Auto Da Barca Do Inferno

56
Teatro BTNext Auto da Barca do Inferno

description

Auto Da Barca Do Inferno

Transcript of Auto Da Barca Do Inferno

Page 1: Auto Da Barca Do Inferno

Teatro BTNextAuto da Barca do Inferno

Auto da Barcado Inferno

Ediccedilatildeo btnextAntonio Lucio Vivaldi - Le Quattro Stagioni (Op 8 RV 269) - La Primavera

Johann Pachelbel - Kanon In D

Wolfgang Amadeus Mozart - Klarinettenkonzert (K 622) - Adagio

Four Seasons

Claacutessica

Night at the Symphony track 2

1994

Other

6496425

Canon in D

Claacutessica

100 Silver Screen Classics Vol 2 track 2

1995

Other

26476904

Claacutessica

Other

4209704

PrefaacutecioUm grupo de membros do foacuterum BTNext propocircs-se ao desafio de fazer uma adaptaccedilatildeo agrave

peccedila de Teatro Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Cada membro ficou responsaacutevel pela ldquoactuaccedilatildeordquo de uma personagem isto eacute responsaacutevel pela criaccedilatildeo do texto que essa person-agem deveria dizer na sua cena O texto que se segue nas proacuteximas paacuteginas eacute o resultado do esforccedilo conjunto destes ldquoactoresrdquo O resultado final pode natildeo ser do agrado de todos contudo devo referir que este projecto natildeo teve o intuito de criar uma adaptaccedilatildeo fiel agrave obra original nem tatildeo pouco criar uma obra literaacuteria ndash trata-se apenas do texto escrito por pessoas possivelmente natildeo letradas que soacute quiseram participar para se divertir numa actividade luacutedica diferente de outras mais comuns Este grupo espera sinceramente que apreciem a leitura do texto que se segue nas proacuteximas paacuteginasElenco (nicks dos membros do BTNext envolvidos na concepccedilatildeo do Teatro)Anoacutenimo 1 ndash Corregedor (cena 9)Anoacutenimo 2 ndash Briacutezida (cena 7)b1zbi ndash Fidalgo (cena 2) e Frade (cena 6)cokinhas ndash Diabo (todas as cenas)Jonnasemmons ndash Enforcado (cena 10)kelker ndash Parvo (cena 3) Frade (cena 6) Procurador (cena 9) e Cavaleiro (cena 11)ladydragon ndash Narrador (todas as cenas) e Sapateiro (cena 5)Monix ndash Companheiro (cena 1)S_C ndash Judeu (cena 8)Scarwolf ndash Anjo (todas as cenas)CoordenadorkelkerOrganizadoresladydragon e kelker

Auto da Barca do Inferno

BTNEXT 5

Cena 1

Auto da barca do Inferno 6

Tudo comeccedila na margem do rio do aleacutem onde estaacute o Diabo com o Companheiro Ao longe vem-se

aproximando um Fidalgo e o Diabo ao vecirc-lo comeccedila a dar o ar da sua graccedila

DIABO Escravo olha que temos companhia Trata de arrumar a casa que eacute hoje que vou

tirar a ferrugem ao espeto Vamos Vai buscar lenha para as fornalhas Aquece a panela Puxa

lustro ao chatildeo Vai buscar a baixela de prata que estaacute no bauacute AHAHAHA Sim sim Eacute hoje Eacute

hoje que acabo o jejum de 100 anos apenas interrompido por algumas talhadas a ti tiradas Toca

a mexer os presuntos que te restam

O Companheiro sente-se aliviado e contente olhando para as naacutedegas que lhe sobraram da uacuteltima

festa que o Diabo deu em honra de si proacuteprio

COMPANHEIRO Hi-hi-hi agora eacute que seraacute Natildeo via a hora de chegar este dia meu chefe

Tratarei de fazer tudo como pedistes A baixela de prata jaacute aqui canta pronta a ser utilizada e o

vago cheiro a carne jaacute aqui estaacute chegando Vamos laacute vamos laacute que jaacute falta pouco

DIABO Humm olha laacute hoje apetecia-me comer liacutengua guisada ao jantar Se natildeo acabas de

dar ao serrote e continuas com as tarefas talvez seja a tua a proacutexima a ir para a panela

O Companheiro estremeceu e num murmuacuterio amaldiccediloou o Diabo

BTNEXT 7

COMPANHEIRO Chiccedila estou tatildeo farto deste Diabo O meu rico cuzinho jaacute foi mas se ele

me tira a liacutengua haacute-de ser a uacuteltima coisa que me tira natildeo me chame eu Companheiro Para jaacute

deixa-me caacute trincar a liacutengua que sei que ele natildeo gosta de carne moiacuteda Hi-hi-hi

O Diabo compreendeu que o Companheiro devia de estar a magicar alguma vendo-o a rir-se e a

trincar a proacutepria liacutengua feito parvo pelo que de imediato lhe mostrou quem mandava

DIABO Chiccedila diabrete duma figa que soacute me daacute trabalho Se natildeo trabalhas ainda te prendo

na masmorra de castigo

COMPANHEIRO Prender-me na masmorra Natildeo faccedila isso Sr Diabo E depois quem eacute que

faria o trabalho pesado Natildeo me diga que quer receber o Fidalgo que se aproxima com um pano

de limpar o poacute na matildeo

DIABO Ora nem preciso do pano a primeira tarefa que darei ao Fidalgo seraacute ele limpaacute-lo

com a liacutengua AHAHAHA E tu jaacute falaste demais - se natildeo queres servir de remo na viagem que

se avizinha sai-me daqui

O Companheiro foge cabisbaixo e receoso enquanto as atenccedilotildees do Diabo se voltam para o Fi-

dalgo que vem a chegar

Auto da barca do Inferno 8

DIABO Oulaacute oh jeitoso natildeo queres entrar Natildeo eacute que isto seja a Arca de Noeacute mas pareces

um pavatildeo Anda daiacute

BTNEXT 9

Cena 2

Auto da barca do Inferno 10

Com grande pompa aproxima-se da barca do Diabo um grande senhor das melhores famiacutelias

vestido a preceito

FIDALGO Oh senhor para onde vai esta barca

DIABO Esta barca Vai para um siacutetio caloroso e cheio de festa Poderaacutes bronzear a tua bela

epiderme comer uns belos churrascos e fazer umas belas fogueiras

FIDALGO Parece-me bem mas e o mais importante haacute laacute senhoritas e margarittas

DIABO AHAHA Senhoritas O que natildeo falta eacute senhoritas mas estatildeo reservadas para mim

Margaritas Farei uma bebida com a tua gordura que seraacute muito melhor AHAHAHA O que te

espera eacute nada mais nada menos que uma vida miseraacutevel e infernal AHAHAHA

FIDALGO Vida miseraacutevel Mas vocecirc sabe quem eu sou Digo-lhe soacute que eu poderia com-

prar 10 iates muito melhores que esta espeacutecie de jangada que tem aqui onde vocecirc mesmo seria

meu criado AH AH AH

DIABO Eu Teu criado Vossa Alteza os seus desejos satildeo uma ordem AHAHAH Os teus

dias de boa vida acabaram Esse teu ar de Senhor do Mundo agrada-me mas natildeo penses que

vais andar por aqui a pavonear-te Muito pelo contraacuterio nas minhas matildeos vais desejar nunca

BTNEXT 11

ter morrido

FIDALGO Tenha tento na liacutengua sim Com quem pensa que estaacute a falar

DIABO Com um futuro escravo eacute claro Soacute tu eacute que ainda natildeo o compreendeste Talvez para

fazeres maior fortuna tambeacutem tenhas vendido parte do teu pequeno conjunto de neuroacutenios

AHAHAHA

O Fidalgo sentindo-se indignado e tendo visto ao longe uma outra barca dirige-se para laacute

Nesta aguarda-o um Anjo

FIDALGO Que barca eacute esta Exijo saber para onde vai essa barca e quem vocecirc eacute Antes que

me desrespeite fique sabendo que fui tatildeo rico em vida que poderei comprar a minha estadia no

paraiacuteso

ANJO De facto eacute mesmo esse o destino desta barca Mas soacute caacute entra quem merece e foi con-

vidado As entradas para o paraiacuteso natildeo se compram merecem-se

FIDALGO Tenho a certeza que natildeo diraacute isso depois de lhe oferecer uma barca a motor Daacute

muito menos trabalho do que essas madeiras aiacute para remar

ANJO O teu dinheiro ficou na terra dos vivos aqui eacutes soacute tu e a tua arrogacircncia Nesta barca

Auto da barca do Inferno 12

jamais entraraacutes pois natildeo eacutes digno dela

FIDALGO O meu dinheiro ficou na terra dos vivos Claro que ficou Laacute eu sabia que o meu

banco ia ficar sem dinheiro e como tal usei-o todo O meu gestor eacute que me deveria dizer para eu

natildeo gastar mais dinheiro Faccedila favor de me deixar ir agrave terra dos vivos buscar o meu dinheiro ao

meu outro banco

ANJO Como tu me fazes rir com a tua ignoracircncia Ainda natildeo viste que este barco natildeo foi

feito para ti Aqui natildeo haacute lugar para ti porque soacute caacute entram as pessoas de bom coraccedilatildeo aquelas

que tanto fizeram por um mundo melhor E tu Quem eacutes Que fizeste Eacutes um tirano arrogante

triste idiota e ainda por cima estuacutepido Passaste a vida inteira a desprezar os mais pequenos

nunca ajudaste quem mais necessitava e agora julgavas que te deixava entrar assim Natildeo Aqui

natildeo entras porque o teu lugar eacute no inferno um local apropriado para homens do teu caraacutecter

O Fidalgo achou que o Anjo nem merecia resposta a tais insultos pois natildeo iria discutir com al-

gueacutem que decerto natildeo compreendia a sua superioridade Voltou por isso agrave Barca do Diabo

DIABO AHAHA Olha quem voltou Sua Excelecircncia perdeu-se Ou digamos que achou o

Jardim do Eacuteden muito como dizer Murcho Claro que o nosso Santo amigo simpatizou con-

BTNEXT 13

sigo ao ponto de dispensar a sua bela companhia em prol aqui da minha pessoa AHAHA

FIDALGO Apenas vim para aqui porque aquela barca estaacute ainda mais suja e ainda eacute mais

pequena que a sua Olha laacute faz-me o favor de matar os meus empregados para virem aqui remar

esta carcaccedila flutuante

DIABO Com essa vontade toda de assassiacutenio um dia ainda me tiras o lugar Eacutes caacute dos meus

como presente aqui tens este par de remos AHAHA

FIDALGO Estaacute-me a ver a pocircr as matildeos nesses pedaccedilos de madeira cheios de lascas Ponha-

se vocecirc a remar que o tempo urge

DIABO Coitadinho Ainda me estragas as matildeos com esses remos AHAHA Deixa mas eacute

de ser arrogante e admite natildeo tens outra escolha senatildeo embarcar aqui Oh Natildeo fiques triste

porque te garanto que o inferno tem coisas maravilhosas - poderaacutes por exemplo apreciar a

minha agradaacutevel companhia AHAHAHA

O Fidalgo contrariado senta-se num canto da barca do Diabo

Auto da barca do Inferno 14

Cena 3

BTNEXT 15

Entretanto vem-se aproximando da Barca do Diabo o Onzeneiro uma pessoa de modos simples

mas que fez uma fortuna agrave custa dos outros A sua vestimenta eacute algo peculiar pois tenta-se passar

por algueacutem com classe sem de facto a ter De uma forma rude interpela o Diabo

ONZENEIRO Prsquora onde bai este barco

DIABO ldquoBairdquo para um siacutetio onde natildeo chove nem faz frio talvez vaacutes gostar da estadia Mas

diz-me porque demoraste tanto tempo a vir E Porque vens nessa figura

ONZENEIRO Talbez goste mas diz-me caacute mesmo prsquora onde bai isto que eu natildeo gosto caacute de

meias palabras Ainda agora morri natildeo quero que me enganem por ser nobiccedilo

DIABO Natildeo te preocupes que esta barca eacute do teu interesse pois vai para um siacutetio onde ateacute

os ldquonabosrdquo satildeo aceites AHAHA

ONZENEIRO Podes-me chamar o que quiseres pois na minha bida habituei-me a oubir

muita cousa Diz-me laacute de uma bez para onde bai isto

DIABO AHAHAH Tens uma maneira muito esquisita de falar Estou a ldquoberrdquo que ldquobourdquo ter

que ldquobizerrdquo Ahhh Esta natildeo era Entatildeo esta ldquovarca bai prordquo Inferno

ONZENEIRO lsquoTatildeo esta barca natildeo eacute prsquora mim

Auto da barca do Inferno 16

Aborrecido o Onzeneiro dirige-se para a barca do Anjo mas ainda ouve o Diabo dizer em alta

voz para se fazer ouvir

DIABO ldquoBai laacute bairdquo Mas olha que ainda ldquoboltasrdquo caacute AHAHA

Sem querer mais conversas com o Diabo o Onzeneiro vai sempre andando sem olhar para traacutes

ateacute que chega agrave barca do Anjo

ONZENEIRO Oh da barca Prsquora onde bai esta Narsquome diga que tambeacutem bai prsquora o inferno

ANJO Natildeo Esta barca tem como destino o paraiacuteso E tu Que fazes aqui

ONZENEIRO Paraiacuteso Isso eacute o ceacuteu nrsquoeacute lsquoTatildeo eacute mesmo prsquorarsquoqui que bou Arranje-me aiacute

uma escada prsquora eu subir prsquora o barco

ANJO Nem penses nisso Mais depressa te arranjava um bilhete para o inferno do que uma

escada para subires para aqui

ONZENEIRO Porquecirc Eu quero ir neste

ANJO Queres mas natildeo vais Neste barco soacute entra quem tiver bom coraccedilatildeo algo que tu jaacute

perdeste haacute muito tempo se eacute que alguma vez tiveste

ONZENEIRO E eu tenho a culpa de ter tido um ABC

BTNEXT 17

ANJO Um ABC Meu Deus Tens tanto de riqueza como tens de ignoracircncia Passaste a

vida inteira a explorar os mais pobres foste egoiacutesta e ganancioso nunca foste capaz de fazer um

uacutenico gesto de bondade e achavas que poderias entrar assim Nem penses Vai na outra barca

pois coaduna-se melhor contigo

ONZENEIRO Explorar os mais pobres lsquoTaacutes a falar dos ucranianos que contratei Eu lsquotaba-

lhes a fazer um fabor

O Anjo nem se digna a responder pelo que o Onzeneiro resolve retornar agrave Barca do Diabo

DIABO Olha olha mrsquoeste artista de volta Jaacute ldquobiesterdquo Tiveste saudades minhas Ou ali o

Santo fartou-se do teu ldquoveliacutessimordquo paleio

ONZENEIRO A culpa foi dos ucranianos

DIABO Bahh natildeo os culpes que eles tecircm bela carne de churrasco Sozinho com essa tua

ldquosabedoriardquo natildeo vais a lado nenhum mas aqui no meu barquinho vais longe para muito longe

AHAHAH

O Onzeneiro entra resignado na barca do Diabo e cruza-se com o Fidalgo

ONZENEIRO lsquoTatildeo mas o socircr tambeacutem lsquotaacute aqui Fico contente em poder lsquotar aqui com sua

Auto da barca do Inferno 18

excelentiacutessima

FIDALGO Mas quem eacute vocecirc Sabe com quem estaacute a falar Dei-lhe autorizaccedilatildeo para me diri-

gir a palavra Dei Afaste-se de mim que apesar de estarmos na mesma barca vocecirc continua

a ser um saloio ao peacute de mim

DIABO AHAHAHA Que ricos saloios que eu levo aqui para o Inferno AHAHAHAH

BTNEXT 19

Cena 4

Auto da barca do Inferno 20

Agrave Barca do Diabo chega desta vez o Parvo

PARVO Olha um barco agrave vela que giro XIQIQIQI Oh cornudo para onde vai este batel

DIABO Este batel Este batel vai para um local maravilhoso que vais adorar Entra que eu

mostro-te que local eacute esse

PARVO Jaacute sei Eacute a DisneyLand Sempre quis ir laacute ver o Pateta para lhe dizer que eacute burro

E fala com ratos e patos Caacute para mim haacute ali algum truque que a mim ningueacutem me engana

XIQIQIQI Jaacute a minha matildee dizia que eu era parvo mas natildeo era estuacutepido XIQIQIQI Espera laacute

mas tu eacutes quem

DIABO Entatildeo natildeo sabes quem eu sou Eu sou um tipo porreiro que te vai levar a um local

espectacular Vais ver que eacute muito melhor que a DisneyLand Entra que eu mostro-te que local

eacute esse

PARVO Porra jaacute pareces uma vespa sempre a zumbir o mesmo oh cornudo Estava a pen-

sar que eras o tio patinhas mascarado de carneiro XIQIQIQI Afinal que local eacute esse

DIABO Esse local eacute o inferno e garanto-te que eacute um siacutetio muito giro Queres entrar para ver

PARVO Inferno Isso eacute a terra dos cornudos como tu natildeo eacute A minha matildee disse-me que o

BTNEXT 21

meu pai eacute que era cornudo por causa do padeiro do carteiro e do Mas eu natildeo Sempre fiz como

a minha matildee me disse portanto natildeo sou cornudo XIQIQIQI Vou-me embora carneiro que eu

natildeo quero ir para o jardim zooloacutegico XIQIQIQI

DIABO AHAHA Bela famiacutelia a tua O pai eacute cornudo A matildee gosta muito de comer patildeo e

escrever cartas AHAHAHA O filho um parvo dos diabos Uma coisa te digo a tua companhia

ia ser deveras animada

O Parvo resolve dar meia volta e vai ter com o Anjo

PARVO Olha um paacutessaro Corvo natildeo eacute certamente porque eacute da cor do burro quando foge

XIQIQIQI Oh pardal a tua gaivota vai para onde

ANJO Este barco tem como destino o paraiacuteso E tu Quem eacutes e o que fazes aqui

PARVO O paacutessaro fala Eacute um papagaio XIQIQIQI Eu sou Joane mais conhecido por ldquopar-

vordquo desde que a minha matildee me chamou isso agrave frente dos miuacutedos da escola Mas parvos satildeo eles

porque ldquoquem diz eacute quem eacuterdquo XIQIQIQI

ANJO Estaacutes enganado Eu natildeo sou nenhum paacutessaro mas sim um anjo que tem como missatildeo

guiar todos aqueles que merecerem entrar no paraiacuteso Laacute soacute entram as pessoas que em vida lu-

Auto da barca do Inferno 22

taram por um mundo melhor aquelas que sempre acreditaram no amor na partilha na justiccedila

e na amizade Eacute no fundo uma recompensa que natildeo estaacute ao alcance de todos

PARVO Jaacute percebi porque que eacute que estaacutes sozinho soacute aceitas pessoas imaginaacuterias XIQIQ-

IQI Serei eu real

ANJO De facto poucos satildeo aqueles que conseguem entrar no paraiacuteso pois poucos satildeo aqueles

que ao longo da vida conseguem conservar a bondade e a pureza no coraccedilatildeo Tu mereces entrar

porque em todos os teus actos demonstraste sempre uma pureza encantadora e nunca maacute inten-

ccedilatildeo Se quiseres podes entrar

Dito isto o Parvo fica junto agrave Barca do Anjo sem contudo entrar

BTNEXT 23

Cena 5

Auto da barca do Inferno 24

A caminhar para a barca do Diabo aparece o Sapateiro com a sua mala onde tem todos os uten-

siacutelios necessaacuterios ao seu ofiacutecio

SAPATEIRO Olha olha o Carnaval chegou mais cedo OHOHOHOH

Daacute um soco ao de leve nas costas do Diabo mostrando um sorriso de gozo

DIABO Eh laacute Pai Natal eacutes tu Essas tralhas que trazes aiacute satildeo para mim Olha que natildeo sei

coser sapatos AHAHAH

SAPATEIRO Tralhas Estaacute aqui uma vida inteira de trabalho e dedicaccedilatildeo a ajudar os out-

ros

DIABO AHAHAH eacutes como eu Realmente daacute muito trabalho educar os escravos agrave reacutedea

curta para que nos obedeccedilam e nos beijem os peacutes mas satildeo todos uns mal-agradecidos Soacute ldquosa-

pateiricesrdquo eacute que sabem fazer

SAPATEIRO Deves-me estar a confundir com alguns dos teus servos soacute pode

Eu passei a minha vida inteira a ajudar os outros muitas vezes agrave chuva ou ao sol tudo trab-

alho honesto

DIABO Pois acredito que sim Eras o uacutenico sapateiro laacute da santa terrinha aliaacutes o uacutenico

BTNEXT 25

sapateiro de CLASSE Muita ldquoboca de sapordquo vi andar por aiacute graccedilas agrave tua ldquohonestidaderdquo

SAPATEIRO Deves querer festa comigo deves Com essa roupa nota-se logo quem eacutes e agrave

distacircncia Tu eacute que tens a fama de seres mau e tu eacute que te aproveitas dos outros natildeo queiras

colocar todos no mesmo saco e achar que satildeo como tu

DIABO Mau eu Nada disso sou simplesmente Um justiceiro Todos aqueles que levam

uma vida cheia de maldades tecircm lugar reservado no Inferno E isso deixa-me completamente

feliz Adoro ver o horror na cara das pobres alminhas quando as torturo AHAHAH

SAPATEIRO Fartei-me de ir agrave missa sou um bom filho de Deus portanto acho que vou ali

ao outro lado pedir agravequele senhor de branco que me leve

DIABO Ide ide mas natildeo teraacutes sorte O pessoal daquelas bandas gosta de andar descalccedilo

AHAHAH

SAPATEIRO Sei fazer umas sandaacutelias de apoio leve que os vai ajudar a proteger tal como

eu protejo os meus peacutes imaculados Veraacutes como serei bastante uacutetil por aquelas bandas Eu mereccedilo

o ceacuteu

Dito isto o sapateiro afasta-se e vai em direcccedilatildeo ao Anjo

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 2: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da Barcado Inferno

Ediccedilatildeo btnextAntonio Lucio Vivaldi - Le Quattro Stagioni (Op 8 RV 269) - La Primavera

Johann Pachelbel - Kanon In D

Wolfgang Amadeus Mozart - Klarinettenkonzert (K 622) - Adagio

Four Seasons

Claacutessica

Night at the Symphony track 2

1994

Other

6496425

Canon in D

Claacutessica

100 Silver Screen Classics Vol 2 track 2

1995

Other

26476904

Claacutessica

Other

4209704

PrefaacutecioUm grupo de membros do foacuterum BTNext propocircs-se ao desafio de fazer uma adaptaccedilatildeo agrave

peccedila de Teatro Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Cada membro ficou responsaacutevel pela ldquoactuaccedilatildeordquo de uma personagem isto eacute responsaacutevel pela criaccedilatildeo do texto que essa person-agem deveria dizer na sua cena O texto que se segue nas proacuteximas paacuteginas eacute o resultado do esforccedilo conjunto destes ldquoactoresrdquo O resultado final pode natildeo ser do agrado de todos contudo devo referir que este projecto natildeo teve o intuito de criar uma adaptaccedilatildeo fiel agrave obra original nem tatildeo pouco criar uma obra literaacuteria ndash trata-se apenas do texto escrito por pessoas possivelmente natildeo letradas que soacute quiseram participar para se divertir numa actividade luacutedica diferente de outras mais comuns Este grupo espera sinceramente que apreciem a leitura do texto que se segue nas proacuteximas paacuteginasElenco (nicks dos membros do BTNext envolvidos na concepccedilatildeo do Teatro)Anoacutenimo 1 ndash Corregedor (cena 9)Anoacutenimo 2 ndash Briacutezida (cena 7)b1zbi ndash Fidalgo (cena 2) e Frade (cena 6)cokinhas ndash Diabo (todas as cenas)Jonnasemmons ndash Enforcado (cena 10)kelker ndash Parvo (cena 3) Frade (cena 6) Procurador (cena 9) e Cavaleiro (cena 11)ladydragon ndash Narrador (todas as cenas) e Sapateiro (cena 5)Monix ndash Companheiro (cena 1)S_C ndash Judeu (cena 8)Scarwolf ndash Anjo (todas as cenas)CoordenadorkelkerOrganizadoresladydragon e kelker

Auto da Barca do Inferno

BTNEXT 5

Cena 1

Auto da barca do Inferno 6

Tudo comeccedila na margem do rio do aleacutem onde estaacute o Diabo com o Companheiro Ao longe vem-se

aproximando um Fidalgo e o Diabo ao vecirc-lo comeccedila a dar o ar da sua graccedila

DIABO Escravo olha que temos companhia Trata de arrumar a casa que eacute hoje que vou

tirar a ferrugem ao espeto Vamos Vai buscar lenha para as fornalhas Aquece a panela Puxa

lustro ao chatildeo Vai buscar a baixela de prata que estaacute no bauacute AHAHAHA Sim sim Eacute hoje Eacute

hoje que acabo o jejum de 100 anos apenas interrompido por algumas talhadas a ti tiradas Toca

a mexer os presuntos que te restam

O Companheiro sente-se aliviado e contente olhando para as naacutedegas que lhe sobraram da uacuteltima

festa que o Diabo deu em honra de si proacuteprio

COMPANHEIRO Hi-hi-hi agora eacute que seraacute Natildeo via a hora de chegar este dia meu chefe

Tratarei de fazer tudo como pedistes A baixela de prata jaacute aqui canta pronta a ser utilizada e o

vago cheiro a carne jaacute aqui estaacute chegando Vamos laacute vamos laacute que jaacute falta pouco

DIABO Humm olha laacute hoje apetecia-me comer liacutengua guisada ao jantar Se natildeo acabas de

dar ao serrote e continuas com as tarefas talvez seja a tua a proacutexima a ir para a panela

O Companheiro estremeceu e num murmuacuterio amaldiccediloou o Diabo

BTNEXT 7

COMPANHEIRO Chiccedila estou tatildeo farto deste Diabo O meu rico cuzinho jaacute foi mas se ele

me tira a liacutengua haacute-de ser a uacuteltima coisa que me tira natildeo me chame eu Companheiro Para jaacute

deixa-me caacute trincar a liacutengua que sei que ele natildeo gosta de carne moiacuteda Hi-hi-hi

O Diabo compreendeu que o Companheiro devia de estar a magicar alguma vendo-o a rir-se e a

trincar a proacutepria liacutengua feito parvo pelo que de imediato lhe mostrou quem mandava

DIABO Chiccedila diabrete duma figa que soacute me daacute trabalho Se natildeo trabalhas ainda te prendo

na masmorra de castigo

COMPANHEIRO Prender-me na masmorra Natildeo faccedila isso Sr Diabo E depois quem eacute que

faria o trabalho pesado Natildeo me diga que quer receber o Fidalgo que se aproxima com um pano

de limpar o poacute na matildeo

DIABO Ora nem preciso do pano a primeira tarefa que darei ao Fidalgo seraacute ele limpaacute-lo

com a liacutengua AHAHAHA E tu jaacute falaste demais - se natildeo queres servir de remo na viagem que

se avizinha sai-me daqui

O Companheiro foge cabisbaixo e receoso enquanto as atenccedilotildees do Diabo se voltam para o Fi-

dalgo que vem a chegar

Auto da barca do Inferno 8

DIABO Oulaacute oh jeitoso natildeo queres entrar Natildeo eacute que isto seja a Arca de Noeacute mas pareces

um pavatildeo Anda daiacute

BTNEXT 9

Cena 2

Auto da barca do Inferno 10

Com grande pompa aproxima-se da barca do Diabo um grande senhor das melhores famiacutelias

vestido a preceito

FIDALGO Oh senhor para onde vai esta barca

DIABO Esta barca Vai para um siacutetio caloroso e cheio de festa Poderaacutes bronzear a tua bela

epiderme comer uns belos churrascos e fazer umas belas fogueiras

FIDALGO Parece-me bem mas e o mais importante haacute laacute senhoritas e margarittas

DIABO AHAHA Senhoritas O que natildeo falta eacute senhoritas mas estatildeo reservadas para mim

Margaritas Farei uma bebida com a tua gordura que seraacute muito melhor AHAHAHA O que te

espera eacute nada mais nada menos que uma vida miseraacutevel e infernal AHAHAHA

FIDALGO Vida miseraacutevel Mas vocecirc sabe quem eu sou Digo-lhe soacute que eu poderia com-

prar 10 iates muito melhores que esta espeacutecie de jangada que tem aqui onde vocecirc mesmo seria

meu criado AH AH AH

DIABO Eu Teu criado Vossa Alteza os seus desejos satildeo uma ordem AHAHAH Os teus

dias de boa vida acabaram Esse teu ar de Senhor do Mundo agrada-me mas natildeo penses que

vais andar por aqui a pavonear-te Muito pelo contraacuterio nas minhas matildeos vais desejar nunca

BTNEXT 11

ter morrido

FIDALGO Tenha tento na liacutengua sim Com quem pensa que estaacute a falar

DIABO Com um futuro escravo eacute claro Soacute tu eacute que ainda natildeo o compreendeste Talvez para

fazeres maior fortuna tambeacutem tenhas vendido parte do teu pequeno conjunto de neuroacutenios

AHAHAHA

O Fidalgo sentindo-se indignado e tendo visto ao longe uma outra barca dirige-se para laacute

Nesta aguarda-o um Anjo

FIDALGO Que barca eacute esta Exijo saber para onde vai essa barca e quem vocecirc eacute Antes que

me desrespeite fique sabendo que fui tatildeo rico em vida que poderei comprar a minha estadia no

paraiacuteso

ANJO De facto eacute mesmo esse o destino desta barca Mas soacute caacute entra quem merece e foi con-

vidado As entradas para o paraiacuteso natildeo se compram merecem-se

FIDALGO Tenho a certeza que natildeo diraacute isso depois de lhe oferecer uma barca a motor Daacute

muito menos trabalho do que essas madeiras aiacute para remar

ANJO O teu dinheiro ficou na terra dos vivos aqui eacutes soacute tu e a tua arrogacircncia Nesta barca

Auto da barca do Inferno 12

jamais entraraacutes pois natildeo eacutes digno dela

FIDALGO O meu dinheiro ficou na terra dos vivos Claro que ficou Laacute eu sabia que o meu

banco ia ficar sem dinheiro e como tal usei-o todo O meu gestor eacute que me deveria dizer para eu

natildeo gastar mais dinheiro Faccedila favor de me deixar ir agrave terra dos vivos buscar o meu dinheiro ao

meu outro banco

ANJO Como tu me fazes rir com a tua ignoracircncia Ainda natildeo viste que este barco natildeo foi

feito para ti Aqui natildeo haacute lugar para ti porque soacute caacute entram as pessoas de bom coraccedilatildeo aquelas

que tanto fizeram por um mundo melhor E tu Quem eacutes Que fizeste Eacutes um tirano arrogante

triste idiota e ainda por cima estuacutepido Passaste a vida inteira a desprezar os mais pequenos

nunca ajudaste quem mais necessitava e agora julgavas que te deixava entrar assim Natildeo Aqui

natildeo entras porque o teu lugar eacute no inferno um local apropriado para homens do teu caraacutecter

O Fidalgo achou que o Anjo nem merecia resposta a tais insultos pois natildeo iria discutir com al-

gueacutem que decerto natildeo compreendia a sua superioridade Voltou por isso agrave Barca do Diabo

DIABO AHAHA Olha quem voltou Sua Excelecircncia perdeu-se Ou digamos que achou o

Jardim do Eacuteden muito como dizer Murcho Claro que o nosso Santo amigo simpatizou con-

BTNEXT 13

sigo ao ponto de dispensar a sua bela companhia em prol aqui da minha pessoa AHAHA

FIDALGO Apenas vim para aqui porque aquela barca estaacute ainda mais suja e ainda eacute mais

pequena que a sua Olha laacute faz-me o favor de matar os meus empregados para virem aqui remar

esta carcaccedila flutuante

DIABO Com essa vontade toda de assassiacutenio um dia ainda me tiras o lugar Eacutes caacute dos meus

como presente aqui tens este par de remos AHAHA

FIDALGO Estaacute-me a ver a pocircr as matildeos nesses pedaccedilos de madeira cheios de lascas Ponha-

se vocecirc a remar que o tempo urge

DIABO Coitadinho Ainda me estragas as matildeos com esses remos AHAHA Deixa mas eacute

de ser arrogante e admite natildeo tens outra escolha senatildeo embarcar aqui Oh Natildeo fiques triste

porque te garanto que o inferno tem coisas maravilhosas - poderaacutes por exemplo apreciar a

minha agradaacutevel companhia AHAHAHA

O Fidalgo contrariado senta-se num canto da barca do Diabo

Auto da barca do Inferno 14

Cena 3

BTNEXT 15

Entretanto vem-se aproximando da Barca do Diabo o Onzeneiro uma pessoa de modos simples

mas que fez uma fortuna agrave custa dos outros A sua vestimenta eacute algo peculiar pois tenta-se passar

por algueacutem com classe sem de facto a ter De uma forma rude interpela o Diabo

ONZENEIRO Prsquora onde bai este barco

DIABO ldquoBairdquo para um siacutetio onde natildeo chove nem faz frio talvez vaacutes gostar da estadia Mas

diz-me porque demoraste tanto tempo a vir E Porque vens nessa figura

ONZENEIRO Talbez goste mas diz-me caacute mesmo prsquora onde bai isto que eu natildeo gosto caacute de

meias palabras Ainda agora morri natildeo quero que me enganem por ser nobiccedilo

DIABO Natildeo te preocupes que esta barca eacute do teu interesse pois vai para um siacutetio onde ateacute

os ldquonabosrdquo satildeo aceites AHAHA

ONZENEIRO Podes-me chamar o que quiseres pois na minha bida habituei-me a oubir

muita cousa Diz-me laacute de uma bez para onde bai isto

DIABO AHAHAH Tens uma maneira muito esquisita de falar Estou a ldquoberrdquo que ldquobourdquo ter

que ldquobizerrdquo Ahhh Esta natildeo era Entatildeo esta ldquovarca bai prordquo Inferno

ONZENEIRO lsquoTatildeo esta barca natildeo eacute prsquora mim

Auto da barca do Inferno 16

Aborrecido o Onzeneiro dirige-se para a barca do Anjo mas ainda ouve o Diabo dizer em alta

voz para se fazer ouvir

DIABO ldquoBai laacute bairdquo Mas olha que ainda ldquoboltasrdquo caacute AHAHA

Sem querer mais conversas com o Diabo o Onzeneiro vai sempre andando sem olhar para traacutes

ateacute que chega agrave barca do Anjo

ONZENEIRO Oh da barca Prsquora onde bai esta Narsquome diga que tambeacutem bai prsquora o inferno

ANJO Natildeo Esta barca tem como destino o paraiacuteso E tu Que fazes aqui

ONZENEIRO Paraiacuteso Isso eacute o ceacuteu nrsquoeacute lsquoTatildeo eacute mesmo prsquorarsquoqui que bou Arranje-me aiacute

uma escada prsquora eu subir prsquora o barco

ANJO Nem penses nisso Mais depressa te arranjava um bilhete para o inferno do que uma

escada para subires para aqui

ONZENEIRO Porquecirc Eu quero ir neste

ANJO Queres mas natildeo vais Neste barco soacute entra quem tiver bom coraccedilatildeo algo que tu jaacute

perdeste haacute muito tempo se eacute que alguma vez tiveste

ONZENEIRO E eu tenho a culpa de ter tido um ABC

BTNEXT 17

ANJO Um ABC Meu Deus Tens tanto de riqueza como tens de ignoracircncia Passaste a

vida inteira a explorar os mais pobres foste egoiacutesta e ganancioso nunca foste capaz de fazer um

uacutenico gesto de bondade e achavas que poderias entrar assim Nem penses Vai na outra barca

pois coaduna-se melhor contigo

ONZENEIRO Explorar os mais pobres lsquoTaacutes a falar dos ucranianos que contratei Eu lsquotaba-

lhes a fazer um fabor

O Anjo nem se digna a responder pelo que o Onzeneiro resolve retornar agrave Barca do Diabo

DIABO Olha olha mrsquoeste artista de volta Jaacute ldquobiesterdquo Tiveste saudades minhas Ou ali o

Santo fartou-se do teu ldquoveliacutessimordquo paleio

ONZENEIRO A culpa foi dos ucranianos

DIABO Bahh natildeo os culpes que eles tecircm bela carne de churrasco Sozinho com essa tua

ldquosabedoriardquo natildeo vais a lado nenhum mas aqui no meu barquinho vais longe para muito longe

AHAHAH

O Onzeneiro entra resignado na barca do Diabo e cruza-se com o Fidalgo

ONZENEIRO lsquoTatildeo mas o socircr tambeacutem lsquotaacute aqui Fico contente em poder lsquotar aqui com sua

Auto da barca do Inferno 18

excelentiacutessima

FIDALGO Mas quem eacute vocecirc Sabe com quem estaacute a falar Dei-lhe autorizaccedilatildeo para me diri-

gir a palavra Dei Afaste-se de mim que apesar de estarmos na mesma barca vocecirc continua

a ser um saloio ao peacute de mim

DIABO AHAHAHA Que ricos saloios que eu levo aqui para o Inferno AHAHAHAH

BTNEXT 19

Cena 4

Auto da barca do Inferno 20

Agrave Barca do Diabo chega desta vez o Parvo

PARVO Olha um barco agrave vela que giro XIQIQIQI Oh cornudo para onde vai este batel

DIABO Este batel Este batel vai para um local maravilhoso que vais adorar Entra que eu

mostro-te que local eacute esse

PARVO Jaacute sei Eacute a DisneyLand Sempre quis ir laacute ver o Pateta para lhe dizer que eacute burro

E fala com ratos e patos Caacute para mim haacute ali algum truque que a mim ningueacutem me engana

XIQIQIQI Jaacute a minha matildee dizia que eu era parvo mas natildeo era estuacutepido XIQIQIQI Espera laacute

mas tu eacutes quem

DIABO Entatildeo natildeo sabes quem eu sou Eu sou um tipo porreiro que te vai levar a um local

espectacular Vais ver que eacute muito melhor que a DisneyLand Entra que eu mostro-te que local

eacute esse

PARVO Porra jaacute pareces uma vespa sempre a zumbir o mesmo oh cornudo Estava a pen-

sar que eras o tio patinhas mascarado de carneiro XIQIQIQI Afinal que local eacute esse

DIABO Esse local eacute o inferno e garanto-te que eacute um siacutetio muito giro Queres entrar para ver

PARVO Inferno Isso eacute a terra dos cornudos como tu natildeo eacute A minha matildee disse-me que o

BTNEXT 21

meu pai eacute que era cornudo por causa do padeiro do carteiro e do Mas eu natildeo Sempre fiz como

a minha matildee me disse portanto natildeo sou cornudo XIQIQIQI Vou-me embora carneiro que eu

natildeo quero ir para o jardim zooloacutegico XIQIQIQI

DIABO AHAHA Bela famiacutelia a tua O pai eacute cornudo A matildee gosta muito de comer patildeo e

escrever cartas AHAHAHA O filho um parvo dos diabos Uma coisa te digo a tua companhia

ia ser deveras animada

O Parvo resolve dar meia volta e vai ter com o Anjo

PARVO Olha um paacutessaro Corvo natildeo eacute certamente porque eacute da cor do burro quando foge

XIQIQIQI Oh pardal a tua gaivota vai para onde

ANJO Este barco tem como destino o paraiacuteso E tu Quem eacutes e o que fazes aqui

PARVO O paacutessaro fala Eacute um papagaio XIQIQIQI Eu sou Joane mais conhecido por ldquopar-

vordquo desde que a minha matildee me chamou isso agrave frente dos miuacutedos da escola Mas parvos satildeo eles

porque ldquoquem diz eacute quem eacuterdquo XIQIQIQI

ANJO Estaacutes enganado Eu natildeo sou nenhum paacutessaro mas sim um anjo que tem como missatildeo

guiar todos aqueles que merecerem entrar no paraiacuteso Laacute soacute entram as pessoas que em vida lu-

Auto da barca do Inferno 22

taram por um mundo melhor aquelas que sempre acreditaram no amor na partilha na justiccedila

e na amizade Eacute no fundo uma recompensa que natildeo estaacute ao alcance de todos

PARVO Jaacute percebi porque que eacute que estaacutes sozinho soacute aceitas pessoas imaginaacuterias XIQIQ-

IQI Serei eu real

ANJO De facto poucos satildeo aqueles que conseguem entrar no paraiacuteso pois poucos satildeo aqueles

que ao longo da vida conseguem conservar a bondade e a pureza no coraccedilatildeo Tu mereces entrar

porque em todos os teus actos demonstraste sempre uma pureza encantadora e nunca maacute inten-

ccedilatildeo Se quiseres podes entrar

Dito isto o Parvo fica junto agrave Barca do Anjo sem contudo entrar

BTNEXT 23

Cena 5

Auto da barca do Inferno 24

A caminhar para a barca do Diabo aparece o Sapateiro com a sua mala onde tem todos os uten-

siacutelios necessaacuterios ao seu ofiacutecio

SAPATEIRO Olha olha o Carnaval chegou mais cedo OHOHOHOH

Daacute um soco ao de leve nas costas do Diabo mostrando um sorriso de gozo

DIABO Eh laacute Pai Natal eacutes tu Essas tralhas que trazes aiacute satildeo para mim Olha que natildeo sei

coser sapatos AHAHAH

SAPATEIRO Tralhas Estaacute aqui uma vida inteira de trabalho e dedicaccedilatildeo a ajudar os out-

ros

DIABO AHAHAH eacutes como eu Realmente daacute muito trabalho educar os escravos agrave reacutedea

curta para que nos obedeccedilam e nos beijem os peacutes mas satildeo todos uns mal-agradecidos Soacute ldquosa-

pateiricesrdquo eacute que sabem fazer

SAPATEIRO Deves-me estar a confundir com alguns dos teus servos soacute pode

Eu passei a minha vida inteira a ajudar os outros muitas vezes agrave chuva ou ao sol tudo trab-

alho honesto

DIABO Pois acredito que sim Eras o uacutenico sapateiro laacute da santa terrinha aliaacutes o uacutenico

BTNEXT 25

sapateiro de CLASSE Muita ldquoboca de sapordquo vi andar por aiacute graccedilas agrave tua ldquohonestidaderdquo

SAPATEIRO Deves querer festa comigo deves Com essa roupa nota-se logo quem eacutes e agrave

distacircncia Tu eacute que tens a fama de seres mau e tu eacute que te aproveitas dos outros natildeo queiras

colocar todos no mesmo saco e achar que satildeo como tu

DIABO Mau eu Nada disso sou simplesmente Um justiceiro Todos aqueles que levam

uma vida cheia de maldades tecircm lugar reservado no Inferno E isso deixa-me completamente

feliz Adoro ver o horror na cara das pobres alminhas quando as torturo AHAHAH

SAPATEIRO Fartei-me de ir agrave missa sou um bom filho de Deus portanto acho que vou ali

ao outro lado pedir agravequele senhor de branco que me leve

DIABO Ide ide mas natildeo teraacutes sorte O pessoal daquelas bandas gosta de andar descalccedilo

AHAHAH

SAPATEIRO Sei fazer umas sandaacutelias de apoio leve que os vai ajudar a proteger tal como

eu protejo os meus peacutes imaculados Veraacutes como serei bastante uacutetil por aquelas bandas Eu mereccedilo

o ceacuteu

Dito isto o sapateiro afasta-se e vai em direcccedilatildeo ao Anjo

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 3: Auto Da Barca Do Inferno

PrefaacutecioUm grupo de membros do foacuterum BTNext propocircs-se ao desafio de fazer uma adaptaccedilatildeo agrave

peccedila de Teatro Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Cada membro ficou responsaacutevel pela ldquoactuaccedilatildeordquo de uma personagem isto eacute responsaacutevel pela criaccedilatildeo do texto que essa person-agem deveria dizer na sua cena O texto que se segue nas proacuteximas paacuteginas eacute o resultado do esforccedilo conjunto destes ldquoactoresrdquo O resultado final pode natildeo ser do agrado de todos contudo devo referir que este projecto natildeo teve o intuito de criar uma adaptaccedilatildeo fiel agrave obra original nem tatildeo pouco criar uma obra literaacuteria ndash trata-se apenas do texto escrito por pessoas possivelmente natildeo letradas que soacute quiseram participar para se divertir numa actividade luacutedica diferente de outras mais comuns Este grupo espera sinceramente que apreciem a leitura do texto que se segue nas proacuteximas paacuteginasElenco (nicks dos membros do BTNext envolvidos na concepccedilatildeo do Teatro)Anoacutenimo 1 ndash Corregedor (cena 9)Anoacutenimo 2 ndash Briacutezida (cena 7)b1zbi ndash Fidalgo (cena 2) e Frade (cena 6)cokinhas ndash Diabo (todas as cenas)Jonnasemmons ndash Enforcado (cena 10)kelker ndash Parvo (cena 3) Frade (cena 6) Procurador (cena 9) e Cavaleiro (cena 11)ladydragon ndash Narrador (todas as cenas) e Sapateiro (cena 5)Monix ndash Companheiro (cena 1)S_C ndash Judeu (cena 8)Scarwolf ndash Anjo (todas as cenas)CoordenadorkelkerOrganizadoresladydragon e kelker

Auto da Barca do Inferno

BTNEXT 5

Cena 1

Auto da barca do Inferno 6

Tudo comeccedila na margem do rio do aleacutem onde estaacute o Diabo com o Companheiro Ao longe vem-se

aproximando um Fidalgo e o Diabo ao vecirc-lo comeccedila a dar o ar da sua graccedila

DIABO Escravo olha que temos companhia Trata de arrumar a casa que eacute hoje que vou

tirar a ferrugem ao espeto Vamos Vai buscar lenha para as fornalhas Aquece a panela Puxa

lustro ao chatildeo Vai buscar a baixela de prata que estaacute no bauacute AHAHAHA Sim sim Eacute hoje Eacute

hoje que acabo o jejum de 100 anos apenas interrompido por algumas talhadas a ti tiradas Toca

a mexer os presuntos que te restam

O Companheiro sente-se aliviado e contente olhando para as naacutedegas que lhe sobraram da uacuteltima

festa que o Diabo deu em honra de si proacuteprio

COMPANHEIRO Hi-hi-hi agora eacute que seraacute Natildeo via a hora de chegar este dia meu chefe

Tratarei de fazer tudo como pedistes A baixela de prata jaacute aqui canta pronta a ser utilizada e o

vago cheiro a carne jaacute aqui estaacute chegando Vamos laacute vamos laacute que jaacute falta pouco

DIABO Humm olha laacute hoje apetecia-me comer liacutengua guisada ao jantar Se natildeo acabas de

dar ao serrote e continuas com as tarefas talvez seja a tua a proacutexima a ir para a panela

O Companheiro estremeceu e num murmuacuterio amaldiccediloou o Diabo

BTNEXT 7

COMPANHEIRO Chiccedila estou tatildeo farto deste Diabo O meu rico cuzinho jaacute foi mas se ele

me tira a liacutengua haacute-de ser a uacuteltima coisa que me tira natildeo me chame eu Companheiro Para jaacute

deixa-me caacute trincar a liacutengua que sei que ele natildeo gosta de carne moiacuteda Hi-hi-hi

O Diabo compreendeu que o Companheiro devia de estar a magicar alguma vendo-o a rir-se e a

trincar a proacutepria liacutengua feito parvo pelo que de imediato lhe mostrou quem mandava

DIABO Chiccedila diabrete duma figa que soacute me daacute trabalho Se natildeo trabalhas ainda te prendo

na masmorra de castigo

COMPANHEIRO Prender-me na masmorra Natildeo faccedila isso Sr Diabo E depois quem eacute que

faria o trabalho pesado Natildeo me diga que quer receber o Fidalgo que se aproxima com um pano

de limpar o poacute na matildeo

DIABO Ora nem preciso do pano a primeira tarefa que darei ao Fidalgo seraacute ele limpaacute-lo

com a liacutengua AHAHAHA E tu jaacute falaste demais - se natildeo queres servir de remo na viagem que

se avizinha sai-me daqui

O Companheiro foge cabisbaixo e receoso enquanto as atenccedilotildees do Diabo se voltam para o Fi-

dalgo que vem a chegar

Auto da barca do Inferno 8

DIABO Oulaacute oh jeitoso natildeo queres entrar Natildeo eacute que isto seja a Arca de Noeacute mas pareces

um pavatildeo Anda daiacute

BTNEXT 9

Cena 2

Auto da barca do Inferno 10

Com grande pompa aproxima-se da barca do Diabo um grande senhor das melhores famiacutelias

vestido a preceito

FIDALGO Oh senhor para onde vai esta barca

DIABO Esta barca Vai para um siacutetio caloroso e cheio de festa Poderaacutes bronzear a tua bela

epiderme comer uns belos churrascos e fazer umas belas fogueiras

FIDALGO Parece-me bem mas e o mais importante haacute laacute senhoritas e margarittas

DIABO AHAHA Senhoritas O que natildeo falta eacute senhoritas mas estatildeo reservadas para mim

Margaritas Farei uma bebida com a tua gordura que seraacute muito melhor AHAHAHA O que te

espera eacute nada mais nada menos que uma vida miseraacutevel e infernal AHAHAHA

FIDALGO Vida miseraacutevel Mas vocecirc sabe quem eu sou Digo-lhe soacute que eu poderia com-

prar 10 iates muito melhores que esta espeacutecie de jangada que tem aqui onde vocecirc mesmo seria

meu criado AH AH AH

DIABO Eu Teu criado Vossa Alteza os seus desejos satildeo uma ordem AHAHAH Os teus

dias de boa vida acabaram Esse teu ar de Senhor do Mundo agrada-me mas natildeo penses que

vais andar por aqui a pavonear-te Muito pelo contraacuterio nas minhas matildeos vais desejar nunca

BTNEXT 11

ter morrido

FIDALGO Tenha tento na liacutengua sim Com quem pensa que estaacute a falar

DIABO Com um futuro escravo eacute claro Soacute tu eacute que ainda natildeo o compreendeste Talvez para

fazeres maior fortuna tambeacutem tenhas vendido parte do teu pequeno conjunto de neuroacutenios

AHAHAHA

O Fidalgo sentindo-se indignado e tendo visto ao longe uma outra barca dirige-se para laacute

Nesta aguarda-o um Anjo

FIDALGO Que barca eacute esta Exijo saber para onde vai essa barca e quem vocecirc eacute Antes que

me desrespeite fique sabendo que fui tatildeo rico em vida que poderei comprar a minha estadia no

paraiacuteso

ANJO De facto eacute mesmo esse o destino desta barca Mas soacute caacute entra quem merece e foi con-

vidado As entradas para o paraiacuteso natildeo se compram merecem-se

FIDALGO Tenho a certeza que natildeo diraacute isso depois de lhe oferecer uma barca a motor Daacute

muito menos trabalho do que essas madeiras aiacute para remar

ANJO O teu dinheiro ficou na terra dos vivos aqui eacutes soacute tu e a tua arrogacircncia Nesta barca

Auto da barca do Inferno 12

jamais entraraacutes pois natildeo eacutes digno dela

FIDALGO O meu dinheiro ficou na terra dos vivos Claro que ficou Laacute eu sabia que o meu

banco ia ficar sem dinheiro e como tal usei-o todo O meu gestor eacute que me deveria dizer para eu

natildeo gastar mais dinheiro Faccedila favor de me deixar ir agrave terra dos vivos buscar o meu dinheiro ao

meu outro banco

ANJO Como tu me fazes rir com a tua ignoracircncia Ainda natildeo viste que este barco natildeo foi

feito para ti Aqui natildeo haacute lugar para ti porque soacute caacute entram as pessoas de bom coraccedilatildeo aquelas

que tanto fizeram por um mundo melhor E tu Quem eacutes Que fizeste Eacutes um tirano arrogante

triste idiota e ainda por cima estuacutepido Passaste a vida inteira a desprezar os mais pequenos

nunca ajudaste quem mais necessitava e agora julgavas que te deixava entrar assim Natildeo Aqui

natildeo entras porque o teu lugar eacute no inferno um local apropriado para homens do teu caraacutecter

O Fidalgo achou que o Anjo nem merecia resposta a tais insultos pois natildeo iria discutir com al-

gueacutem que decerto natildeo compreendia a sua superioridade Voltou por isso agrave Barca do Diabo

DIABO AHAHA Olha quem voltou Sua Excelecircncia perdeu-se Ou digamos que achou o

Jardim do Eacuteden muito como dizer Murcho Claro que o nosso Santo amigo simpatizou con-

BTNEXT 13

sigo ao ponto de dispensar a sua bela companhia em prol aqui da minha pessoa AHAHA

FIDALGO Apenas vim para aqui porque aquela barca estaacute ainda mais suja e ainda eacute mais

pequena que a sua Olha laacute faz-me o favor de matar os meus empregados para virem aqui remar

esta carcaccedila flutuante

DIABO Com essa vontade toda de assassiacutenio um dia ainda me tiras o lugar Eacutes caacute dos meus

como presente aqui tens este par de remos AHAHA

FIDALGO Estaacute-me a ver a pocircr as matildeos nesses pedaccedilos de madeira cheios de lascas Ponha-

se vocecirc a remar que o tempo urge

DIABO Coitadinho Ainda me estragas as matildeos com esses remos AHAHA Deixa mas eacute

de ser arrogante e admite natildeo tens outra escolha senatildeo embarcar aqui Oh Natildeo fiques triste

porque te garanto que o inferno tem coisas maravilhosas - poderaacutes por exemplo apreciar a

minha agradaacutevel companhia AHAHAHA

O Fidalgo contrariado senta-se num canto da barca do Diabo

Auto da barca do Inferno 14

Cena 3

BTNEXT 15

Entretanto vem-se aproximando da Barca do Diabo o Onzeneiro uma pessoa de modos simples

mas que fez uma fortuna agrave custa dos outros A sua vestimenta eacute algo peculiar pois tenta-se passar

por algueacutem com classe sem de facto a ter De uma forma rude interpela o Diabo

ONZENEIRO Prsquora onde bai este barco

DIABO ldquoBairdquo para um siacutetio onde natildeo chove nem faz frio talvez vaacutes gostar da estadia Mas

diz-me porque demoraste tanto tempo a vir E Porque vens nessa figura

ONZENEIRO Talbez goste mas diz-me caacute mesmo prsquora onde bai isto que eu natildeo gosto caacute de

meias palabras Ainda agora morri natildeo quero que me enganem por ser nobiccedilo

DIABO Natildeo te preocupes que esta barca eacute do teu interesse pois vai para um siacutetio onde ateacute

os ldquonabosrdquo satildeo aceites AHAHA

ONZENEIRO Podes-me chamar o que quiseres pois na minha bida habituei-me a oubir

muita cousa Diz-me laacute de uma bez para onde bai isto

DIABO AHAHAH Tens uma maneira muito esquisita de falar Estou a ldquoberrdquo que ldquobourdquo ter

que ldquobizerrdquo Ahhh Esta natildeo era Entatildeo esta ldquovarca bai prordquo Inferno

ONZENEIRO lsquoTatildeo esta barca natildeo eacute prsquora mim

Auto da barca do Inferno 16

Aborrecido o Onzeneiro dirige-se para a barca do Anjo mas ainda ouve o Diabo dizer em alta

voz para se fazer ouvir

DIABO ldquoBai laacute bairdquo Mas olha que ainda ldquoboltasrdquo caacute AHAHA

Sem querer mais conversas com o Diabo o Onzeneiro vai sempre andando sem olhar para traacutes

ateacute que chega agrave barca do Anjo

ONZENEIRO Oh da barca Prsquora onde bai esta Narsquome diga que tambeacutem bai prsquora o inferno

ANJO Natildeo Esta barca tem como destino o paraiacuteso E tu Que fazes aqui

ONZENEIRO Paraiacuteso Isso eacute o ceacuteu nrsquoeacute lsquoTatildeo eacute mesmo prsquorarsquoqui que bou Arranje-me aiacute

uma escada prsquora eu subir prsquora o barco

ANJO Nem penses nisso Mais depressa te arranjava um bilhete para o inferno do que uma

escada para subires para aqui

ONZENEIRO Porquecirc Eu quero ir neste

ANJO Queres mas natildeo vais Neste barco soacute entra quem tiver bom coraccedilatildeo algo que tu jaacute

perdeste haacute muito tempo se eacute que alguma vez tiveste

ONZENEIRO E eu tenho a culpa de ter tido um ABC

BTNEXT 17

ANJO Um ABC Meu Deus Tens tanto de riqueza como tens de ignoracircncia Passaste a

vida inteira a explorar os mais pobres foste egoiacutesta e ganancioso nunca foste capaz de fazer um

uacutenico gesto de bondade e achavas que poderias entrar assim Nem penses Vai na outra barca

pois coaduna-se melhor contigo

ONZENEIRO Explorar os mais pobres lsquoTaacutes a falar dos ucranianos que contratei Eu lsquotaba-

lhes a fazer um fabor

O Anjo nem se digna a responder pelo que o Onzeneiro resolve retornar agrave Barca do Diabo

DIABO Olha olha mrsquoeste artista de volta Jaacute ldquobiesterdquo Tiveste saudades minhas Ou ali o

Santo fartou-se do teu ldquoveliacutessimordquo paleio

ONZENEIRO A culpa foi dos ucranianos

DIABO Bahh natildeo os culpes que eles tecircm bela carne de churrasco Sozinho com essa tua

ldquosabedoriardquo natildeo vais a lado nenhum mas aqui no meu barquinho vais longe para muito longe

AHAHAH

O Onzeneiro entra resignado na barca do Diabo e cruza-se com o Fidalgo

ONZENEIRO lsquoTatildeo mas o socircr tambeacutem lsquotaacute aqui Fico contente em poder lsquotar aqui com sua

Auto da barca do Inferno 18

excelentiacutessima

FIDALGO Mas quem eacute vocecirc Sabe com quem estaacute a falar Dei-lhe autorizaccedilatildeo para me diri-

gir a palavra Dei Afaste-se de mim que apesar de estarmos na mesma barca vocecirc continua

a ser um saloio ao peacute de mim

DIABO AHAHAHA Que ricos saloios que eu levo aqui para o Inferno AHAHAHAH

BTNEXT 19

Cena 4

Auto da barca do Inferno 20

Agrave Barca do Diabo chega desta vez o Parvo

PARVO Olha um barco agrave vela que giro XIQIQIQI Oh cornudo para onde vai este batel

DIABO Este batel Este batel vai para um local maravilhoso que vais adorar Entra que eu

mostro-te que local eacute esse

PARVO Jaacute sei Eacute a DisneyLand Sempre quis ir laacute ver o Pateta para lhe dizer que eacute burro

E fala com ratos e patos Caacute para mim haacute ali algum truque que a mim ningueacutem me engana

XIQIQIQI Jaacute a minha matildee dizia que eu era parvo mas natildeo era estuacutepido XIQIQIQI Espera laacute

mas tu eacutes quem

DIABO Entatildeo natildeo sabes quem eu sou Eu sou um tipo porreiro que te vai levar a um local

espectacular Vais ver que eacute muito melhor que a DisneyLand Entra que eu mostro-te que local

eacute esse

PARVO Porra jaacute pareces uma vespa sempre a zumbir o mesmo oh cornudo Estava a pen-

sar que eras o tio patinhas mascarado de carneiro XIQIQIQI Afinal que local eacute esse

DIABO Esse local eacute o inferno e garanto-te que eacute um siacutetio muito giro Queres entrar para ver

PARVO Inferno Isso eacute a terra dos cornudos como tu natildeo eacute A minha matildee disse-me que o

BTNEXT 21

meu pai eacute que era cornudo por causa do padeiro do carteiro e do Mas eu natildeo Sempre fiz como

a minha matildee me disse portanto natildeo sou cornudo XIQIQIQI Vou-me embora carneiro que eu

natildeo quero ir para o jardim zooloacutegico XIQIQIQI

DIABO AHAHA Bela famiacutelia a tua O pai eacute cornudo A matildee gosta muito de comer patildeo e

escrever cartas AHAHAHA O filho um parvo dos diabos Uma coisa te digo a tua companhia

ia ser deveras animada

O Parvo resolve dar meia volta e vai ter com o Anjo

PARVO Olha um paacutessaro Corvo natildeo eacute certamente porque eacute da cor do burro quando foge

XIQIQIQI Oh pardal a tua gaivota vai para onde

ANJO Este barco tem como destino o paraiacuteso E tu Quem eacutes e o que fazes aqui

PARVO O paacutessaro fala Eacute um papagaio XIQIQIQI Eu sou Joane mais conhecido por ldquopar-

vordquo desde que a minha matildee me chamou isso agrave frente dos miuacutedos da escola Mas parvos satildeo eles

porque ldquoquem diz eacute quem eacuterdquo XIQIQIQI

ANJO Estaacutes enganado Eu natildeo sou nenhum paacutessaro mas sim um anjo que tem como missatildeo

guiar todos aqueles que merecerem entrar no paraiacuteso Laacute soacute entram as pessoas que em vida lu-

Auto da barca do Inferno 22

taram por um mundo melhor aquelas que sempre acreditaram no amor na partilha na justiccedila

e na amizade Eacute no fundo uma recompensa que natildeo estaacute ao alcance de todos

PARVO Jaacute percebi porque que eacute que estaacutes sozinho soacute aceitas pessoas imaginaacuterias XIQIQ-

IQI Serei eu real

ANJO De facto poucos satildeo aqueles que conseguem entrar no paraiacuteso pois poucos satildeo aqueles

que ao longo da vida conseguem conservar a bondade e a pureza no coraccedilatildeo Tu mereces entrar

porque em todos os teus actos demonstraste sempre uma pureza encantadora e nunca maacute inten-

ccedilatildeo Se quiseres podes entrar

Dito isto o Parvo fica junto agrave Barca do Anjo sem contudo entrar

BTNEXT 23

Cena 5

Auto da barca do Inferno 24

A caminhar para a barca do Diabo aparece o Sapateiro com a sua mala onde tem todos os uten-

siacutelios necessaacuterios ao seu ofiacutecio

SAPATEIRO Olha olha o Carnaval chegou mais cedo OHOHOHOH

Daacute um soco ao de leve nas costas do Diabo mostrando um sorriso de gozo

DIABO Eh laacute Pai Natal eacutes tu Essas tralhas que trazes aiacute satildeo para mim Olha que natildeo sei

coser sapatos AHAHAH

SAPATEIRO Tralhas Estaacute aqui uma vida inteira de trabalho e dedicaccedilatildeo a ajudar os out-

ros

DIABO AHAHAH eacutes como eu Realmente daacute muito trabalho educar os escravos agrave reacutedea

curta para que nos obedeccedilam e nos beijem os peacutes mas satildeo todos uns mal-agradecidos Soacute ldquosa-

pateiricesrdquo eacute que sabem fazer

SAPATEIRO Deves-me estar a confundir com alguns dos teus servos soacute pode

Eu passei a minha vida inteira a ajudar os outros muitas vezes agrave chuva ou ao sol tudo trab-

alho honesto

DIABO Pois acredito que sim Eras o uacutenico sapateiro laacute da santa terrinha aliaacutes o uacutenico

BTNEXT 25

sapateiro de CLASSE Muita ldquoboca de sapordquo vi andar por aiacute graccedilas agrave tua ldquohonestidaderdquo

SAPATEIRO Deves querer festa comigo deves Com essa roupa nota-se logo quem eacutes e agrave

distacircncia Tu eacute que tens a fama de seres mau e tu eacute que te aproveitas dos outros natildeo queiras

colocar todos no mesmo saco e achar que satildeo como tu

DIABO Mau eu Nada disso sou simplesmente Um justiceiro Todos aqueles que levam

uma vida cheia de maldades tecircm lugar reservado no Inferno E isso deixa-me completamente

feliz Adoro ver o horror na cara das pobres alminhas quando as torturo AHAHAH

SAPATEIRO Fartei-me de ir agrave missa sou um bom filho de Deus portanto acho que vou ali

ao outro lado pedir agravequele senhor de branco que me leve

DIABO Ide ide mas natildeo teraacutes sorte O pessoal daquelas bandas gosta de andar descalccedilo

AHAHAH

SAPATEIRO Sei fazer umas sandaacutelias de apoio leve que os vai ajudar a proteger tal como

eu protejo os meus peacutes imaculados Veraacutes como serei bastante uacutetil por aquelas bandas Eu mereccedilo

o ceacuteu

Dito isto o sapateiro afasta-se e vai em direcccedilatildeo ao Anjo

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 4: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da Barca do Inferno

BTNEXT 5

Cena 1

Auto da barca do Inferno 6

Tudo comeccedila na margem do rio do aleacutem onde estaacute o Diabo com o Companheiro Ao longe vem-se

aproximando um Fidalgo e o Diabo ao vecirc-lo comeccedila a dar o ar da sua graccedila

DIABO Escravo olha que temos companhia Trata de arrumar a casa que eacute hoje que vou

tirar a ferrugem ao espeto Vamos Vai buscar lenha para as fornalhas Aquece a panela Puxa

lustro ao chatildeo Vai buscar a baixela de prata que estaacute no bauacute AHAHAHA Sim sim Eacute hoje Eacute

hoje que acabo o jejum de 100 anos apenas interrompido por algumas talhadas a ti tiradas Toca

a mexer os presuntos que te restam

O Companheiro sente-se aliviado e contente olhando para as naacutedegas que lhe sobraram da uacuteltima

festa que o Diabo deu em honra de si proacuteprio

COMPANHEIRO Hi-hi-hi agora eacute que seraacute Natildeo via a hora de chegar este dia meu chefe

Tratarei de fazer tudo como pedistes A baixela de prata jaacute aqui canta pronta a ser utilizada e o

vago cheiro a carne jaacute aqui estaacute chegando Vamos laacute vamos laacute que jaacute falta pouco

DIABO Humm olha laacute hoje apetecia-me comer liacutengua guisada ao jantar Se natildeo acabas de

dar ao serrote e continuas com as tarefas talvez seja a tua a proacutexima a ir para a panela

O Companheiro estremeceu e num murmuacuterio amaldiccediloou o Diabo

BTNEXT 7

COMPANHEIRO Chiccedila estou tatildeo farto deste Diabo O meu rico cuzinho jaacute foi mas se ele

me tira a liacutengua haacute-de ser a uacuteltima coisa que me tira natildeo me chame eu Companheiro Para jaacute

deixa-me caacute trincar a liacutengua que sei que ele natildeo gosta de carne moiacuteda Hi-hi-hi

O Diabo compreendeu que o Companheiro devia de estar a magicar alguma vendo-o a rir-se e a

trincar a proacutepria liacutengua feito parvo pelo que de imediato lhe mostrou quem mandava

DIABO Chiccedila diabrete duma figa que soacute me daacute trabalho Se natildeo trabalhas ainda te prendo

na masmorra de castigo

COMPANHEIRO Prender-me na masmorra Natildeo faccedila isso Sr Diabo E depois quem eacute que

faria o trabalho pesado Natildeo me diga que quer receber o Fidalgo que se aproxima com um pano

de limpar o poacute na matildeo

DIABO Ora nem preciso do pano a primeira tarefa que darei ao Fidalgo seraacute ele limpaacute-lo

com a liacutengua AHAHAHA E tu jaacute falaste demais - se natildeo queres servir de remo na viagem que

se avizinha sai-me daqui

O Companheiro foge cabisbaixo e receoso enquanto as atenccedilotildees do Diabo se voltam para o Fi-

dalgo que vem a chegar

Auto da barca do Inferno 8

DIABO Oulaacute oh jeitoso natildeo queres entrar Natildeo eacute que isto seja a Arca de Noeacute mas pareces

um pavatildeo Anda daiacute

BTNEXT 9

Cena 2

Auto da barca do Inferno 10

Com grande pompa aproxima-se da barca do Diabo um grande senhor das melhores famiacutelias

vestido a preceito

FIDALGO Oh senhor para onde vai esta barca

DIABO Esta barca Vai para um siacutetio caloroso e cheio de festa Poderaacutes bronzear a tua bela

epiderme comer uns belos churrascos e fazer umas belas fogueiras

FIDALGO Parece-me bem mas e o mais importante haacute laacute senhoritas e margarittas

DIABO AHAHA Senhoritas O que natildeo falta eacute senhoritas mas estatildeo reservadas para mim

Margaritas Farei uma bebida com a tua gordura que seraacute muito melhor AHAHAHA O que te

espera eacute nada mais nada menos que uma vida miseraacutevel e infernal AHAHAHA

FIDALGO Vida miseraacutevel Mas vocecirc sabe quem eu sou Digo-lhe soacute que eu poderia com-

prar 10 iates muito melhores que esta espeacutecie de jangada que tem aqui onde vocecirc mesmo seria

meu criado AH AH AH

DIABO Eu Teu criado Vossa Alteza os seus desejos satildeo uma ordem AHAHAH Os teus

dias de boa vida acabaram Esse teu ar de Senhor do Mundo agrada-me mas natildeo penses que

vais andar por aqui a pavonear-te Muito pelo contraacuterio nas minhas matildeos vais desejar nunca

BTNEXT 11

ter morrido

FIDALGO Tenha tento na liacutengua sim Com quem pensa que estaacute a falar

DIABO Com um futuro escravo eacute claro Soacute tu eacute que ainda natildeo o compreendeste Talvez para

fazeres maior fortuna tambeacutem tenhas vendido parte do teu pequeno conjunto de neuroacutenios

AHAHAHA

O Fidalgo sentindo-se indignado e tendo visto ao longe uma outra barca dirige-se para laacute

Nesta aguarda-o um Anjo

FIDALGO Que barca eacute esta Exijo saber para onde vai essa barca e quem vocecirc eacute Antes que

me desrespeite fique sabendo que fui tatildeo rico em vida que poderei comprar a minha estadia no

paraiacuteso

ANJO De facto eacute mesmo esse o destino desta barca Mas soacute caacute entra quem merece e foi con-

vidado As entradas para o paraiacuteso natildeo se compram merecem-se

FIDALGO Tenho a certeza que natildeo diraacute isso depois de lhe oferecer uma barca a motor Daacute

muito menos trabalho do que essas madeiras aiacute para remar

ANJO O teu dinheiro ficou na terra dos vivos aqui eacutes soacute tu e a tua arrogacircncia Nesta barca

Auto da barca do Inferno 12

jamais entraraacutes pois natildeo eacutes digno dela

FIDALGO O meu dinheiro ficou na terra dos vivos Claro que ficou Laacute eu sabia que o meu

banco ia ficar sem dinheiro e como tal usei-o todo O meu gestor eacute que me deveria dizer para eu

natildeo gastar mais dinheiro Faccedila favor de me deixar ir agrave terra dos vivos buscar o meu dinheiro ao

meu outro banco

ANJO Como tu me fazes rir com a tua ignoracircncia Ainda natildeo viste que este barco natildeo foi

feito para ti Aqui natildeo haacute lugar para ti porque soacute caacute entram as pessoas de bom coraccedilatildeo aquelas

que tanto fizeram por um mundo melhor E tu Quem eacutes Que fizeste Eacutes um tirano arrogante

triste idiota e ainda por cima estuacutepido Passaste a vida inteira a desprezar os mais pequenos

nunca ajudaste quem mais necessitava e agora julgavas que te deixava entrar assim Natildeo Aqui

natildeo entras porque o teu lugar eacute no inferno um local apropriado para homens do teu caraacutecter

O Fidalgo achou que o Anjo nem merecia resposta a tais insultos pois natildeo iria discutir com al-

gueacutem que decerto natildeo compreendia a sua superioridade Voltou por isso agrave Barca do Diabo

DIABO AHAHA Olha quem voltou Sua Excelecircncia perdeu-se Ou digamos que achou o

Jardim do Eacuteden muito como dizer Murcho Claro que o nosso Santo amigo simpatizou con-

BTNEXT 13

sigo ao ponto de dispensar a sua bela companhia em prol aqui da minha pessoa AHAHA

FIDALGO Apenas vim para aqui porque aquela barca estaacute ainda mais suja e ainda eacute mais

pequena que a sua Olha laacute faz-me o favor de matar os meus empregados para virem aqui remar

esta carcaccedila flutuante

DIABO Com essa vontade toda de assassiacutenio um dia ainda me tiras o lugar Eacutes caacute dos meus

como presente aqui tens este par de remos AHAHA

FIDALGO Estaacute-me a ver a pocircr as matildeos nesses pedaccedilos de madeira cheios de lascas Ponha-

se vocecirc a remar que o tempo urge

DIABO Coitadinho Ainda me estragas as matildeos com esses remos AHAHA Deixa mas eacute

de ser arrogante e admite natildeo tens outra escolha senatildeo embarcar aqui Oh Natildeo fiques triste

porque te garanto que o inferno tem coisas maravilhosas - poderaacutes por exemplo apreciar a

minha agradaacutevel companhia AHAHAHA

O Fidalgo contrariado senta-se num canto da barca do Diabo

Auto da barca do Inferno 14

Cena 3

BTNEXT 15

Entretanto vem-se aproximando da Barca do Diabo o Onzeneiro uma pessoa de modos simples

mas que fez uma fortuna agrave custa dos outros A sua vestimenta eacute algo peculiar pois tenta-se passar

por algueacutem com classe sem de facto a ter De uma forma rude interpela o Diabo

ONZENEIRO Prsquora onde bai este barco

DIABO ldquoBairdquo para um siacutetio onde natildeo chove nem faz frio talvez vaacutes gostar da estadia Mas

diz-me porque demoraste tanto tempo a vir E Porque vens nessa figura

ONZENEIRO Talbez goste mas diz-me caacute mesmo prsquora onde bai isto que eu natildeo gosto caacute de

meias palabras Ainda agora morri natildeo quero que me enganem por ser nobiccedilo

DIABO Natildeo te preocupes que esta barca eacute do teu interesse pois vai para um siacutetio onde ateacute

os ldquonabosrdquo satildeo aceites AHAHA

ONZENEIRO Podes-me chamar o que quiseres pois na minha bida habituei-me a oubir

muita cousa Diz-me laacute de uma bez para onde bai isto

DIABO AHAHAH Tens uma maneira muito esquisita de falar Estou a ldquoberrdquo que ldquobourdquo ter

que ldquobizerrdquo Ahhh Esta natildeo era Entatildeo esta ldquovarca bai prordquo Inferno

ONZENEIRO lsquoTatildeo esta barca natildeo eacute prsquora mim

Auto da barca do Inferno 16

Aborrecido o Onzeneiro dirige-se para a barca do Anjo mas ainda ouve o Diabo dizer em alta

voz para se fazer ouvir

DIABO ldquoBai laacute bairdquo Mas olha que ainda ldquoboltasrdquo caacute AHAHA

Sem querer mais conversas com o Diabo o Onzeneiro vai sempre andando sem olhar para traacutes

ateacute que chega agrave barca do Anjo

ONZENEIRO Oh da barca Prsquora onde bai esta Narsquome diga que tambeacutem bai prsquora o inferno

ANJO Natildeo Esta barca tem como destino o paraiacuteso E tu Que fazes aqui

ONZENEIRO Paraiacuteso Isso eacute o ceacuteu nrsquoeacute lsquoTatildeo eacute mesmo prsquorarsquoqui que bou Arranje-me aiacute

uma escada prsquora eu subir prsquora o barco

ANJO Nem penses nisso Mais depressa te arranjava um bilhete para o inferno do que uma

escada para subires para aqui

ONZENEIRO Porquecirc Eu quero ir neste

ANJO Queres mas natildeo vais Neste barco soacute entra quem tiver bom coraccedilatildeo algo que tu jaacute

perdeste haacute muito tempo se eacute que alguma vez tiveste

ONZENEIRO E eu tenho a culpa de ter tido um ABC

BTNEXT 17

ANJO Um ABC Meu Deus Tens tanto de riqueza como tens de ignoracircncia Passaste a

vida inteira a explorar os mais pobres foste egoiacutesta e ganancioso nunca foste capaz de fazer um

uacutenico gesto de bondade e achavas que poderias entrar assim Nem penses Vai na outra barca

pois coaduna-se melhor contigo

ONZENEIRO Explorar os mais pobres lsquoTaacutes a falar dos ucranianos que contratei Eu lsquotaba-

lhes a fazer um fabor

O Anjo nem se digna a responder pelo que o Onzeneiro resolve retornar agrave Barca do Diabo

DIABO Olha olha mrsquoeste artista de volta Jaacute ldquobiesterdquo Tiveste saudades minhas Ou ali o

Santo fartou-se do teu ldquoveliacutessimordquo paleio

ONZENEIRO A culpa foi dos ucranianos

DIABO Bahh natildeo os culpes que eles tecircm bela carne de churrasco Sozinho com essa tua

ldquosabedoriardquo natildeo vais a lado nenhum mas aqui no meu barquinho vais longe para muito longe

AHAHAH

O Onzeneiro entra resignado na barca do Diabo e cruza-se com o Fidalgo

ONZENEIRO lsquoTatildeo mas o socircr tambeacutem lsquotaacute aqui Fico contente em poder lsquotar aqui com sua

Auto da barca do Inferno 18

excelentiacutessima

FIDALGO Mas quem eacute vocecirc Sabe com quem estaacute a falar Dei-lhe autorizaccedilatildeo para me diri-

gir a palavra Dei Afaste-se de mim que apesar de estarmos na mesma barca vocecirc continua

a ser um saloio ao peacute de mim

DIABO AHAHAHA Que ricos saloios que eu levo aqui para o Inferno AHAHAHAH

BTNEXT 19

Cena 4

Auto da barca do Inferno 20

Agrave Barca do Diabo chega desta vez o Parvo

PARVO Olha um barco agrave vela que giro XIQIQIQI Oh cornudo para onde vai este batel

DIABO Este batel Este batel vai para um local maravilhoso que vais adorar Entra que eu

mostro-te que local eacute esse

PARVO Jaacute sei Eacute a DisneyLand Sempre quis ir laacute ver o Pateta para lhe dizer que eacute burro

E fala com ratos e patos Caacute para mim haacute ali algum truque que a mim ningueacutem me engana

XIQIQIQI Jaacute a minha matildee dizia que eu era parvo mas natildeo era estuacutepido XIQIQIQI Espera laacute

mas tu eacutes quem

DIABO Entatildeo natildeo sabes quem eu sou Eu sou um tipo porreiro que te vai levar a um local

espectacular Vais ver que eacute muito melhor que a DisneyLand Entra que eu mostro-te que local

eacute esse

PARVO Porra jaacute pareces uma vespa sempre a zumbir o mesmo oh cornudo Estava a pen-

sar que eras o tio patinhas mascarado de carneiro XIQIQIQI Afinal que local eacute esse

DIABO Esse local eacute o inferno e garanto-te que eacute um siacutetio muito giro Queres entrar para ver

PARVO Inferno Isso eacute a terra dos cornudos como tu natildeo eacute A minha matildee disse-me que o

BTNEXT 21

meu pai eacute que era cornudo por causa do padeiro do carteiro e do Mas eu natildeo Sempre fiz como

a minha matildee me disse portanto natildeo sou cornudo XIQIQIQI Vou-me embora carneiro que eu

natildeo quero ir para o jardim zooloacutegico XIQIQIQI

DIABO AHAHA Bela famiacutelia a tua O pai eacute cornudo A matildee gosta muito de comer patildeo e

escrever cartas AHAHAHA O filho um parvo dos diabos Uma coisa te digo a tua companhia

ia ser deveras animada

O Parvo resolve dar meia volta e vai ter com o Anjo

PARVO Olha um paacutessaro Corvo natildeo eacute certamente porque eacute da cor do burro quando foge

XIQIQIQI Oh pardal a tua gaivota vai para onde

ANJO Este barco tem como destino o paraiacuteso E tu Quem eacutes e o que fazes aqui

PARVO O paacutessaro fala Eacute um papagaio XIQIQIQI Eu sou Joane mais conhecido por ldquopar-

vordquo desde que a minha matildee me chamou isso agrave frente dos miuacutedos da escola Mas parvos satildeo eles

porque ldquoquem diz eacute quem eacuterdquo XIQIQIQI

ANJO Estaacutes enganado Eu natildeo sou nenhum paacutessaro mas sim um anjo que tem como missatildeo

guiar todos aqueles que merecerem entrar no paraiacuteso Laacute soacute entram as pessoas que em vida lu-

Auto da barca do Inferno 22

taram por um mundo melhor aquelas que sempre acreditaram no amor na partilha na justiccedila

e na amizade Eacute no fundo uma recompensa que natildeo estaacute ao alcance de todos

PARVO Jaacute percebi porque que eacute que estaacutes sozinho soacute aceitas pessoas imaginaacuterias XIQIQ-

IQI Serei eu real

ANJO De facto poucos satildeo aqueles que conseguem entrar no paraiacuteso pois poucos satildeo aqueles

que ao longo da vida conseguem conservar a bondade e a pureza no coraccedilatildeo Tu mereces entrar

porque em todos os teus actos demonstraste sempre uma pureza encantadora e nunca maacute inten-

ccedilatildeo Se quiseres podes entrar

Dito isto o Parvo fica junto agrave Barca do Anjo sem contudo entrar

BTNEXT 23

Cena 5

Auto da barca do Inferno 24

A caminhar para a barca do Diabo aparece o Sapateiro com a sua mala onde tem todos os uten-

siacutelios necessaacuterios ao seu ofiacutecio

SAPATEIRO Olha olha o Carnaval chegou mais cedo OHOHOHOH

Daacute um soco ao de leve nas costas do Diabo mostrando um sorriso de gozo

DIABO Eh laacute Pai Natal eacutes tu Essas tralhas que trazes aiacute satildeo para mim Olha que natildeo sei

coser sapatos AHAHAH

SAPATEIRO Tralhas Estaacute aqui uma vida inteira de trabalho e dedicaccedilatildeo a ajudar os out-

ros

DIABO AHAHAH eacutes como eu Realmente daacute muito trabalho educar os escravos agrave reacutedea

curta para que nos obedeccedilam e nos beijem os peacutes mas satildeo todos uns mal-agradecidos Soacute ldquosa-

pateiricesrdquo eacute que sabem fazer

SAPATEIRO Deves-me estar a confundir com alguns dos teus servos soacute pode

Eu passei a minha vida inteira a ajudar os outros muitas vezes agrave chuva ou ao sol tudo trab-

alho honesto

DIABO Pois acredito que sim Eras o uacutenico sapateiro laacute da santa terrinha aliaacutes o uacutenico

BTNEXT 25

sapateiro de CLASSE Muita ldquoboca de sapordquo vi andar por aiacute graccedilas agrave tua ldquohonestidaderdquo

SAPATEIRO Deves querer festa comigo deves Com essa roupa nota-se logo quem eacutes e agrave

distacircncia Tu eacute que tens a fama de seres mau e tu eacute que te aproveitas dos outros natildeo queiras

colocar todos no mesmo saco e achar que satildeo como tu

DIABO Mau eu Nada disso sou simplesmente Um justiceiro Todos aqueles que levam

uma vida cheia de maldades tecircm lugar reservado no Inferno E isso deixa-me completamente

feliz Adoro ver o horror na cara das pobres alminhas quando as torturo AHAHAH

SAPATEIRO Fartei-me de ir agrave missa sou um bom filho de Deus portanto acho que vou ali

ao outro lado pedir agravequele senhor de branco que me leve

DIABO Ide ide mas natildeo teraacutes sorte O pessoal daquelas bandas gosta de andar descalccedilo

AHAHAH

SAPATEIRO Sei fazer umas sandaacutelias de apoio leve que os vai ajudar a proteger tal como

eu protejo os meus peacutes imaculados Veraacutes como serei bastante uacutetil por aquelas bandas Eu mereccedilo

o ceacuteu

Dito isto o sapateiro afasta-se e vai em direcccedilatildeo ao Anjo

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 5: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 5

Cena 1

Auto da barca do Inferno 6

Tudo comeccedila na margem do rio do aleacutem onde estaacute o Diabo com o Companheiro Ao longe vem-se

aproximando um Fidalgo e o Diabo ao vecirc-lo comeccedila a dar o ar da sua graccedila

DIABO Escravo olha que temos companhia Trata de arrumar a casa que eacute hoje que vou

tirar a ferrugem ao espeto Vamos Vai buscar lenha para as fornalhas Aquece a panela Puxa

lustro ao chatildeo Vai buscar a baixela de prata que estaacute no bauacute AHAHAHA Sim sim Eacute hoje Eacute

hoje que acabo o jejum de 100 anos apenas interrompido por algumas talhadas a ti tiradas Toca

a mexer os presuntos que te restam

O Companheiro sente-se aliviado e contente olhando para as naacutedegas que lhe sobraram da uacuteltima

festa que o Diabo deu em honra de si proacuteprio

COMPANHEIRO Hi-hi-hi agora eacute que seraacute Natildeo via a hora de chegar este dia meu chefe

Tratarei de fazer tudo como pedistes A baixela de prata jaacute aqui canta pronta a ser utilizada e o

vago cheiro a carne jaacute aqui estaacute chegando Vamos laacute vamos laacute que jaacute falta pouco

DIABO Humm olha laacute hoje apetecia-me comer liacutengua guisada ao jantar Se natildeo acabas de

dar ao serrote e continuas com as tarefas talvez seja a tua a proacutexima a ir para a panela

O Companheiro estremeceu e num murmuacuterio amaldiccediloou o Diabo

BTNEXT 7

COMPANHEIRO Chiccedila estou tatildeo farto deste Diabo O meu rico cuzinho jaacute foi mas se ele

me tira a liacutengua haacute-de ser a uacuteltima coisa que me tira natildeo me chame eu Companheiro Para jaacute

deixa-me caacute trincar a liacutengua que sei que ele natildeo gosta de carne moiacuteda Hi-hi-hi

O Diabo compreendeu que o Companheiro devia de estar a magicar alguma vendo-o a rir-se e a

trincar a proacutepria liacutengua feito parvo pelo que de imediato lhe mostrou quem mandava

DIABO Chiccedila diabrete duma figa que soacute me daacute trabalho Se natildeo trabalhas ainda te prendo

na masmorra de castigo

COMPANHEIRO Prender-me na masmorra Natildeo faccedila isso Sr Diabo E depois quem eacute que

faria o trabalho pesado Natildeo me diga que quer receber o Fidalgo que se aproxima com um pano

de limpar o poacute na matildeo

DIABO Ora nem preciso do pano a primeira tarefa que darei ao Fidalgo seraacute ele limpaacute-lo

com a liacutengua AHAHAHA E tu jaacute falaste demais - se natildeo queres servir de remo na viagem que

se avizinha sai-me daqui

O Companheiro foge cabisbaixo e receoso enquanto as atenccedilotildees do Diabo se voltam para o Fi-

dalgo que vem a chegar

Auto da barca do Inferno 8

DIABO Oulaacute oh jeitoso natildeo queres entrar Natildeo eacute que isto seja a Arca de Noeacute mas pareces

um pavatildeo Anda daiacute

BTNEXT 9

Cena 2

Auto da barca do Inferno 10

Com grande pompa aproxima-se da barca do Diabo um grande senhor das melhores famiacutelias

vestido a preceito

FIDALGO Oh senhor para onde vai esta barca

DIABO Esta barca Vai para um siacutetio caloroso e cheio de festa Poderaacutes bronzear a tua bela

epiderme comer uns belos churrascos e fazer umas belas fogueiras

FIDALGO Parece-me bem mas e o mais importante haacute laacute senhoritas e margarittas

DIABO AHAHA Senhoritas O que natildeo falta eacute senhoritas mas estatildeo reservadas para mim

Margaritas Farei uma bebida com a tua gordura que seraacute muito melhor AHAHAHA O que te

espera eacute nada mais nada menos que uma vida miseraacutevel e infernal AHAHAHA

FIDALGO Vida miseraacutevel Mas vocecirc sabe quem eu sou Digo-lhe soacute que eu poderia com-

prar 10 iates muito melhores que esta espeacutecie de jangada que tem aqui onde vocecirc mesmo seria

meu criado AH AH AH

DIABO Eu Teu criado Vossa Alteza os seus desejos satildeo uma ordem AHAHAH Os teus

dias de boa vida acabaram Esse teu ar de Senhor do Mundo agrada-me mas natildeo penses que

vais andar por aqui a pavonear-te Muito pelo contraacuterio nas minhas matildeos vais desejar nunca

BTNEXT 11

ter morrido

FIDALGO Tenha tento na liacutengua sim Com quem pensa que estaacute a falar

DIABO Com um futuro escravo eacute claro Soacute tu eacute que ainda natildeo o compreendeste Talvez para

fazeres maior fortuna tambeacutem tenhas vendido parte do teu pequeno conjunto de neuroacutenios

AHAHAHA

O Fidalgo sentindo-se indignado e tendo visto ao longe uma outra barca dirige-se para laacute

Nesta aguarda-o um Anjo

FIDALGO Que barca eacute esta Exijo saber para onde vai essa barca e quem vocecirc eacute Antes que

me desrespeite fique sabendo que fui tatildeo rico em vida que poderei comprar a minha estadia no

paraiacuteso

ANJO De facto eacute mesmo esse o destino desta barca Mas soacute caacute entra quem merece e foi con-

vidado As entradas para o paraiacuteso natildeo se compram merecem-se

FIDALGO Tenho a certeza que natildeo diraacute isso depois de lhe oferecer uma barca a motor Daacute

muito menos trabalho do que essas madeiras aiacute para remar

ANJO O teu dinheiro ficou na terra dos vivos aqui eacutes soacute tu e a tua arrogacircncia Nesta barca

Auto da barca do Inferno 12

jamais entraraacutes pois natildeo eacutes digno dela

FIDALGO O meu dinheiro ficou na terra dos vivos Claro que ficou Laacute eu sabia que o meu

banco ia ficar sem dinheiro e como tal usei-o todo O meu gestor eacute que me deveria dizer para eu

natildeo gastar mais dinheiro Faccedila favor de me deixar ir agrave terra dos vivos buscar o meu dinheiro ao

meu outro banco

ANJO Como tu me fazes rir com a tua ignoracircncia Ainda natildeo viste que este barco natildeo foi

feito para ti Aqui natildeo haacute lugar para ti porque soacute caacute entram as pessoas de bom coraccedilatildeo aquelas

que tanto fizeram por um mundo melhor E tu Quem eacutes Que fizeste Eacutes um tirano arrogante

triste idiota e ainda por cima estuacutepido Passaste a vida inteira a desprezar os mais pequenos

nunca ajudaste quem mais necessitava e agora julgavas que te deixava entrar assim Natildeo Aqui

natildeo entras porque o teu lugar eacute no inferno um local apropriado para homens do teu caraacutecter

O Fidalgo achou que o Anjo nem merecia resposta a tais insultos pois natildeo iria discutir com al-

gueacutem que decerto natildeo compreendia a sua superioridade Voltou por isso agrave Barca do Diabo

DIABO AHAHA Olha quem voltou Sua Excelecircncia perdeu-se Ou digamos que achou o

Jardim do Eacuteden muito como dizer Murcho Claro que o nosso Santo amigo simpatizou con-

BTNEXT 13

sigo ao ponto de dispensar a sua bela companhia em prol aqui da minha pessoa AHAHA

FIDALGO Apenas vim para aqui porque aquela barca estaacute ainda mais suja e ainda eacute mais

pequena que a sua Olha laacute faz-me o favor de matar os meus empregados para virem aqui remar

esta carcaccedila flutuante

DIABO Com essa vontade toda de assassiacutenio um dia ainda me tiras o lugar Eacutes caacute dos meus

como presente aqui tens este par de remos AHAHA

FIDALGO Estaacute-me a ver a pocircr as matildeos nesses pedaccedilos de madeira cheios de lascas Ponha-

se vocecirc a remar que o tempo urge

DIABO Coitadinho Ainda me estragas as matildeos com esses remos AHAHA Deixa mas eacute

de ser arrogante e admite natildeo tens outra escolha senatildeo embarcar aqui Oh Natildeo fiques triste

porque te garanto que o inferno tem coisas maravilhosas - poderaacutes por exemplo apreciar a

minha agradaacutevel companhia AHAHAHA

O Fidalgo contrariado senta-se num canto da barca do Diabo

Auto da barca do Inferno 14

Cena 3

BTNEXT 15

Entretanto vem-se aproximando da Barca do Diabo o Onzeneiro uma pessoa de modos simples

mas que fez uma fortuna agrave custa dos outros A sua vestimenta eacute algo peculiar pois tenta-se passar

por algueacutem com classe sem de facto a ter De uma forma rude interpela o Diabo

ONZENEIRO Prsquora onde bai este barco

DIABO ldquoBairdquo para um siacutetio onde natildeo chove nem faz frio talvez vaacutes gostar da estadia Mas

diz-me porque demoraste tanto tempo a vir E Porque vens nessa figura

ONZENEIRO Talbez goste mas diz-me caacute mesmo prsquora onde bai isto que eu natildeo gosto caacute de

meias palabras Ainda agora morri natildeo quero que me enganem por ser nobiccedilo

DIABO Natildeo te preocupes que esta barca eacute do teu interesse pois vai para um siacutetio onde ateacute

os ldquonabosrdquo satildeo aceites AHAHA

ONZENEIRO Podes-me chamar o que quiseres pois na minha bida habituei-me a oubir

muita cousa Diz-me laacute de uma bez para onde bai isto

DIABO AHAHAH Tens uma maneira muito esquisita de falar Estou a ldquoberrdquo que ldquobourdquo ter

que ldquobizerrdquo Ahhh Esta natildeo era Entatildeo esta ldquovarca bai prordquo Inferno

ONZENEIRO lsquoTatildeo esta barca natildeo eacute prsquora mim

Auto da barca do Inferno 16

Aborrecido o Onzeneiro dirige-se para a barca do Anjo mas ainda ouve o Diabo dizer em alta

voz para se fazer ouvir

DIABO ldquoBai laacute bairdquo Mas olha que ainda ldquoboltasrdquo caacute AHAHA

Sem querer mais conversas com o Diabo o Onzeneiro vai sempre andando sem olhar para traacutes

ateacute que chega agrave barca do Anjo

ONZENEIRO Oh da barca Prsquora onde bai esta Narsquome diga que tambeacutem bai prsquora o inferno

ANJO Natildeo Esta barca tem como destino o paraiacuteso E tu Que fazes aqui

ONZENEIRO Paraiacuteso Isso eacute o ceacuteu nrsquoeacute lsquoTatildeo eacute mesmo prsquorarsquoqui que bou Arranje-me aiacute

uma escada prsquora eu subir prsquora o barco

ANJO Nem penses nisso Mais depressa te arranjava um bilhete para o inferno do que uma

escada para subires para aqui

ONZENEIRO Porquecirc Eu quero ir neste

ANJO Queres mas natildeo vais Neste barco soacute entra quem tiver bom coraccedilatildeo algo que tu jaacute

perdeste haacute muito tempo se eacute que alguma vez tiveste

ONZENEIRO E eu tenho a culpa de ter tido um ABC

BTNEXT 17

ANJO Um ABC Meu Deus Tens tanto de riqueza como tens de ignoracircncia Passaste a

vida inteira a explorar os mais pobres foste egoiacutesta e ganancioso nunca foste capaz de fazer um

uacutenico gesto de bondade e achavas que poderias entrar assim Nem penses Vai na outra barca

pois coaduna-se melhor contigo

ONZENEIRO Explorar os mais pobres lsquoTaacutes a falar dos ucranianos que contratei Eu lsquotaba-

lhes a fazer um fabor

O Anjo nem se digna a responder pelo que o Onzeneiro resolve retornar agrave Barca do Diabo

DIABO Olha olha mrsquoeste artista de volta Jaacute ldquobiesterdquo Tiveste saudades minhas Ou ali o

Santo fartou-se do teu ldquoveliacutessimordquo paleio

ONZENEIRO A culpa foi dos ucranianos

DIABO Bahh natildeo os culpes que eles tecircm bela carne de churrasco Sozinho com essa tua

ldquosabedoriardquo natildeo vais a lado nenhum mas aqui no meu barquinho vais longe para muito longe

AHAHAH

O Onzeneiro entra resignado na barca do Diabo e cruza-se com o Fidalgo

ONZENEIRO lsquoTatildeo mas o socircr tambeacutem lsquotaacute aqui Fico contente em poder lsquotar aqui com sua

Auto da barca do Inferno 18

excelentiacutessima

FIDALGO Mas quem eacute vocecirc Sabe com quem estaacute a falar Dei-lhe autorizaccedilatildeo para me diri-

gir a palavra Dei Afaste-se de mim que apesar de estarmos na mesma barca vocecirc continua

a ser um saloio ao peacute de mim

DIABO AHAHAHA Que ricos saloios que eu levo aqui para o Inferno AHAHAHAH

BTNEXT 19

Cena 4

Auto da barca do Inferno 20

Agrave Barca do Diabo chega desta vez o Parvo

PARVO Olha um barco agrave vela que giro XIQIQIQI Oh cornudo para onde vai este batel

DIABO Este batel Este batel vai para um local maravilhoso que vais adorar Entra que eu

mostro-te que local eacute esse

PARVO Jaacute sei Eacute a DisneyLand Sempre quis ir laacute ver o Pateta para lhe dizer que eacute burro

E fala com ratos e patos Caacute para mim haacute ali algum truque que a mim ningueacutem me engana

XIQIQIQI Jaacute a minha matildee dizia que eu era parvo mas natildeo era estuacutepido XIQIQIQI Espera laacute

mas tu eacutes quem

DIABO Entatildeo natildeo sabes quem eu sou Eu sou um tipo porreiro que te vai levar a um local

espectacular Vais ver que eacute muito melhor que a DisneyLand Entra que eu mostro-te que local

eacute esse

PARVO Porra jaacute pareces uma vespa sempre a zumbir o mesmo oh cornudo Estava a pen-

sar que eras o tio patinhas mascarado de carneiro XIQIQIQI Afinal que local eacute esse

DIABO Esse local eacute o inferno e garanto-te que eacute um siacutetio muito giro Queres entrar para ver

PARVO Inferno Isso eacute a terra dos cornudos como tu natildeo eacute A minha matildee disse-me que o

BTNEXT 21

meu pai eacute que era cornudo por causa do padeiro do carteiro e do Mas eu natildeo Sempre fiz como

a minha matildee me disse portanto natildeo sou cornudo XIQIQIQI Vou-me embora carneiro que eu

natildeo quero ir para o jardim zooloacutegico XIQIQIQI

DIABO AHAHA Bela famiacutelia a tua O pai eacute cornudo A matildee gosta muito de comer patildeo e

escrever cartas AHAHAHA O filho um parvo dos diabos Uma coisa te digo a tua companhia

ia ser deveras animada

O Parvo resolve dar meia volta e vai ter com o Anjo

PARVO Olha um paacutessaro Corvo natildeo eacute certamente porque eacute da cor do burro quando foge

XIQIQIQI Oh pardal a tua gaivota vai para onde

ANJO Este barco tem como destino o paraiacuteso E tu Quem eacutes e o que fazes aqui

PARVO O paacutessaro fala Eacute um papagaio XIQIQIQI Eu sou Joane mais conhecido por ldquopar-

vordquo desde que a minha matildee me chamou isso agrave frente dos miuacutedos da escola Mas parvos satildeo eles

porque ldquoquem diz eacute quem eacuterdquo XIQIQIQI

ANJO Estaacutes enganado Eu natildeo sou nenhum paacutessaro mas sim um anjo que tem como missatildeo

guiar todos aqueles que merecerem entrar no paraiacuteso Laacute soacute entram as pessoas que em vida lu-

Auto da barca do Inferno 22

taram por um mundo melhor aquelas que sempre acreditaram no amor na partilha na justiccedila

e na amizade Eacute no fundo uma recompensa que natildeo estaacute ao alcance de todos

PARVO Jaacute percebi porque que eacute que estaacutes sozinho soacute aceitas pessoas imaginaacuterias XIQIQ-

IQI Serei eu real

ANJO De facto poucos satildeo aqueles que conseguem entrar no paraiacuteso pois poucos satildeo aqueles

que ao longo da vida conseguem conservar a bondade e a pureza no coraccedilatildeo Tu mereces entrar

porque em todos os teus actos demonstraste sempre uma pureza encantadora e nunca maacute inten-

ccedilatildeo Se quiseres podes entrar

Dito isto o Parvo fica junto agrave Barca do Anjo sem contudo entrar

BTNEXT 23

Cena 5

Auto da barca do Inferno 24

A caminhar para a barca do Diabo aparece o Sapateiro com a sua mala onde tem todos os uten-

siacutelios necessaacuterios ao seu ofiacutecio

SAPATEIRO Olha olha o Carnaval chegou mais cedo OHOHOHOH

Daacute um soco ao de leve nas costas do Diabo mostrando um sorriso de gozo

DIABO Eh laacute Pai Natal eacutes tu Essas tralhas que trazes aiacute satildeo para mim Olha que natildeo sei

coser sapatos AHAHAH

SAPATEIRO Tralhas Estaacute aqui uma vida inteira de trabalho e dedicaccedilatildeo a ajudar os out-

ros

DIABO AHAHAH eacutes como eu Realmente daacute muito trabalho educar os escravos agrave reacutedea

curta para que nos obedeccedilam e nos beijem os peacutes mas satildeo todos uns mal-agradecidos Soacute ldquosa-

pateiricesrdquo eacute que sabem fazer

SAPATEIRO Deves-me estar a confundir com alguns dos teus servos soacute pode

Eu passei a minha vida inteira a ajudar os outros muitas vezes agrave chuva ou ao sol tudo trab-

alho honesto

DIABO Pois acredito que sim Eras o uacutenico sapateiro laacute da santa terrinha aliaacutes o uacutenico

BTNEXT 25

sapateiro de CLASSE Muita ldquoboca de sapordquo vi andar por aiacute graccedilas agrave tua ldquohonestidaderdquo

SAPATEIRO Deves querer festa comigo deves Com essa roupa nota-se logo quem eacutes e agrave

distacircncia Tu eacute que tens a fama de seres mau e tu eacute que te aproveitas dos outros natildeo queiras

colocar todos no mesmo saco e achar que satildeo como tu

DIABO Mau eu Nada disso sou simplesmente Um justiceiro Todos aqueles que levam

uma vida cheia de maldades tecircm lugar reservado no Inferno E isso deixa-me completamente

feliz Adoro ver o horror na cara das pobres alminhas quando as torturo AHAHAH

SAPATEIRO Fartei-me de ir agrave missa sou um bom filho de Deus portanto acho que vou ali

ao outro lado pedir agravequele senhor de branco que me leve

DIABO Ide ide mas natildeo teraacutes sorte O pessoal daquelas bandas gosta de andar descalccedilo

AHAHAH

SAPATEIRO Sei fazer umas sandaacutelias de apoio leve que os vai ajudar a proteger tal como

eu protejo os meus peacutes imaculados Veraacutes como serei bastante uacutetil por aquelas bandas Eu mereccedilo

o ceacuteu

Dito isto o sapateiro afasta-se e vai em direcccedilatildeo ao Anjo

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 6: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da barca do Inferno 6

Tudo comeccedila na margem do rio do aleacutem onde estaacute o Diabo com o Companheiro Ao longe vem-se

aproximando um Fidalgo e o Diabo ao vecirc-lo comeccedila a dar o ar da sua graccedila

DIABO Escravo olha que temos companhia Trata de arrumar a casa que eacute hoje que vou

tirar a ferrugem ao espeto Vamos Vai buscar lenha para as fornalhas Aquece a panela Puxa

lustro ao chatildeo Vai buscar a baixela de prata que estaacute no bauacute AHAHAHA Sim sim Eacute hoje Eacute

hoje que acabo o jejum de 100 anos apenas interrompido por algumas talhadas a ti tiradas Toca

a mexer os presuntos que te restam

O Companheiro sente-se aliviado e contente olhando para as naacutedegas que lhe sobraram da uacuteltima

festa que o Diabo deu em honra de si proacuteprio

COMPANHEIRO Hi-hi-hi agora eacute que seraacute Natildeo via a hora de chegar este dia meu chefe

Tratarei de fazer tudo como pedistes A baixela de prata jaacute aqui canta pronta a ser utilizada e o

vago cheiro a carne jaacute aqui estaacute chegando Vamos laacute vamos laacute que jaacute falta pouco

DIABO Humm olha laacute hoje apetecia-me comer liacutengua guisada ao jantar Se natildeo acabas de

dar ao serrote e continuas com as tarefas talvez seja a tua a proacutexima a ir para a panela

O Companheiro estremeceu e num murmuacuterio amaldiccediloou o Diabo

BTNEXT 7

COMPANHEIRO Chiccedila estou tatildeo farto deste Diabo O meu rico cuzinho jaacute foi mas se ele

me tira a liacutengua haacute-de ser a uacuteltima coisa que me tira natildeo me chame eu Companheiro Para jaacute

deixa-me caacute trincar a liacutengua que sei que ele natildeo gosta de carne moiacuteda Hi-hi-hi

O Diabo compreendeu que o Companheiro devia de estar a magicar alguma vendo-o a rir-se e a

trincar a proacutepria liacutengua feito parvo pelo que de imediato lhe mostrou quem mandava

DIABO Chiccedila diabrete duma figa que soacute me daacute trabalho Se natildeo trabalhas ainda te prendo

na masmorra de castigo

COMPANHEIRO Prender-me na masmorra Natildeo faccedila isso Sr Diabo E depois quem eacute que

faria o trabalho pesado Natildeo me diga que quer receber o Fidalgo que se aproxima com um pano

de limpar o poacute na matildeo

DIABO Ora nem preciso do pano a primeira tarefa que darei ao Fidalgo seraacute ele limpaacute-lo

com a liacutengua AHAHAHA E tu jaacute falaste demais - se natildeo queres servir de remo na viagem que

se avizinha sai-me daqui

O Companheiro foge cabisbaixo e receoso enquanto as atenccedilotildees do Diabo se voltam para o Fi-

dalgo que vem a chegar

Auto da barca do Inferno 8

DIABO Oulaacute oh jeitoso natildeo queres entrar Natildeo eacute que isto seja a Arca de Noeacute mas pareces

um pavatildeo Anda daiacute

BTNEXT 9

Cena 2

Auto da barca do Inferno 10

Com grande pompa aproxima-se da barca do Diabo um grande senhor das melhores famiacutelias

vestido a preceito

FIDALGO Oh senhor para onde vai esta barca

DIABO Esta barca Vai para um siacutetio caloroso e cheio de festa Poderaacutes bronzear a tua bela

epiderme comer uns belos churrascos e fazer umas belas fogueiras

FIDALGO Parece-me bem mas e o mais importante haacute laacute senhoritas e margarittas

DIABO AHAHA Senhoritas O que natildeo falta eacute senhoritas mas estatildeo reservadas para mim

Margaritas Farei uma bebida com a tua gordura que seraacute muito melhor AHAHAHA O que te

espera eacute nada mais nada menos que uma vida miseraacutevel e infernal AHAHAHA

FIDALGO Vida miseraacutevel Mas vocecirc sabe quem eu sou Digo-lhe soacute que eu poderia com-

prar 10 iates muito melhores que esta espeacutecie de jangada que tem aqui onde vocecirc mesmo seria

meu criado AH AH AH

DIABO Eu Teu criado Vossa Alteza os seus desejos satildeo uma ordem AHAHAH Os teus

dias de boa vida acabaram Esse teu ar de Senhor do Mundo agrada-me mas natildeo penses que

vais andar por aqui a pavonear-te Muito pelo contraacuterio nas minhas matildeos vais desejar nunca

BTNEXT 11

ter morrido

FIDALGO Tenha tento na liacutengua sim Com quem pensa que estaacute a falar

DIABO Com um futuro escravo eacute claro Soacute tu eacute que ainda natildeo o compreendeste Talvez para

fazeres maior fortuna tambeacutem tenhas vendido parte do teu pequeno conjunto de neuroacutenios

AHAHAHA

O Fidalgo sentindo-se indignado e tendo visto ao longe uma outra barca dirige-se para laacute

Nesta aguarda-o um Anjo

FIDALGO Que barca eacute esta Exijo saber para onde vai essa barca e quem vocecirc eacute Antes que

me desrespeite fique sabendo que fui tatildeo rico em vida que poderei comprar a minha estadia no

paraiacuteso

ANJO De facto eacute mesmo esse o destino desta barca Mas soacute caacute entra quem merece e foi con-

vidado As entradas para o paraiacuteso natildeo se compram merecem-se

FIDALGO Tenho a certeza que natildeo diraacute isso depois de lhe oferecer uma barca a motor Daacute

muito menos trabalho do que essas madeiras aiacute para remar

ANJO O teu dinheiro ficou na terra dos vivos aqui eacutes soacute tu e a tua arrogacircncia Nesta barca

Auto da barca do Inferno 12

jamais entraraacutes pois natildeo eacutes digno dela

FIDALGO O meu dinheiro ficou na terra dos vivos Claro que ficou Laacute eu sabia que o meu

banco ia ficar sem dinheiro e como tal usei-o todo O meu gestor eacute que me deveria dizer para eu

natildeo gastar mais dinheiro Faccedila favor de me deixar ir agrave terra dos vivos buscar o meu dinheiro ao

meu outro banco

ANJO Como tu me fazes rir com a tua ignoracircncia Ainda natildeo viste que este barco natildeo foi

feito para ti Aqui natildeo haacute lugar para ti porque soacute caacute entram as pessoas de bom coraccedilatildeo aquelas

que tanto fizeram por um mundo melhor E tu Quem eacutes Que fizeste Eacutes um tirano arrogante

triste idiota e ainda por cima estuacutepido Passaste a vida inteira a desprezar os mais pequenos

nunca ajudaste quem mais necessitava e agora julgavas que te deixava entrar assim Natildeo Aqui

natildeo entras porque o teu lugar eacute no inferno um local apropriado para homens do teu caraacutecter

O Fidalgo achou que o Anjo nem merecia resposta a tais insultos pois natildeo iria discutir com al-

gueacutem que decerto natildeo compreendia a sua superioridade Voltou por isso agrave Barca do Diabo

DIABO AHAHA Olha quem voltou Sua Excelecircncia perdeu-se Ou digamos que achou o

Jardim do Eacuteden muito como dizer Murcho Claro que o nosso Santo amigo simpatizou con-

BTNEXT 13

sigo ao ponto de dispensar a sua bela companhia em prol aqui da minha pessoa AHAHA

FIDALGO Apenas vim para aqui porque aquela barca estaacute ainda mais suja e ainda eacute mais

pequena que a sua Olha laacute faz-me o favor de matar os meus empregados para virem aqui remar

esta carcaccedila flutuante

DIABO Com essa vontade toda de assassiacutenio um dia ainda me tiras o lugar Eacutes caacute dos meus

como presente aqui tens este par de remos AHAHA

FIDALGO Estaacute-me a ver a pocircr as matildeos nesses pedaccedilos de madeira cheios de lascas Ponha-

se vocecirc a remar que o tempo urge

DIABO Coitadinho Ainda me estragas as matildeos com esses remos AHAHA Deixa mas eacute

de ser arrogante e admite natildeo tens outra escolha senatildeo embarcar aqui Oh Natildeo fiques triste

porque te garanto que o inferno tem coisas maravilhosas - poderaacutes por exemplo apreciar a

minha agradaacutevel companhia AHAHAHA

O Fidalgo contrariado senta-se num canto da barca do Diabo

Auto da barca do Inferno 14

Cena 3

BTNEXT 15

Entretanto vem-se aproximando da Barca do Diabo o Onzeneiro uma pessoa de modos simples

mas que fez uma fortuna agrave custa dos outros A sua vestimenta eacute algo peculiar pois tenta-se passar

por algueacutem com classe sem de facto a ter De uma forma rude interpela o Diabo

ONZENEIRO Prsquora onde bai este barco

DIABO ldquoBairdquo para um siacutetio onde natildeo chove nem faz frio talvez vaacutes gostar da estadia Mas

diz-me porque demoraste tanto tempo a vir E Porque vens nessa figura

ONZENEIRO Talbez goste mas diz-me caacute mesmo prsquora onde bai isto que eu natildeo gosto caacute de

meias palabras Ainda agora morri natildeo quero que me enganem por ser nobiccedilo

DIABO Natildeo te preocupes que esta barca eacute do teu interesse pois vai para um siacutetio onde ateacute

os ldquonabosrdquo satildeo aceites AHAHA

ONZENEIRO Podes-me chamar o que quiseres pois na minha bida habituei-me a oubir

muita cousa Diz-me laacute de uma bez para onde bai isto

DIABO AHAHAH Tens uma maneira muito esquisita de falar Estou a ldquoberrdquo que ldquobourdquo ter

que ldquobizerrdquo Ahhh Esta natildeo era Entatildeo esta ldquovarca bai prordquo Inferno

ONZENEIRO lsquoTatildeo esta barca natildeo eacute prsquora mim

Auto da barca do Inferno 16

Aborrecido o Onzeneiro dirige-se para a barca do Anjo mas ainda ouve o Diabo dizer em alta

voz para se fazer ouvir

DIABO ldquoBai laacute bairdquo Mas olha que ainda ldquoboltasrdquo caacute AHAHA

Sem querer mais conversas com o Diabo o Onzeneiro vai sempre andando sem olhar para traacutes

ateacute que chega agrave barca do Anjo

ONZENEIRO Oh da barca Prsquora onde bai esta Narsquome diga que tambeacutem bai prsquora o inferno

ANJO Natildeo Esta barca tem como destino o paraiacuteso E tu Que fazes aqui

ONZENEIRO Paraiacuteso Isso eacute o ceacuteu nrsquoeacute lsquoTatildeo eacute mesmo prsquorarsquoqui que bou Arranje-me aiacute

uma escada prsquora eu subir prsquora o barco

ANJO Nem penses nisso Mais depressa te arranjava um bilhete para o inferno do que uma

escada para subires para aqui

ONZENEIRO Porquecirc Eu quero ir neste

ANJO Queres mas natildeo vais Neste barco soacute entra quem tiver bom coraccedilatildeo algo que tu jaacute

perdeste haacute muito tempo se eacute que alguma vez tiveste

ONZENEIRO E eu tenho a culpa de ter tido um ABC

BTNEXT 17

ANJO Um ABC Meu Deus Tens tanto de riqueza como tens de ignoracircncia Passaste a

vida inteira a explorar os mais pobres foste egoiacutesta e ganancioso nunca foste capaz de fazer um

uacutenico gesto de bondade e achavas que poderias entrar assim Nem penses Vai na outra barca

pois coaduna-se melhor contigo

ONZENEIRO Explorar os mais pobres lsquoTaacutes a falar dos ucranianos que contratei Eu lsquotaba-

lhes a fazer um fabor

O Anjo nem se digna a responder pelo que o Onzeneiro resolve retornar agrave Barca do Diabo

DIABO Olha olha mrsquoeste artista de volta Jaacute ldquobiesterdquo Tiveste saudades minhas Ou ali o

Santo fartou-se do teu ldquoveliacutessimordquo paleio

ONZENEIRO A culpa foi dos ucranianos

DIABO Bahh natildeo os culpes que eles tecircm bela carne de churrasco Sozinho com essa tua

ldquosabedoriardquo natildeo vais a lado nenhum mas aqui no meu barquinho vais longe para muito longe

AHAHAH

O Onzeneiro entra resignado na barca do Diabo e cruza-se com o Fidalgo

ONZENEIRO lsquoTatildeo mas o socircr tambeacutem lsquotaacute aqui Fico contente em poder lsquotar aqui com sua

Auto da barca do Inferno 18

excelentiacutessima

FIDALGO Mas quem eacute vocecirc Sabe com quem estaacute a falar Dei-lhe autorizaccedilatildeo para me diri-

gir a palavra Dei Afaste-se de mim que apesar de estarmos na mesma barca vocecirc continua

a ser um saloio ao peacute de mim

DIABO AHAHAHA Que ricos saloios que eu levo aqui para o Inferno AHAHAHAH

BTNEXT 19

Cena 4

Auto da barca do Inferno 20

Agrave Barca do Diabo chega desta vez o Parvo

PARVO Olha um barco agrave vela que giro XIQIQIQI Oh cornudo para onde vai este batel

DIABO Este batel Este batel vai para um local maravilhoso que vais adorar Entra que eu

mostro-te que local eacute esse

PARVO Jaacute sei Eacute a DisneyLand Sempre quis ir laacute ver o Pateta para lhe dizer que eacute burro

E fala com ratos e patos Caacute para mim haacute ali algum truque que a mim ningueacutem me engana

XIQIQIQI Jaacute a minha matildee dizia que eu era parvo mas natildeo era estuacutepido XIQIQIQI Espera laacute

mas tu eacutes quem

DIABO Entatildeo natildeo sabes quem eu sou Eu sou um tipo porreiro que te vai levar a um local

espectacular Vais ver que eacute muito melhor que a DisneyLand Entra que eu mostro-te que local

eacute esse

PARVO Porra jaacute pareces uma vespa sempre a zumbir o mesmo oh cornudo Estava a pen-

sar que eras o tio patinhas mascarado de carneiro XIQIQIQI Afinal que local eacute esse

DIABO Esse local eacute o inferno e garanto-te que eacute um siacutetio muito giro Queres entrar para ver

PARVO Inferno Isso eacute a terra dos cornudos como tu natildeo eacute A minha matildee disse-me que o

BTNEXT 21

meu pai eacute que era cornudo por causa do padeiro do carteiro e do Mas eu natildeo Sempre fiz como

a minha matildee me disse portanto natildeo sou cornudo XIQIQIQI Vou-me embora carneiro que eu

natildeo quero ir para o jardim zooloacutegico XIQIQIQI

DIABO AHAHA Bela famiacutelia a tua O pai eacute cornudo A matildee gosta muito de comer patildeo e

escrever cartas AHAHAHA O filho um parvo dos diabos Uma coisa te digo a tua companhia

ia ser deveras animada

O Parvo resolve dar meia volta e vai ter com o Anjo

PARVO Olha um paacutessaro Corvo natildeo eacute certamente porque eacute da cor do burro quando foge

XIQIQIQI Oh pardal a tua gaivota vai para onde

ANJO Este barco tem como destino o paraiacuteso E tu Quem eacutes e o que fazes aqui

PARVO O paacutessaro fala Eacute um papagaio XIQIQIQI Eu sou Joane mais conhecido por ldquopar-

vordquo desde que a minha matildee me chamou isso agrave frente dos miuacutedos da escola Mas parvos satildeo eles

porque ldquoquem diz eacute quem eacuterdquo XIQIQIQI

ANJO Estaacutes enganado Eu natildeo sou nenhum paacutessaro mas sim um anjo que tem como missatildeo

guiar todos aqueles que merecerem entrar no paraiacuteso Laacute soacute entram as pessoas que em vida lu-

Auto da barca do Inferno 22

taram por um mundo melhor aquelas que sempre acreditaram no amor na partilha na justiccedila

e na amizade Eacute no fundo uma recompensa que natildeo estaacute ao alcance de todos

PARVO Jaacute percebi porque que eacute que estaacutes sozinho soacute aceitas pessoas imaginaacuterias XIQIQ-

IQI Serei eu real

ANJO De facto poucos satildeo aqueles que conseguem entrar no paraiacuteso pois poucos satildeo aqueles

que ao longo da vida conseguem conservar a bondade e a pureza no coraccedilatildeo Tu mereces entrar

porque em todos os teus actos demonstraste sempre uma pureza encantadora e nunca maacute inten-

ccedilatildeo Se quiseres podes entrar

Dito isto o Parvo fica junto agrave Barca do Anjo sem contudo entrar

BTNEXT 23

Cena 5

Auto da barca do Inferno 24

A caminhar para a barca do Diabo aparece o Sapateiro com a sua mala onde tem todos os uten-

siacutelios necessaacuterios ao seu ofiacutecio

SAPATEIRO Olha olha o Carnaval chegou mais cedo OHOHOHOH

Daacute um soco ao de leve nas costas do Diabo mostrando um sorriso de gozo

DIABO Eh laacute Pai Natal eacutes tu Essas tralhas que trazes aiacute satildeo para mim Olha que natildeo sei

coser sapatos AHAHAH

SAPATEIRO Tralhas Estaacute aqui uma vida inteira de trabalho e dedicaccedilatildeo a ajudar os out-

ros

DIABO AHAHAH eacutes como eu Realmente daacute muito trabalho educar os escravos agrave reacutedea

curta para que nos obedeccedilam e nos beijem os peacutes mas satildeo todos uns mal-agradecidos Soacute ldquosa-

pateiricesrdquo eacute que sabem fazer

SAPATEIRO Deves-me estar a confundir com alguns dos teus servos soacute pode

Eu passei a minha vida inteira a ajudar os outros muitas vezes agrave chuva ou ao sol tudo trab-

alho honesto

DIABO Pois acredito que sim Eras o uacutenico sapateiro laacute da santa terrinha aliaacutes o uacutenico

BTNEXT 25

sapateiro de CLASSE Muita ldquoboca de sapordquo vi andar por aiacute graccedilas agrave tua ldquohonestidaderdquo

SAPATEIRO Deves querer festa comigo deves Com essa roupa nota-se logo quem eacutes e agrave

distacircncia Tu eacute que tens a fama de seres mau e tu eacute que te aproveitas dos outros natildeo queiras

colocar todos no mesmo saco e achar que satildeo como tu

DIABO Mau eu Nada disso sou simplesmente Um justiceiro Todos aqueles que levam

uma vida cheia de maldades tecircm lugar reservado no Inferno E isso deixa-me completamente

feliz Adoro ver o horror na cara das pobres alminhas quando as torturo AHAHAH

SAPATEIRO Fartei-me de ir agrave missa sou um bom filho de Deus portanto acho que vou ali

ao outro lado pedir agravequele senhor de branco que me leve

DIABO Ide ide mas natildeo teraacutes sorte O pessoal daquelas bandas gosta de andar descalccedilo

AHAHAH

SAPATEIRO Sei fazer umas sandaacutelias de apoio leve que os vai ajudar a proteger tal como

eu protejo os meus peacutes imaculados Veraacutes como serei bastante uacutetil por aquelas bandas Eu mereccedilo

o ceacuteu

Dito isto o sapateiro afasta-se e vai em direcccedilatildeo ao Anjo

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 7: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 7

COMPANHEIRO Chiccedila estou tatildeo farto deste Diabo O meu rico cuzinho jaacute foi mas se ele

me tira a liacutengua haacute-de ser a uacuteltima coisa que me tira natildeo me chame eu Companheiro Para jaacute

deixa-me caacute trincar a liacutengua que sei que ele natildeo gosta de carne moiacuteda Hi-hi-hi

O Diabo compreendeu que o Companheiro devia de estar a magicar alguma vendo-o a rir-se e a

trincar a proacutepria liacutengua feito parvo pelo que de imediato lhe mostrou quem mandava

DIABO Chiccedila diabrete duma figa que soacute me daacute trabalho Se natildeo trabalhas ainda te prendo

na masmorra de castigo

COMPANHEIRO Prender-me na masmorra Natildeo faccedila isso Sr Diabo E depois quem eacute que

faria o trabalho pesado Natildeo me diga que quer receber o Fidalgo que se aproxima com um pano

de limpar o poacute na matildeo

DIABO Ora nem preciso do pano a primeira tarefa que darei ao Fidalgo seraacute ele limpaacute-lo

com a liacutengua AHAHAHA E tu jaacute falaste demais - se natildeo queres servir de remo na viagem que

se avizinha sai-me daqui

O Companheiro foge cabisbaixo e receoso enquanto as atenccedilotildees do Diabo se voltam para o Fi-

dalgo que vem a chegar

Auto da barca do Inferno 8

DIABO Oulaacute oh jeitoso natildeo queres entrar Natildeo eacute que isto seja a Arca de Noeacute mas pareces

um pavatildeo Anda daiacute

BTNEXT 9

Cena 2

Auto da barca do Inferno 10

Com grande pompa aproxima-se da barca do Diabo um grande senhor das melhores famiacutelias

vestido a preceito

FIDALGO Oh senhor para onde vai esta barca

DIABO Esta barca Vai para um siacutetio caloroso e cheio de festa Poderaacutes bronzear a tua bela

epiderme comer uns belos churrascos e fazer umas belas fogueiras

FIDALGO Parece-me bem mas e o mais importante haacute laacute senhoritas e margarittas

DIABO AHAHA Senhoritas O que natildeo falta eacute senhoritas mas estatildeo reservadas para mim

Margaritas Farei uma bebida com a tua gordura que seraacute muito melhor AHAHAHA O que te

espera eacute nada mais nada menos que uma vida miseraacutevel e infernal AHAHAHA

FIDALGO Vida miseraacutevel Mas vocecirc sabe quem eu sou Digo-lhe soacute que eu poderia com-

prar 10 iates muito melhores que esta espeacutecie de jangada que tem aqui onde vocecirc mesmo seria

meu criado AH AH AH

DIABO Eu Teu criado Vossa Alteza os seus desejos satildeo uma ordem AHAHAH Os teus

dias de boa vida acabaram Esse teu ar de Senhor do Mundo agrada-me mas natildeo penses que

vais andar por aqui a pavonear-te Muito pelo contraacuterio nas minhas matildeos vais desejar nunca

BTNEXT 11

ter morrido

FIDALGO Tenha tento na liacutengua sim Com quem pensa que estaacute a falar

DIABO Com um futuro escravo eacute claro Soacute tu eacute que ainda natildeo o compreendeste Talvez para

fazeres maior fortuna tambeacutem tenhas vendido parte do teu pequeno conjunto de neuroacutenios

AHAHAHA

O Fidalgo sentindo-se indignado e tendo visto ao longe uma outra barca dirige-se para laacute

Nesta aguarda-o um Anjo

FIDALGO Que barca eacute esta Exijo saber para onde vai essa barca e quem vocecirc eacute Antes que

me desrespeite fique sabendo que fui tatildeo rico em vida que poderei comprar a minha estadia no

paraiacuteso

ANJO De facto eacute mesmo esse o destino desta barca Mas soacute caacute entra quem merece e foi con-

vidado As entradas para o paraiacuteso natildeo se compram merecem-se

FIDALGO Tenho a certeza que natildeo diraacute isso depois de lhe oferecer uma barca a motor Daacute

muito menos trabalho do que essas madeiras aiacute para remar

ANJO O teu dinheiro ficou na terra dos vivos aqui eacutes soacute tu e a tua arrogacircncia Nesta barca

Auto da barca do Inferno 12

jamais entraraacutes pois natildeo eacutes digno dela

FIDALGO O meu dinheiro ficou na terra dos vivos Claro que ficou Laacute eu sabia que o meu

banco ia ficar sem dinheiro e como tal usei-o todo O meu gestor eacute que me deveria dizer para eu

natildeo gastar mais dinheiro Faccedila favor de me deixar ir agrave terra dos vivos buscar o meu dinheiro ao

meu outro banco

ANJO Como tu me fazes rir com a tua ignoracircncia Ainda natildeo viste que este barco natildeo foi

feito para ti Aqui natildeo haacute lugar para ti porque soacute caacute entram as pessoas de bom coraccedilatildeo aquelas

que tanto fizeram por um mundo melhor E tu Quem eacutes Que fizeste Eacutes um tirano arrogante

triste idiota e ainda por cima estuacutepido Passaste a vida inteira a desprezar os mais pequenos

nunca ajudaste quem mais necessitava e agora julgavas que te deixava entrar assim Natildeo Aqui

natildeo entras porque o teu lugar eacute no inferno um local apropriado para homens do teu caraacutecter

O Fidalgo achou que o Anjo nem merecia resposta a tais insultos pois natildeo iria discutir com al-

gueacutem que decerto natildeo compreendia a sua superioridade Voltou por isso agrave Barca do Diabo

DIABO AHAHA Olha quem voltou Sua Excelecircncia perdeu-se Ou digamos que achou o

Jardim do Eacuteden muito como dizer Murcho Claro que o nosso Santo amigo simpatizou con-

BTNEXT 13

sigo ao ponto de dispensar a sua bela companhia em prol aqui da minha pessoa AHAHA

FIDALGO Apenas vim para aqui porque aquela barca estaacute ainda mais suja e ainda eacute mais

pequena que a sua Olha laacute faz-me o favor de matar os meus empregados para virem aqui remar

esta carcaccedila flutuante

DIABO Com essa vontade toda de assassiacutenio um dia ainda me tiras o lugar Eacutes caacute dos meus

como presente aqui tens este par de remos AHAHA

FIDALGO Estaacute-me a ver a pocircr as matildeos nesses pedaccedilos de madeira cheios de lascas Ponha-

se vocecirc a remar que o tempo urge

DIABO Coitadinho Ainda me estragas as matildeos com esses remos AHAHA Deixa mas eacute

de ser arrogante e admite natildeo tens outra escolha senatildeo embarcar aqui Oh Natildeo fiques triste

porque te garanto que o inferno tem coisas maravilhosas - poderaacutes por exemplo apreciar a

minha agradaacutevel companhia AHAHAHA

O Fidalgo contrariado senta-se num canto da barca do Diabo

Auto da barca do Inferno 14

Cena 3

BTNEXT 15

Entretanto vem-se aproximando da Barca do Diabo o Onzeneiro uma pessoa de modos simples

mas que fez uma fortuna agrave custa dos outros A sua vestimenta eacute algo peculiar pois tenta-se passar

por algueacutem com classe sem de facto a ter De uma forma rude interpela o Diabo

ONZENEIRO Prsquora onde bai este barco

DIABO ldquoBairdquo para um siacutetio onde natildeo chove nem faz frio talvez vaacutes gostar da estadia Mas

diz-me porque demoraste tanto tempo a vir E Porque vens nessa figura

ONZENEIRO Talbez goste mas diz-me caacute mesmo prsquora onde bai isto que eu natildeo gosto caacute de

meias palabras Ainda agora morri natildeo quero que me enganem por ser nobiccedilo

DIABO Natildeo te preocupes que esta barca eacute do teu interesse pois vai para um siacutetio onde ateacute

os ldquonabosrdquo satildeo aceites AHAHA

ONZENEIRO Podes-me chamar o que quiseres pois na minha bida habituei-me a oubir

muita cousa Diz-me laacute de uma bez para onde bai isto

DIABO AHAHAH Tens uma maneira muito esquisita de falar Estou a ldquoberrdquo que ldquobourdquo ter

que ldquobizerrdquo Ahhh Esta natildeo era Entatildeo esta ldquovarca bai prordquo Inferno

ONZENEIRO lsquoTatildeo esta barca natildeo eacute prsquora mim

Auto da barca do Inferno 16

Aborrecido o Onzeneiro dirige-se para a barca do Anjo mas ainda ouve o Diabo dizer em alta

voz para se fazer ouvir

DIABO ldquoBai laacute bairdquo Mas olha que ainda ldquoboltasrdquo caacute AHAHA

Sem querer mais conversas com o Diabo o Onzeneiro vai sempre andando sem olhar para traacutes

ateacute que chega agrave barca do Anjo

ONZENEIRO Oh da barca Prsquora onde bai esta Narsquome diga que tambeacutem bai prsquora o inferno

ANJO Natildeo Esta barca tem como destino o paraiacuteso E tu Que fazes aqui

ONZENEIRO Paraiacuteso Isso eacute o ceacuteu nrsquoeacute lsquoTatildeo eacute mesmo prsquorarsquoqui que bou Arranje-me aiacute

uma escada prsquora eu subir prsquora o barco

ANJO Nem penses nisso Mais depressa te arranjava um bilhete para o inferno do que uma

escada para subires para aqui

ONZENEIRO Porquecirc Eu quero ir neste

ANJO Queres mas natildeo vais Neste barco soacute entra quem tiver bom coraccedilatildeo algo que tu jaacute

perdeste haacute muito tempo se eacute que alguma vez tiveste

ONZENEIRO E eu tenho a culpa de ter tido um ABC

BTNEXT 17

ANJO Um ABC Meu Deus Tens tanto de riqueza como tens de ignoracircncia Passaste a

vida inteira a explorar os mais pobres foste egoiacutesta e ganancioso nunca foste capaz de fazer um

uacutenico gesto de bondade e achavas que poderias entrar assim Nem penses Vai na outra barca

pois coaduna-se melhor contigo

ONZENEIRO Explorar os mais pobres lsquoTaacutes a falar dos ucranianos que contratei Eu lsquotaba-

lhes a fazer um fabor

O Anjo nem se digna a responder pelo que o Onzeneiro resolve retornar agrave Barca do Diabo

DIABO Olha olha mrsquoeste artista de volta Jaacute ldquobiesterdquo Tiveste saudades minhas Ou ali o

Santo fartou-se do teu ldquoveliacutessimordquo paleio

ONZENEIRO A culpa foi dos ucranianos

DIABO Bahh natildeo os culpes que eles tecircm bela carne de churrasco Sozinho com essa tua

ldquosabedoriardquo natildeo vais a lado nenhum mas aqui no meu barquinho vais longe para muito longe

AHAHAH

O Onzeneiro entra resignado na barca do Diabo e cruza-se com o Fidalgo

ONZENEIRO lsquoTatildeo mas o socircr tambeacutem lsquotaacute aqui Fico contente em poder lsquotar aqui com sua

Auto da barca do Inferno 18

excelentiacutessima

FIDALGO Mas quem eacute vocecirc Sabe com quem estaacute a falar Dei-lhe autorizaccedilatildeo para me diri-

gir a palavra Dei Afaste-se de mim que apesar de estarmos na mesma barca vocecirc continua

a ser um saloio ao peacute de mim

DIABO AHAHAHA Que ricos saloios que eu levo aqui para o Inferno AHAHAHAH

BTNEXT 19

Cena 4

Auto da barca do Inferno 20

Agrave Barca do Diabo chega desta vez o Parvo

PARVO Olha um barco agrave vela que giro XIQIQIQI Oh cornudo para onde vai este batel

DIABO Este batel Este batel vai para um local maravilhoso que vais adorar Entra que eu

mostro-te que local eacute esse

PARVO Jaacute sei Eacute a DisneyLand Sempre quis ir laacute ver o Pateta para lhe dizer que eacute burro

E fala com ratos e patos Caacute para mim haacute ali algum truque que a mim ningueacutem me engana

XIQIQIQI Jaacute a minha matildee dizia que eu era parvo mas natildeo era estuacutepido XIQIQIQI Espera laacute

mas tu eacutes quem

DIABO Entatildeo natildeo sabes quem eu sou Eu sou um tipo porreiro que te vai levar a um local

espectacular Vais ver que eacute muito melhor que a DisneyLand Entra que eu mostro-te que local

eacute esse

PARVO Porra jaacute pareces uma vespa sempre a zumbir o mesmo oh cornudo Estava a pen-

sar que eras o tio patinhas mascarado de carneiro XIQIQIQI Afinal que local eacute esse

DIABO Esse local eacute o inferno e garanto-te que eacute um siacutetio muito giro Queres entrar para ver

PARVO Inferno Isso eacute a terra dos cornudos como tu natildeo eacute A minha matildee disse-me que o

BTNEXT 21

meu pai eacute que era cornudo por causa do padeiro do carteiro e do Mas eu natildeo Sempre fiz como

a minha matildee me disse portanto natildeo sou cornudo XIQIQIQI Vou-me embora carneiro que eu

natildeo quero ir para o jardim zooloacutegico XIQIQIQI

DIABO AHAHA Bela famiacutelia a tua O pai eacute cornudo A matildee gosta muito de comer patildeo e

escrever cartas AHAHAHA O filho um parvo dos diabos Uma coisa te digo a tua companhia

ia ser deveras animada

O Parvo resolve dar meia volta e vai ter com o Anjo

PARVO Olha um paacutessaro Corvo natildeo eacute certamente porque eacute da cor do burro quando foge

XIQIQIQI Oh pardal a tua gaivota vai para onde

ANJO Este barco tem como destino o paraiacuteso E tu Quem eacutes e o que fazes aqui

PARVO O paacutessaro fala Eacute um papagaio XIQIQIQI Eu sou Joane mais conhecido por ldquopar-

vordquo desde que a minha matildee me chamou isso agrave frente dos miuacutedos da escola Mas parvos satildeo eles

porque ldquoquem diz eacute quem eacuterdquo XIQIQIQI

ANJO Estaacutes enganado Eu natildeo sou nenhum paacutessaro mas sim um anjo que tem como missatildeo

guiar todos aqueles que merecerem entrar no paraiacuteso Laacute soacute entram as pessoas que em vida lu-

Auto da barca do Inferno 22

taram por um mundo melhor aquelas que sempre acreditaram no amor na partilha na justiccedila

e na amizade Eacute no fundo uma recompensa que natildeo estaacute ao alcance de todos

PARVO Jaacute percebi porque que eacute que estaacutes sozinho soacute aceitas pessoas imaginaacuterias XIQIQ-

IQI Serei eu real

ANJO De facto poucos satildeo aqueles que conseguem entrar no paraiacuteso pois poucos satildeo aqueles

que ao longo da vida conseguem conservar a bondade e a pureza no coraccedilatildeo Tu mereces entrar

porque em todos os teus actos demonstraste sempre uma pureza encantadora e nunca maacute inten-

ccedilatildeo Se quiseres podes entrar

Dito isto o Parvo fica junto agrave Barca do Anjo sem contudo entrar

BTNEXT 23

Cena 5

Auto da barca do Inferno 24

A caminhar para a barca do Diabo aparece o Sapateiro com a sua mala onde tem todos os uten-

siacutelios necessaacuterios ao seu ofiacutecio

SAPATEIRO Olha olha o Carnaval chegou mais cedo OHOHOHOH

Daacute um soco ao de leve nas costas do Diabo mostrando um sorriso de gozo

DIABO Eh laacute Pai Natal eacutes tu Essas tralhas que trazes aiacute satildeo para mim Olha que natildeo sei

coser sapatos AHAHAH

SAPATEIRO Tralhas Estaacute aqui uma vida inteira de trabalho e dedicaccedilatildeo a ajudar os out-

ros

DIABO AHAHAH eacutes como eu Realmente daacute muito trabalho educar os escravos agrave reacutedea

curta para que nos obedeccedilam e nos beijem os peacutes mas satildeo todos uns mal-agradecidos Soacute ldquosa-

pateiricesrdquo eacute que sabem fazer

SAPATEIRO Deves-me estar a confundir com alguns dos teus servos soacute pode

Eu passei a minha vida inteira a ajudar os outros muitas vezes agrave chuva ou ao sol tudo trab-

alho honesto

DIABO Pois acredito que sim Eras o uacutenico sapateiro laacute da santa terrinha aliaacutes o uacutenico

BTNEXT 25

sapateiro de CLASSE Muita ldquoboca de sapordquo vi andar por aiacute graccedilas agrave tua ldquohonestidaderdquo

SAPATEIRO Deves querer festa comigo deves Com essa roupa nota-se logo quem eacutes e agrave

distacircncia Tu eacute que tens a fama de seres mau e tu eacute que te aproveitas dos outros natildeo queiras

colocar todos no mesmo saco e achar que satildeo como tu

DIABO Mau eu Nada disso sou simplesmente Um justiceiro Todos aqueles que levam

uma vida cheia de maldades tecircm lugar reservado no Inferno E isso deixa-me completamente

feliz Adoro ver o horror na cara das pobres alminhas quando as torturo AHAHAH

SAPATEIRO Fartei-me de ir agrave missa sou um bom filho de Deus portanto acho que vou ali

ao outro lado pedir agravequele senhor de branco que me leve

DIABO Ide ide mas natildeo teraacutes sorte O pessoal daquelas bandas gosta de andar descalccedilo

AHAHAH

SAPATEIRO Sei fazer umas sandaacutelias de apoio leve que os vai ajudar a proteger tal como

eu protejo os meus peacutes imaculados Veraacutes como serei bastante uacutetil por aquelas bandas Eu mereccedilo

o ceacuteu

Dito isto o sapateiro afasta-se e vai em direcccedilatildeo ao Anjo

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 8: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da barca do Inferno 8

DIABO Oulaacute oh jeitoso natildeo queres entrar Natildeo eacute que isto seja a Arca de Noeacute mas pareces

um pavatildeo Anda daiacute

BTNEXT 9

Cena 2

Auto da barca do Inferno 10

Com grande pompa aproxima-se da barca do Diabo um grande senhor das melhores famiacutelias

vestido a preceito

FIDALGO Oh senhor para onde vai esta barca

DIABO Esta barca Vai para um siacutetio caloroso e cheio de festa Poderaacutes bronzear a tua bela

epiderme comer uns belos churrascos e fazer umas belas fogueiras

FIDALGO Parece-me bem mas e o mais importante haacute laacute senhoritas e margarittas

DIABO AHAHA Senhoritas O que natildeo falta eacute senhoritas mas estatildeo reservadas para mim

Margaritas Farei uma bebida com a tua gordura que seraacute muito melhor AHAHAHA O que te

espera eacute nada mais nada menos que uma vida miseraacutevel e infernal AHAHAHA

FIDALGO Vida miseraacutevel Mas vocecirc sabe quem eu sou Digo-lhe soacute que eu poderia com-

prar 10 iates muito melhores que esta espeacutecie de jangada que tem aqui onde vocecirc mesmo seria

meu criado AH AH AH

DIABO Eu Teu criado Vossa Alteza os seus desejos satildeo uma ordem AHAHAH Os teus

dias de boa vida acabaram Esse teu ar de Senhor do Mundo agrada-me mas natildeo penses que

vais andar por aqui a pavonear-te Muito pelo contraacuterio nas minhas matildeos vais desejar nunca

BTNEXT 11

ter morrido

FIDALGO Tenha tento na liacutengua sim Com quem pensa que estaacute a falar

DIABO Com um futuro escravo eacute claro Soacute tu eacute que ainda natildeo o compreendeste Talvez para

fazeres maior fortuna tambeacutem tenhas vendido parte do teu pequeno conjunto de neuroacutenios

AHAHAHA

O Fidalgo sentindo-se indignado e tendo visto ao longe uma outra barca dirige-se para laacute

Nesta aguarda-o um Anjo

FIDALGO Que barca eacute esta Exijo saber para onde vai essa barca e quem vocecirc eacute Antes que

me desrespeite fique sabendo que fui tatildeo rico em vida que poderei comprar a minha estadia no

paraiacuteso

ANJO De facto eacute mesmo esse o destino desta barca Mas soacute caacute entra quem merece e foi con-

vidado As entradas para o paraiacuteso natildeo se compram merecem-se

FIDALGO Tenho a certeza que natildeo diraacute isso depois de lhe oferecer uma barca a motor Daacute

muito menos trabalho do que essas madeiras aiacute para remar

ANJO O teu dinheiro ficou na terra dos vivos aqui eacutes soacute tu e a tua arrogacircncia Nesta barca

Auto da barca do Inferno 12

jamais entraraacutes pois natildeo eacutes digno dela

FIDALGO O meu dinheiro ficou na terra dos vivos Claro que ficou Laacute eu sabia que o meu

banco ia ficar sem dinheiro e como tal usei-o todo O meu gestor eacute que me deveria dizer para eu

natildeo gastar mais dinheiro Faccedila favor de me deixar ir agrave terra dos vivos buscar o meu dinheiro ao

meu outro banco

ANJO Como tu me fazes rir com a tua ignoracircncia Ainda natildeo viste que este barco natildeo foi

feito para ti Aqui natildeo haacute lugar para ti porque soacute caacute entram as pessoas de bom coraccedilatildeo aquelas

que tanto fizeram por um mundo melhor E tu Quem eacutes Que fizeste Eacutes um tirano arrogante

triste idiota e ainda por cima estuacutepido Passaste a vida inteira a desprezar os mais pequenos

nunca ajudaste quem mais necessitava e agora julgavas que te deixava entrar assim Natildeo Aqui

natildeo entras porque o teu lugar eacute no inferno um local apropriado para homens do teu caraacutecter

O Fidalgo achou que o Anjo nem merecia resposta a tais insultos pois natildeo iria discutir com al-

gueacutem que decerto natildeo compreendia a sua superioridade Voltou por isso agrave Barca do Diabo

DIABO AHAHA Olha quem voltou Sua Excelecircncia perdeu-se Ou digamos que achou o

Jardim do Eacuteden muito como dizer Murcho Claro que o nosso Santo amigo simpatizou con-

BTNEXT 13

sigo ao ponto de dispensar a sua bela companhia em prol aqui da minha pessoa AHAHA

FIDALGO Apenas vim para aqui porque aquela barca estaacute ainda mais suja e ainda eacute mais

pequena que a sua Olha laacute faz-me o favor de matar os meus empregados para virem aqui remar

esta carcaccedila flutuante

DIABO Com essa vontade toda de assassiacutenio um dia ainda me tiras o lugar Eacutes caacute dos meus

como presente aqui tens este par de remos AHAHA

FIDALGO Estaacute-me a ver a pocircr as matildeos nesses pedaccedilos de madeira cheios de lascas Ponha-

se vocecirc a remar que o tempo urge

DIABO Coitadinho Ainda me estragas as matildeos com esses remos AHAHA Deixa mas eacute

de ser arrogante e admite natildeo tens outra escolha senatildeo embarcar aqui Oh Natildeo fiques triste

porque te garanto que o inferno tem coisas maravilhosas - poderaacutes por exemplo apreciar a

minha agradaacutevel companhia AHAHAHA

O Fidalgo contrariado senta-se num canto da barca do Diabo

Auto da barca do Inferno 14

Cena 3

BTNEXT 15

Entretanto vem-se aproximando da Barca do Diabo o Onzeneiro uma pessoa de modos simples

mas que fez uma fortuna agrave custa dos outros A sua vestimenta eacute algo peculiar pois tenta-se passar

por algueacutem com classe sem de facto a ter De uma forma rude interpela o Diabo

ONZENEIRO Prsquora onde bai este barco

DIABO ldquoBairdquo para um siacutetio onde natildeo chove nem faz frio talvez vaacutes gostar da estadia Mas

diz-me porque demoraste tanto tempo a vir E Porque vens nessa figura

ONZENEIRO Talbez goste mas diz-me caacute mesmo prsquora onde bai isto que eu natildeo gosto caacute de

meias palabras Ainda agora morri natildeo quero que me enganem por ser nobiccedilo

DIABO Natildeo te preocupes que esta barca eacute do teu interesse pois vai para um siacutetio onde ateacute

os ldquonabosrdquo satildeo aceites AHAHA

ONZENEIRO Podes-me chamar o que quiseres pois na minha bida habituei-me a oubir

muita cousa Diz-me laacute de uma bez para onde bai isto

DIABO AHAHAH Tens uma maneira muito esquisita de falar Estou a ldquoberrdquo que ldquobourdquo ter

que ldquobizerrdquo Ahhh Esta natildeo era Entatildeo esta ldquovarca bai prordquo Inferno

ONZENEIRO lsquoTatildeo esta barca natildeo eacute prsquora mim

Auto da barca do Inferno 16

Aborrecido o Onzeneiro dirige-se para a barca do Anjo mas ainda ouve o Diabo dizer em alta

voz para se fazer ouvir

DIABO ldquoBai laacute bairdquo Mas olha que ainda ldquoboltasrdquo caacute AHAHA

Sem querer mais conversas com o Diabo o Onzeneiro vai sempre andando sem olhar para traacutes

ateacute que chega agrave barca do Anjo

ONZENEIRO Oh da barca Prsquora onde bai esta Narsquome diga que tambeacutem bai prsquora o inferno

ANJO Natildeo Esta barca tem como destino o paraiacuteso E tu Que fazes aqui

ONZENEIRO Paraiacuteso Isso eacute o ceacuteu nrsquoeacute lsquoTatildeo eacute mesmo prsquorarsquoqui que bou Arranje-me aiacute

uma escada prsquora eu subir prsquora o barco

ANJO Nem penses nisso Mais depressa te arranjava um bilhete para o inferno do que uma

escada para subires para aqui

ONZENEIRO Porquecirc Eu quero ir neste

ANJO Queres mas natildeo vais Neste barco soacute entra quem tiver bom coraccedilatildeo algo que tu jaacute

perdeste haacute muito tempo se eacute que alguma vez tiveste

ONZENEIRO E eu tenho a culpa de ter tido um ABC

BTNEXT 17

ANJO Um ABC Meu Deus Tens tanto de riqueza como tens de ignoracircncia Passaste a

vida inteira a explorar os mais pobres foste egoiacutesta e ganancioso nunca foste capaz de fazer um

uacutenico gesto de bondade e achavas que poderias entrar assim Nem penses Vai na outra barca

pois coaduna-se melhor contigo

ONZENEIRO Explorar os mais pobres lsquoTaacutes a falar dos ucranianos que contratei Eu lsquotaba-

lhes a fazer um fabor

O Anjo nem se digna a responder pelo que o Onzeneiro resolve retornar agrave Barca do Diabo

DIABO Olha olha mrsquoeste artista de volta Jaacute ldquobiesterdquo Tiveste saudades minhas Ou ali o

Santo fartou-se do teu ldquoveliacutessimordquo paleio

ONZENEIRO A culpa foi dos ucranianos

DIABO Bahh natildeo os culpes que eles tecircm bela carne de churrasco Sozinho com essa tua

ldquosabedoriardquo natildeo vais a lado nenhum mas aqui no meu barquinho vais longe para muito longe

AHAHAH

O Onzeneiro entra resignado na barca do Diabo e cruza-se com o Fidalgo

ONZENEIRO lsquoTatildeo mas o socircr tambeacutem lsquotaacute aqui Fico contente em poder lsquotar aqui com sua

Auto da barca do Inferno 18

excelentiacutessima

FIDALGO Mas quem eacute vocecirc Sabe com quem estaacute a falar Dei-lhe autorizaccedilatildeo para me diri-

gir a palavra Dei Afaste-se de mim que apesar de estarmos na mesma barca vocecirc continua

a ser um saloio ao peacute de mim

DIABO AHAHAHA Que ricos saloios que eu levo aqui para o Inferno AHAHAHAH

BTNEXT 19

Cena 4

Auto da barca do Inferno 20

Agrave Barca do Diabo chega desta vez o Parvo

PARVO Olha um barco agrave vela que giro XIQIQIQI Oh cornudo para onde vai este batel

DIABO Este batel Este batel vai para um local maravilhoso que vais adorar Entra que eu

mostro-te que local eacute esse

PARVO Jaacute sei Eacute a DisneyLand Sempre quis ir laacute ver o Pateta para lhe dizer que eacute burro

E fala com ratos e patos Caacute para mim haacute ali algum truque que a mim ningueacutem me engana

XIQIQIQI Jaacute a minha matildee dizia que eu era parvo mas natildeo era estuacutepido XIQIQIQI Espera laacute

mas tu eacutes quem

DIABO Entatildeo natildeo sabes quem eu sou Eu sou um tipo porreiro que te vai levar a um local

espectacular Vais ver que eacute muito melhor que a DisneyLand Entra que eu mostro-te que local

eacute esse

PARVO Porra jaacute pareces uma vespa sempre a zumbir o mesmo oh cornudo Estava a pen-

sar que eras o tio patinhas mascarado de carneiro XIQIQIQI Afinal que local eacute esse

DIABO Esse local eacute o inferno e garanto-te que eacute um siacutetio muito giro Queres entrar para ver

PARVO Inferno Isso eacute a terra dos cornudos como tu natildeo eacute A minha matildee disse-me que o

BTNEXT 21

meu pai eacute que era cornudo por causa do padeiro do carteiro e do Mas eu natildeo Sempre fiz como

a minha matildee me disse portanto natildeo sou cornudo XIQIQIQI Vou-me embora carneiro que eu

natildeo quero ir para o jardim zooloacutegico XIQIQIQI

DIABO AHAHA Bela famiacutelia a tua O pai eacute cornudo A matildee gosta muito de comer patildeo e

escrever cartas AHAHAHA O filho um parvo dos diabos Uma coisa te digo a tua companhia

ia ser deveras animada

O Parvo resolve dar meia volta e vai ter com o Anjo

PARVO Olha um paacutessaro Corvo natildeo eacute certamente porque eacute da cor do burro quando foge

XIQIQIQI Oh pardal a tua gaivota vai para onde

ANJO Este barco tem como destino o paraiacuteso E tu Quem eacutes e o que fazes aqui

PARVO O paacutessaro fala Eacute um papagaio XIQIQIQI Eu sou Joane mais conhecido por ldquopar-

vordquo desde que a minha matildee me chamou isso agrave frente dos miuacutedos da escola Mas parvos satildeo eles

porque ldquoquem diz eacute quem eacuterdquo XIQIQIQI

ANJO Estaacutes enganado Eu natildeo sou nenhum paacutessaro mas sim um anjo que tem como missatildeo

guiar todos aqueles que merecerem entrar no paraiacuteso Laacute soacute entram as pessoas que em vida lu-

Auto da barca do Inferno 22

taram por um mundo melhor aquelas que sempre acreditaram no amor na partilha na justiccedila

e na amizade Eacute no fundo uma recompensa que natildeo estaacute ao alcance de todos

PARVO Jaacute percebi porque que eacute que estaacutes sozinho soacute aceitas pessoas imaginaacuterias XIQIQ-

IQI Serei eu real

ANJO De facto poucos satildeo aqueles que conseguem entrar no paraiacuteso pois poucos satildeo aqueles

que ao longo da vida conseguem conservar a bondade e a pureza no coraccedilatildeo Tu mereces entrar

porque em todos os teus actos demonstraste sempre uma pureza encantadora e nunca maacute inten-

ccedilatildeo Se quiseres podes entrar

Dito isto o Parvo fica junto agrave Barca do Anjo sem contudo entrar

BTNEXT 23

Cena 5

Auto da barca do Inferno 24

A caminhar para a barca do Diabo aparece o Sapateiro com a sua mala onde tem todos os uten-

siacutelios necessaacuterios ao seu ofiacutecio

SAPATEIRO Olha olha o Carnaval chegou mais cedo OHOHOHOH

Daacute um soco ao de leve nas costas do Diabo mostrando um sorriso de gozo

DIABO Eh laacute Pai Natal eacutes tu Essas tralhas que trazes aiacute satildeo para mim Olha que natildeo sei

coser sapatos AHAHAH

SAPATEIRO Tralhas Estaacute aqui uma vida inteira de trabalho e dedicaccedilatildeo a ajudar os out-

ros

DIABO AHAHAH eacutes como eu Realmente daacute muito trabalho educar os escravos agrave reacutedea

curta para que nos obedeccedilam e nos beijem os peacutes mas satildeo todos uns mal-agradecidos Soacute ldquosa-

pateiricesrdquo eacute que sabem fazer

SAPATEIRO Deves-me estar a confundir com alguns dos teus servos soacute pode

Eu passei a minha vida inteira a ajudar os outros muitas vezes agrave chuva ou ao sol tudo trab-

alho honesto

DIABO Pois acredito que sim Eras o uacutenico sapateiro laacute da santa terrinha aliaacutes o uacutenico

BTNEXT 25

sapateiro de CLASSE Muita ldquoboca de sapordquo vi andar por aiacute graccedilas agrave tua ldquohonestidaderdquo

SAPATEIRO Deves querer festa comigo deves Com essa roupa nota-se logo quem eacutes e agrave

distacircncia Tu eacute que tens a fama de seres mau e tu eacute que te aproveitas dos outros natildeo queiras

colocar todos no mesmo saco e achar que satildeo como tu

DIABO Mau eu Nada disso sou simplesmente Um justiceiro Todos aqueles que levam

uma vida cheia de maldades tecircm lugar reservado no Inferno E isso deixa-me completamente

feliz Adoro ver o horror na cara das pobres alminhas quando as torturo AHAHAH

SAPATEIRO Fartei-me de ir agrave missa sou um bom filho de Deus portanto acho que vou ali

ao outro lado pedir agravequele senhor de branco que me leve

DIABO Ide ide mas natildeo teraacutes sorte O pessoal daquelas bandas gosta de andar descalccedilo

AHAHAH

SAPATEIRO Sei fazer umas sandaacutelias de apoio leve que os vai ajudar a proteger tal como

eu protejo os meus peacutes imaculados Veraacutes como serei bastante uacutetil por aquelas bandas Eu mereccedilo

o ceacuteu

Dito isto o sapateiro afasta-se e vai em direcccedilatildeo ao Anjo

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 9: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 9

Cena 2

Auto da barca do Inferno 10

Com grande pompa aproxima-se da barca do Diabo um grande senhor das melhores famiacutelias

vestido a preceito

FIDALGO Oh senhor para onde vai esta barca

DIABO Esta barca Vai para um siacutetio caloroso e cheio de festa Poderaacutes bronzear a tua bela

epiderme comer uns belos churrascos e fazer umas belas fogueiras

FIDALGO Parece-me bem mas e o mais importante haacute laacute senhoritas e margarittas

DIABO AHAHA Senhoritas O que natildeo falta eacute senhoritas mas estatildeo reservadas para mim

Margaritas Farei uma bebida com a tua gordura que seraacute muito melhor AHAHAHA O que te

espera eacute nada mais nada menos que uma vida miseraacutevel e infernal AHAHAHA

FIDALGO Vida miseraacutevel Mas vocecirc sabe quem eu sou Digo-lhe soacute que eu poderia com-

prar 10 iates muito melhores que esta espeacutecie de jangada que tem aqui onde vocecirc mesmo seria

meu criado AH AH AH

DIABO Eu Teu criado Vossa Alteza os seus desejos satildeo uma ordem AHAHAH Os teus

dias de boa vida acabaram Esse teu ar de Senhor do Mundo agrada-me mas natildeo penses que

vais andar por aqui a pavonear-te Muito pelo contraacuterio nas minhas matildeos vais desejar nunca

BTNEXT 11

ter morrido

FIDALGO Tenha tento na liacutengua sim Com quem pensa que estaacute a falar

DIABO Com um futuro escravo eacute claro Soacute tu eacute que ainda natildeo o compreendeste Talvez para

fazeres maior fortuna tambeacutem tenhas vendido parte do teu pequeno conjunto de neuroacutenios

AHAHAHA

O Fidalgo sentindo-se indignado e tendo visto ao longe uma outra barca dirige-se para laacute

Nesta aguarda-o um Anjo

FIDALGO Que barca eacute esta Exijo saber para onde vai essa barca e quem vocecirc eacute Antes que

me desrespeite fique sabendo que fui tatildeo rico em vida que poderei comprar a minha estadia no

paraiacuteso

ANJO De facto eacute mesmo esse o destino desta barca Mas soacute caacute entra quem merece e foi con-

vidado As entradas para o paraiacuteso natildeo se compram merecem-se

FIDALGO Tenho a certeza que natildeo diraacute isso depois de lhe oferecer uma barca a motor Daacute

muito menos trabalho do que essas madeiras aiacute para remar

ANJO O teu dinheiro ficou na terra dos vivos aqui eacutes soacute tu e a tua arrogacircncia Nesta barca

Auto da barca do Inferno 12

jamais entraraacutes pois natildeo eacutes digno dela

FIDALGO O meu dinheiro ficou na terra dos vivos Claro que ficou Laacute eu sabia que o meu

banco ia ficar sem dinheiro e como tal usei-o todo O meu gestor eacute que me deveria dizer para eu

natildeo gastar mais dinheiro Faccedila favor de me deixar ir agrave terra dos vivos buscar o meu dinheiro ao

meu outro banco

ANJO Como tu me fazes rir com a tua ignoracircncia Ainda natildeo viste que este barco natildeo foi

feito para ti Aqui natildeo haacute lugar para ti porque soacute caacute entram as pessoas de bom coraccedilatildeo aquelas

que tanto fizeram por um mundo melhor E tu Quem eacutes Que fizeste Eacutes um tirano arrogante

triste idiota e ainda por cima estuacutepido Passaste a vida inteira a desprezar os mais pequenos

nunca ajudaste quem mais necessitava e agora julgavas que te deixava entrar assim Natildeo Aqui

natildeo entras porque o teu lugar eacute no inferno um local apropriado para homens do teu caraacutecter

O Fidalgo achou que o Anjo nem merecia resposta a tais insultos pois natildeo iria discutir com al-

gueacutem que decerto natildeo compreendia a sua superioridade Voltou por isso agrave Barca do Diabo

DIABO AHAHA Olha quem voltou Sua Excelecircncia perdeu-se Ou digamos que achou o

Jardim do Eacuteden muito como dizer Murcho Claro que o nosso Santo amigo simpatizou con-

BTNEXT 13

sigo ao ponto de dispensar a sua bela companhia em prol aqui da minha pessoa AHAHA

FIDALGO Apenas vim para aqui porque aquela barca estaacute ainda mais suja e ainda eacute mais

pequena que a sua Olha laacute faz-me o favor de matar os meus empregados para virem aqui remar

esta carcaccedila flutuante

DIABO Com essa vontade toda de assassiacutenio um dia ainda me tiras o lugar Eacutes caacute dos meus

como presente aqui tens este par de remos AHAHA

FIDALGO Estaacute-me a ver a pocircr as matildeos nesses pedaccedilos de madeira cheios de lascas Ponha-

se vocecirc a remar que o tempo urge

DIABO Coitadinho Ainda me estragas as matildeos com esses remos AHAHA Deixa mas eacute

de ser arrogante e admite natildeo tens outra escolha senatildeo embarcar aqui Oh Natildeo fiques triste

porque te garanto que o inferno tem coisas maravilhosas - poderaacutes por exemplo apreciar a

minha agradaacutevel companhia AHAHAHA

O Fidalgo contrariado senta-se num canto da barca do Diabo

Auto da barca do Inferno 14

Cena 3

BTNEXT 15

Entretanto vem-se aproximando da Barca do Diabo o Onzeneiro uma pessoa de modos simples

mas que fez uma fortuna agrave custa dos outros A sua vestimenta eacute algo peculiar pois tenta-se passar

por algueacutem com classe sem de facto a ter De uma forma rude interpela o Diabo

ONZENEIRO Prsquora onde bai este barco

DIABO ldquoBairdquo para um siacutetio onde natildeo chove nem faz frio talvez vaacutes gostar da estadia Mas

diz-me porque demoraste tanto tempo a vir E Porque vens nessa figura

ONZENEIRO Talbez goste mas diz-me caacute mesmo prsquora onde bai isto que eu natildeo gosto caacute de

meias palabras Ainda agora morri natildeo quero que me enganem por ser nobiccedilo

DIABO Natildeo te preocupes que esta barca eacute do teu interesse pois vai para um siacutetio onde ateacute

os ldquonabosrdquo satildeo aceites AHAHA

ONZENEIRO Podes-me chamar o que quiseres pois na minha bida habituei-me a oubir

muita cousa Diz-me laacute de uma bez para onde bai isto

DIABO AHAHAH Tens uma maneira muito esquisita de falar Estou a ldquoberrdquo que ldquobourdquo ter

que ldquobizerrdquo Ahhh Esta natildeo era Entatildeo esta ldquovarca bai prordquo Inferno

ONZENEIRO lsquoTatildeo esta barca natildeo eacute prsquora mim

Auto da barca do Inferno 16

Aborrecido o Onzeneiro dirige-se para a barca do Anjo mas ainda ouve o Diabo dizer em alta

voz para se fazer ouvir

DIABO ldquoBai laacute bairdquo Mas olha que ainda ldquoboltasrdquo caacute AHAHA

Sem querer mais conversas com o Diabo o Onzeneiro vai sempre andando sem olhar para traacutes

ateacute que chega agrave barca do Anjo

ONZENEIRO Oh da barca Prsquora onde bai esta Narsquome diga que tambeacutem bai prsquora o inferno

ANJO Natildeo Esta barca tem como destino o paraiacuteso E tu Que fazes aqui

ONZENEIRO Paraiacuteso Isso eacute o ceacuteu nrsquoeacute lsquoTatildeo eacute mesmo prsquorarsquoqui que bou Arranje-me aiacute

uma escada prsquora eu subir prsquora o barco

ANJO Nem penses nisso Mais depressa te arranjava um bilhete para o inferno do que uma

escada para subires para aqui

ONZENEIRO Porquecirc Eu quero ir neste

ANJO Queres mas natildeo vais Neste barco soacute entra quem tiver bom coraccedilatildeo algo que tu jaacute

perdeste haacute muito tempo se eacute que alguma vez tiveste

ONZENEIRO E eu tenho a culpa de ter tido um ABC

BTNEXT 17

ANJO Um ABC Meu Deus Tens tanto de riqueza como tens de ignoracircncia Passaste a

vida inteira a explorar os mais pobres foste egoiacutesta e ganancioso nunca foste capaz de fazer um

uacutenico gesto de bondade e achavas que poderias entrar assim Nem penses Vai na outra barca

pois coaduna-se melhor contigo

ONZENEIRO Explorar os mais pobres lsquoTaacutes a falar dos ucranianos que contratei Eu lsquotaba-

lhes a fazer um fabor

O Anjo nem se digna a responder pelo que o Onzeneiro resolve retornar agrave Barca do Diabo

DIABO Olha olha mrsquoeste artista de volta Jaacute ldquobiesterdquo Tiveste saudades minhas Ou ali o

Santo fartou-se do teu ldquoveliacutessimordquo paleio

ONZENEIRO A culpa foi dos ucranianos

DIABO Bahh natildeo os culpes que eles tecircm bela carne de churrasco Sozinho com essa tua

ldquosabedoriardquo natildeo vais a lado nenhum mas aqui no meu barquinho vais longe para muito longe

AHAHAH

O Onzeneiro entra resignado na barca do Diabo e cruza-se com o Fidalgo

ONZENEIRO lsquoTatildeo mas o socircr tambeacutem lsquotaacute aqui Fico contente em poder lsquotar aqui com sua

Auto da barca do Inferno 18

excelentiacutessima

FIDALGO Mas quem eacute vocecirc Sabe com quem estaacute a falar Dei-lhe autorizaccedilatildeo para me diri-

gir a palavra Dei Afaste-se de mim que apesar de estarmos na mesma barca vocecirc continua

a ser um saloio ao peacute de mim

DIABO AHAHAHA Que ricos saloios que eu levo aqui para o Inferno AHAHAHAH

BTNEXT 19

Cena 4

Auto da barca do Inferno 20

Agrave Barca do Diabo chega desta vez o Parvo

PARVO Olha um barco agrave vela que giro XIQIQIQI Oh cornudo para onde vai este batel

DIABO Este batel Este batel vai para um local maravilhoso que vais adorar Entra que eu

mostro-te que local eacute esse

PARVO Jaacute sei Eacute a DisneyLand Sempre quis ir laacute ver o Pateta para lhe dizer que eacute burro

E fala com ratos e patos Caacute para mim haacute ali algum truque que a mim ningueacutem me engana

XIQIQIQI Jaacute a minha matildee dizia que eu era parvo mas natildeo era estuacutepido XIQIQIQI Espera laacute

mas tu eacutes quem

DIABO Entatildeo natildeo sabes quem eu sou Eu sou um tipo porreiro que te vai levar a um local

espectacular Vais ver que eacute muito melhor que a DisneyLand Entra que eu mostro-te que local

eacute esse

PARVO Porra jaacute pareces uma vespa sempre a zumbir o mesmo oh cornudo Estava a pen-

sar que eras o tio patinhas mascarado de carneiro XIQIQIQI Afinal que local eacute esse

DIABO Esse local eacute o inferno e garanto-te que eacute um siacutetio muito giro Queres entrar para ver

PARVO Inferno Isso eacute a terra dos cornudos como tu natildeo eacute A minha matildee disse-me que o

BTNEXT 21

meu pai eacute que era cornudo por causa do padeiro do carteiro e do Mas eu natildeo Sempre fiz como

a minha matildee me disse portanto natildeo sou cornudo XIQIQIQI Vou-me embora carneiro que eu

natildeo quero ir para o jardim zooloacutegico XIQIQIQI

DIABO AHAHA Bela famiacutelia a tua O pai eacute cornudo A matildee gosta muito de comer patildeo e

escrever cartas AHAHAHA O filho um parvo dos diabos Uma coisa te digo a tua companhia

ia ser deveras animada

O Parvo resolve dar meia volta e vai ter com o Anjo

PARVO Olha um paacutessaro Corvo natildeo eacute certamente porque eacute da cor do burro quando foge

XIQIQIQI Oh pardal a tua gaivota vai para onde

ANJO Este barco tem como destino o paraiacuteso E tu Quem eacutes e o que fazes aqui

PARVO O paacutessaro fala Eacute um papagaio XIQIQIQI Eu sou Joane mais conhecido por ldquopar-

vordquo desde que a minha matildee me chamou isso agrave frente dos miuacutedos da escola Mas parvos satildeo eles

porque ldquoquem diz eacute quem eacuterdquo XIQIQIQI

ANJO Estaacutes enganado Eu natildeo sou nenhum paacutessaro mas sim um anjo que tem como missatildeo

guiar todos aqueles que merecerem entrar no paraiacuteso Laacute soacute entram as pessoas que em vida lu-

Auto da barca do Inferno 22

taram por um mundo melhor aquelas que sempre acreditaram no amor na partilha na justiccedila

e na amizade Eacute no fundo uma recompensa que natildeo estaacute ao alcance de todos

PARVO Jaacute percebi porque que eacute que estaacutes sozinho soacute aceitas pessoas imaginaacuterias XIQIQ-

IQI Serei eu real

ANJO De facto poucos satildeo aqueles que conseguem entrar no paraiacuteso pois poucos satildeo aqueles

que ao longo da vida conseguem conservar a bondade e a pureza no coraccedilatildeo Tu mereces entrar

porque em todos os teus actos demonstraste sempre uma pureza encantadora e nunca maacute inten-

ccedilatildeo Se quiseres podes entrar

Dito isto o Parvo fica junto agrave Barca do Anjo sem contudo entrar

BTNEXT 23

Cena 5

Auto da barca do Inferno 24

A caminhar para a barca do Diabo aparece o Sapateiro com a sua mala onde tem todos os uten-

siacutelios necessaacuterios ao seu ofiacutecio

SAPATEIRO Olha olha o Carnaval chegou mais cedo OHOHOHOH

Daacute um soco ao de leve nas costas do Diabo mostrando um sorriso de gozo

DIABO Eh laacute Pai Natal eacutes tu Essas tralhas que trazes aiacute satildeo para mim Olha que natildeo sei

coser sapatos AHAHAH

SAPATEIRO Tralhas Estaacute aqui uma vida inteira de trabalho e dedicaccedilatildeo a ajudar os out-

ros

DIABO AHAHAH eacutes como eu Realmente daacute muito trabalho educar os escravos agrave reacutedea

curta para que nos obedeccedilam e nos beijem os peacutes mas satildeo todos uns mal-agradecidos Soacute ldquosa-

pateiricesrdquo eacute que sabem fazer

SAPATEIRO Deves-me estar a confundir com alguns dos teus servos soacute pode

Eu passei a minha vida inteira a ajudar os outros muitas vezes agrave chuva ou ao sol tudo trab-

alho honesto

DIABO Pois acredito que sim Eras o uacutenico sapateiro laacute da santa terrinha aliaacutes o uacutenico

BTNEXT 25

sapateiro de CLASSE Muita ldquoboca de sapordquo vi andar por aiacute graccedilas agrave tua ldquohonestidaderdquo

SAPATEIRO Deves querer festa comigo deves Com essa roupa nota-se logo quem eacutes e agrave

distacircncia Tu eacute que tens a fama de seres mau e tu eacute que te aproveitas dos outros natildeo queiras

colocar todos no mesmo saco e achar que satildeo como tu

DIABO Mau eu Nada disso sou simplesmente Um justiceiro Todos aqueles que levam

uma vida cheia de maldades tecircm lugar reservado no Inferno E isso deixa-me completamente

feliz Adoro ver o horror na cara das pobres alminhas quando as torturo AHAHAH

SAPATEIRO Fartei-me de ir agrave missa sou um bom filho de Deus portanto acho que vou ali

ao outro lado pedir agravequele senhor de branco que me leve

DIABO Ide ide mas natildeo teraacutes sorte O pessoal daquelas bandas gosta de andar descalccedilo

AHAHAH

SAPATEIRO Sei fazer umas sandaacutelias de apoio leve que os vai ajudar a proteger tal como

eu protejo os meus peacutes imaculados Veraacutes como serei bastante uacutetil por aquelas bandas Eu mereccedilo

o ceacuteu

Dito isto o sapateiro afasta-se e vai em direcccedilatildeo ao Anjo

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 10: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da barca do Inferno 10

Com grande pompa aproxima-se da barca do Diabo um grande senhor das melhores famiacutelias

vestido a preceito

FIDALGO Oh senhor para onde vai esta barca

DIABO Esta barca Vai para um siacutetio caloroso e cheio de festa Poderaacutes bronzear a tua bela

epiderme comer uns belos churrascos e fazer umas belas fogueiras

FIDALGO Parece-me bem mas e o mais importante haacute laacute senhoritas e margarittas

DIABO AHAHA Senhoritas O que natildeo falta eacute senhoritas mas estatildeo reservadas para mim

Margaritas Farei uma bebida com a tua gordura que seraacute muito melhor AHAHAHA O que te

espera eacute nada mais nada menos que uma vida miseraacutevel e infernal AHAHAHA

FIDALGO Vida miseraacutevel Mas vocecirc sabe quem eu sou Digo-lhe soacute que eu poderia com-

prar 10 iates muito melhores que esta espeacutecie de jangada que tem aqui onde vocecirc mesmo seria

meu criado AH AH AH

DIABO Eu Teu criado Vossa Alteza os seus desejos satildeo uma ordem AHAHAH Os teus

dias de boa vida acabaram Esse teu ar de Senhor do Mundo agrada-me mas natildeo penses que

vais andar por aqui a pavonear-te Muito pelo contraacuterio nas minhas matildeos vais desejar nunca

BTNEXT 11

ter morrido

FIDALGO Tenha tento na liacutengua sim Com quem pensa que estaacute a falar

DIABO Com um futuro escravo eacute claro Soacute tu eacute que ainda natildeo o compreendeste Talvez para

fazeres maior fortuna tambeacutem tenhas vendido parte do teu pequeno conjunto de neuroacutenios

AHAHAHA

O Fidalgo sentindo-se indignado e tendo visto ao longe uma outra barca dirige-se para laacute

Nesta aguarda-o um Anjo

FIDALGO Que barca eacute esta Exijo saber para onde vai essa barca e quem vocecirc eacute Antes que

me desrespeite fique sabendo que fui tatildeo rico em vida que poderei comprar a minha estadia no

paraiacuteso

ANJO De facto eacute mesmo esse o destino desta barca Mas soacute caacute entra quem merece e foi con-

vidado As entradas para o paraiacuteso natildeo se compram merecem-se

FIDALGO Tenho a certeza que natildeo diraacute isso depois de lhe oferecer uma barca a motor Daacute

muito menos trabalho do que essas madeiras aiacute para remar

ANJO O teu dinheiro ficou na terra dos vivos aqui eacutes soacute tu e a tua arrogacircncia Nesta barca

Auto da barca do Inferno 12

jamais entraraacutes pois natildeo eacutes digno dela

FIDALGO O meu dinheiro ficou na terra dos vivos Claro que ficou Laacute eu sabia que o meu

banco ia ficar sem dinheiro e como tal usei-o todo O meu gestor eacute que me deveria dizer para eu

natildeo gastar mais dinheiro Faccedila favor de me deixar ir agrave terra dos vivos buscar o meu dinheiro ao

meu outro banco

ANJO Como tu me fazes rir com a tua ignoracircncia Ainda natildeo viste que este barco natildeo foi

feito para ti Aqui natildeo haacute lugar para ti porque soacute caacute entram as pessoas de bom coraccedilatildeo aquelas

que tanto fizeram por um mundo melhor E tu Quem eacutes Que fizeste Eacutes um tirano arrogante

triste idiota e ainda por cima estuacutepido Passaste a vida inteira a desprezar os mais pequenos

nunca ajudaste quem mais necessitava e agora julgavas que te deixava entrar assim Natildeo Aqui

natildeo entras porque o teu lugar eacute no inferno um local apropriado para homens do teu caraacutecter

O Fidalgo achou que o Anjo nem merecia resposta a tais insultos pois natildeo iria discutir com al-

gueacutem que decerto natildeo compreendia a sua superioridade Voltou por isso agrave Barca do Diabo

DIABO AHAHA Olha quem voltou Sua Excelecircncia perdeu-se Ou digamos que achou o

Jardim do Eacuteden muito como dizer Murcho Claro que o nosso Santo amigo simpatizou con-

BTNEXT 13

sigo ao ponto de dispensar a sua bela companhia em prol aqui da minha pessoa AHAHA

FIDALGO Apenas vim para aqui porque aquela barca estaacute ainda mais suja e ainda eacute mais

pequena que a sua Olha laacute faz-me o favor de matar os meus empregados para virem aqui remar

esta carcaccedila flutuante

DIABO Com essa vontade toda de assassiacutenio um dia ainda me tiras o lugar Eacutes caacute dos meus

como presente aqui tens este par de remos AHAHA

FIDALGO Estaacute-me a ver a pocircr as matildeos nesses pedaccedilos de madeira cheios de lascas Ponha-

se vocecirc a remar que o tempo urge

DIABO Coitadinho Ainda me estragas as matildeos com esses remos AHAHA Deixa mas eacute

de ser arrogante e admite natildeo tens outra escolha senatildeo embarcar aqui Oh Natildeo fiques triste

porque te garanto que o inferno tem coisas maravilhosas - poderaacutes por exemplo apreciar a

minha agradaacutevel companhia AHAHAHA

O Fidalgo contrariado senta-se num canto da barca do Diabo

Auto da barca do Inferno 14

Cena 3

BTNEXT 15

Entretanto vem-se aproximando da Barca do Diabo o Onzeneiro uma pessoa de modos simples

mas que fez uma fortuna agrave custa dos outros A sua vestimenta eacute algo peculiar pois tenta-se passar

por algueacutem com classe sem de facto a ter De uma forma rude interpela o Diabo

ONZENEIRO Prsquora onde bai este barco

DIABO ldquoBairdquo para um siacutetio onde natildeo chove nem faz frio talvez vaacutes gostar da estadia Mas

diz-me porque demoraste tanto tempo a vir E Porque vens nessa figura

ONZENEIRO Talbez goste mas diz-me caacute mesmo prsquora onde bai isto que eu natildeo gosto caacute de

meias palabras Ainda agora morri natildeo quero que me enganem por ser nobiccedilo

DIABO Natildeo te preocupes que esta barca eacute do teu interesse pois vai para um siacutetio onde ateacute

os ldquonabosrdquo satildeo aceites AHAHA

ONZENEIRO Podes-me chamar o que quiseres pois na minha bida habituei-me a oubir

muita cousa Diz-me laacute de uma bez para onde bai isto

DIABO AHAHAH Tens uma maneira muito esquisita de falar Estou a ldquoberrdquo que ldquobourdquo ter

que ldquobizerrdquo Ahhh Esta natildeo era Entatildeo esta ldquovarca bai prordquo Inferno

ONZENEIRO lsquoTatildeo esta barca natildeo eacute prsquora mim

Auto da barca do Inferno 16

Aborrecido o Onzeneiro dirige-se para a barca do Anjo mas ainda ouve o Diabo dizer em alta

voz para se fazer ouvir

DIABO ldquoBai laacute bairdquo Mas olha que ainda ldquoboltasrdquo caacute AHAHA

Sem querer mais conversas com o Diabo o Onzeneiro vai sempre andando sem olhar para traacutes

ateacute que chega agrave barca do Anjo

ONZENEIRO Oh da barca Prsquora onde bai esta Narsquome diga que tambeacutem bai prsquora o inferno

ANJO Natildeo Esta barca tem como destino o paraiacuteso E tu Que fazes aqui

ONZENEIRO Paraiacuteso Isso eacute o ceacuteu nrsquoeacute lsquoTatildeo eacute mesmo prsquorarsquoqui que bou Arranje-me aiacute

uma escada prsquora eu subir prsquora o barco

ANJO Nem penses nisso Mais depressa te arranjava um bilhete para o inferno do que uma

escada para subires para aqui

ONZENEIRO Porquecirc Eu quero ir neste

ANJO Queres mas natildeo vais Neste barco soacute entra quem tiver bom coraccedilatildeo algo que tu jaacute

perdeste haacute muito tempo se eacute que alguma vez tiveste

ONZENEIRO E eu tenho a culpa de ter tido um ABC

BTNEXT 17

ANJO Um ABC Meu Deus Tens tanto de riqueza como tens de ignoracircncia Passaste a

vida inteira a explorar os mais pobres foste egoiacutesta e ganancioso nunca foste capaz de fazer um

uacutenico gesto de bondade e achavas que poderias entrar assim Nem penses Vai na outra barca

pois coaduna-se melhor contigo

ONZENEIRO Explorar os mais pobres lsquoTaacutes a falar dos ucranianos que contratei Eu lsquotaba-

lhes a fazer um fabor

O Anjo nem se digna a responder pelo que o Onzeneiro resolve retornar agrave Barca do Diabo

DIABO Olha olha mrsquoeste artista de volta Jaacute ldquobiesterdquo Tiveste saudades minhas Ou ali o

Santo fartou-se do teu ldquoveliacutessimordquo paleio

ONZENEIRO A culpa foi dos ucranianos

DIABO Bahh natildeo os culpes que eles tecircm bela carne de churrasco Sozinho com essa tua

ldquosabedoriardquo natildeo vais a lado nenhum mas aqui no meu barquinho vais longe para muito longe

AHAHAH

O Onzeneiro entra resignado na barca do Diabo e cruza-se com o Fidalgo

ONZENEIRO lsquoTatildeo mas o socircr tambeacutem lsquotaacute aqui Fico contente em poder lsquotar aqui com sua

Auto da barca do Inferno 18

excelentiacutessima

FIDALGO Mas quem eacute vocecirc Sabe com quem estaacute a falar Dei-lhe autorizaccedilatildeo para me diri-

gir a palavra Dei Afaste-se de mim que apesar de estarmos na mesma barca vocecirc continua

a ser um saloio ao peacute de mim

DIABO AHAHAHA Que ricos saloios que eu levo aqui para o Inferno AHAHAHAH

BTNEXT 19

Cena 4

Auto da barca do Inferno 20

Agrave Barca do Diabo chega desta vez o Parvo

PARVO Olha um barco agrave vela que giro XIQIQIQI Oh cornudo para onde vai este batel

DIABO Este batel Este batel vai para um local maravilhoso que vais adorar Entra que eu

mostro-te que local eacute esse

PARVO Jaacute sei Eacute a DisneyLand Sempre quis ir laacute ver o Pateta para lhe dizer que eacute burro

E fala com ratos e patos Caacute para mim haacute ali algum truque que a mim ningueacutem me engana

XIQIQIQI Jaacute a minha matildee dizia que eu era parvo mas natildeo era estuacutepido XIQIQIQI Espera laacute

mas tu eacutes quem

DIABO Entatildeo natildeo sabes quem eu sou Eu sou um tipo porreiro que te vai levar a um local

espectacular Vais ver que eacute muito melhor que a DisneyLand Entra que eu mostro-te que local

eacute esse

PARVO Porra jaacute pareces uma vespa sempre a zumbir o mesmo oh cornudo Estava a pen-

sar que eras o tio patinhas mascarado de carneiro XIQIQIQI Afinal que local eacute esse

DIABO Esse local eacute o inferno e garanto-te que eacute um siacutetio muito giro Queres entrar para ver

PARVO Inferno Isso eacute a terra dos cornudos como tu natildeo eacute A minha matildee disse-me que o

BTNEXT 21

meu pai eacute que era cornudo por causa do padeiro do carteiro e do Mas eu natildeo Sempre fiz como

a minha matildee me disse portanto natildeo sou cornudo XIQIQIQI Vou-me embora carneiro que eu

natildeo quero ir para o jardim zooloacutegico XIQIQIQI

DIABO AHAHA Bela famiacutelia a tua O pai eacute cornudo A matildee gosta muito de comer patildeo e

escrever cartas AHAHAHA O filho um parvo dos diabos Uma coisa te digo a tua companhia

ia ser deveras animada

O Parvo resolve dar meia volta e vai ter com o Anjo

PARVO Olha um paacutessaro Corvo natildeo eacute certamente porque eacute da cor do burro quando foge

XIQIQIQI Oh pardal a tua gaivota vai para onde

ANJO Este barco tem como destino o paraiacuteso E tu Quem eacutes e o que fazes aqui

PARVO O paacutessaro fala Eacute um papagaio XIQIQIQI Eu sou Joane mais conhecido por ldquopar-

vordquo desde que a minha matildee me chamou isso agrave frente dos miuacutedos da escola Mas parvos satildeo eles

porque ldquoquem diz eacute quem eacuterdquo XIQIQIQI

ANJO Estaacutes enganado Eu natildeo sou nenhum paacutessaro mas sim um anjo que tem como missatildeo

guiar todos aqueles que merecerem entrar no paraiacuteso Laacute soacute entram as pessoas que em vida lu-

Auto da barca do Inferno 22

taram por um mundo melhor aquelas que sempre acreditaram no amor na partilha na justiccedila

e na amizade Eacute no fundo uma recompensa que natildeo estaacute ao alcance de todos

PARVO Jaacute percebi porque que eacute que estaacutes sozinho soacute aceitas pessoas imaginaacuterias XIQIQ-

IQI Serei eu real

ANJO De facto poucos satildeo aqueles que conseguem entrar no paraiacuteso pois poucos satildeo aqueles

que ao longo da vida conseguem conservar a bondade e a pureza no coraccedilatildeo Tu mereces entrar

porque em todos os teus actos demonstraste sempre uma pureza encantadora e nunca maacute inten-

ccedilatildeo Se quiseres podes entrar

Dito isto o Parvo fica junto agrave Barca do Anjo sem contudo entrar

BTNEXT 23

Cena 5

Auto da barca do Inferno 24

A caminhar para a barca do Diabo aparece o Sapateiro com a sua mala onde tem todos os uten-

siacutelios necessaacuterios ao seu ofiacutecio

SAPATEIRO Olha olha o Carnaval chegou mais cedo OHOHOHOH

Daacute um soco ao de leve nas costas do Diabo mostrando um sorriso de gozo

DIABO Eh laacute Pai Natal eacutes tu Essas tralhas que trazes aiacute satildeo para mim Olha que natildeo sei

coser sapatos AHAHAH

SAPATEIRO Tralhas Estaacute aqui uma vida inteira de trabalho e dedicaccedilatildeo a ajudar os out-

ros

DIABO AHAHAH eacutes como eu Realmente daacute muito trabalho educar os escravos agrave reacutedea

curta para que nos obedeccedilam e nos beijem os peacutes mas satildeo todos uns mal-agradecidos Soacute ldquosa-

pateiricesrdquo eacute que sabem fazer

SAPATEIRO Deves-me estar a confundir com alguns dos teus servos soacute pode

Eu passei a minha vida inteira a ajudar os outros muitas vezes agrave chuva ou ao sol tudo trab-

alho honesto

DIABO Pois acredito que sim Eras o uacutenico sapateiro laacute da santa terrinha aliaacutes o uacutenico

BTNEXT 25

sapateiro de CLASSE Muita ldquoboca de sapordquo vi andar por aiacute graccedilas agrave tua ldquohonestidaderdquo

SAPATEIRO Deves querer festa comigo deves Com essa roupa nota-se logo quem eacutes e agrave

distacircncia Tu eacute que tens a fama de seres mau e tu eacute que te aproveitas dos outros natildeo queiras

colocar todos no mesmo saco e achar que satildeo como tu

DIABO Mau eu Nada disso sou simplesmente Um justiceiro Todos aqueles que levam

uma vida cheia de maldades tecircm lugar reservado no Inferno E isso deixa-me completamente

feliz Adoro ver o horror na cara das pobres alminhas quando as torturo AHAHAH

SAPATEIRO Fartei-me de ir agrave missa sou um bom filho de Deus portanto acho que vou ali

ao outro lado pedir agravequele senhor de branco que me leve

DIABO Ide ide mas natildeo teraacutes sorte O pessoal daquelas bandas gosta de andar descalccedilo

AHAHAH

SAPATEIRO Sei fazer umas sandaacutelias de apoio leve que os vai ajudar a proteger tal como

eu protejo os meus peacutes imaculados Veraacutes como serei bastante uacutetil por aquelas bandas Eu mereccedilo

o ceacuteu

Dito isto o sapateiro afasta-se e vai em direcccedilatildeo ao Anjo

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 11: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 11

ter morrido

FIDALGO Tenha tento na liacutengua sim Com quem pensa que estaacute a falar

DIABO Com um futuro escravo eacute claro Soacute tu eacute que ainda natildeo o compreendeste Talvez para

fazeres maior fortuna tambeacutem tenhas vendido parte do teu pequeno conjunto de neuroacutenios

AHAHAHA

O Fidalgo sentindo-se indignado e tendo visto ao longe uma outra barca dirige-se para laacute

Nesta aguarda-o um Anjo

FIDALGO Que barca eacute esta Exijo saber para onde vai essa barca e quem vocecirc eacute Antes que

me desrespeite fique sabendo que fui tatildeo rico em vida que poderei comprar a minha estadia no

paraiacuteso

ANJO De facto eacute mesmo esse o destino desta barca Mas soacute caacute entra quem merece e foi con-

vidado As entradas para o paraiacuteso natildeo se compram merecem-se

FIDALGO Tenho a certeza que natildeo diraacute isso depois de lhe oferecer uma barca a motor Daacute

muito menos trabalho do que essas madeiras aiacute para remar

ANJO O teu dinheiro ficou na terra dos vivos aqui eacutes soacute tu e a tua arrogacircncia Nesta barca

Auto da barca do Inferno 12

jamais entraraacutes pois natildeo eacutes digno dela

FIDALGO O meu dinheiro ficou na terra dos vivos Claro que ficou Laacute eu sabia que o meu

banco ia ficar sem dinheiro e como tal usei-o todo O meu gestor eacute que me deveria dizer para eu

natildeo gastar mais dinheiro Faccedila favor de me deixar ir agrave terra dos vivos buscar o meu dinheiro ao

meu outro banco

ANJO Como tu me fazes rir com a tua ignoracircncia Ainda natildeo viste que este barco natildeo foi

feito para ti Aqui natildeo haacute lugar para ti porque soacute caacute entram as pessoas de bom coraccedilatildeo aquelas

que tanto fizeram por um mundo melhor E tu Quem eacutes Que fizeste Eacutes um tirano arrogante

triste idiota e ainda por cima estuacutepido Passaste a vida inteira a desprezar os mais pequenos

nunca ajudaste quem mais necessitava e agora julgavas que te deixava entrar assim Natildeo Aqui

natildeo entras porque o teu lugar eacute no inferno um local apropriado para homens do teu caraacutecter

O Fidalgo achou que o Anjo nem merecia resposta a tais insultos pois natildeo iria discutir com al-

gueacutem que decerto natildeo compreendia a sua superioridade Voltou por isso agrave Barca do Diabo

DIABO AHAHA Olha quem voltou Sua Excelecircncia perdeu-se Ou digamos que achou o

Jardim do Eacuteden muito como dizer Murcho Claro que o nosso Santo amigo simpatizou con-

BTNEXT 13

sigo ao ponto de dispensar a sua bela companhia em prol aqui da minha pessoa AHAHA

FIDALGO Apenas vim para aqui porque aquela barca estaacute ainda mais suja e ainda eacute mais

pequena que a sua Olha laacute faz-me o favor de matar os meus empregados para virem aqui remar

esta carcaccedila flutuante

DIABO Com essa vontade toda de assassiacutenio um dia ainda me tiras o lugar Eacutes caacute dos meus

como presente aqui tens este par de remos AHAHA

FIDALGO Estaacute-me a ver a pocircr as matildeos nesses pedaccedilos de madeira cheios de lascas Ponha-

se vocecirc a remar que o tempo urge

DIABO Coitadinho Ainda me estragas as matildeos com esses remos AHAHA Deixa mas eacute

de ser arrogante e admite natildeo tens outra escolha senatildeo embarcar aqui Oh Natildeo fiques triste

porque te garanto que o inferno tem coisas maravilhosas - poderaacutes por exemplo apreciar a

minha agradaacutevel companhia AHAHAHA

O Fidalgo contrariado senta-se num canto da barca do Diabo

Auto da barca do Inferno 14

Cena 3

BTNEXT 15

Entretanto vem-se aproximando da Barca do Diabo o Onzeneiro uma pessoa de modos simples

mas que fez uma fortuna agrave custa dos outros A sua vestimenta eacute algo peculiar pois tenta-se passar

por algueacutem com classe sem de facto a ter De uma forma rude interpela o Diabo

ONZENEIRO Prsquora onde bai este barco

DIABO ldquoBairdquo para um siacutetio onde natildeo chove nem faz frio talvez vaacutes gostar da estadia Mas

diz-me porque demoraste tanto tempo a vir E Porque vens nessa figura

ONZENEIRO Talbez goste mas diz-me caacute mesmo prsquora onde bai isto que eu natildeo gosto caacute de

meias palabras Ainda agora morri natildeo quero que me enganem por ser nobiccedilo

DIABO Natildeo te preocupes que esta barca eacute do teu interesse pois vai para um siacutetio onde ateacute

os ldquonabosrdquo satildeo aceites AHAHA

ONZENEIRO Podes-me chamar o que quiseres pois na minha bida habituei-me a oubir

muita cousa Diz-me laacute de uma bez para onde bai isto

DIABO AHAHAH Tens uma maneira muito esquisita de falar Estou a ldquoberrdquo que ldquobourdquo ter

que ldquobizerrdquo Ahhh Esta natildeo era Entatildeo esta ldquovarca bai prordquo Inferno

ONZENEIRO lsquoTatildeo esta barca natildeo eacute prsquora mim

Auto da barca do Inferno 16

Aborrecido o Onzeneiro dirige-se para a barca do Anjo mas ainda ouve o Diabo dizer em alta

voz para se fazer ouvir

DIABO ldquoBai laacute bairdquo Mas olha que ainda ldquoboltasrdquo caacute AHAHA

Sem querer mais conversas com o Diabo o Onzeneiro vai sempre andando sem olhar para traacutes

ateacute que chega agrave barca do Anjo

ONZENEIRO Oh da barca Prsquora onde bai esta Narsquome diga que tambeacutem bai prsquora o inferno

ANJO Natildeo Esta barca tem como destino o paraiacuteso E tu Que fazes aqui

ONZENEIRO Paraiacuteso Isso eacute o ceacuteu nrsquoeacute lsquoTatildeo eacute mesmo prsquorarsquoqui que bou Arranje-me aiacute

uma escada prsquora eu subir prsquora o barco

ANJO Nem penses nisso Mais depressa te arranjava um bilhete para o inferno do que uma

escada para subires para aqui

ONZENEIRO Porquecirc Eu quero ir neste

ANJO Queres mas natildeo vais Neste barco soacute entra quem tiver bom coraccedilatildeo algo que tu jaacute

perdeste haacute muito tempo se eacute que alguma vez tiveste

ONZENEIRO E eu tenho a culpa de ter tido um ABC

BTNEXT 17

ANJO Um ABC Meu Deus Tens tanto de riqueza como tens de ignoracircncia Passaste a

vida inteira a explorar os mais pobres foste egoiacutesta e ganancioso nunca foste capaz de fazer um

uacutenico gesto de bondade e achavas que poderias entrar assim Nem penses Vai na outra barca

pois coaduna-se melhor contigo

ONZENEIRO Explorar os mais pobres lsquoTaacutes a falar dos ucranianos que contratei Eu lsquotaba-

lhes a fazer um fabor

O Anjo nem se digna a responder pelo que o Onzeneiro resolve retornar agrave Barca do Diabo

DIABO Olha olha mrsquoeste artista de volta Jaacute ldquobiesterdquo Tiveste saudades minhas Ou ali o

Santo fartou-se do teu ldquoveliacutessimordquo paleio

ONZENEIRO A culpa foi dos ucranianos

DIABO Bahh natildeo os culpes que eles tecircm bela carne de churrasco Sozinho com essa tua

ldquosabedoriardquo natildeo vais a lado nenhum mas aqui no meu barquinho vais longe para muito longe

AHAHAH

O Onzeneiro entra resignado na barca do Diabo e cruza-se com o Fidalgo

ONZENEIRO lsquoTatildeo mas o socircr tambeacutem lsquotaacute aqui Fico contente em poder lsquotar aqui com sua

Auto da barca do Inferno 18

excelentiacutessima

FIDALGO Mas quem eacute vocecirc Sabe com quem estaacute a falar Dei-lhe autorizaccedilatildeo para me diri-

gir a palavra Dei Afaste-se de mim que apesar de estarmos na mesma barca vocecirc continua

a ser um saloio ao peacute de mim

DIABO AHAHAHA Que ricos saloios que eu levo aqui para o Inferno AHAHAHAH

BTNEXT 19

Cena 4

Auto da barca do Inferno 20

Agrave Barca do Diabo chega desta vez o Parvo

PARVO Olha um barco agrave vela que giro XIQIQIQI Oh cornudo para onde vai este batel

DIABO Este batel Este batel vai para um local maravilhoso que vais adorar Entra que eu

mostro-te que local eacute esse

PARVO Jaacute sei Eacute a DisneyLand Sempre quis ir laacute ver o Pateta para lhe dizer que eacute burro

E fala com ratos e patos Caacute para mim haacute ali algum truque que a mim ningueacutem me engana

XIQIQIQI Jaacute a minha matildee dizia que eu era parvo mas natildeo era estuacutepido XIQIQIQI Espera laacute

mas tu eacutes quem

DIABO Entatildeo natildeo sabes quem eu sou Eu sou um tipo porreiro que te vai levar a um local

espectacular Vais ver que eacute muito melhor que a DisneyLand Entra que eu mostro-te que local

eacute esse

PARVO Porra jaacute pareces uma vespa sempre a zumbir o mesmo oh cornudo Estava a pen-

sar que eras o tio patinhas mascarado de carneiro XIQIQIQI Afinal que local eacute esse

DIABO Esse local eacute o inferno e garanto-te que eacute um siacutetio muito giro Queres entrar para ver

PARVO Inferno Isso eacute a terra dos cornudos como tu natildeo eacute A minha matildee disse-me que o

BTNEXT 21

meu pai eacute que era cornudo por causa do padeiro do carteiro e do Mas eu natildeo Sempre fiz como

a minha matildee me disse portanto natildeo sou cornudo XIQIQIQI Vou-me embora carneiro que eu

natildeo quero ir para o jardim zooloacutegico XIQIQIQI

DIABO AHAHA Bela famiacutelia a tua O pai eacute cornudo A matildee gosta muito de comer patildeo e

escrever cartas AHAHAHA O filho um parvo dos diabos Uma coisa te digo a tua companhia

ia ser deveras animada

O Parvo resolve dar meia volta e vai ter com o Anjo

PARVO Olha um paacutessaro Corvo natildeo eacute certamente porque eacute da cor do burro quando foge

XIQIQIQI Oh pardal a tua gaivota vai para onde

ANJO Este barco tem como destino o paraiacuteso E tu Quem eacutes e o que fazes aqui

PARVO O paacutessaro fala Eacute um papagaio XIQIQIQI Eu sou Joane mais conhecido por ldquopar-

vordquo desde que a minha matildee me chamou isso agrave frente dos miuacutedos da escola Mas parvos satildeo eles

porque ldquoquem diz eacute quem eacuterdquo XIQIQIQI

ANJO Estaacutes enganado Eu natildeo sou nenhum paacutessaro mas sim um anjo que tem como missatildeo

guiar todos aqueles que merecerem entrar no paraiacuteso Laacute soacute entram as pessoas que em vida lu-

Auto da barca do Inferno 22

taram por um mundo melhor aquelas que sempre acreditaram no amor na partilha na justiccedila

e na amizade Eacute no fundo uma recompensa que natildeo estaacute ao alcance de todos

PARVO Jaacute percebi porque que eacute que estaacutes sozinho soacute aceitas pessoas imaginaacuterias XIQIQ-

IQI Serei eu real

ANJO De facto poucos satildeo aqueles que conseguem entrar no paraiacuteso pois poucos satildeo aqueles

que ao longo da vida conseguem conservar a bondade e a pureza no coraccedilatildeo Tu mereces entrar

porque em todos os teus actos demonstraste sempre uma pureza encantadora e nunca maacute inten-

ccedilatildeo Se quiseres podes entrar

Dito isto o Parvo fica junto agrave Barca do Anjo sem contudo entrar

BTNEXT 23

Cena 5

Auto da barca do Inferno 24

A caminhar para a barca do Diabo aparece o Sapateiro com a sua mala onde tem todos os uten-

siacutelios necessaacuterios ao seu ofiacutecio

SAPATEIRO Olha olha o Carnaval chegou mais cedo OHOHOHOH

Daacute um soco ao de leve nas costas do Diabo mostrando um sorriso de gozo

DIABO Eh laacute Pai Natal eacutes tu Essas tralhas que trazes aiacute satildeo para mim Olha que natildeo sei

coser sapatos AHAHAH

SAPATEIRO Tralhas Estaacute aqui uma vida inteira de trabalho e dedicaccedilatildeo a ajudar os out-

ros

DIABO AHAHAH eacutes como eu Realmente daacute muito trabalho educar os escravos agrave reacutedea

curta para que nos obedeccedilam e nos beijem os peacutes mas satildeo todos uns mal-agradecidos Soacute ldquosa-

pateiricesrdquo eacute que sabem fazer

SAPATEIRO Deves-me estar a confundir com alguns dos teus servos soacute pode

Eu passei a minha vida inteira a ajudar os outros muitas vezes agrave chuva ou ao sol tudo trab-

alho honesto

DIABO Pois acredito que sim Eras o uacutenico sapateiro laacute da santa terrinha aliaacutes o uacutenico

BTNEXT 25

sapateiro de CLASSE Muita ldquoboca de sapordquo vi andar por aiacute graccedilas agrave tua ldquohonestidaderdquo

SAPATEIRO Deves querer festa comigo deves Com essa roupa nota-se logo quem eacutes e agrave

distacircncia Tu eacute que tens a fama de seres mau e tu eacute que te aproveitas dos outros natildeo queiras

colocar todos no mesmo saco e achar que satildeo como tu

DIABO Mau eu Nada disso sou simplesmente Um justiceiro Todos aqueles que levam

uma vida cheia de maldades tecircm lugar reservado no Inferno E isso deixa-me completamente

feliz Adoro ver o horror na cara das pobres alminhas quando as torturo AHAHAH

SAPATEIRO Fartei-me de ir agrave missa sou um bom filho de Deus portanto acho que vou ali

ao outro lado pedir agravequele senhor de branco que me leve

DIABO Ide ide mas natildeo teraacutes sorte O pessoal daquelas bandas gosta de andar descalccedilo

AHAHAH

SAPATEIRO Sei fazer umas sandaacutelias de apoio leve que os vai ajudar a proteger tal como

eu protejo os meus peacutes imaculados Veraacutes como serei bastante uacutetil por aquelas bandas Eu mereccedilo

o ceacuteu

Dito isto o sapateiro afasta-se e vai em direcccedilatildeo ao Anjo

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 12: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da barca do Inferno 12

jamais entraraacutes pois natildeo eacutes digno dela

FIDALGO O meu dinheiro ficou na terra dos vivos Claro que ficou Laacute eu sabia que o meu

banco ia ficar sem dinheiro e como tal usei-o todo O meu gestor eacute que me deveria dizer para eu

natildeo gastar mais dinheiro Faccedila favor de me deixar ir agrave terra dos vivos buscar o meu dinheiro ao

meu outro banco

ANJO Como tu me fazes rir com a tua ignoracircncia Ainda natildeo viste que este barco natildeo foi

feito para ti Aqui natildeo haacute lugar para ti porque soacute caacute entram as pessoas de bom coraccedilatildeo aquelas

que tanto fizeram por um mundo melhor E tu Quem eacutes Que fizeste Eacutes um tirano arrogante

triste idiota e ainda por cima estuacutepido Passaste a vida inteira a desprezar os mais pequenos

nunca ajudaste quem mais necessitava e agora julgavas que te deixava entrar assim Natildeo Aqui

natildeo entras porque o teu lugar eacute no inferno um local apropriado para homens do teu caraacutecter

O Fidalgo achou que o Anjo nem merecia resposta a tais insultos pois natildeo iria discutir com al-

gueacutem que decerto natildeo compreendia a sua superioridade Voltou por isso agrave Barca do Diabo

DIABO AHAHA Olha quem voltou Sua Excelecircncia perdeu-se Ou digamos que achou o

Jardim do Eacuteden muito como dizer Murcho Claro que o nosso Santo amigo simpatizou con-

BTNEXT 13

sigo ao ponto de dispensar a sua bela companhia em prol aqui da minha pessoa AHAHA

FIDALGO Apenas vim para aqui porque aquela barca estaacute ainda mais suja e ainda eacute mais

pequena que a sua Olha laacute faz-me o favor de matar os meus empregados para virem aqui remar

esta carcaccedila flutuante

DIABO Com essa vontade toda de assassiacutenio um dia ainda me tiras o lugar Eacutes caacute dos meus

como presente aqui tens este par de remos AHAHA

FIDALGO Estaacute-me a ver a pocircr as matildeos nesses pedaccedilos de madeira cheios de lascas Ponha-

se vocecirc a remar que o tempo urge

DIABO Coitadinho Ainda me estragas as matildeos com esses remos AHAHA Deixa mas eacute

de ser arrogante e admite natildeo tens outra escolha senatildeo embarcar aqui Oh Natildeo fiques triste

porque te garanto que o inferno tem coisas maravilhosas - poderaacutes por exemplo apreciar a

minha agradaacutevel companhia AHAHAHA

O Fidalgo contrariado senta-se num canto da barca do Diabo

Auto da barca do Inferno 14

Cena 3

BTNEXT 15

Entretanto vem-se aproximando da Barca do Diabo o Onzeneiro uma pessoa de modos simples

mas que fez uma fortuna agrave custa dos outros A sua vestimenta eacute algo peculiar pois tenta-se passar

por algueacutem com classe sem de facto a ter De uma forma rude interpela o Diabo

ONZENEIRO Prsquora onde bai este barco

DIABO ldquoBairdquo para um siacutetio onde natildeo chove nem faz frio talvez vaacutes gostar da estadia Mas

diz-me porque demoraste tanto tempo a vir E Porque vens nessa figura

ONZENEIRO Talbez goste mas diz-me caacute mesmo prsquora onde bai isto que eu natildeo gosto caacute de

meias palabras Ainda agora morri natildeo quero que me enganem por ser nobiccedilo

DIABO Natildeo te preocupes que esta barca eacute do teu interesse pois vai para um siacutetio onde ateacute

os ldquonabosrdquo satildeo aceites AHAHA

ONZENEIRO Podes-me chamar o que quiseres pois na minha bida habituei-me a oubir

muita cousa Diz-me laacute de uma bez para onde bai isto

DIABO AHAHAH Tens uma maneira muito esquisita de falar Estou a ldquoberrdquo que ldquobourdquo ter

que ldquobizerrdquo Ahhh Esta natildeo era Entatildeo esta ldquovarca bai prordquo Inferno

ONZENEIRO lsquoTatildeo esta barca natildeo eacute prsquora mim

Auto da barca do Inferno 16

Aborrecido o Onzeneiro dirige-se para a barca do Anjo mas ainda ouve o Diabo dizer em alta

voz para se fazer ouvir

DIABO ldquoBai laacute bairdquo Mas olha que ainda ldquoboltasrdquo caacute AHAHA

Sem querer mais conversas com o Diabo o Onzeneiro vai sempre andando sem olhar para traacutes

ateacute que chega agrave barca do Anjo

ONZENEIRO Oh da barca Prsquora onde bai esta Narsquome diga que tambeacutem bai prsquora o inferno

ANJO Natildeo Esta barca tem como destino o paraiacuteso E tu Que fazes aqui

ONZENEIRO Paraiacuteso Isso eacute o ceacuteu nrsquoeacute lsquoTatildeo eacute mesmo prsquorarsquoqui que bou Arranje-me aiacute

uma escada prsquora eu subir prsquora o barco

ANJO Nem penses nisso Mais depressa te arranjava um bilhete para o inferno do que uma

escada para subires para aqui

ONZENEIRO Porquecirc Eu quero ir neste

ANJO Queres mas natildeo vais Neste barco soacute entra quem tiver bom coraccedilatildeo algo que tu jaacute

perdeste haacute muito tempo se eacute que alguma vez tiveste

ONZENEIRO E eu tenho a culpa de ter tido um ABC

BTNEXT 17

ANJO Um ABC Meu Deus Tens tanto de riqueza como tens de ignoracircncia Passaste a

vida inteira a explorar os mais pobres foste egoiacutesta e ganancioso nunca foste capaz de fazer um

uacutenico gesto de bondade e achavas que poderias entrar assim Nem penses Vai na outra barca

pois coaduna-se melhor contigo

ONZENEIRO Explorar os mais pobres lsquoTaacutes a falar dos ucranianos que contratei Eu lsquotaba-

lhes a fazer um fabor

O Anjo nem se digna a responder pelo que o Onzeneiro resolve retornar agrave Barca do Diabo

DIABO Olha olha mrsquoeste artista de volta Jaacute ldquobiesterdquo Tiveste saudades minhas Ou ali o

Santo fartou-se do teu ldquoveliacutessimordquo paleio

ONZENEIRO A culpa foi dos ucranianos

DIABO Bahh natildeo os culpes que eles tecircm bela carne de churrasco Sozinho com essa tua

ldquosabedoriardquo natildeo vais a lado nenhum mas aqui no meu barquinho vais longe para muito longe

AHAHAH

O Onzeneiro entra resignado na barca do Diabo e cruza-se com o Fidalgo

ONZENEIRO lsquoTatildeo mas o socircr tambeacutem lsquotaacute aqui Fico contente em poder lsquotar aqui com sua

Auto da barca do Inferno 18

excelentiacutessima

FIDALGO Mas quem eacute vocecirc Sabe com quem estaacute a falar Dei-lhe autorizaccedilatildeo para me diri-

gir a palavra Dei Afaste-se de mim que apesar de estarmos na mesma barca vocecirc continua

a ser um saloio ao peacute de mim

DIABO AHAHAHA Que ricos saloios que eu levo aqui para o Inferno AHAHAHAH

BTNEXT 19

Cena 4

Auto da barca do Inferno 20

Agrave Barca do Diabo chega desta vez o Parvo

PARVO Olha um barco agrave vela que giro XIQIQIQI Oh cornudo para onde vai este batel

DIABO Este batel Este batel vai para um local maravilhoso que vais adorar Entra que eu

mostro-te que local eacute esse

PARVO Jaacute sei Eacute a DisneyLand Sempre quis ir laacute ver o Pateta para lhe dizer que eacute burro

E fala com ratos e patos Caacute para mim haacute ali algum truque que a mim ningueacutem me engana

XIQIQIQI Jaacute a minha matildee dizia que eu era parvo mas natildeo era estuacutepido XIQIQIQI Espera laacute

mas tu eacutes quem

DIABO Entatildeo natildeo sabes quem eu sou Eu sou um tipo porreiro que te vai levar a um local

espectacular Vais ver que eacute muito melhor que a DisneyLand Entra que eu mostro-te que local

eacute esse

PARVO Porra jaacute pareces uma vespa sempre a zumbir o mesmo oh cornudo Estava a pen-

sar que eras o tio patinhas mascarado de carneiro XIQIQIQI Afinal que local eacute esse

DIABO Esse local eacute o inferno e garanto-te que eacute um siacutetio muito giro Queres entrar para ver

PARVO Inferno Isso eacute a terra dos cornudos como tu natildeo eacute A minha matildee disse-me que o

BTNEXT 21

meu pai eacute que era cornudo por causa do padeiro do carteiro e do Mas eu natildeo Sempre fiz como

a minha matildee me disse portanto natildeo sou cornudo XIQIQIQI Vou-me embora carneiro que eu

natildeo quero ir para o jardim zooloacutegico XIQIQIQI

DIABO AHAHA Bela famiacutelia a tua O pai eacute cornudo A matildee gosta muito de comer patildeo e

escrever cartas AHAHAHA O filho um parvo dos diabos Uma coisa te digo a tua companhia

ia ser deveras animada

O Parvo resolve dar meia volta e vai ter com o Anjo

PARVO Olha um paacutessaro Corvo natildeo eacute certamente porque eacute da cor do burro quando foge

XIQIQIQI Oh pardal a tua gaivota vai para onde

ANJO Este barco tem como destino o paraiacuteso E tu Quem eacutes e o que fazes aqui

PARVO O paacutessaro fala Eacute um papagaio XIQIQIQI Eu sou Joane mais conhecido por ldquopar-

vordquo desde que a minha matildee me chamou isso agrave frente dos miuacutedos da escola Mas parvos satildeo eles

porque ldquoquem diz eacute quem eacuterdquo XIQIQIQI

ANJO Estaacutes enganado Eu natildeo sou nenhum paacutessaro mas sim um anjo que tem como missatildeo

guiar todos aqueles que merecerem entrar no paraiacuteso Laacute soacute entram as pessoas que em vida lu-

Auto da barca do Inferno 22

taram por um mundo melhor aquelas que sempre acreditaram no amor na partilha na justiccedila

e na amizade Eacute no fundo uma recompensa que natildeo estaacute ao alcance de todos

PARVO Jaacute percebi porque que eacute que estaacutes sozinho soacute aceitas pessoas imaginaacuterias XIQIQ-

IQI Serei eu real

ANJO De facto poucos satildeo aqueles que conseguem entrar no paraiacuteso pois poucos satildeo aqueles

que ao longo da vida conseguem conservar a bondade e a pureza no coraccedilatildeo Tu mereces entrar

porque em todos os teus actos demonstraste sempre uma pureza encantadora e nunca maacute inten-

ccedilatildeo Se quiseres podes entrar

Dito isto o Parvo fica junto agrave Barca do Anjo sem contudo entrar

BTNEXT 23

Cena 5

Auto da barca do Inferno 24

A caminhar para a barca do Diabo aparece o Sapateiro com a sua mala onde tem todos os uten-

siacutelios necessaacuterios ao seu ofiacutecio

SAPATEIRO Olha olha o Carnaval chegou mais cedo OHOHOHOH

Daacute um soco ao de leve nas costas do Diabo mostrando um sorriso de gozo

DIABO Eh laacute Pai Natal eacutes tu Essas tralhas que trazes aiacute satildeo para mim Olha que natildeo sei

coser sapatos AHAHAH

SAPATEIRO Tralhas Estaacute aqui uma vida inteira de trabalho e dedicaccedilatildeo a ajudar os out-

ros

DIABO AHAHAH eacutes como eu Realmente daacute muito trabalho educar os escravos agrave reacutedea

curta para que nos obedeccedilam e nos beijem os peacutes mas satildeo todos uns mal-agradecidos Soacute ldquosa-

pateiricesrdquo eacute que sabem fazer

SAPATEIRO Deves-me estar a confundir com alguns dos teus servos soacute pode

Eu passei a minha vida inteira a ajudar os outros muitas vezes agrave chuva ou ao sol tudo trab-

alho honesto

DIABO Pois acredito que sim Eras o uacutenico sapateiro laacute da santa terrinha aliaacutes o uacutenico

BTNEXT 25

sapateiro de CLASSE Muita ldquoboca de sapordquo vi andar por aiacute graccedilas agrave tua ldquohonestidaderdquo

SAPATEIRO Deves querer festa comigo deves Com essa roupa nota-se logo quem eacutes e agrave

distacircncia Tu eacute que tens a fama de seres mau e tu eacute que te aproveitas dos outros natildeo queiras

colocar todos no mesmo saco e achar que satildeo como tu

DIABO Mau eu Nada disso sou simplesmente Um justiceiro Todos aqueles que levam

uma vida cheia de maldades tecircm lugar reservado no Inferno E isso deixa-me completamente

feliz Adoro ver o horror na cara das pobres alminhas quando as torturo AHAHAH

SAPATEIRO Fartei-me de ir agrave missa sou um bom filho de Deus portanto acho que vou ali

ao outro lado pedir agravequele senhor de branco que me leve

DIABO Ide ide mas natildeo teraacutes sorte O pessoal daquelas bandas gosta de andar descalccedilo

AHAHAH

SAPATEIRO Sei fazer umas sandaacutelias de apoio leve que os vai ajudar a proteger tal como

eu protejo os meus peacutes imaculados Veraacutes como serei bastante uacutetil por aquelas bandas Eu mereccedilo

o ceacuteu

Dito isto o sapateiro afasta-se e vai em direcccedilatildeo ao Anjo

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 13: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 13

sigo ao ponto de dispensar a sua bela companhia em prol aqui da minha pessoa AHAHA

FIDALGO Apenas vim para aqui porque aquela barca estaacute ainda mais suja e ainda eacute mais

pequena que a sua Olha laacute faz-me o favor de matar os meus empregados para virem aqui remar

esta carcaccedila flutuante

DIABO Com essa vontade toda de assassiacutenio um dia ainda me tiras o lugar Eacutes caacute dos meus

como presente aqui tens este par de remos AHAHA

FIDALGO Estaacute-me a ver a pocircr as matildeos nesses pedaccedilos de madeira cheios de lascas Ponha-

se vocecirc a remar que o tempo urge

DIABO Coitadinho Ainda me estragas as matildeos com esses remos AHAHA Deixa mas eacute

de ser arrogante e admite natildeo tens outra escolha senatildeo embarcar aqui Oh Natildeo fiques triste

porque te garanto que o inferno tem coisas maravilhosas - poderaacutes por exemplo apreciar a

minha agradaacutevel companhia AHAHAHA

O Fidalgo contrariado senta-se num canto da barca do Diabo

Auto da barca do Inferno 14

Cena 3

BTNEXT 15

Entretanto vem-se aproximando da Barca do Diabo o Onzeneiro uma pessoa de modos simples

mas que fez uma fortuna agrave custa dos outros A sua vestimenta eacute algo peculiar pois tenta-se passar

por algueacutem com classe sem de facto a ter De uma forma rude interpela o Diabo

ONZENEIRO Prsquora onde bai este barco

DIABO ldquoBairdquo para um siacutetio onde natildeo chove nem faz frio talvez vaacutes gostar da estadia Mas

diz-me porque demoraste tanto tempo a vir E Porque vens nessa figura

ONZENEIRO Talbez goste mas diz-me caacute mesmo prsquora onde bai isto que eu natildeo gosto caacute de

meias palabras Ainda agora morri natildeo quero que me enganem por ser nobiccedilo

DIABO Natildeo te preocupes que esta barca eacute do teu interesse pois vai para um siacutetio onde ateacute

os ldquonabosrdquo satildeo aceites AHAHA

ONZENEIRO Podes-me chamar o que quiseres pois na minha bida habituei-me a oubir

muita cousa Diz-me laacute de uma bez para onde bai isto

DIABO AHAHAH Tens uma maneira muito esquisita de falar Estou a ldquoberrdquo que ldquobourdquo ter

que ldquobizerrdquo Ahhh Esta natildeo era Entatildeo esta ldquovarca bai prordquo Inferno

ONZENEIRO lsquoTatildeo esta barca natildeo eacute prsquora mim

Auto da barca do Inferno 16

Aborrecido o Onzeneiro dirige-se para a barca do Anjo mas ainda ouve o Diabo dizer em alta

voz para se fazer ouvir

DIABO ldquoBai laacute bairdquo Mas olha que ainda ldquoboltasrdquo caacute AHAHA

Sem querer mais conversas com o Diabo o Onzeneiro vai sempre andando sem olhar para traacutes

ateacute que chega agrave barca do Anjo

ONZENEIRO Oh da barca Prsquora onde bai esta Narsquome diga que tambeacutem bai prsquora o inferno

ANJO Natildeo Esta barca tem como destino o paraiacuteso E tu Que fazes aqui

ONZENEIRO Paraiacuteso Isso eacute o ceacuteu nrsquoeacute lsquoTatildeo eacute mesmo prsquorarsquoqui que bou Arranje-me aiacute

uma escada prsquora eu subir prsquora o barco

ANJO Nem penses nisso Mais depressa te arranjava um bilhete para o inferno do que uma

escada para subires para aqui

ONZENEIRO Porquecirc Eu quero ir neste

ANJO Queres mas natildeo vais Neste barco soacute entra quem tiver bom coraccedilatildeo algo que tu jaacute

perdeste haacute muito tempo se eacute que alguma vez tiveste

ONZENEIRO E eu tenho a culpa de ter tido um ABC

BTNEXT 17

ANJO Um ABC Meu Deus Tens tanto de riqueza como tens de ignoracircncia Passaste a

vida inteira a explorar os mais pobres foste egoiacutesta e ganancioso nunca foste capaz de fazer um

uacutenico gesto de bondade e achavas que poderias entrar assim Nem penses Vai na outra barca

pois coaduna-se melhor contigo

ONZENEIRO Explorar os mais pobres lsquoTaacutes a falar dos ucranianos que contratei Eu lsquotaba-

lhes a fazer um fabor

O Anjo nem se digna a responder pelo que o Onzeneiro resolve retornar agrave Barca do Diabo

DIABO Olha olha mrsquoeste artista de volta Jaacute ldquobiesterdquo Tiveste saudades minhas Ou ali o

Santo fartou-se do teu ldquoveliacutessimordquo paleio

ONZENEIRO A culpa foi dos ucranianos

DIABO Bahh natildeo os culpes que eles tecircm bela carne de churrasco Sozinho com essa tua

ldquosabedoriardquo natildeo vais a lado nenhum mas aqui no meu barquinho vais longe para muito longe

AHAHAH

O Onzeneiro entra resignado na barca do Diabo e cruza-se com o Fidalgo

ONZENEIRO lsquoTatildeo mas o socircr tambeacutem lsquotaacute aqui Fico contente em poder lsquotar aqui com sua

Auto da barca do Inferno 18

excelentiacutessima

FIDALGO Mas quem eacute vocecirc Sabe com quem estaacute a falar Dei-lhe autorizaccedilatildeo para me diri-

gir a palavra Dei Afaste-se de mim que apesar de estarmos na mesma barca vocecirc continua

a ser um saloio ao peacute de mim

DIABO AHAHAHA Que ricos saloios que eu levo aqui para o Inferno AHAHAHAH

BTNEXT 19

Cena 4

Auto da barca do Inferno 20

Agrave Barca do Diabo chega desta vez o Parvo

PARVO Olha um barco agrave vela que giro XIQIQIQI Oh cornudo para onde vai este batel

DIABO Este batel Este batel vai para um local maravilhoso que vais adorar Entra que eu

mostro-te que local eacute esse

PARVO Jaacute sei Eacute a DisneyLand Sempre quis ir laacute ver o Pateta para lhe dizer que eacute burro

E fala com ratos e patos Caacute para mim haacute ali algum truque que a mim ningueacutem me engana

XIQIQIQI Jaacute a minha matildee dizia que eu era parvo mas natildeo era estuacutepido XIQIQIQI Espera laacute

mas tu eacutes quem

DIABO Entatildeo natildeo sabes quem eu sou Eu sou um tipo porreiro que te vai levar a um local

espectacular Vais ver que eacute muito melhor que a DisneyLand Entra que eu mostro-te que local

eacute esse

PARVO Porra jaacute pareces uma vespa sempre a zumbir o mesmo oh cornudo Estava a pen-

sar que eras o tio patinhas mascarado de carneiro XIQIQIQI Afinal que local eacute esse

DIABO Esse local eacute o inferno e garanto-te que eacute um siacutetio muito giro Queres entrar para ver

PARVO Inferno Isso eacute a terra dos cornudos como tu natildeo eacute A minha matildee disse-me que o

BTNEXT 21

meu pai eacute que era cornudo por causa do padeiro do carteiro e do Mas eu natildeo Sempre fiz como

a minha matildee me disse portanto natildeo sou cornudo XIQIQIQI Vou-me embora carneiro que eu

natildeo quero ir para o jardim zooloacutegico XIQIQIQI

DIABO AHAHA Bela famiacutelia a tua O pai eacute cornudo A matildee gosta muito de comer patildeo e

escrever cartas AHAHAHA O filho um parvo dos diabos Uma coisa te digo a tua companhia

ia ser deveras animada

O Parvo resolve dar meia volta e vai ter com o Anjo

PARVO Olha um paacutessaro Corvo natildeo eacute certamente porque eacute da cor do burro quando foge

XIQIQIQI Oh pardal a tua gaivota vai para onde

ANJO Este barco tem como destino o paraiacuteso E tu Quem eacutes e o que fazes aqui

PARVO O paacutessaro fala Eacute um papagaio XIQIQIQI Eu sou Joane mais conhecido por ldquopar-

vordquo desde que a minha matildee me chamou isso agrave frente dos miuacutedos da escola Mas parvos satildeo eles

porque ldquoquem diz eacute quem eacuterdquo XIQIQIQI

ANJO Estaacutes enganado Eu natildeo sou nenhum paacutessaro mas sim um anjo que tem como missatildeo

guiar todos aqueles que merecerem entrar no paraiacuteso Laacute soacute entram as pessoas que em vida lu-

Auto da barca do Inferno 22

taram por um mundo melhor aquelas que sempre acreditaram no amor na partilha na justiccedila

e na amizade Eacute no fundo uma recompensa que natildeo estaacute ao alcance de todos

PARVO Jaacute percebi porque que eacute que estaacutes sozinho soacute aceitas pessoas imaginaacuterias XIQIQ-

IQI Serei eu real

ANJO De facto poucos satildeo aqueles que conseguem entrar no paraiacuteso pois poucos satildeo aqueles

que ao longo da vida conseguem conservar a bondade e a pureza no coraccedilatildeo Tu mereces entrar

porque em todos os teus actos demonstraste sempre uma pureza encantadora e nunca maacute inten-

ccedilatildeo Se quiseres podes entrar

Dito isto o Parvo fica junto agrave Barca do Anjo sem contudo entrar

BTNEXT 23

Cena 5

Auto da barca do Inferno 24

A caminhar para a barca do Diabo aparece o Sapateiro com a sua mala onde tem todos os uten-

siacutelios necessaacuterios ao seu ofiacutecio

SAPATEIRO Olha olha o Carnaval chegou mais cedo OHOHOHOH

Daacute um soco ao de leve nas costas do Diabo mostrando um sorriso de gozo

DIABO Eh laacute Pai Natal eacutes tu Essas tralhas que trazes aiacute satildeo para mim Olha que natildeo sei

coser sapatos AHAHAH

SAPATEIRO Tralhas Estaacute aqui uma vida inteira de trabalho e dedicaccedilatildeo a ajudar os out-

ros

DIABO AHAHAH eacutes como eu Realmente daacute muito trabalho educar os escravos agrave reacutedea

curta para que nos obedeccedilam e nos beijem os peacutes mas satildeo todos uns mal-agradecidos Soacute ldquosa-

pateiricesrdquo eacute que sabem fazer

SAPATEIRO Deves-me estar a confundir com alguns dos teus servos soacute pode

Eu passei a minha vida inteira a ajudar os outros muitas vezes agrave chuva ou ao sol tudo trab-

alho honesto

DIABO Pois acredito que sim Eras o uacutenico sapateiro laacute da santa terrinha aliaacutes o uacutenico

BTNEXT 25

sapateiro de CLASSE Muita ldquoboca de sapordquo vi andar por aiacute graccedilas agrave tua ldquohonestidaderdquo

SAPATEIRO Deves querer festa comigo deves Com essa roupa nota-se logo quem eacutes e agrave

distacircncia Tu eacute que tens a fama de seres mau e tu eacute que te aproveitas dos outros natildeo queiras

colocar todos no mesmo saco e achar que satildeo como tu

DIABO Mau eu Nada disso sou simplesmente Um justiceiro Todos aqueles que levam

uma vida cheia de maldades tecircm lugar reservado no Inferno E isso deixa-me completamente

feliz Adoro ver o horror na cara das pobres alminhas quando as torturo AHAHAH

SAPATEIRO Fartei-me de ir agrave missa sou um bom filho de Deus portanto acho que vou ali

ao outro lado pedir agravequele senhor de branco que me leve

DIABO Ide ide mas natildeo teraacutes sorte O pessoal daquelas bandas gosta de andar descalccedilo

AHAHAH

SAPATEIRO Sei fazer umas sandaacutelias de apoio leve que os vai ajudar a proteger tal como

eu protejo os meus peacutes imaculados Veraacutes como serei bastante uacutetil por aquelas bandas Eu mereccedilo

o ceacuteu

Dito isto o sapateiro afasta-se e vai em direcccedilatildeo ao Anjo

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 14: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da barca do Inferno 14

Cena 3

BTNEXT 15

Entretanto vem-se aproximando da Barca do Diabo o Onzeneiro uma pessoa de modos simples

mas que fez uma fortuna agrave custa dos outros A sua vestimenta eacute algo peculiar pois tenta-se passar

por algueacutem com classe sem de facto a ter De uma forma rude interpela o Diabo

ONZENEIRO Prsquora onde bai este barco

DIABO ldquoBairdquo para um siacutetio onde natildeo chove nem faz frio talvez vaacutes gostar da estadia Mas

diz-me porque demoraste tanto tempo a vir E Porque vens nessa figura

ONZENEIRO Talbez goste mas diz-me caacute mesmo prsquora onde bai isto que eu natildeo gosto caacute de

meias palabras Ainda agora morri natildeo quero que me enganem por ser nobiccedilo

DIABO Natildeo te preocupes que esta barca eacute do teu interesse pois vai para um siacutetio onde ateacute

os ldquonabosrdquo satildeo aceites AHAHA

ONZENEIRO Podes-me chamar o que quiseres pois na minha bida habituei-me a oubir

muita cousa Diz-me laacute de uma bez para onde bai isto

DIABO AHAHAH Tens uma maneira muito esquisita de falar Estou a ldquoberrdquo que ldquobourdquo ter

que ldquobizerrdquo Ahhh Esta natildeo era Entatildeo esta ldquovarca bai prordquo Inferno

ONZENEIRO lsquoTatildeo esta barca natildeo eacute prsquora mim

Auto da barca do Inferno 16

Aborrecido o Onzeneiro dirige-se para a barca do Anjo mas ainda ouve o Diabo dizer em alta

voz para se fazer ouvir

DIABO ldquoBai laacute bairdquo Mas olha que ainda ldquoboltasrdquo caacute AHAHA

Sem querer mais conversas com o Diabo o Onzeneiro vai sempre andando sem olhar para traacutes

ateacute que chega agrave barca do Anjo

ONZENEIRO Oh da barca Prsquora onde bai esta Narsquome diga que tambeacutem bai prsquora o inferno

ANJO Natildeo Esta barca tem como destino o paraiacuteso E tu Que fazes aqui

ONZENEIRO Paraiacuteso Isso eacute o ceacuteu nrsquoeacute lsquoTatildeo eacute mesmo prsquorarsquoqui que bou Arranje-me aiacute

uma escada prsquora eu subir prsquora o barco

ANJO Nem penses nisso Mais depressa te arranjava um bilhete para o inferno do que uma

escada para subires para aqui

ONZENEIRO Porquecirc Eu quero ir neste

ANJO Queres mas natildeo vais Neste barco soacute entra quem tiver bom coraccedilatildeo algo que tu jaacute

perdeste haacute muito tempo se eacute que alguma vez tiveste

ONZENEIRO E eu tenho a culpa de ter tido um ABC

BTNEXT 17

ANJO Um ABC Meu Deus Tens tanto de riqueza como tens de ignoracircncia Passaste a

vida inteira a explorar os mais pobres foste egoiacutesta e ganancioso nunca foste capaz de fazer um

uacutenico gesto de bondade e achavas que poderias entrar assim Nem penses Vai na outra barca

pois coaduna-se melhor contigo

ONZENEIRO Explorar os mais pobres lsquoTaacutes a falar dos ucranianos que contratei Eu lsquotaba-

lhes a fazer um fabor

O Anjo nem se digna a responder pelo que o Onzeneiro resolve retornar agrave Barca do Diabo

DIABO Olha olha mrsquoeste artista de volta Jaacute ldquobiesterdquo Tiveste saudades minhas Ou ali o

Santo fartou-se do teu ldquoveliacutessimordquo paleio

ONZENEIRO A culpa foi dos ucranianos

DIABO Bahh natildeo os culpes que eles tecircm bela carne de churrasco Sozinho com essa tua

ldquosabedoriardquo natildeo vais a lado nenhum mas aqui no meu barquinho vais longe para muito longe

AHAHAH

O Onzeneiro entra resignado na barca do Diabo e cruza-se com o Fidalgo

ONZENEIRO lsquoTatildeo mas o socircr tambeacutem lsquotaacute aqui Fico contente em poder lsquotar aqui com sua

Auto da barca do Inferno 18

excelentiacutessima

FIDALGO Mas quem eacute vocecirc Sabe com quem estaacute a falar Dei-lhe autorizaccedilatildeo para me diri-

gir a palavra Dei Afaste-se de mim que apesar de estarmos na mesma barca vocecirc continua

a ser um saloio ao peacute de mim

DIABO AHAHAHA Que ricos saloios que eu levo aqui para o Inferno AHAHAHAH

BTNEXT 19

Cena 4

Auto da barca do Inferno 20

Agrave Barca do Diabo chega desta vez o Parvo

PARVO Olha um barco agrave vela que giro XIQIQIQI Oh cornudo para onde vai este batel

DIABO Este batel Este batel vai para um local maravilhoso que vais adorar Entra que eu

mostro-te que local eacute esse

PARVO Jaacute sei Eacute a DisneyLand Sempre quis ir laacute ver o Pateta para lhe dizer que eacute burro

E fala com ratos e patos Caacute para mim haacute ali algum truque que a mim ningueacutem me engana

XIQIQIQI Jaacute a minha matildee dizia que eu era parvo mas natildeo era estuacutepido XIQIQIQI Espera laacute

mas tu eacutes quem

DIABO Entatildeo natildeo sabes quem eu sou Eu sou um tipo porreiro que te vai levar a um local

espectacular Vais ver que eacute muito melhor que a DisneyLand Entra que eu mostro-te que local

eacute esse

PARVO Porra jaacute pareces uma vespa sempre a zumbir o mesmo oh cornudo Estava a pen-

sar que eras o tio patinhas mascarado de carneiro XIQIQIQI Afinal que local eacute esse

DIABO Esse local eacute o inferno e garanto-te que eacute um siacutetio muito giro Queres entrar para ver

PARVO Inferno Isso eacute a terra dos cornudos como tu natildeo eacute A minha matildee disse-me que o

BTNEXT 21

meu pai eacute que era cornudo por causa do padeiro do carteiro e do Mas eu natildeo Sempre fiz como

a minha matildee me disse portanto natildeo sou cornudo XIQIQIQI Vou-me embora carneiro que eu

natildeo quero ir para o jardim zooloacutegico XIQIQIQI

DIABO AHAHA Bela famiacutelia a tua O pai eacute cornudo A matildee gosta muito de comer patildeo e

escrever cartas AHAHAHA O filho um parvo dos diabos Uma coisa te digo a tua companhia

ia ser deveras animada

O Parvo resolve dar meia volta e vai ter com o Anjo

PARVO Olha um paacutessaro Corvo natildeo eacute certamente porque eacute da cor do burro quando foge

XIQIQIQI Oh pardal a tua gaivota vai para onde

ANJO Este barco tem como destino o paraiacuteso E tu Quem eacutes e o que fazes aqui

PARVO O paacutessaro fala Eacute um papagaio XIQIQIQI Eu sou Joane mais conhecido por ldquopar-

vordquo desde que a minha matildee me chamou isso agrave frente dos miuacutedos da escola Mas parvos satildeo eles

porque ldquoquem diz eacute quem eacuterdquo XIQIQIQI

ANJO Estaacutes enganado Eu natildeo sou nenhum paacutessaro mas sim um anjo que tem como missatildeo

guiar todos aqueles que merecerem entrar no paraiacuteso Laacute soacute entram as pessoas que em vida lu-

Auto da barca do Inferno 22

taram por um mundo melhor aquelas que sempre acreditaram no amor na partilha na justiccedila

e na amizade Eacute no fundo uma recompensa que natildeo estaacute ao alcance de todos

PARVO Jaacute percebi porque que eacute que estaacutes sozinho soacute aceitas pessoas imaginaacuterias XIQIQ-

IQI Serei eu real

ANJO De facto poucos satildeo aqueles que conseguem entrar no paraiacuteso pois poucos satildeo aqueles

que ao longo da vida conseguem conservar a bondade e a pureza no coraccedilatildeo Tu mereces entrar

porque em todos os teus actos demonstraste sempre uma pureza encantadora e nunca maacute inten-

ccedilatildeo Se quiseres podes entrar

Dito isto o Parvo fica junto agrave Barca do Anjo sem contudo entrar

BTNEXT 23

Cena 5

Auto da barca do Inferno 24

A caminhar para a barca do Diabo aparece o Sapateiro com a sua mala onde tem todos os uten-

siacutelios necessaacuterios ao seu ofiacutecio

SAPATEIRO Olha olha o Carnaval chegou mais cedo OHOHOHOH

Daacute um soco ao de leve nas costas do Diabo mostrando um sorriso de gozo

DIABO Eh laacute Pai Natal eacutes tu Essas tralhas que trazes aiacute satildeo para mim Olha que natildeo sei

coser sapatos AHAHAH

SAPATEIRO Tralhas Estaacute aqui uma vida inteira de trabalho e dedicaccedilatildeo a ajudar os out-

ros

DIABO AHAHAH eacutes como eu Realmente daacute muito trabalho educar os escravos agrave reacutedea

curta para que nos obedeccedilam e nos beijem os peacutes mas satildeo todos uns mal-agradecidos Soacute ldquosa-

pateiricesrdquo eacute que sabem fazer

SAPATEIRO Deves-me estar a confundir com alguns dos teus servos soacute pode

Eu passei a minha vida inteira a ajudar os outros muitas vezes agrave chuva ou ao sol tudo trab-

alho honesto

DIABO Pois acredito que sim Eras o uacutenico sapateiro laacute da santa terrinha aliaacutes o uacutenico

BTNEXT 25

sapateiro de CLASSE Muita ldquoboca de sapordquo vi andar por aiacute graccedilas agrave tua ldquohonestidaderdquo

SAPATEIRO Deves querer festa comigo deves Com essa roupa nota-se logo quem eacutes e agrave

distacircncia Tu eacute que tens a fama de seres mau e tu eacute que te aproveitas dos outros natildeo queiras

colocar todos no mesmo saco e achar que satildeo como tu

DIABO Mau eu Nada disso sou simplesmente Um justiceiro Todos aqueles que levam

uma vida cheia de maldades tecircm lugar reservado no Inferno E isso deixa-me completamente

feliz Adoro ver o horror na cara das pobres alminhas quando as torturo AHAHAH

SAPATEIRO Fartei-me de ir agrave missa sou um bom filho de Deus portanto acho que vou ali

ao outro lado pedir agravequele senhor de branco que me leve

DIABO Ide ide mas natildeo teraacutes sorte O pessoal daquelas bandas gosta de andar descalccedilo

AHAHAH

SAPATEIRO Sei fazer umas sandaacutelias de apoio leve que os vai ajudar a proteger tal como

eu protejo os meus peacutes imaculados Veraacutes como serei bastante uacutetil por aquelas bandas Eu mereccedilo

o ceacuteu

Dito isto o sapateiro afasta-se e vai em direcccedilatildeo ao Anjo

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 15: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 15

Entretanto vem-se aproximando da Barca do Diabo o Onzeneiro uma pessoa de modos simples

mas que fez uma fortuna agrave custa dos outros A sua vestimenta eacute algo peculiar pois tenta-se passar

por algueacutem com classe sem de facto a ter De uma forma rude interpela o Diabo

ONZENEIRO Prsquora onde bai este barco

DIABO ldquoBairdquo para um siacutetio onde natildeo chove nem faz frio talvez vaacutes gostar da estadia Mas

diz-me porque demoraste tanto tempo a vir E Porque vens nessa figura

ONZENEIRO Talbez goste mas diz-me caacute mesmo prsquora onde bai isto que eu natildeo gosto caacute de

meias palabras Ainda agora morri natildeo quero que me enganem por ser nobiccedilo

DIABO Natildeo te preocupes que esta barca eacute do teu interesse pois vai para um siacutetio onde ateacute

os ldquonabosrdquo satildeo aceites AHAHA

ONZENEIRO Podes-me chamar o que quiseres pois na minha bida habituei-me a oubir

muita cousa Diz-me laacute de uma bez para onde bai isto

DIABO AHAHAH Tens uma maneira muito esquisita de falar Estou a ldquoberrdquo que ldquobourdquo ter

que ldquobizerrdquo Ahhh Esta natildeo era Entatildeo esta ldquovarca bai prordquo Inferno

ONZENEIRO lsquoTatildeo esta barca natildeo eacute prsquora mim

Auto da barca do Inferno 16

Aborrecido o Onzeneiro dirige-se para a barca do Anjo mas ainda ouve o Diabo dizer em alta

voz para se fazer ouvir

DIABO ldquoBai laacute bairdquo Mas olha que ainda ldquoboltasrdquo caacute AHAHA

Sem querer mais conversas com o Diabo o Onzeneiro vai sempre andando sem olhar para traacutes

ateacute que chega agrave barca do Anjo

ONZENEIRO Oh da barca Prsquora onde bai esta Narsquome diga que tambeacutem bai prsquora o inferno

ANJO Natildeo Esta barca tem como destino o paraiacuteso E tu Que fazes aqui

ONZENEIRO Paraiacuteso Isso eacute o ceacuteu nrsquoeacute lsquoTatildeo eacute mesmo prsquorarsquoqui que bou Arranje-me aiacute

uma escada prsquora eu subir prsquora o barco

ANJO Nem penses nisso Mais depressa te arranjava um bilhete para o inferno do que uma

escada para subires para aqui

ONZENEIRO Porquecirc Eu quero ir neste

ANJO Queres mas natildeo vais Neste barco soacute entra quem tiver bom coraccedilatildeo algo que tu jaacute

perdeste haacute muito tempo se eacute que alguma vez tiveste

ONZENEIRO E eu tenho a culpa de ter tido um ABC

BTNEXT 17

ANJO Um ABC Meu Deus Tens tanto de riqueza como tens de ignoracircncia Passaste a

vida inteira a explorar os mais pobres foste egoiacutesta e ganancioso nunca foste capaz de fazer um

uacutenico gesto de bondade e achavas que poderias entrar assim Nem penses Vai na outra barca

pois coaduna-se melhor contigo

ONZENEIRO Explorar os mais pobres lsquoTaacutes a falar dos ucranianos que contratei Eu lsquotaba-

lhes a fazer um fabor

O Anjo nem se digna a responder pelo que o Onzeneiro resolve retornar agrave Barca do Diabo

DIABO Olha olha mrsquoeste artista de volta Jaacute ldquobiesterdquo Tiveste saudades minhas Ou ali o

Santo fartou-se do teu ldquoveliacutessimordquo paleio

ONZENEIRO A culpa foi dos ucranianos

DIABO Bahh natildeo os culpes que eles tecircm bela carne de churrasco Sozinho com essa tua

ldquosabedoriardquo natildeo vais a lado nenhum mas aqui no meu barquinho vais longe para muito longe

AHAHAH

O Onzeneiro entra resignado na barca do Diabo e cruza-se com o Fidalgo

ONZENEIRO lsquoTatildeo mas o socircr tambeacutem lsquotaacute aqui Fico contente em poder lsquotar aqui com sua

Auto da barca do Inferno 18

excelentiacutessima

FIDALGO Mas quem eacute vocecirc Sabe com quem estaacute a falar Dei-lhe autorizaccedilatildeo para me diri-

gir a palavra Dei Afaste-se de mim que apesar de estarmos na mesma barca vocecirc continua

a ser um saloio ao peacute de mim

DIABO AHAHAHA Que ricos saloios que eu levo aqui para o Inferno AHAHAHAH

BTNEXT 19

Cena 4

Auto da barca do Inferno 20

Agrave Barca do Diabo chega desta vez o Parvo

PARVO Olha um barco agrave vela que giro XIQIQIQI Oh cornudo para onde vai este batel

DIABO Este batel Este batel vai para um local maravilhoso que vais adorar Entra que eu

mostro-te que local eacute esse

PARVO Jaacute sei Eacute a DisneyLand Sempre quis ir laacute ver o Pateta para lhe dizer que eacute burro

E fala com ratos e patos Caacute para mim haacute ali algum truque que a mim ningueacutem me engana

XIQIQIQI Jaacute a minha matildee dizia que eu era parvo mas natildeo era estuacutepido XIQIQIQI Espera laacute

mas tu eacutes quem

DIABO Entatildeo natildeo sabes quem eu sou Eu sou um tipo porreiro que te vai levar a um local

espectacular Vais ver que eacute muito melhor que a DisneyLand Entra que eu mostro-te que local

eacute esse

PARVO Porra jaacute pareces uma vespa sempre a zumbir o mesmo oh cornudo Estava a pen-

sar que eras o tio patinhas mascarado de carneiro XIQIQIQI Afinal que local eacute esse

DIABO Esse local eacute o inferno e garanto-te que eacute um siacutetio muito giro Queres entrar para ver

PARVO Inferno Isso eacute a terra dos cornudos como tu natildeo eacute A minha matildee disse-me que o

BTNEXT 21

meu pai eacute que era cornudo por causa do padeiro do carteiro e do Mas eu natildeo Sempre fiz como

a minha matildee me disse portanto natildeo sou cornudo XIQIQIQI Vou-me embora carneiro que eu

natildeo quero ir para o jardim zooloacutegico XIQIQIQI

DIABO AHAHA Bela famiacutelia a tua O pai eacute cornudo A matildee gosta muito de comer patildeo e

escrever cartas AHAHAHA O filho um parvo dos diabos Uma coisa te digo a tua companhia

ia ser deveras animada

O Parvo resolve dar meia volta e vai ter com o Anjo

PARVO Olha um paacutessaro Corvo natildeo eacute certamente porque eacute da cor do burro quando foge

XIQIQIQI Oh pardal a tua gaivota vai para onde

ANJO Este barco tem como destino o paraiacuteso E tu Quem eacutes e o que fazes aqui

PARVO O paacutessaro fala Eacute um papagaio XIQIQIQI Eu sou Joane mais conhecido por ldquopar-

vordquo desde que a minha matildee me chamou isso agrave frente dos miuacutedos da escola Mas parvos satildeo eles

porque ldquoquem diz eacute quem eacuterdquo XIQIQIQI

ANJO Estaacutes enganado Eu natildeo sou nenhum paacutessaro mas sim um anjo que tem como missatildeo

guiar todos aqueles que merecerem entrar no paraiacuteso Laacute soacute entram as pessoas que em vida lu-

Auto da barca do Inferno 22

taram por um mundo melhor aquelas que sempre acreditaram no amor na partilha na justiccedila

e na amizade Eacute no fundo uma recompensa que natildeo estaacute ao alcance de todos

PARVO Jaacute percebi porque que eacute que estaacutes sozinho soacute aceitas pessoas imaginaacuterias XIQIQ-

IQI Serei eu real

ANJO De facto poucos satildeo aqueles que conseguem entrar no paraiacuteso pois poucos satildeo aqueles

que ao longo da vida conseguem conservar a bondade e a pureza no coraccedilatildeo Tu mereces entrar

porque em todos os teus actos demonstraste sempre uma pureza encantadora e nunca maacute inten-

ccedilatildeo Se quiseres podes entrar

Dito isto o Parvo fica junto agrave Barca do Anjo sem contudo entrar

BTNEXT 23

Cena 5

Auto da barca do Inferno 24

A caminhar para a barca do Diabo aparece o Sapateiro com a sua mala onde tem todos os uten-

siacutelios necessaacuterios ao seu ofiacutecio

SAPATEIRO Olha olha o Carnaval chegou mais cedo OHOHOHOH

Daacute um soco ao de leve nas costas do Diabo mostrando um sorriso de gozo

DIABO Eh laacute Pai Natal eacutes tu Essas tralhas que trazes aiacute satildeo para mim Olha que natildeo sei

coser sapatos AHAHAH

SAPATEIRO Tralhas Estaacute aqui uma vida inteira de trabalho e dedicaccedilatildeo a ajudar os out-

ros

DIABO AHAHAH eacutes como eu Realmente daacute muito trabalho educar os escravos agrave reacutedea

curta para que nos obedeccedilam e nos beijem os peacutes mas satildeo todos uns mal-agradecidos Soacute ldquosa-

pateiricesrdquo eacute que sabem fazer

SAPATEIRO Deves-me estar a confundir com alguns dos teus servos soacute pode

Eu passei a minha vida inteira a ajudar os outros muitas vezes agrave chuva ou ao sol tudo trab-

alho honesto

DIABO Pois acredito que sim Eras o uacutenico sapateiro laacute da santa terrinha aliaacutes o uacutenico

BTNEXT 25

sapateiro de CLASSE Muita ldquoboca de sapordquo vi andar por aiacute graccedilas agrave tua ldquohonestidaderdquo

SAPATEIRO Deves querer festa comigo deves Com essa roupa nota-se logo quem eacutes e agrave

distacircncia Tu eacute que tens a fama de seres mau e tu eacute que te aproveitas dos outros natildeo queiras

colocar todos no mesmo saco e achar que satildeo como tu

DIABO Mau eu Nada disso sou simplesmente Um justiceiro Todos aqueles que levam

uma vida cheia de maldades tecircm lugar reservado no Inferno E isso deixa-me completamente

feliz Adoro ver o horror na cara das pobres alminhas quando as torturo AHAHAH

SAPATEIRO Fartei-me de ir agrave missa sou um bom filho de Deus portanto acho que vou ali

ao outro lado pedir agravequele senhor de branco que me leve

DIABO Ide ide mas natildeo teraacutes sorte O pessoal daquelas bandas gosta de andar descalccedilo

AHAHAH

SAPATEIRO Sei fazer umas sandaacutelias de apoio leve que os vai ajudar a proteger tal como

eu protejo os meus peacutes imaculados Veraacutes como serei bastante uacutetil por aquelas bandas Eu mereccedilo

o ceacuteu

Dito isto o sapateiro afasta-se e vai em direcccedilatildeo ao Anjo

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 16: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da barca do Inferno 16

Aborrecido o Onzeneiro dirige-se para a barca do Anjo mas ainda ouve o Diabo dizer em alta

voz para se fazer ouvir

DIABO ldquoBai laacute bairdquo Mas olha que ainda ldquoboltasrdquo caacute AHAHA

Sem querer mais conversas com o Diabo o Onzeneiro vai sempre andando sem olhar para traacutes

ateacute que chega agrave barca do Anjo

ONZENEIRO Oh da barca Prsquora onde bai esta Narsquome diga que tambeacutem bai prsquora o inferno

ANJO Natildeo Esta barca tem como destino o paraiacuteso E tu Que fazes aqui

ONZENEIRO Paraiacuteso Isso eacute o ceacuteu nrsquoeacute lsquoTatildeo eacute mesmo prsquorarsquoqui que bou Arranje-me aiacute

uma escada prsquora eu subir prsquora o barco

ANJO Nem penses nisso Mais depressa te arranjava um bilhete para o inferno do que uma

escada para subires para aqui

ONZENEIRO Porquecirc Eu quero ir neste

ANJO Queres mas natildeo vais Neste barco soacute entra quem tiver bom coraccedilatildeo algo que tu jaacute

perdeste haacute muito tempo se eacute que alguma vez tiveste

ONZENEIRO E eu tenho a culpa de ter tido um ABC

BTNEXT 17

ANJO Um ABC Meu Deus Tens tanto de riqueza como tens de ignoracircncia Passaste a

vida inteira a explorar os mais pobres foste egoiacutesta e ganancioso nunca foste capaz de fazer um

uacutenico gesto de bondade e achavas que poderias entrar assim Nem penses Vai na outra barca

pois coaduna-se melhor contigo

ONZENEIRO Explorar os mais pobres lsquoTaacutes a falar dos ucranianos que contratei Eu lsquotaba-

lhes a fazer um fabor

O Anjo nem se digna a responder pelo que o Onzeneiro resolve retornar agrave Barca do Diabo

DIABO Olha olha mrsquoeste artista de volta Jaacute ldquobiesterdquo Tiveste saudades minhas Ou ali o

Santo fartou-se do teu ldquoveliacutessimordquo paleio

ONZENEIRO A culpa foi dos ucranianos

DIABO Bahh natildeo os culpes que eles tecircm bela carne de churrasco Sozinho com essa tua

ldquosabedoriardquo natildeo vais a lado nenhum mas aqui no meu barquinho vais longe para muito longe

AHAHAH

O Onzeneiro entra resignado na barca do Diabo e cruza-se com o Fidalgo

ONZENEIRO lsquoTatildeo mas o socircr tambeacutem lsquotaacute aqui Fico contente em poder lsquotar aqui com sua

Auto da barca do Inferno 18

excelentiacutessima

FIDALGO Mas quem eacute vocecirc Sabe com quem estaacute a falar Dei-lhe autorizaccedilatildeo para me diri-

gir a palavra Dei Afaste-se de mim que apesar de estarmos na mesma barca vocecirc continua

a ser um saloio ao peacute de mim

DIABO AHAHAHA Que ricos saloios que eu levo aqui para o Inferno AHAHAHAH

BTNEXT 19

Cena 4

Auto da barca do Inferno 20

Agrave Barca do Diabo chega desta vez o Parvo

PARVO Olha um barco agrave vela que giro XIQIQIQI Oh cornudo para onde vai este batel

DIABO Este batel Este batel vai para um local maravilhoso que vais adorar Entra que eu

mostro-te que local eacute esse

PARVO Jaacute sei Eacute a DisneyLand Sempre quis ir laacute ver o Pateta para lhe dizer que eacute burro

E fala com ratos e patos Caacute para mim haacute ali algum truque que a mim ningueacutem me engana

XIQIQIQI Jaacute a minha matildee dizia que eu era parvo mas natildeo era estuacutepido XIQIQIQI Espera laacute

mas tu eacutes quem

DIABO Entatildeo natildeo sabes quem eu sou Eu sou um tipo porreiro que te vai levar a um local

espectacular Vais ver que eacute muito melhor que a DisneyLand Entra que eu mostro-te que local

eacute esse

PARVO Porra jaacute pareces uma vespa sempre a zumbir o mesmo oh cornudo Estava a pen-

sar que eras o tio patinhas mascarado de carneiro XIQIQIQI Afinal que local eacute esse

DIABO Esse local eacute o inferno e garanto-te que eacute um siacutetio muito giro Queres entrar para ver

PARVO Inferno Isso eacute a terra dos cornudos como tu natildeo eacute A minha matildee disse-me que o

BTNEXT 21

meu pai eacute que era cornudo por causa do padeiro do carteiro e do Mas eu natildeo Sempre fiz como

a minha matildee me disse portanto natildeo sou cornudo XIQIQIQI Vou-me embora carneiro que eu

natildeo quero ir para o jardim zooloacutegico XIQIQIQI

DIABO AHAHA Bela famiacutelia a tua O pai eacute cornudo A matildee gosta muito de comer patildeo e

escrever cartas AHAHAHA O filho um parvo dos diabos Uma coisa te digo a tua companhia

ia ser deveras animada

O Parvo resolve dar meia volta e vai ter com o Anjo

PARVO Olha um paacutessaro Corvo natildeo eacute certamente porque eacute da cor do burro quando foge

XIQIQIQI Oh pardal a tua gaivota vai para onde

ANJO Este barco tem como destino o paraiacuteso E tu Quem eacutes e o que fazes aqui

PARVO O paacutessaro fala Eacute um papagaio XIQIQIQI Eu sou Joane mais conhecido por ldquopar-

vordquo desde que a minha matildee me chamou isso agrave frente dos miuacutedos da escola Mas parvos satildeo eles

porque ldquoquem diz eacute quem eacuterdquo XIQIQIQI

ANJO Estaacutes enganado Eu natildeo sou nenhum paacutessaro mas sim um anjo que tem como missatildeo

guiar todos aqueles que merecerem entrar no paraiacuteso Laacute soacute entram as pessoas que em vida lu-

Auto da barca do Inferno 22

taram por um mundo melhor aquelas que sempre acreditaram no amor na partilha na justiccedila

e na amizade Eacute no fundo uma recompensa que natildeo estaacute ao alcance de todos

PARVO Jaacute percebi porque que eacute que estaacutes sozinho soacute aceitas pessoas imaginaacuterias XIQIQ-

IQI Serei eu real

ANJO De facto poucos satildeo aqueles que conseguem entrar no paraiacuteso pois poucos satildeo aqueles

que ao longo da vida conseguem conservar a bondade e a pureza no coraccedilatildeo Tu mereces entrar

porque em todos os teus actos demonstraste sempre uma pureza encantadora e nunca maacute inten-

ccedilatildeo Se quiseres podes entrar

Dito isto o Parvo fica junto agrave Barca do Anjo sem contudo entrar

BTNEXT 23

Cena 5

Auto da barca do Inferno 24

A caminhar para a barca do Diabo aparece o Sapateiro com a sua mala onde tem todos os uten-

siacutelios necessaacuterios ao seu ofiacutecio

SAPATEIRO Olha olha o Carnaval chegou mais cedo OHOHOHOH

Daacute um soco ao de leve nas costas do Diabo mostrando um sorriso de gozo

DIABO Eh laacute Pai Natal eacutes tu Essas tralhas que trazes aiacute satildeo para mim Olha que natildeo sei

coser sapatos AHAHAH

SAPATEIRO Tralhas Estaacute aqui uma vida inteira de trabalho e dedicaccedilatildeo a ajudar os out-

ros

DIABO AHAHAH eacutes como eu Realmente daacute muito trabalho educar os escravos agrave reacutedea

curta para que nos obedeccedilam e nos beijem os peacutes mas satildeo todos uns mal-agradecidos Soacute ldquosa-

pateiricesrdquo eacute que sabem fazer

SAPATEIRO Deves-me estar a confundir com alguns dos teus servos soacute pode

Eu passei a minha vida inteira a ajudar os outros muitas vezes agrave chuva ou ao sol tudo trab-

alho honesto

DIABO Pois acredito que sim Eras o uacutenico sapateiro laacute da santa terrinha aliaacutes o uacutenico

BTNEXT 25

sapateiro de CLASSE Muita ldquoboca de sapordquo vi andar por aiacute graccedilas agrave tua ldquohonestidaderdquo

SAPATEIRO Deves querer festa comigo deves Com essa roupa nota-se logo quem eacutes e agrave

distacircncia Tu eacute que tens a fama de seres mau e tu eacute que te aproveitas dos outros natildeo queiras

colocar todos no mesmo saco e achar que satildeo como tu

DIABO Mau eu Nada disso sou simplesmente Um justiceiro Todos aqueles que levam

uma vida cheia de maldades tecircm lugar reservado no Inferno E isso deixa-me completamente

feliz Adoro ver o horror na cara das pobres alminhas quando as torturo AHAHAH

SAPATEIRO Fartei-me de ir agrave missa sou um bom filho de Deus portanto acho que vou ali

ao outro lado pedir agravequele senhor de branco que me leve

DIABO Ide ide mas natildeo teraacutes sorte O pessoal daquelas bandas gosta de andar descalccedilo

AHAHAH

SAPATEIRO Sei fazer umas sandaacutelias de apoio leve que os vai ajudar a proteger tal como

eu protejo os meus peacutes imaculados Veraacutes como serei bastante uacutetil por aquelas bandas Eu mereccedilo

o ceacuteu

Dito isto o sapateiro afasta-se e vai em direcccedilatildeo ao Anjo

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 17: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 17

ANJO Um ABC Meu Deus Tens tanto de riqueza como tens de ignoracircncia Passaste a

vida inteira a explorar os mais pobres foste egoiacutesta e ganancioso nunca foste capaz de fazer um

uacutenico gesto de bondade e achavas que poderias entrar assim Nem penses Vai na outra barca

pois coaduna-se melhor contigo

ONZENEIRO Explorar os mais pobres lsquoTaacutes a falar dos ucranianos que contratei Eu lsquotaba-

lhes a fazer um fabor

O Anjo nem se digna a responder pelo que o Onzeneiro resolve retornar agrave Barca do Diabo

DIABO Olha olha mrsquoeste artista de volta Jaacute ldquobiesterdquo Tiveste saudades minhas Ou ali o

Santo fartou-se do teu ldquoveliacutessimordquo paleio

ONZENEIRO A culpa foi dos ucranianos

DIABO Bahh natildeo os culpes que eles tecircm bela carne de churrasco Sozinho com essa tua

ldquosabedoriardquo natildeo vais a lado nenhum mas aqui no meu barquinho vais longe para muito longe

AHAHAH

O Onzeneiro entra resignado na barca do Diabo e cruza-se com o Fidalgo

ONZENEIRO lsquoTatildeo mas o socircr tambeacutem lsquotaacute aqui Fico contente em poder lsquotar aqui com sua

Auto da barca do Inferno 18

excelentiacutessima

FIDALGO Mas quem eacute vocecirc Sabe com quem estaacute a falar Dei-lhe autorizaccedilatildeo para me diri-

gir a palavra Dei Afaste-se de mim que apesar de estarmos na mesma barca vocecirc continua

a ser um saloio ao peacute de mim

DIABO AHAHAHA Que ricos saloios que eu levo aqui para o Inferno AHAHAHAH

BTNEXT 19

Cena 4

Auto da barca do Inferno 20

Agrave Barca do Diabo chega desta vez o Parvo

PARVO Olha um barco agrave vela que giro XIQIQIQI Oh cornudo para onde vai este batel

DIABO Este batel Este batel vai para um local maravilhoso que vais adorar Entra que eu

mostro-te que local eacute esse

PARVO Jaacute sei Eacute a DisneyLand Sempre quis ir laacute ver o Pateta para lhe dizer que eacute burro

E fala com ratos e patos Caacute para mim haacute ali algum truque que a mim ningueacutem me engana

XIQIQIQI Jaacute a minha matildee dizia que eu era parvo mas natildeo era estuacutepido XIQIQIQI Espera laacute

mas tu eacutes quem

DIABO Entatildeo natildeo sabes quem eu sou Eu sou um tipo porreiro que te vai levar a um local

espectacular Vais ver que eacute muito melhor que a DisneyLand Entra que eu mostro-te que local

eacute esse

PARVO Porra jaacute pareces uma vespa sempre a zumbir o mesmo oh cornudo Estava a pen-

sar que eras o tio patinhas mascarado de carneiro XIQIQIQI Afinal que local eacute esse

DIABO Esse local eacute o inferno e garanto-te que eacute um siacutetio muito giro Queres entrar para ver

PARVO Inferno Isso eacute a terra dos cornudos como tu natildeo eacute A minha matildee disse-me que o

BTNEXT 21

meu pai eacute que era cornudo por causa do padeiro do carteiro e do Mas eu natildeo Sempre fiz como

a minha matildee me disse portanto natildeo sou cornudo XIQIQIQI Vou-me embora carneiro que eu

natildeo quero ir para o jardim zooloacutegico XIQIQIQI

DIABO AHAHA Bela famiacutelia a tua O pai eacute cornudo A matildee gosta muito de comer patildeo e

escrever cartas AHAHAHA O filho um parvo dos diabos Uma coisa te digo a tua companhia

ia ser deveras animada

O Parvo resolve dar meia volta e vai ter com o Anjo

PARVO Olha um paacutessaro Corvo natildeo eacute certamente porque eacute da cor do burro quando foge

XIQIQIQI Oh pardal a tua gaivota vai para onde

ANJO Este barco tem como destino o paraiacuteso E tu Quem eacutes e o que fazes aqui

PARVO O paacutessaro fala Eacute um papagaio XIQIQIQI Eu sou Joane mais conhecido por ldquopar-

vordquo desde que a minha matildee me chamou isso agrave frente dos miuacutedos da escola Mas parvos satildeo eles

porque ldquoquem diz eacute quem eacuterdquo XIQIQIQI

ANJO Estaacutes enganado Eu natildeo sou nenhum paacutessaro mas sim um anjo que tem como missatildeo

guiar todos aqueles que merecerem entrar no paraiacuteso Laacute soacute entram as pessoas que em vida lu-

Auto da barca do Inferno 22

taram por um mundo melhor aquelas que sempre acreditaram no amor na partilha na justiccedila

e na amizade Eacute no fundo uma recompensa que natildeo estaacute ao alcance de todos

PARVO Jaacute percebi porque que eacute que estaacutes sozinho soacute aceitas pessoas imaginaacuterias XIQIQ-

IQI Serei eu real

ANJO De facto poucos satildeo aqueles que conseguem entrar no paraiacuteso pois poucos satildeo aqueles

que ao longo da vida conseguem conservar a bondade e a pureza no coraccedilatildeo Tu mereces entrar

porque em todos os teus actos demonstraste sempre uma pureza encantadora e nunca maacute inten-

ccedilatildeo Se quiseres podes entrar

Dito isto o Parvo fica junto agrave Barca do Anjo sem contudo entrar

BTNEXT 23

Cena 5

Auto da barca do Inferno 24

A caminhar para a barca do Diabo aparece o Sapateiro com a sua mala onde tem todos os uten-

siacutelios necessaacuterios ao seu ofiacutecio

SAPATEIRO Olha olha o Carnaval chegou mais cedo OHOHOHOH

Daacute um soco ao de leve nas costas do Diabo mostrando um sorriso de gozo

DIABO Eh laacute Pai Natal eacutes tu Essas tralhas que trazes aiacute satildeo para mim Olha que natildeo sei

coser sapatos AHAHAH

SAPATEIRO Tralhas Estaacute aqui uma vida inteira de trabalho e dedicaccedilatildeo a ajudar os out-

ros

DIABO AHAHAH eacutes como eu Realmente daacute muito trabalho educar os escravos agrave reacutedea

curta para que nos obedeccedilam e nos beijem os peacutes mas satildeo todos uns mal-agradecidos Soacute ldquosa-

pateiricesrdquo eacute que sabem fazer

SAPATEIRO Deves-me estar a confundir com alguns dos teus servos soacute pode

Eu passei a minha vida inteira a ajudar os outros muitas vezes agrave chuva ou ao sol tudo trab-

alho honesto

DIABO Pois acredito que sim Eras o uacutenico sapateiro laacute da santa terrinha aliaacutes o uacutenico

BTNEXT 25

sapateiro de CLASSE Muita ldquoboca de sapordquo vi andar por aiacute graccedilas agrave tua ldquohonestidaderdquo

SAPATEIRO Deves querer festa comigo deves Com essa roupa nota-se logo quem eacutes e agrave

distacircncia Tu eacute que tens a fama de seres mau e tu eacute que te aproveitas dos outros natildeo queiras

colocar todos no mesmo saco e achar que satildeo como tu

DIABO Mau eu Nada disso sou simplesmente Um justiceiro Todos aqueles que levam

uma vida cheia de maldades tecircm lugar reservado no Inferno E isso deixa-me completamente

feliz Adoro ver o horror na cara das pobres alminhas quando as torturo AHAHAH

SAPATEIRO Fartei-me de ir agrave missa sou um bom filho de Deus portanto acho que vou ali

ao outro lado pedir agravequele senhor de branco que me leve

DIABO Ide ide mas natildeo teraacutes sorte O pessoal daquelas bandas gosta de andar descalccedilo

AHAHAH

SAPATEIRO Sei fazer umas sandaacutelias de apoio leve que os vai ajudar a proteger tal como

eu protejo os meus peacutes imaculados Veraacutes como serei bastante uacutetil por aquelas bandas Eu mereccedilo

o ceacuteu

Dito isto o sapateiro afasta-se e vai em direcccedilatildeo ao Anjo

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 18: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da barca do Inferno 18

excelentiacutessima

FIDALGO Mas quem eacute vocecirc Sabe com quem estaacute a falar Dei-lhe autorizaccedilatildeo para me diri-

gir a palavra Dei Afaste-se de mim que apesar de estarmos na mesma barca vocecirc continua

a ser um saloio ao peacute de mim

DIABO AHAHAHA Que ricos saloios que eu levo aqui para o Inferno AHAHAHAH

BTNEXT 19

Cena 4

Auto da barca do Inferno 20

Agrave Barca do Diabo chega desta vez o Parvo

PARVO Olha um barco agrave vela que giro XIQIQIQI Oh cornudo para onde vai este batel

DIABO Este batel Este batel vai para um local maravilhoso que vais adorar Entra que eu

mostro-te que local eacute esse

PARVO Jaacute sei Eacute a DisneyLand Sempre quis ir laacute ver o Pateta para lhe dizer que eacute burro

E fala com ratos e patos Caacute para mim haacute ali algum truque que a mim ningueacutem me engana

XIQIQIQI Jaacute a minha matildee dizia que eu era parvo mas natildeo era estuacutepido XIQIQIQI Espera laacute

mas tu eacutes quem

DIABO Entatildeo natildeo sabes quem eu sou Eu sou um tipo porreiro que te vai levar a um local

espectacular Vais ver que eacute muito melhor que a DisneyLand Entra que eu mostro-te que local

eacute esse

PARVO Porra jaacute pareces uma vespa sempre a zumbir o mesmo oh cornudo Estava a pen-

sar que eras o tio patinhas mascarado de carneiro XIQIQIQI Afinal que local eacute esse

DIABO Esse local eacute o inferno e garanto-te que eacute um siacutetio muito giro Queres entrar para ver

PARVO Inferno Isso eacute a terra dos cornudos como tu natildeo eacute A minha matildee disse-me que o

BTNEXT 21

meu pai eacute que era cornudo por causa do padeiro do carteiro e do Mas eu natildeo Sempre fiz como

a minha matildee me disse portanto natildeo sou cornudo XIQIQIQI Vou-me embora carneiro que eu

natildeo quero ir para o jardim zooloacutegico XIQIQIQI

DIABO AHAHA Bela famiacutelia a tua O pai eacute cornudo A matildee gosta muito de comer patildeo e

escrever cartas AHAHAHA O filho um parvo dos diabos Uma coisa te digo a tua companhia

ia ser deveras animada

O Parvo resolve dar meia volta e vai ter com o Anjo

PARVO Olha um paacutessaro Corvo natildeo eacute certamente porque eacute da cor do burro quando foge

XIQIQIQI Oh pardal a tua gaivota vai para onde

ANJO Este barco tem como destino o paraiacuteso E tu Quem eacutes e o que fazes aqui

PARVO O paacutessaro fala Eacute um papagaio XIQIQIQI Eu sou Joane mais conhecido por ldquopar-

vordquo desde que a minha matildee me chamou isso agrave frente dos miuacutedos da escola Mas parvos satildeo eles

porque ldquoquem diz eacute quem eacuterdquo XIQIQIQI

ANJO Estaacutes enganado Eu natildeo sou nenhum paacutessaro mas sim um anjo que tem como missatildeo

guiar todos aqueles que merecerem entrar no paraiacuteso Laacute soacute entram as pessoas que em vida lu-

Auto da barca do Inferno 22

taram por um mundo melhor aquelas que sempre acreditaram no amor na partilha na justiccedila

e na amizade Eacute no fundo uma recompensa que natildeo estaacute ao alcance de todos

PARVO Jaacute percebi porque que eacute que estaacutes sozinho soacute aceitas pessoas imaginaacuterias XIQIQ-

IQI Serei eu real

ANJO De facto poucos satildeo aqueles que conseguem entrar no paraiacuteso pois poucos satildeo aqueles

que ao longo da vida conseguem conservar a bondade e a pureza no coraccedilatildeo Tu mereces entrar

porque em todos os teus actos demonstraste sempre uma pureza encantadora e nunca maacute inten-

ccedilatildeo Se quiseres podes entrar

Dito isto o Parvo fica junto agrave Barca do Anjo sem contudo entrar

BTNEXT 23

Cena 5

Auto da barca do Inferno 24

A caminhar para a barca do Diabo aparece o Sapateiro com a sua mala onde tem todos os uten-

siacutelios necessaacuterios ao seu ofiacutecio

SAPATEIRO Olha olha o Carnaval chegou mais cedo OHOHOHOH

Daacute um soco ao de leve nas costas do Diabo mostrando um sorriso de gozo

DIABO Eh laacute Pai Natal eacutes tu Essas tralhas que trazes aiacute satildeo para mim Olha que natildeo sei

coser sapatos AHAHAH

SAPATEIRO Tralhas Estaacute aqui uma vida inteira de trabalho e dedicaccedilatildeo a ajudar os out-

ros

DIABO AHAHAH eacutes como eu Realmente daacute muito trabalho educar os escravos agrave reacutedea

curta para que nos obedeccedilam e nos beijem os peacutes mas satildeo todos uns mal-agradecidos Soacute ldquosa-

pateiricesrdquo eacute que sabem fazer

SAPATEIRO Deves-me estar a confundir com alguns dos teus servos soacute pode

Eu passei a minha vida inteira a ajudar os outros muitas vezes agrave chuva ou ao sol tudo trab-

alho honesto

DIABO Pois acredito que sim Eras o uacutenico sapateiro laacute da santa terrinha aliaacutes o uacutenico

BTNEXT 25

sapateiro de CLASSE Muita ldquoboca de sapordquo vi andar por aiacute graccedilas agrave tua ldquohonestidaderdquo

SAPATEIRO Deves querer festa comigo deves Com essa roupa nota-se logo quem eacutes e agrave

distacircncia Tu eacute que tens a fama de seres mau e tu eacute que te aproveitas dos outros natildeo queiras

colocar todos no mesmo saco e achar que satildeo como tu

DIABO Mau eu Nada disso sou simplesmente Um justiceiro Todos aqueles que levam

uma vida cheia de maldades tecircm lugar reservado no Inferno E isso deixa-me completamente

feliz Adoro ver o horror na cara das pobres alminhas quando as torturo AHAHAH

SAPATEIRO Fartei-me de ir agrave missa sou um bom filho de Deus portanto acho que vou ali

ao outro lado pedir agravequele senhor de branco que me leve

DIABO Ide ide mas natildeo teraacutes sorte O pessoal daquelas bandas gosta de andar descalccedilo

AHAHAH

SAPATEIRO Sei fazer umas sandaacutelias de apoio leve que os vai ajudar a proteger tal como

eu protejo os meus peacutes imaculados Veraacutes como serei bastante uacutetil por aquelas bandas Eu mereccedilo

o ceacuteu

Dito isto o sapateiro afasta-se e vai em direcccedilatildeo ao Anjo

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 19: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 19

Cena 4

Auto da barca do Inferno 20

Agrave Barca do Diabo chega desta vez o Parvo

PARVO Olha um barco agrave vela que giro XIQIQIQI Oh cornudo para onde vai este batel

DIABO Este batel Este batel vai para um local maravilhoso que vais adorar Entra que eu

mostro-te que local eacute esse

PARVO Jaacute sei Eacute a DisneyLand Sempre quis ir laacute ver o Pateta para lhe dizer que eacute burro

E fala com ratos e patos Caacute para mim haacute ali algum truque que a mim ningueacutem me engana

XIQIQIQI Jaacute a minha matildee dizia que eu era parvo mas natildeo era estuacutepido XIQIQIQI Espera laacute

mas tu eacutes quem

DIABO Entatildeo natildeo sabes quem eu sou Eu sou um tipo porreiro que te vai levar a um local

espectacular Vais ver que eacute muito melhor que a DisneyLand Entra que eu mostro-te que local

eacute esse

PARVO Porra jaacute pareces uma vespa sempre a zumbir o mesmo oh cornudo Estava a pen-

sar que eras o tio patinhas mascarado de carneiro XIQIQIQI Afinal que local eacute esse

DIABO Esse local eacute o inferno e garanto-te que eacute um siacutetio muito giro Queres entrar para ver

PARVO Inferno Isso eacute a terra dos cornudos como tu natildeo eacute A minha matildee disse-me que o

BTNEXT 21

meu pai eacute que era cornudo por causa do padeiro do carteiro e do Mas eu natildeo Sempre fiz como

a minha matildee me disse portanto natildeo sou cornudo XIQIQIQI Vou-me embora carneiro que eu

natildeo quero ir para o jardim zooloacutegico XIQIQIQI

DIABO AHAHA Bela famiacutelia a tua O pai eacute cornudo A matildee gosta muito de comer patildeo e

escrever cartas AHAHAHA O filho um parvo dos diabos Uma coisa te digo a tua companhia

ia ser deveras animada

O Parvo resolve dar meia volta e vai ter com o Anjo

PARVO Olha um paacutessaro Corvo natildeo eacute certamente porque eacute da cor do burro quando foge

XIQIQIQI Oh pardal a tua gaivota vai para onde

ANJO Este barco tem como destino o paraiacuteso E tu Quem eacutes e o que fazes aqui

PARVO O paacutessaro fala Eacute um papagaio XIQIQIQI Eu sou Joane mais conhecido por ldquopar-

vordquo desde que a minha matildee me chamou isso agrave frente dos miuacutedos da escola Mas parvos satildeo eles

porque ldquoquem diz eacute quem eacuterdquo XIQIQIQI

ANJO Estaacutes enganado Eu natildeo sou nenhum paacutessaro mas sim um anjo que tem como missatildeo

guiar todos aqueles que merecerem entrar no paraiacuteso Laacute soacute entram as pessoas que em vida lu-

Auto da barca do Inferno 22

taram por um mundo melhor aquelas que sempre acreditaram no amor na partilha na justiccedila

e na amizade Eacute no fundo uma recompensa que natildeo estaacute ao alcance de todos

PARVO Jaacute percebi porque que eacute que estaacutes sozinho soacute aceitas pessoas imaginaacuterias XIQIQ-

IQI Serei eu real

ANJO De facto poucos satildeo aqueles que conseguem entrar no paraiacuteso pois poucos satildeo aqueles

que ao longo da vida conseguem conservar a bondade e a pureza no coraccedilatildeo Tu mereces entrar

porque em todos os teus actos demonstraste sempre uma pureza encantadora e nunca maacute inten-

ccedilatildeo Se quiseres podes entrar

Dito isto o Parvo fica junto agrave Barca do Anjo sem contudo entrar

BTNEXT 23

Cena 5

Auto da barca do Inferno 24

A caminhar para a barca do Diabo aparece o Sapateiro com a sua mala onde tem todos os uten-

siacutelios necessaacuterios ao seu ofiacutecio

SAPATEIRO Olha olha o Carnaval chegou mais cedo OHOHOHOH

Daacute um soco ao de leve nas costas do Diabo mostrando um sorriso de gozo

DIABO Eh laacute Pai Natal eacutes tu Essas tralhas que trazes aiacute satildeo para mim Olha que natildeo sei

coser sapatos AHAHAH

SAPATEIRO Tralhas Estaacute aqui uma vida inteira de trabalho e dedicaccedilatildeo a ajudar os out-

ros

DIABO AHAHAH eacutes como eu Realmente daacute muito trabalho educar os escravos agrave reacutedea

curta para que nos obedeccedilam e nos beijem os peacutes mas satildeo todos uns mal-agradecidos Soacute ldquosa-

pateiricesrdquo eacute que sabem fazer

SAPATEIRO Deves-me estar a confundir com alguns dos teus servos soacute pode

Eu passei a minha vida inteira a ajudar os outros muitas vezes agrave chuva ou ao sol tudo trab-

alho honesto

DIABO Pois acredito que sim Eras o uacutenico sapateiro laacute da santa terrinha aliaacutes o uacutenico

BTNEXT 25

sapateiro de CLASSE Muita ldquoboca de sapordquo vi andar por aiacute graccedilas agrave tua ldquohonestidaderdquo

SAPATEIRO Deves querer festa comigo deves Com essa roupa nota-se logo quem eacutes e agrave

distacircncia Tu eacute que tens a fama de seres mau e tu eacute que te aproveitas dos outros natildeo queiras

colocar todos no mesmo saco e achar que satildeo como tu

DIABO Mau eu Nada disso sou simplesmente Um justiceiro Todos aqueles que levam

uma vida cheia de maldades tecircm lugar reservado no Inferno E isso deixa-me completamente

feliz Adoro ver o horror na cara das pobres alminhas quando as torturo AHAHAH

SAPATEIRO Fartei-me de ir agrave missa sou um bom filho de Deus portanto acho que vou ali

ao outro lado pedir agravequele senhor de branco que me leve

DIABO Ide ide mas natildeo teraacutes sorte O pessoal daquelas bandas gosta de andar descalccedilo

AHAHAH

SAPATEIRO Sei fazer umas sandaacutelias de apoio leve que os vai ajudar a proteger tal como

eu protejo os meus peacutes imaculados Veraacutes como serei bastante uacutetil por aquelas bandas Eu mereccedilo

o ceacuteu

Dito isto o sapateiro afasta-se e vai em direcccedilatildeo ao Anjo

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 20: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da barca do Inferno 20

Agrave Barca do Diabo chega desta vez o Parvo

PARVO Olha um barco agrave vela que giro XIQIQIQI Oh cornudo para onde vai este batel

DIABO Este batel Este batel vai para um local maravilhoso que vais adorar Entra que eu

mostro-te que local eacute esse

PARVO Jaacute sei Eacute a DisneyLand Sempre quis ir laacute ver o Pateta para lhe dizer que eacute burro

E fala com ratos e patos Caacute para mim haacute ali algum truque que a mim ningueacutem me engana

XIQIQIQI Jaacute a minha matildee dizia que eu era parvo mas natildeo era estuacutepido XIQIQIQI Espera laacute

mas tu eacutes quem

DIABO Entatildeo natildeo sabes quem eu sou Eu sou um tipo porreiro que te vai levar a um local

espectacular Vais ver que eacute muito melhor que a DisneyLand Entra que eu mostro-te que local

eacute esse

PARVO Porra jaacute pareces uma vespa sempre a zumbir o mesmo oh cornudo Estava a pen-

sar que eras o tio patinhas mascarado de carneiro XIQIQIQI Afinal que local eacute esse

DIABO Esse local eacute o inferno e garanto-te que eacute um siacutetio muito giro Queres entrar para ver

PARVO Inferno Isso eacute a terra dos cornudos como tu natildeo eacute A minha matildee disse-me que o

BTNEXT 21

meu pai eacute que era cornudo por causa do padeiro do carteiro e do Mas eu natildeo Sempre fiz como

a minha matildee me disse portanto natildeo sou cornudo XIQIQIQI Vou-me embora carneiro que eu

natildeo quero ir para o jardim zooloacutegico XIQIQIQI

DIABO AHAHA Bela famiacutelia a tua O pai eacute cornudo A matildee gosta muito de comer patildeo e

escrever cartas AHAHAHA O filho um parvo dos diabos Uma coisa te digo a tua companhia

ia ser deveras animada

O Parvo resolve dar meia volta e vai ter com o Anjo

PARVO Olha um paacutessaro Corvo natildeo eacute certamente porque eacute da cor do burro quando foge

XIQIQIQI Oh pardal a tua gaivota vai para onde

ANJO Este barco tem como destino o paraiacuteso E tu Quem eacutes e o que fazes aqui

PARVO O paacutessaro fala Eacute um papagaio XIQIQIQI Eu sou Joane mais conhecido por ldquopar-

vordquo desde que a minha matildee me chamou isso agrave frente dos miuacutedos da escola Mas parvos satildeo eles

porque ldquoquem diz eacute quem eacuterdquo XIQIQIQI

ANJO Estaacutes enganado Eu natildeo sou nenhum paacutessaro mas sim um anjo que tem como missatildeo

guiar todos aqueles que merecerem entrar no paraiacuteso Laacute soacute entram as pessoas que em vida lu-

Auto da barca do Inferno 22

taram por um mundo melhor aquelas que sempre acreditaram no amor na partilha na justiccedila

e na amizade Eacute no fundo uma recompensa que natildeo estaacute ao alcance de todos

PARVO Jaacute percebi porque que eacute que estaacutes sozinho soacute aceitas pessoas imaginaacuterias XIQIQ-

IQI Serei eu real

ANJO De facto poucos satildeo aqueles que conseguem entrar no paraiacuteso pois poucos satildeo aqueles

que ao longo da vida conseguem conservar a bondade e a pureza no coraccedilatildeo Tu mereces entrar

porque em todos os teus actos demonstraste sempre uma pureza encantadora e nunca maacute inten-

ccedilatildeo Se quiseres podes entrar

Dito isto o Parvo fica junto agrave Barca do Anjo sem contudo entrar

BTNEXT 23

Cena 5

Auto da barca do Inferno 24

A caminhar para a barca do Diabo aparece o Sapateiro com a sua mala onde tem todos os uten-

siacutelios necessaacuterios ao seu ofiacutecio

SAPATEIRO Olha olha o Carnaval chegou mais cedo OHOHOHOH

Daacute um soco ao de leve nas costas do Diabo mostrando um sorriso de gozo

DIABO Eh laacute Pai Natal eacutes tu Essas tralhas que trazes aiacute satildeo para mim Olha que natildeo sei

coser sapatos AHAHAH

SAPATEIRO Tralhas Estaacute aqui uma vida inteira de trabalho e dedicaccedilatildeo a ajudar os out-

ros

DIABO AHAHAH eacutes como eu Realmente daacute muito trabalho educar os escravos agrave reacutedea

curta para que nos obedeccedilam e nos beijem os peacutes mas satildeo todos uns mal-agradecidos Soacute ldquosa-

pateiricesrdquo eacute que sabem fazer

SAPATEIRO Deves-me estar a confundir com alguns dos teus servos soacute pode

Eu passei a minha vida inteira a ajudar os outros muitas vezes agrave chuva ou ao sol tudo trab-

alho honesto

DIABO Pois acredito que sim Eras o uacutenico sapateiro laacute da santa terrinha aliaacutes o uacutenico

BTNEXT 25

sapateiro de CLASSE Muita ldquoboca de sapordquo vi andar por aiacute graccedilas agrave tua ldquohonestidaderdquo

SAPATEIRO Deves querer festa comigo deves Com essa roupa nota-se logo quem eacutes e agrave

distacircncia Tu eacute que tens a fama de seres mau e tu eacute que te aproveitas dos outros natildeo queiras

colocar todos no mesmo saco e achar que satildeo como tu

DIABO Mau eu Nada disso sou simplesmente Um justiceiro Todos aqueles que levam

uma vida cheia de maldades tecircm lugar reservado no Inferno E isso deixa-me completamente

feliz Adoro ver o horror na cara das pobres alminhas quando as torturo AHAHAH

SAPATEIRO Fartei-me de ir agrave missa sou um bom filho de Deus portanto acho que vou ali

ao outro lado pedir agravequele senhor de branco que me leve

DIABO Ide ide mas natildeo teraacutes sorte O pessoal daquelas bandas gosta de andar descalccedilo

AHAHAH

SAPATEIRO Sei fazer umas sandaacutelias de apoio leve que os vai ajudar a proteger tal como

eu protejo os meus peacutes imaculados Veraacutes como serei bastante uacutetil por aquelas bandas Eu mereccedilo

o ceacuteu

Dito isto o sapateiro afasta-se e vai em direcccedilatildeo ao Anjo

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 21: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 21

meu pai eacute que era cornudo por causa do padeiro do carteiro e do Mas eu natildeo Sempre fiz como

a minha matildee me disse portanto natildeo sou cornudo XIQIQIQI Vou-me embora carneiro que eu

natildeo quero ir para o jardim zooloacutegico XIQIQIQI

DIABO AHAHA Bela famiacutelia a tua O pai eacute cornudo A matildee gosta muito de comer patildeo e

escrever cartas AHAHAHA O filho um parvo dos diabos Uma coisa te digo a tua companhia

ia ser deveras animada

O Parvo resolve dar meia volta e vai ter com o Anjo

PARVO Olha um paacutessaro Corvo natildeo eacute certamente porque eacute da cor do burro quando foge

XIQIQIQI Oh pardal a tua gaivota vai para onde

ANJO Este barco tem como destino o paraiacuteso E tu Quem eacutes e o que fazes aqui

PARVO O paacutessaro fala Eacute um papagaio XIQIQIQI Eu sou Joane mais conhecido por ldquopar-

vordquo desde que a minha matildee me chamou isso agrave frente dos miuacutedos da escola Mas parvos satildeo eles

porque ldquoquem diz eacute quem eacuterdquo XIQIQIQI

ANJO Estaacutes enganado Eu natildeo sou nenhum paacutessaro mas sim um anjo que tem como missatildeo

guiar todos aqueles que merecerem entrar no paraiacuteso Laacute soacute entram as pessoas que em vida lu-

Auto da barca do Inferno 22

taram por um mundo melhor aquelas que sempre acreditaram no amor na partilha na justiccedila

e na amizade Eacute no fundo uma recompensa que natildeo estaacute ao alcance de todos

PARVO Jaacute percebi porque que eacute que estaacutes sozinho soacute aceitas pessoas imaginaacuterias XIQIQ-

IQI Serei eu real

ANJO De facto poucos satildeo aqueles que conseguem entrar no paraiacuteso pois poucos satildeo aqueles

que ao longo da vida conseguem conservar a bondade e a pureza no coraccedilatildeo Tu mereces entrar

porque em todos os teus actos demonstraste sempre uma pureza encantadora e nunca maacute inten-

ccedilatildeo Se quiseres podes entrar

Dito isto o Parvo fica junto agrave Barca do Anjo sem contudo entrar

BTNEXT 23

Cena 5

Auto da barca do Inferno 24

A caminhar para a barca do Diabo aparece o Sapateiro com a sua mala onde tem todos os uten-

siacutelios necessaacuterios ao seu ofiacutecio

SAPATEIRO Olha olha o Carnaval chegou mais cedo OHOHOHOH

Daacute um soco ao de leve nas costas do Diabo mostrando um sorriso de gozo

DIABO Eh laacute Pai Natal eacutes tu Essas tralhas que trazes aiacute satildeo para mim Olha que natildeo sei

coser sapatos AHAHAH

SAPATEIRO Tralhas Estaacute aqui uma vida inteira de trabalho e dedicaccedilatildeo a ajudar os out-

ros

DIABO AHAHAH eacutes como eu Realmente daacute muito trabalho educar os escravos agrave reacutedea

curta para que nos obedeccedilam e nos beijem os peacutes mas satildeo todos uns mal-agradecidos Soacute ldquosa-

pateiricesrdquo eacute que sabem fazer

SAPATEIRO Deves-me estar a confundir com alguns dos teus servos soacute pode

Eu passei a minha vida inteira a ajudar os outros muitas vezes agrave chuva ou ao sol tudo trab-

alho honesto

DIABO Pois acredito que sim Eras o uacutenico sapateiro laacute da santa terrinha aliaacutes o uacutenico

BTNEXT 25

sapateiro de CLASSE Muita ldquoboca de sapordquo vi andar por aiacute graccedilas agrave tua ldquohonestidaderdquo

SAPATEIRO Deves querer festa comigo deves Com essa roupa nota-se logo quem eacutes e agrave

distacircncia Tu eacute que tens a fama de seres mau e tu eacute que te aproveitas dos outros natildeo queiras

colocar todos no mesmo saco e achar que satildeo como tu

DIABO Mau eu Nada disso sou simplesmente Um justiceiro Todos aqueles que levam

uma vida cheia de maldades tecircm lugar reservado no Inferno E isso deixa-me completamente

feliz Adoro ver o horror na cara das pobres alminhas quando as torturo AHAHAH

SAPATEIRO Fartei-me de ir agrave missa sou um bom filho de Deus portanto acho que vou ali

ao outro lado pedir agravequele senhor de branco que me leve

DIABO Ide ide mas natildeo teraacutes sorte O pessoal daquelas bandas gosta de andar descalccedilo

AHAHAH

SAPATEIRO Sei fazer umas sandaacutelias de apoio leve que os vai ajudar a proteger tal como

eu protejo os meus peacutes imaculados Veraacutes como serei bastante uacutetil por aquelas bandas Eu mereccedilo

o ceacuteu

Dito isto o sapateiro afasta-se e vai em direcccedilatildeo ao Anjo

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 22: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da barca do Inferno 22

taram por um mundo melhor aquelas que sempre acreditaram no amor na partilha na justiccedila

e na amizade Eacute no fundo uma recompensa que natildeo estaacute ao alcance de todos

PARVO Jaacute percebi porque que eacute que estaacutes sozinho soacute aceitas pessoas imaginaacuterias XIQIQ-

IQI Serei eu real

ANJO De facto poucos satildeo aqueles que conseguem entrar no paraiacuteso pois poucos satildeo aqueles

que ao longo da vida conseguem conservar a bondade e a pureza no coraccedilatildeo Tu mereces entrar

porque em todos os teus actos demonstraste sempre uma pureza encantadora e nunca maacute inten-

ccedilatildeo Se quiseres podes entrar

Dito isto o Parvo fica junto agrave Barca do Anjo sem contudo entrar

BTNEXT 23

Cena 5

Auto da barca do Inferno 24

A caminhar para a barca do Diabo aparece o Sapateiro com a sua mala onde tem todos os uten-

siacutelios necessaacuterios ao seu ofiacutecio

SAPATEIRO Olha olha o Carnaval chegou mais cedo OHOHOHOH

Daacute um soco ao de leve nas costas do Diabo mostrando um sorriso de gozo

DIABO Eh laacute Pai Natal eacutes tu Essas tralhas que trazes aiacute satildeo para mim Olha que natildeo sei

coser sapatos AHAHAH

SAPATEIRO Tralhas Estaacute aqui uma vida inteira de trabalho e dedicaccedilatildeo a ajudar os out-

ros

DIABO AHAHAH eacutes como eu Realmente daacute muito trabalho educar os escravos agrave reacutedea

curta para que nos obedeccedilam e nos beijem os peacutes mas satildeo todos uns mal-agradecidos Soacute ldquosa-

pateiricesrdquo eacute que sabem fazer

SAPATEIRO Deves-me estar a confundir com alguns dos teus servos soacute pode

Eu passei a minha vida inteira a ajudar os outros muitas vezes agrave chuva ou ao sol tudo trab-

alho honesto

DIABO Pois acredito que sim Eras o uacutenico sapateiro laacute da santa terrinha aliaacutes o uacutenico

BTNEXT 25

sapateiro de CLASSE Muita ldquoboca de sapordquo vi andar por aiacute graccedilas agrave tua ldquohonestidaderdquo

SAPATEIRO Deves querer festa comigo deves Com essa roupa nota-se logo quem eacutes e agrave

distacircncia Tu eacute que tens a fama de seres mau e tu eacute que te aproveitas dos outros natildeo queiras

colocar todos no mesmo saco e achar que satildeo como tu

DIABO Mau eu Nada disso sou simplesmente Um justiceiro Todos aqueles que levam

uma vida cheia de maldades tecircm lugar reservado no Inferno E isso deixa-me completamente

feliz Adoro ver o horror na cara das pobres alminhas quando as torturo AHAHAH

SAPATEIRO Fartei-me de ir agrave missa sou um bom filho de Deus portanto acho que vou ali

ao outro lado pedir agravequele senhor de branco que me leve

DIABO Ide ide mas natildeo teraacutes sorte O pessoal daquelas bandas gosta de andar descalccedilo

AHAHAH

SAPATEIRO Sei fazer umas sandaacutelias de apoio leve que os vai ajudar a proteger tal como

eu protejo os meus peacutes imaculados Veraacutes como serei bastante uacutetil por aquelas bandas Eu mereccedilo

o ceacuteu

Dito isto o sapateiro afasta-se e vai em direcccedilatildeo ao Anjo

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 23: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 23

Cena 5

Auto da barca do Inferno 24

A caminhar para a barca do Diabo aparece o Sapateiro com a sua mala onde tem todos os uten-

siacutelios necessaacuterios ao seu ofiacutecio

SAPATEIRO Olha olha o Carnaval chegou mais cedo OHOHOHOH

Daacute um soco ao de leve nas costas do Diabo mostrando um sorriso de gozo

DIABO Eh laacute Pai Natal eacutes tu Essas tralhas que trazes aiacute satildeo para mim Olha que natildeo sei

coser sapatos AHAHAH

SAPATEIRO Tralhas Estaacute aqui uma vida inteira de trabalho e dedicaccedilatildeo a ajudar os out-

ros

DIABO AHAHAH eacutes como eu Realmente daacute muito trabalho educar os escravos agrave reacutedea

curta para que nos obedeccedilam e nos beijem os peacutes mas satildeo todos uns mal-agradecidos Soacute ldquosa-

pateiricesrdquo eacute que sabem fazer

SAPATEIRO Deves-me estar a confundir com alguns dos teus servos soacute pode

Eu passei a minha vida inteira a ajudar os outros muitas vezes agrave chuva ou ao sol tudo trab-

alho honesto

DIABO Pois acredito que sim Eras o uacutenico sapateiro laacute da santa terrinha aliaacutes o uacutenico

BTNEXT 25

sapateiro de CLASSE Muita ldquoboca de sapordquo vi andar por aiacute graccedilas agrave tua ldquohonestidaderdquo

SAPATEIRO Deves querer festa comigo deves Com essa roupa nota-se logo quem eacutes e agrave

distacircncia Tu eacute que tens a fama de seres mau e tu eacute que te aproveitas dos outros natildeo queiras

colocar todos no mesmo saco e achar que satildeo como tu

DIABO Mau eu Nada disso sou simplesmente Um justiceiro Todos aqueles que levam

uma vida cheia de maldades tecircm lugar reservado no Inferno E isso deixa-me completamente

feliz Adoro ver o horror na cara das pobres alminhas quando as torturo AHAHAH

SAPATEIRO Fartei-me de ir agrave missa sou um bom filho de Deus portanto acho que vou ali

ao outro lado pedir agravequele senhor de branco que me leve

DIABO Ide ide mas natildeo teraacutes sorte O pessoal daquelas bandas gosta de andar descalccedilo

AHAHAH

SAPATEIRO Sei fazer umas sandaacutelias de apoio leve que os vai ajudar a proteger tal como

eu protejo os meus peacutes imaculados Veraacutes como serei bastante uacutetil por aquelas bandas Eu mereccedilo

o ceacuteu

Dito isto o sapateiro afasta-se e vai em direcccedilatildeo ao Anjo

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 24: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da barca do Inferno 24

A caminhar para a barca do Diabo aparece o Sapateiro com a sua mala onde tem todos os uten-

siacutelios necessaacuterios ao seu ofiacutecio

SAPATEIRO Olha olha o Carnaval chegou mais cedo OHOHOHOH

Daacute um soco ao de leve nas costas do Diabo mostrando um sorriso de gozo

DIABO Eh laacute Pai Natal eacutes tu Essas tralhas que trazes aiacute satildeo para mim Olha que natildeo sei

coser sapatos AHAHAH

SAPATEIRO Tralhas Estaacute aqui uma vida inteira de trabalho e dedicaccedilatildeo a ajudar os out-

ros

DIABO AHAHAH eacutes como eu Realmente daacute muito trabalho educar os escravos agrave reacutedea

curta para que nos obedeccedilam e nos beijem os peacutes mas satildeo todos uns mal-agradecidos Soacute ldquosa-

pateiricesrdquo eacute que sabem fazer

SAPATEIRO Deves-me estar a confundir com alguns dos teus servos soacute pode

Eu passei a minha vida inteira a ajudar os outros muitas vezes agrave chuva ou ao sol tudo trab-

alho honesto

DIABO Pois acredito que sim Eras o uacutenico sapateiro laacute da santa terrinha aliaacutes o uacutenico

BTNEXT 25

sapateiro de CLASSE Muita ldquoboca de sapordquo vi andar por aiacute graccedilas agrave tua ldquohonestidaderdquo

SAPATEIRO Deves querer festa comigo deves Com essa roupa nota-se logo quem eacutes e agrave

distacircncia Tu eacute que tens a fama de seres mau e tu eacute que te aproveitas dos outros natildeo queiras

colocar todos no mesmo saco e achar que satildeo como tu

DIABO Mau eu Nada disso sou simplesmente Um justiceiro Todos aqueles que levam

uma vida cheia de maldades tecircm lugar reservado no Inferno E isso deixa-me completamente

feliz Adoro ver o horror na cara das pobres alminhas quando as torturo AHAHAH

SAPATEIRO Fartei-me de ir agrave missa sou um bom filho de Deus portanto acho que vou ali

ao outro lado pedir agravequele senhor de branco que me leve

DIABO Ide ide mas natildeo teraacutes sorte O pessoal daquelas bandas gosta de andar descalccedilo

AHAHAH

SAPATEIRO Sei fazer umas sandaacutelias de apoio leve que os vai ajudar a proteger tal como

eu protejo os meus peacutes imaculados Veraacutes como serei bastante uacutetil por aquelas bandas Eu mereccedilo

o ceacuteu

Dito isto o sapateiro afasta-se e vai em direcccedilatildeo ao Anjo

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 25: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 25

sapateiro de CLASSE Muita ldquoboca de sapordquo vi andar por aiacute graccedilas agrave tua ldquohonestidaderdquo

SAPATEIRO Deves querer festa comigo deves Com essa roupa nota-se logo quem eacutes e agrave

distacircncia Tu eacute que tens a fama de seres mau e tu eacute que te aproveitas dos outros natildeo queiras

colocar todos no mesmo saco e achar que satildeo como tu

DIABO Mau eu Nada disso sou simplesmente Um justiceiro Todos aqueles que levam

uma vida cheia de maldades tecircm lugar reservado no Inferno E isso deixa-me completamente

feliz Adoro ver o horror na cara das pobres alminhas quando as torturo AHAHAH

SAPATEIRO Fartei-me de ir agrave missa sou um bom filho de Deus portanto acho que vou ali

ao outro lado pedir agravequele senhor de branco que me leve

DIABO Ide ide mas natildeo teraacutes sorte O pessoal daquelas bandas gosta de andar descalccedilo

AHAHAH

SAPATEIRO Sei fazer umas sandaacutelias de apoio leve que os vai ajudar a proteger tal como

eu protejo os meus peacutes imaculados Veraacutes como serei bastante uacutetil por aquelas bandas Eu mereccedilo

o ceacuteu

Dito isto o sapateiro afasta-se e vai em direcccedilatildeo ao Anjo

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 26: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da barca do Inferno 26

SAPATEIRO Oh Senhor de branco posso entrar na sua barca

ANJO Entrar Deves-te ter enganado na barca

SAPATEIRO Natildeo meu Senhor vim mesmo para onde eu queria afinal sou um humilde e ho-

nesto Sapateiro e depois duma vida inteira de sacrifiacutecios e luta a ajudar os outros mereccedilo o ceacuteu

ANJO Sim vieste para onde querias vir mas natildeo eacute o local para onde vais Achas mesmo que

mereces o ceacuteu

SAPATEIRO Mau mau Maria Mas isto agora eacute assim Mas agora quem eacute bom natildeo merece

o ceacuteu Entatildeo para quecirc que me dediquei tanto a ajudar os outros Posso fazer umas bonitas

sandaacutelias muito leves para passearem nos jardins sagrados

ANJO Sim eacute verdade que trabalhaste muito mas mentes quando dizes que dedicaste a tua

vida a ajudar os outros ateacute porque eu sei que tambeacutem roubaste descaradamente e mentiste de-

savergonhadamente Por isso pergunto Achas mesmo que mereces ir para o ceacuteu Achas que

alguma vez aceitaria alguma coisa de um ladratildeo e de um mentiroso

SAPATEIRO Satildeo todos Anjos querem laacute ver ldquoQuem nunca errou que atire a primeira pe-

drardquo jaacute laacute dizia o teu mentor

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 27: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 27

ANJO Uma coisa eacute errar sem intenccedilatildeo ou porque exploramos um terreno que natildeo conhec-

emos bem outra eacute errar com a noccedilatildeo de que estamos a praticar o mal e natildeo queremos saber das

consequecircncias dos nossos actos Nesta arte de enganar e roubar foste um grande artista Aliaacutes

acho graccedila agrave tua arrogacircncia porque nem aqui agrave minha frente olhos nos olhos consegues ter a

humildade nem o bom senso de admitir que erraste Natildeo aqui natildeo entras de certeza vai na outra

barca que vais mais bem servido

SAPATEIRO Natildeo vale a pena continuar esta conversa porque natildeo nos vamos entender Natildeo

tenho lugar assim seraacute feito Tenha uma boa viagem

E entatildeo o Sapateiro furioso mas resignado volta agrave barca do Diabo

SAPATEIRO Voltei e quero ir consigo Podemos seguir viagem quando o entender

DIABO Olha olha quem estaacute de volta Levaste com os peacutes do branquinho AHAHAH Anda

daiacute daacute corda ao sapato que hoje eacute dia de festa

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 28: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da barca do Inferno 28

Cena 6

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 29: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 29

Entretanto chega o Frade acompanhado duma presenccedila feminina Ambos se dirigem agrave Barca do Diabo

FRADE La la la la la Eish temos companhia Rapariga esconde-me essas mamas que

estaacute ali um iacutendio que pela aparecircncia diria que tem uma esposa que visitou o meu confessionaacuterio

CHABABABABA

DIABO Olha quem eacute ele E que rica companhia que traz consigo Eacute para mim

FRADE Isso queria vocecirc CHABABABABA Mas afinal para onde vai isto Natildeo seraacute para

um local com muitas mulheres senatildeo natildeo estaria a pedir pela minha moccedila CHABABABABA

DIABO AHAHAHAH Jaacute devo ter umas 300 mulheres no meu hareacutem mas ainda natildeo che-

gam para o meu festim Esta barca vai para a terra dos malditos e pelo que vejo vocecircs ficariam

muito bem laacute

FRADE CHABABABA Eu nessa terra Nem morto me vecirc laacute Eu que ensinei em nome de

Deus natildeo deveria ter um lugar com ele

DIABO Pois sim Tu essa moccediloila jeitosa aiacute ao teu lado e esse saco azul cheio de dinheiro

Graccedilas a ti todas as moccedilas laacute da tua terra viraram freiras e o saco das esmolas anda sempre bem

guardado natildeo eacute verdade

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 30: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da barca do Inferno 30

FRADE Saco azul Decerto que se refere agrave minha muito amada Faacutetima Felgueiras que natildeo

precisou de ir a Faacutetima pois aprendeu a missa toda comigo CHABABABA E natildeo me venha com

rumores sem fundamento por algum motivo apesar dessas maacutes-liacutenguas ela foi reeleita

DIABO AHAHAH areia nos olhos eacute o que o povinho gosta Jaacute que a Faacutetima natildeo vai a

Faacutetima vai Faacutetima agrave Faacutetima Mas natildeo falemos da Fefeacute que com ela eu me entendo depois Tu e

eu temos contas a ajustar E olha que a factura eacute bem cara quero ser bem recompensado pelo

tempo extra que pediste ao teu santinho para ldquoconverteresrdquo umas pobres alminhas O aumento

do IVA natildeo vem nada a calhar nesta altura

FRADE Ainda bem que refere o IVA pois fique sabendo que nunca apliquei o IVA nas esmo-

las obrigatoacuterias que as pessoas da minha paroacutequia tinham que pagar Eis portanto mais uma

razatildeo para natildeo ter contas nenhumas a ajustar consigo Reparo agora que ali daquele lado estaacute

uma barca decerto que deveraacute ser a apropriada agrave minha beatitude Anda rapariga e ajeita-me

novamente essas mamas que precisamos de causar boa impressatildeo CHABABABA

Nisto o Frade dirige-se agrave barca do Anjo onde o Parvo o recebe

FRADE Ora ora E quem seraacute vocecirc Pela sua aparecircncia natildeo deve ser o dono desta barca

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 31: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 31

Sabe onde o posso encontrar

PARVO Para parvo jaacute chego eu podes-te ir embora Ah vocecirc eacute padre Pormenores XIQIQ-

IQI E o que traz aiacute Uma das santas que roubou do altar Ah natildeo essas vendeu-as para com-

prar essa que de santa natildeo deve ter nada XIQIQIQI

FRADE Natildeo esta ldquosantardquo veio ter comigo de livre vontade para eu lhe ensinar a fazer um

Pai Nosso CHABABABABA Oh vocecirc aiacute vocecirc da aureacuteola para onde vai esta barca Para o

paraiacuteso suponho Quero ir para laacute em recompensa dos longos anos que ensinei na Igreja do

nosso Senhor

O Anjo com um semblante triste nem responde ao Frade que compreendendo que o Anjo jamais

o deixaria entrar na sua barca volta frustrado agrave barca do Diabo

DIABO Eh laacute que cara eacute essa Ali o anjinho natildeo te deixou ficar com o saco das esmolas Ou

esqueceste-te de rezar o Pai Nosso AHAHAH

FRADE Nem por isso Aquele barquinho eacute demasiado pequeno para mim Esta eacute a cara de

quem natildeo tem alternativa senatildeo ter de o suportar para a eternidade

O Diabo sorri e o Frade entra na barca

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 32: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da barca do Inferno 32

Cena 7

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 33: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 33

Aproxima-se da barca do Diabo uma mulher com um aspecto normal bem vestida e com um ar

confiante mas que eacute no entanto uma Alcoviteira

ALCOVITEIRA Oacute jeitoso da cornadura eacute vocecirc o motorista deste BMW a velas

DIABO BMW Isto eacute um verdadeiro Rolls Royce o cadillac dos sete mares Atrai as garinas

todas ateacute peixeiras E tu jeitosa tens bom fiacutesico para pegar aqui num remo que eacute um brinde de

boas-vindas

ALCOVITEIRA AH AH AH essa sua poesia faz-me coacutecegas aqui no meu ldquobom fiacutesicordquo De

remos natildeo percebo nada cornudinho mastros sim satildeo a minha especialidade Com certeza natildeo

estaacute a pensar que embarcarei nessa cacareca a que chama barca sabendo o destino que ela tem

Com o calor que laacute faz derreter-me-ia a maquilhagem e o meu silicone explodiria

DIABO Eh laacute peitos de borracha Prefiro os peitos da cabritinha assadinhos Mas natildeo te

queixes o nosso destino eacute um verdadeiro paraiacuteso as gentes satildeo muito calorosas E jaacute que falas

em mastros tenho ali o meu todo empenado Se fizeres a gentileza pega no martelo puxa-lhe o

lustro potildee-no todo catita

ALCOVITEIRA Olha-me este Quem desdenha quer comprar sempre ouvi dizer Nunca

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 34: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da barca do Inferno 34

nenhum homem se queixou aqui dos melotildeezinhos da Lady Bibi Peitos de cabritinha soacute os ar-

ranjo mesmo aos pares e fresquinhos prontinhos para consumo tudo de boa qualidade Quanto

ao seu mastro que lhe puxem o lustro os que estatildeo aiacute consigo que belo corpo tecircm para trabalhar

E agora se me der licencinha vou pocircr estas ricas pernas a passear que jaacute vi que estaacute ali ao lado

quem me vai fazer subir aos ceacuteus

DIABO AHAHAH Literalmente falando ali o anjinho arranja-te um par de asas ateacute voas

Soacute natildeo te daacute uma aureacuteola porque Tu sabes Bem vai laacute vender os teus melotildeezinhos vou trincar

umas espetadas e quando voltares quem sabe se natildeo guardo umas para ti

A Alcoviteira mostra ao Diabo que natildeo se sentiu sequer atingida e virando-lhe as costas segue

em direcccedilatildeo agrave barca do Anjo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho de branco jaacute cheguei Vamos laacute que jaacute se faz tarde e eu

estou louca para chegar ao Paradise Resort Ora decirc caacute uma matildeozinha agrave Lady Bibi

ANJO Lamento mas natildeo necessitaraacutes da minha ajuda para nada ateacute porque te posso garan-

tir que aqui natildeo haacute lugar para ti Quanto muito poderia arranjar-te uma lambreta para ires mais

depressa para o inferno mas mesmo assim natildeo te posso ajudar

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 35: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 35

ALCOVITEIRA HI HI HI que brincalhatildeo Ora aiacute estaacute uma coisa que aprecio num homem

para aleacutem de outras coisas claro o humor Natildeo acha que este rico corpinho talhado pelos anjos

que tanto trabalhou para o bem estar de muitos dos homens da vossa casa ia alccedilar a perna para

montar numa lambreta

ANJO Lamento desiludir-te mas tambeacutem natildeo alccedilas a perna na minha barca ateacute porque o

teu lugar natildeo eacute aqui Esta barca estaacute destinada a todos aqueles que trabalharam e se esforccedilaram

por um mundo melhor Tendo em conta a vida que levaste com certeza que deves estar mais do

que consciente de que este natildeo eacute o teu lugar

ALCOVITEIRA Olha olha Entatildeo e eu natildeo me esforcei para fornecer as meninas mais

jeitosas para cuidarem dos homens da feacute para ajudaacute-los a sentir-se melhor mais levezinhos Jaacute

vi que aqui natildeo me safo Vou mas eacute ter ali com o cornudinho cheira-me que no Sauna Resort vou

encontrar laacute muitos conhecidos meus sempre seraacute menos enfadonho

Mediante as palavras proferidas ao Anjo a Alcoviteira resolve regressar agrave barca do Diabo

ALCOVITEIRA Oacute borrachinho decirc caacute uma matildeozinha para ajudar a Lady Bibi a subir Pa-

rece-me que a viagem vai ser mais divertida nesta barca do que ali na do patildeozinho sem sal HI HI

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 36: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da barca do Inferno 36

HI Vaacute aqui a Briacutezida ateacute lhe faz umas festinhas nesses corninhos seu grande maroto

DIABO Anda daiacute Agarra-te ao remo que natildeo tarda nada levantamos acircncora e vamos todos

prsquora outra banda

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 37: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 37

Cena 8

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 38: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da barca do Inferno 38

Agrave barca do Diabo chega o Judeu que se prepara para lhe dirigir a palavra mostrando alguma

superioridade

JUDEU Ora bem que espelunca eacute esta que aqui temos

DIABO Espelunca Esta barca vai ldquoao fundordquo mas natildeo se afunda meu amigo Vejo que

gostas de coisa fina hein

JUDEU Fina e da boa De preferecircncia da melhor que possa haver Quanto eacute que tenho de

pagar para entrar nesta espelunca de meia tigela 1099euro chega

DIABO AHAHAH Aqui nem de graccedila entras a carga estaacute pesada demais

JUDEU Natildeo seja por isso O meu peso natildeo faraacute grande diferenccedila Aleacutem disso onde entra um

fidalgo um onzeneiro um sapateiro um frade e uma alcoviteira repito uma ALCOVITEIRAhellip

caberaacute mais uma pessoa tatildeo honestiacutessima quanto eu Laacute diz o ditado ldquoonde cabe um cabem

doishelliprdquo Veraacute como eu ainda lhe irei ser uacutetil

DIABO Honestiacutessimo diz que sim AHAHAH Tenho aqui de tudo menos gente honesta

que dessa jaacute o Inferno lsquotaacute cheio

JUDEU Honestiacutessimo virtuoso sensato O quecirc que pensa Estaacute a recusar um ser tatildeo

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 39: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 39

completo como eu Eu estava disposto a dar o braccedilo a torcer e entrar na sua barca Natildeo sabe o

bem que eu faria Haveraacute de chorar por mim haveraacute de querer gente como eu e natildeo ter haveraacute

de me implorar que volte

Entretanto o Parvo vai-se aproximando do Diabo e do Judeu e dirige-lhes algumas palavras

PARVO Honestiacutessimo ou bestiacutessimo Virtuoso ou virose Sensato ou x-acto Ups esta natildeo

fez sentido XIQUIQUI Eu posso ser parvo mas ao menos natildeo sou ladratildeo XIQUIQUI Nem o

Diabo te laquogramaraquo talvez porque tenha receio que ainda lhe possas roubar o lugar

JUDEU Olha que piadahellip jaacute a formiga tem catarro querem ver Quem julga que eacute para

dizer o que quer que seja Quem o chamou para a conversa oh pateta de um raio Ahhellip que-

rem ver que agora aqui o velejador cornudo precisa de algueacutem para o defender e falar por ele

Realmente talvez natildeo fosse maacute ideia trocarmos de lugarhellip pelo menos eu natildeo preciso de ajuda

vinda do Ceacuteu

DIABO Tu aqui no meu lugar AHAHAH Tens que comer muita lama para chegar aos

meus calcanhares Mas olha vai tocar ao sininho ali ao lado pode ser que te arranjem um

cantinho

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 40: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da barca do Inferno 40

PARVO Ele ateacute poderia tocar outra coisa XIQUIQUI Se o charlatatildeo do sapateiro natildeo

entrou na ldquominhardquo barca o rei dos gatunos iria entrar XIQUIQUI Iraacute com o cornudo e que

disputem o trono

DIABO PFFF Vou ter que gramar este triste Salta daiacute mas natildeo faccedilas muito barulho

nem te mexas muito aliaacutes pega nos remos e arranja aiacute um canto que natildeo quero ver ningueacutem

parado E tu Parvo deixa de meter o nariz onde natildeo eacutes chamado Ainda vais prsquoras masmorras

crsquoos porcos

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 41: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 41

Cena 9

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 42: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da barca do Inferno 42

Agrave barca do Diabo chega o Corregedor que lhe diz num tom cortecircs

CORREGEDOR Meu caro Diabo que linda barca temos noacutes aqui

DIABO Excelso Senhor Corregedor esta barca haacute muito que aguarda a sua ldquojustardquo visita

CORREGEDOR ldquoJustardquo visita De que faleis Diabo Soacute se esta maravilhosa barca for em

direcccedilatildeo ao Ceacuteu porque se for para suas terras decerto que haveraacute aqui algum engano

DIABO Ora mas claro que natildeo Meritiacutessimo Foi um grande justiceiro defensor das causas

mais obscuras merece todo o devido respeito e um lugar na minha terrinha

CORREGEDOR Eu sempre velei pelos interesses da sociedade garanti que a justiccedila fosse

aplicada e a Coroa representada Estes feitos natildeo satildeo obscuros - satildeo gloriosos

DIABO E com toda a razatildeo Aquela sua mansatildeo construiacuteda nas terrinhas do Ti Manel que

agora coitadinho mora debaixo da ponte Ah Ele que volte prsquoraacute terra dele natildeo eacute Fez-se

justiccedila AHAHA Eacute por isso que seria digniacutessimo e sensato da sua parte juntar-se agrave minha hu-

milde comitiva

CORREGEDOR O Manel natildeo fazia nada naquelas terras Ele tinha laacute apenas a sua horta e

as suas ovelhas e eacute por isso que construiacute laacute a minha humilde habitaccedilatildeo Eu represento a Coroa

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 43: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 43

mereccedilo muito mais aquelas terras que ele que eacute um simples plebeu Se vive debaixo da ponte eacute

porque natildeo lutou por ter algo mais Sim fez-se justiccedila

Entretanto aparece o Procurador que junta-se ao Corregedor

PROCURADOR Saudaccedilotildees meu honoraacutevel colega de profissatildeo Eacute como dizeis meu caro

Juiz somos os profetas da justiccedila e da ordem uma ocupaccedilatildeo natildeo menos importante que aquela

que eacute executada pelos padres que comunicam a palavra de Deus A justiccedila e a sua imposiccedilatildeo eacute

a forma de obter ordem para que possa haver paz entre os povos Eacute evidente que haacute chefes de

estado e estes como o nome indica eacute que mandam logo a sua vontade eacute que tem que ser cum-

prida - tambeacutem satildeo humanos logo nem sempre tomam as melhores decisotildees contudo indepen-

dentemente de quais sejam seratildeo sempre melhores em relaccedilatildeo agrave ausecircncia das mesmas Note-se

bem os povos natildeo estatildeo preparados para a anarquia o excesso de liberdade conduz a motins e a

outras desgraccedilas A igualdade eacute uma utopia se eu sou mais inteligente que o campoacutenio eacute certo

que lhe sou superior e poderei chegar mais longe que ele o que implica que a justiccedila me tem que

defender do campoacutenio que na sua rudeza e falta de intelecto iraacute ter inveja do que eu tenho e

tentaraacute suprimir essa diferenccedila recorrendo a qualquer acto animalesco Do mesmo modo que se

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 44: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da barca do Inferno 44

usam armas para domar os animais selvagens eacute preciso tambeacutem usaacute-las para domar toda uma

sociedade que sem isso se tornaria selvagem Em suma a justiccedila eacute a ordem do mais forte - o

mais fraco submete-se ou sofre as consequecircncias No final de contas todos ficam a ganhar - o

ente superior eacute protegido da escumalha e a escumalha eacute levada a natildeo mostrar a sua verdadeira

identidade De qualquer modo o que somos noacutes simples executantes do sistema social para

dizer se isto estaacute bem ou mal Todos somos igualmente refeacutens do sistema imposto quer ele seja

bom ou mau Portanto como eacute evidente eu e o meu caro Juiz natildeo poderemos ir para esta barca

- natildeo seria digno de tudo quanto noacutes fizemos em vivos Venha meu caro amigo vi ali uma outra

barca decerto que eacute aquela que nos estaacute destinada

DIABO Ide ide legiatildeo da boa justiccedila pregar a vossa palavra aos ouvidos do santo Mas natildeo

demorem que a barca lsquotaacute quase pronta prsquora zarpar

Mediante as palavras do Diabo o Procurador e o Corregedor vatildeo ateacute agrave barca do Anjo

CORREGEDOR Beliacutessimo anjo deixai-nos entrar na sua majestosa barca e dar-nos acesso

agraves terras pelas quais tanto lutaacutemos durante a nossa vida terrena

ANJO Terras Acho que devem estar enganados na barca Aqui soacute entra quem na vida prati-

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 45: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 45

cou o bem algo que natildeo vejo em vossas excelecircncias

PROCURADOR Mas compreenda senhor o ldquobemrdquo eacute um conceito muito subjectivo Como

jaacute explicaacutemos ao outro barqueiro tudo quanto fizemos em vida foi em prol de um bem superior

talvez natildeo segundo a sua definiccedilatildeo de bem mas decerto consoante a de outra pessoa Natildeo quero

equiparar essa outra pessoa a vossa excelecircncia contudo eu e o meu colega como cidadatildeos que

fomos isto eacute agrave mercecirc da sociedade natildeo pudemos fugir ao seu sistema Aliaacutes quem nos garante

a noacutes que uma eventual ldquofugardquo seria positiva para o ldquobemrdquo Vivemos na Terra segundo a Lei

Humana agora que vamos para o ceacuteu estaremos dispostos a viver segundo a Lei de Deus - se-

jamos realistas de outro modo natildeo faria sentido Portanto caro anjo peccedilo-lhe respeitosamente

que nos conceda o privileacutegio de navegar consigo ateacute agraves aacuteguas e terras

ANJO Mas afinal que espeacutecie de ldquobemrdquo eacute esse que protege os mais fortes e que reprime os

mais fracos Explica-me que conceito eacute esse que passa por cima de todos os valores e de todos

aqueles que se esforccedilaram por um mundo melhor Que lei eacute essa que permite que ladrotildees e men-

tirosos passem impunes agrave justiccedila a troco de terras ou de algumas moedas A propoacutesito que

podem dois impostores como vocecircs ensinar a mim quando na realidade hipotecaram a proacutepria

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 46: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da barca do Inferno 46

alma a troco de umas meras regalias passando por cima de todos os valores humanos e usur-

pando todas as normas que a vossa sociedade criou A justiccedila e o bem satildeo dois conceitos que natildeo

podem ser usados de forma tatildeo leviana nem os senhores tecircm os requisitos necessaacuterios para isso

Faccedilam o favor de se retirar porque aqui natildeo haacute lugar para vocecircs

PROCURADOR Naturalmente que a repressatildeo dos fracos em prol do bem dos fortes parece

um ldquomalrdquo mas temos que analisar a questatildeo de um modo menos parcial se me permite O forte

eacute superior ao fraco exactamente por ser forte - o Leatildeo come a Zebra natildeo haacute lei da natureza

que proteja a Zebra Na sociedade humana passa-se o mesmo o forte domina o fraco A lei eacute

criada pelo forte pois soacute o forte consegue impor a lei Como o forte natildeo eacute perfeito como sua ex-

celentiacutessima e portanto carece de certos problemas morais como o egoiacutesmo evidentemente que

iraacute criar leis que o beneficiam a ele e natildeo aos fracos Como tal a lei torna o forte mais forte e

o fraco mais fraco A justiccedila eacute a lei posta em praacutetica e como tal iraacute favorecer necessariamente

o forte E porquecirc que eu digo que daqui surge um bem superior Porque independentemente da

lei ser desleal da justiccedila ser injusta e do sistema social ser feito a pensar em alguns indiviacuteduos e

natildeo na sociedade global no fim de contas eacute preferiacutevel haver esse sistema imperfeito do que natildeo

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 47: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 47

haver sistema Sem sistema natildeo haveria sociedade e todos ficariam em pior situaccedilatildeo quer o

forte quer o fraco Assim o bem eacute assegurado Que outro bem se poderia esperar Aquele que

foi pregado pelo nosso Senhor Jesus Ora tenhamos os peacutes na terra - isso eacute uma fantasia por

algum motivo ele foi assassinado

Referiste o uso do dinheiro como algo contra a justiccedila - natildeo poderias estar mais errado O

dinheiro eacute a medida da forccedila Quem tem mais eacute o mais forte eacute assim que o sistema funciona

Que poderiacuteamos noacutes ter feito Somos inocentes pois fomos impotentes contra o sistema imposto

ANJO Natildeo sejas ignorante herege porque Nosso Senhor Jesus Cristo derramou o seu sangue

para vos dar vida salvando a humanidade do poder do pecado e da fraqueza humana Ele ens-

inou-vos a ter feacute e a acreditar no espiacuterito humano porque soacute a feacute nos leva a ultrapassar obstaacutecu-

los e a suportar a amargura dos momentos mais difiacuteceis A maior prova da sua grandeza eacute que

ateacute hoje todos os exeacutercitos que jaacute marcharam todos os navios que jaacute navegaram todos os par-

lamentos que jaacute se reuniram todos os reis que jaacute reinaram juntos nunca influenciaram tanto a

vida do Homem como Jesus Cristo o fez E sabes porquecirc Porque ele atraveacutes da sua feacute desafiou

todas as leis humanas e todos os tiranos para vos conduzir agrave salvaccedilatildeo morrendo pregado na

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 48: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da barca do Inferno 48

cruz para mostrar ao ser humano a importacircncia de nunca perder a sua feacute em Deus

Mas infelizmente isso eacute algo que tu e o teu colega nunca compreenderatildeo pois renegaram a

feacute em troca de umas quantas regalias fiacutesicas vendendo a alma ao diabo para te tornarem escra-

vos do pecado Tu acreditas mesmo que uma simples moeda de metal vale mais do um pequeno

gesto de humanidade Pobre tolo natildeo sabes o que dizes e acima de tudo fico chocado porque

percebo que natildeo soacute natildeo tens vergonha pelos actos que cometeste como tambeacutem revelas toda a

tua ignoracircncia em quereres-me ensinar a mim o conceito de ldquobondaderdquo quando na realidade

natildeo fazes a miacutenima ideia do que isso seja Natildeo definitivamente aqui natildeo entram porque aqui

natildeo haacute lugar para a tirania Vatildeo na outra barca que tecircm laacute lugar de certeza O inferno eacute o local

mais indicado para voacutes

Com toda esta conversa tatildeo convincente do Anjo o Corregedor e o Procurador ficam envergonha-

dos e vatildeo cabisbaixos ter com o Diabo novamente

DIABO Ora ora Vossas Excelecircncias estatildeo de volta O santinho ganhou a causa Que in-

justiccedila Podiam ter usado os preacutestimos do meu advogado que me tem ajudado tantas vezes

AHAHAH Parece que os vossos pregotildees de ldquojusticcedila justardquo natildeo o convenceram Mas natildeo fiquem

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 49: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 49

tristes tecircm ainda lugar garantido na minha barca E sempre podem brincar aos tribunais tenho

ali uns quantos desgraccedilados que merecem uns castigos

CORREGEDOR Caro Diabo infelizmente o Anjo natildeo compreendeu a missatildeo agrave qual noacutes

estaacutevamos destinados No entanto eacute uma oportunidade para vossa excelecircncia pois tem agrave sua

disposiccedilatildeo dois indiviacuteduos de creacuteditos formados no estabelecimento da ordem e decerto que pre-

cisaraacute da nossa ajuda no Inferno Natildeo cometa o erro de desperdiccedilar um potencial como o nosso

hellip

DIABO AHAHAH na escola onde vocecircs estudaram jaacute eu era professor Eu nunca erro e sei

que vocecircs realmente tecircm um grande potencial para trapacear Jaacute agora tenho ali uns martelos

reservados prsquora vocecircs mas natildeo eacute prsquora baterem nas mesas tenho umas taacutebuas soltas e quero que

as preguem no chatildeo

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 50: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da barca do Inferno 50

Cena 10

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 51: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 51

Eis que chega um enforcado - Saddam Hussein ainda com a corda ao pescoccedilo dirigindo-se para

o Diabo o qual lhe lanccedila um sorriso maleacutefico dizendo-lhe

DIABO Eh laacute de corda ao pescoccedilo Casaste-te ou quecirc

ENFORCADO Casei casei mas natildeo foi contigo que natildeo tive culpa do que aconteceu Casei

com o azar e o infortuacutenio pois tudo o que fiz foi para proveito dos que me seguiam Natildeo tenho

culpa se tinha algum proveito tambeacutem Tenho aqui uns filmes do youtube no telemoacutevel que pro-

vam que o pessoal que estaacute agrave fome estaacute todo preso pelos judeus e a comer do que eles lhes datildeo Os

meus cidadatildeos vivem todos em casas de luxo e natildeo lhes falta nada Ora vecirc vecirc

E mais tenho tambeacutem o viacutedeo do meu enforcamento para veres como eacute que me pagaram es-

ses catildees que hatildeo-de morrer sarnentos numa valeta sem que ningueacutem lhes atire um osso

DIABO Oh Saddam sou teu fatilde nuacutemero 1 Adorei a tua ceacutelebre afirmaccedilatildeo no julgamento

ldquoRebenta a bolhardquo E prsquora mostrar o quanto gosto de ti ofereccedilo-te um lugar na minha barca ao

meu lado Pode ser ainda que os ratos que tenho no poratildeo consigam roer a tua corda

ENFORCADO Cantas bem mas natildeo me alegras Aiacute natildeo quero eu ficar Na tua natildeo quero eu

governar pois se os meus cidadatildeos que eram umas santas almas e seguidores do Coratildeo fizeram

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 52: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da barca do Inferno 52

o que fizeram imagino a populaccedilatildeo que tens aiacute o que me fazia Os uacutenicos ratos que me roeram

a corda foram aqueles que eu ajudei mas ainda espero que o vejam laacute da outra barca e me cha-

mem

Os teus ratos roerem-me a corda ora vejam-me soacute isto

DIABO Se pensas que vieste prsquora continuar a governar lsquotaacutes muito enganado Aqui no pardie-

iro mando eu Quanto aos teus cidadatildeos parecias o Valentim ldquomatem-se que vos ofereccedilo 30

virgens no ceacuteurdquo AHAHAH Olha tenho ali uma ldquovirgemrdquo prsquora comeccedilares se quiseres

ENFORCADO Pois vinha fiado que as encontrava mas na outra barca Venha de laacute essa

vamos ver o que eacute que vale Mal por mal vou consolado Jaacute ouccedilo cavalos Deixa-me entrar deixa-

me entrar que se calhar vecircem-me buscar

DIABO AHAHAH este natildeo deu trabalho nenhum Nem sabe a ldquosorterdquo que lhe espera laacute em

baixo AHAHAH

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 53: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 53

Cena 11

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 54: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da barca do Inferno 54

Ao longe avista-se um maacutertir a cavalo que vem a declamar algo

CAVALEIRO Tudo valeraacute a pena

Se o fraco ficar mais forte

Lutar pela igualdade

Facultou-me uma digna morte

DIABO Eh laacute onde vais com tanta pressa assim armado agrave DQuixote

CAVALEIRO Eu natildeo tenho pressa

A Dulcineia natildeo me espera

A missatildeo foi cumprida

Vento de mudanccedila nesta era

DIABO Entatildeo meu caro se fizeres o favor galopa caacute prsquora dentro que natildeo tarda nada vamos

iniciar a nossa viagem prsquoro inferno

CAVALEIRO Natildeo morri pela recompensa

Ofereci a minha vida agrave igualdade

Se agora posso escolher

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 55: Auto Da Barca Do Inferno

BTNEXT 55

Entatildeo que seja a felicidade

Sendo assim Diabo

Natildeo irei com a tua comitiva

O meu destino eacute o Ceacuteu

Terra onde natildeo sobe o IVA

Mediante as palavras proferidas ao Diabo o Cavaleiro continuou a trote ateacute agrave barca do Anjo

ANJO Ainda bem que chegaste tenho estado todo este tempo agrave tua espera pois eu bem sei os

tormentos que passaste ateacute aqui chegares mas a tua coragem e a tua luta foram o suficiente para

que hoje tivesses um lugar reservado nesta barca Eu sempre soube que este era o teu destino

porque soacute quem luta assim eacute que merece o paraiacuteso

FIM

  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 56: Auto Da Barca Do Inferno
  • Prefaacutecio13
  • Cena 1
  • Cena 213
  • Cena 313
  • Cena 413
  • Cena 513
  • Cena 613
  • Cena 713
  • Cena 813
  • Cena 913
  • Cena 1013
  • Cena 1113
    • Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

      AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

      Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

      rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

      Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

      O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

      comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

      e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

      (Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

      Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

      nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

      ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

      PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

      SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

      ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

      do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

      FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

      desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

      Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

      agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

      com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

      BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

      batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

      e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

      matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

      quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

      de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

      Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

      conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

      BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

      Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

      e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

      e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

      CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

      escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

      1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

      diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 57: Auto Da Barca Do Inferno

Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente Texto proveniente de A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro lthttpwwwbibvirtfuturouspbrgt A Escola do Futuro da Universidade de Satildeo Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa lt httpwwwipnptopsisliteragt Copyright copy 1996 1997 1998 OPSIS Multimeacutedia lthttpwwwipnptopsisindexhtmlgt com o apoio do Projecto Geira lthttpwwwgeiraptgt Este material pode ser redistribuiacutedo livremente desde que natildeo seja alterado e que as informaccedilotildees acima sejam mantidas Para maiores informaccedilotildees escreva para ltbibvirtfuturouspbrgt Estamos em busca de patrocinadores e voluntaacuterios para nos ajudar a manter este projeto Se vocecirc quer ajudar de alguma forma mande um e-mail para ltparceirosfuturouspbrgt ou ltvoluntariofuturouspbrgt

AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente

Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplaccedilatildeo da sereniacutessima e muito catoacutelica

rainha Lianor nossa senhora e representado por seu mandado ao poderoso priacutencipe e mui alto rei Manuel primeiro de Portugal deste nome

Comeccedila a declaraccedilatildeo e argumento da obra Primeiramente no presente auto se fegura que no ponto que acabamos de espirar chegamos supitamente a um rio o qual per forccedila havemos de passar em um de dous bateacuteis que naquele porto estatildeo scilicet um deles passa pera o paraiacuteso e o outro pera o inferno os quais bateacuteis tem cada um seu arrais na proa o do paraiacuteso um anjo e o do inferno um arrais infernal e um companheiro

O primeiro intrelocutor eacute um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui

comprido e uumla cadeira de espaldas E comeccedila o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha DIABO Agrave barca agrave barca houlaacute que temos gentil mareacute - Ora venha o carro a reacute COMPANHEIRO Feito feito Bem estaacute Vai tu muitieramaacute e atesa aquele palanco e despeja aquele banco pera a gente que viraacute Agrave barca agrave barca hu-u Asinha que se quer ir Oh que tempo de partir louvores a Berzebu - Ora sus que fazes tu Despeja todo esse leito COMPANHEIRO Em boa hora Feito feito DIABO Abaixa aramaacute esse cu Faze aquela poja lesta

e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

(Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 58: Auto Da Barca Do Inferno

e alija aquela driccedila COMPANHEIRO Oh-oh caccedila Oh-oh iccedila iccedila DIABO Oh que caravela esta Potildee bandeiras que eacute festa Verga alta Acircncora a pique - Oacute poderoso dom Anrique caacute vindes voacutes Que cousa eacute esta Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz FIDALGO Esta barca onde vai ora que assi estaacute apercebida DIABO Vai pera a ilha perdida e haacute-de partir logo essora FIDALGO Pera laacute vai a senhora DIABO Senhor a vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isso corticcedilo DIABO Porque a vedes laacute de fora FIDALGO Poreacutem a que terra passais DIABO Pera o inferno senhor FIDALGO Terra eacute bem sem-sabor DIABO Quecirc E tambeacutem caacute zombais FIDALGO E passageiros achais pera tal habitaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo pera ir ao nosso cais FIDALGO Parece-te a ti assi DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que leixo na outra vida quem reze sempre por mi DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi E tu viveste a teu prazer cuidando caacute guarecer por que rezam laacute por ti Embarca - ou embarcai que haveis de ir agrave derradeira Mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai FIDALGO Quecirc Quecirc Quecirc Assi lhe vai DIABO Vai ou vem Embarcai prestes Segundo laacute escolhestes assi caacute vos contentai Pois que jaacute a morte passastes haveis de passar o rio FIDALGO Natildeo haacute aqui outro navio DIABO Natildeo senhor que este fretastes e primeiro que expirastes me destes logo sinal FIDALGO Que sinal foi esse tal DIABO Do que voacutes vos contentastes FIDALGO A estoutra barca me vou Hou da barca Para onde is Ah barqueiros Natildeo me ouvis Respondei-me Houlaacute Hou

(Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 59: Auto Da Barca Do Inferno

(Pardeus aviado estou Canta isto eacute jaacute pior) Oue jericocins salvanor Cuidam caacute que satildeo eu grou ANJO Que quereis FIDALGO Que me digais pois parti tatildeo sem aviso se a barca do Paraiacuteso eacute esta em que navegais ANJO Esta eacute que demandais FIDALGO Que me leixeis embarcar Sou fidalgo de solar eacute bem que me recolhais ANJO Natildeo se embarca tirania neste batel divinal FIDALGO Natildeo sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria ANJO Pera vossa fantesia mui estreita eacute esta barca FIDALGO Pera senhor de tal marca nom haacute aqui mais cortesia Venha a prancha e atavio Levai-me desta ribeira ANJO Natildeo vindes voacutes de maneira pera entrar neste navio Essoutro vai mais vazio a cadeira entraraacute e o rabo caberaacute e todo vosso senhorio Ireis laacute mais espaccediloso voacutes e vossa senhoria cuidando na tirania do pobre povo queixoso E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-eis tanto menos quanto mais fostes fumoso DIABO Agrave barca agrave barca senhores Oh que mareacute tatildeo de prata Um ventozinho que mata e valentes remadores Diz cantando Voacutes me veniredes a la mano a la mano me veniredes FIDALGO Ao Inferno todavia Inferno haacute i pera mi Oh triste Enquanto vivi natildeo cuidei que o i havia Tive que era fantesia Folgava ser adorado confiei em meu estado e natildeo vi que me perdia

Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 60: Auto Da Barca Do Inferno

Venha essa prancha Veremos esta barca de tristura DIABO Embarque vossa doccedilura que caacute nos entenderemos Tomarecircs um par de remos veremos como remais e chegando ao nosso cais todos bem vos serviremos FIDALGO Esperar-me-ecircs voacutes aqui tornarei agrave outra vida ver minha dama querida que se quer matar por mi Dia Que se quer matar por ti FIDALGO Isto bem certo o sei eu DIABO Oacute namorado sandeu o maior que nunca vi FIDALGO Como podraacute isso ser que mescrevia mil dias DIABO Quantas mentiras que lias e tu morto de prazer FIDALGO Pera que eacute escarnecer quem nom havia mais no bem DIABO Assi vivas tu ameacutem como te tinha querer FIDALGO Isto quanto ao que eu conheccedilo DIABO Pois estando tu expirando se estava ela requebrando com outro de menos preccedilo FIDALGO Daacute-me licenccedila te peccedilo que vaacute ver minha mulher DIABO E ela por natildeo te ver despenhar-se-aacute dum cabeccedilo Quanto ela hoje rezou antre seus gritos e gritas foi dar graccedilas infinitas a quem a desassombrou FIDALGO Canta ela bem chorou DIABO Nom haacute i choro de alegria FIDALGO E as laacutestimas que dezia DIABO Sua matildee lhas ensinou Entrai meu senhor entrai Ei la prancha Ponde o peacute FIDALGO Entremos pois que assi eacute DIABO Ora senhor descansai passeai e suspirai Em tanto viraacute mais gente FIDALGO Oacute barca como eacutes ardente Maldito quem em ti vai Diz o Diabo ao Moccedilo da cadeira DIABO Nom entras caacute Vai-te di A cadeira eacute caacute sobeja cousa que esteve na igreja

nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 61: Auto Da Barca Do Inferno

nom se haacute-de embarcar aqui Caacute lha daratildeo de marfi marchetada de dolores com tais modos de lavores que estaraacute fora de si Agrave barca agrave barca boa gente que queremos dar agrave vela Chegar ela Chegar ela Muitos e de boamente Oh que barca tatildeo valente Vem um Onzeneiro e pergunta ao Arrais do Inferno dizendo ONZENEIRO Pera onde caminhais DIABO Oh que maacute-hora venhais onzeneiro meu parente Como tardastes voacutes tanto ONZENEIRO Mais quisera eu laacute tardar Na safra do apanhar me deu Saturno quebranto DIABO Ora mui muito mespanto nom vos livrar o dinheiro ONZENEIRO Solamente para o barqueiro nom me leixaram nem tanto DIABO Ora entrai entrai aqui ONZENEIRO Natildeo hei eu i dembarcar DIABO Oh que gentil recear e que cousas pera mi ONZENEIRO Ainda agora faleci leixa-me buscar batel DIABO Pesar de Jam Pimentel Porque natildeo iraacutes aqui ONZENEIRO E pera onde eacute a viagem DIABO Pera onde tu haacutes-de ir ONZENEIRO Havemos logo de partir DIABO Natildeo cures de mais linguagem ONZENEIRO Mas pera onde eacute a passagem DIABO Pera a infernal comarca ONZENEIRO Dix Nom vou eu tal barca Estoutra tem avantagem Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da barca Houlaacute Hou Haveis logo de partir ANJO E onde queres tu ir ONZENEIRO Eu pera o Paraiacuteso vou ANJO Pois canteu mui fora estou de te levar para laacute Essoutra te levaraacute vai pera quem te enganou ONZENEIRO Porquecirc ANJO Porque esse bolsatildeo tomaraacute todo o navio ONZENEIRO Juro a Deus que vai vazio

ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 62: Auto Da Barca Do Inferno

ANJO Natildeo jaacute no teu coraccedilatildeo ONZENEIRO Laacute me fica de rondatildeo minha fazenda e alhea ANJO Oacute onzena como eacutes fea e filha de maldiccedilatildeo Torna o Onzeneiro agrave barca do Inferno e diz ONZENEIRO Houlaacute Hou Demo barqueiro Sabecircs voacutes no que me fundo Quero laacute tornar ao mundo e trazer o meu dinheiro que aqueloutro marinheiro porque me vecirc vir sem nada daacute-me tanta borregada como arrais laacute do Barreiro DIABO Entra entra e remaraacutes Nom percamos mais mareacute ONZENEIRO Todavia DIABO Per forccedila eacute Que te pecircs caacute entraraacutes Iraacutes servir Satanaacutes pois que sempre te ajudou ONZENEIRO Oh Triste quem me cegou DIABO Calte que caacute choraraacutes Entrando o Onzeneiro no batel onde achou o Fidalgo embarcado diz tirando o barrete ONZENEIRO Santa Joana de Valdecircs Caacute eacute vossa senhoria FIDALGO Daacute ograve demo a cortesia DIABO Ouvis Falai voacutes cortecircs Voacutes fidalgo cuidareis que estais na vossa pousada Dar-vos-ei tanta pancada com um remo que renegueis Vem Joane o Parvo e diz ao Arrais do Inferno PARVO Hou daquesta DIABO Quem eacute PARVO Eu soo Eacute esta a naviarra nossa DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Hou Pesar de meu avocirc Soma vim adoecer e fui maacute-hora morrer e nela pera mi soacute DIABO De que morreste PARVO De quecirc Samicas de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Maacute rabugem que te decirc DIABO Entra Potildee aqui o peacute

PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 63: Auto Da Barca Do Inferno

PARVO Houlaacute Nom tombe o zambuco DIABO Entra tolaccedilo eunuco que se nos vai a mareacute PARVO Aguardai aguardai houlaacute E onde havemos noacutes dir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-aacute-a DIABO Oacute Inferno Entra caacute PARVO Ograve Inferno Eramaacute Hiu Hiu Barca do cornudo Pecircro Vinagre beiccediludo rachador dAlverca huhaacute Sapateiro da Candosa Antrecosto de carrapato Hiu Hiu Caga no sapato filho da grande aleivosa Tua mulher eacute tinhosa e haacute-de parir um sapo chantado no guardanapo Neto de cagarrinhosa Furta cebolas Hiu Hiu Excomungado nas erguejas Burrela cornudo sejas Toma o patildeo que te caiu A mulher que te fugiu pera Ilha da Madeira Cornudo ataacute mangueira toma o patildeo que te caiu Hiu Hiu Lanccedilo-te uumla pulha Decirc-decirc Pica nagravequela Hump Hump Caga na vela Hio cabeccedila de grulha Perna de cigarra velha caganita de coelha pelourinho da Pampulha Mija nagulha mija nagulha Chega o Parvo ao batel do Anjo e dlz PARVO Hou da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Samica algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres porque em todos teus fazeres per maliacutecia nom erraste Tua simpreza tabaste pera gozar dos prazeres Espera entanto per i veremos se vem algueacutem merecedor de tal bem que deva de entrar aqui Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de formas e chega ao batel infernal e diz

SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 64: Auto Da Barca Do Inferno

SAPATEIRO Hou da barca DIABO Quem vem i Santo sapateiro honrado como vens tatildeo carregado SAPATEIRO Mandaram-me vir assi E pera onde eacute a viagem DIABO Pera o lago dos danados SAPATEIRO Os que morrem confessados onde tecircm sua passagem DIABO Nom cures de mais linguagem Esta eacute a tua barca esta SAPATEIRO Renegaria eu da festa e da puta da barcagem Como poderaacute isso ser confessado e comungado DIABO Tu morreste excomungado Nom o quiseste dizer Esperavas de viver calaste dous mil enganos Tu roubaste bem trintanos o povo com teu mester Embarca eramaacute pera ti que haacute jaacute muito que tespero SAPATEIRO Pois digo-te que nom quero DIABO Que te pecircs haacutes-de ir si si SAPATEIRO Quantas missas eu ouvi nom me hatildeo elas de prestar DIABO Ouvir missa entatildeo roubar eacute caminho peraqui SAPATEIRO E as ofertas que daratildeo E as horas dos finados DIABO E os dinheiros mal levados que foi da satisfaccedilatildeo SAPATEIRO Ah Nom praza ograve cordovatildeo nem agrave puta da badana se eacute esta boa traquitana em que se vecirc Jan Antatildeo Ora juro a Deus que eacute graccedila Vai-se agrave barca do Anjo e diz Hou da santa caravela poderecircs levar-me nela ANJO A caacuterrega tembaraccedila SAPATEIRO Nom haacute mercecirc que me Deus faccedila Isto uxiquer iraacute ANJO Essa barca que laacute estaacute Leva quem rouba de praccedila Oh almas embaraccediladas SAPATEIRO Ora eu me maravilho haverdes por gratildeo peguilho quatro forminhas cagadas que podem bem ir i chantadas num cantinho desse leito

ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 65: Auto Da Barca Do Inferno

ANJO Se tu viveras dereito Elas foram caacute escusadas SAPATEIRO Assi que determinais que vaacute cozer ograve Inferno ANJO Escrito estaacutes no caderno das ementas infernais Torna-se agrave barca dos danados e diz SAPATEIRO Hou barqueiros Que aguardais Vamos venha a prancha logo e levai-me agravequele fogo Natildeo nos detenhamos mais Vem um Frade com uumla Moccedila pela matildeo e um broquel e uumla espada na outra e um casco debaixo

do capelo e ele mesmo fazendo a baixa comeccedilou de danccedilar dizendo FRADE Tai-rai-rai-ra-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-rai-rai-rai-ratilde tai-ri-ri-ratilde tatilde-tatilde ta-ri-rim-rim-ratilde Huhaacute DIABO Que eacute isso padre Que vai laacute FRADE Deo gratias Som cortesatildeo DIABO Sabecircs tambeacutem o tordiatildeo FRADE Porque natildeo Como ora sei DIABO Pois entrai Eu tangerei e faremos um seratildeo Essa dama eacute ela vossa FRADE Por minha la tenho eu e sempre a tive de meu DIABO Fezestes bem que eacute fermosa E natildeo vos punham laacute grosa no vosso convento santo FRADE E eles fazem outro tanto DIABO Que cousa tatildeo preciosa Entrai padre reverendo FRADE Para onde levais gente DIABO Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo FRADE Juro a Deus que nom tentendo E este haacutebito no me val DIABO Gentil padre mundanal a Berzebu vos encomendo FRADE Corpo de Deus consagrado Pela feacute de Jesu Cristo que eu nom posso entender isto Eu hei-de ser condenado Um padre tatildeo namorado e tanto dado agrave virtude Assi Deus me decirc sauacutede que eu estou maravilhado DIABO Natildeo curecircs de mais detenccedila Embarcai e partiremos tomareis um par de ramos FRADE Nom ficou isso navenccedila DIABO Pois dada estaacute jaacute a sentenccedila

FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 66: Auto Da Barca Do Inferno

FRADE Pardeus Essa seria ela Natildeo vai em tal caravela minha senhora Florenccedila Como Por ser namorado e folgar com uumla mulher se haacute um frade de perder com tanto salmo rezado DIABO Ora estaacutes bem aviado FRADE Mais estaacutes bem corregido DIABO Dovoto padre marido haveis de ser caacute pingado Descobriu o Frade a cabeccedila tirando o capelo e apareceu o casco e diz o Frade FRADE Mantenha Deus esta coroa DIABO oacute padre Frei Capacete Cuidei que tiacutenheis barrete FRADE Sabecirc que fui da pessoa Esta espada eacute roloa e este broquel rolatildeo DIABO Decirc Vossa Reverenccedila liccedilatildeo desgrima que eacute cousa boa Comeccedilou o frade a dar liccedilatildeo desgrima com a espada e broquel que eram desgrimir e diz

desta maneira FRADE Deo gratias Demos caccedilada Pera sempre contra sus Um fendente Ora sus Esta eacute a primeira levada Alto Levantai a espada Talho largo e um reveacutes E logo colher os peacutes que todo o al no eacute nada Quando o recolher se tarda o ferir nom eacute prudente Ora sus Mui largamente cortai na segunda guarda - Guarde-me Deus despingarda mais de homem denodado Aqui estou tatildeo bem guardado como a palhaacute nalbarda Saio com meia espada Hou laacute Guardai as queixadas DIABO Oh que valentes levadas FRADE Ainda isto nom eacute nada Demos outra vez caccedilada Contra sus e um fendente e cortando largamente eis aqui sexta feitada Daqui saio com uumla guia e um reveacutes da primeira esta eacute a quinta verdadeira - Oh quantos daqui feria Padre que tal aprendia no Inferno haacute-de haver pingos

Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 67: Auto Da Barca Do Inferno

Ah Nom praza a Satildeo Domingos com tanta descortesia Tornou a tomar a Moccedila pela matildeo dizendo FRADE Vamos agrave barca da Gloacuteria Comeccedilou o Frade a fazer o tordiatildeo e foram danccedilando ateacute o batel do Anjo desta maneira FRADE Ta-ra-ra-rai-ratilde ta-ri-ri-ri-ratilde rai-rai-ratilde ta-ri-ri-ratilde ta-ri-ri-ratilde Huhaacute Deo gratias Haacute lugar caacute pera minha reverenccedila E a senhora Florenccedila polo meu entraraacute laacute PARVO Andar muitieramaacute Furtaste esse trinchatildeo frade FRADE Senhora daacute-me agrave vontade que este feito mal estaacute Vamos onde havemos dir Natildeo praza a Deus coa a ribeira Eu natildeo vejo aqui maneira senatildeo enfim concrudir DIABO Haveis padre de viir FRADE Agasalhai-me laacute Florenccedila e compra-se esta sentenccedila ordenemos de partir Tanto que o Frade foi embarcado veio uumla Alcoviteira per nome Briacutezida Vaz a qual chegando

agrave barca infernal diz desta maneira BRIacuteZIDA Hou laacute da barca hou laacute DIABO Quem chama BRIacuteZIDA Briacutezida Vaz DIABO E aguarda-me rapaz Como nom vem ela jaacute COMPANHEIRO Diz que nom haacute-de vir caacute sem Joana de Valdecircs DIABO Entrai voacutes e remarecircs BRIacuteZIDA Nom quero eu entrar laacute DIABO Que sabroso arrecear BRIacuteZIDA No eacute essa barca que eu cato DIABO E trazecircs voacutes muito fato BRIacuteZIDA O que me conveacutem levar Diacutea Que eacute o que havecircs dembarcar BRIacuteZIDA Seiscentos virgos posticcedilos e trecircs arcas de feiticcedilos que nom podem mais levar Trecircs almaacuterios de mentir e cinco cofres de enlheos e alguns furtos alheos assi em joacuteias de vestir guarda-roupa dencobrir enfim - casa movediccedila um estrado de corticcedila

com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 68: Auto Da Barca Do Inferno

com dous coxins dencobrir A mor caacuterrega que eacute essas moccedilas que vendia Daquestra mercadoria trago eu muita agrave bofeacute DIABO Ora ponde aqui o peacute BRIacuteZIDA Hui E eu vou pera o Paraiacuteso DIABO E quem te dixe a ti isso BRIacuteZIDA Laacute hei-de ir desta mareacute Eu socirc uumla maacutertela tal Accediloutes tenho levados e tormentos suportados que ningueacutem me foi igual Se fosse ograve fogo infernal laacute iria todo o mundo A estoutra barca caacute fundo me vou que eacute mais real Chegando agrave Barca da Gloacuteria diz ao Anjo Barqueiro mano meus olhos prancha a Briacutesida Vaz ANJO Eu natildeo sei quem te caacute traz BRIacuteZIDA Peccedilo-vo-lo de giolhos Cuidais que trago piolhos anjo de Deos minha rosa Eu socirc aquela preciosa que dava as moccedilas a molhos a que criava as meninas pera os coacutenegos da Seacute Passai-me por vossa feacute meu amor minhas boninas olho de perlinhas finas E eu som apostolada angelada e martelada e fiz cousas mui divinas Santa Uacutersula nom converteu tantas cachopas como eu todas salvas polo meu que nenhuumla se perdeu E prouve Agravequele do Ceacuteu que todas acharam dono Cuidais que dormia eu sono Nem ponto se me perdeu ANJO Ora vai laacute embarcar natildeo estecircs importunando BRIacuteZIDA Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar ANJO Natildeo cures de importunar que natildeo podes vir aqui BRIacuteZIDA E que maacute-hora eu servi pois natildeo me haacute-de aproveitar Torna-se Briacutezida Vaz agrave Barca do Inferno dizendo

BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 69: Auto Da Barca Do Inferno

BRIacuteZIDA Hou barqueiros da maacute-hora que eacute da prancha que eis me vou E jaacute haacute muito que aqui estou e pareccedilo mal caacute de fora DIABO Ora entrai minha senhora e sereis bem recebida se vivestes santa vida voacutes o sentirecircs agora Tanto que Briacutezida Vaz se embarcou veo um Judeu com um bode agraves costas e chegando ao

batel dos danados diz JUDEU Que vai caacute Hou marinheiro DIABO Oh que maacute-hora vieste JUDEU Cujeacute esta barca que preste DIABO Esta barca eacute do barqueiro JUDEU Passai-me por meu dinheiro DIABO E o bode haacute caacute de vir JUDEU Pois tambeacutem o bode haacute-de vir DIABO Que escusado passageiro JUDEU Sem bode como irei laacute DIABO Nem eu nom passo cabrotildees JUDEU Eis aqui quatro tostotildees e mais se vos pagaraacute Por vida do Semifaraacute que me passeis o cabratildeo Querecircs mais outro tostatildeo DIABO Nem tu nom haacutes-de vir caacute JUDEU Porque nom iraacute o judeu onde vai Briacutesida Vaz Ao senhor meirinho apraz Senhor meirinho irei eu DIABO E o fidalgo quem lhe deu JUDEU O mando dizecircs do batel Corregedor coronel castigai este sandeu Azaraacute pedra miuacuteda lodo chanto fogo lenha caganeira que te venha Maacute correnccedila que te acuda Par el Deu que te sacuda coa beca nos focinhos Fazes burla dos meirinhos Dize filho da cornuda PARVO Furtaste a chiba cabratildeo Parececircs-me voacutes a mim gafanhoto dAlmeirim chacinado em um seiratildeo DIABO Judeu laacute te passaratildeo porque vatildeo mais despejados PARVO E ele mijou nos finados nergueja de Satildeo Giatildeo E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor E aperta o salvador

e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 70: Auto Da Barca Do Inferno

e mija na caravela DIABO Sus sus Demos agrave vela Voacutes Judeu irecircs agrave toa que sois mui ruim pessoa Levai o cabratildeo na trela Vem um Corregedor carregado de feitos e chegando agrave barca do Inferno com sua vara na

matildeo diz CORREGEDOR Hou da barca DIABO Que quereis CORREGEDOR Estaacute aqui o senhor juiz DIABO Oh amador de perdiz gentil caacuterrega trazeis CORREGEDOR No meu ar conhecereis que nom eacute ela do meu jeito DIABO Como vai laacute o direito CORREGEDOR Nestes feitos o vereis DIABO Ora pois entrai Veremos que diz i nesse papel CORREGEDOR E onde vai o batel DIABO No Inferno vos poeremos CORREGEDOR Como Agrave terra dos demos haacute-de ir um corregedor DIABO Santo descorregedor embarcai e remaremos Ora entrai pois que viestes CORREGEDOR Non est de regulae juris natildeo DIABO Ita Ita Dai caacute a matildeo Remaremos um remo destes Fazei conta que nacestes pera nosso companheiro - Que fazes tu barzoneiro Faze-lhe essa prancha prestes CORREGEDOR Oh Renego da viagem e de quem me haacute-de levar Haacute qui meirinho do mar DIABO Natildeo haacute tal costumagem CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem nem hoc nom potest esse DIABO Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem Entrai entrai corregedor CORREGEDOR Hou Videtis qui petatis - Super jure magestatis tem vosso mando vigor DIABO Quando eacutereis ouvidor nonne accepistis rapina Pois ireis pela bolina onde nossa mercecirc for Oh que isca esse papel pera um fogo que eu sei CORREGEDOR Domine memento mei DIABO Non es tempus bacharel Imbarquemini in batel

quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 71: Auto Da Barca Do Inferno

quia Judicastis malitia CORREGEDOR Sempre ego justitia fecit e bem por nivel DIABO E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava CORREGEDOR Isso eu natildeo o tomava eram laacute percalccedilos seus Nom som pecatus meus peccavit uxore mea DIABO Et vobis quoque cum ea natildeo temuistis Deus A largo modo adquiristis sanguinis laboratorum ignorantis peccatorum Ut quid eos non audistis CORREGEDOR Voacutes arrais nonne legistis que o dar quebra os pinedos Os direitos estatildeo quedos sed aliquid tradidistis DIABO Ora entrai nos negros fados Ireis ao lago dos catildees e vereis os escrivatildees como estatildeo tatildeo prosperados CORREGEDOR E na terra dos danados estatildeo os Evangelistas DIABO Os mestres das burlas vistas laacute estatildeo bem fraguados Estando o Corregedor nesta praacutetica com o Arrais infernal chegou um Procurador carregado

de livros e diz o Corregedor ao Procurador CORREGEDOR Oacute senhor Procurador PROCURADOR Bejo-vo-las matildeos Juiz Que diz esse arrais Que diz DIABO Que serecircs bom remador Entrai bacharel doutor e ireis dando na bomba PROCURADOR E este barqueiro zomba Jogatais de zombador Essa gente que aiacute estaacute pera onde a levais DIABO Pera as penas infernais PROCURADOR Dix Nom vou eu pera laacute Outro navio estaacute caacute muito milhor assombrado DIABO Ora estaacutes bem aviado Entra muitieramaacute CORREGEDOR Confessaste-vos doutor PROCURADOR Bacharel som Dou-me agrave Demo Natildeo cuidei que era extremo nem de morte minha dor E voacutes senhor Corregedor CORREGEDOR Eu mui bem me confessei mas tudo quanto roubei encobri ao confessor

Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 72: Auto Da Barca Do Inferno

Porque se o nom tornais natildeo vos querem absolver e eacute mui mau de volver depois que o apanhais DIABO Pois porque nom embarcais PROCURADOR Quia speramus in Deo DIABO Imbarquemini in barco meo Pera que esperatis mais Vatildeo-se ambos ao batel da Gloacuteria e chegando diz o Corregedor ao Anjo CORREGEDOR Oacute arrais dos gloriosos passai-nos neste batel ANJO Oh pragas pera papel pera as almas odiosos Como vindes preciosos sendo filhos da ciecircncia CORREGEDOR Oh habeatis clemecircncia e passai-nos como vossos PARVO Hou homens dos breviairos rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum e mijais nos campanairos CORREGEDOR Oh natildeo nos sejais contrairos pois nom temos outra ponte PARVO Belequinis ubi sunt Ego latinus macairos ANJO A justiccedila divinal vos manda vir carregados porque vades embarcados nesse batel infernal CORREGEDOR Oh nom praza a Satildeo Marccedilal coa ribeira nem co rio Cuidam laacute que eacute desvario haver caacute tamanho mal PROCURADOR Que ribeira eacute esta tal PARVO Parececircs-me voacutes a mi como cagado nebri mandado no Sardoal Embarquetis in zambuquis CORREGEDOR Venha a negra prancha caacute Vamos ver este segredo PROCURADOR Diz um texto do Degredo DIABO Entrai que caacute se diraacute E Tanto que foram dentro no batel dos condenados disse o Corregedor a Briacutezida Vaz porque a

conhecia CORREGEDOR Oh esteis muitieramaacute senhora Briacutezida Vaz BRIacuteZIDA Jaacute siquer estou em paz que natildeo me leixaacuteveis laacute Cada hora sentenciada laquoJusticcedila que manda fazerraquo CORREGEDOR E voacutes tornar a tecer e urdir outra meada

BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 73: Auto Da Barca Do Inferno

BRIacuteZIDA Dizede juiz dalccedilada vem laacute Pecircro de Lixboa Levaacute-lo-emos agrave toa e iraacute nesta barcada Vem um homem que morreu Enforcado e chegando ao batel dos mal-aventurados disse o

Arrais tanto que chegou DIABO Venhais embora enforcado Que diz laacute Garcia Moniz ENFORCADO Eu te direi que ele diz que fui bem-aventurado em morrer dependurado como o tordo na buiz e diz que os feitos que eu fiz me fazem canonizado DIABO Entra caacute governaraacutes ataacute as portas do Inferno ENFORCADO Nom eacute essa a nau que eu governo DIABO Mando-te eu que aqui iraacutes ENFORCADO Oh nom praza a Barrabaacutes Se Garcia Moniz diz que os que morrem como eu fiz satildeo livres de Satanaacutes E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado e que fosse Deus louvado que em bohora eu caacute nacera e que o Senhor mescolhera e por bem vi beleguins E com isto mil latins mui lindos feitos de cera E no passo derradeiro me disse nos meus ouvidos que o lugar dos escolhidos era a forca e o Limoeiro nem guardiatildeo do moesteiro nom tinha tatildeo santa gente como Afonso Valente que eacute agora carcereiro DIABO Dava-te consolaccedilatildeo isso ou algum esforccedilo ENFORCADO Com o baraccedilo no pescoccedilo mui mal presta a pregaccedilatildeo E ele leva a devaccedilatildeo que haacute-de tornar a jentar Mas quem haacute-de estar no ar avorrece-lhe o sermatildeo DIABO Entra entra no batel que ao Inferno haacutes-de ir ENFORCADO O Moniz haacute-de mentir Disse-me que com Satildeo Miguel jentaria patildeo e mel tanto que fosse enforcado Ora jaacute passei meu fado

e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 74: Auto Da Barca Do Inferno

e jaacute feito eacute o burel Agora natildeo sei que eacute isso natildeo me falou em ribeira nem barqueiro nem barqueira senatildeo - logo ograve Paraiacuteso Isto muito em seu siso e era santo o meu baraccedilo Eu natildeo sei que aqui faccedilo que eacute desta gloacuteria emproviso DIABO Falou-te no Purgatoacuterio ENFORCADO Disse que era o Limoeiro e ora por ele o salteiro e o pregatildeo vitatoacuterio e que era mui notoacuterio que agravequeles deciprinados eram horas dos finados e missas de Satildeo Gregoacuterio DIABO Quero-te desenganar se o que disse tomaras certo eacute que te salvaras Natildeo o quiseste tomar - Alto Todos a tirar que estaacute em seco o batel - Saiacute voacutes Frei Babriel Ajudai ali a botar Vecircm Quatro Cavaleiros cantando os quais trazem cada um a Cruz de Cristo pelo qual Senhor

e acrecentamento de Sua santa feacute catoacutelica morreram em poder dos mouros Absoltos a culpa e pena per privileacutegio que os que assi morrem tecircm dos misteacuterios da Paixatildeo dAquele por Quem padecem outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontiacutefices da Madre Santa Igreja E a cantiga que assi cantavam quanto a palavra dela eacute a seguinte

CAVALEIROS Agrave barca agrave barca segura barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Senhores que trabalhais pola vida transitoacuteria memoacuteria por Deus memoacuteria deste temeroso cais Agrave barca agrave barca mortais Barca bem guarnecida agrave barca agrave barca da vida Vigiai-vos pecadores que depois da sepultura neste rio estaacute a ventura de prazeres ou dolores Agrave barca agrave barca senhores barca mui nobrecida agrave barca agrave barca da vida E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando com suas espadas e

escudos disse o Arrais da perdiccedilatildeo desta maneira DIABO Cavaleiros voacutes passais e nom perguntais onde is

1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam

Page 75: Auto Da Barca Do Inferno

1ordm CAVALEIRO Voacutes Satanaacutes presumis Atentai com quem falais 2ordm CAVALEIRO Voacutes que nos demandais Siquer conhececirc-nos bem morremos nas Partes dAleacutem e natildeo queirais saber mais DIABO Entrai caacute Que cousa eacute essa Eu nom posso entender isto CAVALEIROS Quem morre por Jesu Cristo natildeo vai em tal barca como essa Tornaram a prosseguir cantando seu caminho direito agrave barca da Gloacuteria e tanto que chegam

diz o Anjo ANJO Oacute cavaleiros de Deus a voacutes estou esperando que morrestes pelejando por Cristo Senhor dos Ceacuteus Sois livres de todo mal maacutertires da Santa Igreja que quem morre em tal peleja merece paz eternal E assi embarcam