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DO ASSASSINATO COMO UMA DAS BELAS ARTES Thomas De Quincey ISBN – 8525400149 Capa: Caulos revisão: Márcia Camargo e Daniel Lara de Oliveira Tradução: Henrique de Araujo Mesquita Composição em poliéster AGE Assessoria Gráfica e Editorial Ltda. L & PM Editores, 1985 Todos os direitos desta edição reservados à L & PM Editores Ltda., Rua Nova lorque, 306 90.000 — Porto Alegre Rio Grande do Sul Impresso no Brasil Verão de 1985 Advertência de um homem morbidamente virtuoso A maioria dentre nós, que lê livros, ouviu provavelmente falar numa Sociedade para a Promoção do Vício, no Clube do Fogo do Inferno, fundado no século passado por Sir Francis Dashwood, etc... Creio que foi em Brighton que se fundou uma Sociedade para a Supressão da Virtude. Tal sociedade foi, ela própria, suprimida; mas lamento dizer que uma outra sociedade existe em Londres, de um caráter ainda mais atroz. De acordo com a sua tendência, pode ser denominada de Sociedade para o Encorajamento do Assassinato; mas, de acordo com o próprio delicado eufemismo de que lançam mão os seus membros, designa-se a Sociedade de Connaisseurs em Assassinato (1). Declaram-se sutis em matéria de homicídios; amadores e diletantes nos vários modos de carnificina; e, em resumo, aficcionados fissurados em Assassinatos. Reúnem-se para criticar cada nova atrocidade do gênero que os anais policiais da Europa registram, como o fariam para comentar um quadro, uma estátua, ou outra obra de arte. Mas não necessito dar-me ao trabalho de caracterizar o espírito do que fazem, porque o leitor o apreenderá muito melhor do estudo de uma das conferências pronunciadas diante daquela sociedade no ano passado. O texto caiu-me nas mãos por acaso, a despeito de toda a vigilância que os membros exercem para que as transações da sociedade permaneçam ocultas aos olhos do público. A presente publicação os alarmará, e é meu propósito que isso aconteça. Pois para mim é muito preferível terminar com eles quietamente, mediante um apelo à opinião pública, à divulgação de nomes que se seguiria a um apelo à polícia. Devo, no entanto, dizer que recorrerei àquela autoridade, se o que faço no momento fracassar. Pois a minha intensa virtude não permitirá tais coisas num país cristão. Mesmo num país pagão, a tolerância do assassinato — a saber, nos horríveis espetáculos do anfiteatro — pareceu a um escritor cristão a mais clamorosa reprovação à moral pública. O escritor era Lactâncio; e com suas palavras, como singularmente aplicáveis a esta ocasião, concluirei: “Quid tam horrible”, diz ele, “tam tetrum, quam hominis trucidatio? Ideo severissimis legibus vita nostra munitur; ideo bella execrabilia sunt. Invenit tamen consuetudo quatenus homicidium sine bello ac sine legibus faciat: et hoc sibi voluptas quod scelus vindicavit. Quod si interesse homicidio sceleris conscientia est et eidem facinori spectator obstrictus est cui et admissor; ergo et in his gladiatorum caedibus non minus cruore profunditur qui spectat, quam ille qui facit: nec potest esse immunis à sanguine qui voluit effundi;

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DO ASSASSINATO COMO UMA DAS BELAS ARTES Thomas De Quincey ISBN – 8525400149 Capa: Caulos revisão: Márcia Camargo e Daniel Lara de Oliveira Tradução: Henrique de Araujo Mesquita Composição em poliéster AGE Assessoria Gráfica e Editorial Ltda. L & PM Editores, 1985 Todos os direitos desta edição reservados à L & PM Editores Ltda., Rua Nova lorque, 306 90.000 — Porto Alegre Rio Grande do Sul Impresso no Brasil Verão de 1985 Advertência de um homem morbidamente virtuoso A maioria dentre nós, que lê livros, ouviu provavelmente falar numa Sociedade para a Promoção do Vício, no Clube do Fogo do Inferno, fundado no século passado por Sir Francis Dashwood, etc... Creio que foi em Brighton que se fundou uma Sociedade para a Supressão da Virtude. Tal sociedade foi, ela própria, suprimida; mas lamento dizer que uma outra sociedade existe em Londres, de um caráter ainda mais atroz. De acordo com a sua tendência, pode ser denominada de Sociedade para o Encorajamento do Assassinato; mas, de acordo com o próprio delicado eufemismo de que lançam mão os seus membros, designa-se a Sociedade de Connaisseurs em Assassinato (1). Declaram-se sutis em matéria de homicídios; amadores e diletantes nos vários modos de carnificina; e, em resumo, aficcionados fissurados em Assassinatos. Reúnem-se para criticar cada nova atrocidade do gênero que os anais policiais da Europa registram, como o fariam para comentar um quadro, uma estátua, ou outra obra de arte. Mas não necessito dar-me ao trabalho de caracterizar o espírito do que fazem, porque o leitor o apreenderá muito melhor do estudo de uma das conferências pronunciadas diante daquela sociedade no ano passado. O texto caiu-me nas mãos por acaso, a despeito de toda a vigilância que os membros exercem para que as transações da sociedade permaneçam ocultas aos olhos do público. A presente publicação os alarmará, e é meu propósito que isso aconteça. Pois para mim é muito preferível terminar com eles quietamente, mediante um apelo à opinião pública, à divulgação de nomes que se seguiria a um apelo à polícia. Devo, no entanto, dizer que recorrerei àquela autoridade, se o que faço no momento fracassar. Pois a minha intensa virtude não permitirá tais coisas num país cristão. Mesmo num país pagão, a tolerância do assassinato — a saber, nos horríveis espetáculos do anfiteatro — pareceu a um escritor cristão a mais clamorosa reprovação à moral pública. O escritor era Lactâncio; e com suas palavras, como singularmente aplicáveis a esta ocasião, concluirei: “Quid tam horrible”, diz ele, “tam tetrum, quam hominis trucidatio? Ideo severissimis legibus vita nostra munitur; ideo bella execrabilia sunt. Invenit tamen consuetudo quatenus homicidium sine bello ac sine legibus faciat: et hoc sibi voluptas quod scelus vindicavit. Quod si interesse homicidio sceleris conscientia est — et eidem facinori spectator obstrictus est cui et admissor; ergo et in his gladiatorum caedibus non minus cruore profunditur qui spectat, quam ille qui facit: nec potest esse immunis à sanguine qui voluit effundi;

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aut videri non interfecisse, qui interfectori et favit et proemium postulavit.” “Que é tão horrível”, diz Lactâncio, “tão espantoso e revoltante quanto o assassinato de uma criatura humana? Ë por isso que a nossa vida é protegida por leis rigorosíssimas; é por isso que as guerras são execradas. Contudo, a tradição romana descobriu uma maneira de autorizar o homicídio sem guerra e a despeito das leis: e a volúpia reivindica para si o que é crime.” Que a Sociedade de Cavalheiros Connaisseurs considere isso; e que me permita requerer-lhe especial atenção para as frases finais, tão ponderáveis que tentarei exprimi-las na nossa língua: “Agora, se meramente presenciar um assassinato estampa num homem o caráter de cúmplice; se ser apenas espectador nos faz participar da culpa do que perpetra, segue-se, necessariamente, que, nos assassinatos no anfiteatro, a mão que inflinge o golpe fatal não mergulha mais profundamente no sangue do que a daquele que se limita a assistir, passivamente; nem pode estar limpo de sangue aquele que favoreceu o seu derramamento; nem pode ser outra coisa do que um participante no assassinato o homem que aplaude o assassino e pede que ele seja premiado” Ainda não ouvi acusar os Cavalheiros Connaisseurs de Londres do proemia posrulavit, embora indubitavelmente a isso tendam os seus trabalhos; mas o interfectori favit (2) está implícito no próprio título da sociedade, e expresso em cada linha da conferência que segue. X.Y.Z. (1) Em francês, no original; connaisseur quer dizer amador, conhecedor; diz-se, por exemplo, de um homem que conhece supremamente e aprecia os bons vinhos, que é um connaisseur de vinhos (N. do T.). (2) Proemia postulavit: pede prêmios; interfectori favit: aplaude o assassino (N. do T). Conferência CAVALHEIROS: Tive a honra de ser designado por vosso comitê para a árdua tarefa de pronunciar a conferência Williams sobre o assassinato considerado como uma das belas artes; tarefa essa que teria sido bastante fácil três ou quatro séculos atrás, quando pouco se entendia da arte, e poucos grandes modelos haviam sido exibidos; mas em nossa época, quando obras-primas de excelência foram executadas por profissionais, deve ser evidente que, na qualidade da crítica que se lhes aplica, o público buscará um aprimoramento correspondente. A prática e a teoria devem progredir pari passu. O público começa a discernir que é necessário alguma coisa mais para que se componha um assassinato requintado do que dois homens estúpidos, para matar e ser morto, do que uma faca, uma bolsa, e uma alameda escura. Cavalheiros: projetos, conluios, luz e sombra, poesia, sentimento são agora coisas consideradas indispensáveis para tentativas dessa natureza. O Senhor Williams exaltou o ideal do assassinato diante de todos nós; e para mim, em particular, portanto, aprofundou a dificuldade da tarefa. Como Ésquilo ou Milton, em poesia, como Miguel Ângelo, em pintura, levou a sua arte a um ponto de sublimidade colossal; e, como o Senhor Wordsworth observa, de certa maneira “criou o gosto que o apreciará”. Esboçar a história da arte e examinar-lhe os princípios, criticamente, constitui agora um dever para o connaisseur, e para juízes de uma têmpera muito diferente daqueles que sentam nos tribunais de Sua Majestade. Antes de iniciar, que me seja permitido dizer uma ou duas palavras de determinados hipócritas que fingem falar de nossa sociedade como se de alguma maneira fosse imoral em sua tendência. Imoral! Que Júpiter me proteja, cavalheiros, que querem dizer essas pessoas? Sou a favor da moralidade, e sempre o serei, e a favor da virtude, e de todo o resto; e afirmo em alto e bom som, e sempre o farei (sejam quais forem as conseqüências), que o

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assassinato é uma linha de comportamento inconveniente, altamente inconveniente; e não hesito em declarar que qualquer homem que se envolve em assassinatos deve seguir maneiras de pensar muito incorretas e princípios muito errôneos; e, em vez de ajudá-lo e instigá-lo, indicando-lhe o esconderijo de sua vítima, como um grande moralista da Alemanha (1) proclamou que era o dever de todo homem bom fazer, eu entraria numa subscrição com um shilling e seis pences para que ele fosse preso, o que representa dezoito pences mais do que os mais eminentes moralistas já subscreveram para um tal propósito. Mas então? Tudo neste mundo apresenta duas asas. O assassinato, por exemplo, pode ser segurado por sua asa moral (como acontece, geralmente, no púlpito e no Old Bailey (2); e esse, confesso, é o seu lado fraco; ou pode ser tratado esteticamente, como os alemães o dizem — ou seja, com relação ao bom gosto. Para exemplificar isso recorrerei à autoridade de três eminentes personalidades; a saber, Samuel Taylor Coleridge, Aristóteles e o Senhor Howship, o cirurgião. Começarei com S.T.C. Uma noite, faz muitos anos, eu estava tomando chá com ele na Rua Berners (a qual, aliás, apesar de tão curta foi invulgarmente prolífica em homens de gênio). Havia outros ali, além de mim; e, entre algumas considerações materiais de chá com torradas, estávamos todos absorvendo uma dissertação sobre Plotino, dos lábios áticos de S.T.C. De repente, levantou-se um grito de “Fogo!”, ao som do qual, todos nós, mestre e discípulos, Platão e oi periton Platona (3) precipitamo-nos para fora, famintos do espetáculo. O incêndio localizava-se na Rua Oxford, no estabelecimento de um fabricante de pianos e, como prometia ser uma conflagração de alto gabarito, lamentei que meus compromissos me afastassem do grupo do Senhor Coleridge, antes que as coisas houvessem atingido o seu clímax. Poucos dias depois, encontrando o meu platônico anfitrião lembrei-lhe o caso e pedi-lhe que me contasse como terminara aquela muito promissora exibição. “Senhor”, disse-me ele, “deu em tão pouco que a mandamos para o inferno, unanimemente”. Agora, será que alguém supõe que o Senhor Coleridge — que, embora seja demasiado gordo para ser uma pessoa de virtude ativa, é sem dúvida um digno cristão —, que esse bom Samuel Taylor Coleridge era um incendiário, ou capaz de desejar algum mal ao pobre homem e seus pianos (muitos dos quais, indubitavelmente, com claves adicionais)? Pelo contrário, conheço-o como homem de tal qualidade que (nisso eu apostaria a minha vida) em caso de necessidade teria ele próprio operado uma bomba d’água, embora um tanto volumoso para tão ardentes provas de sua virtude. Mas como a coisa se passou? Não houve necessidade de virtude. À chegada dos bombeiros, toda a moralidade se concentrou na companhia de seguros. Sendo essa a situação, assistia-lhe o direito de gratificar o gosto. Deixara seu chá. Não teria nada em compensação? Sustento que o homem mais virtuoso, dadas as premissas acima mencionadas, tinha todos os títulos para gozar o incêndio, e para vaiá-lo, como vaiaria qualquer outro espetáculo que fizesse surgir expectativas no espírito público para desapontá-las, posteriormente. Agora, para citar uma outra grande autoridade, que diz o Estagirita? Ele (creio que no quinto livro de sua “Metafísica”) descreve o que chama de kyooyen yeetoq ou seja, o perfeito ladrão; e, quanto ao Senhor Howship, em sua obra sobre a Indigestão, este não tem escrúpulos em falar com admiração de uma úlcera que vira, e que ele classifica como uma “bela úlcera”. Ora, será que alguém pretenderá que, consideradas as coisas abstratamente, um ladrão poderia parecer a Aristóteles um caráter perfeito, ou que o Senhor Howship pudesse enamorar-se de uma úlcera? Aristóteles, é bem sabido, era de um caráter tão moral que, não contente de escrever a Ética a Nicômaco, em um volume in octavo, escreveu também outro sistema chamado Magna Moralia ou Grande Ética. Ora, é impossível que um homem que compõe qualquer ética, grande ou pequena, possa admirar um ladrão per se, e, quanto ao Senhor Howship, é fato bem conhecido que ele guerreia as úlceras, e, sem se deixar seduzir pelos encantos que elas têm, procura bani-las do condado de Middlesex. Mas a verdade consiste em que, por mais que sejam reprováveis per se, ainda

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assim tanto um ladrão como uma úlcera, relativamente a outros espécimes da mesma classe, podem ter uma infinita variedade de graus de mérito. Ambos são imperfeições, mas, como ser imperfeito constitui-lhes a essência, a própria grandeza da imperfeição torna-se a sua perfeição. Spartam nactus es, hanc exorna (4). Um ladrão como Autólico (5) ou George Barrington, que teve os seus dias de fama e uma sinistra úlcera fagedânia soberbamente definida e que atravessa com regularidade todos os seus estágios naturais, podem com não menos justiça ser encarados como ideais de sua espécie do que a mais imaculada rosa musgosa entre as flores, em seu progresso de botão a “flor brilhante e consumada”; ou, entre as flores humanas, a mais magnificente jovem fêmea, ornada em toda a pompa da feminilidade. E, assim, não apenas se pode imaginar o ideal de um tinteiro (como o Senhor Coleridge o ilustrou em sua celebrada correspondência com o Senhor Blackwod), coisa que, aliás, não é assim tão de admirar, porque um tinteiro é algo de louvável e um membro valioso da sociedade; mas a própria imperfeição pode ter o seu ideal ou estado perfeito. De fato, cavalheiros, peço-vos perdão por tanta filosofia de uma só vez; deixai-me agora aplicá-la. Quando um assassinato está no tempo paulo-post-futurum (6) — não executado, nem sequer (segundo o purismo moderno) sendo executado, mas apenas prestes a ser executado — e um rumor dele nos chega aos ouvidos, tratêmo-lo moralmente. Mas suponhamos que terminou, foi executado, e que se possa dizer dele, Tetélestai, está acabado, ou (no molosso (7) duro como diamante, de Medéia) eirgastai, feito está: é um fato consumado; suponhamos que o pobre homem assassinado já não sofre mais e que o vilão que praticou o ato partiu como uma flecha, ninguém sabe para onde; suponhamos, finalmente, que fizemos o melhor que podíamos, esticando as pernas para fazer tropeçar o ladrão em sua fuga, mas tudo em vão — “abiit, evasit, excessit, erupit”, etc... (8) Qual será então, passado tal momento, a utilidade de qualquer dispêndio de virtude? Já bastante foi dado à moralidade; chegou a vez do Gosto e das Belas Artes. Passou-se um acontecimento triste, muito triste, sem dúvida; mas não podemos remediá-lo. Portanto, que nos seja permitido tirar o melhor partido de um mau assunto; e, se é impossível extrair dele alguma coisa para propósitos morais, que o tratemos esteticamente, e verifiquemos se o podemos aproveitar dessa maneira. Tal é a lógica de um homem sensato, e o que se segue? Secamos as nossas lágrimas, e gozamos talvez da satisfação de descobrir que uma transação que, considerada moralmente, era chocante, e de tal forma perneta que não podia ficar de pé, se for julgada pelos princípios do Gosto, revela-se uma obra muito meritória. Assim, todo mundo fica contente e justifica-se o velho provérbio de que “para bom mestre não há má ferramenta”; o amador, de parecer muito bilioso e carrancudo, por prestar uma atenção muito grande à virtude, começa a colher as migalhas; e prevalece uma geral hilariedade. A virtude teve o seu momento; e de então em diante, Virtù, palavra tão aparentada que da outra não difere mais do que por duas letras (9) (coisa a respeito da qual não vale a pena regatear ou disputar) — Virtù, repito, e a arte do Connaisseur podem entrar em cena. Segundo esse princípio, cavalheiros, proponho-me a guiar-vos os estudos, desde Cain até o Senhor Thurtel. Através dessa grande galeria do assassinato, portanto, que nos seja permitido vagar, de mãos dadas, juntos, em admiração deliciada, enquanto eu procuro chamar-vos a atenção para os objetos de crítica proveitosa. O primeiro assassinato é conhecido de todos. Como o inventor do assassinato e pai da arte, Cain deve ter sido um gênio de primeira grandeza. Todos os Cains foram homens de gênio. Cain Tubal inventou os tubos, creio eu, ou alguma coisa semelhante. Mas, qualquer que tenha sido a originalidade e o gênio do artista, as obras que saíam de cada um dos vários studios devem ser comentadas tendo-se em mente esse fato. A própria obra de Tubal despertaria provavelmente pouca aprovação, hoje em dia, em Sheffield (10); e, portanto, de Cain (quero referir-me ao velho Cain) nada o diminui se eu disser que o seu desempenho, seu trabalho, não passou de medíocre. Pensa-se, no entanto, que Milton foi de outra opinião. Por seu modo de relatar o caso, pareceria que se tratava para ele de um

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assassinato de estimação, pois ele o retoca com uma ansiedade evidente de alcançar efeito pitoresco: “Whereat he inly raged; and, as they talk’d, Smote him into the midriff a stone That beat out life; and, deadly pale, Groan’d out his sou! with gushing blood effused.” (11) Sobre esse texto, o pintor Richardson, que tinha olho para efeitos, observa o que se segue, em suas “Notas sobre o Paraíso Perdido”, p. 497: — “Já se pensou”, diz ele, “que Cain apagou (como se diz comumente) o espírito do corpo de seu irmão com uma grande pedra; Milton aceita isso, com o acréscimo, no entanto, de uma enorme ferida”. Onde foi colocado, foi um judicioso acréscimo. Pois a coloração sanguinária possui muito da aparência nua e crua da escola selvagem; como se o ato houvesse sido cometido por um Poliferno, sem ciência ou premeditação, ou qualquer coisa a não ser um osso de carneiro. Contudo, o que mais me agrada no aprimoramento é que ele indica que Milton era um amador. Quanto a Shakespeare, nunca houve melhor do que ele; em testemunho disso ofereço a sua descrição dos assassinados Duncan, Banquo, etc... ; e, acima de tudo, ofereço o testemunho da incomparável miniatura, em Henrique VI, do assassinado Gloucester. (12) Os fundamentos da arte tendo sido colocados, é lamentável que ela tenha permanecido adormecida, sem progresso, por séculos. De fato, serei agora obrigado a saltar por cima de todos os assassinatos, sagrados ou profanos, como inteiramente indignos de nossa atenção, até muito depois da era cristã. A Grécia, mesmo na idade de Péricles, não produziu assassinato, ou pelo menos nenhum registrado, de qualquer mérito; Roma possuía muito pouca originalidade de gênio em qualquer das artes para ter êxito onde seu modelo a abandonava (13). De fato, a própria língua latina sucumbe diante da idéia do assassinato. “O homem foi assassinado” — como soará isso em latim? Interfectus est, iteremptus est — frase que expressa simplesmente um homicídio. E, por isso, a latinidade cristã na Idade Média foi obrigada a introduzir uma nova palavra, de tal alcance que a fraqueza das concepções clássicas nunca atingiu. Murdratus est, diz o dialeto mais sublime das idades góticas. Entrementes, a escola judia de assassinatos manteve vivo o que ainda se sabia da arte, e, gradualmente, o transferiu para o mundo ocidental. De fato, a escola judia sempre foi respeitável mesmo em suas fases medievais, como o demonstra o caso de Hugo de Lincoln, que foi honrado com a aprovação de Chaucer, na execução de outra proeza da mesma escola, a qual, em seus Canterbury Tales, ele põe na boca da Senhora Abadessa. Voltando, no entanto, por um momento, à antiguidade clássica, não posso deixar de pensar que Catilina, Clódio, e algumas pessoas do mesmo grupo, teriam dado artistas de primeira classe; e, de todas as maneiras, é de lamentar-se que a hipocrisia de Cícero roubou seu país da única oportunidade que teve para distinguir-se nessa linha. Como vítima de um assassinato nenhuma pessoa poderia ter servido melhor do que ele. Ó Deuses! Como ele teria urrado de pânico se, debaixo de sua cama, lhe proviessem ruídos de Cetegus (14). Teria sido verdadeiramente divertido escutar tais urros; e estou certo, cavalheiros, de que ele teria preferido o utile de meter-se num armário, ou mesmo numa cloaca, ao honestum de enfrentar o ousado artista. Para chegar agora às idades escuras — (termo pelo qual nós, que falamos com precisão, significamos, por excelência, o século décimo como uma linha meridiana, e os dois séculos imediatamente antes e depois, completando-se à meia-noite entre 888 A.D. e l111 A.D.) — tais idades deveriam naturalmente ser favoráveis à arte do assassinato, como o foram para a arquitetura eclesiástica, para a arte dos vitrais, etc... Assim, na altura do último quarto desse período, surgiu um grande personagem em nossa arte; quero referir-me ao Velho Homem da Montanha. Ele foi uma luz brilhante, e não preciso dizer-vos que a

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própria palavra “assassino” decorre dele. Era um amante tão apaixonado que, numa ocasião, quando sua própria vida foi posta em perigo por um assassino seu favorito, tão satisfeito ficou com o talento demonstrado que, não obstante o fracasso do artista, ele o elevou a duque na mesma hora, com transmissão do título pela linha feminina, e lhe concedeu urna pensão por três gerações. O assassinato (15) é um ramo da arte que exige um estudo a parte; e é possível que eu dedique uma conferência inteira a tal assunto. Entrementes, limitar-me-ei a observar que esse ramo da arte floresceu de maneira intermitente. Não há chuva que não molhe. Nossa própria época pode orgulhar-se de alguns espécimes requintados, tais como, por exemplo, o caso Bellingham com o Primeiro Ministro Percival, o caso do Duque de Berri na Ópera de Paris, o caso do Marechal Bessiêre em Avignon; e, cerca de dois e meio séculos atrás, houve uma brilhante constelação de homicídios dessa classe. Quase não preciso lembrar que tenho em vista, especialmente, as sete seguintes esplêndidas obras — o assassinato de Guilherme I de Orange; dos três Henriques franceses, a saber, Henrique, Duque de Guise, que ambicionava o trono da França; de Henrique III, último príncipe da linha dos Valois, que então ocupava o trono; e, finalmente, de Henrique IV, seu cunhado, que sucedeu ao trono como primeiro príncipe da casa dos Bourbon; não decorridos dezoito anos, aconteceu o quinto da relação, a saber, o assassinato de nosso Duque de Buckingham (que vós encontrareis muito bem descrito nas cartas publicadas por Sir Henry Eilis, do Museu Britânico); o sexto foi o de Gustavo Adolfo, e o sétimo, o de Wallenstein. Que gloriosa Plêiade de assassinatos! E aumenta a nossa admiração verificar que essa luminosa constelação de exibiç&s artísticas, que compreende o caso de três Majestades, três Altezas serenas, e uma Excelência, todas se passaram num espaço de tempo tão curto quanto o que separa o ano de 1588 do ano de 1635. Muitos escritores, aliás, entre os quais Harte, duvidam do assassinato do Rei da Suécia, mas incidem em erro. Ele foi assassinado, e considero seu assassinato único em sua excelência; pois foi assassinado ao meio-dia, e no campo de batalha — um traço de concepção original que não ocorre em qualquer outra obra de arte de que me recordo. Conceber a idéia de um assassinato secreto, por motivo privado, como encerrado num pequeno parêntese no interior do vasto cenário de uma carnificina bélica, é alguma coisa que se compara à sutil artimanha de Hamlet, de uma tragédia no interior de outra tragédia. Na verdade, todas essas mortes podem ser estudadas com proveito pelo connaisseur adiantado na ciência. São todos exemplaria, assassinatos modelo, assassinatos padrão, dos quais se pode dizer “Nocturna versate manu, versate diurna”; especialmente nocturna (16). Nesses homicídios de príncipes e estadistas não há nada que nos crie espanto; de suas mortes dependem muitas vezes mudanças importantes; e, por causa da eminência em que estão situados, são singularmente expostos aos objetivos de qualquer artista acaso devorado pela ambição de efeito cênico. Mas há uma outra classe de assassinatos, que prevaleceu a partir de um período precoce do século dezessete, que realmente me surpreende; refiro-me ao assassinato de filósofos. Pois, cavalheiros, é um fato que todo filósofo eminente dos dois últimos séculos ou foi morto, ou, pelo menos, esteve muito perto de sê-lo; isso a tal ponto que, se um homem reinvindica para si o título de filósofo, e nunca sofreu tentativa contra a sua vida, podeis estar seguros de que não há grande coisa nele; e contra a filosofia de Locke, em particular, penso que se ergue como objeção irrespondível (se alguma tal objeção fosse necessária) que, embora carregasse sua garganta com ele, neste mundo, por setenta e dois anos, nenhum homem condescendeu em cortá-la. Como esses casos de filósofos não são muito conhecidos, e gozam geralmente de

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circunstâncias boas e bem compostas, farei aqui uma digressão sobre o assunto, principalmente para mostrar a minha própria sabedoria. O primeiro grande filósofo do século dezessete (se excetuarmos Bacon e Galileu) foi Descartes; e se de algum homem podemos dizer que ele foi quase assassinado — que esteve a um centímetro de morrer assassinado — tal homem foi Descartes. O caso foi o seguinte, tal como relatado por Baillet em sua Vie de M Descartes, tomo 1, pgs. 102-3. No ano de 1621, quando Descartes podia contar cerca de vinte e seis anos de idade, estava viajando como de costume (pois era tão inquieto quanto uma hiena); e, chegando ao Elba, seja em Gluckstadt ou em Hamburgo, embarcou para a Frizlândia oriental, O que ele podia desejar na Frizlândia oriental nenhum homem jamais descobriu; e talvez isso mesmo lhe tenha ocorrido; porque, ao atingir Embden, resolveu partir de imediato para a Frizlândia ocidental, e, não suportando atrasos, alugou um barco, com uns poucos marinheiros para fazê-lo navegar. Apenas se fizera ao mar, fez uma agradável descoberta, a saber, que estava encerrado num antro de assassinos. Diz o Senhor Baillet que Descartes logo descobriu que os tripulantes eram “desscélérats”, celerados — não amadores, amateurs, cavalheiros, como nós somos, mas profissionais — cuja maior ambição naquele momento era cortar-lhe a garganta. Mas a história é muito agradável para que a abreviemos; traduzi-la-ei, portanto, fielmente, do francês de seu biógrafo: “O Senhor Descartes não contava com outra companhia a não ser a de seu empregado, com o qual conversava em francês. Os marinheiros, que o julgavam um mercador estrangeiro, e não um cavalheiro, concluíram que ele deveria ser portador de dinheiro. Dessa forma, chegaram a uma resolução que de nenhuma maneira era vantajosa para sua bolsa. Há, no entanto, essa diferença entre ladrões marítimos e ladrões na floresta, que os últimos podem, sem perigo, poupar a vida das vítimas, enquanto os primeiros não podem desembarcar um passageiro em tais circunstâncias sem correr o risco de serem presos. A tripulação do Senhor Descartes combinou medidas com o objetivo de escapar a qualquer perigo de tal natureza. Repararam em que era um forasteiro, provindo de terra distante, sem nenhum conhecimento no país, e que ninguém se daria ao trabalho de perguntar por ele caso ele desaparecesse (quand ii viendrait à man quer)’ Pensai, cavalheiros, nesses velhacos da Frizlândia a discutir um filósofo como se fosse uma barrica de rum consignada a algum corretor marítimo. “Seu temperamento, observaram, era muito pacífico e paciente; e, a julgar pela gentileza de seu comportamento e pela cortesia com que os tratava, pensaram que não podia ser mais do que algum jovem inexperiente, sem posição ou raiz no mundo e chegaram à conclusão que seria para eles coisa fácil tirar-lhe a vida. Não tiveram escrúpulos em discutir o assunto todo na presença dele, supondo que ele não entendia qualquer outra língua que não fosse aquela em que conversava com seu empregado; e o resultado das deliberações que tomaram foi: — assassiná-lo e então jogá-lo ao mar, e dividir os seus despojos.”. Desculpai o meu riso, cavalheiros, mas a verdade consiste em que sempre rio quando penso nesse caso — duas coisas nele parecem-me tão hilariantes. Uma dessas coisas é o pânico horrível ou funk (como dizem os alunos de Eton) que deve ter assaltado Descartes, quando ouviu a trama desse drama projetado para a sua própria morte — funeral — sucessão — e divisão do que possuía. Mas a outra coisa que me parece ainda mais engraçada nesse assunto consiste em que, se tais cães da Frizlândia tivessem sido homens para valer, não teríamos filosofia cartesiana; e como poderíamos viver sem isso, considerando o mundo de livros que tal Filosofia produziu, é uma questão que deixo a qualquer respeitável fabricante de estantes decidir. Contudo, prossigamos: apesar de seu enorme pânico, Descartes deu prova de ânimo, e por esse meio apavorou aqueles mariolas anti-cartesianos. Continua o Senhor Baillet: “Vendo que não se tratava de brincadeira, o Senhor Descartes pôs-se de pé num segundo, assumiu uma atitude severa com que não contavam aqueles covardes, e a eles se dirigindo na própria língua que falavam, ameaçou atravessá-los com a espada se ousassem

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assaltá-lo”. Certamente, cavalheiros, teria sido uma honra muito acima dos méritos de tão desprezíveis canalhas — serem espetados como estorninhos numa espada cartesiana; e, portanto, fico contente de que o Senhor Descartes não tenha roubado pacientes à forca, executando a ameaça, especialmente porque ele não poderia de maneira alguma levar a barca a bom porto, depois de matar os tripulantes, o que o obrigaria a seguir navegando para sempre no Zuider Zee, e teria sido tomado pelos marinheiros pelo “Holandês Voador”, a caminho de casa. “A bravura que o Senhor Descartes manifestou,” diz o biógrafo, “teve um efeito mágico em tais miseráveis. O caráter repentino da consternação em que caíram de tal forma lhes confundiu a mente que ficaram cegos para a vantagem que possuíam, e o conduziram ao destino com tanta paz como ele podia desejar”. Possivelmente, Senhores, pode ocorrer-vos que, seguindo o modelo do que disse César a seu pobre barqueiro — Caesarem vehis et fortunas ejus (17) —, o Senhor Descartes não precisaria mais do que dizer: “Cães, vocês não podem cortar-me a garganta, pois transportam Descartes e a sua filosofia”. Poderia, depois, com toda a segurança, desafiá-los a fazer o pior que ousassem. Um imperador alemão teve a mesma idéia, quando, ao lhe aconselharem que se precatasse e saísse do alcance dos canhões, replicou: “Caro homem, você já ouviu falar numa bala de canhão que tenha matado um imperador? (18)” Quanto ao imperador nada posso dizer, mas coisa muito menor foi suficiente para acabar com um filósofo; e o seguinte grande filósofo da Europa foi sem dúvida assassinado. Este foi Spinoza. Sei muito bem que a opinião comum a seu respeito diz que ele morreu na cama. Talvez assim tenha sido, mas ainda assim foi assassinado; e isso eu o provarei mediante um livro publicado em Bruxelas no ano de 1731, intitulado La vie de Spinosa, par M. Jean Colerus (19), com muitos acréscimos, de uma biografia manuscrita, por um de seus amigos. Spinoza faleceu em 21 de fevereiro de 1677, não contando então com mais de quarenta e quatro anos de idade. Tal circunstância, ela própria, desperta suspeitas; e o próprio Senhor Jean admite que uma certa expressão no manuscrito permitiria a conclusão de que “sa mort n ‘a pas dté tout à fait naturelle (20). Vivendo num país úmido como a Holanda pode-se pensar que ele abusou do grog, especialmente do ponche (21) que então havia sido recém-descoberto. Não há dúvida que ele poderia ter feito isso; mas o fato é que ele não o fez. O Senhor Jean diz dele que era “extrêment sobre en son boire et manger”(22) embora corressem rumores de que usava o sumo da mandrágora (pág. 140) e de que tomava ópio (pág. 144), nenhum desses artigos se encontra nas contas de seu farmacêutico. Vivendo, portanto, com tal sobriedade, como é possível que falecesse de morte natural com a idade de quarenta e quatro anos? Ouvi o que conta o seu biógrafo: — “Domingo de manhã, no dia 21 de fevereiro, antes que fosse momento de ofício na Igreja, Spinoza desceu e conversou com o dono e a dona da casa”. Nessa altura, por conseguinte, talvez às dez horas da manhã de domingo, vê-se que Spinoza estava vivo e muito bem. Mas parece que “tinha convocado de Amsterdam um certo médico que”, diz o biógrafo, “não indicarei a não ser pelas letras L.M..” Este L.M. tinha dado ordens ao pessoal da casa de que comprassem “um velho galo”, e de que o cozinhassem imediatamente para que Spinoza pudesse ingerir algum caldo cerca do meio-dia; o que, de fato, ele fez; e comeu partes do velho galo com bom apetite, depois que o proprietário e sua mulher haviam regressado da Igreja. “De tarde, LM. permaneceu sozinho com Spinoza, porque o pessoal da casa tinha regressado à Igreja; ao sair da mesma, souberam, com grande surpresa, que Spinoza morrera cerca das três horas da tarde, na presença de L.M., que partiu para Amsterdam à boca da noite, pelo barco noturno, sem prestar a menor atenção ao morto”, e provavelmente sem prestar muita atenção ao pagamento do pouco que lhe era devido. “Não há dúvida de que lhe foi muito fácil dispensar esses deveres, porque se tinha apossado de um ducatão (23), de uma pequena quantidade de prata, e de uma faca de punho de prata, e escapara com o que tinha pilhado.” Aqui vós podeis ver, cavalheiros, que

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o assassinato é claro, e também a maneira pela qual foi praticado. Foi L.M. quem assassinou Spinoza por causa de dinheiro. O pobre Spinoza era um inválido, magro e fraco: como não se observou sangue, L.M. sem dúvida jogou-o no chão, e o sufocou com travesseiros, já estando o pobre homem meio sufocado por seu almoço infernal. Depois de mastigar o “velho galo”, que eu entendo ser um galo do século precedente, em que condição podia o pobre inválido achar-se para suportar uma luta com L.M.? Certamente não foi Lindlay Murray, pois eu o vi em York em 1825; e, além disso, não penso que ele seria capaz de fazer uma tal coisa pelo menos, não a um outro gramático: pois vós sabeis, cavalheiros, que Spinoza escreveu uma muito respeitável gramática do hebraico. Hobbes — nunca fui capaz de compreender porque, ou em virtude de qual princípio — não foi assassinado. Isso foi uma inadvertência capital dos profissionais do século dezessete, porque, à qualquer luz, ele se prestava magnificamente ao assassinato, exceto pelo fato de que era magro e pelancudo; pois posso provar que possuía dinheiro e (o que é muito engraçado) não tinha direito de opor a menor resistência; pois, segundo ele próprio, o poder irresistível cria a maior espécie de direito, constituindo rebelião das mais sujas recusar-se a ser assassinado, quando uma força competente aparece para assassinar uma pessoa. No entanto, cavalheiros, embora ele não tivesse sido assassinado, tenho o prazer de assegurar-vos que (de acordo com o que ele próprio conta) esteve, por três vezes, muito próximo de ser morto, o que nos consola. A primeira vez ocorreu na primavéra de 1640, quando ele pretende ter feito circular um curto manuscrito a favor do rei e contra o Parlamento; aliás, ele nunca pôde apresentar tal manuscrito; mas ele diz que: “se Sua Majestade não houvesse dissolvido o Parlamento” (em maio) “o manuscrito o teria posto em perigo de vida”. A dissolução do Parlamento, no entanto, não foi bastante; pois, em novembro do mesmo ano, reuniu-se o Longo Parlamento e Hobbes, temendo por uma segunda vez ser assassinado, fugiu para a França. Isso lembra a loucura de John Dennis, que pensou que Luis XIV nunca faria a paz com a Rainha Ana, a menos que ele (a saber, Dennis) fosse entregue à vingança francesa; e, realmente, fugiu das proximidades da costa, por acreditar nisso. Na França, Hobbes logrou muito bem cuidar de sua garganta, por dez anos; mas, ao fim de tal tempo, como forma de fazer a corte a Cromwell, publicou o seu “Leviatã”. O velho covarde entrou então em pânico pela terceira vez; imaginou que as espadas dos partidários do rei contra Cromwell estavam constantemente à sua espreita, recordando o que tinham feito aos Embaixadores do Parlamento na Haia e em Madri. “Tum’ diz ele na autobiografia em latim ma carrônic que escreveu: “Tum venit in mentem mihi Dorislaus et Ascham; Tanquam proscripto terror ubique aderat.” (24) E, conseqüentemente, ele fugiu para a Inglaterra. Ora, é certo que o homem merecia uma boa sova por ter escrito o viatã”; e duas ou três sovas por escrever um pentâmetro com um final tão horroroso quanto “terror ubique aderat’ Mas ninguém jamais o julgou digno de alguma coisa maior do que uma sova. E, de fato, toda a história não passa, da parte de Hobbes, de uma jactância. Pois, numa carta muito grosseira que ele escreveu a “uma pessoa erudita” (com o que ele queria aludir a Wallis, o matemático), ele relata a questão de maneira muito diferente, e diz (pg. 8) que fugiu para casa “porque não confiava sua segurança às mãos do clero francês”; com o que queria insinuar que era provável que fosse assassinado por causa de sua religião, o que teria sido realmente uma grande piada — o nosso velho Tomás Hobbes levado à fogueira por causa de religião. Jactância ou não jactância, o que é certo é que Hobbes, até o fim de sua vida, temeu que alguém o assassinasse. Provarei isto com a história que passarei a contar: não provém de um manuscrito, mas (como diz o Senhor Coleridge) vale tanto como um manuscrito, pois provém de um livro agora inteiramente esquecido, a saber, O Credo do Senhor Hobbes

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examinado: numa Conversação entre ele e um Estudante de Teologia (publicado cerca de dez anos antes da morte do Senhor Hobbes). O livro é anônimo, mas foi escrito por Tennison, o mesmo que cerca de trinta anos depois sucedeu Tillotson como Arcebispo de Canterbury. A anedota introdutória é a seguinte: — “Um certo teólogo (sem dúvida o próprio Tennison) fazia todos os anos uma viagem de um mês a diferentes partes da ilha. Numa dessas excursões (1670), visitou o Pico em Derbyshire, em parte em conseqüência da descrição de Hobbes do mesmo. Estando na vizinhança, não podia deixar de visitar Buxton; e, no momento mesmo em que ali chegou, teve a felicidade de encontrar um grupo de cavalheiros que desmontavam à porta da hospedaria, entre os quais estava um camarada alto e magro, que se revelou não ser nem mais nem menos do que o Senhor Hobbes, o qual provavelmente tinha chegado a cavalo de Chatsworth (25). Encontrando uma tal fera, um turista, em busca do pitoresco, não podia fazer menos do que a ela se apresentar como mais um importuno. E, felizmente para seus planos, dois dos companheiros do Senhor Hobbes foram subitamente convocados por um mensageiro; assim, pelo resto do tempo que permaneceu em Buxton, Tennison gozou inteiramente do Leviatã, e teve a honra de com ele embebedar-se à boca da noite. Hobbes, ao que parece, mostrou de início uma certa reserva, pois temia os teólogos; mas essa reserva passou e ele se tomou muito sociável e engraçado e concordaram em tomar banho juntos. Não posso explicar como Tennison se aventurou a fazer estrepolias na água junto com Leviatã (26); mas assim aconteceu: brincaram como dois delfms, embora Hobbes devesse ser tão velho como as colinas; e “nos intervalos quando se abstinham de nadar e mergulhar discorreram sobre muitas coisas relativas aos banhos dos antigos e à origem das fontes. Quando assim tinham passado uma hora, safram do banho; e, se tendo secado e vestido, sentaram à espera do jantar que a hospedaria lhes poderia proporcionar; planejando revigorarem-se como os Deipnosophistae (27), e antes discutir e raciocinar profundamente do que beber da mesma maneira. Mas, na execução de tal inocente projeto, foram interrompidos pelo tumulto gerado por uma pequena disputa em que, por pequeno espaço de um pouco tempo, algumas das pessoas mais grosseiras da casa estiveram empenhadas. Isso pareceu preocupar bastante o Senhor Hobbes, embora ele estivesse bem longe de tais pessoas”. E porque se preocupou, cavalheiros? Sem dúvida, conforme imaginais, por causa de algum amor benigno e desinteressado pela paz, digno de um velho e de um filósofo. Mas escutai: — “Por algum tempo, não se acalmou, mas relatou, uma ou duas vezes, como se fosse coisa relacionada com ele próprio, num tom baixo e cuidadoso, isto é, ansioso, como Sextus Roscius foi assassinado, depois do jantar, perto dos Banhos Palatinos. Tal é o alcance da observação de Cícero, com relação a Epicuro, o ateu, de quem observou que ele, entre todos os homens, temia mais aquelas coisas que desprezava — a Morte e os Deuses”. Simplesmente porque era hora de jantar, e, na vizinhança de um estabelecimento de banhos, o Senhor Hobbes tinha de ter o mesmo destino de Sextus Roscius. Ele tinha de ser assassinado, porque Sextus Roscius fora assassinado. Que lógica havia em tudo isso, a não ser para um homem que estava sempre sonhando com o assassinato? Ali estava Leviatã, não mais temeroso das adagas dos realistas ingleses ou do clero francês, mas “posto, pelo terror, fora de seu decoro” por uma briga numa cervejaria entre alguns honestos rústicos do Derbyshire, os quais o próprio espantalho esquisito da pessoa de Hobbes, que pertencia a um outro século, teria feito tremer de medo. Dar-vos-á prazer escutar que Malebranche foi assassinado. O homem que o assassinou é muito conhecido: foi o Bispo Berkeley. A história é familiar, embora até o momento não tenha sido contada como o deve ser. Berkeley, quando jovem, foi a Paris e fez uma visita ao Padre Malebranche. Encontrou-o na sua célula a cozinhar. Os cozinheiros sempre foram uma espécie de gente irritável; os autores ainda o são mais: Malebranche era cozinheiro e autor; surgiu uma disputa; o velho Padre, já quente, esquentou-se ainda mais; irritações culinárias e metafísicas se reuniram para perturbar-lhe o fígado: deitou-se na cama

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e morreu. Tal é a versão comum da história. “Assim engana-se todo o ouvido da Dinamarca” (28). A verdade é que o assunto foi abafado, por consideração a Berkeley, que (como Pope observa, com muita justiça) possuía “todas as virtudes baixo o céu”: era bem sabido, aliás, que Berkeley, sentindo-se picado pela impertinência do velho francês, com ele se desaviu; a conseqüência foi uma reviravolta: Malebranche foi ao chão no primeiro round; toda a sua presunção lhe foi retirada; e ele talvez tivesse cedido; mas o sangue de Berkeley esquentara, e ele insistiu em que o velho francês retratasse a sua doutrina das Causas Originais. A vaidade do homem era excessiva para isso; e ele sucumbiu, sacrificado pela impetuosidade da juventude irlandesa, combinada com a sua própria absurda obstinação. Poder-se-ia contar com que Leibnitz sendo de todas as formas superior a Malebranche fosse, portanto, assassinado; o que, no entanto, não foi o caso. Acredito que se irritou por causa dessa negligência e se sentiu insultado pela segurança com que passou seus dias. De nenhuma outra maneira posso eu explicar sua conduta na última parte da vida quando resolveu tornar-se muito avarento e armazenar grandes importâncias de ouro, que guardava em sua própria casa. Isso passava-se em Viena, onde morreu. E ainda existem cartas que descrevem a incomensurável ansiedade que sentia pela integridade da pr6pria garganta. Ainda assim, sua ambição de ser pelo menos vítima de uma tentativa era tão grande que não renunciava ao perigo. Um recente pedagogo inglês, fabricado em Birmingham — a saber, o Doutor Parr —, adotou um procedimento mais egoísta, nas mesmas circunstâncias. Havia juntado uma considerável quantidade de peças de baixela de ouro e de prata, que foram durante certo tempo depositadas em seu quarto de dormir na casa paroquial, em Hatton. Mas, sentindo cada vez mais medo de ser assassinado, coisa que ele sabia que não poderia suportar (e à qual de fato nunca teve a menor pretensão), transferiu todas as peças para o ferreiro de Hatton, pensando, sem dúvida, que o assassinato de um ferreiro pesaria muito menos ao bem da república do que o de um pedagogo. Mas esse assunto já foi, em minha presença, objeto de dúvidas e de debate; e parece que se concordou geralmente em que uma boa ferradura vale cerca de dois e um quarto sermões Spital (29). Embora de Leibnitz possa ser dito que morreu, se bem que não assassinado, em parte, do medo de que o fosse, e em parte da vergonha de não o ter sido, Kant, por outro lado — que não manifestou qualquer intenção nesse sentido — escapou por uma unha negra, como dizem os portugueses, menor de um assassinato do que qualquer homem de quem já falamos exceto Descartes! O caso é relatado, penso eu, numa biografia anônima desse homem muito considerável. Por uma questão de saúde, Kant impôs-se durante algum tempo uma caminhada diária de seis milhas por uma estrada. Sendo conhecido esse fato de um homem que tinha as suas razões particulares para cometer assassinato, este aguardou no terceiro marco de milha a partir de Knigsberg o seu “alvo. que chegou pontualmente como uma mala-postal. Se não fosse por causa de um acidente, Kant teria perecido. Esse acidente consistiu na escrupulosa, ou naquilo que o Senhor Quickly chamaria de hipocondríaca moralidade do assassino. Ele imaginou que um velho professor estaria, com toda a probabilidade, carregado de pecados. Por causa dessa consideração, desviou- se de Kant, no momento crítico, e, pouco depois, assassinou uma criança de cinco anos de idade. Tal é a versão germânica do assunto; mas na minha opinião o assassino era um amateur, um connaisseur, que sentiu que muito pouco lucraria a causa do bom gosto pelo assassinato de um metafísico, velho, árido e adusto; nada haveria a exibir porque o velho Kant não teria mais ar de múmia depois de morto, do que o tinha quando vivo. Assim, cavalheiros, tracei a ligação entre a filosofia e a nossa arte, até que, insensivelmente, descobri que chegara, por muitos meandros, à nossa própria época. Não me darei ao trabalho de caracterizar a presente época diferentemente das que a precederam,

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porque elas não possuem um caráter distinto. Os séculos dezessete e dezoito, juntamente com o que já vivemos do século dezenove, compõem, em conjunto, a idade de Augusto do assassinato. A obta-prma do século dezessete é, inquestionavelmente, o assassinato de Sir Edmonbury Godfrey, que conta com minha inteira aprovação. No aspecto importantíssimo do mistério, o qual, de uma maneira ou de outra deveria colorir qualquer tentativa judiciosa de assassinato, é excelente; pois, até hoje, não se esclareceu o mistério. Exorto a sociedade a desencorajar as tentativas de atribuir aquele assassinato aos papistas, o que o prejudicaria da mesma forma que alguns bem conhecidos quadros de Corrégio foram prejudicados por alguns técnicos de limpeza de quadros, ou mesmo arruinados, incluindo-o na classe espúria dos assassinatos meramente políticos ou partidários, aos quais falta inteiramente o animus assassino. De fato, tal idéia carece completamente de base, e teve origem no puro fanatismo protestante. Não se pode dizer que Sir Edmondbury se haja distinguido, entre os magistrados de Londres, por qualquer severidade contra os católicos romanos, ou por favorecer as tentativas que empreendiam os fanáticos para fazer vigorar a lei em casos individuais. Não armara contra a sua própria pessoa a animosidade de qualquer seita religiosa. E, quanto às manchas de cera de vela em sua vestimenta, quando o corpo foi descoberto numa vala, das quais se tirou, na época, a conclusão de que os padres vinculados à Capela da Rainha tinham tido algo a ver com o assassinato, ou tais manchas constituíram um mero artifício fraudulento inventado por aqueles que desejavam atribuir a suspeita aos papistas, ou toda a alegação — manchas de vela e a causa atribuída a tais manchas — não passava de uma jactância ou de urna mentira do Bispo Burnett, o qual, como costumava dizer a Duquesa de Portsmouth, era o grande mestre de mentir e de inventar histórias do século dezessete. Ao mesmo tempo, deve-se observar que a quantidade de assassinatos não foi grande no século de Sir Edmondbury, pelo menos entre os nossos próprios artistas; o que, talvez, possa ser atribuído à falta de patronos esclarecidos. Sint Maecenates, non deerunt, Flacce, Marones (30). Consultando o livro de Grant, “Observações sobre as Relações de Mortalidade” (quarta edição, Oxford, 1655), verifico que, entre 299, 250 pessoas que morreram em Londres, durante um período de vinte anos, no século dezessete, apenas oitenta e seis foram assassinadas; o que representa cerca de quatro — três décimos por ano. Pequeno número este, cavalheiros, para que sobre ele se fundasse uma academia; e, certamente, quando a quantidade é tão reduzida, temos o direito de esperar que a qualidade seja de primeira classe. Talvez o fosse; contudo, sou de opinião que o melhor artista naquele século não igualou o melhor do século que se seguiu. Por exemplo, por mais meritório que possa ser o caso de Sir Edmondbury Godfrey (e ninguém pode ser mais sensível às qualidades daquele assassinato do que sou), ainda assim, não o posso colocar no mesmo plano do da Senhora Ruscombe, de Bristol, quer quanto à originalidade do projeto, quer quanto à audácia e amplidão do estilo. O assassinato de tal boa senhora ocorreu durante o Reinado de George III — um reinado que foi reconhecidamente favorável ao florescimento das artes em geral. Ela vivia em College Green, em companhia de uma só empregada solteira, nenhuma das duas com pretensão de despertar a curiosidade da História, a não ser pelo que lucraram do grande artista, cujo trabalho estou relatando. Uma certa manhã, quando toda a cidade de Bristol estava de pé e em atividade, levantou-se alguma suspeita, e os vizinhos forçaram a entrada da casa, e deram com a Senhora Ruscombe assassinada em seu quarto, e com a empregada assassinada na escada; isso passou-se ao meio-dia; e, não mais do que duas horas antes, tanto a senhora como a empregada tinham sido vistas com vida. Ao que posso recordar-me, isso ocorreu em 1764; já se passaram, portanto, mais de sessenta anos e, contudo, ainda não se descobriu o artista. As suspeitas da posteridade recaíram em dois pretendentes — um padeiro e um limpador de chaminés. Mas a posteridade se engana; nenhum artista sem prática poderia ter concebido a idéia tão audaciosa de um assassinato em pleno meio-dia no coração de uma grande cidade. Não foi nenhum obscuro padeiro, cavalheiros, ou

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anônimo limpador de chaminés, podeis estar certos, que executou a obra. Eu sei quëm foi. (Neste ponto, registrou-se um nmor geral que se transformou em aplauso franco; isso fez com que o conferencista corasse, e prosseguisse com muita pressa). Pelo amor de Deus, cavalheiros, não vos enganeis a meu respeito; não fui eu quem o fiz. Não alimento a vaidade de julgar-me capaz de uma tal façanha; ficai certos de que grandemente superestimais os meus pobres talentos; o caso da Senhora Ruscombe ultrapassou de muito as minhas pequenas habilidades. Mas eu vim a conhecer quem foi o artista, por um célebre cirurgião que auxiliou a sua autópsia. Tal cavalheiro possuía um museu particular de objetos de sua profissão, um dos cujos quantos estava ocupado por um molde de um homem de propor. ções notavelmente belas. “Aquele”, disse o cirurgião, “é um molde do célebre salteador do Lancashire, que ocultou por algum tempo a profissão que exercia, dos vizinhos, vestindo com meias de lã as pernas de seu cavalo, para abafar o ruído que de outra forma teria feito ao cavalgar pela aléia lajeada que conduzia a seu estábulo. Quando foi executado por saltear nas estradas eu estava estudando com Cruickshank: e a aparência do homem era tão excelente que não se poupou tempo ou dinheiro para entrar em posse dele, no mais breve tempo possível. Com a conivência do subdelegado, ele foi reduzido dentro do prazo legal, e colocado no mesmo momento numa carruagem; o que fez com que, quando chegou ao estabelecimento de Cruickshank, ele positivamente não estivesse morto. O Senhor, um jovem estudante na época, teve a honra de dar-lhe o coup de grare. e terminar a sentença da lei.” Esta notável anedota, que parecia implicar que todos os cavalheiros na sala de dissecação eram desportistas de nossa classe, muito me impressionou; e eu a estava repetindo um dia para uma senhora do L.ancashire, a qual então me informou de que ela vivera na vizinhança daquele salteador, e se lembrava bem de duas circunstâncias, que se combinavam, na opinião de todos os vizinhos dele, para conferir-lhe o mérito do caso da Senhora Ruscombe. Uma dessas circunstâncias consistia no fato de que ele se ausentou de casa por toda uma quinzena de dias, no período do assassinato; a outra residia em que, dentro de muito pouco tempo depois do assassinato, a vizinhança de tal salteador foi inundada de dólares: ora, sabia-se que a Senhora Ruscombe guardara cerca de dois milhares de tal moeda. Seja quem for o artista, no entanto, o caso permanece um monumento duradouro a seu gênio; pois tal foi a impressão de pavor, e o sentimento de poder despertados pelo vigor da concepção manifestada nesse assassinato, que nenhum locatário havia sido encontrado (como me foi dito em 1810), até aquele momento, para a casa da Senhora Ruscombe. Mas, enquanto eu assim elogio o caso ruscombiniano, não se suponha que esqueço os muitos outros espécimes de extraordinário mérito disseminados pelo decorrer do século. Tais casos, na verdade, como o da Senhorita Bland, ou o do Comandante Donnellan, e Sir Theophilus Boughton, nunca receberão o meu apoio. Que se envergonhem tais praticantes do veneno, digo eu: será que não se podem ater ao velho meio honesto de cortar gargantas, sem introduzirem tais abomináveis inovações italianas? Considero esses casos de envenenamento, comparados com o estilo legítimo, como não superiores a trabalhos em cera em comparação com esculturas, ou litografias em contraste com uma bela obra de Volpato (31). Mas, pondo de lado tais casos, outras excelentes obras de arte num puro estilo permanecem, tais que ninguém necessita envergonhar-se de confessar; e este muito imparcial connaisseur o admitirá. Imparcial, lusto, leal, observai, é o que eu digo; pois devem ser feitas grandes concessões em tais casos; nenhum artista pode jamais estar seguro de levar a termo seus próprios belos planos. Surgirão complicações desastrosas; as pessoas negam-se a submeter-se a ter as gargantas cortadas, tranqüilamente; correrão, darão pontapés, morderão; e, enquanto o pintor de retratos muitas vezes tem de se queixar de excessivo torpor em seu modelo, o artista de nosso gênero fica geralmente embaraçado por um excesso de animação. Ao mesmo tempo, por mais que seja desagradável ao artista, essa tendência no assassinato de excitar e irritar a vítima é certamente uma de suas vantagens

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para o mundo em geral, que não devemos desprezar, pois favorece o desenvolvimento dos mais recentes talentos. Jeremy Taylor observa, com admiração, os saltos extraordinários que as pessoas dão, sob a influência do medo. Houve um exemplo impressionante disso no recente caso dos M’Keans: o menino saltou a uma altura tal como ele nunca atingirá mais até o dia de sua morte. Talentos também da qualidade mais brilhante para espancar, e, na verdade, para todos os exercícios de ginástica, foram algumas vezes desenvolvidos pelo pânico que acompanha os nossos artistas; talentos que, se não fosse por tal pânico, permaneceriam ocultos debaixo de um véu, a seus próprios possuidores, e aos amigos deles. Lembro-me de um interessante exemplo desse fato, num caso que me foi contado na Alemanha. Cavalgando certo dia na vizinhança de Munich, alcancei um distinto membro de nossa sociedade, cujo nome, por motivos óbvios, não mencionarei. Tal cavalheiro informou-me de que, achando-se cansado dos prazeres frígidos (assim os estimava) do puro amadorismo, deixara a Inglaterra pelo continente — com a intenção de praticar um pouco, profissionalmente. Para tal propósito, recorreu à Alemanha, tendo a idéia de que a polícia naquela parte da Europa era mais pesada e sonolenta do que em outras partes. Seu début como um prático ocorreu em Mannheim; e sabendo-me um membro da sociedade, ele comunicou-me livremente o conjunto da aventura em que perdeu a virgindade nesse terreno. Do lado oposto à minha moradia, disse ele, vivia um padeiro: ele era um tanto avarento, e morava sozinho. Não sei se foi por causa da grande extensão branca, como cal, de sua cara, ou por que outra razão, mas a verdade é que ele me agradou, e resolvi entrar em atividade, cortando-lhe o pescoço, o qual, aliás, ele sempre trazia raspado — uma moda que muito me excita os desejos. Observei que, praticamente às oito horas da noite, ele, de forma pontual, fechava as janelas. Uma determinada noite, eu o olhava quando nisso ele estava empenhado — entrei por trás dele, tranquei as portas — e dirigindo-me a ele com grande suavidade, dei-lhe conhecimento da natureza de meu propósito; advertindo-o ao mesmo tempo de que não oferecesse resistencia, o que sena desagradável para ambos os lados. Assim falando, retirei as minhas ferramentas; e preparei-me para pôr mãos à obra. Mas, diante desse espetáculo, o padeiro, que parecia ter sucumbido a uma catalepsia quando lhe disse o meu propósito, despertou em tremenda agitação. “Eu não quero ser assassinado!”, guinchou em voz muito alta; “por que motivo quererei eu” (significando deverei eu) “perder a minha preciosa garganta?”—”Por que motivo?’ disse eu;”se por nenhum outro motivo, pelo seguinte — você põe alume no seu pão. Mas, não importa, alume ou não alume (pois eu estava disposto a prevenir qualquer discussão sobre esse ponto), saiba que eu sou um virtuose na arte do assassinato, e estou enamorado da vasta superfície de sua garganta, da qual estou decidido a tornar-me cliente.” “Ë assim?” disse ele, “eu lhe darei um cliente em outra especialidade;” e, dizendo isso, tomou uma atitude de boxeador. A própria idéia de vê-lo boxear pareceu-me hilariante. Ë verdade que um padeiro de Londres se distinguira no ringue, e se tornara famoso com o título de Mestre da Farinha, mas ele era jovem e estava em forma; enquanto aquele homem era a personificação de um monstruoso leito de penas, e completamente fora de condições. A despeito de tudo isso, no entanto, e lutando contra mim, que sou um mestre na arte, ele fez uma defesa tão desesperada que muitas vezes temi ficar por baixo; e que eu, um amador, um connaisseur, pudesse ser assassinado por um padeiro muito ordinário. Que situação! Os espíritos sensíveis simpatizarão com a minha ansiedade. Você compreenderá como as coisas foram duras se eu lhe disser que, durante os primeiros treze rounds, o padeiro positivamente levou vantagem. No décimo-quarto round, eu recebi um golpe no olho que o fechou; no final das contas, penso que isso me salvou; pois me inspirou uma raiva tão grande, que no round seguinte, e em cada um dos três outros, eu o fiz cair no chão. No décimo-nono round, o padeiro veio resfolegando e evidentemente cansado. Suas proezas geométricas nos últimos quatro rounds não lhe tinham feito bem. Contudo,

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demonstrou certa habilidade em deter um soco que eu lhe estava enviando ao nariz cadavérico; ao dar esse soco, meu pé escorregou, e eu caí no chão. No vigésimo round, olhando para o padeiro, senti-me envergonhado de ter sido tão incomodado por uma disforme massa de farinha, avancei com ferocidade, e administrei-lhe alguns golpes severos. Houve um corpo a corpo — os dois foram para o chão — o padeiro por baixo — dez a três para o amador. No vigésimo-primeiro round, o padeiro saltou com uma agilidade surpreendente, e recorreu ao que lhe restava de ânimo, admiravelmente, lutando de maneira maravilhosa, tendo em vista que estava banhado em suor; mas já o brilho o abandonara, e o que fazia era mero efeito do pânico. Era claro agora que não podia durar muito tempo. No curso desse round, experimentamos o sistema de entrelaçar-nos, no qual obtive grande vantagem, e o atingi repetidamente no nariz. Meu motivo para isso era o seguinte, que seu nariz estava coberto de carbúnculos; e me passou pela cabeça que eu o aborreceria tomando tais liberdades com seu nariz, o que, de fatc, aconteceu. Nos três rounds seguintes, o mestre da farinha titubeou como uma vaca em cima de gelo. Vendo como iam as coisas, no vigésimo-quarto round sussurrei-lhe alguma coisa no ouvido, que o botou no chão com a rapidez de um tiro. Nada era mais do que minha opinião particular do que valia a sua garganta num escritório de anuidades. Esse pequeno sussuro confidencial grandemente o afetou; a própria transpiração gelou-se no seu rosto, e nos dois seguintes rounds fiz com ele o que eu quis. E quando eu disse “pique”, no vigésimo-sétimo round, ele jazia no chão como um pedaço de pau. Depois disso, disse eu ao connaisseur: “Devo presumir que você cumpriu o seu objetivo”. “Você está certo”, disse ele, suave- mente, “eu o cumpri; e foi para mim uma grande satisfação, porque matei dois pássaros de uma só cajadada”, querendo dizer que ele tinha tanto espancado o padeiro como o assassinado. Ora, por minha vida, eu não era da mesma opinião; pois, a meu ver, pelo contrário, ele tinha necessitado de duas pedras para matar um pássaro só, tendo, primeiro, sido obrigado a retirar-lhe a presunção com os punhos, para então usar as suas ferramentas. Mas não importa a lógica do narrador. A moral da história era sólida porque demonstrava que espantoso estímulo para talentos latentes reside em qualquer perspectiva razoável de ser assassinado. Um padeiro de Mannheim, asmático, pesado, meio cataléptico havia lutado vinte e sete rounds com um mestre inglês na arte de boxear, apenas por essa inspiração; de tal forma foi o gênio natural exaltado e sublimado pela presença genial do assassino. Realmente, cavalheiros, quando se ouvem tais coisas, torna- se um dever, talvez, amenizar um pouco a grande asperidade com que a maioria dos homens fala do assassinato. Ao ouvir as pessoas falarem, vós suporíeis que todas as desvantagens e inconveniências ficam do lado do assassinado, e que não existe nenhum do lado de não ser assassinado. “Certamente”, diz Jeremy Taylor, “é um mal menor sucumbir à dureza de uma espada do que à violência de uma febre: e o machado (que ele poderia ter acrescentado o martelo do carpinteiro naval e a alavanca) “é uma aflição muito menor do que uma estranguria”. É muito verdadeiro; o bispo fala como um sábio e um connaisseur, como, estou certo, ele era; e um outro grande filósofo, Marco Aurélio, estava igualmente acima dos preconceitos vulgares quanto ao assunto. Ele declara constituir uma “das mais nobres funções da razão saber se é ou não o momento de sair deste mundo.” (Livro III, tradução Coller’s). Nenhuma espécie de conhecimento é mais rara do que esse, e, certamente, deve ser do tipo mais filantrópico de caráter o homem que nele instrui as pessoas grátis, e correndo grande risco. Tudo isso, no entanto, não coloco aqui a não ser para dar matéria de especulação a futuros moralistas; declarando, nesse meio tempo, a minha própria convicção particular de que poucos homens cometem assassinato por princípios filantrópicos ou patrióticos, e repetindo o que já disse pelo menos uma vez — que, na grande maioria dos casos, os assassinos são caráteres muito incorretos.

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Com relação aos assassinatos Williams, os mais inteiros em sua excelência e os mais sublimes que jamais foram cometidos, não me permitirei deles falar incidentalmente. Nada menos do que uma conferência inteira, ou mesmo um curso inteiro de conferências, seria bastante para expor os méritos de tais assassinatos (32). Mas mencionarei um fato curioso relacionado com esses casos, porque me parece implicar que o gênio daquele homem ofuscou inteiramente o olho da justiça criminal. Vós todos vos recordais, não tenho dúvida, de que os instrumentos com que executou sua primeira grande obra (o assassinato dos Marrs) foram um malho de um carpinteiro naval e uma faca. Ora, o malho pertencia a um velho sueco, um certo John Peterson, e trazia suas iniciais. Tal instrumento Wjlliams deixou atrás de si na residência dos Marrs, e caiu nas mãos dos magistrados. Mas, cavalheiros, é um fato que a publicação das circunstâncias das iniciais conduziu imediatamente à prisão de Williams, e, se houvesse sido feita mais cedo, teria impedido sua segunda grande obra (o assassinato dos Williamsons) que ocorreu precisamente doze dias depois. Contudo, os magistrados mantiveram esse fato oculto ao público por todos aqueles doze dias, e até que a segunda obra fosse executada. Terminada esta, os magistrados fizeram a publicação, sentindo evidentemente que Wiffiams tinha feito o bastante para sua fama, e que sua glória estava agora assegurada além do risco de qualquer acidente. Quanto ao caso do Senhor Thurtell, não sei o que dizer. Naturalmente, tenho toda disposição para muito estimar o meu predecessor na presidência desta sociedade; e reconheço que suas conferências não são passíveis de crítica. Mas, para falar francamente, penso que sua principal atuação, como um artista, foi muito superestimada. Confesso que, de início, eu próprio fui levado pelo entusiasmo geral. Na manhã em que se divulgou o assassinato em Londres, houve a maior reunião de connaisseurs de que já tive conhecimento, desde os dias de Wiffiams; alguns velhos amadores que dificilmente abandonavam a cama, e que tinham adotado um estilo de chacotear e de se queixar de que “nada se fazia mais”, coxearam para a nossa sala de reuniões: raramente fui testemunha de tal hilariedade, de tal benigna expressão de satisfação geral. Por todos os lados, viam-se pessoas que se apertavam as mãos, se congratulavam umas às outras, e formavam grupos para comemorar em jantares; e nada se ouvia a não ser gritos triunfantes de — “Basta isso?”, “É isso o que se quer?”, “Por fim, você está satisfeito?” Mas, no meio do tumulto, lembro-me, todos caímos em silêncio, ao ouvir o velho e cético connaisseur L.S. entrar na sala batendo com sua perna de pau; penetrou no recinto com sua carranca de costume; e, enquanto avançava, persistiu em resmungar e gaguejar o caminho todo — “Mero plágio — baixo plágio de dicas que eu dei! Além disso, o seu estilo é tão duro quanto o de Albert Dürer, e tão grosseiro quanto o de Fuseli.” Muitos pensaram que não se tratava de mais do que ciúme, e de impertinência geral; mas confesso que, quando esfriou o primeiro calor de entusiasmo, verifiquei que os críticos mais judiciosos concordaram em que havia alguma coisa de falsetto no estilo de Thurtell. A verdade reside em que era um membro de nossa sociedade, o que naturalmente comunicou um colorido amistoso a nosso julgamento. E sua pessoa caía bem com a “moda”, o que lhe conferia, com todo o público londrino, uma popularidade temporária que suas pretensões não eram capazes de suportar; pois opiniunum commenta delet dies, naturae judicia confirmat (33). Houve, no entanto, um projeto não executado de Thurtell para o assassinato de um homem com um par de halteres, que eu muito admirei; foi um mero esquema, que ele nunca preencheu; mas, a meu ver, parecia muito superior à sua principal obra. Lembro-me de que alguns connaisseurs multo lamentaram que tenha deixado esse plano em condição inacabada: mas nisso não posso concordar com eles; pois os fragmentos e audaciosos esboços de artistas originais contêm algumas vezes uma felicidade de traço que pode desaparecer quando se preenchem os detalhes. Considero o caso dos M’Keans (34) muito superior à elogiada proeza de Thurtell — eu o considero, na verdade, acima de qualquer elogio; e que ocupa, com relação às obras imortais de Williams, a mesma posição que a Eneida tem para com a ilíada.

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Mas chegou agora o momento de dizer algumas palavras sobre os princípios do assassinato, não com a intenção de regular-vos a prática, mas o julgamento: quanto às senhoras de idade e à malta de leitores de jornais qualquer coisa os contenta, desde que seja bastante sangrento. Mas o espírito sensível, requintado, exige alguma coisa mais. Em primeiro lugar, falemos da espécie de pessoa que se adapta ao propósito do assassino; em segundo, do lugar apropriado ao objetivo do assassino; e, em terceiro, do momento oportuno, e de outras circunstâncias. Quanto à pessoa, suponho evidente que deve tratar-se de um homem bom; porque, se não for esse o caso, ele poderá estar, ao mesmo tempo, contemplando a possibilidade de cometer assassinato; e tais conflitos de “diamante corta diamante”, embora bastante agradáveis quando não há mais nada para se ver, não constituem realmente aquilo que um crítico se pode permitir de chamar assassinatos. Posso mencionar algumas pessoas (não digo nomes) que foram assassinadas por outras pessoas numa viela escura; e tudo até esse ponto parecia bastante correto; mas, aprofundando-se o conhecimento do assunto, o público tomou consciência de que a pessoa assassinada estava, ela própria, no momento, planejando roubar o assassino, pelo menos, e possivelmente assassiná-lo, se tivesse forças para tanto. Sempre que isso for o caso, ou que se possa pensar que foi o caso, digamos adeus a todos os genuínos efeitos da arte. Pois o propósito final do assassinato, considerado como uma das belas artes, é precisamente o mesmo que tem a tragédia, no que diz Aristóteles a respeito, a saber “purgar o coração por meio da piedade e do terror”. Ora, pode haver terror, mas como pode haver qualquer piedade por um tigre destruído por outro tigre? Também é evidente que a pessoa escolhida não deve ser uma personalidade do conhecimento público. Por exemplo, nenhum artista judicioso teria tentado assassinar Abraham Newland (35). Pois o caso era o seguinte: todo mundo lera tanto sobre Abraham Newland, e tão pouca gente jamais o vira, que, para a opinião geral, ele era uma simples idéia abstrata. E lembro-me de que uma vez, quando me aconteceu mencionar que havia almoçado num restaurante em companhia de Abraham Newland, todos me olharam com escárnio, como se eu houvesse pretendido ter jogado bilhar com o Prestes João, ou ter tido um duelo com o Papa. Aliás, o Papa é uma pessoa muito imprópria para ser assassinada, pois possui uma tal ubiqüidade virtual como o pai do mundo cristão, e, como o cuco, é tão freqüentemente ouvido, mas nunca visto, que suspeito de que a maior parte das pessoas também o encara como uma idéia abstrata. Quando, de fato, um homem público tem o hábito de oferecer almoços, com todas as guloseimas da estação, o caso é muito diferente: todos verificam que não se trata de uma idéia abstrata; e, portanto, não pode haver qualquer impropriedade em matá-lo; apenas, sua morte entrará numa classe de assassinatos de que ainda não tratei. Em terceiro lugar, o indivíduo escolhido deve gozar de saúde: pois é absolutamente bárbaro matar uma pessoa enferma, que usualmente é muito incapaz de suportar as circunstâncias. Por esse princípio, nenhum alfaiate deveria ser escolhido com mais de vinte cinco anos de idade, pois em tal altura da vida ele é certamente dispéptico. Ou, pelo menos, se um homem quiser caçar em tal coelheira naturalmente terá como um dever, de acordo com a velha e estabelecida equação, assassinar algum múltiplo de 9 — digamos, 18, 27 ou 36. E aqui, nessa benigna atenção prestada ao conforto das pessoas enfermas, vós observareis o efeito costumeiro de uma bela arte para suavizar e refinar os sentimentos. O mundo em geral, cavalheiros, é muito sanguinário: e tudo o que as pessoas requerem num assassinato é uma copiosa efusão de sangue; para eles, uma faustosa exibição nesse ponto é bastante. Mas o connaisseur esclarecido é mais requintado em seu gosto; e o resultado de nossa arte, como o de todas as outras artes liberais, quando inteiramente dominadas, é humanizar o coração; isso é tão verdade que:

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Ingenuas didicesse fideliter artes. Emolit mores, nec sinit esse feros. (36) Um amigo filosófico, bem conhecido por sua filantropia e benignidade geral, sugere que a vítima escolhida deve também possuir uma família de crianças inteiramente dependentes de seus esforços, de modo a aprofundar o patos. E, sem dúvida, essa é uma precaução judiciosa. Ainda assim, não insistiria demais em tal condição. O bom gosto severo a sugere inquestionavelmente, mas, no entanto, desde que o homem se revele não passível de críticas sob o aspecto da moral e o da saúde, eu não faria uma exigência excessiva de uma restrição que pode ter como efeito reduzir a esfera de atividade do artista. Que isso seja suficiente, quanto à vítima. Quanto à oportunidade, ao lugar, e às ferramentas, muito tenho a dizer, mesmo coisas em tal número que não me resta, no momento, mais lugar para elas. O bom senso do praticante o tem geralmente guiado para a escolha da noite e da intimidade. Contudo, não tem havido falta de casos em que essa regra foi abandonada com excelentes efeitos. Quanto ao momento, o caso da Senhora Ruscombe é urna bela exceção, de que já falei; e, quanto tanto à oportunidade quanto ao lugar, há uma bela exceção nos anais de Edimburgo (ano de 1805), familiar a cada criança daquela cidade, mas a qual foi estranhamente roubada de sua devida porção de fama entre os connaisseurs britânicos. O caso a que me refiro é o de um estafeta de um dos bancos, que foi assassinado quando carregava um saco de dinheiro, em plena luz do dia, saindo da High Street, uma das ruas mais freqüentadas da Europa; e o assassino até hoje não foi descoberto. Sedfugit intereae, fisgit irreparabile tempus, Singula dum capti circumvectamur amore. (37) E agora, cavalheiros, para encerrar, que me seja permitido novamente declinar quaisquer pretensões de minha parte à qualidade de profissional. Nunca tentei qualquer assassinato em minha vida, exceto no ano de 1801, no corpo de um gato. E a tentativa não coroou minha intenção. Meu objetivo confesso era assassiná-lo. Semper ego auditor tantum? disse eu, nunquamne reponam? (38) E eu desci para o andar de baixo em busca do gato à uma hora de uma noite escura, com o animus e, sem dúvida, com o aspecto diabólico de um assassino. Mas, quando o encontrei, ele estava pilhando a despensa de pão e de outras coisas. Ora, isso conferiu um novo aspecto ao assunto; pois, sendo tempo de grande escassez de gêneros, era pura e simples traição da parte de um gato desperdiçar bom pão de trigo como ele estava fazendo. Tomou-se, no mesmo momento, um dever patriótico matá-lo; e, quando elevei e balancei o aço brilhante, imaginei-me surgindo, como Brutas, resplandecente do meio de um grupo de patriotas, e, quando eu o apunhalei, eu Cail ‘d aloud on Tully ‘s name And bade the father of his country hail! (39) Desde então, as ilusões que eu possa ter alimentado de tentar contra a vida de uma antiga ovelha, de uma galinha em idade de aposentadoria, e outras caças de pouca importância, estão encerradas nos segredos de meu próprio coração; mas, quanto aos departamentos mais elevados da arte, confesso ser inteiramente inadequado. A minha ambição não vai até lá. Não, cavalheiros, nas palavras de Horácio: Fungar vice cotis, acutum Reddere quae ferrum valet, exsors ipsa secandi (40)

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NOTAS (1) Kant — que levou suas exigências de veracidade incondicional a um tal ponto de extravagância que afirmou que, se um homem visse uma pessoa inocente escapar de um assassino, seria seu dever, ao ser interrogado pelo assassino, dizer a verdade, e indicar o esconderijo da pessoa inocente, mesmo com a certeza de causar o assassinato. Para que não se supusesse que essa doutrina lhe tinha escapado no calor de alguma disputa, ao ser dela acusado por um famoso escritor francês ele solenemente voltou a afirmá-la, dando suas razões. (N. do A.). (2) Old Bailey: principal corte criminal de Londres (N. do T.). (3) Platão e os que o circundavam (N. do T.). (4) Spartam nactus es, hanc exorna: tu nascestes em Esparta e a admiras. (N. do T.). (5) Autólico, personagem legendário, filho de Hermes e avô de Ulisses, e conhecido como o maior ladrão da antiguidade. (N. do T.) (6) paulo-post-futurum: o futuro que está quase por vir (N. do T.). (7) molosso: pé de três sílabas longas, usado classicamente na Grécia (N. cio T.). (8) “abiit, evasit, excessir, erupit”: foi-se, evadiu-se, apartou-se, mandou-se etc. (N. do T.). (9) Virtù: no sentido italiano em que a emprega Maquiavel, equivalente a força, coragem. (N. do T.) (10) Sheffield: cidade manufatureira na Inglaterra, conhecida pelas indústrias de ferro e aço (N. do T.) (11) Tradução livre: “À vista do que, enfureceu-se internamente e, enquanto falavam, golpeou-o no diafragma com uma pedra, que lhe retirou a vida; e, mortalmente pálido, gemeu a sua alma, que saiu misturada ao sangue em borbotões.” Paraíso Perdido, B. XI (N. do T.) (12) A passagem ocorre na segunda parte de Henrique VI, e é duplamente no- uivei — primeiro, por sua fidelidade crítica à natureza, onde a descrição buscava apenas efeito poético; em segundo lugar, pelo valor judicial que lhe é imprimido quando é apresentado (como aqui é apresentado) em corroboração silenciosa e legal de um terrível rumor, que surge de repente de que houve malignidade na maneira de tratar um grande príncipe, revestido de um caráter oficial. É o Duque de Gloucester, fiel guardião e amoroso tio do rei, simples e imbecil, que foi encontrado morto em sua cama. Como será interpretado esse acontecimento? Morreu ele por força natural da Providência ou por violência de seus inimigos? As duas facções da corte interpretam em sentidos opostos as indicações circunstanciais. O jovem rei, afetuoso e aflito, e cuja posição quase o obriga à neutralidade, não pode, no entanto, disfarçar a suspeita que o invade de uma infernal conspiração nos bastidores. Nessa altura, um líder da facção oposta tenta romper a força dessa franqueza real, subscrita e repetida de maneira muito marcada por Lord Warwick. “Que instância,” ele pergunta querendo dizer com instância não um exemplo ou ilustração, como comentadores apressados sempre supuseram, mas o sentido escolástica comum — que instantia, que pressão de argumento, que prova instante, pode Lord Warwick apresentar para sustentar seu “terrível juramento” — o juramento de que, com tanta certeza com que espera a vida eterna, com a mesma certeza: “Eu acredito que mãos violentas violaram a vida deste três vezes famoso duque.” (continua na pág. seguinte.) Ostensivamente, o desafio é dirigido a Warwick, mas, em substância, é ao rei que visa. E a resposta de Warwick, o argumento em que se fundamenta, consiste numa enumeração solene de todas as mudanças produzidas nos traços do duque pela morte, como irreconciliáveis com qualquer outra hipótese do que a de que sua morte fora violenta. De

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que argumento disponho para provar que Gloucester morreu nas mãos de assassinos? Ora, a seguinte relação de horríveis mudanças, que afetaram a cabeça, os olhos, as mãos, as narinas, etc..., mudanças essas que não pertencem indiferentemente a qualquer modo de morte, mas, com exclusividade, a uma morte por violência: Mas veja, o rosto está escuro e cheio de sangue; Os globos oculares mais proeminentes do que quando vivia; Olhando sinistramente, como os de um homem estrangulado, Seu cabelo descomposto, suas narinas escancaradas pela luta; Suas mãos estendidas, como de alguém que segurasse a vida e a ela se agarrasse; e foi por força vencido. Veja os lençóis: — seu cabelo a eles se prende; Sua barba bem proporcionada tornou-se rude e encrespada, Como o milho do verão varrido pela tempestade. Não pode ter havido outra coisa do que assassinato aqui O menor desses indícios o provaria. Tendo em vista a lógica do caso, não nos esqueçamos por um momento que, para serem de algum valor, os sinais e indícios apresentados devem ser rigorosamente diagnósticos. A distinção que se procura estabelecer é entre a morte que é natural e a morte que é violenta. Todos os indícios, portanto, que pertencem igual e indiferentemente às duas são equívocos, inúteis, e alheios ao próprio propósito dos sinais aqui registrados por Shakespeare. (N. do A.) (13) Quando escrevi isto, eu era da opinião comum a respeito deste assunto. Foi apenas leviandade que me levou a um julgamento tão errôneo. Desde então, meditando sobre o assunto, encontrei muitos motivos para retratar-me: convencido, como estou agora, de que os romanos, em qualquer das artes que lhes permitia igualdade de vantagens, tiveram méritos tão radicais, indígenas, e característicos como os melhores dos gregos. Em outro lugar, defenderei esta causa circunstanciadamente, com a esperança de converter o leitor. Nesse meio tempo, estava ansioso de formular meu protesto contra esse erro muito antigo; um erro que começou com o siconfantismo serviçal de Virgílio, o poeta cortesão. Com o propósito baixo de satisfazer Augusto em seu despeito vingativo contra Cícero, e por meio de introduzir, portanto, a pequena frase, orabunt Causas melius, como aplicável a todos os oradores atenienses diante de todos os oradores romanos, Virgílio não teve escrúpulos em sacrificar por atacado as justas pretensões de seus compatriotas, coletivamente. (N. do A.) ** ** Orabunt causas melius: Defendiam melhor as causas. (N. do T.) (14) Cetegus: Corélio Cetegus, um dos seguidores de Catilina. (N. do T.) (15) Em inglês, a palavra murder designa a morte praticada ilegalmente; murder in the first degree, a morte praticada com malícia; homicide, o homicídio, como em português, com a mesma raiz latina. Assassination implica na idéia de traição, fanatismo, ou de que a vítima seja uma pessoa eminente. Em português, temos homicídio, da mesma origem latina que homicide, e temos assassinato, que não implica necessariamente na idéia de traição, nem implica fanatismo ou a morte de pessoa eminente, O título desta obra, em inglês, é On murder considered as one of the fine arts, que traduzimos como Do assassinato, considerado como uma das belas artes, porque não possuímos em português palavra que implique o mesmo sentido, da mesma raiz de murder, do anglo-saxão morther, de morth, morte, O homicídio, em português, pode ser apenas culposo. Assassinato é a palavra que melhor responde à idéia que está incluída no título. A palavra assassino provém dos seguidores do Velho da

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Montanha, de haxixe ou maconha, que tais seguidores tomavam quando iam empreender os seus atentados. (N. do T.) (16) Folheai-o de noite, folheai-o de dia (Horácio, Arte Poética). (N. do T.) (17) Transportas César e o seu destino. (N. do T.) (18) Esse mesmo argumento foi usado, pelo menos uma vez, de forma excessiva: faz alguns séculos, um delfim da França, quando advertido contra o risco da varíola, fez a mesma pergunta que o imperador: Havia algum cavalheiro ouvido falar de um delfim morto pela varíola?”. Não, nenhum cavalheiro havia ouvido falar de tal caso. Não obstante, o mesmo delfim morreu de varíola. (N. do A.) (19) A vida de Spinoza, pelo Senhor Jean Colerus. (N. do T.) (20) Que sua morte não foi inteiramente natural. (N. do T.) (21) Primeiro de junho de 1675:— “tomei parte de três copos de ponche (uma bebida que me é muito estranha)”, diz o Reverendo Senhor Henry Teonge, em seu Diário publicado por C. Knight. Numa nota a essa passagem, faz-se referência ao livro de Freyer “Viagens às índias Orientais”, 1672, que fala “na bebida enervante chamada paunch (que, em hindu, quer dizer cinco), feita de cinco ingredientes”. Assim feita, parece que os médicos a chamavam de diapente; se são quatro apenas os ingredientes, de diatesseron. Não há dúvida que esse nome evangélico recomendou a bebida ao Reverendo Senhor Teonge. (N. do A.) (22) Extremamente sóbrio em beber e comer. (N:do T.) (23) Moeda holandesa antiga. (N. do T.) (24) “Assim como o terror acompanha o proscrito em todo lugar, então veio à minha mente Dorislaus e Ascham.” (N. do T.) (25) Chatsworth era então, como agora, o soberbo sítio da família Cawndish, do mais alto ramo — naqueles dias do Conde, e agora Duque de Devonshire. É uma coisa que honra a família o fato de que, por duas gerações, concederam asilo a Hobbes. É digno de reparo que Hobbes nasceu no ano da grande armada, da armada espanhola, ou seja, em 1588: tal, pelo menos, é minha opinião. E, portanto, nesse encontro com Tennison em 1670, ele deveria contar com cerca de 82 anos de idade. (N. do A.) (26) É uma brincadeira do autor, porque “Leviatã”, o nome do livro de Hobbes, é também um animal aquático de grande porte, mencionado no livro de Jó, possivelmente um crocodilo. (N. do T.) (27) Deipnosofista: pessoa que fala eruditamente à mesa de refeições; a palavra provém do livro de Ataheneus Deipnosophistaé. (N. do T.) (28) Citação do Hamlet, de Shakespeare. (N. do T.) (29) Spital sermons, sermões de hospital: Depois que publicou o famoso prefácio em latim a Bellendenus, a principal publicação do Doutor Parr encerrou certos sermões, publicados a intervalos, de tempos em tempos, em favor de algum hospital (geralmente, esqueço-me do nome do mesmo) que retiveram, para o título da obra, a palavra Spital, hospital; assim acontece que os próprios sermões são conhecidos pelo título de Spital sermons, sermões de hospital. (N. do A.) (30) Haja Mecenas, e não faltarão Virgílios. (N. do T.) (31) Gravador italiano do século XVIII. (N. do T.) (32) Ver o Pós-Escrito, ao fim desta conferência. (N. do A.) (33) Os comentários da opinião desaparecem com o dia, os que provêm da natureza das coisas, a justiça confirma. (N. do T.) (34) Ver o Pós-Escrito. (N. do A.) (35) Abraham Newland está agora inteiramente esquecido. Mas, quando isso foi escrito, seu nome não tinha cessado de soar nos ouvidos britânicos, como o mais familiar e o mais significativo que talvez jamais houvesse existido. Era o nome que aparecia em todas as notas do Banco da Inglaterra, grandes ou pequenas; e havia sido, por mais de um quarto

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de século (especialmente durante todo o curso da Revolução Francesa), uma expressão abreviada para designar-se papel moeda em sua modalidade mais segura. (N. do A.) (36) “Aprender as puras artes liberais ameniza os costumes, não os deixa ser ferozes.” (N. do T.) (37) “Mas o tempo foge, foge irreparavelmente, enquanto que, seduzidos por nosso assunto, nós o descrevemos, ponto a ponto. (Virgílio, Geórgica, livro III, verso 284). (N. do T.) (38) “Sempre serei ouvinte, nunca agirei?” (N. do T.) (39) “Gritei o nome de Túlio (de Cícero) E saudei o pai de seu país”, Júlio Cesar, Shakespeare. (N. do T.) (40) “Farei da própria pedra de amolar o método de transformar o ferro agudo, capaz de cortar por si mesmo”. (N. do T.) Documento suplementar quanto ao assassinato considerado como uma das Belas Artes O leitor pode estar lembrado de que, muitos anos atrás, eu me apresentei na qualidade dê um diletante em assassinato. Talvez diletante seja uma palavra muito forte. Connaisseur adapta-se melhor aos escrúpulos e à fraqueza do gosto público. Suponho que, pelo menos, nessa palavra não haja dano. Um homem não está obrigado a colocar seus olhos, ouvidos e entendimento nos bolsos das calças quando dá com um assassinato. Se ele não se encontra num estado de coma, suponho que ele deva compreender que um assassinato é melhor ou pior do que outro, em questão de bom gosto. Os assassinatos apresentam suas pequenas diferenças e nuances de mérito, como as estátuas, as pinturas, os oratórios, os camafeus, os entalhes, ou qualquer outra coisa. Pode-se ficar zangado com um homem por falar demasiado ou muito publicamente (quanto ao demasiado, eu o nego — é impossível que um homem cultive seu gosto demasiado altamente): mas é preciso que, pelo menos, se o deixe pensar. Bem, quereis acreditar? Todos os meus vizinhos vieram a ouvir do pequeno ensaio estético que eu publiquei; e, desafortunadamente, ouvindo falar ao mesmo tempo de um clube ao qual eu estava ligado, e de um jantar a que eu presidi — ambos tendendo ao mesmo pequeno objeto do ensaio, a saber, a difusão de um gosto justo entre os súditos de Sua Majestade a Rainha (1), levantaram as mais bárbaras calúnias contra mim. Em particular, disseram que eu, ou o clube (o que vem a dar na mesma coisa) tínhamos oferecido gratificações para homicídios bem conduzidos — com uma escala de descontos, em caso de qualquer defeito ou falha, segundo um índice divulgado entre amigos íntimos. Agora, que me seja permitido dizer a verdade inteira acerca do jantar e do clube, e ver-se-á o quanto o mundo é malicioso. Mas, antes de mais nada, deixai-me dizer quais são os meus princípios reais a respeito do assunto em questão. Quanto ao assassinato, nunca cometi nenhum em minha vida. Isso é coisa bem conhecida entre todos os meus amigos. Posso obter um documento, assinado por quantidade de pessoas, para certificar isso. Em verdade, se é esse o ponto, duvido de que muitas pessoas possam produzir um certificado tão forte. O meu seria tão grande quanto uma toalha de desjejum. Há, de fato, um membro do clube que pretende dizer que me pegou, uma vez, tomando liberdades com sua garganta numa noite no clube, depois que todos se haviam retirado. Mas, observai, ele varia em sua história segundo seu estado de civilização. Quando não muito adiantado, ele se contenta em dizer que me pegou namorando-lhe a garganta; e que eu permaneci triste por algumas semanas depois, e que pelo som da minha voz a audição refinada de um connaisseur podia distinguir o sentimento de oportunidades perdidas; mas todo o clube sabe que ele era, ele próprio, um homem frustrado e

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que ele falava por vezes, lastimosamente, da negligência fatal que comete um homem que sai à rua sem as suas ferramentas. Além disso, tudo não passa de um assunto entre dois connaisseurs, e todo o mundo dá descontos para pequenas asperidades e mentiras em tal caso. “Mas”, dizeis vós, “se você não é um assassino, pode ter encorajado ou mesmo encomendado um assassinato”. Não, por minha honra, não. E era precisamente esse ponto que eu queria demonstrar de maneira a satisfazer-vos. A verdade reside em que eu sou um homem muito particular em tudo o que se refere a assassinato, e talvez exagere em minha delicadeza. O Estagirita, muito justamente, e possivelmente pensando em casos como o meu, colocou a virtude em tà méson, ou ponto médio entre dois extremos. Aquilo a que todo homem deve visar é um pontà áureo, médio. Mas é mais fácil falar do que fazer; e, consistindo minha enfermidade notoriamente em excessiva bondade do coração, acho difícil manter aquela linha equatorial reta entre os dois pólos de demasiado assassinato, por um lado, e demasiado pouco, por outro. Sou muito frouxo — e pessoas são desculpadas por mim, atravessam a vida sem que se faça uma tentativa contra elas, que não deveriam ser desculpadas. Creio que, se eu fosse todo poderoso, haveria dificilmente um assassinato, de fim de ano a fim de ano. De fato, sou favorável à paz, à tranqüilidade e à adulação, e o que se pode ser chamado de ficar por baixo. Um homem se apresentou a mim como um candidato ao lugar de meu empregado, na época vago. Tinha a reputação de haver praticado um pouco a nossa arte; alguns diziam que o fizera, não sem mérito, O que me surpreendeu, no entanto, foi que ele supunha que essa arte constitui parte de seus deveres regulares a meu serviço, e falava em que ela fosse levada em consideração no salário. Ora, era uma coisa que eu não podia permitir; assim, eu disse logo, “Richard (Ou James, conforme o caso), você se engana a respeito de meu caráter. Se um homem quer e precisa praticar esse difícil (e, permita-me acrescentar, perigoso) ramo da arte — se possui um dominante gênio para isso, bem, nesse caso, tudo o que eu digo é que ele pode tão bem levar adiante seus estudos vivendo a meu serviço como vivendo a serviço de outra pessoa. E também devo observar que não pode constituir prejuízo seja para ele próprio ou para sua vítima que se deixe ele guiar por homens de mais gosto do que o que possui. O gênio pode muito, mas um longo estudo da arte deve sempre intitular um homem a dar conselhos. Até esse ponto eu vou — sugerirei princípios gerais. Mas, quanto a qualquer caso particular, digo de uma vez por todas, nada terei a ver com ele. Nunca me fale de qualquer especial obra de arte em que esteja me ditando — contra ela me coloco in toto. Pois se um homem se permite assassinar, logo dá pouca importância a roubar, e de roubar ele vai até beber e a não observar o dia de domingo, e daí para grosseria e procrastinação. Pondo uma vez o pé nessa ladeira, nunca se sabe onde se parará. A ruína de muitos homens começou em algum assassinato ou outro, em que talvez pensou muito pouco, quando o cometeu. Prineipiis obsta — esta é a minha regra (2). Foi isso o que eu disse, e sempre agi de acordo; assim, se isso não é ser virtuoso, gostaria de saber o que é. Agora, falemos do jantar e do clube. O clube não foi particularmente criação minha; nasceu como nascem outras associações similares, para a propagação da verdade e a comunicação de novas idéias, antes das necessidades das coisas do que da sugestão de qualquer homem. Quanto ao jantar, se um homem mais do que outro pode ser considerado responsável pelo mesmo, foi um membro conhecido entre nós pelo apelido de Sapo-no-buraco. Assim era nhamado por causa de sua disposição triste e misantrópica que o levava a constantemente denegrir todos os assassinatos modernos como abortos viciosos, que não pertenciam a qualquer escola autêntica de arte. Fechava a cara, ceticamente, às melhores obras de nossa própria época; e, com o tempo, esse humor de tudo lastimar de tal maneira se desenvolveu em seu interior, e ele se tomou notório como um laudator temporis acti (3), que poucas pessoas buscavam-lhe a sociedade. Isso o tornava ainda mais feroz e truculento. Ele passeava murmurando e grunhindo; sempre que alguém o encontrava, ele estava falando sozinho e dizendo, presunçoso desprezível — sem disposição de grupos — sem duas idéias a respeito da maneira de cometer — sem — e aí a

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pessoa o perdia. Por fim, a existência parecia-lhe penosa; raramente falava; parecia conversar com fantasmas no ar; sua empregada nos informou de que a leitura dele se confinava quase a God’s Revenge upon Murder, de Reynolds, e a um livro mais antigo com o mesmo título, mencionado por 5h Walter Scott em seu livro Fortunes of Nzgel. Algumas vezes, talvez, ele lesse alguma coisa no Newgate Calendar até o ano de 1788, mas nunca folheava um livro mais recente. De fato, alimentava uma teoria com relação à Revolução Francesa, segundo a qual teria sido aquele acontecimento histórico a causa da degeneração no assassinato. “Logo, meu caro Senhor”, costumava dizer, “os homens terão perdido a arte de matar aves domésticas; os próprios rudimentos da arte terão perecido!” No ano de 1811 ele retirou-se do comércio geral do público. O Sapo-no-buraco não era mais visto em qualquer lugar público. Sentimos falta dele nos lugares que costumava freqüentar — “não estava no jardim, não estava na floresta”. Ele se estendia, ao meio-dia, ao lado do principal bueiro, e ponderava a sujeira que por ali seguia. “Os próprios cães”, dizia tal pensativo moralista, “já não são mais o que eram, senhor — nem o que deveriam ser. Lembro-me de que, nos tempos de meu avó, alguns cachorros tinham uma idéia do assassinato. Conheci um mastim, senhor, que sabia permanecer emboscado à espera de um rival e, finalmente, matá-lo, com agradáveis circunstâncias e bom gosto. Também convivi em termos de intimidade com um gato que era um assassino. Mas agora” — e então o assunto tornando-se demasiado penoso, passava a mão pela testa, e partia abruptamente em direção à sua casa, para o seu bueiro favorito, onde foi visto por um connaisseur numa tal condição que pareceu ao que o avistara perigoso dirigir-se a ele. Logo, o Sapo fechou-se inteiramente em casa: compreendeu-se que se entregara à tristeza; e, por fim, a idéia que prevalecia era de que o Sapo-no-buraco se enforcara. O mundo se enganava a esse respeito, como se enganara a respeito de algumas outras questões. O Sapo-no-buraco podia estar dormindo, mas não estava morto; e disso nós tivemos logo prova ocular. Uma bela manhã, em 1812, um connaisseur nos surpreendeu com a notícia de que ele vira Sapo-no-buraco afastando com passos apressados o orvalho, para encontrar o homem do correio ao lado do bueiro. Já isso era alguma coisa: quanto mais consistiu em saber que raspara a barba —pusera de lado suas roupas de cores melancólicas, e se ornara como um noivo dos tempos antigos. Qual poderia ser o significado de tudo isso? Sapo-no-buraco enlouquecera? Como enlouquecera? Pouco depois, descobriu-se o segredo — em mais do que no sentido figurativo “the rnurder was out” (4). Pois chegaram os jornais matutinos de Londres, pelos quais se soube que, apenas três dias antes, um assassinato, o mais soberbo do século por muitos graus, tinha ocorrido no coração de Londres. Quase não necessito dizer que se tratava da grande obra-prima de extermínio de Williams na casa do Senhor Marrs, número 29, Ratciff Highway. Isso foi o début, o primeiro passo, do artista. Pelo menos, naquilo que era do conhecimento público. O que ocorreu na casa do Senhor Williamson doze noites depois — a segunda obra produzida pelo mesmo buril — pareceu a algumas pessoas mesmo superior à primeira. Mas Sapo-no-buraco sempre “reclamava”, ele ficava mesmo furioso com tais comparações. “Este vulgar gout de comparaison (5), como o diz La Bruyêre”, observava com freqüência, “será a nossa ruína; cada obra possui suas características separadas — cada uma por si e em si é incomparável. Alguém, talvez, pudesse sugerir a ilíada — o outro a Odisséia: mas que se obtém com tais comparações? Nenhuma das duas foi ou jamais será superada; e, depois de falar durante horas, chega-se sempre a esse mesmo resultado”. Por vã que fosse qualquer crítica, muitas vezes disse que se poderiam escrever volumes sobre cada um dos casos e mesmo propôs publicar um in quarto sobre o assunto. Entrementes, como pudera Sapo-no-buraco ouvir falar dessa grande obra de arte, tão cedo de manhã? Recebera uma carta expressa, despachada por um correspondente em Londres, que observava para o Sapo o progresso da arte, com uma recomendação geral de enviar um expresso especial, a qualquer custo, no caso do aparecimento de quaisquer

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estimáveis obras de arte. A carta expressa chegou pela noite; Sapo-no-buraco tinha ido àquela altura para a cama; tinha passado horas a resmungar e a grunhir; mas, naturalmente, foi despertado. Ao ler o relato, ele abraçou o mensageiro, declarou-o seu irmão e seu salvador, e expressou o pesar de não estar em seu poder dar-lhe o título de cavalheiro. Nós, connaisseurs, tendo ouvido dizer que saíra de casa, e que, portanto, não se tinha enforcado, tomamos medidas para logo vê-lo em nosso meio. Assim, ele logo chegou; apertou a mão de cada um, enquanto passava — quase arrancou mesmo a mão de cada um, dizendo todo o tempo “Ora, eis alguma coisa como um assassinato! Isso é a coisa certa — isso é autêntico — isso é o que eu posso aprovar e posso recomendar a um amigo: isso — diz a cada um, refletindo — isso são as coisas como devem ser! Tais obras são o bastante para nos rejuvenescer.” E, de fato, a opinião geral reside em que Sapo-no-buraco teria falecido, se não fosse por tal regeneração da arte, que ele chamou de uma segunda Idade de Leão Décimo; e era nosso dever, ele disse, solenemente, comemorar o fato. Pelo momento, e en attendant (6), propôs que o clube se reunisse e jantasse. Foi, portanto, oferecido um jantar pelo clube, para o qual todos os connaisseurs foram convocados de uma distância de cem milhas. Há amplas notas taquigráficas sobre esse jantar, nos arquivos do clube. Mas elas não foram “ampliadas”, para falar em termos diplomáticos; e o relator, única pessoa que podia fazer o.relato in extenso, desapareceu — creio que foi assassinado. Entrementes, em anos muito posteriores àquele dia, e numa ocasião talvez igualmente interessante, a saber, a revelação dos Thugs (7) e do Tuguismo, foi oferecido outro jantar. Deste último eu próprio tomei notas, de medo que outro acidente acontecesse ao repórter taquigráfico. E aqui eu as acrescento. Sapo-no-buraco, devo mencioná-lo, estava presente a tal jantar. De fato, foi um de seus incidentes sentimentais. Sendo tão velho quanto os vales no jantar de 1812, naturalmente tomara-se tão velho quanto as montanhas no jantar Thug de 1838. Voltara a usar a barba; porque, ou com que finalidade, ultrapassa o meu objetivo contar. Mas assim aconteceu. E sua aparência era muito benigna e venerável. Nada podia igualar a radiância angélica de seu sorriso, quando perguntou pelo desafortunado relator (o qual, como um pedaço de escândalo privado, eu poderia contar-vos que se supunha que ele próprio havia assassinado num surto de arte criadora): a resposta veio, com gargalhadas, do subdelegado de nosso condado — “Non est inventus (8)”. Sapo-no-buraco riu ultrajosamente a essa resposta: de fato, todos nós pensamos que se estava sufocando; e, a pedido reiterado da companhia, um compositor musical forneceu um muito belo estribilho sobre a ocasião, que foi cantado cinco vezes depois do jantar, com aplauso universal e um riso que não se extinguia, sendo as seguintes as palavras (e de tal maneira arranjado o coro que imitava belamente o riso singular de Sapo-no-buraco): — Et interrogaium est à Toad-in-the-hole — Ubi est ilie reporter? Et responsum est cum cachinno — Non est inventus. Coro Deinde iteratum est ab omnibus, cum cachinnatione undulante trepidante — Non est inventus. (9) Sapo-no-buraco, devo dizer, cerca de nove anos atrás quando um mensageiro de Edimburgo trouxe-lhe a primeira informação da revolução feita por Burke e Harte na arte (10), enlouqueceu ali mesmo; e, em vez de doar uma pensão ao mensageiro por uma vida, ou torná-lo cavalheiro, tentou Burke o pobre homem; em conseqüência do que foi colocado numa camisa de força. E foi por esse motivo que não tivemos jantar então. Mas agora estávamos todos vivos e ativos, os que tinham vestido camisas de força e os outros; de fato, não se registrou um só ausente em toda a lista. Havia também muitos connaisseurs estrangeiros presentes. Terminado o jantar, e retirada a toalha, houve um pedido geral pelo novo estribilho de Non est inventus; mas como isso teria prejudicado a necessária seriedade da companhia,

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durante os primeiros brindes, não permiti que se cumprisse o pedido. Depois que se fizeram os brindes nacionais, o primeiro brinde oficial do dia foi ao Velho das Montanhas — absorvido em silêncio solene. Sapo-no-buraco agradeceu com um elegante discurso. Ele comparou-se ao Velho das Montanhas, com umas poucas breves alusões, que fizeram a companhia sacudir-se de riso; e concluiu bebendo à saúde do Senhor Von Hammer, com muitos agradecimentos por sua erudita História do Velho Homem e de seus súditos, os assassinos. Nesse momento, levantei-me e disse que, sem dúvida, a maior parte da companhia estava ciente do lugar de distinção atribuído pelos orientalistas ao muito erudito especialista em assuntos turcos, o austríaco Von Hammer; que ele fizera as pesquisas as mais profundas em nossa arte, em ligação com aqueles antigos e eminentes artistas, os assassinos sírios do período das cruzadas; que sua obra fora, por muitos anos, depositada como um raro tesouro de arte na biblioteca do clube, O próprio nome do autor, cavalheiros, indicava-o para ser o historiador de nossa arte — Von Hammer (martelo) — — Sim, sim, interrompeu Sapo-no-buraco, Von Hammer, é ele o homem para um maileus haereticorum (11). Vós todos sabeis que consideração Williams conferiu ao martelo, ou ao malho do carpinteiro naval, que é a mesma coisa. Cavalheiros, eu vos ofereço um outro grande martelo — Carlos, o Martelo, o Marteau, ou, como se dizia em velho francês, o Martel — ele martelou os sarracenos até que eles ficaram todos mortos como pregos. — A Carlos, o Martelo, com todas as honras. Mas a explosão de Sapo-no-buraco, juntamente com os vivas ruidosos ao avô de Carlos Magno, tinham feito a companhia escapar a qualquer controle. A orquestra foi novamente convocada com os maiores gritos a tocar o novo estribilho. Previ uma noite tempestuosa; e tomei providências para que três garçons, de cada lado, me protegessem; o mesmo número assistiu o vice-presidente. Estavam surgindo sintomas de entusiasmo desregrado; e devo confessar que, eu próprio, estava consideravelmente excitado, quando a orquestra irrompeu com sua tempestade de música, e se iniciou o estribilho apaixonado — Et interrogatum est à Toad-in-the-Hole — Ubi est ilie Reporter? E o furor da paixão tornou-se absolutamente convulsivo, quando o coro inteiro entoou: — Et iteram est ab omnibus — Non est inventus. O brinde seguinte foi erguido aos Sicários judeus. Nesse instante, eu fiz a seguinte explicação à companhia presente: — Cavalheiros, estou seguro que interessará a todos vós ouvir que os assassinos, embora muito antigos, tiveram uma raça de predecessores no mesmo país. Por toda a Síria, mas particular- mente na Palestina, durante os primeiros anos do Imperador Nero, havia um bando de assassinos, que levavam a efeito seus estudos de uma maneira muito nova. Não praticavam durante a noite, ou em lugares solitários; mas, considerando com muita justiça que as grandes multidões são, elas próprias, uma espécie de escuridão por meio da pressão densa, e por causa da impossibilidade de descobrir-se quem desfechou o golpe, eles se misturavam aos grandes grupos em todos os lugares; particularmente, durante a grande festa pascoal em Jerusalém; onde tiveram a audácia, como Josephus o afirma, de agir no próprio templo — e quem escolheram como vítima a não ser o próprio Jônatas, o Pontífice Máximo? Assassinaram-no, cavalheiros, tão belamente como se o tivessem encontrado sozinho, numa noite sem lua, numa viela escura. E, quando se perguntou quem era o assassino, e onde ele estava. — Ora, então se respondeu — interrompeu Sapo-no-buraco, Non est inventus, — E então, a despeito de tudo o que eu pude fazer ou dizer, a orquestra começou a tocar, e toda a companhia cantou — Ei’ interrogatum est à Toad-in-the-Hole — Ubi est ilie Sicarius? Et responsum est ab omnibus Non est inventus.

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Quando o tempestuoso coro se acalmou, retomei a palavra: — Cavalheiros, encontrareis um relato muito circunstanciado dos Sicários em pelo menos três diferentes partes de Josephus; uma vez no Livro XX, seção V, c. 8, de suas “Antiguidades”; uma vez, no livro 1 de suas “Guerras”; mas na seção X do capítulo X mencionado vós achareis uma descrição particular das ferramentas de que se serviam. É isso o que diz: “Armavam-se com pequenas cimitarras não muito diferentes das acinacoe persas, mas mais recurvadas, e em tudo muito parecidas com as sicoe romanas”. É de uma grande magnificência ouvir a continuação da história. talvez o único caso que se registre em que um exército regular de assassinos foi reunido, um fustus exercitus, foi o caso de tais Sicários. Juntaram-se em tal força no deserto que o próprio Festus foi obrigado a marchar contra eles com a força legionária romana. Seguiu-se uma batalha campal; e o exército de connaisseurs foi destruído no deserto. Céus, cavalheiros, que quadro sublime! As legiões romanas — o deserto — Jerusalém a distância — um exército de assassinos no primeiro plano! O brinde seguinte foi: — Para o maior aprimoramento das ferramentas, e agradecimentos ao Comitê por seus serviços. O Senhor L., em nome do Comitê que redigira o relatório sobre esse assunto, agradeceu o brinde. Fez um interessante resumo do relatório, do qual transparecia quanta importância se atnbuíra na antiguidade, por parte dos padres, tanto gregos como latinos, ao modo de armar-se uma pessoa. Em confirmação desse agradável fato, fez uma declaração muito impressionante relacionada ao primeiro trabalho de arte antediluviana. O Padre Mersenne (12) de seu laborioso Comentário sobre o livro da Gênesis, menciona, citando a autoridade de vários rabinos, que a disputa entre Cain e Abel teve como origem uma jovem mulher; que, segundo vários relatos, Cain obrara com seus dentes (Abel foi mordido e dilacerado por Cain); segundo outros relatos, com o maxilar de um asno, que é a ferramenta reproduzida pela maioria dos pintores. Um autor pretende que Cain usou um forcado de ferro, São Crisóstomo, que usou uma espada, Irineu, uma foice, e Prudência, o poeta cristão do quarto século diz que recorreu Cain a uma podadeira. Este último escritor expressa sua opinião assim: Frater, probatae sane titatis aemulus, Germana curvo colia frangit sarculo: que significa que seu irmão, com ciúmes de sua comprovada santidade, fratura-lhe o peito fraterno com uma podadeira recurvada. “Tudo o que é respeitosamente submetido por vosso comitê, não tanto como coisa que decida a questão (pois não decide), mas para demonstrar aos espíritos jovens a importância que sempre foi atribuída à qualidade das ferramentas por homens tais como Crisóstomo e Irineu.” — Que se dane Irineu! — disse Sapo-no-buraco, que agora se levantou impacientemente para erguer o novo brinde: A nossos amigos irlandeses; desejando-lhes uma rápida revolução nas ferramentas que usam, e também em tudo o mais ligado à arte! — Cavalheiros, dir-vos-ei a verdade nua e crua. Cada dia do ano, quando pegamos um jornal, lemos o anúncio de um assassinato. Dizemos: isso é bom, isso é encantador, isso é excelente! Mas, cuidado! Apenas avançamos um pouco na leitura, e já topamos com alguma coisa que trai a manufatura irlandesa, tal como a palavra Tipperary ou Bailina. No mesmo momento, passamos a detestar o caso; chamamos o garçom; dizemos ‘Garçom, leve este jornal, mande-o para fora da casa; é absolutamente um escândalo para as narinas do bom gosto’. Recorro a cada um de vós, para saber se, ao verificar que um assassinato (sob certos aspectos, talvez, bastante promissor) é irlandês, não se acha tão insultado como quando, ao pedir vinho de Madeira, ele vê que lhe deram vinho do Cabo; ou, quando, comendo o que ele julga ser um cogumelo, vê que se trata do que as crianças apelidam de

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cabeça de sapo. Dízimos, política, alguma coisa de errado em princípio vicia todo assassinato irlandês. Cavalheiros, isso deve ser reformado, ou a Irlanda não será um país em que se possa viver; pelo menos, se vivermos ali, teremos de importar todos os nossos assassinatos, isso é claro. — Sapo-no-buraco sentou-se, grunhindo com suposta raiva; e o tumultuoso “Ouçam! Ouçam!” expressou, clamorosamente, a concordância geral. O brinde seguinte foi erguido — “à sublime época do Burquismo e do Harismo”! Esse brinde foi ingerido com entusiasmo, e um dos membros, que falou sobre a questão, fez uma comunicação muito curiosa à companhia: — Cavalheiros, nós pensamos que o Burquismo é uma pura invenção de nossos tempos; e, de fato, nenhum Plincjrollus incluiu esse ramo de arte, quando escreveu de rebus deperditis (13). Contudo, verifiquei que o princípio essencial dessa variedade da arte era conhecido dos antigos; embora se tenha perdido nas idades escuras, como a arte de pintar em vidro, ou de fazer copos de mirra, etc . . . Na famosa coleção de epigramas gregos feita por Planudes (14), um dentre eles trata de um caso muito fascinante de Burquismo: é uma perfeita jóia da arte. Do próprio epigrama não posso lançar mão agora, mas o que segue é um resumo dele por Salmasius, tal como o encontro em suas notas sobre Volpiscus (15): ‘Est et elegans epigramma Luci lii, ubi medicus et pollinctor de compacto sic egerunt, ut medicus omnes curae suae commissos occideret: (16) esse era o fundamento do contrato, vós vedes, que, por um lado, o médico, em seu próprio nome e no nome de seus agentes, se compromete, devida e verdadeiramente, a assassinar todos os pacientes entregues a seus cuidados: mas, para quê? Nisso consiste a beleza do caso — ‘Et ut pollinctori amico suo traderet poiligendos.’ O pollinctor, como os Senhores sabem, era uma pessoa cujo ofício consistia em vestir e preparar cadáveres para o enterio. ‘Era meu amigo’, diz o médico assassino; ‘ele me era caro’, falando do pollinctor. Mas a lei, cavalheiros, é severa e dura: a lei não quer saber de tais motivos ternos; para que se sustente um contrato de tal natureza na lei, é essencial que “um motivo de substância” seja dado. Ora, qual era tal motivo de substância? Pois até agora tudo está do lado do pollinctor: ele será bem pago pelos seus serviços; mas, entrementes, o generoso, o nobre médico não ganha nada. Qual era o equivalente, pergunto de novo, que a lei insistiria em que o médico aceitasse, para que se estabelecesse aquele “motivo de substância”, sem o qual o contrato não tinha força? Vós escutareis: ‘Et ut pollinctor vicissim tal- monas quos furabatar de pollinctione mortuorum medico mitteret donis ad aiiganda vuinera eorum quos curabat’; ou seja, que, reciprocamente, o pollinctor transmitisse ao médico, como presentes pelo tratamento das feridas naqueles sob os seus cuidados, os cintos ou trouxas (telamones) que conseguira furtar, em seus serviços no cadáver. Ora, o caso é claro. Tudo se passava segundo um princípio de reciprocidade que deveria ter mantido o comércio para sempre. O médico também era um cirurgião: ele não podia assasinar todos os seus pacientes; alguns dos pacientes deviam ser conservados intactos. Para esses, ele necessitava de ataduras de linho. Mas, infelizmente, os romanos usavam lã, motivo pelo qual se banhavam com tanta freqüência. Entrementes, havia linho em Roma; mas era monstruosamente caro; e os telamones, ou ataduras de linho, com as quais a superstição os obrigava a vestir os seus cadáveres, podiam ser de grande utilidade para o cirurgião. O médico, portanto, se compromete a fornecer a seu amigo uma constante sucessão de cadáveres, desde que, e seja isso sempre entendido, o mencionado amigo, em troca, lhe forneça uma metade dos artigos que viesse a receber dos amigos das partes assassinadas ou por serem assassinadas. O doutor recomendava invariavelmente seu valioso amigo, o pollinctor (que nós podemos chamar de empresário de pompas fúnebres); esse empresário, com consideração igual aos direitos sagrados da amizade, sempre recomendava o médico. Como Orestes e Pilades, eram modelos de amizade perfeita: em suas vidas, eram dignos de amor; e, na forca, é de esperar, não se dividiam. Cavalheiros, é uma coisa que me faz rir horrivelmente pensar naqueles dois amigos tirando e retirando um do outro: ‘Foilinctos na conta do médico, devedor de dezesseis

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cadáveres; credor de quarenta e cinco ataduras, duas das quais com defeito’. Os nomes de tais pessoas infelizmente perderam-se; mas concebo que se deveriam chamar de Quintos Burquis e Publius Harius. Por falar nisso, cavalheiros, algum de vós ouviu recentemente falar de Hare? Soube que está confortavelmente estabelecido na Irlanda, consideravelmente a oeste, e faz um ou outro pequeno negócio, de tempos em tempos; mas, como ele próprio diz, com um suspiro, apenas negócios de varejo — nada como o próspero negócio por atacado descoberto, por descuido dos dois, em Edimburgo. ‘Vós vedes o que resulta de tomar mal conta dos negócios’ — é a moral principal, a epimátion, como diria Esopo, que Hare retira de sua experiência passada. Por fim, ergueu-se o brinde do dia — Aos Thugs em todos os seus ramos. As tentativas de discursos nesse momento crítico do jantar ultrapassam qualquer enumeração. Mas o aplauso foi tão furioso, a música tão tempestuosa, e os copos se quebravam de forma tão incessante, por causa da resolução tomada de não se beber um brinde inferior com o mesmo copo, que eu não estou ao alcance da tarefa de relatar. Além disso, Sapo-no-buraco tornou-se incontrolável. Detonava pistolas em todas as direções; enviou o empregado para que lhe trouxesse um bacamarte, e falou em carregá-lo com cartuchos. Pensamos que sua loucura havia retornado à menção de Burke e Hare; ou que, sentindo-se novamente cansado da vida, resolvera desaparecer no meio de um massacre geral. Isso não podíamos permitir; tornou-se, portanto, indispensável pô-lo para fora aos pontapés, o que foi feito, com o consentimento universal, toda a companhia agindo uno pede, como eu poderia dizer, embora sentindo piedade de seus cabelos brancos e sorriso angélico. Durante essa operação a orquestra voltou ao velho coro. Toda a companhia entoou e (o que mais nos surpreendeu) Sapo-no-buraco uniu-se a nós furiosamente a cantar: Et interrogatum est ab omnibus — Ubi est ille Toad-in-theHole? Et responsum est ab omnibus — Non est inventus. NOTAS (1) Sua Majestade a Rainha Na conferência, tendo ocasião de referir-se ao soberano reinante, eu disse “o Rei”; pois, naquela época, Guilherme IV estava no trono: mas, entre a conferência e este suplemento, ocorrerá a ascensão da presente Rainha. (N. do A.) (2) No princípio é que se devem atalhar os grandes males. Ovídio. (N. do T.) (3) O que vive de ganhar o tempo passado. Horácio. (N. do T.) (4) The murder was out: é um trocadilho intraduzível em.português, a expressão tem o sentido geral de que o segredo se revelou, e é empregado, no texto, no sentido particular de que “houve um assassinato”. (N. do T.) (5) Gosto de comparação. (N. do T.) (6) Enquanto se aguardava. (N. do T.) (7) Membros de uma associação de ladrões profissionais na Índia que assassinavam suas vítimas. (N. do T.) (8) Não foi encontrado. (N. do T.) (9) E foi perguntado a Sapo-no-buraco: — Onde está aquele repórter? E respondido foi, com grande risada: — Não foi encontrado. Coro Então foi repetido por todos, com gargalhada ondulante, trepidamente: Não foi encontrado. (N. do T.) (10) Assassinatos cometidos por Burke e Harte em Edimburgo, no começo do século XIX. (N. do T.) (11) mallea haereticorum: martelo dos heréticos. (N. do T.)

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(12) “Página mil quatrocentos e trinta e um” — literalmente, amável leitor, não se trata de uma brincadeira. (N. do A.) (13) Pancirrollus: jurisconsulto italiano do século XVI que escreveu um livro sobre “as coisas memoráveis perdidas”. (N. do T.) (14) Planudes: escritor grego do século XIII. (N. do T.) (15) Escritores latinos; Volpiscus é do século IV de nossa era. (N. do T.) (16) O latim vem traduzido em seguida pelo autor. (N. do T.) Pós-escrito E uma tarefa impossível conciliar leitores de uma classe tão saturnina e melancólica que não podem simpatizar congenialmente com qualquer alegria, mas, menos do que todas, com uma alegria que penetra um tanto na província da extravagância. Em tal caso, não simpatizar equivale a não entender; e a jovialidade que não é apreciada tornar-se chata e insípida, ou absolutamente desprovida de sentido. Afortunadamente, depois que todos tais rústicos se retiraram de meu público em sinal de grande desagrado, permanece uma grande maioria que celebra em voz alta o divertimento aurido deste pequeno ensaio; ao mesmo tempo, tais pessoas que constituem a mencionada maioria dão provas da sinceridade de seus elogios com uma hesitante expressão de censura. Repetidamente, sugeriram-me que, talvez, a extravagância, embora claramente intencional, e embora forme um elemento da jovialidade geral da concepção, foi muito longe. Não partilho essa opinião; e peço vênia para lembrar a esses amistosos censores que está entre os objetivos diretos e esforços desta bagatela roçar pelo limite do horror, e de tudo aquilo cuja realização seria extremamente repulsiva. O próprio excesso da extravagância, de fato, ao sugerir ao leitor, de modo constante, o aspecto puramente aéreo, imaginário, de toda a especulação, fornece-lhe o meio mais seguro de desencantar-se do horror que lhe poderia pesar nos sentimentos. Que me seja permitido lembrar a tais censores, de uma vez por todas, a proposta de Jonatham Swift, de que se aproveitassem, cozinhando-as e comendo-as, as crianças supranumerárias dos três remos, que naqueles dias, tanto em Dublin quanto em Londres, eram cuidadas em asilos para enjeitados. Tal proposta era uma extravagância, embora realmente mais audaciosa e mais prática de um modo grosseiro do que a minha, e não suscitou quaisquer reprovações, mesmo se tratando o autor de um dignatário da suprema irlandesa; sua própria monstruosidade foi sua desculpa; sentiu-se que o aspecto de mera extravagância permitia e conferia crédito ao pequeno jeu d’esprit, precisamente como as puras impossibilidades de Liliput, de Laputa, dos Yahoos, etc ... haviam permitido aquelas. Se, portanto, algum homem julgar que vale a pena esgrimir contra uma mera espuma de jovialidade como a presente conferência sobre a estética do assassinato, eu me abrigo, pelo momento, atrás do escudo de Telamon do Deão Swift. Mas o que vou dizer, e que, na verdade, constitui um dos motivos para reter a atenção do leitor com este pós-escrito, é real: a minha própria pequena conferência pode reivindicar uma desculpa para sua extravagância, tal como está de modo inteiro ausente da obra do Deão. Ninguém pode pretender, por um só momento, em defesa de Swift, que há uma tendência ordinária e natural nos pensamentos humanos que jamais nos pudesse inclinar a fazer das crianças artigos de alimentação; em quaisquer circunstâncias imagináveis, isso seria qualificado como a mais grave forma de canibalismo — o canibalismo se aplicando à mais indefesa parte da espécie. Mas, por outro lado, a tendência para uma avaliação crítica ou estética de incêndios e assassinatos é universal. Se alguém for convocado ao espetáculo de um grande incêndio, indubitavelmente sentirá como primeiro impulso ajudar a apagá-lo. Mas esse campo de esforço é muito limitado, e é logo preenchido por profissionais regulares, treinados e equipados para o serviço. No caso de um incêndio que ocorre em propriedade

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privada, a piedade pelo desastre que aflige um vizinho impede-nos, de início, de tratar o assunto como um espetáculo cênico. Mas talvez o incêndio se limite a prédios públicos. E, em qualquer caso, depois que tivermos pago nosso tributo à pena que devemos sentir pelo ocorrido, passamos, inevitavelmente, sem constrangimento, a considerá-lo como um espetáculo de teatro. Surgem, numa espécie de embevecimento, do meio da multidão exclamações do tipo: Como é grandioso! Como é magnifício! Por exemplo, quando o teatro de Drury Lane foi incendiado na primeira década deste século, a queda do telhado foi assinalada por um suicídio simbólico da estátua de Apolo que protegia o teatro, e que encimava e ornava ó centro do telhado, O deus estava quieto com sua lira, e parecia desprezar as ruínas incendiadas que tão rapidamente se aproximavam dele. De repente, as traves de madeira que o sustentavam cederam; um tremor convulsivo das chamas pareceu, por um momento, elevar a estátua; e, então, como causa de algum impulso de desespero, a divindade que àquilo tudo presidia pareceu não cair, mas jogar-se no dilúvio de chamas, pois se atirou de cabeça; e, sob todos os aspectos, a descida pareceu um ato voluntário, O que se seguiu? De todas as pontes sobre o rio, e de todas as áreas que dominavam o espetáculo, ergueu-se um grito unânime de admiração e de simpatia. Alguns anos antes desse acontecimento ocorreu um prodigioso incêndio em Liverpool; o Goree, um vasto amontoado de armazéns próximos a uma das docas foi incendiado até as cinzas. O enorme edifício, com oito ou nove andares de altura, e carregado com os artigos mais combustíveis, muitos milhares de fardos de algodão, trigo e aveia em milhares de alqueires, alcatrão, terebintina, pólvora, etc ... continuou, horas seguidas, a alimentar o tremendo fogo. Para agravar a calamidade, soprava um vento muito forte; felizmente, para os navios, o vento soprava para dentro da terra, ou seja, para o leste; e em todo o caminho para Warrington, a dezoito milhas de distância para o lado este, o ar inteiro estava iluminado por fagulhas de algodão, muitas vezes saturadas de rum, e pelo que parecia mundos de centelhas flamejantes, que iluminavam todas as câmaras superiores da atmosfera. Todo o gado nos campos, numa circunferência de dezoito milhas, foi tomado de terror e de agitação. Os homens, naturalmente, interpretaram esse movimento aéreo de vórtices incendiados e cintilantes como o anúncio de alguma calamidade que se passava em Liverpool; e as lamentações por causa disso foram universais. Mas aquela corrente de simpatia pública não alcançou suprimir ou mesmo refrear as explosões momentâneas de admiração enlevada, quando essa saraivada de fogo de muitas cores passou nas asas do furacão, alternadamente através de profundidades abertas de ar, ou através de nuvens escuras acima. Aplica-se precisamente o mesmo tratamento a assassinatos. Depois que se paga o primeiro tributo de lástima aos que pereceram, mas, em todos os casos, depois que se tranqüilizaram os interesses pessoais, pela passagem do tempo, inevitavelmente os traços cênicos (o que esteticamente se pode chamar das vantagens comparativas) dos vários assassinatos são revistos e avaliados. Compara-se um assassinato com outro; e as circunstâncias de superioridade, como, por exemplo, na incidência e nos efeitos da surpresa, do mistério, etc... são confrontadas e julgadas. Reivindico, portanto, para a minha extravagância um fundamento inevitável e perpétuo nas tendências espontâneas do espírito humano, quando abandonado a ele próprio. Mas ninguém pretenderá que se pode reivindicar a mesma coisa no que diz respeito à Swift. Nessa importante distinção entre eu próprio e o deão repousa um motivo que me levou a redigir o presente pós-escrito. Um segundo objetivo do pós-escrito reside em tornar o leitor circunstanciadamente familiar com três memoráveis casos de assassinato, que, faz muito tempo, a voz dos amadores coroou com lauréis, mas especialmente com os dois primeiros dos três, a saber, os imortais assassinatos cometidos por Williams em 1812. Tanto o ato como o ator são, cada um separadamente, interessantes ao mais alto grau; e, como se passaram quarenta e dois anos desde 1812, não se pode supor que qualquer dos dois, o ato ou o ator, seja circunstanciadamente conhecido dos homens da geração atual.

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Nunca, em todos os anais da cristandade, se registrou qualquer ato de um solitário, isolado indivíduo, armado do poder de apavorar de tal forma os corações dos homens como aquele assassinato de extermínio, pelo qual, durante o inverno de 1812, John Williams, no espaço de uma hora, esvaziou duas casas pela morte, exterminou quase duas famílias inteiras, e afirmou sua própria supremacia acima de todos os filhos de Cain. Seria absolutamente impossível descrever adequadamente o delírio de sentimentos que, em toda a quinzena que se seguiu, dominou o coração popular; o puro frenesi de horror e de indignação em alguns, o mero frenesi de pânico em outros. Por doze dias que se sucederam, por causa de alguma noção desprovida de fundamento de que o assassino desconhecido deixara Londres, o pânico que convulsionara a poderosa metrópole difundiu-se por toda a ilha. Eu próprio encontrava-me, naquele momento, a cerca de trezentas milhas de Londres; mas lá, e em todo lugar, o pânico era indescritível. Uma senhora, minha próxima vizinha, que eu conhecia pessoalmente e que vivia pelo momento na ausência do marido com uns poucos empregados numa casa muito solitária, não teve descanso até colocar dezoito portas (como me contou e me demonstrou por prova ocular), cada uma garantida por poderosos ferrolhos, e trancas e correntes, entre seu próprio quarto de dormir e qualquer intruso de constituição humana. Para alcançá-la mesmo em sua sala de estar, era como entrar, com uma bandeira de trégua, numa fortaleza cercada; a cada sexto passo era-se parado por uma espécie de ponte levadiça. Não se limitou o pânico aos ricos; mulheres das classes mais humildes mais de uma vez morreram instantaneamente do choque despertado por algumas suspeitas tentativas de intrusão da parte de vagabundos, que não tinham, com toda probabilidade, em mente mais do que um roubo, mas que as pobres mulheres, enganadas pelos jornais de Londres, tinham tomado pelo terrível assassino. Entrementes, esse artista solitário, que repousava no centro de Londres, suportado pela própria consciência de sua grandeza, como um Átila nacional, ou “flagelo de Deus”; esse homem, que caminhava ao abrigo da escuridão, e que dependia do assassinato (como transpirou mais tarde) para o pão, para roupas, para progredir na vida, estava silenciosamente preparando uma resposta efetiva aos jornais públicos; e, no décimo-segundo dia depois de seu primeiro assassinato, ele divulgou sua presença em Londres, e fez saber a todos os homens o absurdo de atribuir-lhe propensões campestres, desferindo um segundo golpe, e efetuando um segundo extermínio de família. De alguma maneira se aliviou o pânico nas províncias por essa prova de que o assassino não condescendera a escapulir para o campo ou a abandonar por um momento, por qualquer motivo de precaução ou medo, o grande metropolitano acampamento fixo (castra stativa) do crime gigantesco situado para sempre no Tâmisa. De fato, o grande artista desprezava uma reputação provincial; e deve ter julgado, como um caso de desproporção ridícula, o contraste entre uma cidade rural ou aldeia, por um lado, e, por outro, uma obra mais duradoura do que bronze um kinua éc aeh — um assassinato de tal qualidade como qualquer assassinato que ele aceitaria reconhecer como uma obra saída de seu estúdio. Coleridge, a quem eu vi alguns meses depois desses terríveis assassinatos, disse-me que, por sua parte, embora naquele momento residisse em Londres, não compartilhava do pânico que prevalecia. A ele tais crimes afetaram apenas como um filósofo e o mergulharam numa profunda meditação sobre o tremendo poder que está, num momento, ao alcance de qualquer homem que se pode reconciliar com o abandono de todos os constrangimentos conscientes, se ao mesmo tempo for inteiramente desprovido de medo. Não partilhando do pânico público, no entanto Coleridge não o considerou irrazoável; pois, como disse com muita verdade, naquela vasta metrópole há muitos milhares de famílias, compostas exclusivamente de mulheres e de crianças; muitos milhares de outras há que confiam necessariamente, em matéria de segurança, durante as compridas noites, na discrição de uma jovem empregada; e se esta for levada, pelo pretexto de uma mensagem da mãe, de uma irmã, ou de um namorado a abrir a porta, ali mesmo, no espaço de um

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segundo, acaba-se a segurança da casa. Contudo, naquela época e durante muitos meses depois prevaleceu geralmente a prática de colocar-se firmemente uma corrente na porta, o que durante um longo tempo serviu de lembrança da impressão profunda produzida em Londres pelo Senhor Williams. Posso acrescentar que Southey partilhou profundamente do sentimento público naquela ocasião, e disse-me, uma semana ou duas depois do assassinato, que era um acontecimento particular daquela ordem que ascendia à dignidade de um acontecimento nacional (1). Mas agora, tendo preparado o leitor a apreciar em sua verdadeira escala esse terrível tecido de assassinatos (o qual, como um registro pertencente a uma era que está agora quarenta e dois anos atrás de nós, não se pode esperar de uma pessoa em quatro desta geração conhecer corretamente), que me seja permitido passar aos detalhes circunstanciados do assunto. Contudo, antes de mais nada uma palavra a respeito do cenário local dos assassinatos. Ratcliff Highway é uma via pública num extremamente caótico quarteirão de Londres oriental ou náutico; e, naquela época (em 1812), quando não existia polícia adequada, a não ser a polícia de detetives de Bow Street, admirável para seus propósitos singulares mas em número insuficiente para o serviço geral da capital, era um quarteirão excessivamente perigoso. Podia-se dizer de cada homem em três que era um estrangeiro. A cada passo se encontravam homens da Índias Orientais, chineses, mouros, negros. E, além das formas muito variadas de rufianismo, oculto impenetravelmente sob os chapéus e turbantes mesclados de homens cujo passado nenhum olho europeu podia distinguir, é bem sabido que a marinha (especialmente a marinha mercante, em tempo de guerra) da cristandade é o receptáculo seguro de todos os assassinos e rufiões cujos crimes lhes deram motivo para se retirarem, por um tempo, da atenção pública. É verdade que poucos homens dessa espécie têm qualificações para atuarem como marinheiros habilitados: mas sempre, e especialmente durante guerras, só uma pequena proporção (ou núcleo) da tripulação de cada navio consiste de gente habilitada; a grande maioria é constituída por pessoal da terra, embarcado, não treinado. John Williams, no entanto, que tinha sido por vezes tido como marinheiro a bordo de vários navios mercantes do caminho das índias, etc... era provavelmente um perito do mar. As mais das vezes, de fato, mostrava-se um homem pronto e destro, fértil em recursos sob quaisquer inesperadas dificuldades, e que se adaptava com grande flexibilidade a todas as variedades de vida social. Williams era um homem de estatura mediana (de metro e setenta e um, metro e setenta e dois) delgadamente constituído, antes magro do que gordo, mas cheio de nervos, toleravelmente musculoso, e livre de qualquer carne supérflua. Uma senhora que o viu sendo examinado (creio que na Delegacia de Polícia do Tâmisa) garantiu-me que o cabelo dele era da cor mais extraordinária e vívida, a saber, amarelo brilhante, alguma coisa entre uma cor de laranja e de limão. Williams estivera na Índia; principalmente em Bengala e Maclras; mas também navegara pelo Indo. Ora, é notório que no Punjab os cavalos de grande raça são muitas vezes pintados — de escarlate, de azul, de verde, de púrpura; e pareceu-me que Williams poderia, para algum propósito ao acaso, ter seguido essa prática da Síndia ou do Lahore, e que a cor de seu cabelo não fosse natural. Sob outros aspectos, sua aparência era bastante natural; e, a julgar por uma máscara de gesso feita dele, que eu adquiri em Londres, diria que a aparência era medíocre, no que diz respeito à estrutura facial. Um fato, no entanto, chamava a atenção, e coincidia com seu caráter natural de tigre: que seu rosto exibia sempre uma palidez macilenta e cadavérica. “Seria possível imaginar”, disse a minha informante, “que em suas veias não circulava sangue vermelho, vivo, tal como poderia animar o rosto de vergonha, de raiva, ou de piedade — mas um sumo verde que não saía de um coração humano”. Seus olhos eram gelados e vidrados, como se a luz neles convergisse para alguma vítima já existente em seu interior. Até aí sua aparência poderia ter causado repulsa; mas, por outro lado, o testemunho concorrente de muitas testemunhas, e também o testemunho silencioso dos fatos, mostravam que a untuosidade e insinuação

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serpentina de seu comportamento compensavam o aspecto repulsivo de seu rosto sinistro, e, entre moças inexperientes, conquistavam-lhe uma recepção muito favorável. Em particular, uma jovem de maneiras gentis, a quem Williams tinha, sem dúvida, projetado matar, testemunhou que, certa vez, quando ele estava só com ela, dissera: “Ora, Senhorita R., supondo que eu aparecesse pela meia-noite ao pé de sua cama, armado com uma faca, que diria a Senhorita’?”. Ao que a moça, muito confiante, respondeu: “Senhor Williams, se fosse qualquer outra pessoa, eu teria medo. Mas, logo que eu ouvisse sua voz, eu me tranqüilizaria”. Pobre moça; tivesse esse projeto do Senhor Williams se cumprido, ela teria visto alguma coisa naquela face de cadáver, e ouvido alguma coisa na voz sinistra, que lhe teria retirado a tranqüilidade para sempre. Mas nada menos do que tais experiências terríveis podia servir para desmascarar o Senhor John Williams. Foi naquela perigosa região que, numa noite de sábado em dezembro, o Senhor Williams, que devemos supor ter, fazia muito tempo, praticado o seu coup d’essai, o seu primeiro golpe, forçou o caminho através de ruas atravancadas de gente, decidido a trabalhar. Dizer era fazer. E, aquela noite, ele dissera entre si, secretamente, que executaria um plano que já tinha esboçado, e que, quando executado, estava destinado a “produzir consternação em todos os poderosos corações de Londres”, do centro aos subúrbios. Mais tarde, foi lembrado que deixara seus aposentos com esse escuro propósito, cerca das onze horas da noite; não que quisesse começar tão cedo, mas necessitava fazer um reconhecimento dos lugares. Carregava suas ferramentas bem abotoadas sob o casaco, frouxo e espaçoso. Estava em harmonia com a sutileza geral de seu caráter, e com sua requintada repulsa à brutalidade, que, de acordo com a opinião de todos, suas maneiras se distinguiam por uma delicada suavidade: o coração de tigre mascarava-se pelo refinamento mais insinuante e mais serpentino. Todos os que o conheciam descreveram, mais tarde, sua dissimulação, como tão pronta e perfeita que se, caminhando através das ruas, sempre tão freqüentadas numa noite de sábado, numa vizinhança tão pobre, ele se tivesse por acaso chocado com uma pessoa, ele teria (como todos garantiam) estacado para desculpar-se da maneira mais cavalheiresca: com seu coração diabólico entregue aos mais infernais objetivos, teria, contudo, parado para exprimir a esperança benigna de que o enorme malho, preso ao seu elegante sobretudo, e que se destinava ao pequeno negócio que o aguardava dentro de noventa minutos, não tivesse inflingido qualquer dor ao estranho com o qual colidira. Creio que Ticiano, mas certamente Rubens, e talvez Van Dyke, seguiam a regra de nunca praticar a sua arte a não ser perfeitamente vestidos: punhos de renda, cabeleiras, e espada com punho de diamante; e há razão para acreditar que o Senhor Williams, quando safa para compor um massacre (em outro sentido poder-se-ia aplicar a ele a frase de Oxford de sair como um grande Compositor) (2), sempre vestia meias pretas de seda e sapatilhas; ele não teria degradado sua posição de artista envergando um roupão. Em sua segunda grande atuação, foi objeto de reparo particular e registrado pelo único homem solitário que tremia, o qual, sofrendo terríveis agonias de medo, foi obrigado (como o leitor o verificará) a tornar-se, de um lugar escondido, o espectador solitário das atrocidades cometidas, que o Senhor Williams vestia uma longa e azul sobrecasaca, da mais fina fazenda, e ricamente estofada com seda. Entre as anedotas que circularam a seu respeito, dizia-se também, naquela época, que o Senhor Williams recorria aos serviços do melhor dos dentistas e do melhor dos manicuros e pedicuros. De maneira nenhuma, ele usaria o serviço de profissionais de segunda classe. E, além de qualquer dúvida, no perigoso pequeno ramo de ofício que praticava, podia ser encarado como o mais aristocrático e requintado dos artistas. Mas quem, entrementes, era a vítima para cuja moradia ele se apressava? Pois, de certo, ele nunca poderia ser tão imprudente a ponto de embarcar num cruzeiro de pirata em busca de alguma pessoa, ao acaso, para assassinar? Não: ele se preparara com uma vítima, com alguma antecipação, a saber, um amigo velho e muito íntimo. Porque ele

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parece ter estabelecido como máxima que a melhor pessoa para assassinar era um amigo; e, em falta de um amigo, que é um artigo de que não se pode sempre dispor, um conhecido; porque, em ambos os casos, quando primeiro se aproximasse da vítima, a suspeita seria desarmada; enquanto um estranho poderia alarmar-se, e descobrir na própria fisionomia do eleito para assassiná-lo um aviso para que se pusesse em guarda. No entanto, no caso de que tratamos, a vítima que escolhera supostamente unia ambas as características: originalmente, tinha sido um amigo; mas, subseqüentemente, por boa causa, tomara-se um inimigo. Ou mais provavelmente, como outros declararam, fazia muito tempo se haviam aplacado os sentimentos que tinham dado vida a ambas as relações: de amizade e de inimizade. Marr era o nome do homem desafortunado que (seja no caráter de amigo ou de inimigo) fora selecionado para vítima da atuação daquela noite de sábado. E a história que corria naquela época sobre a ligação entre Williams e Marr, e que nunca foi desmentida com autoridade (embora não se saiba se é verdadeira ou não), era de que ambos tinham navegado no mesmo navio para Calcutá; que haviam brigado, quando no mar; outra versão da mesma história rezava que tinham rompido, depois de regressarem do mar; e o motivo da briga era a Senhora Marr, uma bela jovem, a cujos favores ambos se tinham candidatado, e, em certo momento, com a mais azeda das inimizades recíprocas. Algumas circunstâncias conferem uma feição de probabilidade a essa história. É certo, porém, que aconteceu algumas vezes que, na oportunidade de um assassinato cuja causa não foi suficientemente explicada, movida por pura bondade de coração intolerante de um motivo meramente sórdido para uma matança impressionante, alguma pessoa forjou obtendo crédito público uma história que representa o assassino como pessoa motivada por algum sentimento mais nobre; e também neste caso o público, excessivamente chocado pela idéia de ter Williams consumado uma tragédia tão complexa pelo único motivo de ganho, recebeu com favor o conto que o representava como um homem governado por uma malícia mortal, oriunda da mais passional e nobre rivalidade pelo amor de uma mulher. O caso permanece, até certo ponto, duvidoso; mas, certamente, a probabilidade pende para que se acredite que a Senhora Marr fora a verdadeira causa, a causa teterrima (3), da discórdia entre os dois homens. Nesse meio tempo, os minutos estão contados, os grãos de areia da ampulheta que mede a duração de tal discórdia na terra estão correndo. Esta noite, ela terminará. Amanhã é o dia que na Inglaterra se chama de domingo, e a que na Escócia corresponde o nome judaico de “Sabath”, de sábado. Em ambos os países, com nomes diferentes, o dia tem as mesmas funções; em ambos é um dia de repouso. Também para ti, Marr, será um dia de repouso; assim está escrito; tu também, jovem Marr, encontrarás repouso — tu e tua família, e o estranho que se encontra no interior de tuas portas. Mas esse repouso se passará no mundo que jaz além do túmulo Deste lado do túmulo, vós todos tereis dormido o último sono. Era uma noite de grande escuridão; e nesse humilde quarteirão de Londres, qualquer que fosse a noite, clara ou escura, calma ou tempestuosa, todas as lojas se mantinham abertas nas noites de sábado até meia-noite, pelo menos, e algumas mais meia hora. Não se aplicava ali qualquer superstição judaica, rigorosa e pedante, a respeito dos limites exatos do domingo. Na pior das hipóteses, o domingo se estendia de uma hora de manhã de um dia até oito da manhã, do dia seguinte, perfazendo um circuito de trinta e uma horas. Era, sem dúvida, tempo bastante longo. Marr, nessa singular noite de sábado, ficaria contente se o dia fosse mais curto, desde que o domingo chegasse mais rapidamente, pois tinha labutado por plenas dezesseis horas, atrás de seu balcão. A posição de Marr na vida era a seguinte: ele possuía uma pequena loja de meias, e tinha investido em seu estoque e nas instalações da loja cento e oitenta libras. Como todo homem empenhado em comércio, ele sofria ansiedades. Era um iniciante; mas já contraíra dívidas que o alarmavam; e promissórias estavam chegando a termo que dificilmente seriam compensadas por vendas equivalentes. Contudo, constitucionalmente, era um otimista. Naquela altura, ele era um

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sólido, corado jovem de vinte e sete anos de idade. Até um ponto, estava inquieto com suas perspectivas comerciais, mas, ainda assim, animado, e antecipando (o quão inutilmente) que aquela noite e a seguinte, pelo menos, repousará sua cabeça cansada e suas preocupações no seio fiel de sua doce e querida jovem esposa. O pessoal da casa de Marr, constituído por cinco pessoas, é como segue: primeiro, há ele próprio, que se acontecesse ser arruinado num sentido comercial limitado tinha bastante energia para dar o salto por cima, como uma pirâmide de fogo, e pairar alto sobre a ruína muitas vezes repetida. Sim, pobre Marr, assim poderia ser, se tu fosses deixado a tuas energias naturais sem ser molestado; mas,já agora, do outro lado da rua, está à espreita um homem nascido das profundezas do inferno, que impõe uma negativa peremptória a todas essas perspectivas lisonjeiras. Em segundo lugar, na lista desta família, figura a sua bela e amável mulher, que é feliz como o são as jovens esposas, pois conta com vinte e dois anos de idade, e só sente ansiedade (se sente alguma) por causa de seu querido filho. Pois, em terceiro lugar, há um berço, que não está a mais de nove pés abaixo da rua, numa cozinha confortável e aquecida, embalado, a intervalos, pela jovem mãe, um bebê de oito meses de idade. Marr e ela estão casados faz dezenove meses; e este é o primeiro filho. Não pranteeis esta criança, porque deve passar o profundo repouso do domingo em algum outro mundo, porque onde poderia um órfão, mergulhado até os lábios na pobreza, quando privado de pai e de mãe subsistir numa terra estranha e assassina? Em quarto lugar, há um rapaz vigoroso, um aprendiz, de, digamos, treze anos de idade; um rapaz do Devonshire, com feições formosas, como as possuem em maior parte os rapazes do Devonshire; contente com o lugar que ocupava, não sobrecarregado de trabalho; tratado com bondade, e consciente de que o era, por seu patrão e patroa. Em quinto lugar, e no último, na retaguarda dessa família tranqüila figura uma empregada, uma jovem adulta e, sendo ela de coração particularmente bondoso, desempenhava (como acontece com freqüência em famílias de pretensões humildes em matéria de classe) uma espécie de papel de irmã com relação à sua patroa. Uma grande mudança democrática acontece neste mesmo ano (1854), e vem acontecendo faz vinte anos na sociedade britânica. Multidões de pessoas se estão envergonhando de dizer: “meu patrão” ou “minha patroa”: o termo que se usa mais e mais, num lento processo de substituição, é “meu empregador”. Agora, nos Estados Unidos da América, tal expressão de altivez democrática, embora desagradável como uma desnecessária proclamação de independência que ninguém põe em dúvida, não produz, contudo, qualquer duradouro mau efeito. Pois os “auxiliares” domésticos estão em geral numa fase de transição tão segura e tão rápida para a chefia de estabelecimentos domésticos que lhes pertençam que, com efeito, não fazem mais do que ignorar, no presente momento, uma relação que, dentro de um ou dois anos, se dissolverá espontaneamente. Mas na Inglaterra, onde não existem tais recursos de terras abundantes, para sempre a serem ocupadas, a tendência da mudança é penosa. Ela traz em seu bojo uma expressão, intratável e grosseira, de imunidade de um jugo que foi, em qualquer caso, um jugo leve, e, muitas vezes, benigno, ilustrarei o que quero dizer, em qualquer outro lugar. Aqui, ao que parece, no serviço da Senhora Marr, o princípio a que me refiro encontrava uma ilustração prática. Mary, a empregada, sentia um respeito sincero e espontâneo por uma patroa que ela via tão firmemente ocupada com seus afazeres domésticos, e que, embora tão jovem, e revestida de certa autoridade, nunca a exercia de forma caprichosa, ou mesmo a demonstrava de modo conspícuo. Segundo o testemunho de todos os vizinhos, tratava sua patroa com uma nuance de respeito desembaraçado, por um lado, e ainda assim mostrava-se ansiosa para aliviá-la, sempre que possível, do fardo dos deveres maternais, com o serviço alegre e voluntário de uma irmã. Foi essa jovem mulher que, de repente, a cerca de três ou quatro minutos de meia-noite, Marr chamou em voz alta da parte superior da escada — ordenando-lhe que saísse e comprasse algumas ostras para o jantar da família. De que frágeis acidentes dependem muitas vezes resultados solenes e que duram a vida inteira! Marr preocupado com as coisas

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de seu negócio, a Senhora Marr, ocupada com alguma enfermidade ligeira e inquietação de seu bebê, tinham ambos esquecido a preparação do jantar; e o tempo agora se estreitava a cada momento, no que diz respeito à variedade de escolha; e ostras talvez fossem encomendadas como o artigo mais provável de ser encontrado, depois que soassem as doze badaladas da meia-noite. E, no entanto, dessa circunstância trivial dependia a vida de Mary. Tivesse ela sido mandada à rua, para compras, na hora de costume, dez ou onze da noite, é quase certo que ela, o membro solitário da casa que escapou da tragédia de extermínio, nJo teria escapado; com certeza, teria partilhado do destino geral. Era-lhe necessário agora ser rápida. Às pressas, portanto, depois de receber dinheiro de Marr, com uma cesta na mão, mas de cabeça descoberta, Mary lançou-se para fora de casa. Tornou-se depois, em reminiscência, uma lembrança que lhe gelava o coração que, precisamente no momento em que emergia da porta da loja, reparou numa figura de homem, do lado oposto da rua, à luz de uma lâmpada; estava parado, no momento, mas, no instante seguinte, entrou a mover-se devagar. Era Williams; como um pequeno incidente, seja logo antes, seja logo depois (atualmente, é impossível dizer), comprovou suficientemente. Agora, quando se tem em mente a pressa inevitável e a trepidação de Mary nas circunstâncias mencionadas, restando-lhe apenas uma fímbria de tempo para executar sua missão, toma-se evidente que ela deve ter relacionado algum sentimento profundo de inquietação misteriosa com os movimentos do homem desconhecido; de outra forma, seguramente, não teria achado atenção disponível para um tal caso. Até esse ponto ela própria iluminou de alguma maneira o que poderia, semiconscientemente, estar então passando por seu espírito; ela disse que, não obstante a escuridão, que não lhe permitiria discenir as feições do homem ou verificar a exata direção dos olhos dele, ainda assim impressionou-a que, da atitude dele quando em movimento e da inclinação aparente de sua pessoa, ele devia estar olhando para o número 29. O pequeno incidente que mencionei, como próprio a confirmar aquilo em que Mary acreditou, foi que, em algum período não muito distante da meia-noite, o guarda-noturno havia especialmente notado tal estranho; ele o observara espiando continuamente para dentro de vitrine da loja de Marr; e julgara esse ato, ligado à aparência do homem, tão suspeito, que entrou na loja de Marr, e comunicou o que havia visto. Ele, mais tarde, declarou esse fato diante dos magistrados; e acrescentou que, subseqüentemente, a saber, uns poucos minutos depois das doze (oito ou dez minutos, provavelmente, depois da partida de Mary) ele, ao refazer a sua costumeira ronda de meia hora, foi solicitado por Marr a ajudá-lo a fechar as janelas corrediças. Nesse momento, mantiveram uma conversa final; e o vigia noturno mencionou a Man que o misterioso estranho tinha aparentemente ido embora, pois não fora visível desde que ele, o vigia, fizera a Marr a primeira comunicação. Há pouca dúvida de que Williams observara a visita do vigia a Marr, e tinha tido sua atenção tempestivamente despertada para a indiscrição de sua conduta; o que fez com que o aviso dado inutilmente a Marr fosse aproveitado por Williams. Ë menor ainda a dúvida de que o assassino começara seu trabalho um minuto depois que o vigia assistira Marr a cerrar suas janelas. Essa conclusão fundamenta-se no seguinte: — o que impedira Williams de começar ainda mais cedo fora que todo o interior da loja podia ser devassado pelos que passassem pela rua. Era indispensável que as janelas estivessem bem fechadas, antes que Williams pudesse, com segurança, pôr mãos-à-obra. Mas logo que essa primeira precaução foi completada, tendo garantido que não seria visto de fora, tomou-se então de ainda maior importância não perder tempo com algum atraso do que o fora não correr risco por causa de precipitação, pois tudo dependia de penetrar, antes que Marr cerrasse a porta. Ver-se-á que, se recorresse a qualquer outra maneira de fazer sua entrada (como, por exemplo, aguardar o regresso de Mary e ingressar ao mesmo tempo que ela), Williams teria perdido aquela singular vantagem que os fatos, embora mudos, mostrarão logo ao leitor, sendo bem interpretados, que ele dela se valeu. Williams aguardou, necessariamente, o som dos passos do vigia que se

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retirava; aguardou, talvez, trinta segundos. Mas quando se passou esse perigo, o perigo consistia em que Marr trancasse a porta; uma volta na chave, e Williams teria sido trancado fora. Por isso, ele insinuou-se com rapidez, e, sem dúvida, com um movimento destro de sua mão esquerda virou a chave, sem deixar Marr perceber o estratagema fatal. É realmente maravilhoso e de maior interesse seguir os passos sucessivos deste monstro, e notar a certeza absoluta com a qual os silenciosos hieróglifos do caso revelam-nos todo o processo e movimentos do drama sangrento, com não menos segurança e inteireza que se houvássemos, nós mesmos, estado escondidos na loja de Marr, ou tivéssemos olhado dos céus misericordiosos para essa infernal ave de rapina, que não conhecia misericórdia. Que ocultara de Marr seu truque, secreto e rápido, na fechadura, é evidente, porque, de outra forma, Marr se teria alarmado, especialmente depois do que o vigia lhe comunicara. Mas logo se verá que Marr não se alarmou. Na realidade, para o pleno êxito de Williams, era importante, no mais alto grau, interceptar e prevenir qualquer grito ou som de agonia da parte de Marr. Tal gritaria, numa localização tão fragilmente separada da rua, a saber, por paredes das menos espessas, teria sido ouvida quase tão bem como se partisse da própria rua. Era, portanto, indispensável sufocar tais gritos. Foram sufocados; e o leitor logo compreenderá como o foram. Neste ponto, no entanto, abandonemos o assassino com as suas vítimas. Deixêmo-lo trabalhar a seu bel-prazer durante cinqüenta minutos. A porta da frente, como sabemos, está agora fechada a qualquer socorro. Não há socorro. Que nos seja permitido, por conseguinte, em imaginação, seguir os passos de Mary; e, quando tudo terminar, que nos seja permitido regressar com ela, levantar novamente a cortina, e ler o registro terrível de tudo o que se passara em sua ausência. A pobre moça, possuída de uma inquietação que ela quase não podia compreender, vagou de um lado para outro em busca de uma loja de ostras; não encontrando nenhuma que ainda estivesse aberta, dentro de qualquer dos circuitos com que sua experiência a tornara familiar, achou melhor verificar as possibilidades existentes em algum distrito mais remoto. As luzes que ela via brilhar ou cintilar na distância tentavam-na sempre a prosseguir a sua busca; e, assim, entre ruas desconhecidas, pobremente iluminadas (5), e numa noite de escuridão singular, numa região de Londres onde tumultos ferozes sempre a estavam desviando do que parecia o curso direto, ela se perdeu. Nada lhe restava a não ser retraçar os seus passos. Mas isso era difícil; pois temia pedir informações a passantes ao acaso que a escuridão lhe impedia de distinguir claramente. Por fim, reconheceu um vigia, pela lanterna que este carregava; ele a colocou no bom caminho; e, dentro de mais dez minutos, ela se encontrou de volta ao número 29 de Ratciff Highway. Mas, a essa altura, ela calculava que devia ter estado ausente ciurjüenta ou sessenta minutos; de fato, ela ouvira na distância o grito de “passou a uma hora da manhã” o qual, começando uns poucos segundos depois de uma hora, perdurava, intermitentemente, por dez ou treze minutos. No tumulto de pensamentos agoniantes que logo a surpreendeu, tornou-se difícil rememorar distintamente toda a sucessão de dúvidas, de suspeitas, e de pressentimentos sombrios que logo lhe ocorreram. Mas na medida em que lhe foi possível recordar, nada tinha notado de decisivamente alarmante no primeiro momento, ao atingir o lar. Em muitas cidades, as capainhas são o principal instrumento de comunicação entre a rua e o interior das casas: mas em Londres prevalecem as aldravas. Na casa de Marr, havia uma aldrava e uma campainha. Mary tocou a campainha, e, ao mesmo tempo, com muito cuidado, bateu com a aldrava. Não temia perturbar seu patrão ou sua patroa; a eles estava segura de encontrar de pé. Temia perturbar o nenê, que, acordando, podia novamente privar a patroa de uma noite de sono. E ela sabia que, com três pessoas a aguardarem ansiosamente o regresso dela, e, àquela altura, talvez seriamente inquietos por sua causa, o menor murmúrio que fizesse traria num momento uma delas até a porta. Contudo, que se passa? Para seu espanto, mas com o espanto começou a penetrar em seu corpo um horror gelado, nenhum movimento ou ruído foi ouvido a partir da cozinha. Nesse instante,

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voltou-lhe à lembrança, com uma angústia que a fazia tremer, a imagem indistinta do estranho de sobrecasaca frouxa e escura, que ela vira deslizar entre as sombras que cercavam a luz da lâmpada, e que estava certamente observando os movimentos de Marr: ela amargamente se arrependeu de que, fosse qual fosse a premência de sua missão, ela deixara de comunicar ao patrão as suspeitas aparências. Pobre moça! Ela não sabia então que, se essa comunicação pudesse ter valido para pôr o Senhor Marr de guarda, ela já lhe tinha sido feita por outra pessoa; assim, a sua omissão, que na realidade nascera da pressa com que quisera cumprir as ordens de seu patrão, não podia ter causado quaisquer más conseqüências. Mas todas estas reflexões sucumbiram, neste ponto a um pânico desenfreado. O solitário fato de que tanto o ruído da campainha como o da aldrava tivessem sido ignorados constituiu uma revelação de horror. Uma pessoa podia ter adormecido, mas duas, mas três era uma impossibilidade. E ainda supondo que todos os três e o nenê estivessem mergulhados no sono, ainda assim como era inexplicável aquele inteiro — inteiro silêncio! Da forma mais natural, naquele momento, alguma coisa como uni horror histérico apossou-se da pobre moça, e agora, por fim, ela tocou a campainha com a violência que pertence a um infinito terror. Isso feito, ela parou; ela ainda possuía autocontrole bastante, embora cada vez mais depressa ele lhe escapasse, para pensar que, se algum supremo acidente houvesse obrigado tanto Marr como o aprendiz a deixar a casa para pedir assistência cirúrgica do lado oposto da rua — uma coisa quase impossível — ainda assim a Senhora Marr e a criança teriam permanecido em casa, e alguma resposta murmurante, qualquer que fosse a extremidade, seria obtida da pobre mãe. Parar, portanto, impor a ela própria um absoluto silêncio, para poder ouvir uma resposta possível a seu último apelo, tomou-se um dever que reclamou um esforço espasmódico. Ouve, portanto, pobre coração que treme; ouve, e, por vinte segundos, fica quieto como a própria morte. Quieta como a morte estava ela; e, durante aquela terrível imobilidade, quando reprimia a respiração para que pudesse escutar, ocorreu um incidente de um terror mortal, cujos ecos ela jamais deixaria de escutar até os seus últimos dias. Ela, Mary, a pobre menina que tremia, controlando-se com um esforço final, para que pudesse permitir chegar-lhe a resposta de sua querida jovem patroa ao som da campainha, ouviu, por fim e muito distintamente, um barulho no interior da casa. Sim, agora, além de qualquer dúvida, chegava uma resposta a seus apelos. Que resposta era? Nas escadas, não nas que conduziam para baixo à cozinha, mas nas que conduziam para cima ao único andar de quartos de dormir, ouviu-se um rangido. Em seguida, ouviu-se um passo: um, dois, três, quatro, cinco degraus foram distinta e vagarosamente descidos. Então os horríveis passos foram ouvidos avançar pelo corredor em direção à porta. Os passos (ó, céus, passos de quem?) pararam na porta. Era possível ouvir a própria respiração daquele terrível ser, que estancara toda a respiração na casa a não ser a sua própria. Não há mais que a porta que o separe de Mary. Que faz ele do outro lado da porta? Foi um passo cauteloso, foi um passo furtivo que desceu os degraus, e então atravessou o pequeno corredor estreito — estreito como um caixão — até que finalmente parou na porta. Com que profundidade o sujeito respira! Ele, o solitário assassino, se encontra de um lado da porta; Mary está do outro. Suponhamos agora que, de repente, ele abrisse a porta, e que Mary, imprudentemente, no escuro, se atirasse para dentro e desse com ela própria nos braços do assassino. Até aí o caso é possível — certamente, se esse pequeno truque fosse tentado imediatamente depois do regresso de Mary, teria logrado êxito; tivesse a porta sido aberta ao primeiro som da campainha, ela teria ingressado e perecido. Mas agora ela está prevenida. Tanto ela como o assassino desconhecido têm, ambos, os lábios colados à porta, escutando, respirando profundamente. É uma felicidade, porém, que se encontrem em diferentes lados da porta. E, à menor indicação que a mesma seria desaferrolhada, ou de que se abriria a tranqueta, ela teria recuado para o asilo da escuridão total.

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Qual era a intenção do assassino, ao vir, pelo corredor, até a porta da frente? A intenção era a seguinte: individualmente, de nada valia Mary para ele. Mas, considerada como um membro da casa, se capturada e assassinada, teria completado e aperfeiçoado a desolação por ele introduzida no seio daquela família. O caso, sendo divulgado, como divulgado inevitavelmente seria por toda a cristandade, tomaria conta das imaginações. Toda a ninhada de vítimas teria assim sido apanhada na rede; a ruína da casa seria completa; e, na mesma proporção, a tendência dos homens e das mulheres, por mais que hesitassem, seria irremediavelmente a de mergulhar nas mãos conquistadoras do poderoso matador. Ele não teria mais que dizer — meus títulos de nobreza são datados de Ratcliffe Highway, número 29, e a pobre imaginação, vencida, teria sucumbido diante do olhar de cascavel do assassino. Não há nenhuma dúvida de que o motivo que fez com que o assassino parasse do lado de dentro da porta de Mary, enquanto esta ficava do lado de fora, foi o de que, se abrisse a porta, imitando, em murmúrios, a voz de Marr (e dizendo: “o que a fez demorar tanto?”), ele teria sido provavelmente apanhado. Estava ele, no entanto, enganado; já passara o tempo para tais artimanhas; Mary havia agora despertado, maniacamente; passou a tocar a campainha e a bater com a aldrava, com constante violência. E a conseqüência natural disso foi que o vizinho de porta, que havia pouco tempo se recolhera à cama, e havia, instantaneamente, adormecido, foi despertado; e pela incessante violência do som da campainha e da aldrava, que serviam agora a um impulso delirante e incontrolável em Mary, ele tomou consciência de que algum acontecimento terrível deveria ser a raiz de um clamor tão elevado. Levantar-se, abrir a janela, perguntar raivosamente pela causa daquele intempestivo tumulto, tudo foi obra de um momento. A pobre moça mantinha suficiente domínio sobre suas próprias emoções para rapidamente explicar os motivos de sua ausência por uma hora; sua opinião de que o Senhor Marr e família tinham todos sido assassinados no intervalo e de que naquele próprio momento o assassino se encontrava dentro de casa. A pessoa a quem dirigia essa declaração era um agiota, proprietário de uma loja de penhores. Deve ter sido um homem de extrema coragem. Pois exigia coragem, apenas como prova de força física, partir para enfrentar sozinho um assassino misterioso, o qual, ao que parecia, se havia assinalado por proeza tão completa. Mas também era necessário controlar a própria imaginação, para acorrer à presença de uma pessoa revestida de uma nuvem de mistério, cuja nação, idade e motivos eram totalmente desconhecidos. Raramente, em qualquer campo de batalha, foi um soldado chamado a confrontar um perigo tão complexo. Pois se fosse verdade que toda a família de seu vizinho Marr sucumbira ao extermínio, uma tal escala de atos sanguinários parecia indicar que havia dois assassinos; ou, se somente um tivesse efetuado tal ruína, nesse caso, como deveria ser colossal a sua audácia! E também, provavelmente, a sua perícia e vigor animal! Além disso, o inimigo desconhecido (fosse um, fossem dois) estaria, sem dúvida, bem armado. Contudo, a despeito de todas essas desvantagens, o homem intemerato acorreu logo para o campo da matança na casa do vizinho. Demorando apenas o tempo necessário para botar as calças, e para armar-se com o pilão da cozinha, desceu ele até o seu quintal. Por ali, ele gozaria da possibilidade de interceptar o assassino, O mesmo não se daria pela porta da frente, e o processo de arrombamento da mesma tomaria tempo considerável. Uma parede de tijolos, de 9 ou 10 pés de altura, dividia seu próprio quintal do quintal de Marr. Sobre ela ele montou a cavalo; e, no momento em que se rememorava da necessidade de voltar à sua casa para trazer uma vela, percebeu de repente um fraco raio de luz que brilhava em algum lugar dos aposentos de Marr. A porta traseira da casa de Marr estava inteiramente aberta. Provavelmente, por ali passara o assassino havia meio minuto. Rapidamente, o corajoso homem ingressou na loja e ali contemplou a carnificina da noite, e viu as estreitas instalações tão inundadas de sangue que era difícil abrir caminho até a porta da frente, sem sujar-se. No ferrolho da porta, ainda permanecia a chave que tinha dado ao assassino uma

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vantagem tão fatal sobre suas vítimas. Naquele momento as notícias de cortar o coração contidas nos gritos de Mary (a quem ocorrera que, possivelmente, alguma das vítimas ainda estivesse ao alcance de assistência médica, mas que tudo dependeria da pressa) tinham conseguido, mesmo àquela hora da noite, reunir uma pequena multidão diante da casa. O agiota abriu a porta. Um ou dois vigias noturnos avançaram em primeiro lugar; mas o lastimoso espetáculo os fez parar, e abrigou a um repentino silêncio todas as vozes, anteriormente tão altas. O drama trágico contava a sua própria história, e a sucessão de suas diferentes fases — poucas e sumárias. O assassino permanecia ainda desconhecido; de quem fosse nem sequer se suspeitava. Mas havia motivos para acreditar que devia ser uma pessoa familiar a Marr. Entrara na loja abrindo a porta, depois que a mesma fora fechada. Mas argumentava-se com justiça que, depois do aviso dado a Marr pelo vigia, o aparecimento de qualquer estranho na loja àquela hora, e numa vizinhança tão perigosa, e penetrando de uma maneira tão irregular e suspeita (ou seja, penetrando depois que a porta fora fechada e depois que, abaixadas as janelas corrediças, tinha sido barrada qualquer comunicação com a rua), teria naturalmente despertado em Marr uma atitude de vigilância e de defesa própria. Qualquer indicaçao, portanto, de que Marrnão se guardara mostraria certamente, a ponto de certeza, que alguma coisa sucedera para neutralizar-lhe o alarma, e para fatalmente desarmar-lhe as suspeitas. Mas essa “alguma coisa” só poderia consistir num fato simples, a saber, que a pessoa do assassino era familiarmente conhecida de Marr como alguém de presença comum e insuspeita. Sendo isso pressuposto como chave para todo o resto, todo o curso e evolução do drama subseqüente toma-se claro como a luz do dia. O assassino, é evidente, abrira suavemente, e também fechara com igual gentileza, a porta da rua. Avançara então para o pequeno balcão, enquanto trocava as saudações comuns de um velho conhecido com Marr, desarmado de suspeitas. Tendo chegado ao balcão, teria então solicitado a Marr um par de meias de algodão não curado. Numa loja tão reduzida quanto a de Marr, não poderia haver grande possibilidade de escolha para arrumarem-se as diferentes mercadorias. A forma pela qual elas estavam dispostas se tinha, sem dúvida, tornado familiar ao assassino; e já se tinha assegurado de que, para atingir o par de meias pedido, Marr teria necessidade de dar-lhe as costas e, no mesmo momento, de erguer seus olhos e braços para um lugar dezoito polegadas acima de sua própria cabeça. Esse movimento colocou-o na pior posição possível com relação ao assassino, o qual, agora que as mãos e os olhos de Marr estavam ocupados, e a parte traseira de sua cabeça inteiramente exposta, subitamente, debaixo de sua grande sobre-casaca, retirou um pesado malho de carpinteiro naval, e, com um só golpe, de tal forma estonteou sua vítima, que esta ficou incapaz de resistência. A posição do corpo de Marr contava o próprio conto. Ele caíra naturalmente atrás do balcão, com suas mãos ocupadas de maneira que confirmava todo o esboço do caso tal como eu o sugeri. É muito provável que o primeiro golpe, a primeira indicação de traição que atingiu Marr, teria também sido o último golpe, no que diz respeito à privação de consciência. O plano do assassino e o movimento racional do assassinato começavam sistematicamente dessa inflição de apoplexia, ou, pelo menos, de um estonteamento suficiente para assegurar uma longa perda dos sentidos. Esse primeiro passo colocou o assassino à vontade. Mas ainda assim, como a recuperação do sentido por parte da vítima podia ter as piores conseqüências para o assassino, este seguia a prática constante, de forma a consumar o que começara, cortar a garganta da vítima. Todos os assassinatos naquela ocasião seguiram o mesmo modelo: primeiro, a cabeça era abalada, esse fato garantia o assassino contra uma retaliação imediata; e então, para tudo encerrar em silêncio eterno, a garganta era cortada. O resto das circunstâncias, tal como reveladas pelos indícios, era o seguinte. É possível que a própria queda de Marr tenha, bastante provavelmente, causado o ruído surdo e confuso de uma luta, tanto mais que, agora, já não podia ser confundido com qualquer ruído da rua — pois a porta da loja estava fechada. mais provável, no entanto, que o sinal do alarma comunicado à cozinha tenha surgido

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quando o assassino passou a cortar a garganta de Marr. A localização muito estreita atrás do balcão tomaria impossível, com a pressa crítica do caso, expor largamente a garganta; o horrível espetáculo progrediria por meio de cortes parciais e interrompidos; erguer-se-iam profundos gemidos; e então as demais pessoas subiriam as escadas. Contra isso, como a única fase perigosa da operação, o assassino, se teria especialmente preparado. A Senhora Marr e o aprendiz, ambos jovens e ativos, correriam naturalmente para a porta da rua; houvesse Marr estado em casa, e tivessem três pessoas se combinado para distrair a atenção do assassino é possível, embora o seja pouco, que uma delas tivesse logrado chegar à rua. Mas o balanço terrível do pesado malho interceptou tanto o menino como a sua patroa antes que alcançassem a porta. Cada um deles jazia esticado no centro do assoalho da loja; e, no mesmo momento em que assim tinham sido privados de força, o maldito cão estava nas gargantas deles, com sua navalha. A verdade reside em que, na mera cegueira da piedade pelo pobre Marr, ao ouvir-lhe os gemidos, a Senhora Marr perdera de vista o que lhe cumprira fazer; ela e o menino deveriam ter corrido para a porta traseira; teria sido assim dado o alarma ao ar livre, o que já era um grande ponto; e vários meios de distrair a atenção do assassino se ofereciam, seguido esse caminho, meios esses que a exigüidade de espaço na loja negava às vítimas. Seriam inúteis todas as tentativas de comunicar o horror que perpassou a reunião de espectadores dessa lamentável tragédia. A multidão sabia que uma pessoa tinha, por algum acidente, escapado ao massacre geral; mas ela estava agora privada de fala, e provavelmente delirante, o que fez com que, movida de compaixão, uma vizinha a houvesse afastado do lugar e posto na cama. Por isso aconteceu que, por um espaço de tempo mais longo do que, de outra forma, teria sido possível, nenhum dos presentes era o bastante familiar com os Marrs para ter conhecimento do pequeno infante; pois o audacioso agiota tinha partido para fazer uma comunicação ao oficial de justiça encarregado de examinar os corpos dos que morrem de morte violenta; e um Outro vizinho partira para prestar algum depoimento, que ele julgava urgente, numa delegacia de polícia próxima. De repente, alguém apareceu no meio da multidão que tinha consciência de que os pais assassinados possuíam um jovem filho; este seria encontrado seja abaixo da loja, seja num dos quartos de dormir, acima. Imediatamente, uma massa de pessoas desceu à cozinha, onde logo se viu o berço — mas com as roupas de cama num estado de confusão indescritível. Ao desfazer-se a confusão, tornaram-se visíveis poças de sangue; e o próximo indício ominoso consistiu em que o véu que cobria o berço tinha sido rasgado em fragmentos. Tornou-se evidente que o miserável se vira duplamente embaraçado — primeiro pela estrutura do véu à cabeça do berço, que ele fizera em pedaços com o seu malho, e, segundo, pela reunião de cobertores e travesseiros na cabeça da criança. Assim, fora constrangido o jogo de seus golpes. E, portanto, ele terminara a cena aplicando a navalha à garganta do pequeno inocente; depois do que, com nenhum propósito compreensível, como se o espetáculo de suas próprias atrocidades o tivesse confundido, ele se ocupara em empilhar laboriosamente as roupas acima do cadáver da criança. Esse incidente, de forma inegável, conferia o caráter de um procedimento de vingança a todo o caso, e, na mesma medida, confirmava o boato corrente de que a briga entre Williams e Marr tivera origem em rivalidade. Um escritor, é verdade, alegou que o assassino pudesse ter achado necessário para a própria segurança extinguir o choro do bebê; mas foi respondido, com justiça, que uma criança de apenas oito meses não podia ter chorado por sentir o processo de uma tragédia, mas simplesmente, de forma comum, por causa da ausência da mãe; e um tal choro, mesmo se pudesse ser ouvido fora de casa, teria sido exatamente o que os zinhos ouviam, de forma constante, e não teria despertado qualquer atenção especial ou sugerido qualquer razoável alarma para o assassinato. Nenhum incidente, é certo, em todo aquele tecido de atrocidades, de tal forma envenenou a fúria popular contra o bandido desconhecido quanto essa inútil matança de um bebê.

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É natural que, na manhã de domingo, que apareceu claro quatro ou cinco horas mais tarde, era muito cheio de horror o caso para que seu conhecimento não se difundisse em todas as direções; mas não tenho motivo para acreditar que encontrou espaço em qualquer dos numerosos jornais de domingo. No curso regular das coisas, um acontecimento comum, que não ocorresse ou não transpirasse até quinze minutos da manhã de domingo, só chegaria ao conhecimento do público nas edições de segunda- feira dos jornais de domingo e nos matutinos regulares de segunda. Mas, se tal foi o curso seguido na ocasião, nunca se registrou, em jornalismo, tamanha negligência. Pois é certo que satisfazer a curiosidade pública por detalhes no dia de domingo, o que poderia ter sido feito cancelando-se um par de colunas enfadonhas, e pondo em seu lugar uma narrativa circunstanciada, para a qual o agiota e o vigia noturno poderiam ter fornecido o material, significaria uma pequena fortuna. Por meio de cartazes distribuídos por todos os quarteirões da infinita metrópole, poder-se-ia ter vendido 250 mil cópias extras; isto é, por qualquer jornal que houvesse coligido informações exclusivas, indo de encontro à excitação pública, em todo o lugar despertada por boatos, rumores, e que ansiava por dados mais completos. No domingo que se passou, oito dias depois do acontecimento, verificou-se o funeral dos Marrs; no primeiro caixão, vinha Marr; no segundo, a Senhora Marr com o filho ao colo; no terceiro o menino aprendiz. Foram enterrados lado a lado; e 30 mil trabalhadores seguiram o cortejo funerário, com horror e lástima em suas fisionomias. Até aquele momento, não havia sequer um murmúrio que indicasse, mesmo em conjetura, o horroroso autor de tais ruínas — tal padroeiro dos coveiros. Se, naquele domingo do funeral, tanto fosse conhecido da pessoa do autor como se divulgou seis dias mais tarde, as pessoas teriam seguido diretamente do cemitério para os aposentos do assassino, e (não suportando demoras) o teriam feito em pedaços, membro a membro. Até então, no entanto, em falta de qualquer objeto em que se pudesse depositar razoável suspeita, o ódio público foi obrigado a refrear-se. Não obstante, muito longe de mostrar alguma tendência a diminuir, a emoção pública fortaleceu-se cada dia, de modo conspícuo, na medida em que a reverberação do choque começou a regressar das províncias para a capital. Em todas as grandes estradas do reino registravam-se prisões constantes de vagabundos e errantes, que não podiam dar contas satisfatórias deles próprios, ou cuja aparência, sob qualquer aspecto, correspondesse à descrição imperfeita de Williams fornecida pelo vigia noturno. Com essa grande maré de piedade e de indignação apontando para o terrível passado, misturou-se, no pensamento de pessoas reflexivas, uma corrente subterrânea de temerosa expectativa do futuro imediato. Para citar um fragmento de uma impressionante passagem de Wordsworth: The earthquake is not satisfied at once. (6) Todos os perigos, especialmente os malignos, são recorrentes. Um assassino, que o é por paixão e por um desejo feroz de derramamento de sangue, como urna forma natural de luxúria, não pode mergulhar na inércia. Um tal homem, ainda mais do que um caçador alpino de camurça, chega a amar aquelas fugas por um triz das pessoas da profissão, como um condimento para temperar e animar as insípidas monotonias da vida quotidiana. Mas, além de seus instintos infernais, com os quais se poderia contar com certeza para que cometesse novas atrocidades, era claro que o assassino dos Marrs, onde quer que se escondesse, deveria ser um homem necessitado; e um homem necessitado da classe que menos provavelmente procuraria recursos numa forma honrosa de comércio, pois, para o comércio, igualmente por altivo desprezo e pelo desuso de hábitos apropriados, os homens violentos são igualmente desclassificados. Que fosse assim apenas pela necessidade de ganhar dinheiro, o assassino que todos os corações ansiavam por descobrir ressurgiria, ao

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que se podia esperar, em algum palco de horror, depois de um intervalo razoável. Mesmo no assassino de Marr, mesmo acreditando que fora governado principalmente por impulsos cruéis e vingativos, ainda assim era claro que o desejo de pilhagem cooperara com tais sentimentos. Era igualmente claro que tal desejo fora desapontado: com exceção da pequena soma reservada por Marr para as despesas semanais, o assassino não encontrou, sem dúvida, quase nada que pudesse aproveitar. Duas guinéas, talvez, teria sido tudo o que logrou com o roubo. Essa soma terminaria numa semana ou pouco mais. A convicção geral era, portanto, de que, dentro de um ou dois meses, quando se tivesse um pouco esfriado a febre de excitação, ou houvesse sido substituída por outros tópicos de interesse, de maneira a que se desarmasse a vigilância dos lares, podia contar-se com algum novo assassinato, igualmente horroroso. Tal era a expectativa pública. Que o leitor então imagine o puro delírio de horror, quando, nessa atmosfera de expectativa, em que se esperava que o braço desconhecido desferisse novo golpe, mas em que não se acreditava que qualquer audácia pudesse igualar a tentativa anterior, enquanto todos os olhos estavam observando, repentinamente, na décima-segunda noite, a partir do assassinato de Marr um segundo caso da mesma natureza misteriosa, um assassinato que seguiu o mesmo plano de extermínio, foi cometido na mesma vizinhança. Foi na segunda quinta-feira, depois do assassinato de Marr, que essa segunda atrocidade ocorreu; e muitas pessoas foram de opinião, na época, que, em traços dramáticos de terrível interesse, esse segundo caso chegou a ultrapassar o primeiro. A família que padeceu nesse segundo exemplo foi a de um certo Senhor Williamson; e a casa estava localizada, se não absolutamente em Ratcliff Highway, pelo menos em alguma rua transversal, atravessando aquela via pública em ângulo reto, O Senhor Williamson era um bem conhecido e respeitável homem de negócios, de muito tempo estabelecido no distrito; supunha-se que fosse rico; e, mais com o objetivo de ocupar-se, do que com o desejo de enriquecer-se ainda mais, mantinha uma espécie de taverna, a qual funcionava num pé de igualdade antigo e patriarcal, porque, embora pessoas de considerável propriedade recorressem a casa, de noite, nenhuma espécie de separação se estabelecia entre elas e outros clientes da classe dos artesões ou de trabalhadores comuns. Qualquer pessoa que se conduzisse de maneira conveniente podia sentar-se e pedir bebida da espécie que preferisse. E assim a sociedade era muito misturada; em parte, costumeira, mas, em alguma proporção, mutável, flutuante, O pessoal da casa consistia das seguintes cinco pessoas: (1) o Senhor Williamson, o chefe, homem de idade além dos setenta, e muito adequado à posição que ocupava, pois era cortês, e em nada melancólico, mas, firme na manutenção da ordem; (2) a Senhora Williamson, sua esposa, cerca de dez anos mais jovem do que ele; (3) uma pequena neta, de cerca de nove anos de idade; (4) uma empregada, com quase quarenta anos de idade; (5) um jovem empregado diarista, com cerca de vinte e seis anos de idade, que pertencia a algum es- tabele cimento manufatureiro (de que classe eu esqueci); também não me lembro qual era a sua nação. Era regra estabelecida na taverna do Senhor Williamson que toda a companhia, sem favores ou exceções, saía quando o relógio soava as onze horas. Era esse um dos costumes pelos quais, num distrito tão tempestuoso, o Senhor Williamson achara possível manter a sua casa isenta de brigas. Na noite de que tratamos tudo correra como de hábito, exceto por uma sombra de suspeita, que captara a atenção de mais pessoas do que uma só. Talvez, num momento menos agitado, ninguém a teria observado; mas agora, quando o primeiro e o último assunto em todas as reuniões sociais era a questão dos Marrs, e o assassino desconhecido, constituía uma circunstância naturalmente feita para despertar alguma inquietação que um estranho, de aparência sinistra, vestido de um largo, sobretudo, fosse visto entrar e sair do aposento, a intervalos, durante a noite; abrigara-se, algumas vezes, da luz, em cantos sombrios; e, por mais de uma pessoa, fora observado esconder-se em lugares íntimos da casa. Supôs-se, em geral, que o homem fosse um conhecido de Williamson. E não é impossível que o fosse, em algum

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pequeno grau, como um cliente ocasional da casa. Mas, depois, tal estranho de ar repulsivo, com sua cara de caveira, cabelo extraordinário, e olhos vidrados, mostrando-se intermitentemente entre oito e onze horas, voltou à memória de todos os que o haviam firmemente observado, com alguma coisa do efeito de horror que pertence aos dois assassinos de Macbeth, que se apresentam gotejando com o sangue do assassinato de Banquo, e brilhando francamente, com rostos temíveis, na névoa vestibular, entre as pompas do banquete real. Entrementes, o relógio soou as onze badaladas; a companhia se desfez; a porta de entrada foi quase fechada; e, nesse momento de dispersão geral, a localização dos cinco habitantes da casa era precisamente a seguinte: os três mais velhos, a saber, Williamson, a mulher e a empregada estavam todos ocupados no andar térreo; o próprio Williamson extraía cerveja de barris para os vizinhos a favor dos quais a porta da casa tinha sido deixada aberta até as doze horas; a Senhora Williamson e a empregada moviam-se, de um lado para outro, entre a cozinha e uma pequena sala, uma saleta; a pequena neta, cujo quarto de dormir se situava no primeiro andar (por qual termo se designa sempre em Londres o andar erguido por uma escadaria acima do nível da rua) já dormia profundamente desde as nove horas; em último lugar, o diarista artesão se tinha retirada para repousar por algum tempo. Ele vivia na casa e seu quarto de dormir ficava no segundo andar. Por algum tempo, já se tinha despido e se tinha deitado na cama. Sendo um trabalhador habituado a despertar cedo, estava naturalmente ansioso por adormecer o mais cedo possível. Mas, naquela noite singular, sua inquietação, motivada pelos recentes assassinatos no número 29, ascendeu a um paroxismo de excitação nervosa que o manteve acordado. É possível que, da boca de alguém, tivesse ouvido falar do estranho de ar suspeito, ou que o tivesse mesmo observado deslizar de um lado para o outro. Mas, não fosse esse o fato, tinha consciência de várias circunstâncias que perigosamente ameaçavam a casa; por exemplo, o banditismo na vizinhança, e o fato desagradável de que os Marrs tinham morado a umas poucas portas da casa de Williamson, o que indicava que o próprio assassino não vivia longe. Isso era motivo para alarma geral. Mas havia outros motivos, peculiares à casa; em particular, a notoriedade da opulência de Williamson; a crença, seja bem ou mal fundada, de que acumulava em escrivaninhas e gavetas o dinheiro que fluía constantemente por suas mãos; e, por fim, o perigo tão ostensivamente cortejado pelo hábito de deixar-se a porta da casa aberta por uma hora inteira — e uma hora carregada de um perigo extraordinário, porque todos sabiam que não se corria o risco de encontrar visitantes ao acaso, porque todas tais pessoas eram banidas às onze. Um regulamento que, até então, funcionara beneficamente para o caráter e o conforto da casa, agora, pelo contrário, em circunstâncias alteradas, tomou-se uma proclamação positiva de que a casa estava aberta e indefesa. O próprio Williamson, dizia-se geralmente, sendo um homem alto e pesado, com mais de setenta anos, e reconhecidamente inativo, deveria, por medida de prudência, fazer com que o fechamento da porta coincidisse com a partida do grupo de freqüentadores da noite. Nesse e em outros motivos de alarma (particularmente em que se dizia que a Senhora Williamson possuía grande quantidade de peças de prata) o diarista pensava penosamente, e podiam faltar vinte e oito ou vinte e cinco minutos para as doze horas, quando, de uma só vez, com um estrondo, que proclamava a ação de alguma horrível violência, a porta da rua foi subitamente fechada e trancada. Aqui, portanto, além de qualquer dúvida, estava o homem diabólico, revestido de mistério, cio número 29 de Ratcliff Highway. Sim, aquele ser tremendo, que por doze dias ocupara todos os pensamentos e todas as línguas, estava agora, com muita certeza, no interior daquela casa indefesa, e, num momento, confrontaria cada um de seus habitantes. Ainda pairava uma pergunta no espírito público — se, na casa dos Marrs, um só ou dois homens tinham agido. Se dois na casa dos Marrs, também estariam presentes dois na casa de Williamson; e

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um dos dois poderia imediatamente entregar-se ao trabalho nos andares de cima; já que nenhum perigo poderia ser mais imediatamente fatal para um ataque daquela natureza do que qualquer alarma dado de uma janela superior aos passantes, na rua. Por um meio minuto, o pobre homem, em estado de pânico, ficou sentado imóvel na cama. Mas então levantou-se, sendo seu primeiro movimento em direção à porta do quarto. No para garanti-la contra qualquer tentativa de penetração — ele sabia muito bem que não havia nada que a fechasse — nem ferrolho, nem fechadura; nem havia mobília móvel no quarto que pudesse servir para erguer uma barricada na porta, mesmo se o tempo disponível o permitisse. Não foi por prudência, foi apenas movido pela fascinação do mais agudo dos medos que ele abriu a porta. Um degrau o levou ao alto das escadas; abaixou a cabeça sobre a balaustrada, para escutar; e naquele momento subiu, da pequena sala, este grito agônico emitido pela empregada: “Senhor Jesus Cristo! Nós seremos todos assassinados!”. Que cabeça de Medusa devia transparecer naquelas feições desprovidas de sangue, e naqueles olhos vidrados, que pareciam pertencer a um cadáver, para que um relance de olhos na figura fosse suficiente para proclamar uma sentença de morte. Já haviam terminado três combates de morte separados; e o pobre e petrificado diarista, inconsciente do que fazia, numa entrega cega e passiva ao pânico, desceu ambos os lances de escadas. O terror infinito o inspirou com o mesmo impulso que poderia ter sido inspirado por uma coragem sem limites. De camisola, e pisando em degraus velhos e decadentes, que, por momentos, rangiam sob seus pés, ele continuou a descer, até que atingiu o quinto degrau a partir do chão. A situação era a mais crítica possível. Um espirro, uma tosse, quase o ruído da respiração, qualquer coisa podia transformar o jovem num cadáver, sem uma possibilidade ou uma luta por sua vida, O assassino encontrava-se no momento na pequena sala — a porta da sala fazia frente às escadas; e essa porta estava aberta. Daquele quadrante, ou 90 graus, que a porta executaria para abrir-se a ponto de ficar em ângulo reto em relação ao corredor, ou com relação a ela mesma, se fechada, pelo menos 55 graus estavam expostos. Conseqüentemente, o jovem podia divisar dois dos três cadáveres. Onde jazia o terceiro? E o assassino — onde se encontrava? Quanto ao assassino, ele andava de um lado para outro na pequena sala, e era possível ouvi-lo mas, de princípio, não o era vê-lo, porque se encontrava empenhado em alguma coisa na parte do quarto que a porta ainda encobria. O que era tal coisa logo o ruído explicou: estava tentando abrir com chaves um gabinete, um armário e uma escrivaninha, na parte oculta do quarto. Logo, no entanto, apareceu; mas, felizmente, para o jovem, o objetivo do assassino, nesse momento crítico, o absorvia demasiado para lhe permitir erguer a vista até a escada, na qual, de outra forma, a figura branca do diarista, de pé em horror imóvel, teria sido observada num instante e preparada para o túmulo, no instante seguinte. Quanto ao terceiro cadáver, a saber, o da Senhora Williamson, jaz na adega; e como se pode explicar sua localização permanece um problema, muito discutido na época, mas nunca satisfatoriamente explicado. Entrementes, o fato de que Williamson estava morto se tornou evidente para o jovem, pois, caso contrário, te-lo-ia ouvido gemer ou mover-se. Portanto, de quatro amigos de quem o diarista se tinha despedido quarenta minutos antes, três tinham sido mortos; restavam, assim, quarenta por cento (uma grande percentagem para Wilhiamson abandonar); restavam ele próprio e a sua bonita jovem amiga, a pequena neta, cuja inocência infantil dormia, sem medo pessoal, ou tristeza por seus avós. Se eles partiram para sempre, felizmente um amigo (porque tal título ele merecerá, de verdade, se de tal perigo puder salvar a criança) está muito perto dela. Mas, por infelicidade, ainda está mais perto do assassino. Naquele momento, ele não conta com nervos para qualquer esforço; transformou-se numa coluna de gelo; pois os objetos em sua frente, separados por apenas treze pés, são os seguintes — a empregada fora atingida, de joelhos, por seu assassino; ela estava ajoelhada diante da grade do fogão, que ela estivera polindo com molibedeno. Terminada essa parte de sua tarefa, passara a uma outra, a saber, preencher o

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fogão com madeira e carvão, não para acendê-lo àquela hora da noite, mas para deixá-lo pronto a ser acendido no dia seguinte. Todas as aparências mostravam que ela devia estar empenhada nesse trabalho, no próprio momento em que o assassino entrou; e, talvez, a sucessão de incidentes se arranjou da seguinte maneira: — do terrível grito e apelo que emitiu para Jesus Cristo, tal como o ouviu o diarista, ficava claro que então, de início, ela se alarmara; contudo, isso se passou pelo menos um e meio ou mesmo dois minutos depois que a porta bateu. Conseqüentemente, o alarma que, de modo tão terrível e tempestivo, despertara a atenção do jovem, deve ter sido, de alguma forma, mal interpretado pelas duas mulheres. Foi dito, na época, que a Senhora Williamson sofria de uma dificuldade de audição; e se conjeturou que a empregada, com os ouvidos cheios do ruído que ela própria fazia, em suas tarefas, e com a cabeça no interior do fogão, poderia ter confundido o barulho da porta com os rumores que partiam da rua, ou poderia ter atribuído o fechamento violento a alguns meninos levados. Mas, qualquer seja a explicação, era evidente o fato de que a empregada não notara nada de suspeito, nada que a fizesse interromper seus afazeres, até que pronunciou seu apelo a Cristo. Se é assim, segue-se que tampouco a Senhora Williamson tinha notado qualquer coisa; pois, se notasse, teria comunicado seu próprio alarma à empregada, pois as duas se achavam no mesmo pequeno aposento. Ao que parece o curso das coisas depois que o assassino penetrou na pequena sala foi o seguinte: — a Senhora Williamson não o tinha provavelmente visto, porque, por acaso, estava de costas para a porta. A ela, portanto, antes que alguém o observasse, ele havia estonteado e prostrado com um forte golpe na parte traseira da cabeça; tal golpe, infingido com uma alavanca, a tinha atingido na parte anterior do crânio. Ela caiu; e pelo ruído de sua queda (pois foi tudo obra de um momento) chamara a atenção da empregada; a qual, então, emitiu o grito que foi ouvido pelo jovem; mas antes que pudesse novamente gritar, o assassino havia baixado seu instrumento sobre a cabeça dela, amassando-a para dentro. Ambas as mulheres estavam irrecuperavelmente destruídas, o que tomava outros ultrages desnecessários; e, além disso, o assassino tinha consciência do perigo iminente de qualquer atraso; e, contudo, a despeito de sua pressa, de tal forma ele apreciava as conseqüências fatais para ele, se qualquer das vítimas revivesse e fosse capaz de fazer um depoimento circunstanciado, que, para tomar isso impossível, passou instantaneamente a cortar-lhes as gargantas. Tudo isso concordava com as aparências tal como se apresentavam. A Senhora Williamson caíra para trás, com a sua cabeça em direção à porta; a empregada fora incapaz de se levantar de sua postura ajoelhada, e tinha apresentado sua cabeça, passivamente, aos golpes; depois do que, o miserável não teve mais que fazer do que inclinar para trás a cabeça da moça, para expor-lhe a garganta, e terminar o assassinato. É notável que o jovem artesão, paralisado como o fora pelo medo, e evidentemente de tal forma fascinado que se dirigira para a própria boca do leão, ainda assim tenha sido capaz de reparar em cada coisa de importância. O leitor deve imaginá-lo, nesta altura, observando o assassino enquanto este se inclinava sobre o corpo da Senhora Williamson, e enquanto renovava sua busca por certas chaves importantes. Era, sem dúvida, uma situação de ansiedade para o assassino; pois, a menos que encontrasse rapidamente as chaves que procurava, toda aquela horrenda tragédia terminaria - em nada a não ser um acréscimo prodigioso do horror público, em precauções multiplicadas por dez, portanto, e em redobrados obstáculos entre eles e suas futuras presas. Havia mesmo um interesse mais próximo em jogo; sua própria segurança pessoal poderia, por um acidente provável, ser comprometida. A maioria daqueles que vinham àquela casa à procura de bebidas alcoólicas era crianças ou moças estouvadas que, encontrando o estabelecimento fechado, iriam descuidadamente para algum outro; mas que alguma mulher ou homem sensato viesse agora à porta, um quarto de hora antes do momento fixado para que a casa se cerrasse, nesse caso teriam surgido suspeitas muito fortes para serem abafadas. Um súbito alarma teria sido dado; depois do qual, a pura sorte decidiria dos acontecimentos. Pois é um fato

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notável, e que ilustra a singular incoerência daquele vilão, o qual, sendo tantas vezes superfluamente sutil, era, sob outros aspectos, tão atirado e imprevidente, que naquele mesmo momento, de pé entre corpos que haviam inundado a pequena sala de sangue, Williams devia alimentar dúvidas consideráveis quanto a saber se contava com algum caminho seguro de saída. Havia janelas, sabia ele, que davam para trás da casa, mas sobre o terreno que ficava ali ele parece não ter tido nenhuma informação certa; e, numa vizinhança tão perigosa, não seria improvável que as janelas do andar térreo estivessem fechadas a prego; era possível que o mesmo não se passasse com as janelas do andar de cima, mas então surgia a necessidade de um salto muito formidável. De tudo isso, no entanto, a única conseqüência prática era apressar-se experimentando novas chaves, e encontrar o tesouro escondido. Foi isso, essa completa absorção num alvo supremo, que amorteceu as percepções do assassino de tudo o que se passava a seu redor; de outra forma, ele teria ouvido a respiração do jovem, o qual, ele próprio, a ouvia, cheio de medo. Quando o assassino se debruçou novamente sobre o corpo da Senhora Williamson, e revistou com mais atenção os bolsos dela, puxou vários molhos de chaves, um dos quais, caindo ao chão, produziu um barulho sonoro. Foi nesse momento que a testemunha secreta, do lugar oculto em que estava, reparou no fato de que o sobretudo de Williams era estofado de seda da melhor qualidade. Outro fato ele observou, que, em última instância, se tornou mais imediatamente importante do que muitas circunstâncias mais fortes de incriminação; tal fato consistia em que os sapatos do assassino, evidentemente novos, e, de modo provável, comprados com o dinheiro do pobre Marr, rangiam quando ele andava, dura e freqüentemente. Com os novos molhos de chaves partiu para a seção encoberta da pequena sala. E nesse momento, por fim, apareceu ao diarista a repentina possibilidade de uma fuga. Alguns minutos se passariam, certamente, enquanto Williams experimentasse as chaves; e, subseqüentemente em revistar as gavetas, supondo que as chaves servissem — ou em violentamente forçar as gavetas, se as chaves não servissem. A testemunha oculta poderia assim contar com um pequeno intervalo de lazer enquanto o ruído das chaves poderia abafar, aos ouvidos do assassino, o rangido dos degraus, enquanto o diarista tornava a subir. Seu plano já estava formado: retornando a seu quarto de dormir, colocou o leito contra a porta, como meio de retardar, transitoriamente, o inimigo, e de dar um aviso, e, no pior dos casos, fornecer ao perseguido uma possibilidade de salvar a vida, mediante um salto desesperado pela janela. Feita essa mudança com tanto silêncio quanto possível, ele rasgou em grandes tiras os lençóis, as fronhas dos travesseiros, e os cobertores, e, depois de entrançá-las em cordas, enlaçou os diferentes pedaços uns aos outros. Mas, logo de início, descobre uma terrível dificuldade a seus trabalhos. Onde encontrará qualquer anel de ferro, gancho, trava, ou outra coisa na qual pudesse pendurar a corda com segurança? Medidos da parte inferior da arquitrave da janela há cerca de oito ou nove metros do chão. Dessa distância, poderiam ser descontados quatro metros, porque de tal altura poderia cair sem perigo. Deduzindo-se esses metros, restaria a preparar, digamos, cerca de cinco metros de corda. Mas, infelizmente, não há nada de ferro, sólido, na janela. O mais próximo, na verdade o único objeto da espécie, não se encontra perto da janela; é uma cavilha de ferro. colocada, sem nenhum motivo, no fundo da cama; agora, como a cama foi mudada de lugar, também o foi a cavilha; e a sua distância que sempre foi de dois metros e cinqüenta, é agora de perto de quatro. E preciso, portanto, acrescentar quatro metros ao que teria bastado, se o comprimento da corda fosse medido da janela. Mas, coragem! Deus, segundo os provérbios de todas as nações, ajuda aqueles que se ajudam. Isso nosso jovem gratamente reconhece; ele já vê no fato de que encontrou uma cavilha de ferro, onde está então ela havia sido inútil, um exemplo de ajuda da Providência. Se só trabalhasse para a própria segurança, não se poderia sentir empregado meritoriamente; mas não é assim. Em profunda sinceridade, inquieta-o agora a sorte da pobre criança, que ele conhece e ama; cada minuto, sente ele, a aproxima mais da ruína; e, quando passou por sua porta, seu

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primeiro pensamento fora pegá-la em seus braços, e carregá-la para onde ela lhe pudesse partilhar as oportunidades. Mas, considerando melhor, achou que despertá-la subitamente, e a impossibilidade de mesmo lhe sussurrar alguma explicação, levá-la-ia a gritar audivelmente. A inevitável indiscrição da menina seria fatal aos dois. Como as avalanches dos Alpes, quando suspensas acima da cabeça do viajante, desabam, muitas vezes, segundo nos contam, por causa do movimento que imprime no ar um simples sussurro, precisamente de uma tal dependência de um murmúrio dependia agora a malícia assassina do homem do andar térreo. Só há uma maneira de salvar a criança: para libertá-la é preciso, primeiro, que ele se salve. E ele começou muito bem, pois a cavilha de ferro, que ele temera que, por motivo de qualquer esforço, se destacasse da madeira desgastada, agüenta firmemente o peso de seu corpo. Amarrou, com rapidez, à cavilha três pedaços de sua nova corda, que somam onze metros. Ele a entrança rudemente, de forma que somente um metro perdeu-se no entrelaçamento; o que faz com que três metros estejam prontos para serem lançados fora da janela. Assim, aconteça o que acontecer, o pior não representará uma ruína absoluta, pois poderá descer pela corda até onde esta posssa atingir, e, então, saltar audaciosamente. Tudo isso foi feito em cerca de seis minutos; e a competição acirrada entre o andar térreo e o andar de cima continua a proceder firme mas fervorosamente. O assassino trabalha duramente na saleta; o diarista trabalha duramente em seu quarto de dormir. O miserável alcança um êxito enorme embaixo; já conseguiu um monte de notas de banco, e está na pista de um segundo. Também descobriu uma quantidade de moedas de ouro. Ainda não conseguiu soberanos. Mas, naquele período, as guinéas valiam trinta shillings cada, e ele entrou de posse de um monte de guinéas. O assassino rejubila, ou quase. Se há alguma criatura com vida naquela casa, como suspeita, com tal criatura ficaria ele feliz, antes de cortar-lhe a garganta, de beber alguma coisa à guisa de celebração. Em vez de um copo de bebida, não poderia ele presentear a criatura com a sua garganta intacta? Não, impossível! Gargantas são coisas de que nunca fez presentes; os negócios acima de tudo. De fato, os dois homens, considerados apenas como homens de negócios, são ambos superiores. Como o coro e o semicoro, a estrofe e a antiestrofe, cada um trabalha contra o outro. Empurra diarista, empurra assassino. Puxa diarista, puxa diabo! Quanto ao diarista, ele está agora seguro. Aos seus onze metros, dos quais quatro são neutralizados pela distância entre a cama e a janela, ele adicionou, por fim, mais três metros, que, tudo junto, ficarão a uma distância de talvez quatro metros do solo — uma distância de que um homem ou um menino podem saltar sem medo de dano. Tudo está seguro, portanto, para ele; o que é mais do que se pode dizer quanto ao miserável na pequena sala. O miserável, no entanto, toma tudo com bastante calma; sendo motivo para isso que, apesar de toda a sua esperteza, o miserável foi por uma vez ultrapassado. Tanto o leitor como eu sabemos, mas o celerado não suspeita o mínimo de um fato de alguma importância, a saber, que por um espaço de três minutos ele foi visto e estudado por alguém que (embora decifrando um livro terrível e sofrendo um pânico mortal) tomou notas acuradas do que suas possibilidades limitadas lhe permitiam ver, e, seguramente, relatará o ranger dos sapatos e o estofamento de seda do sobretudo em lugares onde esses fatos não serão vantajosos para o assassino. Mas, embora seja verdade que o Senhor Williams, inconsciente de que o diarista assistiu ao exame dos bolsos da Senhora Williamson, não podia sentir qualquer ansiedade pelo que aquela pessoa estava fazendo, nem, portanto, com o fato de que o mesmo diarista se havia empenhado em formar uma corda, ainda assim ele, o assassino, tinha bastantes razões para não se demorar. E, no entanto, ele se demorou. Interpretando o que ele fez à luz dos indícios que deixou, a polícia tomou consciência de que, por fim, ele havia demorado. E o motivo que o guiou é impressionante; porque logo esse motivo demonstra que o assassinato não era por ele praticado como fim para um meio, mas apenas como um fim em si mesmo. O Senhor Williams tinha agora permanecido na casa por cerca de quinze a vinte minutos; e, naquele

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espaço de tempo, dera conta, num estilo que o satisfazia, de uma considerável quantidade de trabalho. Ele tinha, em linguagem comercial, dado “um bom golpe”. Em dois andares, a saber, a adega e o andar térreo, ele tinha dado cabo de toda a população. Mas ainda restavam pelo menos dois andares; ocorreu ao Senhor WiUiams que, embora a maneira um tanto distante do proprietário o afastara de qualquer conhecimento mais íntimo dos arranjos familiares, era muito provável que num ou outro desses andares houvesse gargantas. Quanto à parte de pilhagem, ele já a completara. E era quase impossível que restasse alguma coisa para um respigador. Mas as gargantas — era nisso em que podia consistir o resto e a possibilidade de respigamento. E assim parecia que, em sua sede voraz de sangue, o Senhor Will\iams arriscou todos os frutos de seu trabalho noturno, e a sua própria vida. Se, naquele momento, o assassino soubesse de tudo, pudesse ver a janela aberta no andar de cima pronta para a descida do diarista, pudesse testemunhar a mortal rapidez com que este opera, pudesse adivinhar o poderoso tumulto que, dentro de noventa segundos, enlouquecerá os habitantes daquele populoso distrito — nenhuma representação de um maníaco em fuga apavorada, ou em busca de vingança poderia adequadamente mostrar a agonia de pressa com a qual estaria correndo para a porta da rua. Aquela via de fuga ainda estava aberta. Mesmo naquele momento, ainda lhe restava tempo suficiente para uma fuga exitosa, e, portanto, para uma revolução no romance de sua abominável vida. Contava em seus bolsos com mais de cem libras de roubo. Tinha, portanto, meios para se disfarçar inteiramente. Naquela mesma noite, se raspar seu cabelo amarelo, e escurecer suas sobrancelhas, comprando, quando amanhecer, uma cabeleira escura, e roupas que possam lhe conferir o caráter de um grave profissional, poderá contornar as suspeitas de impertinentes policiais — poderá embarcar num dos cem navios destinados a qualquer porto na longa costa (que se estende por 2400 milhas) dos Estados Unidos da América; poderá gozar de cinqüenta anos para um arrependimento vagaroso; e poderá mesmo morrer em odor de santidade. Por outro lado, se preferir a vida ativa, com sua sutileza, dureza e falta de escrúpulos, num país em que o simples processo de naturalização converte o estrangeiro num membro da família, poderá alçar-se à cadeira presidencial; poderá ter erguida uma estátua, depois de sua morte, e ser objeto de uma biografia em três volumes in quarto, sem nada que lembre Ratcliff Highway, número 29. Mas tudo depende dos próximos noventa segundos. Dentro desse tempo, há uma encruzilhada a atravessar; há um caminho errado e um caminho certo. Se o seu anjo da guarda o guiasse para o caminho certo, tudo ainda poderia suceder bem, no que diz respeito a este mundo. Mas eis que em dois minutos, a partir deste ponto, nós o veremos tomar o caminho errado: e então a deusa Nêmesis seguirá nos seus calcanhares com ruína perfeita e repentina. Enquanto o assassino se permite demorar, tal não se passa com o fabricante de cordas, no andar de cima. Este sabe bem que o destino da criança está em jogo, está pendendo pelo fio de uma navalha, porque tudo depende de que se dê o alarma, antes que o assassino chegue perto do leito em que ela dorme. E neste momento, enquanto uma agitação desesperada quase lhe paralisa os dedos, ele ouve o passo maligno e furtivo do assassino procurando o seu caminho na escuridão. O diarista esperara (com fundamento no barulho infernal com que a porta da rua fora fechada) que Williams, quando disponível para o trabalho no andar de cima, corresse pela escada num galope jubilante, e com um rugido de tigre. Talvez, Williams, se obedecesse a seu instinto, assim houvesse agido. Mas tal modo de aproximação, que produzia um terrível efeito em caso de surpresa, tornava-se perigoso diante das pessoas que podiam, àquela altura, estar inteiramente de guarda. O passo que o diarista ouviu partia da escada. Mas, de que degrau? Pensava que do mais baixo. E, num movimento tão vagaroso e cauteloso quanto devia ser o do assassino, isso poderia constituir uma importante diferença. Contudo, não poderia ter partido do décimo, do décimo-segundo ou do décimo-quarto degrau? Talvez nunca neste mundo tenha algum homem sentido sua própria responsabilidade tão cruelmente carregada e pressionada

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quanto a sentiu, naquele momento, o pobre diarista, com relação à criança que dormia. Se ele perdesse apenas dois minutos, por falta de jeito ou por algum movimento de pânico, surgia para a menina a total diferença entre a vida e a morte. Ainda assim, há esperança. Nada pode tão terrivelmente exprimir a natureza diabólica daquela cuja sombra funesta, para falar como um astrólogo, escurece neste momento a casa da vida, do que o simples fundamento em que essa esperança repousava. O diarista tinha certeza de que o assassino não ficaria satisfeito em matar a pobre criança, enquanto esta estivesse inconsciente. Isso faria fracassar todo o seu objetivo em matá-la. A um epicurista em assassinato, como Williams, seria privar-se do aguilhão do prazer, se deixasse a pobre criança beber o copo amargo da morte, sem apreender inteiramente a miséria da situação. Mas isso exigiria tempo. A dupla confusão no espírito da criança, primeiro, por ser despertada tão tarde, e, segundo, pelo horror da ocasião, quando esta lhe fosse explicada, produziria um desmaio, ou alguma forma de insensibilidade ou de distração que exigiria um tempo considerável. A lógica do caso, em resumo, repousava no excessivo diabolismo de Williams. Se fosse provável que ele se contentasse com o simples fato da morte da criança, além do processo e lenta expansão de sua agonia, nesse caso não haveria esperança. Mas, porque o nosso assassino é delicadamente precioso em suas execuções — uma espécie de perfeccionista em arranjar grupos cênicos e dobras nas circunstâncias de seus assassinatos, é por isso que a esperança se torna razoável, porque todos esses requintes de preparação exigem tempo. Williams era obrigado a apressar-se em assassinatos de pura necessidade; mas num assassinato de pura volúpia, inteiramente desinteressado, onde não havia testemunha hostil a ser removida, nenhum saque extraordinário a ser conquistado, e nenhuma vingança a ser satisfeita, é claro que apressar-se significaria arruinar o caso. Se tal criança, portanto, for salva, será devido a puras considerações estéticas (7).. Mas todas as considerações dessa espécie são, naquele momento, interrompidas. Ouve-se um segundo passo nas escadas, mas ainda furtivo e cauteloso; ouve-se uni terceiro — e então o destino da criança parece determinado. Mas bem nesse momento tudo está pronto. A janela está aberta; a corda balança; o diarista lançou-se; e já se encontra na primeira fase de sua descida. Simplesmente pelo peso de seu corpo ele desceu, e pela resistência de suas mãos ele retardou a descida. O perigo consistia em que a corda passasse muito rapidamente por suas mãos, e por causa de uma aceleração muito violenta do ritmo de sua descida ele batesse contra o chão. Felizmente, ele foi capaz de resistir ao ímpeto da descida: os nós que atavam os pedaços de corda, uns aos outros, proporcionaram uma série de retardamentos. Mas a corda se mostrou mais curta por uns dois metros do que ele esperava: ele pendeu, suspenso no ar, a uns cinco ou seis metros; sem fala, no momento, por causa de uma agitação longa e continuada; e não ousando atirar-se no pavimento; com medo de fraturar as pernas. Mas a noite não era escura, como o fora na ocasião dos assassinatos de Marr. E, contudo, para os propósitos da polícia, a noite era, por acaso, pior do que a noite mais escura que jamais escondeu um assassino ou frustrou uma perseguição. Londres estava, de leste a oeste, coberta por um profundo manto (oriundo do rio) de neblina universal. Disso aconteceu que o jovem, embora suspenso no ar, por vinte ou trinta segundos, não foi observado. Sua camisola branca terminou por chamar a atenção. Três ou quatro pessoas acorreram, e o receberam nos braços, antecipando todos alguma terrível revelação. A que casa pertencia? Mesmo isso não foi logo evidente; mas ele apontou com o dedo a porta de Williamson, e disse, num murmúrio meio abafado, “o assassino de Marr está agora trabalhando”. Tudo se explicou num momento: a linguagem muda do fato efetuou a sua própria revelação eloqüente. O misterioso exterminador de Ratcliff Highway, número 29 visitara outra casa; e eis que um só homem escapara pelo ar, e, de camisola, para contar a história. Supersticiosamente, havia alguma coisa para impedir a perseguição de tal ininteligível

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criminoso. Moralmente, e nos interesses da polícia punitiva, havia tudo para despertar a perseguição, para apressá-la, e para a Sustentar. Sim, o assassino de Marr — o homem misterioso — estava novamente em ação; talvez, naquele próprio momento, apagando alguma lâmpada de vida, e não em algum canto remoto, mas ali — na mesma casa onde os que escutavam a notícia tocavam. O caos e a gritaria cega que se seguiram, medidos pelos abundantes comentários nos jornais de muitos dias, e um traço daquele caso, nunca, ao meu conhecimento, tiveram paralelo; ou, se tiveram paralelo, esse se registrou apenas num caso — o que acompanhou a absolvição dos sete bispos em Westminster, em 1688. No momento, havia mais do que entusiasmo apaixonado. O movimento frenético de horror misturado à exultação — a ululação de vingança que ascendeu das ruas próximas instantaneamente, e então, por uma espécie sublime de contágio magnético, de todas as ruas adjacentes, só pode ser exprimido, de forma adequada, por uma passagem enlevada de Shelley: The transport ofJ7erce and monstrous gladness Spread through the multitudinous streets, fast flying Upon the wings of fear: — From his fui! madness The stan’eling waked, and died in joy: the dying, Among the corpses in stark agony lying, Just heard the happy tidings, and in hope, aosed the faint eyes:from house to house replying With loud acciaim the living shook heaven ‘s cope, A nd flul ‘d the startled earth with echoes (8) Houve alguma coisa, de fato, de meio inexplicável na compreensão instantânea do verdadeiro sentido do grito lançado pela multidão. Na verdade, o urro mortal da vingança, e sua sublime unidade, só podia apontar naquele distrito para um demônio cuja idéia tinha assombrado e tiranizado, durante doze dias, o coração de todos: todas as portas, todas as janelas na vizinhança abriram- se, como se obedecessem a uma ordem de comando; multidões, sem guardar os meios regulares de saída, saltaram logo pelas janelas do andar térreo; enfermos se levantaram de seus leitos; num caso, como para expressamente realizar a imagem de Shelley (versos 4, 5, 6 e 7), um homem cuja morte se aguardava havia alguns dias, e que de fato morreu no dia seguinte, ergueu-se, armou-se com uma espada, e desceu de camisola até a rua. Havia uma boa oportunidade, e a multidão disso tinha consciência, de capturar o cão voraz no ponto mais alto, po auge de suas proezas sangrentas — no próprio centro de seu matadouro. Por um momento, a multidão parou, premida por seu próprio número e sua própria fúria. Mas mesmo a fúria sentiu a necessidade de controle. Era evidente que a porta maciça da rua deveria ser arrombada, já que ninguém de vivo havia na casa que cooperasse com os esforços dos que estavam de fora, com exceção de uma criança. A aplicação destra de alavancas retirara, num minuto, a porta dos gonzos, e o povo penetrou como uma torrente. É fácil imaginar com que agitação e irritação da terrível fúria que a possuía a multidão recebeu um sinal de pausa e de absoluto silêncio da parte de uma pessoa de autoridade. Na esperança de escutar alguma comunicação útil, o povo silenciou. “Agora escutem,” disse o homem de autoridade, “e saberemos se ele se encontra embaixo ou em cima.” Imediatamente, ouviu-se um ruído, como se alguém forçasse uma janela, e era claro que o som provinha do quarto de dormir acima. Sim, era evidente que o assassino ainda se encontrava na casa; fora apanhado numa armadilha. Não se tendo familiarizado com os pormenores da residência dos Williamson, ele se tornara, ao que tudo indicava, prisioneiro num dos aposentos superiores. Para esse quarto, a multidão correu impetuosamente. A porta, no entanto, estava fechada; e, quando ela foi forçada, um grande barulho na janela, de vidro e madeira partidos, anunciava que o miserável havia

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escapado. Ele saltara; e diversas pessoas do povo, inflamadas pela fúria geral, saltaram atrás dele. Essas pessoas não se tinham dado ao trabalho de examinar a natureza do terreno;mas, ao estudá-lo agora à luz de tochas, informaram os outros de que se tratava de um plano inclinado, ou espécie de molhe de argila, muito úmido e adesivo. Viam-se claramente as pegadas do assassino na argila, e podiam, portanto, ser seguidas com facilidade até o cume do molhe; mas percebeu-se logo que a perseguição seria inútil, por causa da neblina. A uma distância de dois pés, não se podia distinguir um homem; e se alguém alcançasse um passante, não o poderia segurar como o assassino que se perdera de vista. Nunca, no curso de um século inteiro, podia uma noite ter sido mais propícia para um criminoso: de meios de disfarçar-se Williams dispunha agora em excesso; e eram inúmeros os esconderijos na vizinhança do rio que o poderiam abrigar, durante anos, de investigações perturbadoras. Mas é em vão que os inconsiderados e os ingratos recebem favores. Aquela noite, quando mais uma vez se lhe apresentou uma encruzilhada, Williams tomou o caminho errado, pois, por pura indolência, ele se dirigiu para os seus aposentos — o lugar que, agora em toda a Inglaterra, ele tinha mais motivos para evitar. Entrementes, a multidão revistara todas as instalações de Williamson. O que primeiro se procurou foi a jovem neta. Era evidente que Williams entrara no quarto dela: mas fora nesse quarto, ao que parecia, que o súbito tumulto na rua o surpreendera; depois disso, não desviara mais a atenção das janelas, uma vez que somente por ali estar-lhe-ia aberta alguma forma de fuga. Mesmo essa retirada ele só a devera à neblina e à pressa do momento, e à dificuldade que havia para que alguém se aproximasse da casa pela parte traseira. A menina ficou naturalmente agitada, com o fluxo de estranhos àquela hora; mas, graças às preocupações humanas dos vizinhos, foi-lhe poupado o conhecimento dos acontecimentos terríveis que se tinham passado embaixo. Ainda não se encontrara o pobre avô, até que a multidão desceu à adega; foi achado prostrado no assoalho: ao que tudo indicava, ele fora jogado do alto da escada, e com tanta violência que uma perna se lhe partira. Depois que isso acontecera, Williams baixara e cortara-lhe a garganta. Houve muita discussão na época, em alguns jornais públicos, sobre a possibilidade de reconciliar tais incidentes com outras circunstâncias do caso, desde que se supusesse que apenas um homem estivera empenhado no crime. Parece certo que apenas um homem o esteve. Só um homem foi visto ou ouvido na casa de Marr: apenas um, e, além de qualquer dúvida, o mesmo homem fora visto pelo jovem diarista na saleta de Williamson; e havia pegadas de apenas um homem no molhe de argila. Ao que parece, o curso que observara foi o seguinte: apresentara-se a Williamson pedindo cerveja. Esse pedido obrigaria o velho a descer até a adega; William esperaria até que o velho a atingisse, e então bateria com a porta e a fecharia, da maneira violenta acima descrita. Williamson teria voltado, agitado, ao ouvir essa violência. O assassino, consciente de que a vítima assim agiria, encontrou-a, sem dúvida, no alto da escada e a atirou para baixo; depois do que desceu para consumar o assassinato de sua forma costumeira. Tudo isso não tomaria mais do que um minuto ou um minuto e meio; e, dessa forma, poder-se-ia explicar o intervalo entre o som alarmante da porta da rua, tal como ouvido pelo diarista, e o lastimoso grito da empregada. Também é evidente que o motivo pelo qual não partiu qualquer grito dos lábios da Senhora Williamson decorreu da localização das pessoas, tal como eu a delineei. Vindo por detrás da Senhora Williamson, e, portanto, não sendo possível a esta última vê-lo, como também, por causa da surdez, não lhe era possível ouvi-lo, o assassino lhe teria inflingido uma completa inconsciência, enquanto ela ainda não lhe percebera a presença. Mas com a empregada, que inevitavelmente testemunhara o ataque à patroa, não foi possível ao assassino conseguir a mesma inteira vantagem; e ela teve, portanto, tempo para emitir um grito angustiante. Foi mencionado que o assassino dos Marrs, por duas semanas, não foi sequer objeto de suspeitas; o que significa que, previa- mente ao assassinato dos Williamson,

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nenhum vestígio de qualquer fundamento para suspeita tinha ocorrido, seja ao público em geral, seja à polícia. Mas havia duas exceções muito limitadas a essa condição de completa ignorância. Alguns dos magistrados possuíam alguma coisa que, quando examinada de perto e com atenção, oferecia um meio provável de descobrir-se o criminoso. Mas, até então, não o tinham descoberto. Até a sexta-feira de manhã, depois da destruição dos Williamson, os magistrados não haviam publicado o fato importante de que, no malho de carpinteiro naval (com o qual, no que diz respeito ao estonteamento das vítimas, tinham sido executados os assassinatos), estavam inscritas as letras “J.P.”. O malho havia sido esquecido, por uma estranha distração do assassino, na casa dos Marrs. E é interessante observar que, se o vilão houvesse sido interceptado pelo agiota, teria sido encontrado sem arma. A notificação pública foi feita oficialmente na sexta-feira, ou seja, no décimo-terceiro dia depois do primeiro assassinato. E foi instantaneamente seguida (como se verá) por um resultado da maior importância. Entrementes, na intimidade de um único quarto de dormir em Londres, é um fato que Williams fora o objeto sussurrado de suspeitas muito profundas desde o primeiro momento — ou seja, na mesma hora que testemunhara o assassinato dos Marrs. E é singular que a suspeita tivesse origem na própria loucura do criminoso. Williams vivia, em companhia de outros homens de nações várias, num albergue. Num grande dormitório, havia cinco ou seis leitos; estes eram ocupados por artesões, geralmente de caráter respeitável. Havia um ou dois ingleses, um ou dois escoceses, três ou quatro alemães, e Williams, cujo lugar de nascimento era desconhecido. Na noite daquele sábado fatal, cerca de uma hora da manhã, quando Williams regressou de seus trabalhos infernais, ele deu com os ingleses e escoceses adormecidos, mas com os alemães acordados: um deles estava sentado, com uma vela acesa na mão, e lia em voz alta para os outros. Ao ver isso, William disse, num tom alto e muito peremptório: “Apaguem esta vela; apaguem-na imediatamente, ou seremos todos queimados em nossas camas”. Se os ingleses do aposento estivessem acordados, a ordem arrogante de Williams teria suscitado um protesto rebelde. Mas os alemães são de temperamento manso e fácil, o que fez com que apagassem a luz. Contudo, como não havia cortina, pareceu aos alemães que não existia qualquer perigo; pois as roupas de cama, umas sobre as outras, não queimarão mais do que as folhas de um livro fechado. Entre eles, portanto, os alemães chegaram à conclusão de que o Senhor Williams tivera algum motivo urgente para esconder sua própria pessoa e roupas da observação dos outros. Que motivo podia ser, as notícias difundidas no dia seguinte por toda Londres, e, por conseguinte, naquela casa, não muito distante da casa de Marr, tomavam horrivelmente evidentes; e, como se pode supor, a suspeita foi comunicada aos outros membros do dormitório. Todos eles, no entanto, tinham consciência do perigo legal que corre, de acordo com o direito britânico, quem fizer contra um homem insinuações que, embora verdadeiras, não possam ser comprovadas. Em realidade, tivesse Williams observado as precauções mais óbvias, tivesse ele simplesmente andado até o Tâmisa (à distância de uma pedrada), e atirado duas de suas ferramentas no rio, não se poderia ter contra ele aduzido qualquer prova conclusiva. E ele poderia, muito bem, ter seguido o esquema de Courvoisier (o assassino de Lord William Russell) — a saber, ter procurado o sustento de cada mês mediante um assassinato separado e bem combinado. O grupo no dormitório, nesse meio tempo, tinha certeza de que o matador era Williams, mas esperava provas com que pudesse demonstrar esse fato a outros. 1ogo, portanto, que foi publicada a notícia oficial sobre as iniciais J.P. no malho, todo homem na casa reconheceu logo as bem conhecidas iniciais de um honesto carpinteiro naval norueguês, John Petersen, que trabalhara nas docas inglesas até aquele ano; mas, tendo ocasião de visitar seu país natal, deixara sua caixa de ferramentas no sótão do albergue. Passaram os homens a revistar o sótão. As ferramentas de Peterson foram encontradas, mas faltava o malho; e, aprofundando-se a busca, uma outra descoberta arrasadora foi feita. O cirurgião, que examinara os cadáveres na casa de Williamson, opinara que as gargantas não haviam sido

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cortadas por meio de uma navalha, mas por meio de um instrumento de outra forma. As pessoas do albergue lembraram que Williams, recentemente, pedira emprestada uma grande faca francesa de forma singular; e, assim, de uma pilha de madeira velha e de trapos, retirou-se um colete, que toda a casa podia jurar ter sido recentemente usado por Williams. Em tal colete, e colada com sangue ao estofo de seu bolso, encontrou-se a faca francesa. Além disso, era notório no albergue que Williams usava, de ordinário, agora, um par de sapatos que rangiam, e um sobretudo pardo estofado de seda. Não se precisava de muitos outros indícios. Williams foi imediatamente preso, e objeto de um exame curto. Isso passou-se na sexta-feira. Na manhã de sábado (ou seja, quatorze dias depois dos assassinatos dos Marrs), ele foi novamente submetido a perguntas. As provas circunstanciais tinham uma grande força. Williams ouviu-lhes a descrição, mas disse muito pouco. No fim da sessão, foi inteiramente indiciado para julgamento na próxima reunião dos tribunais; e é quase inútil dizer que, em seu caminho para a prisão, foi perseguido por grupos tão ferozes, que, se as circunstâncias fossem comuns, teria tido pouca esperança de salvar-se de vingança sumária. Mas para aquela ocasião providenciara-se uma poderosa escolta, o que fez com que fosse alojado, em segurança, atrás das grades. Na cadeia em que foi colocado seguia-se o regulamento de que, às cinco horas da tarde, todos os prisioneiros das alas de criminosos fossem finalmente trancados para a noite, e sem velas. Durante quatorze horas (ou seja, até as sete da manhã seguinte) eram deixados sós, e imersos em total escuridão. Assim, Williams dispôs de tempo para cometer suicídio. Sob outros aspectos, os meios de que dispunha eram pequenos. Havia uma barra de ferro, destinada (se bem me recordo) à suspensão de uma lâmpada; nela se enforcou com os suspensórios. A hora em que o fez é incerta: algumas pessoas imaginaram que tudo ocorrera à meia-noite. E, se foi esse o caso, precisamente na hora em que, quatorze dias antes, ele distribuíra horror e desolação pela pobre e calma família de Marr, foi ele agora beber da mesma taça amarga, que lhe foi apresentada pelas mesmas mãos malditas. O caso dos M’Keans, que foi objeto de menção especial, também merece uma rememoração, ainda que ligeira, por causa do aspecto a um tempo terrível e pitoresco de duas ou três de suas circunstâncias. O cenário do assassinato foi uma hospedaria rústica, umas poucas milhas (ao que eu creio) distante de Manchester. E foi da localização vantajosa da hospedaria, do ponto de vista de um crime, que nasceram as duplas tentações do caso. Falando de uma maneira geral, uma hospedaria indica uma cintura próxima de vizinhos — porque nisso consiste o motivo original para que se abra o estabelecimento. Mas, nesse caso, a casa era individualmente solitária, o que fazia com que não fosse de esperar qualquer interrupção de parte de pessoas que morassem ao alcance dos gritos; e, contudo, por outro lado, a região circunjacente era populosa, de modo eminente; como uma das conseqüências disso uma sociedade beneficente havia estabelecido suas reuniões semanais em tal hospedaria, e deixava as receitas pecuniárias na sala reservada a reuniões, sob a guarda do proprietário. Esse fundo ascendia muitas vezes a uma soma considerável, de cinqüenta a setenta libras, antes que fosse transferido para as maos de um banqueiro. Havia, portanto, um tesouro que valia algum risco, e uma localização que prometia que tal risco seria pequeno ou nenhum. Essas circunstâncias atraentes se tinham, por acaso, tornado conhecidas, de forma pormenorizada, de um ou de ambos os M’Keans; e, desafortunadamente, esse conhecimento ocorreu no momento em que atravessavam uma terrível miséria. Eram bufarinheiros, e até tempos ardentes se tinham comportado de modo muito respeitável: mas alguma crise mercantil os tinha levado a uma ruína que engolira até o último shilling do capital que possuíam. Essa provação repentina os levara ao desespero: a pequena propriedade de que dispunham lhes fora arrebatada por uma grande catástrofe

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social, e lhes parecia que a sociedade em geral fora culpada, para com eles, de um roubo. Ao pilhar, portanto, a sociedade, parecia-lhes que estavam exercendo uma espécie selvagem de justiça de retaliação. O dinheiro que queriam alcançar tinha o caráter de dinheiro público, porque resultava de muitas subscrições. Esqueciam-se, no entanto, de que, para os atos de assassinato que planejavam como preliminares ao roubo, não podiam alegar tal precedente social imaginário. Para subjugar uma família que parecia quase indefesa, correndo tudo bem, contavam inteiramente com a força corporal. Eram jovens robustos, de vinte e oito e trinta e dois anos de idade; não eram altos, antes baixos; mas bem construídos, com o tórax desenvolvido, ombros largos, e de formas tão belas, no que diz respeito à simetria dos membros e das articulações, que, depois de executados, os corpos foram exibidos, em círculos privados, pelos cirurgiões de Enfermaria de Manchester, como objetos de interesse estatuário. Por outro lado, o pessoal da casa que pretendiam atacar consistia das seguintes quatro pessoas: o proprietário, um fazendeiro robusto, mas a ele tencionavam desarmar mediante um truque, na época, de introdução recente entre ladrões, e chamado hocussing, que vem a ser administrar clandestinamente na bebida da vítima tintura de ópio; a mulher do proprietário; uma jovem empregada; um menino que contava entre doze e quatorze anos de idade. O perigo residia em que, de quatro pessoas distribuídas pelo acaso numa casa com duas saídas, uma pelo menos pudesse escapar, e conhecendo bem os caminhos adjacentes, lograsse dar o alarma em alguma das casas que ficavam a distâncias de um tanto mais de duzentos metros. Chegaram à resolução final de se deixarem guiar pelas circunstâncias, como modo de conduzir o crime; e, como era essencial que assumissem o ar de estranhos um ao outro, era necessário que preparassem algum esquema geral do plano, uma vez que seria impossível fazer comunicações entre eles, sem despertar as suspeitas da família. Esse projeto incluía, pelos menos, um assassinato: isso foi combinado; mas o que fizeram, subseqüentemente, deixa claro que desejavam derramar tão pouco sangue quanto fosse indispensável a seu objetivo final. No dia aprazado, apresentaram-se separadamente à hospedaria rústica, e em horas diferentes. Um deles chegou às quatro e meia da tarde; e o outro só chegou às sete horas. Cumprimentaram-se a distância e com reserva, e, embora, ocasionalmente trocassem umas poucas palavras, como se fossem estranhos, não pareciam dispostos a qualquer intimidade. Um dos irmãos, no entanto, entrou em animada conversação com o proprietário, que chegou por volta das oito horas, de Manchester; convidou-o a tomar um copo de punch; e, num momento em que a ausência do proprietário o permitiu, colocou na bebida uma colher de tintura de ópio. Algum tempo depois disso, o relógio bateu dez badaladas. Nesse momento, o mais velho dos M’Keans. dizendo-se cansado, pediu que o levassem ao quarto de dormir. Cada um dos irmãos, ao chegar, tinha solicitado uma cama. Atendendo ao pedido do mais velho, a pobre empregada apresentou-se com uma vela, para iluminar-lhe o caminho. Nesse momento crítico, era a seguinte a distribuição da família: o proprietário, sofrendo os efeitos do horrível narcótico que ingenra, se tinha retirado para um quarto privado junto à sala pública; e, felizmente, para sua própria segurança, foi considerado como inteiramente incapaz de ação. A proprietária ocupava-se com o seu marido. E, assim, o mais jovem dos M’Keans foi deixado sozinho na sala pública. Levantou-se, portanto, e se colocou ao pé da escada que o seu irmão tinha subido, para estar certo de interceptar qualquer fugitivo do andar de cima. O mais velho dos M’Keans foi introduzido no quarto de dormir pela empregada, que lhe indicou duas camas, uma das quais já estava meia ocupada pelo menino, e a outra, vazia. Ela disse que os dois estranhos teriam de se arranjar com as duas camas, conforme combinassem. Depois de dizer isso, deu-lhe a vela, que ele, no mesmo momento, colocou sobre a mesa, e, quando ela se queria retirar, colocou-lhe o braço em torno do pescoço, como se quisesse beijá-la. Isso evidentemente ela previra, e procurou impedir. Pode-se imaginar o horror que dela se apossou quando sentiu que a mão pérfida que a segurava pelo pescoço estava armada de uma navalha, e que lhe cortava violentamente a garganta. Ela mal foi capaz de proferir um

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grito, antes de cair impotente no chão. Esse espetáculo horrível foi testemunhado pelo menino, que não dormia, mas teve bastante presença de espírito para simular que estava profundamente adormecido. O assassino adiantou-se rapidamente para a cama, e examinou, com ansiedade, a expressão das feições do menino. Achou que ele dormia, e colocou-lhe a mão sobre o coração para julgar pelas batidas, se estava ou não agitado. Era uma provação tremenda, e não há dúvida de que a simulação teria sido percebida, quando, subitamente, um espetáculo fantasmagórico atraiu a atenção do assassino. Solenemente, e em completo silêncio, a jovem assassinada pôs-se de pé; levantou-se, andou firmemente por um ou dois momentos, e se dirigiu para a porta. O assassino pôs-se a persegui-la, e, nesse momento, o menino, julgando que sua única possibilidade de permenecer vivo dependia de fugir enquanto essa cena se passava, saltou da cama. No alto da escada postara-se um dos assassinos, e o outro se postara ao pé da escada. Quem podia acreditar que assistia ao menino na sombra de possibilidade de escapar? E, contudo, da maneira mais natural, ultrapassou todas as dificuldades. Possuído de medo, ele colocou sua mão na balaustrada, e pulou por cima dela, o que fez com que aterrizasse no andar de baixo, sem utilizar um só degrau. Assim, ele contornara um dos assassinos. Ainda lhe faltava contornar o outro. Isso teria sido possível, se não fosse por um incidente. A proprietária fora alarmada pelo grito da empregada; saíra correndo do aposento onde se encontrava para auxiliar a jovem, mas fora interceptada, ao pé da escada, pelo irmão mais moço, e, naquele momento, estava empenhada em luta com ele. A confusão nessa luta mortal permitiu ao menino ultrapassá-los. Correu para a cozinha, para fora da qual havia uma porta, fechada por um só ferrolho, que se abria com facilidade. Através dessa porta ele passou e correu para os campos abertos. Nesse momento, no entanto, o irmão mais velho libertou-se para persegui-lo, porque a jovem empregada morrera. Não há dúvida de que, no delírio que se apossou dela, a imagem que lhe passava pela cabeça era a da sociedade beneficente, que se reunia uma vez por semana. Imaginou que ela estava reunida. E para o aposento em que se reunia, ela se encaminhou, tropegamente. Penetrou no aposento, e, no seu interior, tornou a cair no chão, e, instantaneamente, morreu. O assassino, que a seguira de perto, viu-se então livre para perseguir o menino. Nesse momento crítico, estava tudo em jogo. A menos que o menino fosse capturado, todo o empreendimento fracassava. Ele ultrapassou correndo seu irmão, que se encontrava às voltas com a proprietária, e penetrou, através da porta aberta, nos campos. Foi talvez por um só segundo que ele chegou tarde. O menino tinha consciência de que, se continuasse visível, não poderia escapar de um jovem muito forte. Atirou-se, portanto, numa vala. Se o assassino houvesse efetuado um exame vagaroso do terreno, teria encontrado a vala, onde o menino aparecia, conspícuo, por causa de sua camisola. Mas perdeu o ânimo, porque não conseguira deter logo a fuga do menino. E o seu desespero aumentou a cada segundo. Se o menino lograra escapar para uma das fazendas vizinhas, um grupo de homens podia reunir-se dentro de cinco minutos. E já se poderia ter tornado difícil, para ele e seu irmão, se evadirem, sem conhecer as trilhas daqueles campos. Não lhe restava mais do que chamar seu irmão. Assim aconteceu que a proprietária, embora ferida, escapou com vida, e veio a recuperar-se. O proprietário deveu sua segurança à poção que absorvera. Os dois assassinos conheceram a desolação de verificar que o crime que tinham praticado fora inútil. Agora, já se lhes abrira o caminho da sala de reuniões da sociedade beneficente. Provavelmente, quarenta segundos teriam sido suficientes para que carregassem a caixa do tesouro, que poderiam mais tarde abrir e pilhar. Mas o medo de inimigos que os interceptassem foi muito forte - Fugiram rapida. mente por uma estrada que os fez passar a seis pés do menino escondido. Atravessaram Manchester naquela noite. Quando amanheceu, dormiram num bosque a vinte milhas de distância do lugar onde tentaram o roubo. Na segunda e terceira noites, prosseguiram em sua marcha, a pé, repousando durante o dia. Na aurora da quarta manhã, estavam entrando numa aldeia perto de Kirby Lonsdale, em Westmoreland. Devem, de propósito, ter saído do caminho

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direto, pois objetivavam chegar a Ayrshire, condado do qual eram oriundos. O caminho mais trilhado os teria levado através de Shap, Penrith, Carlisle. É provável que estivessem buscando evitar a perseguição das diligências, as quais, durante as últimas trinta horas, tinham distribuído por todas as hospedarias de beira de estrada cartazes que os descreviam e descreviam o que vestiam. Aconteceu (talvez de propósito) que, naquela quarta manhã, eles se tinham separado para entrar na aldeia com um intervalo de dez minutos entre os dois. Estavam exaustos e com os pés feridos. Nessa condição, era fácil pará-los. Um ferreiro os examinara silenciosamente e comparara a aparência deles com o que figurava nos cartazes. Foram então alcançados com facilidade e presos separadamente. Seguiram-se rapidamente, em Lancaster, o julgamento e a condenação. E como era natural naqueles dias, foram executados. Sob outros aspectos, o caso deles de tal maneira coincidia com o que se chama hoje em dia de circunstâncias atenuantes que, embora um assassinato a mais ou a menos não os teria afastado de seu objetivo, eles se tinham mostrado ansiosos por economizar sangue, na medida do possível. É, portanto, incomensurável o intervalo que os separa do monstro Williams. Morreram no patíbulo. Williams, como eu disse, suicidou-se. Em obediência à lei, tal como era, foi enterrado no centro de um quadrivium, ou lugar de encontro de quatro vias (nesse caso, quatro ruas) com uma estaca que lhe atravessava o coração. E sobre ele passa para sempre o tráfego incessante de Londres! Contracapa DO ASSASSINATO COMO UMA DAS BELAS ARTES Portanto, que nos seja permitido tirar o melhor partido de um mau assunto; que o tratemos esteticamente, e verifiquemos se o podemos aproveitar dessa maneira. Secamos nossas lágrimas e gozamos a sensação de descobrir que uma transação que, considerada moralmente era chocante, se for julgada pelos critérios do Gosto, revela-se uma obra muito meritória. (...) Segundo este princípio cavalheiros, proponho-me a guiar-vos os estudos desde Cain até o Senhor Thurtel. Através desta grande galeria do assassinato, que nos seja permitido vagar de mãos dadas, juntos, em admiração deliciada. O primeiro assassinato é conhecido de todos. Como o inventor do assassinato e pai da arte, Cain deve ter sido um gênio de primeira grandeza. Todos os Cains foram homens de gênios... (Trecho do livro Do Assassinato como uma dzr &ha Aries, de Thomas de Quincey.) IM (1) Não estou certo se Southey ocupava, no momento, seu lugar de editor do Edimburgh Annual Register. Se o ocupava, não há dúvida de que na seção nacional daquela crônica será encontrado um relato excelente de tudo o que se passou. (N. do A.) (2) Por Compotor, em Oxford, designava-se o aluno que pagava maiores tributos por ser mais rico. (N. do T.) (3) Causa profunda, hedionda. (N. do T.) (4) Um artista contou-me naquele ano, 1812, que tendo visto, por acaso, um regimento de. jovens naturais do Devonshire (sejam voluntários ou milicianos), com

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novecentos homens, marchando por um lugar em que ele estava, não viu uma dúzia de homens que não teriam sido classificados, no linguajar comum, como “bem-apessoados”. (N. do A.) (5) Não me lembro, cronologicamente, da história dos lampiões a gás. Mas em Londres, muito depois que o Senhor Winson demonstrara o valor da iluminação a gás e sua aplicabilidade às ruas, vários distritos foram impedidos, por muitos anos, de recorrer ao novo sistema em conseqüência de velhos contratos com vendedores de óleo combustível, contratos esses que subsistiram por longos prazos. (N. do A.) (6) O terremoto não se satisfaz de uma vez só. (N. do T.) (7) Que o leitor, disposto a considerar como exagerado ou romântico, o puro diabolismo atribuído a Williams, se lembre de que, exceto pelo motivo de gozar a angústia do desespero agonizante, ele não tinha motivo, grande ou pequeno, para tentar contra a vida dessa pequena criança. Ela nada vira, nada ouvira — dormia, e sua porta estava fechada; de tal forma que, como testemunha contra ele, ele sabia que ela era tão inútil quanto qualquer dos três cadáveres. E, contudo, estava fazendo preparativos para seu assassina to, quando o alarma na rua o interrompeu. (N. do A.) (8) Shelley, Revolt of Islam. (N. do A.) Tradução livre: “O transporte de uma feroz e monstruosa felicidade/Espraiou-se pelas ruas cheias de gente, voando rápido/nas asas do medo: — De sua morna loucura/o faminto acordou, e morreu de alegria: os que morriam/entre os cadáveres que jaziam em dura agonia/ouviram as notícias propícias e, de esperança,/fecharam os seus olhos fracos: de casa a casa ecoando, gritando/com grande aclamação os vivos fizeram tremer o céu/e encheram a terra espantada com ecos. (N. do T.)