como uma postura política que entra em disputa com a cultura hegemônica. A

exploração animal está no vestuário, na ciência, no entretenimento e principalmente na

comida, por isso a adoção de uma dieta vegetariana estrita é também um exercício político.

Como aponta pesquisador em Anderson Rodrigues8, “Para os vegetarianos, esse tipo de

alimentação está relacionada à saúde, ética e uma forma de posicionamento contra a cultura

predominante” (2012, p. 192). Em acordo com esse pensamento, a filósofa e doutora em

Ciência Política, Sônia Felipe, coloca:

Ouvi dizer, por todas as autoridades que me educaram até eu me tornar autônoma e

pensar por conta e risco, que eu tinha o direito, natural à minha espécie animal, de

tirar a vida de qualquer outro animal para servir aos meus propósitos. Quando

compreendi que os animais são indivíduos singulares e vulneráveis ao mal que lhes

podemos fazer, abdiquei de minha condição matadora e passei à de defensora deles,

8 Trecho retirado de sua dissertação de mestrado A construção da identidade social por meio do consumo vegetariano: um

estudo netnográfico.

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pela mesma razão pela qual defendo os direitos humanos fundamentais para todos

os indivíduos da espécie animal na qual me foi dado nascer. (FELIPE, 2014, p. 18)

Para disputar com a cultura hegemônica, cada vez mais ativistas trabalham para trazer

a público as atrocidades que a indústria faz em nosso nome e acionar nossa responsabilidade

enquanto consumidores. A organização People for the Ethical Treatment of Animals (PETA)

atua desde 1980 com ações de educação, investigação de maus tratos, resgate de animais e

organização de protestos. O Instituto Nina Rosa, que existe desde os anos 2000, além de

trabalhar com a educação humanitária também é responsável pela produção de uma série de

documentários relacionados à causa animal - entre eles, A Engrenagem (2012) e A Carne é

Fraca (2013).

Muitos pesquisadores estão estudando e publicando sobre os impactos do consumo de

carne e produtos de origem animal na saúde, no meio-ambiente e até mesmo nas relações

sociais, entre eles, autores como Peter Singer, Tom Regan, Sônia Felipe, Melanie Joy e Carol

J. Adams. Produzindo conteúdo jornalístico na internet, os sites da Agência de Notícias de

Direitos Animais (Anda) e o Vista-se informam sobre a causa animal e canais como o Fala

Vegan, Vegflix, Vegano Vitor, Carol Vida Vegan e Veddas ampliam a discussão sobre

veganismo no youtube. Muitos documentários feitos por ativistas também estão disponíveis

online para ajudar pessoas a “fazerem a conexão”, como sugere Terráqueos (2005),

documentário pioneiro em defesa dos direitos dos animais e até hoje um dos mais

emblemáticos.

Organizações Não-Governamentais também têm se destacado por investigar as

indústrias, como a Animal Equality e a Mercy for Animals. Nas ações os ativistas registram

com fotos e vídeos as condições às quais os animais são expostos para conscientização da

população. A ong Anonymous for the Voiceless, por outro lado, atua principalmente com

ativismo de rua onde os voluntários conversam com transeuntes sobre veganismo.

Um exemplo interessante de ativismo animal é a série fotográfica Ocultos, do

fotógrafo Hugo Fagundes, que faz campanha em prol do veganismo e buscam subverter a

lógica alimentar dominante, estimulando pessoas a pararem com o consumo de produtos de

origem animal, afinal, o próprio boicote à indústria da carne, leite, ovos e mel é uma forma de

ativismo com potencial para transformar a nossa realidade e a dos animais. Essa prática por si

só (o boicote) já contribui para desnaturalizar a exploração animal e superar o especismo à

medida que confronta os valores hegemônicos da nossa sociedade e rejeita a moralidade

especista.

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Figura 1: Foto da série Ocultos (2016) | Hugo Fagundes

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2. FOTOGRAFIA, ENGAJAMENTO E CONTEMPORANEIDADE

O discurso político por meio da fotografia não é nada novo e a fotografia se renovou

em diversos aspectos desde os primeiros sinais dessa prática. Para compreender melhor as

produções dos foto ativistas de hoje é interessante traçar uma retrospectiva histórica da

trajetória que precedeu o documentarismo contemporâneo. Muitas pessoas já produziram

discursos engajados em diversas causas por meio das imagens e cada época evidencia uma

conjuntura que norteia o pensamento fotográfico desse período.

2.1 O fotodocumentário e a transformação social

A fotografia documental, assim como o fotojornalismo, está a serviço da

representação do mundo. Uma foto muitas vezes transforma em imagem fatos e fenômenos

que o cidadão comum não poderia testemunhar senão através do registro fotográfico, no

entanto, diferentemente do fotojornalismo, a produção documental tem outro objetivo por

meio do testemunho. Um trabalho documental tem essencialmente uma preocupação com

transformação social. A leitura da realidade na imagem, além do objetivo de informar, tem o

objetivo de mudar as percepções e práticas da sociedade sobre determinada questão social e,

embora um trabalho fotojornalístico eventualmente também possa ter esse caráter, isso não

está em sua essência. (BONI, 2018)

Embora os principais usos da fotografia logo após seu surgimento em 1839 estejam

ligadas ao registro documental - e aqui o fotojornalismo está incluso, pois também inscreve a

fotografia como documento, prova do acontecimento - o gênero fotodocumental como

conhecemos hoje consolida-se por volta da década de 1930 e se diferencia do fotojornalismo

por representar a banalidade do cotidiano e apresentar figuras anônimas, como vendedores e

pessoas em situação de rua. Consagrado pela fotografia de denúncia e etnográfica, o

documental destoa do ineditismo característico da produção jornalística pelo seu caráter

atemporal e essas qualidades demarcaram o espaço desse gênero fotográfico.

Um dos precursores da fotografia documental, em 1877, J. John Thomson fotografou

as condições de vida de pessoas pobres em Londres na obra Street Life in London com o

objetivo de despertar a consciência social da elite londrina. As fotos acompanhavam textos

explicativos descrevendo como viviam os fotografados, mas Thomson parece cuidadoso ao

evitar transparecer fraqueza ou fragilidade nas imagens.

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Figura 2: The Independent Bootblack (1877) | John Thomson

Outro fotógrafo dessa corrente é Jacob Riis que, graças à profissão de repórter, esteve

exposto à pobreza e à violência com que vivia grande parte da população nova-iorquina. Em

sua obra How the other half lives (1890), as fotografias de Riis expõem as condições de vida

nos guetos da cidade com crueza e as imagens ilustravam artigos que o próprio Riis escrevia

para denunciar a degradação humana.

Figura 3: Lodgers in a Crowded Bayard Street Tenement (1888) | Jacob Riis

Um conjunto de elementos permitiram que esse gênero fotográfico se desenvolvesse

nesse período. Além dos avanços tecnológicos que tornaram as câmeras mais portáteis, com

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menor tempo de exposição e permitiram a popularização da fotografia, no começo do século

XX, a antropologia surge enquanto ciência e os olhares se voltam para as questões da

humanidade. Sobretudo neste período surge uma vertente da fotografia moderna que se

opunha ao pictorialismo e buscava na objetividade fotográfica uma estética própria da

fotografia. O movimento da fotografia direta (straight photography, em inglês) explora o

realismo, a nitidez, a perspectiva e a profundidade nas imagens e essa corrente influenciou

fotodocumentaristas no mundo todo.

Um dos maiores expoentes desse gênero, considerado um dos pais do

fotodocumentarismo, Lewis Hine começou a fotografar questões sociais quando trabalhou

como freelancer na National Child Labor Committee (NCLC), fundação de apoio a crianças

vítimas de exploração de trabalho. Hine documentou entre 1908 e 1918 o trabalho de crianças

nas ruas, em lojas, nas indústrias e no campo para denunciar o trabalho infantil que mantinha

as crianças longe das escolas. Naquela época a sociedade industrial crescia a todo vapor, mas

não havia legislação que protegesse as crianças. Esse trabalho chocou a sociedade com a

realidade insalubre das fábricas, que começaram a crescer mais limpas, seguras e, em sua

maioria, passaram a empregar apenas maiores de 14 anos. A fotografia reformista de Hine

contribuiu para mudar as leis trabalhistas nos Estados Unidos e a condição de vida de

milhares de pessoas através de imagens, além de tudo, belas.9

Figura 4: Sadie Pfeifer, a Cotton Mill Spinner, Lancaster, South Carolina (1908) | Lewis Hine

9 O gênero documental e as trajetórias dos fotógrafos de compromisso social são objeto de estudo no artigo O nascimento do

fotodocumentarismo de denúncia social e seu uso como “meio” para transformações na sociedade, do pesquisador Paulo

César Boni.

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A fotografia engajada cresce enquanto gênero e ganha notoriedade. Depois da Crise

de 1929 nos Estados Unidos, por exemplo, foi criada a Farm Security Administration (FSA),

um organismo do governo encarregado de estudar e procurar soluções para os problemas da

população rural do país, e dentro do projeto havia um departamento encarregado de registrar

as condições de vida das pessoas durante a Grande Depressão. Fotógrafos como Walker

Evans e Dorothea Lange não apenas ajudaram a justificar os investimentos nesse projeto, mas

despertaram a população estadunidense para a situação dos habitantes da zona rural e

produziram imagens emblemáticas de um período histórico.

Figura 5: Migrant Mother (1936) | Dorothea Lange

O caráter de índice da fotografia conferia credibilidade à imagem. A capacidade de

atestar a existência material do referente em determinado lugar e tempo, o registro do que foi,

como definiu Barthes, sustentou o poder de verdade da fotografia, sobretudo pela clareza com

que a objetiva traduzia a imagem a princípio sem manipulação das qualidades do objeto de

interesse. Durante o que Rouillé nomeou como regime da fotografia-documento percebe-se a

fotografia como “espelho da realidade” e essa ideia se enraizou no imaginário de quem

produzia e observava as imagens e ainda hoje há resquícios dessa convicção no inconsciente

coletivo.

Justamente por ocupar esse lugar de verdade no nosso imaginário, o Manifesto

Animal dedica uma série fotográfica para representar nossa percepção da realidade.

Sobretudo considerando que as fotos dos animais atravessam sua própria existência por meio

da fotografia, como testemunho da passagem daquela vida singular pelo planeta. Como

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tratado adiante, a fotografia contemporânea se permite recriar a realidade para representá-la

de forma tão legítima quanto o fotodocumentarismo moderno, porém este mantém uma

relação indicial com o fenômeno que busca convencer o leitor da veracidade das imagens que

abrem uma janela para que enxerguemos como vivem os animais da indústria.

2.2 A fotografia na contemporaneidade

A partir do pós-guerra é possível observar uma tendência dos documentaristas por

buscar novas formas de representação na fotografia. O trabalho de Robert Frank pode ser

considerado um marco dessa transição. Na obra The Americans (1958) o fotógrafo se recusa a

buscar flagrantes e momentos emblemáticos, investindo na banalidade do cotidiano através

de pontos de vista não-convencionais. A partir desse período, a fotografia começou a se

distanciar da herança ideológica de uma suposta objetividade e apostou na polissemia das

imagens.

Figura 6: Parade – Hoboken, New Jersey (1955) | Robert Frank

Num processo de ruptura com o tripé da verdade, objetividade e credibilidade, valores

que nutriram o pensamento fotográfico em contraponto com as artes plásticas, a fotografia

contemporânea questiona a si mesma e seu poder de verdade. A fotografia moderna supunha

que fosse capaz de revelar a realidade das coisas baseada na negação da escrita fotográfica e

do papel da autoria, porém Robert Frank se expõe na imagem de maneira plenamente

assumida, permitindo que sua subjetividade interfira na fotografia.

A postura de Robert Frank colabora para enfraquecer o dispositivo platônico da

fotografia. Na medida em que Frank não mostra sem se mostrar, ele insere a força

de um “eu” entre a coisa (o referente) e a imagem. A onipresença do sujeito na

fotografia-expressão se opõe à rejeição da individualidade do operador pela

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fotografia-documento. (ROUILLÉ, 2009, p. 173)

Enquanto o programa da fotografia-documento busca constatar as verdades do mundo

através da materialidade, a fotografia-expressão compreende que as verdades são plurais e

não estão contidas nas formas. A Modernidade saturou nossos olhares buscando constatar

uma realidade pura que não dialoga com o mundo multicultural e desprovido de unidade em

que vivemos hoje. Desapegadas do referente, na contemporaneidade as imagens se dedicam a

representar simbolicamente sem a pretensão de capturar fielmente as qualidades que

pertencem ao fenômeno. A verdade se permite ser reinventada ou forjada a partir de

elementos intrínsecos à linguagem. “O projeto contemporâneo pretende desprender-se desse

real, afirmando justamente sua vocação para transformá-lo”. (ENTLER, 2009, p. 6)

É bem verdade que a fotografia já nasce com certa dualidade. Enquanto Daguerre

inicia uma escola fotográfica ligada à ciência, pensando na câmera como instrumento capaz

de produzir um registro técnico, o calótipo de Talbot constrói uma vertente ligada à arte e à

expressão do sujeito e de sua subjetividade. Devido o contexto histórico vivido na

Modernidade, a fotografia se consagra como espelho do real, como explica o pesquisador

André Rouillé ao conceituar o uso do que ele nomeia como fotografia-documento. Segundo o

autor, a crença no verdadeiro fotográfico se sustenta a princípio nas capacidades analógicas

dos sistemas ótico e de impressão, caracterizados por processos físicos e químicos, que

compreendem o próprio procedimento de produção da imagem como verdadeiro.

Esse pensamento se sustenta pelo sistema de produção da sociedade industrial, que

enxergavam na fotografia uma imagem sem autoria capaz de imitar a percepção do olho

humano. Embora a verossimilhança da imagem fotográfica lhe confira credibilidade, para

Rouillé a fotografia-documento não está presa a esse uso apenas por questões econômicas e

técnicas, mas também teóricas. Ao criticar o culto ao referente na obra de Barthes, Rouillé

reivindica outras possibilidades para a fotografia. “A fotografia não representa o real e nem

deve fazê-lo. Ela fabrica o mundo”. (ROUILLÉ, 2009, p. 71)

Com a passagem da sociedade industrial para a sociedade da informação, a fotografia-

documento encontra concorrência em novas tecnologias na tarefa de representar o mundo. A

televisão, o satélite e as redes digitais se apresentam como mais sofisticadas e rápidas para os

setores da economia, restringindo o uso da imagem fotográfica. Por outro lado, livre das

amarras da verdade, objetividade e credibilidade, a fotografia contemporânea se permite

explorar sua capacidade expressiva.

A equivalência sem brechas entre as imagens e as coisas apoiava-se em uma tripla

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negação: a da subjetividade do fotógrafo; a das relações sociais ou subjetivas com

os modelos e as coisas; e a da escrita fotográfica. É o inverso desses elementos que

caracteriza com exatidão a fotografia-expressão: o elogio da forma, a afirmação da

individualidade do fotógrafo e o dialogismo com os modelos são seus traços

principais. A escrita, o autor, o outro: para uma nova maneira de documento.

(ROUILLÉ, 2009, p. 161)

Para a pesquisadora Susana Dobal isso não representa necessariamente uma escolha

pela ficção na fotografia, mas um reconhecimento de que toda representação de realidades

tem um lado fictício, afinal, nenhuma representação substitui o real, todas são reinvenções do

real. “Em cenário bem mais fluido, a fotografia perdeu o status de verdade última mas

ganhou a possibilidade de revelar verdades múltiplas e provisórias”. (DOBAL, 2012, p. 2) A

imagem começa a ser reconhecida como um espaço para concretizar o imaginário daquele

que a produz e a relação analógica com o visível deixa de ser prioridade.

Embora a expressão ocupe certa centralidade nesse fazer fotográfico, o

contemporâneo rompe com a dicotomia entre real e fictício, como explica Rouillé: “Na

realidade, a fotografia é, ao mesmo tempo e sempre, ciência e arte, registro e enunciado,

índice e ícone, referência e composição, aqui e lá, atual e virtual, documento e expressão,

função e sensação”. (2009, p. 197) A prática de construir sentido na imagem deliberadamente

surge na busca por novas formas de representar o mundo e suas questões. Admitir a escrita

fotográfica como parte fundamental da significação da imagem sem presumir que isso a

distancie da realidade.

A escrita (a maneira, o estilo) produz sentido; essa é a lógica da fotografía-

expressão, oposta à da fotografia-documento, que acredita que o sentido já está

presente nas coisas e nos estados de coisas e que sua tarefa é extraí-lo das

aparências. Produzir ou registrar? De um lado, o sentido seria apenas desalojado e

registrado; do outro, ele é produto de um trabalho formal no cruzamento da imagem

com o real. (ROUILLÉ, 2009, p. 168)

No trabalho Cracolândia o repórter-fotográfico Felipe Dana elabora uma série de

retratos de usuários(as) de crack no Rio de Janeiro e busca representar a realidade dessas

pessoas sem o estigma da vulnerabilidade. Comumente associados à condição de viciados em

drogas, ao colocar um fundo branco atrás dos modelos e descolá-los do ambiente - a própria

Cracolândia - valoriza-se a identidade de cada pessoa, sua singularidade. Por meio de uma

escrita fotográfica simples e poderosa, o fotógrafo transforma a realidade para que possamos

conhecê-la.

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Figuras 7 e 8: Fotos do projeto Cracolândia (2005) | Felipe Dana

Sobretudo esse novo fazer fotográfico também se alimentou de pesquisas acadêmicas

que lhe permitiram renovar estética e conceitualmente. Como aponta Dobal, essa fotografia

investe no simbólico em detrimento do flagrante; explora momentos indefinidos em

contraposição ao instante decisivo de Cartier-Bresson; busca pontos de vista múltiplos ao

invés da posição privilegiada pelo ângulo perfeito; no lugar do instantâneo, exercita a

encenação e perde o pudor na manipulação de imagens. Sobretudo após os estudos de Freud

sobre o inconsciente, que despontaram em meados do século XX, a fotografia se permitiu

olhar para dentro. “Cada momento da História vê nascer modos de expressão artística

particulares, correspondendo ao caráter político, às maneiras de pensar e aos gostos da

época”. (FREUND apud LOMBARDI, 2008, p. 39) Essa fotografia permeada pela

subjetividade é conceituada pela pesquisadora Kátia Lombardi como Documentário

Imaginário. O termo “imaginário” diz respeito à faculdade dos sonhos, desejos,

subjetividades e criatividade.

O Documentário Imaginário comunga com a teoria do imaginal10 à medida

que é dotado de uma faculdade criadora, aberta à dimensão relacional, e ao

compartilhamento intersubjetivo, no qual dimensões oníricas e poéticas

arraigadas nas lembranças e nos sonhos emergem do imaginário do

fotógrafo. (LOMBARDI, 2008, p. 45)

Esse distanciamento da fotografia essencialmente ligada ao referente permitiu que a

fotografia documental ocupasse galerias, museus, revistas, livros de arte e espaços com mais

possibilidades de experimentação. No projeto Paisagens Submersas, por exemplo, João

Castilho, Pedro Motta e Pedro David constroem suas próprias narrativas sobre o Vale do

Jequitinhonha (MG) antes de ser inundado para a construção da Usina Hidrelétrica de Irapé.

As imagens nem sempre apontam diretamente para o assunto de interesse e os estímulos

10 Conceito desenvolvido por Durand na obra O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. (2004)

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visuais partem de critérios subjetivos. A preocupação estética e deslocamento das relações

indiciais são perceptíveis na produção de cada um que, para tratar da inundação de uma

comunidade, não trazem sequer o elemento água de maneira objetiva e fazem analogias sutis

à submersão desta paisagem.

Figura 9: Foto do projeto Paisagem Submersa (2002-2007) | João Castilho

Figura 10: Foto do projeto Paisagem Submersa (2002-2007) | Pedro Motta

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Figura 11: Foto do projeto Paisagem Submersa (2002-2007) | Pedro David

Para a produção de sentido, os fotógrafos exploram formas, cores, movimentos e

constróem relações que buscam ressignificar estes elementos. Esse exercício de

ressignificação também está presente na alegoria, que se apropria de fragmentos de

linguagem para montar um mosaico semântico. As alegorias exprimem de forma concreta

uma ideia abstrata e materializam na imagem elementos carregados de sentido (significantes

escolhidos de forma arbitrária) para compor uma narrativa.

Diferentemente de uma representação literária, que conta apenas com as letras

maiúsculas para definir uma personificação, a linguagem plástica alegórica utiliza

adereços que completam a identificação de cada personagem. Assim, uma intenção

alegórica é auxiliada por elementos secundários, que identificam cada personagem,

diferenciando-as e ao mesmo tempo contribuindo para a construção de um impacto

visual. Não seria possível reconhecer a representação da alegoria da Liberdade ou

da Justiça sem que lhes tivessem sido incorporados os adereços que tornassem

reconhecíveis os seus atributos. Os olhos vendados, a balança, a espada falam da

imparcialidade, do equilíbrio e da firmeza da justiça como se fossem um texto

visual que obrigasse a uma leitura. (SOUKI, 2006, p. 94)

Segundo Souki, a alegoria ajuda a representar simbolicamente os fenômenos e sua

potência expressiva está justamente em sua arbitrariedade e provisoriedade, capaz de dialogar

com uma humanidade oscilante em um tempo fluido. Com o fim da Modernidade e a crise da

fotografia indicial, busca-se novas formas de produzir sentido e, assim como ocorreu após o

Romantismo, a alegoria surge como uma estratégia para superar uma crise de representação.

Diferentemente da metáfora e do que propunha a estética da transparência, a alegoria

não se baseia na similaridade. O sentido da alegoria se apóia no próprio significante e pode

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ser alterado a cada releitura, requalificando elementos a partir da combinação entre eles e do

contexto em que estão inseridos. Não é pretensão da alegoria impor um sentido. Embora ela

dependa de escolhas arbitrárias na sua gramática, essa arbitrariedade não se configura como

na linguagem simbólica, onde os significados estão convencionados ao significante. Os

fragmentos que compõem uma alegoria são sintetizados pela subjetividade de cada leitor e

por isso a alegoria não impõe limites interpretativos.

Por se tratar de um fenômeno imaterial e naturalizado, lançar um novo olhar sobre a

nossa cultura alimentar por meio da alegoria se apresenta como uma alternativa interessante

para discutir o especismo. As alegorias são caras para o Manifesto Animal por sua

capacidade de construir uma realidade difícil de representar simbolicamente. Através dessa

figura de linguagem podemos explorar o potencial expressivo da fotografia e sugerir novas

leituras sobre o tema.

Além das alegorias, algumas imagens encenadas se inspiram na fotografia publicitária

no que diz respeito à poética e à estética. Assim como numa campanha publicitária, essas

fotos buscam transmitir um conceito, ideal ou estilo de vida, embora não estejam associadas a

marcas ou instituições com fins comerciais. Essas fotos de certa forma subvertem as

propagandas de alimentos de origem animal à medida que, diferentemente da publicidade,

evidenciam o produto e criam uma atmosfera para dissuadir o seu consumo.

Representar os animais inseridos na lógica da indústria atualiza nosso olhar sobre os

produtos de origem animal, normalmente associados pela publicidade a imagens de animais

felizes. A lógica da similaridade aqui, diferentemente da alegoria, confere qualidades ao

fenômeno como numa metáfora.

No trabalho The real story of the Superheroes, por exemplo, a fotógrafa mexicana

Dulce Pinzón se apropria das figuras de personagens icônicos dos quadrinhos para refletir a

condição dos imigrantes mexicanos em Nova Iorque. Seguindo as tendências da fotografia

contemporânea, Pinzón encena brilhantemente uma jornada de trabalho onde os trabalhadores

são super-heróis norte-americanos e valoriza a importância dessas pessoas na economia

estadunidense.

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Figuras 12 e 13: Fotos do projeto The real story of the Superheroes (2012) | Dulce Pinzón

O percurso da história da fotografia inspirou o Manifesto Animal a transferir para

nossa cultura alimentar tensionamentos sobre as noções de verdade que já existiam dentro da

fotografia. Sobretudo, no que diz respeito a prática fotodocumental como estratégia para

transformação da realidade, conhecer diferentes produções deste gênero é extremamente caro

para compreender as potencialidades desse fazer fotográfico.

2.3 Foto ativismo em diferentes causas

O uso da fotografia como meio de transformação social surge principalmente

dedicado à luta de classes, mas os movimentos em favor de minorias representativas têm

crescido exponencialmente e, é claro, a fotografia não está de fora disso. Reuni aqui trabalhos

contemporâneos desenvolvidos dentro dessa vertente fotográfica que inspiram a produção de

discursos políticos por meio das imagens.

● Cláudia Andujar é suíça e ativista conhecida principalmente por seu trabalho

documental com os índios yanomami na Amazônia. Naturalizada brasileira,

ela acompanhou a tribo por sete anos e suas fotografias têm intimidade.

Andujar lutou ao lado dos indígenas pela demarcação dos territórios

yanomami, conquistada em 1992.

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Figuras 14 e 15: Fotos dos índios yanomami (1971-1978) | Cláudia Andujar

● Adeloyá Magnoni é foto ativista e em seu trabalho Cores e Flores para Tita a

fotógrafa de Salvador homenageia a diversidade de identidades de gênero e

sexualidade. A fotógrafa também atua no combate ao preconceito étnico e

afro-religioso.

Figuras 16 e 17: Foto do projeto Cores e Flores para Tita (2017) | Adeloyá Magnoni

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Figuras 18 e 19: Fotos de Oxalá e Oxum, respectivamente (2018) | Adeloyá Magnoni

● Jon Amad é fotógrafo brasileiro e trabalhou para a ONG espanhola Igualdad

Animal investigando indústrias para fotografar e denunciar os abusos contra

animais. O ativista já registrou maus tratos ao redor do mundo em diversos

segmentos.

Figuras 20 e 21: Fotos em tourada e zoológico na Espanha (2012) | Jon Amad

● O ensaio fotográfico The Hidden Death, produzido pelo fotógrafo italiano

Tommaso Ausili também busca trazer à tona a discussão acerca da questão

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animal. Como o próprio título sugere, a intenção do autor é desvelar uma

morte que acontece às escondidas e, apesar de às vezes repulsivas, as imagens

não perdem o apuro estético.

Figuras 22 e 23: Fotos do projeto The Hidden Death (2010) | Tommaso Ausili

2.4 Zines e ativismo

Supõe-se que os precursores da zine surgiram nos Estados Unidos nos anos 1930, para

divulgar a produção literárias de poetas da época, mas tudo indica que as zines como

conhecemos hoje aparecem apenas no final da década de 1970, com o movimento punk na

Inglaterra. (MALTZ, 2018) Por se tratar de uma publicação independente que resiste à

inserção no mercado editorial formal, a zine é amplamente utilizada como canal de expressão

pessoal.

Normalmente xerocados, frequentemente irreverentes e usualmente direcionados a

nichos muito específicos, as zines se consagram por sua liberdade gráfica e editorial, fácil

circulação e baixo custo. Na realidade da maioria das zines o preço dessa independência é a

falta de apoio e financiamento (embora não uma regra) e por isso não raramente os próprios

editores se encarregam de todas as etapas do processo, da criação à distribuição. A

concentração de funções, autonomia editorial e limitação de recursos também se refletem na

seriação das zines.

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Por ser um trabalho tão prazeroso quanto desgastante, os fanzines são absolutamente

inconstantes, não têm prazos para sair, variam sempre o número de páginas e de

exemplares por edição. Não existem regras para sua edição, pois dependem da

disponibilidade, do orçamento e do interesse de cada editor. (MAGALHÃES, 1993,

p.11)

A publicação de zines pode ter fins lucrativos, mas é principalmente impulsionada

pelo desejo de se expressar sobre um ideal, um tema ou uma prática artística-comunicacional

(CAVALCANTE, 2018), de modo que o lucro não é a principal motivação. As zines estão

em diversos segmentos, especialmente artísticos e políticos, e têm liberdade para

experimentar sem a censura do mercado. Tanto quem produz quanto quem consome busca

encontrar nas zines um conteúdo de pensamento livre.

Pela viabilidade de produção e publicação, muitos consumidores de zines também

são zineiros(as) circulando suas ideias e produções artísticas como poesias, músicas,

desenhos, colagens, fotografias e quadrinhos. “Geralmente, o que leva uma pessoa a editar

um fanzine é fazer parte do outro lado da notícia: passar de receptor para emissor [...] a

vontade de dizer, questionar, reclamar e elogiar geralmente está presente nos fanzines” (SNO,

2007, p. 10). As zines são ferramentas potentes na democratização da comunicação e seu

caráter emancipatório dialoga muito bem com causas políticas.

Analise um ativista e você está apto a encontrar um fã. Não é nenhum mistério o

porquê: o fandom fornece um espaço para explorar mundos fabricados que operam de

acordo com diferentes normas, leis e estruturas do que aquelas que experienciamos em

nossas vidas "reais". O fandom também necessita de relacionamentos com outros: fãs

companheiros com os quais compartilhar interesses, desenvolver redes e instituições e

criar uma cultura comum. Essa capacidade de imaginar alternativas e construir

comunidade, não por coincidência, é um pré-requisito básico para o ativismo político.

(DUNCOMBE, 2012)

O cenário de zines permite que várias vozes se expressam sem mediação, ecoando em

suas comunidades ou formando comunidades, fortalecendo vínculos para contestar e disputar

espaço com os discursos hegemônicos. Pode-se definir a zine como um meio de comunicação

independente que permite que qualquer um manifeste suas ideias e interesses, normalmente

devido a falta de identificação com a cultura mainstream. Como aponta Magalhães, “o

fanzine não passa de uma revista marginal” (1993, p. 12). Essencialmente ligada à

contracultura, a zine se consolida principalmente pelo discurso em torno do seu modo de

produção.

Com um zine em mãos, como não faz sentido louvar a excelência dos

materiais, o primor da ampliação fotográfica, a artesania da encadernação, o

observador precisa buscar valor em outro lugar – talvez na ideia que

motivou a edição. A “estética do precário” é indissociável de uma política e

uma ideologia que compreendem as formas de distribuição e circulação

como inerentes à própria obra. (MALTZ, 2018)

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É claro que a “estética do precário” não é uma regra, afinal, não há regras para a

estética das zines. Podemos encontrar publicações desse formato com acabamentos

cuidadosos e impressões em papéis especiais que não descaracterizam sua personalidade

irresignada. No que diz respeito à fotografia, as zines são um forte meio de divulgação de

artistas independentes e, desde que entraram no leque de possibilidades das publicações

fotográficas, têm ganhado cada vez mais espaço, como aponta o fotógrafo Rony Maltz em

artigo escrito para a Revista Zum. “Apropriado por autores com bagagens e pautas diversas,

hoje o formato zine é onipresente em eventos e novos espaços comerciais dedicados aos

livros de fotografia no mundo inteiro. Mas o DNA de inconformidade e independência

editorial permanece presente.” (2018) Isso acontece porque atualmente as zines se

apresentam como uma alternativa para a democratização da circulação de imagens

fotográficas, sobretudo num contexto de capilarização da produção fotográfica e

popularização do seu consumo.

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3. MANIFESTO ANIMAL

3.1 Idealização

A escolha do tema se deu pelo meu interesse em ativismo. Costumo dizer que me

tornar vegano mudou mais a minha percepção sobre o mundo do que a minha dieta e,

enquanto fotógrafo, sentia que precisava materializar essa visão de mundo em imagens.

Desde que comecei a fotografar, em 2015, quando entrei no Labfoto, cobri eventos,

espetáculos, pautas de fotojornalismo, mas não produzi sequer um trabalho sobre a causa

animal, embora já fosse vegetariano na época. Quando fiz a transição para o veganismo não

conhecia muitas pessoas veganas e precisei buscar muita informação sozinho para responder

às minhas perguntas. A necessidade de compartilhar minhas descobertas com mais pessoas,

sobretudo enquanto jornalista, se dá por acreditar que informar sobre alimentação, saúde e

meio-ambiente é de utilidade pública. Por isso, criar uma ferramenta de ativismo animal é, ao

mesmo tempo, um exercício profissional e uma realização pessoal.

A princípio planejei fazer um ensaio fotográfico discutindo a exploração animal em

diversos segmentos, como vestuário e transporte, mas graças aos conselhos do meu

orientador percebi que isso tomaria muito tempo e trabalho. Decidimos fazer um recorte no

uso de animais para alimentação para poder concentrar melhor nossos esforços e porque é

mais eficaz dialogar sobre aquilo que as pessoas têm autonomia para mudar, diferentemente

da exploração animal na ciência ou entretenimento, por exemplo.

Na minha experiência como ativista de rua nunca conversei com alguém que

conhecesse o termo especismo e para combater essa opressão é preciso tomar consciência

dela, por isso esse é um ponto-chave nas propostas das fotos. Queria fazer um trabalho

fotodocumental, já que tenho mais aptidão com fotojornalismo e os dois gêneros dialogam

em certos aspectos, mas os conselhos de Dudu Assunção (amigo do Labfoto) me fizeram

abrir os horizontes. Percebi que a fotografia é utilizada pelo ativismo principalmente como

documento, testemunho da escravidão animal para alimentação, e acredito que essas imagens

cumprem um papel importante na luta pela libertação animal, mas notei que havia muito

potencial a ser explorado através da encenação. O uso da alegoria, por exemplo, além de ser

um exercício conotativo permite interpretações plurais.

Com a fotografia eu podia expressar a naturalização do especismo através da

representação da realidade tangível e criar realidades que pudessem deslocar o olhar da nossa

cultura. De um lado, a fotografia denunciando a realidade, do outro, construindo novos

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mundos que ajudam a olhar para dentro. Posteriormente, reli um texto do antropólogo e

filósofo belga Lévi-Strauss em que ele discorre sobre como a nossa natureza e cultura

coexistem tão intimamente relacionadas que às vezes é difícil distinguir o comportamento

natural e social. Segundo o próprio antropólogo, teríamos domesticado a nós mesmos e não

seríamos capazes de retroceder a um estágio pré-cultural onde apenas nosso comportamento

natural se manifesta.

Segundo o próprio Lévi-Strauss, o comportamento natural é universal, caracterizado

por uma herança biológica, enquanto o comportamento social se configura pela norma,

tradição de um povo. No que diz respeito à alimentação, a ciência já provou que nosso

organismo não precisa de produtos de origem animal, o que indica que esse comportamento

seria, a priori, cultural - assim como a exploração animal para transporte, vestimenta, etc - ou

seja, uma conduta que se aprende de fora pra dentro.

Quis levar essa dualidade entre natureza e cultura que se apresenta no comportamento

alimentar da nossa espécie para a fotografia e planejei um ensaio híbrido que combinasse

diferentes gêneros fotográficos para tensionar os fatos e ficções da nossa cultura de consumo

e a autenticidade do nosso comportamento natural na relação com animais não humanos. A

produção fotojornalística e fotodocumental compartilham a mesma trama que imagens

alegóricas e encenações esteticamente emprestadas da publicidade buscando principalmente

provocar o modo de ver o uso de animais não humanos para a alimentação. Mesclar tantos

gêneros também é representativo para esta etapa de conclusão do curso, visto que em minha

trajetória no Programa de Formação do Labfoto exercitei diferentes fazeres fotográficos.

Desde o início sabia que esse ensaio fotográfico provavelmente seria um contato

inicial com a causa animal para a maioria das pessoas. Graças à Anonymous for the

Voiceless, ONG na qual sou voluntário, tive muitas oportunidades de conversar com pessoas

sobre veganismo e definitivamente a maioria não conhece as pautas do movimento, as

condições em que vivem os animais ou as implicações do consumo desses animais e de seus

produtos. Nas conversas de ativismo de rua não espero que acreditem em tudo que digo, mas

quero pelo menos intrigar e indicar um caminho. Do mesmo modo, neste ensaio fotográfico

pretendo excitar a curiosidade e expressar meu ponto de vista.

Estimo que público ideal para o Manifesto Animal tem entre 18 e 30 anos de idade,

porque quando faço ativismo de rua percebo que os mais jovens estão mais abertos aos

princípios do veganismo. Também acredito que a zine dialoga melhor com as classes A, B e

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C por motivos econômicos, que facilitam a transição alimentar, e questões de acesso à

informação, que também favorecem a transição.

3.2 Produção

Comecei a fotografar antes de saber qual seria o formato da publicação. Tinha a

possibilidade de imprimir um fotolivro com a Digipix, que presenteou os monitores do

Labfoto com um desconto, mas sabia que esse formato só serviria para a banca, uma vez que

meu objetivo com o projeto era de circular as imagens e difundir as propostas do veganismo.

Sabia que o trabalho fotográfico teria centralidade no discurso, mas intuía que para lidar com

a questão da falta de informação o texto seria uma ferramenta necessária, especialmente

porque as fotos se propunham a questionar, mas como ainda não tinha definido um formato

me dediquei apenas ao trabalho fotográfico. Os equipamentos utilizados foram próprios e do

Labfoto.

Fiz desenhos das fotos que queria montar e listas de lugares que para visitar,

contando que as próprias imagens ajudassem a traçar a narrativa e, à medida que ia

produzindo as fotos, ensaiava possibilidades narrativas que eram discutidas e sempre

aperfeiçoadas no processo de orientação. Partindo da ideia de um ensaio híbrido, dividi as

fotos em dois grupos. As imagens factuais apontam para a naturalização do especismo através

da observação do consumo, comércio e cativeiro de animais, enquanto as encenadas

provocam nossa cultura de consumo por meio da humanização dos animais e de sua

representação dentro da lógica de consumo. Mesmo tendo planejado determinadas fotos, os

espaços e situações também proporcionam imagens que tentava inserir à narrativa

organicamente.

Para a série de fotos factuais visitei mercados, açougues, feiras livres e fazendas, por

exemplo, às vezes mais de uma vez. Fui ao mesmo açougue três vezes até conseguir

acompanhar o descarregamento das peças do frigorífico e também voltei na Feira de São

Joaquim para visitar outras alas e exercitar meu olhar com mais familiaridade. Sempre me

identificava como estudante de jornalismo e explicava que se tratava de um trabalho para a

universidade, omitindo a natureza desse trabalho quando possível e mentindo quando

necessário. Em certos momentos a alusão à violência contra animais me deixava

desconfortável, como quando visitei a criação de porcos em Quingoma.

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Figuras 24 e 25: Fotos do projeto Manifesto Animal | Matheus Buranelli

No que diz respeito às fotos encenadas, as dificuldades foram muitas, afinal tinha

menos familiaridade com a fotografia de estúdio. Um dos primeiros desafios foi encontrar

modelos e alinhar nossas disponibilidades. No final das contas, os modelos se resumiram a

pessoas veganas e amigos pessoais que compraram o compromisso com a causa. Outro

empecilho tão limitante quanto desafiador foi o quesito maquiagem. Na produção das fotos

não usaria maquiagens testadas em animais ou com ingredientes de origem animal e, depois

de algumas experimentações com maquiagens veganas e tintas a base de alimentos, a tinta

guache surge como um recurso interessante para construir sentido por meio da pintura

corporal.

Estas fotos também envolveram mais custos do que as da série factual. Consegui

material emprestado de amigos e também do Centro Técnico do Teatro Castro Alves, mas

para a foto da Vaca Divina, por exemplo, precisei comprar acessórios, tecidos, cola, entre

outras coisas. Outra foto que gerou bastante custo foi a do matadouro abandonado, que

envolveu uma viagem até Quijingue, no interior da Bahia. Por inexperiência, não contabilizei

os custos, mas reaproveitei tudo o que pude, como o tecido vermelho do matadouro e da

vaca.

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Figuras 26 e 27: Fotos do projeto Manifesto Animal | Matheus Buranelli

Experimentando a diagramação no formato de fotolivro, pedi a opinião de Gabrielle

Guido (também amiga do Labfoto), que sugeriu fazer uma zine. Por se tratar de uma

publicação independente, de fácil circulação e baixo custo, o formato se adequa perfeitamente

à proposta do projeto, de modo que a mudança foi fácil de ser executada. Apesar de ter

tomado essa decisão com o projeto já bastante encaminhado, a alteração certamente o tornou

mais consistente.

3.3 Edição

Por conta da heterogeneidade das fotos, que possuem propostas visuais muito

diferentes, a construção da narrativa foi um processo de muita discussão e reestruturação.

Durante as orientações debatemos sobre a possibilidade de criar um momento para as fotos

factuais refletirem a naturalização do especismo e, numa virada, apresentar uma série

encenada para questionar essa naturalização. No entanto, sem que me desse conta, planejei as

fotos de maneira pontual, sem elaborar como elas poderiam dialogar numa narrativa senão

pela própria temática. Talvez pela prática em fotojornalismo, trabalhei com a lógica da

imagem única e, apesar dos esforços do meu orientador, não me apliquei na construção de

uma narrativa harmônica.

Para mim, o conflito constante entre as duas séries produziam um efeito valioso.

Enquanto uma série reflete a naturalização do especismo, portanto, o olhar para fora, a outra

provoca essa naturalização de modo que sugere um olhar para dentro e, na minha perspectiva,

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o movimento de troca de olhares repetidamente era muito interessante na construção do

sentido que esperava com a publicação. A pluralidade de pontos de vista é, para Rouillé, a

“expressão de um mundo de fragmentos desprovido de unidade lógica e de totalidade

orgânica" (2009, p. 164-5) e o caos produzido pelo coexistência dessas percepções de mundo

são um sintoma de uma sociedade pós-moderna.

Organizei a narrativa das fotos em quatro capítulos (animais marinhos, aves, porcos e

bovinos) por questões plásticas e discursivas. Além de frequentemente terem em comum os

mesmos elementos, cores, situações e corpos, cada capítulo também reflete questões

específicas de cada espécie, como o surgimento das chamadas zonas-mortas (regiões onde

não existe mais vida marinha), que dialoga apenas com a fauna aquática, e por esses motivos

o número de fotos em cada capítulo varia. Escolhi uma foto da série alegórica para abrir cada

capítulo porque essas foram imagens que concebi do zero e acredito que esse é o diferencial

do projeto, visto que não conheço outro ensaio sobre ativismo animal que explore o potencial

expressivo da fotografia dessa maneira. Para adequação à narrativa, já bastante heterogênea,

foram retiradas algumas fotos da seleção final.

Figura 28: Foto da zine Manifesto Animal | Matheus Buranelli

Contei com a colaboração de Paula Holanda, amiga da Facom, para diagramar a zine.

Ela se disponibilizou para me ajudar sem custo, colaborou com sugestões e esteve sempre

receptiva às orientações que dava a cada versão do produto - ao todo produzimos três

bonecas, duas delas foram impressas. No que diz respeito ao formato, o tamanho A5 foi

escolhido por ser fácil de transportar sem desvalorizar o tamanho das imagens, além de

economizar papel. Como o veganismo também é um movimento em prol do meio-ambiente,

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por uma questão de coerência escolhi o imprimir em papel reciclado e a gramatura (120g) foi

escolhida para dar mais durabilidade à zine, sem torná-la muito grossa ou pesada.

Decidi que seria interessante acrescentar informações à zine, então colhi dados sobre

a indústria dos produtos de origem animal, indiquei documentários que aprofundam nas

questões éticas, ambientais e de saúde, e escrevi um texto de apresentação (Menu) refletindo

sobre escolhas alimentares. Redigi mais um texto para apresentar a edição, como um editorial

(Entrada) e um outro que convida para somar à luta pelos direitos dos animais (Sobre a

mesa), encerrando a publicação.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O interesse em desenvolver um produto como trabalho de conclusão de curso surge

do desejo de aproveitar o conhecimento que a universidade me ofereceu e levar para a

sociedade um fruto dessa trajetória, que não está dissociado dos meus principais interesses de

estudo, das competências que apurei durante essa formação e da minha forma de

compreender o mundo enquanto jornalista e cidadão. Como discutir veganismo ainda é um

tabu, aproveitei a abertura que o espaço universitário e decidi realizar o Manifesto Animal.

Como ativista espero tirar pessoas da inércia, desnaturalizar o olhar sobre o especismo

e contar como vivem os animais criados para alimentação, já que eles não podem falar por si.

Investi num ensaio com fotos heterogêneas buscando causar um estranhamento que se

convertesse em curiosidade, mas acredito que o preço disso possa ser a incompreensão e,

possivelmente, o descrédito do pensamento fotográfico por trás do trabalho. O formato de

zine é bastante vantajoso porque dialoga com uma proposta experimental e política, além de

ser uma solução prática e de baixo custo. Embora não me desagrade, avalio que a narrativa

em si poderia ser mais coesa se tivesse planejado ela de forma sequencial e definido o

formato desde o princípio (entendo isso como uma inexperiência no desenvolvimento de

projetos fotográficos autorais).

Espero continuar trabalhando no projeto e que ele renda frutos para o ativismo animal.

Desejo contemplar mais espécies, como abelhas e crustáceos, que são comuns em nossa

região e cuja ausência nesta edição me desapontam. Imagino que cada edição possa ser

dedicada a uma espécie e que também possa produzir sobre a exploração animal em

diferentes segmentos, como vestuário e experimentação científica.

Estudar sobre o uso da fotografia como uma ferramenta política foi gratificante e

espero que esse trabalho contribua para as pesquisas e práticas de foto ativismo. Planejo

apresentar essa zine para as ONGs da causa animal em Salvador, como a Anonymous for the

Voiceless e a Mercy for Animals, e a partir disso estudar a viabilidade de circular um

material fotográfico em defesa dos direitos dos animais.

Concluo o projeto satisfeito por acreditar ter cumprido meu objetivo e realizado um

trabalho que me contenta por ter proporcionado a oportunidade de me aprimorar na prática

fotográfica, considerando que assumi o compromisso de executar um projeto fora da minha

zona de conforto e num formato novo para mim. Todo o processo foi extremamente rico de

aprendizado e finalizo o projeto com muito mais bagagem e vontade de continuar.

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