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CRISTOLOGIA DO N O V O TESTAMENTO

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CRISTOLOGIA

DONOVO TESTAMENTO

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OSCAR CULLMANN

CRISTOLOGIADONOVO TESTAMENTO

Tradução

DANIEL DE OLIVEIRAe

DANIEL COSTA

2002

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© Copyright 2002 by Editora Custom

Título original: Christologie du Nouveau Testament

O Texto em inglês recebeu o primeiro prémio de 1955 da Christian ResearchFoundation de Nova York.

Supervisão e produção editorial:Daniel Costa

 Layotit e arte final:

Comp System - (Oxxll) 3106-3866

 Diagramação:Pr. Regino da Silva Nogueira

Capa:James Cabral Valdana - (Oxxll) 9133-2349

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer forma ou meio eletrônicoe mecânico, inclusive através de processos xerográficos, sem permissão expressa daeditora (Lei n° 9.610 de 19.2.1998).

Todos os direitos reservados à

Editora CustomRua 24 de Maio, 116 - 4o andar - loja 12Cep 01041-000 - São Paulo - Centro, SPFone (Oxxll) 3333-6049 - Telefax 3362-1069

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 À Universidade de Edimburgocomo testemunho de rrconhecimento

 pelo título de Doctor ofDivinity honoris causa.

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ÍNDICE

PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA 11

PREFÁCIO DO AUTOR 15

INTRODUÇÃOO problema cristológico no cristianismo primitivo ff1. O papel da cristologia no pensamento teológico dos pri

meiros cristãos 17

2.  Em que consiste o problema cristológico no Novo Testamento? 193.  O método a seguir 24

PRIMEIRA PARTEOs títulos cristológicos referentes à obra terrena de Jesus.  29

CAPÍTULO 1  - Jesus, o Profeta 311. O profeta do fim dos tempos no judaísmo 322. O profeta do fim dos tempos segundo o Novo Testamento 44

a) João Batista  44b) Jesus  51

3. Jesus o "verdadeiro profeta", na concepção judaico-cristãtardia 61

4. "Jesus o profeta" como solução do problema cristológicodo Novo Testamento 66

CAPÍTULO II -Jesus, o Servo sofredor de Deus 751. O Ebed lahweh no judaísmo 76

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8  Oscar Cullinann

Ebed  lahweh  86edlahweh  no cristianismo primitivo...  */

do Ebed   " hweh como solução do pro  _cristológico^p^.  R ^f^r i

CAPÍTULO III - Jftus, o Sumo Sacerdote  ^^_1. O Sumo Sacerdote, figura  ideal do judaísmo2. Jesus e a concepção de Sumo Sacerdote  ^ j3.  Jesus o Sumo Sacerdote, segundo o cristianisrn

tivo  ^^í

SEGUNDA PARTE  MJ*

Os títulos cristológicos referentes à obra futura  de Jesu  T

Pequeno Intróito  ^  ^ ^

CAPÍTULO I - J e s u s i Messias  9  lf l l1. O Messias no jKaísmo2. Jesus e o Messias  1  J^.

3.  A  de primitiva e o Messias  ir

CAPÍTULO II - Jesua^Kilho do Homem  - I ^ H1. O Filho do Homem no judaísmo  ^^_

2.  Jesus e a id  de mlho do Homem  :, ^ ^3.  A cristologia do íjff ho do Homem foi apresentada de uma  ^^f

maneira particular no seio do cristianismo p  mitivo?....  ^^H4.  A noção de "Filho do Homem" segundo o apóstolo Piflro  2á^M5.  O Filho do Homem  nos outros escritos do Novo Tes  _ .

mento  2 í^l6. O Filho do Homem no judeu-cnstiamsmo e em  24'^™

TERCEIRAPARTE  ^

Os títulos cristológicos referentes à obra presn  Jesus  2^PPequeno Intróito  ...  255

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CRISTOLOGIA  T>O  JNOVO TESTAMENTO  • 9

CAPÍTULO I - Jesus o Senhor (Kyrios) • •. 2571.  O título "Kyrios" nas religiões helenísticas orientais e no

culto ao imperador 2572.  O "Kyrios" no judaísmo 2633.  "Kyrios Iesous" e o cristianismo primitivo 2684.  "Kyrios Christos" e a divindade de Cristo 305

CAPÍTULO II - Jesus o Salvador 3111.  O título "Sotér" no judaísmo e no helenismo 312

2.  Jesus, o Salvador, no cristianismo primitivo 314

QUARTA PARTETítulos referentes à preexistência de Jesus  321Pequeno Intróito 323

CAPÍTULO I - Jesus, o "Logos" 327

1.  O "Logos" no helenismo 3292.  O "Logos" no judaísmo 3333.  A ideia de "Logos" aplicada a Jesus 338

CAPÍTULO II - Jesus, o Filho de Deus 3531.  O "Filho de Deus" no Oriente e no helenismo 3542.  O "Filho de Deus" no judaísmo 356

3.  Jesus e o título "Filho de Deus" 359

4.  A fé do cristianismo primitivo em Jesus, Filho de Deus 379

CAPÍTULO III - Jesus chamado "Deus" 399

CONCLUSÃO

Perspectivas da crístologia do Novo Testamento  411

ÍNDICE DE AUTORES CITADOS 429

ÍNDICE DE REFERÊNCIAS BÍBLICAS 433

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PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA

Considero grande privilégio e imensa satisfação prefaciar aprimeira edição em língua portuguesa de  Die Christologie des

 Neuen Testaments (Cristologia do Novo Testamento), do famoso

teólogo franco-alemão Oscar Cullmann. Com toda certeza, a longa vida do erudito alsaciano (1902-1999) foi deveras prolífica eextremamente relevante para o desenvolvimento da teologia bíblica, particularmente no que diz respeito aos estudos neotestamen-tários.

Na verdade, Cristologia do Novo Testamento faz parte de uma

tríade originária da pena deste grande teólogo de Estrasburgo.A primeira obra é Christus und die Zeit   (Cristo e o Tempo), de1946;  já em 1957 foi publicada Die Christologie des Neuen Testaments e, por fim, em 1965 surge Heil ais Geschichte (Salvaçãocomo história). Além dessa famosa tríade, o professor Cullmanntambém escreveu outras obras e diversos artigos que marcam ahistória da teologia contemporânea.

Cullmann é reconhecidamente um teólogo bíblico. Seu pensamento interage principalmente com Albert Schweitzer, C. H.Dodd e Rudolf Bultmann. Rejeitando o liberalismo do final doséculo XIX e sua consequente dependência de escolas filosóficasque marcaram época, Cullmann procurou construir uma teologia apartir do texto bíblico, isto é, da exegese. Seus esforços forammuito importantes para a construção de uma teologia bíblica capazde ouvir o texto, procurando esquivar-se das categorias sistemáticas clássicas e das diversas dogmáticas confessionais.

A elaboração do renomado professor de tantas escolas teológicas francesas e suíças elegeu a história como categoria essencialda Teologia Bíblica do Novo Testamento. Seu pensamento pode

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 \2  Oscar Cullmann

ser classificado como uma teologia da história. Conforme Cullmann,as Escrituras Sagradas podem ser melhor interpretadas enquanto

 Heilsgeschichte, isto é, como História da Salvação. A postura de

Cullmann é nitidamente antimetafísica e rejeita toda e qualquerteologia "ontológica". Para ele o homem só pode conhecer a Deuspor meio da experiência da história, isto é, em seu aspecto dinâmico. Essa visão do mestre de Estrasburgo procura resgatar a importância do caráter hebraico das Escrituras, à medida que enfatizoucategorias como o tempo, a salvação e a dialética.

O pensamento de Cullmann é definitivamente marcado pelos

enfoques cristológico e escatológico. Em sua abordagem histórica, Cullmann vê a história de Cristo como o centro da história,situada entre a história de Israel e a história posterior a Cristo.A ênfase na centralidade de Cristo é tamanha que podemos dizerque a teologia do Novo Testamento de Cullmann corresponde àsua cristologia. A centralidade de Cristo no tempo leva-nos necessariamente à escatologia. A perspicácia do exegeta da Alsácia des

taca que a escatologia faz parte da essência da mensagem do NovoTestamento e define a tensão entre o "já" e o "ainda não" escatológicos como marca da história posterior a Cristo, que se encerraráem sua vinda.

Estou absolutamente seguro de que a publicação desta obraserá de particular importância para o pensamento teológico brasileiro incipiente. Tal segurança é bem fundamentada. Em primeiro

lugar, a busca de uma teologia bíblica que enfatize a unidade damensagem bíblica cairá em terreno fértil, pois a comunidade cristã brasileira jamais poderá desfrutar de uma teologia filosófica quepratica uma hermenêutica de suspeita em relação ao texto bíblico.Em segundo lugar, ainda que passível de críticas, o centro da teologia bíblica para Cullmann é Cristo na história. Além de parecer-me uma excelente solução para o problema do centro da mensa

gem bíblica, Cullmann assim esquiva-se de tendências existencialistas subjetivas, o que propiciará um frutífero diálogo com opensamento teológico brasileiro, que tem buscado expressões históricas. Finalmente, o nome de Cullmann representa tolerância.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 13

Trata-se de um teólogo admirado por muitos evangélicos conservadores por afirmar a centralidade das Escrituras. Todavia, Cullmanntambém procurou dialogar com o pensamento católico, sendo muito

estudado e até elogiado pelos eruditos do contexto católico-roma-no.  Isso significa que a fonte teológica alsaciana tem potencialsuficiente para ser prolífica nos mais diversos ambientes teológicos e confessionais. Resta-nos saber se essa fecundidade teológica manifestar-se-á "já" ou "ainda não". Somente o tempo dirá.

 LUIZSAYÃO

Editor Académico de Edições Vida Nova

Coordenador de tradução da Nova Versão Internacional da Bíblia

Abril de 2001

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PREFÁCIO DO AUTOR

O estudo que por fim hoje publicamos tem sido precedidopor um certo número de "edições" inéditas que não deixamos de

corrigir e desenvolver em nossos cursos. Aqueles alunos <due

seguiram o curso em Estrasburgo há vinte anos terão, sem dúvida,dificuldade em reconhecê-lo em sua forma atual, embora o pl^10

se^a, em linhas cerais, o mesmo de então. Paralelamente a outraspublicações nossas, temos trabalhado sem cessar, desde então,nacristologia do Novo Testamento. Estes outros trabalhos têm fecundado nossas pesquisas em cristologia; mas aqueles que os conhecem poderão constatar que esta influência tem sido recíproca.

Os capítulos relativos ao "Messias" e ao "Filho do Homem"foram, já em 1955, tema de conferências pronunciadas YioMcCorniÍckCollege de Chicago por ocasião das Zenos Lectures. Fazendo umaexceção, a Fundação consentiu em renunciar à publicação separada destes dois capítulos em vista da publicação atual da obra inteira

que aparece também na língua inglesa.Não necessitamos prescrever a nossos leitores e críticos a ma(iei-ra de compreender nosso livro; queríamos, contudo, pedir a uiis ea outros autorização para expressar um desejo. Pediremos, atitesde tudo, que os leitores não considerem este estudo, como talvezpoderiam sentir-se tentados a fazê-lo, tão-somente como uma obrade referência sobre a cristologia do Novo Testamento; ao meii°s>que não o façam sem terem lido a obra inteira, já que as divei'saspartes, como temos de recordar repetidamente, estão em estritarelação entre si. Quanto aos críticos que queiram fazer uma rese"nha desta obra, queremos de antemão assegurar-lhes que aceitaremos com reconhecimento suas observações, especialmente quar i-

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• 16 Oscar Ctãlmann

do seu ponto de vista for diferente do nosso. Mas, atrevemo-nos aesperar que tenham por bem não criticar nossas teses com afirmações categóricas e veredictos desprovidos de fundamento exegético;

esperamos, sobretudo, que não nos encaixem dentro de tal ou qualcategoria, condenada por eles a priori - nem que, por outro lado,nos reprovem por não termos formado fileira com determinadaescola moderna ou antiga; pois, se se examina nosso livro a partirdo ponto de vista de sua "tendência" teológica, seguramentenenhuma das "escolas" conhecidas ficará satisfeita.

Nosso livro é um trabalho exegético. Já manifestamos em

muitas ocasiões nossa maneira de compreender a exegese. Renunciando a considerações metodológicas profundas - tão apreciadaspela nova geração, sobretudo na Alemanha - nos limitaremos asublinhar aqui que não reconhecemos outro método senão o histórico e filológico, este demonstrado pela experiência; nem outraatitude com respeito ao texto além de uma inteira disposição deescutá-lo honestamente, inclusive quando o que nos disser seja

estranho ou contradiga nossas, determinadas e muito queridas, concepções. Para compreender e explicar o texto, faremos, pois, abs-tração de nossas "opiniões" filosóficas e teológicas pessoais e nosnegaremos a desqualificar, como agregados secundários, aquelasafirmações neotestamentárias que não se enquadrem com ditasopiniões.

No que concerne à elaboração de nosso texto, recebemos uma

ajuda particularmente preciosa e desinteressada. Para o texto alemão, do Sr. Karlfried Frõhlich; para o texto inglês, daProf ShirleyGuthrie e do Prof. Charles Hall (E.U.A.), e para a edição francesa,do professor J. J. von Allmen e da Sra. D. Appia.

Que todos estes recebam nossa sincera gratidão.

Chamonix, setembro de 1958.

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INTRODUÇÃO

O PROBLEMA CRISTOLÓGICO NOCRISTIANISMO PRIMITIVO

Em primeira instância, perguntaremos que  lugar   ocupa acristologia no pensamento teológico dos primeiros cristãos; tentaremos em seguida definir o problema cristológico do Novo Testamento; e, finalmente, falaremos do método com que abordaremoseste problema nos capítulos seguintes.

1.  O PAPEL DA CRISTOLOGIA NO PENSAMENTO TEOLÓGICO DOS PRIMEIROS CRISTÃOS

Se a teologia é a ciência que tem por objeto a Deus (Geóç), acristologia é aquela que tem por objeto a Cristo, sua pessoa e suaobra. Geralmente se considera a cristologia como uma subdivisão da teologia (tomada em seu sentido etimológico). Este cos

tume, com frequência tem influído na imagem que historiadorese teólogos nos dão da fé dos primeiros cristãos: começam porexpor suas ideias sobre Deus, e não mencionam, a não ser emsegundo lugar, suas convicções cristológicas. Tal é a ordem geralmente seguida nos antigos tratados de teologia do Novo Testamento.

É tentador adotar esta ordem uma vez que ela é seguida pelas

posteriores confissões de fé. Em consequência disso, se crê que aIgreja primitiva se interessou em primeiro lugar por Deus, e só emsegundo lugar por Cristo. Na realidade, não é assim. A extensãodesigual dos dois artigos, por si só, bastaria para pôr o fato em

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18 Oscar Cullmann

evidência. Por outro lado, pode-se demonstrar que a ordem trinitáriadas confissões de fé posteriores: Deus, Cristo, Espírito Santo eradesconhecida para as fórmulas mais antigas que resumem a fé cristã.

Estas apresentam antes uma tendência exclusivamente cristológica:não havia então, como ocorreria nas confissões de fé posteriores,uma separação entre o artigo primeiro e o segundo.1 Desta divisãoulterior nasceu a opinião errónea segundo a qual a obra de Cristonão teve, aos olhos dos primeiros cristãos, nada a ver com a Criação, apenas com a Redenção. Para estes era impossível imaginar omundo sem relacioná-lo à sua fé em Jesus Cristo. Ademais, quase

todas as fórmulas mais antigas se compõem de um só artigo: ocristológico. Uma das raras confissões de fé do Novo Testamentoque mencionam juntamente a Cristo e a Deus o Pai, se encontraem  1  Corínttos 8.6 e, coisa característica, ,gnora a disttnção entreDeus Criador e o Cristo Redentor; todavia, fala da Criação nosdois artigos: "um só Deus, o Pai, de quem vêm todas as coisas epor quem somos, e um só Senhor Jesus Cristo, por quem todas as

coisas são, e por quem nós também somos." Um e outro estão,pois, na origem da Criação. A diferença não está radicada senãonas preposições: "para Deus", è^ e eíç; e para Cristo, ôiá: "porquem todas as coisas são" (Õi'oí> xà Jiávta). Cristo, mediador daCriação: este pensamento não é expresso só nesta antiga fórmula,pois podemos segui-lo por todo o Novo Testamento (cf. João 1.3;Cl  1.16).  Encontra sua expressão mais vigorosa na Epístola aos

Hebreus (1.10), onde se atribui positivamente a Cristo a "fundação da terra", e onde os céus são designados como "a obra de Suasmãos".

Em outras confissões de fé muito antigas, onde se trata deDeus, este não aparece como o Criador mas como o "Pai de JesusCristo". Apresentam-no como aquele que ressuscitou a Cristo (Policarpo 2.1 ss.). Isso prova que o pensamento teológico dos pri

meiros cristãos parte de Cristo e não de Deus.

Cf'. O. CULLMANN, LÉS  premières Confessions de foi  chrétiennes, Paris, 2a ed. 1948.

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O  KIST Ol . l  H i]A  l í í ) MO V O  T 1:3TA MENTO 19

1'IKIL- sc, igualmente, mostrar que todos os elementos que nasi'inifissões de le posteriores estão vinculados ao Espírito Santo, noicn/eim artigo, são mencionados nas fórmulas antigas como fun

ções direlas de Cristo; por exemplo, o perdão dos pecados ou aressurreição dos mortos.2

Recordemos ainda que na celebre fórmula litúrgica no fim dasegunda Epístola aos Coríntios, a ordem adotada não é: Deus, Cristo, Espírito Santo, mas: Cristo, Deus, Espírito Santo. "A graça deNosso Senhor Jesus, o amor de Deus e a comunhão do EspíritoSanto" (2 Co 13.13).

As antigas confissões de fé são particularmente importantespara o conhecimento do pensamento cristão primitivo: sendo umresumo das convicções teológicas dos primeiros cristãos, nos mos-trarn a quais pontos davam ênfase; quais verdades consideravamprimordiais e quais outras lhes pareciam decorrer destas. Daí sededuz que a teologia cristã primitiva é quase exclusivamente umaeristologia. Deste ponto de vista, a igreja antiga não se distingue

íla igreja nascente, ao consagrar durante muitos séculos seu interesse às questões cristológicas.Porém, as discussões posteriores esboçam o problema cristo-

lógíco nos mesmos termos que o Novo Testamento?

2. EM QUE CONSISTE O PROBLEMA CRISTOLÓGICONO NOVO TESTAMENTO?

Temos afirmado que a Cristologia é a ciência que tem porobjeto a pessoa e a obra de Cristo. Necessitamos agora perguntarem que medida isto já constituía um problema para os primeiroscristãos e em que consistia. As discussões cristológicas posterioresse relacionam todas à  pessoa  de Cristo, à sua natureza: por um

(>p. CÍL, p. 18ss, Outro tanto ocorre com o bati sino que, nas confissões de fé fésteriores,  figura no terceiro artigo como batismo da  igreja, enquanto que na fórmulautilizada por INÁCIO DE ANTIOQUIA  (Esm.  1.1) aparece como o batismo de.//',wti por João; da mesma forma Ef 18.2: "foi batizado a fim de purificar a água porseu sofrimento" (cf. abaixo, p. 95 s.).

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lado, a sua relação com Deus; por outro, a união existente entre asua natureza divina e a sua natureza humana. Se não quisermoscorrer o risco de distorcer, desde o princípio, a perspectiva em quese apresenta o problema cristológico no Novo Testamento, temosque isolar estas discussões posteriores. Do ponto de vista histórico, temos de reconhecer por certo que, num dado momento, a igrejaencontrou-se frente à imperiosa necessidade de abordar os problemas específicos que resultavam da helenização da fé, da apariçãoe difusão de doutrinas gnósticas, assim como do arianismo, nesto-rianismo etc. A igreja viu-se obrigada a abordar a questão das duasnaturezas e a tentar dar-lhe uma resposta. Verdade é que se intentou resolver o problema apoiando-se nos escritos neotestamentáriosvoltando-se, não obstante, para uma direção que simplesmente jánão corresponde mais à maneira em que o problema é afirmadoneles.

« Com efeito, no Novo Testamento não se fala quase nunca da pessoa de Cristo sem que se trate, ao mesmo tempo, de sua obra.

Inclusive no prólogo do Evangelho de João, onde se diz que "oLogos estava com Deus e era Deus", se acrescenta imediatamenteque por este "Logos" "todas as coisas foram feitas"; o que significa que ele é o mediador da criação. Além disso, se este prólogofala do ser do Logos é somente para poder dizer, ao longo dosvinte e um capítulos do Evangelho, o que ele fez como Verbo encarnado. Quando o Novo Testamento pergunta "quem é Cristo?" isto

não significaria jamais, exclusiva e principalmente, "qual é suanatureza?" mas, antes de tudo, "qual é a sua função?".3 Assim, asdiversas respostas que o Novo Testamento dá a esta questão e quese expressam pelos diferentes títulos que examinaremos sucessivamente se referem sempre, ao mesmo tempo, à sua pessoa e sua

' Ao esboçar esta questão não concebemos a função de Cristo à maneira deBULTMANN, como um simples acontecimento que só ocorreria no encontro entre apregação e nós mesmos, mas como um acontecimento cristológico ontológico. Cf. aeste propósito, KARLBARTH, RudolfBultmann, ein Verstichihnzuverstehen.  1952.p.  16 ss., e O. CULLMANN,  "Le mythe dans les écrits du Nouveau Testameiu",

 Numen I, 1954, p. 120 ss.

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C  14ISII  >! >Jiií A IX)  pJí >V< J  I 1\ S TAM ENT O _21

oina,  Isiu i'* verdade inclusive naqueles títulos que têm por objeto0 ('nslo preexistente: Logos, t''ilho de Deus, Deus, que examina-HMIIOS na última parle deste estudo. Veremos, portanto, que estes

hlulos esboçam, assim, implicitamenle, a questão da relação entre1 Vtis e a pessoa e orrgem de (Visto. No entanto, mesmo aqui nãose pode lalar propriamente do problema corno se referindo a umaquestão de "naturezas".

I lá, pois, uma diierença entre a maneira em que os prrmeiroscristãos, por um lado, e a igreja antiga, por outro, abordaram oproblema cristológico. Temos de reconhecer, entretanto, que, noconflito que recebeu uma solução provisória no Concílio de Cal-cedônia, Atanásio e outros defensores da ortodoxia falam da natureza de Cristo para sublinhar seu alcance soteriológico, ou seja,para mostrar que a maneira em que se fala da salvação que Eletrouxe depende do modo em que se concebe sua natureza. Destamaneira é  que se toma em consideração sua obra; porém, em uma

perspectiva que já não é a do Novo Testamento.A necessidade de combater os hereges levou os Pais da igrejaa subordinarem a concepção da pessoa e da obra de Cristo à questão das "naturezas". A respeito do Novo Testamento há, pois, umamudança no ponto de vista, justificada, sem dúvida, pela luta con-11 a a heresia, o que não impede que a discussão sobre as duas "naturezas" seja, em última análise, um problema grego e não um pro

blema judaico e bíblico.Para responder à pergunta: "Quem é Jesus?", os primeiros cris

tãos podiam recorrer a certas ideias correntes no judaísmo e, emparticular, na escatologia judaica. É por isso que a questão cristo-lógica se põe, nas origens da igreja, do seguinte modo: Em quemedida Jesus cumpriu o que nestas ideias está implícito? Em quemedida sua obra as ultrapassa? Em que pontos entra em contradi

ção com as ideias cristológicas que o judaísmo tardio parece postular? E quando os primeiros cristãos, vivendo num meio helenísti-co, respondem ao problema cristológico recorrendo a um título que, já entre os gregos, designava um mediador divino, ter-se-á que

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• 22 Oscar Culhnann

perguntar se a igreja primitiva atribuía a esse título as mesmas ideiasque o paganismo de então.

t   De qualquer forma, temos que rejeitar a opinião tão frequente,segundo a qual o cristianismo primitivo necessariamente precisou modelar sua cristologia de acordo com os esquemas existentes, seja no judaísmo, seja no helenismo. Quando se afirma tal coisa leva-se ao absurdo oque há de perfeitamente legítimo na história comparada das religiões;mas, sobretudo, se faz total abstração da consciência que Jesus tinha desi mesmo, o que é inadmissível do ponto de vista científico. Com efeito,devemos considerar  a priori,  como coisa possível e até provável, que

Jesus tenha trazido, por sua doutrina e por sua vida, algo novo: foi daíque os primeiros cristãos partiram em suas primeiras tentativas de explicar a pessoa e a obra de Jesus. Devemos, igualmente, considerar a prioripossível, e até provável, que a experiência religiosa, nascida do seuencontro com Cristo ou da certeza de Sua presença, a despeito de suasanalogias automáticas com outras experiências religiosas, apresente, nãoobstante, traços particulares até então desconhecidos. Descartar deentrada esta possibilidade, esta probabilidade,  é   adotar um preconceito

que contradiz os princípios da ciência histórica

Durante a vida de Jesus, a questão cristológica já aparececomo um problema, formulado classicamente pelo próprio Jesusem Mc 8.27-29. Trata-se de um texto que logo teremos de estudar um pouco mais de perto; aqui ele só nos interessa pela maneira que esboça o problema. "No caminho, Jesus pergunta aos seus

discípulos: Quem o povo diz que eu sou? Eles responderam: uns,João Batista; outros, Elias; outros, um dos profetas. E vós - Ele lhespergunta - quem dizeis que eu sou? Pedro lhe responde: Tu és oCristo."

O problema já existia, por um lado, para as pessoas do povoe, por outro, para os discípulos que viviam com Jesus, que o "viamcom seus olhos e o ouviam com seus ouvidos". Constatamos que

entre o povo e os discípulos se davam diversas respostas e quetodas - e isto justifica a maneira em que o presente livro trata oproblema - se expressam por títulos conhecidos, cada um dos quaisdesigna uma função, uma obra a realizar. Todas estas respostas

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OuSTOMJCIA  IM) NOVO  T  [ISTAMENTO 23

lêm islo cm comum: que não se limitam a colocar Jesus em umacerla categoria humana, mas que buscam, ademais, explicar o que

há de único nele. Pois bem, é somente islo, c não o estado civil deJesus, o que se tem de levar em conla quando se trata do problemacristológico. Quando chamam a Jesus de  Rabi,  ou  Mestre,  ou

 Médico,  isso é importante para a história de sua vida, mas nãopara o problema cristológico.4 É verdade que ao concebê-lo como"profeta", parece estarmos classificando-o dentro de um certo tipohumano. Na realidade, veremos que não se trata de uma intitulação

genérica, mas de um título que contribui para uma das soluções daquestão cristológica.Os títulos mencionados em Mc 8.27 ss. não são - há muitos

mais -  os únicos que o Novo Testamento atribui a Jesus. Há outrosmais que pretendem expressar o que Ele é e em que consiste Suaobra. Se Jesus é designado no Novo Testamento de maneiras tãodiversas, deve-se a que nenhum destes títulos pode, por si só, abran

ger a totalidade de sua pessoa e de sua obra. Cada um deles indicasó um aspecto particular da pessoa de Cristo. Só estudando todosos títulos atribuídos pelos primeiros cristãos a Jesus se poderáfazer uma ideia da "cristologia" do Novo Testamento. Nemtampouco podemos perder de vista que todos os títulos encontramsua unidade na pessoa de Jesus.

Quando empregamos neste estudo as palavras "cristologia" e"cristológico", não as tomamos em seu sentido restrito, relacionando-asa um só título, o de Cristo-Messias; ao contrário, as tomamos em seusentido lato, abrangendo tudo o que concerne àvida e obra de Jesus Cristo, no que elas têm de único.

E. LOHMEYER, Galilãa und  Jerusalém,  1935, p. 73 observa, é verdade, que no

Evangelho de Marcos o título SiôáotcotA,oç se encontra ''quase que unicamente ondenão se trata de classificá-lo como rabino, mas, pelo contrário, de distingui-lo destes". Isto é exato; porétn, em tais passagens, o título de "mestre" é só o atributo deoutro título, ao qual consagraremos nosso primeiro capítulo: "O profeta'". Ver a esterespeito C. H. DODD, "Jesus Ais Lehrer und Prophet", Mysterium Christi,  editadopor G. K. A. BELL e A. DEISSMANN,  1931, p. 69 ss.

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•24 Oscar Culbnaiin

« 3. O MÉTODO A SEGUIR

Buscamos atingir uma visão de conjunto das concepçõescristológicas do Novo Testamento; não obstante, procederemosde uma maneira puramente analítica. Não consagraremos umcapítulo à cristologia de cada um dos autores do Novo Testamento, porém, examinaremos separadamente cada um dos títulos cristo-lógicos, precisando seu significado através do conjunto dos escritos neotestamentários.5

Será necessário, no entanto, precisar primeiramente o sentidoque possuem no judaísmo ou, dado o caso, na história geral dasreligiões, em particular, no helenismo. E quando chegarmos aoNovo Testamento será sempre razoável, pelas razões já apontadas, que nos perguntemos, antes de tudo, se e em que sentido talou qual título dentre eles foi utilizado por Jesus para designar-se asi mesmo, questão que nos parece justificada ainda hoje, depoisde todos os trabalhos da  Formgeschichte.  Averiguaremos entãocomo os diversos autores dos escritos cristãos entenderam ditostítulos.

Com efeito, nos parece que chegou a hora de colocarmos novamente a questão do Jesus histórico, partindo dos resultados obtidos pelaFormgeschichte''   Foi com razão, sem dúvida, que esta questão foi deixada de lado, conscientemente, no curso dos últimos decénios; mas seria

um erro, assim nos parece, continuar a descuidá-la. Saber que osEvange-

Este método, que consiste em tomar como ponto de partida os títulos cristológicoscomo tais e tentar em seguida estabelecer as diferenças mediante a análise, parece-nos mais apropriado que aquele seguido, por exemplo, porG. SEVENSTER em suaChristohgie van het Nieuwe Testament, 2a ed., 1948. Contudo, Sevenster se esforçasempre em seu interessante trabalho, que trata sucessivamente da cristologia deescritos particulares do Novo Testamento, por captar "a unidade e a diferença" nas

concepções neotestamentárias da pessoa de Cristo.Esta maneira de ver parece impor-se hoje cada vez mais. Comparar E. KÀSEMANN,"Das Problem des Historischen Jesus (ZThK  51.1954, p. 125 ss.);T. W. MANSON,"The Life of Jesus. Some Tendencies in Present Day Research" (The Background  ofthe New Testament and its Eschatology, Mélanges C. H. DODD, 1956, p. 211 ss);E. FUCHS, "Die Frage nach dem historischen Jesus" (ZThK  53,  1956, p. 210 ss).

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C-RISTOLOGIA  DO INOVo TESTAMENTO 25

lhos são testemunhos da fé, e que a fé em Cristo da igreja primitiva foi acriadora da tradição evangélica, não deve fazer-nos cair em um ceticis-mo histórico absoluto a ponto de levar-nos a não utilizá-los como fonte

histórica. Pelo contrário, teremos de utilizar esta fé primitiva como meiopara melhor compreender a realidade histórica.7

No entanto, para penetrar até a consciência que Jesus tinha de simesmo, necessitaríamos recorrer ao método da "história formativa" para

 julgar o valor da tradição evangélica. Devemos, pois, tentar distinguir aspassagens em que os evangelistas expressam visivelmente sua opiniãopessoal daquelas outras nas quais nos transmitem os logia autênticos deJesus. Por exemplo, se num Evangelho transparece um certo desacordo

entre os títulos cristológicos utilizados pelo autor em sua narração e osque Jesus aplica a si mesmo, temos aí um critério objetivo.

Ao examinar se Jesus deu a si mesmo tal ou qual título, deveremosnos precaver de todo a prior,,  inclusive daquele que encontramos emR. Bultmann.Fiel àsua posição anterior ele afirma, em suaThéologie du Nouveau Testament   (1953,  p. 25 ss.), que Jesus jamais considerou-seuma espécie de plenipotenciário divino ÍM<generis. É por isso que - anulando assim, por esta negação, a neutralidade histórica proposta pela

Formgeschiçhte - ele pode negar toda influência decisiva do ensinamentodo próprio Jesus na cristologia da igreja antiga. Para ele, Jesus limitou-sea anunciar a Deus, o Pai, e seu Reino. Bultmann se encontra, então, definitivamente de acordo com a fórmula de Harnack, segundo a qual Deus oPai, e não o Filho, pertence ao conteúdo do Evangelho. Porém, diferentemente de Harnack, opina que semelhante constatação não influi em nadana nossa fé em Cristo. Nós podemos, contudo, ter Jesus como o Messiase participar, assim, das convicções cristológicas da igreja primitiva.

Ao adotar esta posição, Bultmann vai muito mais longe que o antigoliberalismo. Porém, devemos perguntar-nos se não é uma ilusão de suaparte crer que temos a mesma fé que a igreja nascente por professarmosas mesmas convicções cristológicas se, por outro lado, afirmamos que opróprio Jesus não tinha nenhuma "consciência messiânica1 \T\]is, de fato,a fé em Cristo dos primeiros cristãos pressupõe a convicção de que Jesusteve a si mesmo por "Filho do Homem", o Servo de Deus; e que atribuiua si cada um dos títulos cristológicos de que temos de falar ainda. Se a

igreja primitiva creu na messianidade de Jesus é porque creu que o pró-

Sob este aspecto, o excelente livrinho de G. BORNKAMM, Jesus, 1957, nos pareceque leva demasiadamente longe o cepticismo ao defender que o Jesus da história nãoatribuiu a si mesmo função cristológica alguma.

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26 Oscar Cullmann

prio Jesus se havia considerado o Messias. Deste ponto de vista, a fé emCristo de Bultmann é radicalmente diferente da fé da igreja Primitiva.

Os títulos cristológicos que o Novo Testamento menciona sãomuito numerosos, e cada um deles mostra um aspecto particulardo problema. Para expressar plenamente a riqueza infinita que semanifestou na pessoa de Cristo, não bastava uma só designação desua dignidade. Enumeraremos aqui as mais importantes: profeta,Sumo Sacerdote, Mediador, Servo de Deus, Cordeiro de Deus,Messias, Filho de Davi, Filho do Homem, Juiz, Santo de Deus,

Kyrios, Salvador, Rei, Logos, Filho de Deus, Deus.

Nãoé necessário consagrar a cada um destes títulos um capítulo particular. Alguns, com efeito, por seu próprio conteúdo, poderão ser examinados ao mesmo tempo que outros. Assim, se falará do "Mediador" nocapítulo sobre o Sumo Sacerdote; do "Cordeiro de Deus'' ao estudar otítulo e o papel do Ebed  lahwelv, do "Filho de Davi" ou do "Rei" na parteconsagrada ao Messias; do "Juiz", em relação ao Filho do Homem; e do

"Santo de Deus", no contexto da filiação divina de Cristo.

Por qual começaremos e como os distribuiremos? Falaremos,primeiramente, daqueles que caracterizam, de modo especial, aobra  terrena de Cristo; em seguida, daqueles que se relacionamessencialmente à sua obrafutura, escatológica; logo após, daquelesque enfatizam sua obrapresente; finalmente, daqueles que trazem

à luz a obra realizada durante SUB.preexistência. Eis aí o plano denosso livro. Trata-se, forçosamente, de uma classificação esquemática; porque, em geral, um mesmo título, uma mesma noção cristo-lógica, não se limita em seu alcance a uma só das quatro funçõesenumeradas, mas a duas, ou ainda três delas ao mesmo tempo.

Ademais, na consciência dos primeiros cristãos, que costumavam aplicar simultaneamente muitos destes títulos a Jesus,

devia produzir-se um certo trabalho de assimilação, de ligação.Devemos, efetivamente, perceber que o cristianismo primitivo nãoestabeleceu entre eles a distinção taxativa que nosso estudo feno-menológico nos leva a fazer: os títulos se influenciavam recipro-

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO

camente; com frequência constatamos inclusive que eles têm umaorigem comum.

Nosso plano parte do princípio cronológico, válido para todaa cristologia do Novo Testamento: "Cristo, o mesmo ontem, hoje,e em todos os séculos por vir". Cristo está ligado a toda a história da revelação e da salvação, desde a criação; eis aí, como já otemos visto, um traço essencial da cristologia do Novo Testamento.Não há história da salvação sem cristologia; logo não há, tampouco, cristologia sem uma história da salvação que se desenvolva no

tempo.8

 aA cristologia não é, portanto, uma ciência das "naturezas"  de Jesus Cristo, mas a ciência de um "acontecimento", deuma história.

Tendo chegado ao fim da análise fenomenológica dos diferentes títulos, constataremos que - apesar das diferenças entre asdiversas noções e os diversos escritos do Novo Testamento - sedestaca uma imagem geral e coerente desse "acontecimento" mes

siânico, desde a preexistência até a escatologia. Portanto, não podeser questão de se justapor, como em um dicionário teológico, umasérie de monografias: a cristologia do Novo Testamento forma umtodo.

Por outro lado, poderá surgir de nossa análise uma evoluçãohistórica da cristologia cristã primitiva que nos permitirá ver quaissão os títulos que têm servido de ponto de partida ao pensamento

cristológico dos primeiros cristãos. O plano que temos adotadonão coincide, pois, com esta história; quero dizer, com a ordemcronológica das diversas soluções cristológicas propostas sucessivamente pelos cristãos da época apostólica.

Começaremos pelos títulos cristológicos especialmente destinados a explicar a obra  terrena de Jesus; esta obra, já passada,que se desenvolveu até chegar ao ponto culminante e decisivo dahistória da salvação.

Cf. O. CULLMANN,  Christ et le temps,  Neuchâtel et Paris, 2a  ed., 1957. Ediçãobrasileira no prelo.

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PRIMEIRA PARTE

OS TÍTULOSCRISTOLOGICOS REFERENTES

À OBRA TERRENA DE JESUS

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CAPÍTULO 1

JESUS, O PROFETA

Já nos perguntamos se o exame do título de "profeta" caberiaa um estudo consagrado ao problema cristológico, tal qual otemos definido. Aqueles que chamavam a Jesus "profeta" não queriam com isso simplesmente classificá-lo dentro de uma certa categoria de homens existentes em sua época? De fato alguém se sentiria tentado a crer que se chamou a Jesus "profeta" para indicar

sua profissão, como o chamaram de  rabbí,  mestre.

9

 Porém, convém notar que na época do Novo Testamento, a profecia, comoprofissão regular e organizada, já não existia no judaísmo. Poroutro lado, quase não havia mais profetas no sentido especificamente israelita do termo, quer dizer, homens visitados pelo Espírito,  que recebiam de Deus uma vocação particular. O antigoprofetismo havia se extinguido progressivamente; e praticamente

não existia mais senão sob a forma escrita de livros proféticos.Isto por si bastaria para mostrar que, ao chamar a Jesus "profeta",não se classificava-o simplesmente em uma categoria profissionaldeterminada. Porém, o argumento decisivo é que na maior partedas passagens onde este título lhe é dado, Jesus não aparecesomente como um profeta, mas como o profeta - a saber: o últimoprofeta, aquele que devia "cumprir" toda profecia, no final dos

tempos.Veremos que a espera de semelhante profeta encarregado de

uma missão escatológica bem definida se havia difundido no

'' Cf i 23 4

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.32 Oscar Cullmann

 judaísmo de então. Trata-se de uma concepção especificamente' judaica, e a este respeiio este título de "profeta" se diferencia deoutros títulos cristológicos que teremos de examinar - por exem

plo, o de Filho do Homem e o de Logos, para os quais acham-seanalogias nas religiões orientais e no helenismo.

E, pois, supérfluo falai-aqui da concepção grega de profeta. No mundo helénico, o termo mesmo significa simplesmente "anunciador", e nãose usa, senão excepcionalmente, no sentido de "adivinho", aquele queprediz o futuro. Em todo caso, não existe vínculo algum entre as figurasimpessoais dos profetas que encontramos nos poetas gregos (cuja únicafunção é a de satisfazer a curiosidade dos homens) e o profetismo israelita,que prepara e anuncia a concepção cristã de profeta. O sacerdote-profeta egípcio no máximo apresenta uma analogia formal com os profetasisraelitas. Aliás, assemelha-se mais aos autores da apocalíptica judaicatardia do que aos profetas propriamente ditos. Esta questão tem sidoestudada a fundo na obra de E. Fascher, nPO<3>HTHS, Eine sprach-uttdreligionsgeschichtliche Untersuchung, 1927 (na qual, é verdade, o capítulo relativo ao profeta no Novo Testamento é um tanto sumário).

»1.O PROFETA DO FIM DOS TEMPOS NO JUDAÍSMO

A espera pelo profeta escatológico se explica pelo antigo profetismo israelita. A palavra nabi  tinha originalmente, na religiãode Israel, diversos sentidos.10 No começo designava, por um lado,

o extático e, por outro, o profeta profissional que emitia oráculos.Porém, estas duas concepções não bastam para dar-nos uma compreensão do profetismo especificamente israelita. E é a este somente que se liga a ideia de profeta do fim dos tempos. O que, caracteriza essencialmente os profetas clássicos de Israel é, por um lado,o fato de que seu ministério repousa menos no fato de pertencer auma corporação profissional, do que em uma vocação pessoal e

111H. H. ROWLEY, "The natureof  the Old Testament Prophecy in the Light of RecentStudy"  {The Servant  of  the Lorâ and  Olher Essays on the Old  Testament,  2a  ed,1954, p. 91 ss) dá uma visão de conjunto do problema.

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CRISTOLOGIA  DO NOVO TESTAMENTO  _33

direta; por outro lado, quando proclamam a mensagem da qualestão encarregados, trabalham sob uma espécie de coação, semperder por isso sua personalidade. Ao contrário, esta é até reforça

da pelo fato de que Deus se serve do juízo moral do profeta parafalar, por seu intermédio, a seu povo. Ademais, e diferentementedo adivinho, o profeta não se limita a transmitir revelações isoladas;  sua profecia se converte em pregação, em mensagem; eleexplica ao povo a verdadeira significação dos acontecimentos e ofaz conhecer, a cada instante, o desígnio e a vontade de Deus predizendo - toda vez que é necessário -  o juízo e o castigo divinos.

Este profetismo, na época de Jesus - já o dissemos - tinha-seextinguido havia muito tempo em Israel. A palavra viva do profeta havia-se substituído a autoridade dos escritos dos antigos profetas. Por esta razão, o dom de profecia (como o revela Joel 2.28 ss.)aparece mais e mais como um fenómeno escatológico, que nãoreaparecerá senão no fim dos tempos; e, então, de uma maneiraparticularmente visível. Por isto aparecerão profetas na comuni

dade cristã primitiva.11  No judaísmo tardio, o Espírito - em virtude mesmo de sua ausência - é considerado como um elementoescatológico: houve profetas no passado e haverá profetas novamente, no fim dos tempos. Assim, o profetismo, de modo crescente, vai se tornando objeto de esperança escatológica.

Por isto a aparição de João Batista foi considerada como um

acontecimento escatológico: um profeta vivo surgiu de novo, semelhante aos antigos profetas. Seu batismo também foi tomado porato profético, semelhante aos atos simbólicos realizados, em certas circunstâncias, pelos profetas de outrora; por exemplo: Jeremiase também Elias, Elizeu, Isaías e, sobretudo, Ezequiel.12

João Batista foi, pois, tido por profeta nos moldes do AntigoTestamento; isto é o que mostra ainda uma passagem como a de

"  1  Co 11.28; Ef  4..11 Al t 1127 s., 11.11 21.10; Ap 22.9; Did.  11.13.''Cf. WHEELER ROBINSON,  Old Tesutment Essays,  1927, p. 1 ss, W. F.

FLEMINGTON, The New Testament  Doctrine ofBaptism,  1948, p. 20 ss; c sobretudoG. FOHRER, "Die synnbolischeti Handlungen der Propheten" (AThANT, 25), 1953.

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34 Oscar Culbnann

Lc 3.2, onde dele se diz, como dos antigos profetas se dizia: hfzvzxOp%ia Geou  k%\   'Icoávvrrv. Falaremos, mais tarde, sobre João

Batista. No momento nos limitaremos a mostrar que em sua pessoa, como na do "Mestre de Justiça'''   de Qumran e na de certostaumaturgos e heróis políticos judaicos da época,13 depois de longa interrupção, um verdadeiro profeta reapareceu; o que prova,aos olhos dos judeus, que os últimos tempos estão às portas: Deusfala de novo pela boca de seu profeta. João Batista realiza o queesta esperança judaica aguardava há muito tempo: o despertar

escatológico do profetismo (cf. I Mac 4.44 ss.; 14.41; SI 74.9).Esta esperança havia tomado uma forma concreta: esperava-se para o fim dos tempos um profeta único em quem se realizaria,por assim dizer, toda a profecia anterior.14 Desta esperança especificamente judaica é que temos de nos ocupar aqui. O fato de queJesus (assim como João) foi considerado profeta, bastava paraconferir-lhe uma dignidade escatológica muito particular. Mas do

ponto de vista cristologico, o que nos interessa sobretudo, é vercomo é que se voltou para Jesus a esperança da vinda deste profeta único, definitivo. Esta esperança devia ser muito generalizadana época do Novo Testamento. Prova disso é que a João Batista os

 judeus perguntaram: "És tu  o  profeta?" (Jo  1.21). Todo mundodevia, pois, saber de quem se tratava.

A ideia judaica de um profeta que resume e realiza o profe

tismo completamente tem, sem dúvida, também outra raiz, menosescatológica e mais especulativa: a ideia de que, dado que todosos profetas têm anunciado, no fundo, a mesma verdade divina,não deve haver mais que um só e o mesmo profeta, que se tenhasucessivamente encarnado em diferentes homens, cada vez comaparência diferente.

JOSEFO, Guerra Judaica, II, 68, H, 261 s., Am. 20,97 s. Cf. ainda R. MEYER, DerProphet aus Galilãa. 1940, p. 41 ss.Cf.  P. VOLTZ,  Die Eschatologie der judischen Gemeinde im neutestamentliclieii

 Zeitalter,  2"  ed., 1934, p. 193 ss.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 35

lincontramos esta convicção nos escritos pseudoclementinos(tios quais teremos de falar, a propósito da concepção cristã deJesus profeta15), assim como no Evangelho dos Hebreus  - portanto, nos escritos que, sendo de origem judaico-cmíã podem, entretanto, ser considerados como fontes para conhecer o judaísmo  deentão. Segundo os escritos pseudoclementinos o "verdadeiro profeta" reaparecia sempre de novo através dos séculos desde Adão,trocando de nome e de forma para manifestar-se finalmente comoo Filho do Homem.16  Segundo o fragmento do  Evangelho dos

 Hebreus citado por São Jerónimo em seu comentário de Isaías,17 oEspírito Santo disse a Jesus, ao sair este da água, quando do seubatismo: "Eu tenho-te esperado em todos os profetas, a fim de quetu viesses e eu repousasse em ti".

Aqui a concepção de profeta escatológico está ligada à ideiada reencarnação do mesmo profeta, realizada já muitas vezes nopassado. O profeta aparece, pois, no fim dos tempos sob sua forma definitiva, em sua plenitude, e é então que em sua pessoa aprofecia chega a seu termo e à sua realização final.

A ideia de retorno sobre a terra do mesmo profeta sem dúvida contribuiu para favorecer a certeza de que Jesus voltaria no fimdo mundo. Pois do Messias judaico não se havia declarado, comoo fora acerca do profeta, que viria uma segunda vez sobre a terra.Não será que, a este respeito, a ideia de um retorno do profeta tenha

importância do ponto de vista cristológico? A ideia de um retornode Cristo recebe, pelo menos, uma antecipação nas crenças do judaísmo de então.

A esperança judaica aguarda mais particularmente o retornoescatológico de  um  determinado profeta. Ela se anuncia já naspalavras dirigidas por Moisés a Israel (Dt 18.15): "O Eterno,leu Deus, suscitará dentre teus irmãos um profeta como eu",

liste texto tem uma importância capital para a noção de "pro

" Cf. abaixo, p. 61 s.'" I lom. III, 20. 2, Recogn. II, 22." llicron; em Is 4, XI, 2, MSL 24, col. 145.

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36 Oscar   Cullmcmn

.feta".18  Sem dúvida, não se trata aqui de um retorno do próprioMoisés, mas da aparição, no fim dos tempos, de um profeta que se

lhe assemelhará. Fílon cita esta passagem e assinala seu caráterfortemente escatológico.19 Em Atos 3.22 e 7.37 este texto se aplica a Jesus. Os  Kerygmata Petrou  pseudoclementinos citam-noigualmente.20 Daí nasceu a crença no retorno do próprio Moisés.21

Não fica tampouco excluído que, segundo uma tese recente,22 oServo Sofredor do segundo Isaías possa ser assimilado ao Moisés„ „ „ „ .  , ' j . r „ ? ^

ressuscitado."

Porém, o que, sobretudo, se esperava era o retorno de Elias.Trata-se de uma crença relativamente antiga. Já em Ml 4.5, Elias éidentificado com o mensageiro que deve preparar o caminho de

 Iahweh, e a mesma crença se encontra no Eclesiástico24 e nos textos rabínicos:25 ele deve no final dos tempos "estabelecer" a comunidade futura e sua doutrina.

18

Cf. H. J. SCHOEPS, Theologie und Geschichte des Judenchristentwnis, 1949, p. 87ss.  J. JEREMIAS,  ThWbNT,  IV, p. 862. Importa, ademais, notar que, ao lado deoutras passagens do Antigo Testamento, esta é citada era uma coletânea de testemunhos messiânicos da seita de Qumran. Ver J. M. ALLEGRO, "Further MessianicReferences in Qumran Literature" (JBL, 75, 1956, p. 174 ss.).

{> De spec. leg., I, 65.20Recogn. 1, 43: "Muitas vezes, disse Pedro, os judeus nos enviavam mensageiros para

pedir-nos que acertássemos uma entrevista entre Jesus e eles, para saberem se ele erao profeta anunciado por Moisés."

21 Sib, V, 256 ss., assim como as passagens mencionadas mais abaixo. Cf., ademais, ostextos rabínicos (tardios) citados porP. VOLZ,O/J . c /V.  195; também: J. JEREMIAS,art MtMXrrjç em ThWbNT, IV, p. 860 ss. A ideia de um retorno da época messiânicano fim dos tempos deve, sem dúvida, também ser levada em consideração nesteponto. Cf. a respeito H. GRESSMANN, Der Messias,  1929, p. 181 ss.

22A. BENTZEN, "Messias-Moses redivivus-Menschensohn"  (AThANT,  17), 1948,p. 64 ss. Em parte ele segue a H. S. NYBERG, "Smãrtornasman"  (Svensk Exegetisk

 Aarsbok,  1942, p. 75 s). JáSELLIN, Mose,  1922, tinha identificado o Ebed Iahwehcom Moisés. A. BENTZEN adota esta tese, porém, rejeita a teoria de SELLIN relativa ao suposto martírio de Moisés na Transjordânia.

23

 Enquanto que I. ENGNELL  (Svensk Exegetik Aarsbok,  1945) tenta explicar a figurado Ebed Iahweh pela ideologia da realeza, A. BENTZEN (op. c /V.,42ss.) faz melhorao considerara noção de Profeta. Cf. abaixo, p. 78, 81.

24 Eclo., 48.10 ss. Aqui o Elias ressuscitado tem a missão (que ele partilha com o Ebed Iahweh de Is 49.6) de "restabelecer" as tribos de Israel.

25 Cf. STR.-BILLERBECK, IV, p. 779 ss.

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CRISTOLOGIA  DO NOVO TESTAMENTO 37

Às vezes trata-se do retomo de Enoque.26 É natural que se tenhacrido precisamente no retorno de Elias ou de Enoque, já que segundo o Antigo Testamento eles não morreram mas, antes, foram leva

dos ao céu. Diz-se também que Baruque não morreu e que no finaltestemunhará contra os pagãos. (Apoc. de Baruque 13.1 ss.).

No fim das contas se opera uma combinação destes nomes,de sorte que se menciona dois profetas que hão de voltar. Segundoo livro de Enoque, estes são Enoque e Elias;27  segundo o Midrasch Deut. rabba 3.10,  1  (mais tardio)28  serão Moisés e Ellas. O relatoda transfiguração no Novo Testamento (Mc 9.2  ss.)29  faz, sem

dúvida, alusão a esta esperança, e pode ser que também a apariçãodas "duas testemunhas" de Ap 11.3 ss.

Tal é, ao menos, a explicação corrente desta passagem do Apocalipse*. v\o fim dos tempos, Moisés e Elias voltarão paira pregai' o arrependimento. J. Munck  (Petrtis uiid Paitlus in der Johannes-Apokylypse,1950, tentou refutar esta tese que já P. Volz  (op. cit.,  p. 197) havia declarado como algo "discutível". Ele supõe que as duas testemunhas são, na

realidade, os apóstolos Pedro e Paulo.3

0

'6 En 90.31 (associado a Elias). Mas sua função não é precisa.-7Cf. a passagem citada mais acinia, En 90.31, e também J4/WC. Eliae, ed. STEINDORFF,

1899, p. 163.,,!í  Deus disse a Moisés: "Quando eu enviar o profeta Elias, vireis os dois juntos". Cf.

igualmente Targ. jer.  sobre Ex 12.42."Cf. J. JEREMIAS,dansT/iWè/VT,II,941;H.RIESENFELD, J éjí«/ rafiíííg«f'é ,  1947,

p. 253 ss.; E. LOHMEYER, "Die Verklãrung Jesu nach dem Markus-Evangelium", ZNTW,21  1922, p. 188 ss.10  Cf. a este respeito O. CULLMANN, Saint Pierre, disciple, apôtre, martyr, 1952,

p. 77 ss. Esta opinião foi expressa pela primeira vez pelo jesuíta MARIANA (Scholiain Vems et Novum Testamentum,  1619, p. 1.100 s.). Ela voltou a sei' consideradarecentemente por L. HERMANN, "UApocalypse Johanniqueet l'histoireromaine"(Latomus, VIII, 1948, p. 23 ss.) e M. E. BOISMARD, "UApocalypse'' (La Saiiite

 Bibíe, Jerusalém, 1950, p. 21 se 53 s.). J. MUNCK a defende com argumentos muitoconvincentes. Reconhece que estas duas testemunhas têm traços comuns com osprofetas do fim dos tempos, em particular com Elias retornado à terra, já que, elestambém, pregam o arrependimento. No entanto, fez notar que as testemunhas deAp 11.3 ss. não são os precursores do Messias, mas que anunciam a vinda doAnticristo. Ademais, sublinha (p. 13) que em nenhuma parte encontramos dois precursores do Messias. Munck tenta em seguida mostrar (p. 21) que o que se diz emAp 11.5-6 não concorda com o que se sabe de Elias e de Moisés.

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38 Oscar Cttllmann

Em suas origens, a esperança judaica se referia, com todasegurança, a um só profeta. Podem ser encontradas variantes (nasquais também se menciona Jeremias31);  isto se dá pelo fato de que

não se sabia com certeza qual dos antigos profetas havia de voltar.Esta esperança estava extremamente difundida, pois até seitas situadas na periferia do judaísmo, como os samaritanos e emparticular a seita que os textos recentemente descobertos de Qumrannos têm feito conhecer melhor, esperavam por este profeta escatológico.

Os samaritanos, fundamentando-se na passagem já citada de

Dt 18.15 ss, esperavam a vinda do  Ta'eb.n

  Este é representadocomo Moisés ressuscitado e comporta os traços característicos doprofeta: faz milagres, restabelece a lei e o verdadeiro culto no meiodo povo e leva também os outros povos ao conhecimento de Deus.Como Moisés, morre à idade de 120 anos. Ele é chamado o "Mestre" ou, ainda, o  Ta'eb,  o que pode traduzir-se por "aquele quevolta", ou, mais provavelmente, por "o restaurador". Pensemos na

samaritana do poço de Jacó: para ela, o Messias é ao mesmo tempo profeta (João 4.19,25).O "profeta" ocupa um lugar mais central ainda tia crença

daquela seita judaica cuja existência foi revelada pelo Documentode Damasco, descoberto no Cairo em 1896 e publicado em 1910,33

e que é ainda conhecida pelo nome de "Comunidade da NovaAliança".34 Temos nos familiarizado com sua doutrina e organiza

ção graças às recentes descobertas, de considerável importância,

11  Cf. Mt 16.14. Nos textos judaicos não se menciona nada acerca do seu retorno;porém, em 2 Mac 15.13 ss, se lhe atribui um papel duradouro de mediador como''profeta de Deus".

l!Cf. a este respeito A. MERX,  Der Messias oder "Ta'eb"der Samaritaner,  1909.3 SCHECHTER, Docwnents ofJewish Sectaries, vol. I, Fragments ofa Zadoldte Work,

1910.11

 Cf. a edição do texto hebraico por L. ROST, Die Damaskusschrift,  1933. Traduçãoalemã de W. STAERK,  Die jiidische Gemeinde des Neuen Bundes in Damaskus,1922.  Tradução inglesa: CHARLES,  The Apocrypha and Pseudepigrapha of theO. T.,II,1913,  p. 799 ss. O melhor comentário é o deCHAIM RABIN, The Zadokite

 Documents,  1954 (2aed., 1957).

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CftíSTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO

Feitas em Chirbet Qumran, perto do Mar Morto. Pode-se dar porestabelecido, não obstante as opiniões contrárias expressadasrecentemente,35 de que na realidade trata-se de um grupo aparen

tado com os essênios.

Quase todos os historiadores interessados na história do judaísmoda época neotestamentária têm reconhecido a importância das descobertas sensacionais que se sucederam desde a primavera de 1947, e cujariqueza só se começou a pôr em evidência. A publicação e o comentáriodos textos levarão anos e os estudos exegéticos, tanto do Antigo como doNovo Testamento, deverão, no curso dos próximos anos, levar muito em

consideração estes textos. A bibliografia relativa ao tema é já tão abundante que devemos limitar-nos a indicar alguns estudos especialmente importantes. Em vista de uma orientação geral, recomendamos:H. Bardtke, Die Handschriftenfunde am Toten Meer, 1952; em seguidaA. Dupont-Sommer, Aperçus préliminaires stir  les manuscrits de la mer

 Morte,1953,  e:  Nouveaux aperçus sttr les manuscrits de la mer Morte,1953;  G. Vermes,  Les manuscrits du désert de Judá,  1953; sobretudoMillarBurrows, The DeadSeaScrolls,  1955 (tradução francesa, 1957) c

O. Eissfeldt,  Einleitung in das Alte Testament,  2a

  ed., 1956, p. 788 s.Sobre o conjunto dos estudos se consultará, sobretudo, os artigos periódicos que W. Baumgartner publica desde 1948-9 na  Theologische Rundschau  sob o título  "Der palãstinische Handschriftenfund",  assimcomo os informes regulares da  Theologische Literaturzeitung  ("Dergegenwártige Stand der Eforschung der in Palástina neu gefundenenhebraíschen Handschriften", primeiro informe no n° 74, 1949); aí seencontram também estudos sobre os diversos manuscritos. E igualmente

indispensável recorrer aos informes, profundos e conscientes, publicados na/f evue Biblique pelo Padre de Vaux, diretor da Escola Arqueológica de Jerusalém, à medida que se vão fazendo as descobertas. É necessário, enfim, assinalar o emprego dos textos para os estudos do NovoTestamento: antes de tudo, K. G. Kuhn,  "Die in Palãstina gefundenenhebraíschen Texte und das Neue Testatnent"  (Zeitschr.f. Theol. u. Kirche,47, 1950, p. 194 ss); em seguida S. E. Johnson,  "The DeadSea Manualof Discipline and the Jerusalém Church ofActs"   (ZATW, 1954, p. 110

ss); O. Cullmann,  "La signification des textes de Qumran pour  l 'étudedes origines du c/tristianisine"   (Positions luthériennes, 1958, n° 4, p. 5

DEL MEDICO, L'enigme des manuscrits de la mer Morte,  1957.

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40 Oscar  CuUmann

ss); H. Metzinger, O. S. B., "Die Hcmdschriftenfitnde am Toten Meer unddas N. T\. {Bíblica,  36, 1955, p.457 ss); de uma maneira mais geralH. Braun,  "Spãtjudisch-kàretischer und fruhckristlicher Radikãlismus,

 Jesus von Nazareth unddee essenische Qumransekte" (BHTh, 24), 2  vol.1957-Chr. Burchardpublicou  uma"BibliographieZMdenHandschriftenvom Toten Meer'   (BZÂW, 76), 1957.

Para o assunto que nos ocupa, temos que citar antes de tudo,entre os textos publicados até aqui - além do Documento de Damasco, conhecido há muito tempo - o Comentário de Habacuque:ib

esta obra, graças a uma interpretação alegórica, aplica tão minucio

samente as palavras do profeta à situação da seita que pode-seutilizá-la como fonte para conhecer a história e a teologia destacuriosa comunidade. Neste  Comentário, o homem que pode serconsiderado o provável fundador da seita, e que é objeto da maisalta veneração, leva o título de "Mestre de Justiça", p~ls. ÍTliQ,título que na literatura judaica tardia é atribuído a Elias.-37 Nota-secom razão que poderia igualmente traduzir-se por "Mestre da Ver

dade", ou "VerdadeiroMestre".38 Segundo o Comentário de Haba-

MEste texto foi publicado por MILLAR BURROWS, com a colaboração de J. C.TREVER e W. H. BROWNLEE, The DeadSea ScrollsofSl. Mark's Monastery, vol.I, The Isaiah Manuscript and the Habakuk Cominentary,  1950. Tradução francesade A. DUPONT-SOMMER, le "Commentaire d'Habacuc" découvert prés de la mermorte, traduction et notes (Revue de 1'histoire des religions,  137, 1950, p. 129 ss.).Cf. também o estudo particularmente profundo e prudente de K. ELLIGER, em sua

monografia com comentário e tradução: Studien zuni Habakukkomentar,  1953 (emanexo o texto hebraico em uma edição de fácil manejo). Os Salmos foram publicados muito mais tarde e não puderam ser levados aqui em consideração. Estes permitem entrever, igualmente, as relações entre a ideia de profeta e a de servo de Iahweh.Ver a edição do texto porE.L. SUKENIK, The Dead  Sea Scrolls ofHebmw University,Jerusalém, 1955. Tradução francesa com indicações e notas de A. DUPONT-SOMMER,"Le livre des hymnes tlécouverts prés de la mer Morte" (I QH) {Semítica, Vil, Paris,1956); tradução alemã deH. BARDTKE, em ThLtz, 1956,3, col. 149 ss.; 10, col. 589ss;  12, col. 715 ss.; cf. também G. MOLIN, Lob Gottes aits der  Wtiste, 1957.

'7

LOUIS GINZBERG,  Eine unbekannte judische Sekte,  1922, p. 303 ss., particularmente p. 316.51 Cf. K. ELLIGER,  op. cit.,  p. 245 (se refere a  J.  L. TEICHER). Segundo TH. H.

GÁSTER, The Dead Sea Scriptures,  1956, p. VI, não se trataria da designação deuma pessoa histórica mas de uma função (como  Mebaqqêr).

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 41

cuque, Deus lhe revelou todos os mistérios contidos nas palavrasdos profetas.39  Sua missão é anunciar estas palavras.40 Toda suapregação orienta-se para o fim dos tempos.41  Precisamente em

vista das últimas coisas, ele recebeu uma inspiração particular quelhe permite interpretar com exatidão as previsões dos profetas.Ele tem por adversário o "homem da mentira", o "profeta da mentira".42 O mestre tem que sofrer a injustiça conforme a sorte comumaos profetas.43  Não é, contudo, seguro que tenha sofrido o martírio depois de sua condenação.44

Se se pudesse demonstrar com certeza a identidade entre o

"Mestre-profeta" já aparecido e aquele que há de vir,45

  teríamosum paralelo com a esperança cristã de um regresso de Cristo; tanto num caso como noutro, trata-se da esperança do retorno de umprofeta cuja morte não estaria muito distante no passado. Porém,sobre este ponto ninguém pode, tampouco, pronunciar-se com certeza. E, ademais, no Manual de Disciplina  (IQS 9, 11), a vindado profeta se distingue da vinda dos dois messias, de Aarão e de

Israel.

46

3 9IQpHab. VII, 5; II, 9.w1  Qp Hab. II, 8.41 I Qp Hab. II, 10; VII,  1  s.421 Qp Hab. II, 1  s; X, 9. Acerca da relação com o "verdadeiro profeta" e o "profeta da

mentira" dos escritos pseudoclementinos, cf. O. CULLMANN, "Die neuentdecktenQumrantexte und das Judenchristentum der Pseudoklementinen"  (Neutestamentl.

Studien fiir Rudolph Bultmann,  1954), p. 39 s.•" 1 Qp Hab. IX, I ss.4-5 A.s indicações contidas no Comentário de Habacuque não nos permtem responder a

esta pergunta. Não se pode, tampouco, saber se o "Mestre" estava ainda vivo nomomento da redação do  Comentário.  Cf, sobre o assunto, K. ELLIGER,  op. cit.,p. 202 ss.; 264 ss. Acerca desíe problema convém também examinar os Hinos  (cf.acima, p, 40, nota 36); porém, nem estes nem tampouco os fragmentos ainda nãopublicados parecem apoiar a hipótese de uma execução do "Mestre".

45 Sobre este ponto as opiniões são ainda muito divergentes. S. SCHECHTER, op. cit.,p.  XII, afirmou esta identidade pelo  Documento de Damasco  contra STAERK, op.

cit.,  p. 5, que admitia a existência de dois "mestres": o fundador da seita e outromestre ainda por vir. As recentes descobertas têm provocado um novo exame daquestão. Com exceção de A. DUPONT-SOMMER,  Nouveaux aperçus,  p. 81 s., amaior parte dos especialistas parece recusar hoje a tese da identidade.

Vl  Cf. abaixo, p. 44, nota 56 e p. 116 s.

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42 Oscar Cullmann

Os Testamentos dos Doze Patriarcas, que sempre foram difíceis de serem situados, provavelmente surgiram do mesmo meioespiritual que os documentos da seita de Qumran.47 Não temos de

nos surpreender, pois, se no Testamento de Levi, o Messias esperado, o "Renovador da Lei" (Test.  LeviSA6), é  chamado "profeta doAltíssimo" (8.15). A importância que se dá neste capítulo a Moisése a veneração de que é objeto, permitem supor que ainda aqui oprofeta esperado seja, talvez, Moisés ressuscitado.

Esta crença na vinda ou retorno do "profeta" da seita da NovaAliança nos parece, pois, digna da maior atenção, por um lado,

porque ela é quase contemporânea do Cristianismo nascente; e,por outro, porque o profeta reúne em sua pessoa alguns atributosdo Messias, ou mais particularmente, alguns atributos do SumoSacerdote.48 De qualquer maneira, isto nos permite compreendermelhor porque, no tempo de João Batista e de Jesus, se tenha quase automaticamente falado do "profeta" para descobrir o sentidoda aparição e ministério de João Batista ou de Jesus.

Em todo o judaísmo tardio, a esperança do fim estava ligadaà esperança de um despertar da profecia - porém, de uma profeciadefinitiva, absoluta, que se encarnaria na pessoa do único verdadeiro profeta, que poria fim a toda falsa profecia.49

Se reunirmos agora os diversos elementos desta crençageneralizada, a função do profeta se nos apresenta da maneiraseguinte: ele prega, ele revela os últimos mistérios e, sobretudo,

restaura a revelação tal qual Deus a havia dado na Lei de Moisés.Porém, não prega simplesmente como os antigos profetas: suapregação anuncia o fim do mundo; seu chamado ao arrependi-

"   Cf., em particular, A. DUPONT-SOMMER, "Le Testament de Lévi (XVH-XVIII) etlasectejuivederA]liance",Sí7iji/fCívIV, 1952, p. 33 ES., e Nouveaux aperçus, p. 63 ss.

4!iCf. abaixo, p. 117.4it Outra figura semelhante ao profeta do fim dos tempos é sem dúvida também o taxon,

o Ordenador, cm Ascensão de Moisés. 9,1 ss., que S. MOWINCKEL, em um artigointeressante, quis pôrem relação com o mehoqêq do Documento de Damasco (VetusTestamentitm, supl. I, 1953, p. 88 ss.).

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 43

mento é a última oportunidade de salvação que Deus oferece aoshomens. Sua aparição e sua pregação constituem, pois, um atoescatológico que se insere no grande drama final. A revelação da

vontade divina é a função principal do profeta mas ele deve, ainda, restabelecer as tribos de Israel (Eclo. 48.10). O Elias ressuscitado  deve vencer as potências do mundo, libertar Israel50  elutar contra o Anticristo.51  Como o dos antigos profetas, seu destino é sofrer.52  É o que se pode deduzir, por exemplo, de Mc 9.13(Mt 17.12) "Fizeram com ele tudo o que quiseram, como estáescrito a seu respeito".53

Originalmente, o profeta do fim dos tempos não era um meroprecursor do Messias. A esperança no retorno do profeta era suficiente em si e se desenvolveu, de certo modo, paralelamente à esperado Messias. Este não tem, em suma, necessidade de precursor, posto que preenche em si mesmo o papel de profeta escatológico. Porisso, pode ocorrer - como já o temos visto - que profeta e Messiassejam unidos em uma só pessoa.54  É possível que, por fim, se tenhade reduzir ambos a um denominador comum.55

No entanto, faremos bem em distinguir a linha "profética" dalinha "messiânica"; pois, originalmente, o profeta escatológico aoaparecer no fim dos tempos prepara o caminho ao próprio Iahweh.Só mais recentemente a noção de "profeta" e a de "messias" secombinam, não só pela identificação deste profeta com o Messias,

wCf. STR-BILLERBECK, IV, p. 782 ss.; J. JEREMIAS, em TKWbNTW,  p. 933í l  Apoc. Eliae,  éd. STEINDORFF, 1899 p. 169.>2C..  H. J. SCHOEPS,  Aits friihchristticher Zeit,  1950, p. 126 ss.:  Die jiidischen

Prophetenmorde."Cf. J. JEREMIAS, em ThWbNT, II, p. 944.^J  H. RIESENFELD, "Jesus ais Prophet"  (Spiritits et Veritas,  1953, p. 135 ss.) cita

como passagem do Novo Testamento que atesta esta identificação popular entre o

último profeta e o Messias, aparte João 6.14 se Mc 13.22 e par., acena na qual Jesusé objeto de deboche por parte dos soldados que o convidam a "profetizar".'* A escola de Upsala (ENGNELL) veria este denominador comum na ideologia do rei.

A. BENTZEN o veria antes na ideia do Filho do Homem ou do '"primeiro homem"(Messias-Moses redivivtts-Meitschensohn, 1948, p. 41 ss.).

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44  Oscar Cullmann

mas também por afirmar que, por exemplo, um retorno de Eliaspreparará a vinda, não do próprio Iahweh, mas de seu Messias.56

Devemos distinguir com cuidado a ideia do profeta como pre

cursor de Deus, da do profeta como precursor do Messias, pois asencontramos ambas no Novo Testamento; cada qual com seu próprio sentido.

2.  O PROFETA DO FIM DOS TEMPOS SEGUNDO O NOVOTESTAMENTO

a) João Batista

Nos Evangelhos não só Jesus mas, antes e mais do que ele,João Batista é chamado "o Profeta". Por um lado, temos visto queJoão Batista se encontrava simplesmente colocado no mesmo plano que os profetas do Antigo Testamento. Isto é o que mostra, porexemplo, a fórmula de Lc 3, fórmula de introdução totalmente

análoga à dos livros proféticos do Antigo Testamento: "A Palavrade Deus foi dirigida a João". Estando o dom da profecia encenado, João Batista aparece como o anunciador do fim dos tempos,época em que este dom havia de renascer.

Por outro lado, precisamos estudar agora em que medida suapessoa foi identificada exatamente com o profeta prometido parao fim dos tempos. Isto se fez de duas maneiras: identificando sua

vinda com o retorno de Elias que, por um lado, era tido como umprecursor do Messias (sentido tardio), por outro, como um precursor de Deus (sentido primitivo).

É muito provavelmente a concepção judaica tardia a que estáexpressa em Mt 11.8 ss., onde o próprio Jesus chama João Batista

isCf.  STR-BILLEftBECK, IV, p. 784 ss., como  TliWbNT,  II, p. 933, nota 20. Em

JUSTINO, Dial. Cum Tryph. Jtiel. 8, 4 e 49, I, ele tem por função ungir o Messias.A passagem já mencionada do Manual de Disciplina de Qumran(1QS 9, 11) tambémdistingue expressamente a vinda do profeta da dos dois Messias (de Aarãoe de Israel).Cf. a este respeito K. G. KUHN, "Die beiden Messias AaronsundIsraêls"'{W5 ,1955,p.  178).

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CRISTOLOGIA  DO NOVO TESTAMENTO 45

de Elias ressuscitado.  "O que vocês foram ver no deserto? Umavara agitada pelo vento? Ou então, o que foram ver? Um homemde roupas preciosas? Ora, os que usam roupas preciosas estão nospalácios. Afinal, o que foram ver? Um profeta? Sim, eu lhes digo,mais que um profeta... Pois todos os profetas e a lei profetizaramaté João. E se quereis aceitar,57  ele é este Elias que havia de vir."Se Jesus disse que João é mais que um profeta, isto significa que,sem dúvida, ele é o profeta que deve vir no fim dos tempos. A primeira vista não se vê, muito claramente, é verdade, se João cumpre este papel como precursor do Messias ou como precursor de

Deus; mas se examinarmos o contexto, e em particular o logionem que se fala do "menor" que é o maior no Reino dos Céus58

(passagem na qual Jesus, embora sendo o "menor", se coloca acima do Batista), é certo que para o evangelista Jesus vê no Batista oprecursor do Messias. Esta interpretação é, por outro lado, a únicapossível se Jesus tinha consciência de ser Ele mesmo o Messias.

Igual conclusão se depreende de Mt 17.10 ss. (Mc 9.11 ss.):

"Os discípulos fizeram-lhe esta pergunta: Por que os escribasdizem que Elias há de vir primeiro? Respondeu: E verdade queElias deve vir e restabelecer todas as coisas, mas eu vos digo queElias já veio e eles não o reconheceram e fizeram com ele tudo oque quiseram. Da mesma forma também o Filho do Homem sofrerá em suas mãos." Aqui, Jesus identifica expressamente a aparição do Batista com o retorno de Elias. Se a menção do "Filho do

Homem" remonta ao próprio Jesus, novamente trata-se de João,Elias ressuscitado como precursor de Jesus, o Filho do Homem.A isto se acrescenta que, segundo as palavras de Jesus e conformea esperança judaica, o profeta dos últimos tempos realiza em suapessoa a sorte de todos os profetas: ele é perseguido.59 Seu papelnão se limita a pregar o arrependimento, mas também sofrer; nisto

Sobre a restrição contida na expressão ei Sé^ste  SèZ,0.Gí)a,\  cf. abaixo, p. 38.A tradução habitual, "o menor no reino dos céus", é, certamente, inexata. As palavras èv  i\\   pacri^eit^ râv oúpceviítv não se relacionam a ó piKpótepoç, veja maisabaixo, p. 53 s.Cf. acima, p. 42 s.

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há um certo vínculo com a figura do "Servo de Iahweh", ao qualconsagraremos um capítulo especial. Já notamos que as diversasconcepções messiânicas ou cristológicas se influenciam de maneira recíproca.60

Ao lado destes textos, encontramos uma série de passagensdo Novo Testamento nas quais João Batista, profeta dos últimostempos, é apresentado como o precursor do próprio Deus. Antesde tudo, no proto-evangelho de Lucas, que contém muito provavelmente tradições independentes relativas a João provenientesdo círculo dos discípulos do Batista; lemos, por exemplo, no cânticode Zacarias (Lc  1.76),  que o Batista será chamado "profeta doAltíssimo". "Tu irás adiante da face do Senhor para preparar seuscaminhos." A palavra "Senhor" designa aqui, sem dúvida, Iahweh.A mesma ideia é expressa no anúncio do anjo em Lc 1.17: o menino que há de nascer "irá adiante de Deus no espírito e poder deElias, para fazer voltar o coração dos pais para os filhos e os rebel

des à sabedoria dos justos, a fim de preparar um povo para o Senhor."Verdade é que o evangelista provavelmente aplicou o título de"Senhor" a Jesus muito tarde, como o faz noutra parte ao utilizarcitações do Antigo Testamento.61

Para os sinópticos, João Batista é o "profeta" do fim dos tempos: em uma série de textos na qualidade de precursor de Deus,em outros, na qualidade de precursor do Messias.

Teve o próprio João Batista consciência de ser este profeta?Os Evangelhos sinópticos não nos permitem dar uma respostacategórica a esta questão, pois, em nenhum dos textos mencionados o Batista se explica a si mesmo; são sempre outros que lhedesignam como o profeta. No entanto, João não se considerou comoo precursor de Deus, e isto se depreende de versículos, certamente

Se a tese sustentada pelos sábios escandinavos (cf. acima, p. 43, nota 55) é  exata,nós deveríamos admitir que em sua origem as diversas concepções cristológicas surgiram de uma concepção primitiva única para diferencíar-se logo e finalmente tender a fundir-se de novo.Cf. PH. VIELHA.UER, "Das Benedictus Zacharias" (ZTIiK, 1952, p. 255 ss.).

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CRISTOLOGIA  DO NOVO TESTAMENTO 47

autênticos, do começo do capítulo 11 de Mateus, nos quais Joãofaz com que se pergunte a Jesus se Ele é o que havia de vir ou se énecessário ainda esperar outro. A maneira em que a questão é formulada mostra que o Batista espera ainda um outro enviado deDeus que deve vir depois dele. Isto surge igualmente de sua pregação batismal onde ele fala do "mais poderoso" (ía^upótepoç) quevem depois dele (Mt 3.11), e onde põe em clara luz o caráter paradoxal, para os judeus, de uma situação em que aquele que vemmais tarde, normalmente subordinado e servidor daquele que oprecede, pelo contrário, seja revestido de uma potência divinamaior62  (cf. Ap 5.12). Pode-se concluir daqui que, em todo caso,ele não se considerou como o profeta que prepara a vinda do próprio Deus. Porém, é possível (segundo Mt 11.3) que tenha cridoser o profeta precursor do Messias. Tal seria o caso se as expressões "o que há de vir" (ó èpxópevoç), e "o mais poderoso" aludiam ao Messias. Mas é possível que o èpxónevoç esperado peloBatista fosse o próprio profeta escatológico;63 João Batista seriaentão só aquele que inaugura o fim dos tempos realizando, apóslonga interrupção, o despertar já predito pela profecia; se ele seconsiderou tão-somente um profeta entre outros, seriam seus discípulos e Jesus quem, depois de sua morte, teriam reconhecidonele o profeta escatológico.

Seja como for, o certo é que, segundo a tradição sinóptica, os

primeiros cristãos, e sem dúvida o próprio Jesus, viram no Batistao precursor do Messias anunciado, enquanto que os discípulos deJoão o consideravam como o profeta que prepara os caminhos aopróprio Deus. Os escritos pseudoclementinos proporcionam confirmação disto. Lemos neles,64  com efeito, que a seita posteriormente constituída pelos discípulos do Batista considerava a Joãocomo Messias, opinião que, segundo Lc 3.15, já havia sido deba-

: Cf. O. CULLMANN, 'O òrtíoa»  \io \>  èpxónevoç çConiectanea Neotestamenúca inhonorem Antonii Fridrichsen,  11,1947, p. 26 ss.).Esta é a opinião de J. HÉRING, Le royaume de Dieu et sa venue, 1937, p. 71. Rec,  l,60.

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tida durante sua vida. Porém, para eles o Messias se confundiacom o profeta dos últimos tempos. Segundo os discípulos do Batis

ta, João seria, portanto, o profeta escatológico; mas, sua funçãobastava-se a si mesma e não tinha necessidade de ser confirmadapela vinda de um Messias, já que ele mesmo preparava a Deus oscaminhos para o estabelecimento do Seu Reino.

É muito provável que esta seita dos discípulos do Batista setenha fundido, a seu tempo, com outra seita de origem judaica,a dos mandeus, que ainda existe e cujos escritos sagrados repre

sentam Jesus como um impostor, "um falso Messias", enquantoque João Batista aparece como "o profeta" no sentido absoluto.65

No relato do nascimento de João Batista contido nos livros mandeus,

M. LIDZBARSKI e R. BULTMANN ("Die Bedeutung der neuerschlossenenmandãischen und manichãischen Quellen ftir das Verstàndnis des Johannes-Evan-geliums",  ZNTW,  24, 1925, p. 100 s.) têm sustentado que os textos remontam àépoca pré-cristã. Esta opinião foi refutada por E. PETERSON, "Bemerkugen zurmandãischen Literatur"  (ZNTW,  25, 1926, p. 216 ss.), "Urchristentum und Man-dãismus''  (ZNTW, 27, 1928, p. 1 ss.), "Der gegenwãrtige Stand der Mandaerfrage''(TheoL Blatler,7,1928, col. 12) e, sobretudo, por H. LIETZMAN, "Ein BeitragzurMandaerfrage" (SB Preuss. Ak. d. Wiss. Phil.-Hist. KL, 1930). Ademais, a uttilzaçãodos textos mandeus caiu em descrédito já que, durante longo tempo, citá-los era uma"moda" entre os exegetas do Novo Testamento. Tais ''modas" têm, amiúde, um papelexcessivo na história da teologiae da exegese. Nos anos 1925-1930, era quase impossível abrir um livro ou ler um artigo sem encontrar os mandeus citados ao menosuma vez. M. GOGUEL falava então com razão da "febre mandeana" que havia apa

nhado os historiadores do Novo Testamento  (João Batista,  1928, p. 113). Porém,como ocowft (veqtteMemente com as modas, esta ícbst desapareceu e, por temor deparecer pertencer a uma moda ultrapassada, dedíca-se aos mandeus total silêncio, oque é tão injustificado como citá-los a cada passo. É somente nestes últimos anosque se recomeçou a estudar a questão mandeana (cf. tfepois do trabalho mais antigode H. SCHLIER,  Tlieol. Rundschau,  N. F., 5, 1933, p. 1 ss. H. CH. PUECH, "Lemandéisme, le manichéisme", na  Histoire générale des religions,  III, 1945, p. 67ss.). No Congresso Internacional de história das religiões, reunido em Amsterdã em1950,  W. BAUMGARTNER apresentou um informe sobre estes recentes estudos;

mostrou <jue a origem pré-cristã mandeana pode ser considerada como demonstradae que é, por conseguinte, legítimo utilizar os textos mandeus para a explicação doNovo Testamento ("Der hcutige Stand der Mandaerfrage"  TliZ   6 1950 p 401 ss.)Acrescentemos que as recentes descobertas de manuscritos da seita da nova aliançaconfirmam a existência de um gnosticismo judeu pré-cristão, e que por esta linhaé também possível fixar uma data remota para as fontes dos escritos mandetis

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contra a seita do Batista que, depois de sua morte, o consideracomo o profeta do fim dos tempos, como o precursor de Deus elhe atribui, assim, um papel definitivo que exclui a vinda posterior

de um Messias. Pode-se assim demonstrar68  que o prólogo inteiroé dirigido contra aqueles que queriam exaltar o Batista em detrimento de Jesus, isto é, contra os precursores dos mandeus. É por issoque o autor afirma: "Ele (João) não era ele mesmo a luz7'. Ao mesmo tempo, combate um dos maiores argumentos dos seguidoresdesta seita, o argumento cronológico: João, tendo vindo antes deJesus, é maior que ele. O prólogo cita uma palavra do próprio Batis

ta: "Aquele que vem depois de mim é superior a mim, porqueexistia antes de mim" (João  1.15). Reconhecemos aí a afirmaçãoda preexistência de Cristo.6';

Esta tendência polémica dirigida não contra João, mas contraa seita de seus discípulos, se encontra no restante do Evangelho.Por isso o evangelista insiste tão energicamente sobre o fato deque o próprio João tenha recusado a si o título de "Cristo". João1.20: "Ele declarou e não negou, ele declarou..." (àu,o*A,ÓYrio"£vm i oi)K íipvriaato,  KOIÍ w\io^óyriGev). Esta insistência não temsentido senão em relação a uma afirmação contrária (indicada emLc 3.15). Segundo os escritos pseudoclementinos, seus discípulos,  agrupados em uma seita que o considerava como o Cristo,devem ter sido particularmente numerosos nos meios aos quais oEvangelho de João se dirigia. Assim se explica que o quarto evangelista seja o único que tenha transmitido certas palavras em queo próprio Batista sublinha sua inferioridade em relação a Jesus.Segundo 3.28 ele diz: "Vós sois minhas testemunhas de que vostenho dito que eu não sou o Cristo". No versículo 30: "É necessário que ele cresça e que eu diminua". Ele designa a Jesus comoaquele que vem do alto, enquanto que ele mesmo vem da terra:

"Aquele que vem do alto está acima de todos; aquele que vem da

Cf. W. BALDENSPERGER, Der Prolog des Johannesevangeliums,  1898.Cf. meu artigo citado na p. 47, nota 62.

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CRISTOLOGIA DO NOV O TESTAMENTO 51

terra é terreno e fala como sendo da terra" (3.31). João Batista nãose considera, pois, como o profeta prometido.

9 Compreendemos melhor isto recordando que, para o Evangelho de João, Jesus é este profeta, pois resume em sua pessoa asfunções de todos os mensageiros divinos. O Batista recusa nãosomente ser considerado como Messias, mas ainda como o profeta escatológico, como Elias de volta à terra. Este quadro poderiabem corresponder à realidade. Aliás, isso não entra em contradição com os sinópticos, segundo os quais João Batista, certamente,

não se fez passar nunca por precursor do próprio Deus e, talvez,nem sequer se tenha considerado como o precursor do Messias.O Evangelho de João dá, sem dúvida, a resposta exata ao dizerque João Batista pura e simplesmente recusou que o chamassemde "o profeta".

Veremos que no começo do século n , uma polemica opunhaos discípulos de João aos judeu-cristãos.70 O centro desta discus

são se encontrava não no título de "Cristo", mas no de "profeta".Os judeu-cristãos chamavam a Jesus "o verdadeiro profeta", e chegavam a fazer de João o representante da falsa profecia. O objetodesta primeira controvérsia cristológica não era, pois, no fundo,uma cristologia mas uma "profetologia", e os adversários em questão não eram judeus e cristãos mas discípulos do Batista e cristãos. Isto mostra a importância desta noção de "profeta".

b) Jesus

Chegamos agora aos textos que aplicam a Jesus o título de"profeta". Devemos fazer uma observação prévia: É preciso dis-tinguir as passagens que nomeiam a Jesus como "um profeta" (pelolalo de já terem havido muitos outros) daquelas em que aparece

como "o profeta" único do fim dos tempos. No fundo, estas últimas passagens são as únicas que concernem ao problema cristo-

"'(')'., abaixo, p. 61 ss.

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lógico propriamente dito, isto é, ao problema do caráter específicoe único de Jesus. As funções que Jesus partilha com outros homensnão se relacionam a este conceito senão indiretamente. Porém,como a noção de profeta do fim dos tempos está estreitamenteligada à noção israelita de profeta em geral, nos será necessáriocitar aqui, sem determo-nos muito neles, os textos nos quais Jesusparece ser um profeta entre outros. O que temos dito de João Batista vale também para Jesus: o simples fato de surgir novamente umprofeta, depois de uma longa interrupção, era considerado comosinal da inauguração do fim dos tempos. É verdade que a apariçãode Jesus, seguindo tão de perto a do Batista, deve ter, deste ponto devista, produzido menos sensação.

Lemos em Lc 7.16, no fim do relato da ressurreição do jovemde Naim: "Todos foram possuídos de temor e glorificaram  a Deusdizendo: Um grande profeta se tem levantado entre nós." Aquinão há artigo definido e o substantivo 7tpocpfiTTiç está até acompanhado de um adjetivo. A multidão não toma, pois, a Jesus peloprofeta dos últimos tempos, porquanto este não necessita do epítetoPéfaç.71  Aqui, posiciona-se a Jesus simplesmente na categoriados profetas à qual outros também pertenceram. Um milagre comoo que acaba de ser relatado mostra que o Espírito de Deus, queatuou outrora pela pessoa dos profetas, está atuando novamentecom poder. Este fato, não obstante o juízo da multidão, não sereveste de um caráter diretamente escatológico.

Mateus 21.46 relata que os principais sacerdotes e os fariseustentaram prender a Jesus, porém, temeram a multidão "porque otinham por profeta". Também, aqui se trata de um profeta e não doprofeta escatológico.

A mesma coisa ocorre em Mc 6.4, onde Jesus designa a simesmo  um  profeta, ao falar, depois de seu fracasso em Nazaré:"Um profeta não é desprezado senão em sua terra, entre seus paren-

Seria de outro modo se riyép6r| devesse ser tomado em um sentido mais forte c sertraduzido por "ressuscitado". Neste caso, tratar-se-ia da crença no retorno escatológicode antigos profetas. Porém, é pouco provável que esta tradução seja a correia.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO -3

tes e em sua casa." Um pensamento análogo se expressa na queixade Jesus sobre Jerusalém "que mata os profetas" (Mt 23.37). Esteversículo confirma ao mesmo tempo o que já temos notado,72  a

saber: o sofrimento é a sorte dos profetas, e, em especial, faz partede sua função escatológica.

Muito mais importantes são as passagens do Novo Testamento que designam Jesus como o profeta esperado do fim dos tempos, o profeta que retornou à terra.

Começaremos por Mc 6.14 ss.: "dizia-se: João Batista ressuscitou dentre os mortos e por isto estão operando nele (Jesus)

milagres. Outros diziam: É Elias. E outros diziam: É (um profetacomo) um dos antigos profetas. Porém, ouvindo-o Herodes, disse:"é João, a quem eu fiz decapitar; é ele que ressuscitou."

O evangelista relata aqui três declarações pelas quais o povoc Herodes tentam responder à pergunta sobre quem é Jesus. Estasdeclarações são tanto mais preciosas pelo fato de que são feitasdurante a vida de Jesus. Encontram-se, pois, entre as explicações

mais antigas sobre o mistério de sua obra e de sua pessoa. O quechama a atenção, antes de tudo, é  que os títulos cristológicos fundamentais: "Messias" (Cristo) e "Filho do Homem", não se encontram aí. A primeira das três opiniões, à qual Herodes adere, é queJesus é João Batista ressuscitado dentre os mortos. Esta é umaexplicação cristológica que merece maior atenção que a que se lhedá geralmente, sobretudo por causa de sua antiguidade e, também,

por causa da curiosa crença que implica. A segunda opinião é queJesus é Elias; a última, segundo a maioria dos manuscritos, é queJesus "é um profeta como um dos antigos profetas" (de acordocom o texto ocidental: "é um dos profetas").

Comecemos pela primeira: Jesus é João Batista ressuscitadoilos mortos.

À primeira vista se poderia pensar que esta crença singular

i ião é mais surpreendente que aquela que vê em Jesus, Elias. Porém,na realidade, a diferença é grande, pois Elias pertencia a um pas

cei,  acima, p. 42 ss.

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54 Oscar Culltnann

sado remoto, e a crença em seu retorno pode ser facilmente explicada. João Batista, pelo contrário, segundo o Evangelho de Lucas,contava só alguns meses a mais que Jesus. A ideia de que Jesusfosse o Batista ressuscitado indica algumas pressuposições. Primeiramente, com respeito às relações entre Jesus e o Batista: é necessário que suas atividades respectivas tenham estado separadasno tempo e no espaço, pois aqueles que tinham a Jesus por JoãoBatista ressuscitado não podiam tê-los visto atuar juntos. Portanto, enquanto João pregava e batizava, Jesus passou despercebido,pelo menos em relação a uma parte do povo. Isto concorda, ade

mais, com o que nos dizem os sinópticos: Jesus não começou suaatividade pública senão quando João Batista já estava encarcerado. Antes disso Jesus parece ter atuado à sombra do Batista, apóster recebido dele o batismo; no início, Jesus deve ter se passadopor um de seus discípulos.

Em Mt 11.11 traduzo com Fr. Dibelius7  e os mais antigos Pais daIgreja,4  conforme a gramática: "Aquele que é o menor (Jesus, na qualidade de discípulo) é maior que ele (João) no reino dos céus."75

Segundo o Evangelho de João, houve um período em cujodecurso ambos trabalharam simultaneamente, embora cada um porseu lado. Tal lapso não deve ter tido longa duração, e a atividade deJesus não deve ter chamado naquele momento maior atenção, como oprova justamente a crença popular de que Jesus seria o Batista ressus

citado. No tocante à relação cronológica entre o Batista e Jesus, amultidão não teve a impressão de simultaneidade, mas a de sucessão.<  Temos de admitir que a ideia popular que aqui se testemunha

era compartilhada unicamente por quem não tinha vivido noambiente imediato ao Batista nem a Jesus: pois nesse caso eles

n "Zwei Worte Jesu"  (ZNTW, 11,1910, p. 190 ss.).74

 JERÓNIMO constata em seu Comentário de Mateus: "Multide Satvatore hoc inteliegivolunt, quod quí minor est  tempore,  maior  JÍÍ dignitate"  (PL 26, 74 A). Estfi interpretação se encontra ainda em ORÍGENES (PG 17, 293 B), HILÁRIO (PL 9,981 A)e CRISÓSTOMO (PG 57, 422).

75 Cf. meu artigo citado na p. 47, nota 62.

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CRISTOLOGIA  DO INOVO TESTAMENTO 55

teriam tido a ocasião de, ao menos uma vez, vê-los juntos (nomomento do batismo de Jesus) - ou, pelo menos, de terem ouvidofalar disso, o que faria com que não pudessem tomar Jesus peloBatista ressuscitado.

Nosso texto levou Orígenes a uma observação que carece,certamente, de fundamento histórico; porém, que surge de umauma reflexão. Fala de uma semelhança física entre Jesus e João(KOIVÒV  irjç uopípfjç).76  Isto não se destaca necessariamente denosso texto, porém, pode se dizer, sem vacilação, que em sua aparição traços comuns tenham se apresentado.77 Não há contradição

entre isto e Mt 11.18 ss., onde o povo diz que João veio comoasceta ( j jrrte èaGícov,  UTITE TTÍVCOV), enquanto que acerca de JJsusdiziam que era comilão e beberrão. Tal constatação da diferençanas maneiras de viver prova que se fazia comparação entre eles; eque deviam, por conseguinte, ser comparáveis.

5.. A ideia de que Jesus fosse o Batista ressuscitado supõe tambémuma certa concepção popular da ressurreição que devia estar muito em

voga entre o povo na época de Jesus; e deste ponto de vista igualmenteconvém deter-se um pouco no exame da passagem que nos ocupa.Segundo o que Paulo diz em 1 Co 15.35 ss., ressuscitar-se-á no fim dostempos com um corpo espiritual (oíãuxt 7tvet)p.c(tiKÓv), não com um corpo carnal e terreno. A ideia popular que encontramos em Mc 6 representaa ressurreição como revificação do corpo carnal. Não se trata, pois, comoem Paulo, da transformação de um corpo carnal em corpo espiritual.

Outro assunto está implicitamente esboçado por esta crença popu

lar: a relação entre a ressurreição e a reencarnação. A ressurreição nãopode ser compreendida aqui como a reencarnação da alma (de João) emoutro corpo (o de Jesus). O emprego do verbo éyí]YepTca basta por sipara excluir semelhante explicação, pois este verbo supõe sempre o despertar de um homem imerso no sono da morte, o retorno da alma e docorpo à vida.™ No entanto, há uma grande diferença entre esta ideia, de

"' ORÍGENES,  In Ioan, VI, 30 (PG 14, 285).11 Deve-se, sem dúvida, concluir daí  que, contrariamente à opinião de LOHMEYER (Das

Evangelium des Markus, 1937, p. 116, nota 2), João também deve ter feito milagres.K  Sobre a significação de èYEÍP&IV e a diferença com ÈivíctacOai, cf. E, L1CHTENSTEIN,

"Die ãlteste Kirchliche Glaubesformel"  (Zeitschr. f. Kirchengesch.  63, 1950,p. 26 ss.).

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Oscar Cullrnann

uma ressurreição de João Batista, e a ressurreição de Jesus: João nãoteria ressuscitado para ser chamado a Deus. Não se trataria pois de umaàváaiacriç, mas somente de uma eyepmç. Menos ainda se trataria de

translação de João ao céu depois de sua morte.

Tratar-se-ia, pois, de um retorno verdadeiro e milagroso de Joãocom o corpo que tinha no momento de sua morte. Isto supõe queaqueles que criam nesta ressurreição jamais haviam visto João eJesus juntos, nem tampouco a Jesus antes do começo de sua ativida-de pública. Deviam, com efeito, admitir que aparecera bruscamente

sobre a terra, imediatamente após a morte do Batista ou, ao menos,muito pouco tempo depois. No fundo, nada teria mudado no queconcerne a João, salvo o nome; sua vida terrena teria simplesmentecontinuado sob o nome de Jesus. Há, efetivãmente, exemplos desemelhante crença judaica no retorno milagroso de um profeta como corpo que tinha no momento de sua morte.79

Nós podemos ainda tirar outra conclusão desta crença popular: oscontemporâneos de Jesus se interessavam unicamente por sua atividadepública; sua vida anterior não lhes apresentava nenhum problema, sobretudo porque, para eles, esta se identificava com a do Batista.

Dando por assentado que João Batista havia sido consideradocomo o profeta e, portanto, que se havia visto em sua aparição osinal do despertar escatológico da antiga profecia, identificar

Jesus e João era, definitivamente, identificar Jesus com o profetado fim dos tempos. O principal aqui é que este profeta, aparecidona pessoa de Jesus, não leva o nome de urn dos antigos profetas,mas o de um homem morto recentemente, em época já escatológica,e que havia ressuscitado quase em seguida.

1  Não é necessário deter-se longamente na segunda opiniãocorrente entre o povo de acordo com Mc 6.15, segundo a qual

Jesus teria sido Ehas. Trata-se aqui, no fundo, da crença no retorno escatológico do profeta que prepara os caminhos de Iahweh.

Cf. STR.-B1LLERBECK, 1, p. 679.

&L

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 57

Enfim, no que concerne à terceira opinião, estamos na presença de duas leituras diferentes do texto, e nos é necessário, antes deludo,  falar do problema da crítica dos textos. A maior parte dosmanuscritos lê: "um profeta como um dos profetas" (TTpOípfJTriç ò>çcíc, TfòV 7ipo(pr)TCÒv). Segundo esta leitura, esta opinião seria diferente das duas precedentes: quer somente dizer que a antiga profecia havia despertado outra vez. Isto é bem possível. Não obstante, eapesar de uma opinião geralmente admitida, nos vemos levados acrer que o texto ocidental (representado pelo manuscrito D, e algunsoutros testemunhos) oferece a melhor leitura. Aí lemos: "É um dos

profetas" (etç T-còv Trpo(prtTÔv). Jesus não seria então comparado,de maneira geral, com um dos antigos profetas, mas  identificado com ele. Dito de outro modo, segundo o texto ocidental, a terceira opinião concorda com as outras duas: no fundo é a mesma.Não seria mais que uma variante da mesma crença popular. Trata-sc, nos três casos, do profeta do fim dos tempos: na primeira vezcie é designado como João Batista ressuscitado; na segunda, como

Elias ressuscitado, e na terceira renuncia-se a dar-lhe um nome, jáque como temos visto, este nome pode variar. Uma hora é Elias,outra Moisés outra Enoque ou ainda Jeremias que há de voltar.

O texto paralelo de Lc (9.8)8í) mostra que Lucas leu nosso relatosob a forma que lhe é dada na variante D de Mc 6.15, porém, é compreensível que uni copista tenha acrescentado, mais tarde, as palavras7tpo(pTVTnç <*>Ç> dando assim à terceira opinião outro sentido: Jesus teriasido conhecido como um dos antigos profetas. Ele ignorava, sem dúvida,a crença outrora bem difundida no retorno do profeta. Veremos que, efe-tivamente, a ideia de se considerar a Jesus como o profeta do fim dostempos desapareceu muito cedo da teologia eclesiástica. Este copistateria, pois, tentado tornar mais claro este texto, incompreensível para ele,sem dar-se conta de que lhe tirava, assim, seu sentido primitivo. A leituraD deveria, pois, ser preferida como  lectio difficilior.

Esta maneira de ver é confirmada pela passagem já citada deMc 8.28 onde, em um contexto completamente distinto, encontra-

m Lc 9.8: itpo(pf|Tr|Ç t»Ç TÔV àpxcácov àvéotr|.

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mos relacionadas as mesmas três explicações populares da pessoade Jesus: "Alguns dizem que és João Batista, outros, Elias, eoutros "um dos profetas" (eíç %<òV  Tpocpiytrôvv)

v A opinião consignada em Mc 6.14 ss. e 8.28 é ainda a que opovo expressa, segundo Mt 21.10, depois da entrada em Jerusalém:"é Jesus, o profeta (ó íipo(pfiTn,ç) de Nazaré da Galileia". Se recordarmos que Jesus acaba de ser aclamado como "o Filho de Davi",devemos, sem dúvida, admitir que aqui também, ao chamá-lo de"o profeta", o povo pensa no profeta do fim dos tempos, se bemque não fique excluído que se fale de Jesus como de um simplesrepresentante do género profético.

Os evangelhos sinópticos mostram, pois, que uma parte do povoconsiderava Jesus, durante sua vida, como o profeta esperado para ofim dos tempos. Este fato é tanto mais importante considerando-seque nem Mateus, nem Marcos, nem Lucas tenham se servido deste título para expressarem sua própria fé em Jesus. Eles não viram,pois, em Jesus o profeta, o Elias ressuscitado, antes, se limitarama reproduzir esta opinião como sendo a de uma parte do povo. Seutestemunho a este respeito tem então muito mais valor.

É possível que esta crença popular tenha sido particularmentecomum na Galileia, sobretudo se recordarmos que entre os vizinhossamaritanos, a esperança de um retorno do profeta estava muito viva.Neste caso, teríamos aí uma nova contribuição ao problema esboçado

por E. Lohmeyer em seu livro  "Galileia und Jerusalém"   (aparecido em1936). Já indicamos que a ideia de um "mestre escatológico", queLohmeyer crê poder descobrir na cristologia galileana, deve ser identificada com a do profeta (cf. p. 13).

-  Jesus considerou-se a si mesmo como o profeta escatológico?^  É a João Batista que ele atribui este título, com a função que a ele

se relaciona: "se quereis admiti-lo, é ele aquele Elias que havia devir" (Mt 11.14). A restrição: "se quereis admiti-lo", significa, semdúvida, que o nome do profeta que volta - Elias ou outro dos antigos profetas - não tem grande importância. O essencial para Jesusé que, na pessoa de João, o profeta do fim dos tempos "já veio",c

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 59

que eles "o trataram como quiseram" (Mt 17.12; Mc 9.13). Podemos, pois, afirmar que, segundo os sinópticos, Jesus não se considerou como o profeta esperado para o fim dos tempos; esta opinião não é atribuída senão a uma parte do povo.

-••  O Evangelho de João conduz ao mesmo resultado. Nele, também, só a multidão dá a Jesus o título de "profeta". É assim queaqueles que participaram do milagre da multiplicação dos pãesexclamam: "Este é verdadeiramente o profeta que havia de vir aomundo" (Jo 6.14). É claro que não se trata aqui de um profetaentre outros de Israel, mas do profeta esperado para o fim dos tempos: ó èp%óp.£VOÇ eíç tòv KÓ0Ux>v É, por outro lado, interessanteconstatar que a expressão ó èp%óp,evoç se encontra na perguntafeita pelo Batista (Mt 11.3). Parece, pois, verossímil que tenhamos aqui um termo técnico que designa o profeta escatológico,K^H em hebraico. Aqui também é, portanto, o povo quem pronuncia esta confissão cristológica, ou antes "profetológica". Chegamos, pois, à conclusão seguinte: tanto segundo os sinópticos comosegundo o Evangelho de João, uma parte do povo expressa sua féem Jesus dando-lhe o título de "o profeta"; termo que recupera, aliás,tudo o que a esperança judaica encerrava. Temos que repetir aquique o anúncio de Jesus acerca de seu próprio retorno sobre a terra éde certa forma prefigurado pela crença no retorno do profeta.81

Os três primeiros evangelistas não recorreram a este títulopara expressar sua própria fé em Jesus. Parece, por outro lado, queele teve uma certa importância para o autor do Evangelho de João.Recordemos que este insiste muito sobre a recusa para si que oBatista fez do título de "profeta", de Elias ressuscitado; sem dúvida ele quer, com os demais títulos cristológicos, reservá-lo aJesus. E assim que Nicodemus chama a Jesus de "o mestre vindode Deus" (Jo 3.2). G. Bornkamm mostrou, aliás, como a figura doParacleto tomou, no Evangelho de João, os traços essenciais doprofeta que deve também "conduzir-nos a toda verdade", porém,de tal maneira que o precursor não é senão um com aquele que é

Cf. acima, p. 35.

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60 Oscar Cullmantt

encarregado da realização.82 É que para o Evangelho de João nãohá título messiânico algum que não encontre em Jesus Cristo seu

cumprimento. É por isso, por outro lado, que ele põe tal cuidadoem distinguir Jesus de uma figura como Moisés: se Jesus, enquanto oLogose o Cristo, é, ao mesmo tempo, o profeta, Moisés já nãopode mais ser considerado como o profeta por excelência. Daí arecusa enérgica de ver em Moisés aquele que dá "o pão que vemdo céu" (Jo 6.32; cf.  1.17).

A respeito dos demais escritos do Novo Testamento, já vimosque a primeira parte de Atos (isto é, aquela que contém principalmente as tradições judaico-cristãs) informa duas vezes (3.22 e 7.37)que Jesus é o profeta predito por Moisés (Dt 18.15); e sabemosque esta passagem importante do Antigo Testamento contribuiuimensamente para fundamentar  a crença judaica no profeta do fimdos tempos. Na segunda parte do Livro de Atos, que trata da missão de Paulo, não encontramos em nenhuma parte, como tampoucoachamos nas epístolas, Jesus identificado com o profeta.

Em 2 Ts 2.6 ss., nós encontramos, no entanto, a menção da atividadeescatológica de um pregador do arrependimento; porém, não se trata de Jesus.Parece-nos que este KCCTÉXWv é o próprio apóstolo Paulo. Em nosso artigo: "Lecaractere eschatologique du devoir  missionaree et de la conscience apostolujuede saint  Paul. Etude sttr le  KOCZÉXWV  de 2  Ts 2.6-7"   (RHPR, 16, 1936, p. 210ss.) tentamos mostrar que esta passagem, como outros textos do Novo Testamento, pressupõe que antes do fim Deus enviará um precursor que prepararáo

fim do mundo. Porém, aqui nãoé só o povo de Israel o que deve estar preparado, mas o conjunto das nações. E este profeta escatológico enviado entre ospagãos é  o apóstolo Paulo.Sí

A parte o Evangelho de João e a primeira parte (judaico-cristã)de Atos, em nenhum outro lugar Jesus é considerado como o profetaque no fim dos tempos deve preparar os caminhos de Deus. Estaexplicação da pessoa e do papel de Jesus não durou muito e bem cedo

!-G. BORNKAMM, "Der Paraklet im Johaiinesevangelium" (FestschriftR. Bidtmann,1949, p. 12 ss.).

SJ J. MUNCK se associa a nossa tese em sua recente obra:  Pauhts und die Heihgeschichte,  1954, p. 28 ss.

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CRISTOLGGlA DO NOVO  T ESTAMENTO 61

caiu frente a outras explicações acerca do mistério escatológico.Veremos o porquê. Porém, antes precisamos falar de uma ramifi

cação do cristianismo nascente cuja cristologia foi construídainteiramente sobre a noção de "profeta".

3.  JESUS O "VERDADEIRO PROFETA", NA CONCEPÇÃOJTJDAICO-CRISTÃ TARDIA

Na história da solução do problema cristológico - e fora esta

parte do povo que considerava Jesus como João regressado à vida,como Elias ressuscitado -  só uma facção cristã viu verdadeiramente em Jesus o profeta por excelência: foi a do judeu-cristianis-mo.  Sua desaparição assinala a extinção desta antiga concepçãocristológica. Encontramo-la primeiro no Evangelho dos Hebreus,em uso - segundo sabemos - entre os judeu-cristãos. Infelizmente, não possuímos deste documento mais do que alguns fragmentos.84  A passagem conservada no  Comentário de Isaías  de SãoJerónimo (extraída do fim do relato do batismo de Jesus)85  mostraque neste evangelho apócrifo a concepção cristológica fundamental era a de profeta. O Espírito diz aqui a Jesus: "Eu te esperei emtodos os profetas, a fim de que tu viesses e que eu pousasse em ti".Sem dúvida, as palavras, dirigidas pelo Espírito a Jesus, se estendiam ainda mais neste evangelho.

No entanto, a lacuna que nosso conhecimento deste evangelho apresenta é preenchida por um antigo documento judeu-cris-tão, os  Kerygmata Petrou,  que nos foi conservado no romancepseudoclementino.86  Neste texto Jesus leva, primeiramente, o título

S4 Reunidos porE.KLOSTERMANN,i4/wci>7?/!a II (Kl. Texto n° 8,3a ed., 1929), p. 5 s.K;iCf. acima, p. 35, nota 17.51• Cf. a tradução alemã de H. WAITZ(H, VEIL), em HENNECKE,  Neutestamentliche

 Apokryphen2 2*éd., 1924, p. 153 ss. e215ss. - a qual não pôde ainda tomar por baseuma edição crítica do texto. (Porém, 3a ed. em prep.) Existe uma das Homilias, nacoleção dos  Griech. Christl. Schriftsteller. Die Pseudokleinentineii.  1.  Homilien,ed. por B. REHM, 1953. Para os estudos relativos aos escritos pseudoclementinos,cf. H. WAITZ,  Die PseudoKlemertúnen, Homilien und Rekognitionen,  1904;O. CULLMANN,  Le problème litéraire et historique du rotnan psettdoclémetttin,

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de "verdadeiro profeta", ó àVn&ry; TCpo(pT)Triç; e toda a cristologiaestá orientada para este título. Porém, a antiga noção de Jesus comoo profeta encontra aí um desenvolvimento novo, a saber: a concepção escatológica primitiva passa, mais ou menos, para segundo plano, para dar lugar a um elemento especulativo e gnóstico.É isto o que já indica o adjetivo "verdadeiro", àXr)6r|Ç, que acompanha constantemente o substantivo "profeta". Segundo a antigacrença, o profeta apareceria essencialmente para inaugurar o fimdos tempos e consumar, assim, a obra dos antigos profetas; aqui,ele é antes de tudo aquele que leva a sua consumação e perfeição averdade anunciada por todos os profetas. Percebe-se aqui um certo parentesco com o Evangelho de João, que também apresenta oCristo, antes de tudo, como o Logos, o portador da verdadeirarevelação, e que mostra um interesse particular pelo título cristoló-gico de "profeta". Porém no Evangelho de João esta concepção seinsere em uma cristologia autenticamente bíblica enquanto quecom os Kerygmata Petrou nos encontramos na presença de umaespeculação tipicamente gnóstica A obra inteira tem aliás umcaráter °~nóstico bem acentuado 87

É falso considerar a teologia judaico-cristã e o gtiosticismo comoduas doutrinas opostas entre as quais se teria desenvolvido a teologia daigreja antiga. Tem-se o costume de opor a cristologia judaico-cristã àcristologia gnóstica e docética. Na realidade, as fontes nos mostram que omais antigo gnosticismo cristão, aquele cujas primeiras marcas achamos

no Novo Testamento, tem vinculação judaico-cristã. As primeiras indicações precisas sobre o docetismo, que devemos a Inácio de Antioquia, nãodeixam lugar a dúvidas sobre a origem judaico-cristã desta heresia.

1930;  H. J. SCHOEPS,  Theologie  und  Geschichte  des Judencliristentums,  1949(sobre este último livro, cf. as resenhas críticas de G. BORNKAMM emZ  /rsc /u; /Kirchengesch. 1952-53, p. 196ss. edeBULTMANN,e /H Gnomon, 1954, p. 177ss.).

*7 H. J. SCHOEPS busca, é verdade, demonstrar que, contrariamente à nossa tese, nãohaveria aí  gnosticismo. Porém, trata-se sem dúvida de uma simples questão tle palavras, pois Schoeps parece ter uma concepção demasiado estreita do gnosticismo.Na realidade, as recentes descobertas de Qumran proporcionam uma nova prova daexistência de um gnosticismo judaico. Por outro lado, Schoeps revisou posteriormente sua opinião; cf. abaixo, p. 193, nota 315.

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C-RISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 63

Desde o primeiro capítulo os Kerygmata Petrou se ocupamdo verdadeiro profeta. Compara-se o mundo, com seus pecados eerros, a uma casa cheia de fumaça. Aqueles que nela estão intentam em vão captar a verdade; porém, esta não pode entrar. Só overdadeiro profeta pode abrir a porta e fazer entrar a verdade. Esteprofeta é o Cristo, que apareceu pela primeira vez no mundo napessoa de Adão. Adão já é, pois, o verdadeiro profeta e como talanuncia o mundo futuro. Em nosso capítulo sobre o Filho doHomem, veremos que os judeu-cristãos associaram assim a noçãode profeta à de Filho do Homem.88 Desde a criação do mundo, o

verdadeiro profeta corre os séculos trocando de nome e de aparência, encarnando-se sempre de novo: em Enoque, Noé, Abraão,Isaque, Jacó e Moisés. Este renovou a lei eterna que Adão já haviaproclamado. Por concessão ao endurecimento de Israel, e a fim deevitar piores abusos, autorizou os sacrifícios. Porém, esta autorização não era senão provisória, já que o próprio Moisés anunciaum profeta futuro (Dt 18.15). Da mesma forma que nos demais

textos judaicos em que se trata do "profeta", esta passagem de Deu-teronômio desempenha um grande papel. Porém, aqui se atribuiao verdadeiro profeta a missão particular de proibir os sacrifíciosautorizados por Moisés. Este é um ponto ao qual os judeu-cristãosdão muita importância. Esta proibição é, pois, segundo eles, umadas funções essenciais do profeta.89

Na pessoa deste profeta futuro, o verdadeiro profeta encon

tra, afinal, o repouso, como no fragmento já citado do Evangelhodos Hebreus.90 Ele é o Cristo. Pela abolição dos sacrifícios elerealiza e corrige ao mesmo tempo a obra de Moisés. Uma linhadireta conduz, pois, de Adão a Jesus, e esta linha é a do profeta, dequem Jesus é a encarnação perfeita.

íB

  Cf. abaixo, p. 195 s.S'J A questão é tratada um pouco difere LI temente - embora a orientação seja a mesma -na Epístola de Barnabé. Nela o autor polemiza contra os sacrifícios judaicos, refe-rindo-se ao sentido verdadeiro dos  antigos profetas. Estes já são pois "verdadeirosprofetas", pela boca dos quais o Senhor fez conhecer sua vontade.

'"'Cf. acima, p. 35, nota 17.

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Segundo esta curiosa teoria judaico-cristã, uma segundalinha se desenvolve paralelamente, ao longo de toda a história, a do

falso profeta. Considera-se assim o bem e o mal sob o ângulo daverdadeira e da falsa profecia. Vemos aqui até que ponto toda asoteriologia está subordinada à noção profética. A história inteira sedesenvolve sob o signo de uma espécie de dualismo, simbolizadopor pares antagónicos (croÇoyím), cujo primeiro membro, chamado também esquerda, representa a falsa profecia, enquanto que osegundo, chamado também direita, representa a verdadeira. Estaoposição é dirigida, em particular, contra a seita dos discípulos deJoão Batista, também combatida implicitamente no Evangelho deJoão. Esta comunidade, antes de sua fusão com os mandeus,91  deveter representado, no fim do primeiro e começos do segundo século,uma concorrência particularmente perigosa para o cristianismo primitivo, e muito especialmente para o judeu-cristianismo.

Recordemos que os discípulos de João viam em seu mestre oprofeta definitivo dos últimos tempos. Nas exposições da doutrinapseudoclementina, não se tem prestado suficiente atenção ao fato deque todo o sistema destes pares antagónicos é concebido em oposiçãoa esta doutrina. Segundo as especulações judaico-cristãs, reaparecemsem cessar na história humana tais "syzygies"; nestes pares cada umdos membros encarna, por assim dizer, em estado puro, a verdadeira ea falsa profecia. A teoria gnóstica dos syzygies, que opõe os princípios do bem e do mal, é posta assim inteiramente a serviço da espe

culação acerca do "profeta". É assim que, no primeiro par, Adão, primeiro representante da verdadeira profecia, se opõe a Eva, princípioda falsa profecia; a Isaque, o verdadeiro profeta, se opõe Ismael, ofalso profeta; ao verdadeiro profeta Jacó se opõe o falso profeta Esaú.Igualmente, Moisés aparece como o verdadeiro profeta frente a Aarão.Tudo isto para poder, finalmente, opor Jesus, o verdadeiro profeta porexcelência, a João Batista, o falso profeta por excelência.

Vemos como neste escrito herético judaico-cristão a polémica contra os discípulos do Batista degenera em polémica contra o

Cf. acima, p. 47 s.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 65

próprio Batista. O quarto Evangelho combatia somente a quemtinha João Batista por Cristo ou por "profeta"; não combatia apessoa de João; porém, desmentia em troca, pelas próprias palavras do Batista, a ideia errónea que alguns faziam dele. Assim, nocurso da polémica contra os discípulos do Batista, o juízo acercada pessoa de João Batista sofre um desenvolvimento: nos sinópticosele é ainda considerado como o profeta; no quarto Evangelho, estetítulo lhe é negado. Nos escritos pseudoclementinos ele aparecefinalmente como o falso profeta. Estes mesmos escritos consideram a Elias, sem dúvida identificado com João Batista, como orepresentante da falsa profecia.92

Notar-se-á também que esta teoria judaico-cristã dos syzygies permitecombater o argumento cronológico segundo o qual o Batista seria superior aJesus por ser de maioridade. Encontramos marcas desta discussão já no Evangelho de João (cf. acima, p. 49 s.). Porém, enquanto este responde afirmando apreexistência de Jesus (daí sua prioridade absoluta), os autores  dosKerygmata

Petrou procedem de outro modo. Reconhecem sem mais a prioridade de Joãosobre Jesus, porém, reconhecem nesta mesma prioridade a prova de que setrata de um falso profeta: éque, a partir da segunda syzygie, sempre o primeiromembro do par representa a falsa profecia. Caim vem antes de Abel, Ismaelantes de Isaque, Esaú antes de Jacó, Aarão antes de Moisés, João Batista antesdo Filho do Homem; Paulo, o apóstolo entre os pagãos, antes de Pedro; oAnticristo antes do Cristo da parusia.!',

Esta doutrina judaico-cristã está, pois, inteiramente dominada pela ideia de "profeta", tanto em seu aspecto positivo como emseu aspecto polemico. O caráter escatológico inerente a esta ideiano judaísmo, como também no Novo Testamento, passa, é verdade, a segundo plano. No entanto, lidamos aqui com a única cristologia um pouco desenvolvida que descansa nesta antiga crença de

''•' Hom. II, 17, 1. Ele é,  assim, posto no mesmo nível que os profetas cujos livros sãoconservados pelo Antigo Testamento, e que são igualmente rejeitados como os falsos profetas pelos  Keiygmata Petrou.

11 Hom. II, 16-17; Rec. III, 6 1. Sobre a reconstituição da lista, cf. O. CULLMANN, Le pruhleme historique et litéraire du roman pseudo-clétnentin,  1930, p. 89.

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. 66 Oscar  Cullmcmn

um retorno do profeta. É também, sem dúvida alguma, uma dasmais antigas que podemos encontrar.

O porvir, no entanto, não pertence a esta cristologia, mas, às

outras explicações da pessoa e da obra de Cristo. A solução "profe-tológica" dos Kerygmata Petrou desapareceu junto com o judeu-cristianismo. Ela não exerceu quase nenhuma influência no desenvolvimento dogmático do cristianismo. Por outro lado, exerceuuma poderosa influência sobre outra religião: o Islã, na qual o profeta ocupa também uma posição central.94

Veremos, ademais, que mesmo fazendo abstração das espe

culações gnósticas judaico-cristãs, a ideia de profeta escatológicoé demasiado estreita para abarcar, em toda a sua riqueza, a pessoae a obra de Cristo, e isto nos leva a nossa última questão.

4. "JESUS O PROFETA" COMO SOLUÇÃO DO PROBLEMA CRISTOLÓGICO DO NOVO TESTAMENTO

Que vantagens e que inconveniências apresenta a crença queacabamos de estudar quando se trata de estudar o caráter original eúnico da pessoa de Jesus, tal como ele nos aparece segundo o testemunho da fé primitiva?

As vantagens são incontestáveis. Por um lado, ela explica ocaráter único da pessoa e da obra de Jesus, já que em sua pessoatrata-se, se não da aparição final do próprio Senhor, ao menos da

aparição decisiva do profeta escatológico. Por outro lado, ela dáconta do caráter humano de Jesus: é um homem que os judeusesperavam como o profeta dos últimos tempos.

Se consideramos agora a missão deste profeta, será necessário convir que ela corresponde perfeitamente  a todo um aspecto daobra de Jesus, e, em todo caso, que não contém nada que se oponha à essência e à finalidade desta obra, tal qual nô-la representam

os evangelhos. Deste ponto de vista, a noção de profeta apresentacertas vantagens em comparação com a de Messias. Veremos, com

Cf. abaixo, p. 74 s.

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(_R]STOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO

efeito, que na época de Jesus, ao menos nos meios dirigentes dopovo, se esperava que o Messias realizasse um programa político:a luta e a vitória contra os inimigos de Israel, a restauração deJerusalém como capital de um reino puramente temporal etc; oque contradiz abertamente o papel que Jesus se auto-assinalava.

A função do profeta escatológico consiste acima de tudo,segundo os textos judaicos, em preparar por sua pregação o povode Israel e o mundo para a vinda do Reino de Deus; e isto não àmaneira dos profetas do Antigo Testamento, mas de um modo muitomais direto: como precursor imediato do advento deste Reino. Elevem armado de uma autoridade escatológica que lhe é privativa.Seu chamado ao arrependimento é absoluto e exige uma decisãodefinitiva, o que dá à sua pregação um caráter final, absoluto, quenem mesmo a palavra dos antigos profetas possuía no mesmo grau.Segundo a forma em que se reage frente a este profeta, já se é

 julgado, segundo diz o Evangelho de João (3.18). Temos visto queeste evangelho dá muita importância à cristologia do "profeta";quando o èp%óu.evoç, o profeta que há de vir, toma a palavra, tra-ta-se de uma palavra  final,  da  última  oportunidade de salvaçãooferecida aos homens. Pois só sua palavra indica já a iminentechegada do Reino. Esta função corresponde plenamente à maneiraem que Jesus compreendeu e viveu efetívamente sua missão terrena.A autoridade, a èE^rooía, com a qual Jesus anuncia Seu evange

lho, não é a de um profeta qualquer, mas a do profeta por excelência: "Mas eu vos digo" (èyw ôè A,éyco ópív). O conteúdo de suapregação correspondia, aliás, a esta autoridade escatológica: "Arre-pendei-vos porque o Reino dos Céus se aproxima". Tal é o pontode partida de sua pregação: quer preparar os homens para a entrada no Reino que vem. O caráter escatológico de sua pregação éincontestável.

A noção de "profeta" explica, pois, perfeitamente a atividadede Jesus como pregador, assim como também a autoridade com aqual atua e fala.

Temos que assinalar ainda que ela se associa muito facilmente a outras noções cristológicas essenciais: à de Messias, no senti-

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do que este também deve aparecer no fim dos tempos para preparar a vinda do Reino de Deus; à ideia joanina do Logos, que une aobra do profeta e sua pessoa identificando-os, por assim dizer: o

próprio Jesus sendo o Verbo. Pode-se recordar a este respeito ocomeço da Epístola aos Hebreus, onde se expressa um pensamento análogo (embora o assunto não seja exatamente o mesmo que odo prólogo de João): "Depois de haver em outros tempos, de muitasmaneiras e em diversas ocasiões, falado a nossos pais pelos profetas, Deus, nestes últimos tempos, nos tem falado pelo seu Filho".Aqui a ideia de profeta está ligada à de Filho de Deus. Já temos

visto também que existe um elo direto entre a noção de profeta e ade servo, do Ebed Iahweh, sofredor, já que o sofrimento é parteintegrante da missão do profeta escatológico.

Enfim, não podemos esquecer um fato sobre o qual já temoschamado a atenção:95 de todos os títulos atribuídos a Jesus pelo cristianismo primitivo, o de profeta dos últimos tempos é o único quepermite, ao menos em princípio, falar de uma dupla vinda de Jesus

sobre a terra, que autoriza, portanto, a que se aspire o seu retomo.Estas vantagens são incontestáveis. Há, no entanto, gravesinconvenientes em reduzir a explicação da pessoa e obra de Jesusàquela de profeta do fim dos tempos. Pode-se classificá-las emquatro grupos: 1) do ponto de vista da vida terrena, passada deJesus; 2) do ponto de vista do Cristo presente, elevado à destra deDeus; 3) do ponto de vista do Cristo por vir, o Cristo da parusia e

4) do ponto de vista do Cristo preexistente.Acabamos de ver que a ideia de profeta permite, em muitossentidos, compreender perfeitamente a vida  terrena de Jesus, eque nisto reside juáfamente sua vantagem. No entanto, mesmo desteponto de vista, é insuficiente quando, com efeito, insiste demasiado vigorosamente sobre um só aspecto desta vida: sobre a ativida-de de Jesus como pregador escatológico, desequilibrando o papelque os evangelhos dão ao Cristo terreno. É certo que os textos

 judaicos nos falam de outras atividades do profeta: deve também

Cf. acima, p. 35 e 59 s.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO (&

fazer milagres, deve restabelecer as tribos de Israel, vencer as potências deste mundo e lutar contra o Anticristo.96 No entanto, não setrata aí da missão específica do profeta, mas antes, de elementos

vindos de outra parte - talvez da noção de Messias - e transferidosao profeta dos últimos tempos. Ora, a obra terrena de Jesus Cristo,tal qual a compreenderam os primeiros cristãos, não se limita àpregação escatológica; ela não encontra sua consumação senãona remissão dos pecados e, antes de tudo, no ato que coroa estaobra redentora: sua morte expiatória. É assim que, segundo o testemunho dos evangelhos, o próprio Jesus entendeu sua obra, e nes

ta perspectiva também a igreja nascente compreendeu Sua pregação.É verdade que temos constatado um elo entre a pessoa do

profeta e a do Servo de Deus. No entanto, o sofrimento e a morte,no sentido de uma substituição consciente e voluntária, não sãoespecificamente parte da função do profeta escatológico. Para oprofeta, o sofrimento não é mais do que uma consequência inevi

tável de sua pregação; ele não é, propriamente falando, sua missão,  como o é no caso do Servo Sofredor. O profeta não é, emsuma, mais do que o pregador que se levanta no fim dos tempospara chamar os homens ao arrependimento. Tudo o que concerne,ademais, à sua pessoa e obra desaparece frente a esta funçãoessencial. Ora, na vida de Jesus é justamente o contrário: sua pregação e seu ensinamento decorrem inteiramente do fato dele ter

consciência de que lhe é necessário sofrer e morrer por seu povo.Por isso, não é tanto a noção de profeta mas a de Ebed Iahweh quecaracteriza essencialmente a vida terrena de Cristo, e isto - voltaremos a tocar nessa questão - aos olhos do próprio Jesus. Não ésenão vinculando estreitamente a noção de profeta à de  Ebed

 Iahweh que aquela pode, a rigor, explicar a vida terrena de Cristo.De outro modo ele não seria só insuficiente, mas ainda daria uma

falsa imagem da pessoa e da obra de Jesus tal qual a descreve oNovo Testamento.

'"'Cf. acima, p. 43.

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Oscar Cuiimann

Porém, a insuficiência de uma cristologia centrada inteiramente sobre a noção de profeta se torna mais patente se tentamosexplicar a obra presente e futura de Cristo. Não há lugar algum

para uma função presente do profeta, pois a ideia de profeta nãoprevê um intervalo temporal entre sua atividade terrena, já escatológica, e seu retomo. Temos constatado, é verdade, que o profetaesperado pelos judeus da época de Jesus era considerado como

 já tendo vivido antes sobre a terra. Esta doutrina pode, pois, terpreparado os espíritos para a ideia de uma dupla vinda de Jesus.Porém, há uma diferença: segundo a crença judaica, a primeira

vinda do profeta não tinha um caráter escatológico, enquanto quepara a fé da igreja primitiva tratava-se, em  ambos os casos, deuma aparição escatológica de Jesus. Segundo a esperança judaica,o Reino de Deus se estabeleceria com poder a partir do momentoem que o profeta retornado à terra completasse seu chamado aoarrependimento. Não se prevê que ele deva seguir exercendo suafunção posteriormente. Por esta razão, a noção de profeta não pode

aplicar-se à obra do Cristo glorificado, àoKyrios que a igreja confessa. Ou seja, uma das funções escatológicas mais importantespara o Novo Testamento é estranha ao conceito de profeta.

Colocando-se no ponto de vista escatológico judaico deentão pode-se e deve-se falar, a propósito do cristianismo, de um"adiamento daparusia". Há, com efeito, um verdadeiro adiamentoda realização esperada; porém, sobre a base de uma fé em um

cumprimento antecipado neste mundo que não está ainda libertodo pecado e da morte. A convicção de que "o Reino de Deus jáveio até vós" (Mt 12.28), que "Satãcaiu do céu como um raio" (Lc10.18), e que "os cegos vêem, os aleijados andam, os leprosos sãopurificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, e a boa novaé anunciada aos pobres" (Mt 11.5), é um elemento novo no evangelho que o distingue do judaísmo e até das formas mais elevadas

do profetismo judaico. Desde que se considere o tempo presentenesta perspectiva, o processo escatológico admitido nesta épocapelo judaísmo deve, necessariamente, ser modificado, porque aí seinsere, então, uma época - por certo breve-de realização parcial.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO  71

A discussão sobre a "escatologia consequente" deveria, pois, tratardo verdadeiro lugar do "adiamento da parusia"; deve ele ser consideradocomo um motivo teológico com alcance decisivo para o cristianismo pri-

mitivo97

 - (é o que pensam A. Schweitzer e seus discípulos, como também mais recentemente, R. Bultmann518) -ou não marca ele, antes, precisamente a fronteira que separa o judaísmo do evangelho de Jesus?A escatologia de Jesus não é nem "realizada" (Dodd) nem "somentefutura" (A. Schweitzer). A tensão existe já no ensinamento do próprioJesus. O adiamento da parusia na igreja nascente tem, quando muito, porconseqtíência uma insistência maior sobre o já realizado . As palavras já mencionadas dos evangelhos sinópticos provam que o próprio

Jesus admitiu um tempo de realização já cumprido durante sua vida, semdeixar de esperar com intensidade a consumação final, muito próxima;porém, que chegaria somente depois de sua morte.100

A posição central que o Cristo presente e glorificado ocupana fé da igreja nascente basta para mostrar que o título de profetanão contribui para uma solução satisfatória do problema cristoló-gico. Para o judaísmo tardio, o profeta esperado já viveu uma vez

sobre a terra; porém, a consumação de sua missão escatológica,quando voltar, marcará o termo definitivo de sua ação. Não há,pois,  lugar nesta concepção para uma atividade prolongada até opresente. Seu papel é exclusivamente  preparatório, o que torna,de início, impossível uma prolongação de sua missão.

VI

 Não contestamos, no entanto, que a Igreja nascente tenha constatado um adiamentoposterior da parusia. Porém, afirmamos que o esquema cronológico da históriada salvação não provém desta postergação: existia desde o princípio.  A Emescha-tologisierwig  consiste em diminuição da tensão entre o presente e o futuro.E. GRÂSSER, Das Problem der Parusieverzõgertmg in deit synoptischen Evangelienund  der  Apostelgeschichte(BZ.NW, 22), 1957, tenta juntar todos os textos à sua tesesegundo a qual a igreja nascente não só teria crido em uma presença então atual doporvir escatológico pelo fato da parusia não se ter produzido. Já refutamos esta teseem nosso artigo "Parusieverzógung und Urchristentum" (ThLZ, 83,1958, col. 1 ss).

s Cf. seu artigo em NTS, 1, 1954, p. 5 ss.'"Cf. a este respeito nossa discussão com F. BURI no artigo: "Das wahre durch die

ausgebliebene Parusie gestellte neutestamentliche Problem" (ThZ, 3, 1947, p. 177ss. e 422 ss.).

""'Ver a este respeito: W. G. KÚMMEL, Verheissung und  Erfiillung, 2a edição, 1953.Cf. igualmente abaixo, p. 303 s.

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.72  Oscar Ctdlmann

Também, não se pode, a partir da noção de profeta, entendei*tampouco a terceira fase, o período futuro e escatológico da obra deJesus. Segundo a crença judaica, o papel do profeta acaba quandocomeça o Reino de Deus. A vinda do profeta é, por certo, objeto deesperança e ele é, inclusive, uma figura puramente escatológica. Porém, ele é esperado como precursor e não como executor daconsumação, pois esta, por definição, não entra no âmbito de suamissão. Aqui aparece uma vez mais a dificuldade que se experimenta ao querer reduzir a este título a cristologia dos primeiros cristãos. Só os que esperavam o advento do Reino de Deus durante a

vida de Jesus é que não tinham necessidade de considerar uma pro-longação de sua missão, e podiam contentaf-se em ver nele o profeta dos últimos tempos. Por outro lado, a fé cristã primitiva, tal qualestá atestada por todos os escritos do Novo Testamento, parte damorte e ressurreição de Jesus e se dirige ao Cristo presente e àqueleque há de voltar. Pode-se, ademais, demonstrar que o próprio Jesuscontou com uma prolongação - muito breve sem dúvida - de sua

obra de mediador antes de vir o fim dos tempos.'0

1Se o título de "profeta do fim dos tempos" não pôde impor-separa explicar a pessoa e a obra de Jesus, deve-se isto, sem dúvida,

ALBERT SCHWEITZER emitiu, como se sabe, a opinião de que Jesus havia crido,antes de tudo, que o Reino de Deus viria durante sua vida e que só mais tardepensou que o advento do Reino coincidiria com sua morte. É esta uma hipótese

que deve ser levada em consideração e que tem exercido uma influência fecunda sobre os estudos neotestamentários. Porém, não é mais que uma hipótese eA. SCHWEITZER é um sábio demasiado sério para não ter-se dado conta disso.Em todo caso, hoje já nenhum especialista do Novo Testamento a defende sob aforma que ele lha deu; e ela foi pelo menos seriamente enfraquecida, em particularpor W. G. KUMMEL,  Verfteissung une! erfiilhmg,  2a  ed., 1953. Porém, isto nãoimpede os discípulos de Berna e de Basiléa de A. SCHWEITZER, os representantesda escatologia chamada "consequente" (entre os quais não se encontra nenhumespecialista do Novo Testamento) de aderir a ela com singular dogmatismo, acusando de improbidade científica ("recurso a escapatórias") ou de tendências católicas

àqueles que não admitem esta hipótese e admitem que Jesus tenha pensado que oReino de Deus não viria senão depois de sua morte, mesmo se ele tivesse crido que ointervalo não fosse de longa duração. Cf. a este respeito F. BURI, "Das Problem derausgebliebene Parusie" (Schweiz. Theol. Untschait, 1946, p. 97 ss.) e nossos artigosda ThZ  e da ThLZ  citados mais acima, p. 45 cf. Também abaixo, p. 270 s. e 303 s.

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CRISTOLOGIA  DO NOVO  T ESTAMENTO  _T3

a que não abrange a ação pós-pascal do Cristo "vivo". Ora, estaação - voltaremos a isso - representa para a comunidade primitiva o acontecimento cristologico por excelência, o qual deu umimpulso decisivo a toda a cristologia do Novo Testamento.

Enfim, não se pode relacionar diretamente à noção de profetaa preexistência do Cristo, da qual falam diferentes passagens doNovo Testamento. Quando muito, se poderia sustentar que o profeta já aparecera sobre a terra sob formas diferentes, e que istopressupõe a existência de uma espécie de "protótipo" do profeta e,portanto, uma certa forma de preexistência. Porém, esta é profundamente diferente da que, no Novo Testamento, atribui-se a Jesus,onde se trata de uma existência eterna junto a Deus. Somente admi-tindo-se uma relação entre o Logos joanino, o "Verbo que r\o princípio estava com Deus", e o profeta - o qual é essencialmente apersonificação do Verbo Divino - se poderia, rigorosamente, contemplar, com base nesta relação, a possibilidade de uma certa identificação entre o profeta e Jesus.

,-.••'*;  ' ara concluir diremos, pois, quq a noção de profeta dod últimos tempos é demasiado estreita para dar conta da fé primitiva emJesus Cristo. Esta noção não alcança plenamente mais que umaspecto da vida terrena de Jesus; necessita ser completada poroutras noções mais centrais, como a de Servo de Deus. Por outrolado, ela não pode concordar com os títulos cristológicos que serelacionam ao Senhor presente, pois exclui a ideia de um intervaloentre a ressurreição e a parusia. É, por conseguinte, incompatívelcom a perspectiva a partir da qual o Novo Testamento inteiro considera o evento da salvação, isto é, a vinda, morte e ressurreiçãode Jesus como o ponto central, divisor do tempo. A teologia do"profeta" não pode acomodar-se a esta perspectiva, já que por suaprópria natureza o profeta não pode desempenhar senão um papelpreparatório. Se Jesus é só o profeta, então o evento decisivo dahistória ainda não se produziu; neste caso não há lugar para uma féno Cristo-Kyrios  atualmente presente. Pois, para o Novo Testamento, a fé no Cristo atualmente presente, como a fé em seu retorno, pressupõe a certeza de que a decisão soteriológica foi incluída

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7,4 Oscar Cuitmcmn

na pessoa do Jesus encarnado, mesmo quando a manifestação desta decisão seja ainda algo esperado.

Não é, pois, surpreendente que na cristologia do judeu-cristia

nismo, regida pela ideia de profeta, a morte de Cristo - ou seja, oacontecimento central da história da salvação - careça de grandeimportância teológica.

* * *

&'  Temos visto que nem Jesus nem seus discípulos imediatos

aplicaram a noção de profeta a Sua pessoa e a Sua obra. Trata-seantes de uma opinião popular sobre Jesus. Os elementos válidosque ela encerra foram retomados pelo Evangelho de João e pelaEpístola aos Hebreus, para serem incorporados a outras concepções cristológicas. O único sistema cristológico inteiramente fundado sobre a crença no "profeta" é o dos judeu-cristãos, tal comoo encontramos nos  Kerygmata Petrou -  portanto, em um ramo

herético do cristianismo antigo. O futuro pertencia a outras soluções. No entanto, se reservava a esta cristologia o desempenhar,mais tarde, um papel histórico não já no cristianismo, mas, no Islã..02

Sabemos hoje que a religião muçulmana se constituiu sob ainfluência do judeu-cristianismo difundida nos países sírios. A figura do "profeta" revive aí sob uma forma nova. Há ainda, no entanto, muitas investigações por fazer a propósito dos elos intermedi

ários que unem a religião do Islã ao judeu-cristianismo.NaMogmática posterior, não encontramos vestígios da cristo

logia do "profeta", a não ser na ideia áemunus propheticum Christi.E ainda assim, sob uma forma bem diferente.

11,1 Cf. W. RUDOLPH, Die Abhãngigkeit des Korcms von Judentum und Christentuin,1922; A. J. WENSINCK, "Muharnmed und die Prophetie" (Acío oíí enífl/iíi II, 1924);

TOR ANDRAE, "Der Ursprung des Islams und das Christentum"  (Kyrkohistorisk Arsskrift,  1923-25); J. HOROVITZ,  Qoranische Untersuchungen,  1926; W.HIRSCHBERG,  Jiidische und christliche Lehren im vorund frultisla mischen

 Arabien,  1939; H. J. SCHOEPS, Theologie undGeschichtedes Judenscliristeiitums,1949, p. 334 ss.

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CAPÍTULO II

JESUS, O SERVO SOFREDORDE DEUS

(Ebedlahweh,  Jtccíç QeoíiJ

Com o título de Ebed Iahweh, chegamos ao centro da cristo-logia do Novo Testamento. No entanto, não se lhe concede geralmente o lugar a que teria direito. Assinalemos um primeiro fatoimportante: a explicação cristológica que ele implica remonta, comoo emprego do título de "Filho do Homem", ao próprio Jesus. Por

outro lado, é essencial observar que a ideia principal que há emsua base - a de substituição - constitui o princípio mesmo à luz doqual o Novo Testamento vê desenvolver-se toda a história da salvação. Sem a ideia de uma substituição progressiva (de umaminoria a uma multidão e depois finalmente de um indivíduo auma minoria), é impossível compreender a noção neotestamentáriada história que começou na criação. Ora, esta ideia de substituição

encontra sua encarnação exemplar, em certo sentido, na pessoa doServo Sofredor de Deus. "Servo de Deus" é um dos títulos maisantigos outorgados à pessoa e à obra de Jesus. Por razoes queinvestigaremos, desapareceu muito rápido.

A significação da figura do  Ebed Iahweh  no Antigo Testamentotem sido objeto de numerosos estudos'"3; em compensação, sua aplica-

^Cf. a este respeito H. H. ROWLEY, "The Servant of the Lord in theLiglit ofTlireeDecades of Criticism".  The servant  of  the Lord  and  the Other Essays on the OU!Testament, coleção de estudos, 2a ed„ 1954, pp. 1-58.

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76 Oscar Cullmcmn

ção a Jesus tem chamado muito menos a atenção. O estudo já antigo deA. Harnacktaj  e o mais recente de E. Lohmeyer105  tratam a questão unicamente do ponto de vista da comunidade primitiva, sem averiguar seJesus já se considerara ou não chamado a preencher a função deste ''Servo de Deus" de que fala o segundo Isaías. Só no curso destes últimosanos se reconheceu plenamente a importância desta questão para o NovoTestamento, tendo-se-lhe dado alguma consideração em monografias.À parte um estudo que nós mesmos consagramos a este problema,"*1

temos que citar, sobretudo, a obra de H. W. Wolff,"17  como também oartigo Jtoâç redigido por J. Jeremias no Theol. Wõrteibiich zuni NeuenTestamento

O problema esboçado pela designação de Jesus como Ebed  émais importante quanto mais nova luz possa projetar sobre a muitodebatida questão da relação entre Jesus e o apóstolo Paulo.

Consagramos a este título os parágrafos seguintes: 1) Sua significação  no judaísmo. 2) Jesus e o Ebed lahweh. 3) A fé da comunidade primitiva em Jesus considerado como Ebed lahweh (uaTç0£oí>). 4) A doutrina do Ebed lahweh como solução do problema

cristológico.

1. O "EBED IAHWEH" NO JUDAÍSMO

Como o profeta do fim dos tempos, o Ebed lahweh  é umafigura essencialmente judaica. Perguntaremos, antes de tudo, o que

l(HA. HARNACK, "Die Bezeichnung Jesu ais Knecht Gottes und ihre Geschichte inder alten Kirche" (SB Bediner  Akad.  d. Wiss.,  1926), p. 212 ss.

1I,SE. LOHMEYER, Gottesknecht und  Davidsohn,  1945 (reimpr. 1953).l(lsO. CULLMANN, "Jesus, Serviteur de Dieu" (Dieu vivant, 16, 1950, p.  17 ss..).1117 H. W. WOLFF, Jesajct  53 im Uivhristentum, 2a ed., 1950.mTtx\VbNT, tomo V, p. 636 ss. A obra de T. W. MANSON,  The Servant-Messiah,

 A Síitdy ofthe Public Ministry of Jesus, 1953, estuda as condições prévias da ideiade "Servo de Deus" na vida de Jesus e contém interessantes indicações a propósito

de sua relação com a ideia que Jesus fazia de seu ministério; porém, não se ocupaespecialmente de suas relações com o  Ebed  lahweh do Antigo Testamento. Umartigo de CHR. MAURER, "Kneclit Gottes uncl Sohn Gottes im Passionsbericht desMarkusevangeliums" (ZThK  50, 1953, p.  1  ss.) tenta, mediante um estudo profundo, mostrar a influência de uma "cristologia do Servo" sobre Marcos.

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C.RJSTOLOGIA  C)0 NOVO TESTAMENTO 77

ele significa no Antigo Testamento; em seguida, que papel desempenha no judaísmo tardio; limitando-nos, ademais, a formular tão-somente os problemas. Os textos do Antigo Testamento relativos

a esta figura se encontram em Is 42.1-4; 49.1-7; 50.4-11;  52.13-53.12.  As passagens que nos interessam particularmente, emrazão de sua aplicação posterior a Cristo, são os primeirosversículos do cap. 42, assim como o célebre capítulo 53.

Eis aqui os versículos:

Is 42.1-3: "Eis aqui o meu servo, aquem sustenho; o meu escolhi

do, em quem a minha alma se compraz; pus sobre ele o meu Espírito, eele promulgará o direito para os gentios. Não clamará, nem gritará, nemfará ouvir a sua voz na praça. Não esmagará a cana quebrada, nem apagará o pavio que fumega; em verdade promulgará o direito."

Estes versículos são importantes, por um lado, para compreendermos o batismo de Jesus e, por outro, porque o Evangelho de

Mateus os cita (Mt 12.18 ss.).Is.  52.13-53.12: "Eis que o meu servo procederá com prudência;

será exaltado e elevado e será mui sublime. Como pasmaram muitos àvista dele, pois o seu aspecto estava mui desfigurado, mais do que o dequalquer outro, e a sua aparência, mais do que a de outros filhos doshomens. Assim, causará admiração às nações, e os reis fecharão a suaboca por causa dele; porque aquilo que não lhes foi anunciado verão e

aquilo que não ouviram entenderão.Quem creu em nossa pregação? E a quem foi revelado o braço doSenhor? Porque foi subindo como renovo perante ele, e como raiz deuma terra seca; não tinha aparência nem formosura; olhamos para ele,mas nenhuma beleza havia que agradasse. Era desprezado e o mais rejeitado entre os homens; homem de dores e que sabe o que é padecer; e,como um de quem os homens escondem o rosto, era desprezado, e delenão fizemos caso. Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermida

des e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputávamos por aflito,ferido de Deus e oprimido. Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a pazestava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados. Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviara pelo caminho,

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— Oscar Cullmann

mas o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de todos nós. Ele foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca; como cordeiro foi levado aomatadouro; e, como ovelha muda perante os seus toso,uiadores, ele não

abriu a boca. Por juízo opressor foi arrebatado, e de sua linhagem, quemdela cogitou? Porquanto foi cortado da terra dos viventes; por causa datransgressão do meu povo, ele foi ferido. Designaram-lhe a sepultura comos perversos, mas com o rico esteve na sua morte, posto que nunca fezinjustiça, nem dolo algum se achou em sua boca. Todavia, ao Senhoragradou moê-lo, fazendo-o enfermar; quando der ele a sua aima comooferta pelo pecado, verá a sua posteridade e prolongará os seus dias; e avontade do Senhor prosperará nas suas mãos. Ele verá o fruto do penoso

trabalho de sua alma e ficará satisfeito; o meu Servo, o Justo, com o seuconhecimento, justificará a muitos, porque as iniquidades deles levarásobre si. Por isso, eu lhe darei muitos como a sua parte, e com os poderosos repartirá ele o despojo, porquanto derramou a sua alma na morte; foicontado com os transgressores; contudo, levou sobre si o pecado de muitos e pelos transgressores intercedeu.

As expressões de que se serve o profeta para descrever o Ebed

são ao mesmo tempo precisas e misteriosas. Sabemos assim, deuma maneira bastante exata, em que consiste sua obra; temos atédetalhes sobre a sua morte. E, no entanto, não sabemos  quem éeste "Servo do Senhor". O profeta não nos diz nem quando nemem que circunstâncias ele aparece. Segundo I. Engnell,109 o motivo principal destes cânticos seria a ideologia real, bastante valorizado pela escola de Upsala;E. Lohmeyer110 estabeleceu uma rela

ção entre o título deEbedc  o de "Filho de Davi", enquanto que A.Bentzen1''  tenta compreender esta figura pelas crenças relativas àsorte do profeta e, sobretudo, pelo Moisés ressuscitado - crençasàs quais já nos referimos no capítulo precedente. A pergunta que

' T  ENGNELL,Studiesin Divíne Kútgsfiip in the Ancient Near  East,  Upsala 1943, p.48; id. "The Ebed Jahwe Songs and the Suffering Messiah in Deutero-Isaiah", no

 BulletinoftheJohn Ryland's Library,31,1948 (correção inglesa de um artigo: "Tillfraagan om Ebed-Jahve-saangema", Svensk  Exeget. Aarsbok,  1945).

110 Cf. acima, p. 76, nota 105.111 A. BENTZEN, "Messias, Moses redivivus, Menschensohn" (AThANT,  17), 1948,

p. 42 ss. O autor desenvolve aqui sua tese em oposição a EngneU e à crítica que estefaz de sua concepção.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 79

faz o eunuco em Atos 8.34 a propósito do cap. 53 de Isaías é ainda aque hoje em dia os exegetas do Antigo Testamento fazem. De quemfala o profeta assim? É de si mesmo ou de algum outro? O profeta

podia, sem dúvida, supor que esta figura fosse conhecida aos seusleitores; porém, para nós jamais será possível resolver o enigmaque esboçam estas passagens sem recorrermos a uma hipótese; e aciência bíblica já se tem empenhado nisso muitas vezes.

Encontrar-se-ão indicações sobre o estado atual da questão nosestudos de C R. Nortli,  The Suffering Servant in Deutero-Isaiah,  1948;H. H. Rowley,  "The Suffering Servant and the Dovidic Messiah"{Oudtestamentische StudiSn,  tomo VIII, 1950, p.100 ss.); W. Zimrnerli,Art. it aíç, no ThWbNT,  tomo V, p. 655 ss. Outras referências bibliográficas em O. Eissfeldt,  Einlettung in das A. T.,  3a ed., 1957, p. 399 s.

Podemos reduzir o problema a esta questão: o "Servo do Senhor"é um indivíduo ou uma coletividade? Não é fácil responder a estapergunta. Há, nos cânticos consagrados ao Ebed Iahweh,  passa

gens que parecem identificá-lo com todo Israel (Is 49.3): "E medisse: Tu és o meu servo, és Israel, por quem hei de ser glorificado". Em troca, há outros que não vêem nele mais que uma parte dopovo, sem dúvida, "o remanescente". Outros, enfim, reduzem aindamais esta coletividade para fazer do Ebed Iahweh um indivíduo.

Não temos de tratar aqui em detalhe este complexo assunto.No entanto, é essencial sublinhar de inicio que toda solução que

leve em consideração só uma categoria de passagens, não pode tervalor. Ademais, as três explicações não se excluem de maneiranenhuma. Para o pensamento semítico, a assimilação de uma coletividade e de seus representantes individuais é coisa corrente.112

Na ideia de substituição - ensinamento teológico principal doscânticos do "Servo" - não há nada de estranho em que a maioria

112 Cf. a este respeito C. R. NORTH, op. cit., p. 103 ss. -  W. ROBINSON, "The HebrewConception of CorporatePersonality", (BZAW, 66,1936, p. 49 ss). - A. R. JONHNSON,The One and the Many in the hraelite Conception of God, 1942, p. 1 ss., e muitoparticularmente O. EISSFELDT, Der  Gottes Kttecht  bei Deuterojesaja (Jes.  40-55) im Licht  der  Israel. Anschauung von Gemeiítschaft und Individuam, 1933.

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se reduza progressivamente e que uma minoria, sempre mais reduzida, assuma a missão que na origem deveria pertencer ao conjunto. Em nosso livro Christ et le temps,m  tentamos demonstrar como

a história da salvação se desenvolve do começo ao fim segundo oprincípio da substituição, sob a forma de uma redução progressiva: da criação total passa-se à humanidade, da humanidade ao povode Israel, do povo de Israel ao "remanescente"; do "remanescente" a um só homem, Jesus. Este desenvolvimento da história dasalvação é prefigurado pelo Ebed Iahweh, que é, ao mesmo tempo, povo, "remanescente" e indivíduo. Esta complexidade é um

elemento essencial da ideia de substituição expressa nestes cânticos- ideia que é, de certo modo, personificada pelo Ebed Iahweh. Vê-seassim a importância extraordinária desta figura para uma compreensão bíblica da história da salvação.

Segundo estes textos, o traço essencial desta substituição é ofato de que ela se opera no sofrimento. O Ebed  é  o Servo de Deusque sofre. Substitui-se, por seu sofrimento, um grande número de

homens que deveriam sofrer ao invés dele. Outro traço essencial éque a aliança concluída por Deus com seu povo é restabelecidagraças à obra substitutiva do Ebed. Este é, pois, o mediador destaaliança. Será, pois, necessário pensar nestes dois pontos quandotratarmos de Jesus como o Ebed Iahweh.

No judaísmo tardio,114 o problema principal posto pelo Ebedé o da relação entre sua figura e a do Messias. Aqui devemos cuidar para não darmos uma resposta que simplifique o problema,portanto, falseando-o. Era inevitável que estas duas noções seencontrassem no seio do judaísmo, já que um e outro - o Messiase o Ebed  - receberam por missão o restabelecimento das relaçõesrompidas e distorcidas entre Iahweh e seu povo, fazendo voltar,assim, este povo à vocação que lhe havia sido assinalada por divina eleição. Lohmeyer115 afirma também que a este respeito o Ebed

113P. 81 ss.114Encontrar-se-á a documentação necessária em DRIVER-NEUBAUER,  The 53rd

Chapter oflsaiah According totheJewish Interpreters,  vol. MI, Oxford, 1876.115 Op. Cf/ ., p. 98 ss.

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lahweh e o Messias - sobre terreno judeu  - têm entre si relaçõesmais fortes do que as que existem entre o Ebed lahweh e o "Filhodo Homem", não sendo este último uma figura exclusivamen

te judaica. O Servo do Senhor deve ser o "ungido" do Espírito.Em todo caso, é certo que o Ebed lahweh e o Messias resultam deesperanças relacionadas. Segundo Engnell, este parentesco se explicaria pela relação comum com a ideologia real.

A LXX parece interpretar messianicamente Is 52.13-53.12,segundo o resultado de diversas observações filológicas.116

No livro de Enoque, como nos Apocalipses de Esdras e de Baru-

que, o Messias é identificado indiretamente com o Ebed lahweh, ni

 já que são atribuídas a ele certas características do Ebed. Porém,no judaísmo do tempo de Jesus, esta identificação ficou reduzidaa algo puramente exterior. Pois a missão específica do Ebed-  osofrimento substitutivo - não se transferiu ao Messias. Se a passagem do Test. Benjamin 3.8 fosse verdadeiramente pré-cristã, teríamos talvez aí a ideia de um Messias saído da tribo de José-Efraim

que deve morrer pelos ímpios.118

 Seja como for, estamos aqui forada grande corrente messiânica de então, para a qual a ideia de um"Messias sofredor" era estranha. No judaísmo, pode-se, no máximo, observar alguns ligeiros indícios de semelhante concepção.119

Temos visto que o sofrimento já era um dos traços característicos do profeta. Porém, não se tratava de um sofrimento substi-

116 Cf. K.F. EULER,Z)r<; Verkundigungvomleidenden Gottesknecht aus Jes. 53 in dergriechischeii Bibel,  1934, p. 122 ss. Pode-se perguntar, no entanto, como fazer concordar esta opinião com a constatação feita por J. JEREMIAS em seu artigo rccrtç(cf. acima, p. 76, nota 108), segundo a qual o judaísmo helenístíco, diferentementedo judaísmo palestino, não conheceria mais que a interpretação coletiva dos cânticosdo "Servo".

117 Cf. H. W. WOLFF,  op. cit.,  p. 42 ss. Sobre Enoque, cf., também, JEREMIAS,ThWbNT,  V, p. 686 s.

"8 Pronunciam-se, por exemplo, porsuaorigem pré-cristã: J. JEREMIAS, em ThWbNT,

V. p. 685; G. H. DIX, "The Messiah bem Joseph"  (JThSt,  27, 1926, p. 136):J. HÉRING,  Le Royaume de Dieu et   TO venue,  1937, p. 67, nota 1. Porérn, não éseguro que "a pregação celestial" se relacione a Is 53.

w  Cf. a prudente discussão das passagens em questão por W. D. DAVIES, Paul and Rabinic Judaism,  1948, p. 274 ss.

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tutivo, voluntariamente assumido por ele para expiar os pecadosde seu povo; mas, antes, algo considerado como sorte inevitável.Na medida em que o profeta dos últimos tempos pôde ser identifi

cado com o Messias, se poderia, eventualmente, falar do "Messiassofredor".  E como as diferentes concepções que havia no judaísmo para caracterizar a missão de um enviado especial de Deus seinfluenciaram reciprocamente, é possível que a ideia de um Messias sofredor tenha surgido aqui e ali no seio do judaísmo.

Temos de acrescentar que o culto do rei conduziu tanto à noção de

Messias como à de Servo de Deus. Esta origem comum  é reconhecidasem dúvida e com razão por H. H. Rowley.120 Ademais, este não crê naidentificação destas figuras  no seio do judaísmo  e relega a uma épocaposterior, e pós-cristã, todas as especulações relativas a um Messias benEfraim. Segundo ele, o culto do rei teria conduzido aqui a duas figurasparalelas, porém, não idênticas.

As duas noções  se  influenciaram reciprocamente de uma

maneira ou de outra; esta é a parte de verdade que contém a teseexposta por J. Jeremias121 e recentemente defendida por M. Buber.122

H. Riesenfeld também aderiu aela,12-1 apoiando-se principalmentena explicação judaica de Génesis 22.

Esboça-se outro problema no tocante à relação entre o "Mestrede Justiça", dos textos recentemente descobertos em Qumran, e oEbed lahweh. Já temos visto124 que este "Mestre de Justiça" deve

l-°Cf. op. cit.  {Oudtestamentische Studien, VIK, 1950), p.  133.1-' J. JEREMIAS, "Erlõser  und Erlõsung  im Spatjudentum  und Urchristentum"

(Deutsche Theologie, 2,1929, p. 106ss). Ele tenta, apoiando-se em algumas passagens da literatura judaica tardia, demonstrar que o judaísmo rabínico já conhecia,na época pré-cristã, a interpretação messiânica de Is 53 e, por conseguinte, tambéma ideia do Messias sofredor  - Cf.  também, da mesma forma: óurvòç xov 6eov  -roxíç 9eoú (ZNTW, 34, 1935, p. 115 ss); "Zum ProblemderDeutung von Jes. 53 impalâstinischen Spatjudentum"  (Aux sources de la Tradition cltrétietute,  Mélanges

Goguel,  1950, p. 113 ss). Enfim, no artigo jtaíç fteoO de ThWbNT,  tomo V,  elebuscou, novamente, apoiar sua tese com uma exegese aprofundada destes textos.1-'M. BUBER, "Jesus und der Knecfit" (Festchr,  G. vau der  Leeuw), 1950, p. 71.m  H. RIESENFELD, Jesus Transfigure 1947, p. 81  ss.124Cf. acima, p. 40.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 83

também sofrer, porém, não é coisa segura que tenha sofrido o martírio. Como quer que seja, o sofrimento desempenha um papel mui

to importante nestes textos, sobretudo nos Salmos;

125

 e a tese de W.H. Brownlee,126 segundo a qual a função do Servo de Deus sofredorteria sido confiada à própria seita para ser realizada concretamentena pessoa do Mestre de Justiça, deve ser revada em conssderação.m

Brownlee, ademais, não identifica o Mestre com o Messias.128

No entanto, o sofrimento do  Mestre de Justiça  é, antes, damesma natureza que o do profeta; é mais uma consequência de

sua pregação que uma parte essencial de sua missão. Sem dúvidaé verdade que em Israel todo sofrimento se reveste, em maior oumenor grau, de um caráter substitutivo.129  No entanto, há uma diferença essencial entre o sofrimento expiatório e voluntário áoEbed Iahweh e aquele imposto ao profeta pelo seu destino. João 10.17 s.

125 A. DUPONT-SOMMER, "Le livre des Hymnes découvert prés de la mer Morte"

OQH), Semítica, VII, 1957, insiste em sua introdução (p. 16 ss.) e em suas notasespecialmente sobre este ponto.

IMW. H. BROWNLEE, "The Servant of the Lord in the Qumran Scrolls"  (Bailei, ofthe Americam School ofOrien.. Research,  1953, p. 8, ss: 1954, p. 33 ss.). Cf. ainda,do mesmo autor, "Messianic Motives of Qumran and the New Testament",  NTS,1956, p. 12 ss.

I27M. BURROWS, Les Manuscrits de la mer Morte, Paris, 1957, p. 306 s., mostra-se,é   verdade, critico com respeito a esta tese. - Seguindo DUPONT-SOMMER, M.PHILONENKO sustenta que as pretensas Interpolações cristãs no Testamento dos

 Doze Patriarcas (Diplârne dei' Ecole pratique des Hautes Etudes, Sect. des SciencesReligieuses, 1955) provêm, na realidade, de adeptos da seita de Qumran. Se estatese fosse verificada, naturalmente teria importantes consequências para a questãoque nos ocupa.

1211 Cf. o artigo citado mais acima, nota 126, NTS,  1956, p. 21 ss.12'J É o que afirma em último lugar E. SCHWEIZER, "Erniedrigung und Erhõhung bei

Jesus und seinen Nachfolgern" (AThANT,  28), I955,passiin.  -Para as consequências que ele tira daí, cf. abaixo p. 99 s. Igualmente J. A. SANDERS, "Suffering asDivine Discipline in the Old Testament and Post-Biblical Judaism"  {Colgate Rochester Divinity Schooi(Bulletin, 28,1955), por um estudo penetrante dos textos

põe em evidência o caráter expiatório que reveste, em Israel, todo sofrimento. Vertambém ED. LOHSE, Mãrtyrer und Gottesknecht. Unterstichung zur urchristliclienVerkundiguiig vom SiihnetodJesu Christi, 1955, que sublinha, por outro lado e comrazão (p. 110), que este aspecto expiatório atribuído de uma maneira geral ao sofrimento nãoequivalejamaisaum perdão definitivo. Igualmente, o judaísmo ignora aideia segundo a qual Deus mesmo poderia encarregar-se dos pecados humanos.

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'84 Oscar Cuiimann

opõe a morte de Jesus à dos demais profetas e, sobretudo, ao destino dos chefes dos zelotes, que são, sem dúvida, os "ladrões" e

"roubadores" de que se fala no mesmo capítulo (10.8), que nãopoupam a vida de seus partidários (10.12). Enquanto que ao bompastor que dá a vida por suas ovelhas, ninguém lhe tira a vida; masele a dá voluntariamente  (10.18).130

Mesmo que textos claros do judaísmo da época de Jesus, osde Qumran por exemplo, atestassem a ideia de um redentor escatológico que assumiria conscientemente o papel de Ebed Iahweh,

não se trataria, evidentemente, senão de uma crença periférica,pois a ideia de que o Messias deva sofrer é estranha à crençamessiânica oficial. O Targum de Is 53, estudado não somente porJ.Jeremias mas também porPHumbert,m  G. Kittell,32 P. Seidelin,,13

e por H. Hegermann,11'4  prova, em todo caso, que a ideia de umMessias sofredor era dificilmente aceitável para os rabinos. É verdade que o autor deste Targum identifica o Ebed Iahweh de Is 53

com o Messias; porém, com a ajuda de uma exegese muito curiosae totalmente arbitrária, elimina tudo o que se relaciona ao sofrimento do Ebed, e dá assim ao texto uma interpretação contrária aoseu verdadeiro sentido.

Citemos somente alguns exemplos desta singular interpretação:Lemos em Is 53.2: "Não havia nem beleza nem esplendor para atra

ir nossos olhares e seu aspecto não tinha nada para agradar-nos".

O Targum explica esta passagem da maneira seguinte: "O aspecto doEbed  não é banal, e o temor que inspira não tem nada de ordinário; seuesplendor é um esplendor sagrado. Quem o olha, olha-o com respeito."É claro que o rabino faz o texto dizer aqui exatamente o contrário do que

n"Cf. a respeito O.CULLMANN, "La significationdes textes de Qumran..."  (Positionsluthêriennes. No. 4, 1956, p.5 ss) e Dieu et  César,  1956, p.25.

131

 P HUMBERT, "Lemessie tÍansleTargoumdesProphètes"( /?7VifVí  , 43,191 l,p. 5 ss,).152G. KITTEL, ''Jesu Worte iiber sein Sterben" (Deutsche Theologie,9,  1936, p. 177).13:1 P. SEIDELIN, "Der Ebed Yahve und die Messiasgestalt iin Jesajatargum" (ZNTW,

35, 1936, p. 197 ss.).1ÍJH.  HEGERMANN,  Jesajet  53 in Hexapla,  Targum  und  Peschitta,  1954 (chega,

assim como JEREMIAS, a conclusões diferentes das nossas).

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 85

na realidade diz - e isto com a única intenção de descartar o sofrimentoda pessoa do Ebed, identificado com o Messias.

Em Is 53.3 o profeta diz: "Desprezado e abandonado pelos homens,

homem de dor e habituado ao sofrimento, semelhante àquele de quemse desvia o olhar, o temos desdenhado, e não fizemos caso algum dele."Eis aqui a interpretação rabínica: "Embora ele seja objeto de desprezopara os povos, porá, no entanto, fim a todos os impérios."' Serão debilitados e sumirão no luto, como um homem de dor habituado ao sofrimento,  como se a face de Deus se houvesse afastado deles: E assim quesomos desprezados e expostos ao opróbrio". De uma maneira absolutamente arbitrária o exegeta muda simplesmente o sujeito da frase.

Enquanto o texto diz que o Ebed é  desprezado o rabino o faz dizer quenós é que somos desprezados. Enquanto o texto diz que  nós  afastamosdele o rosto porque o desprezamos o rabino interpreta este versículocomo se Deus afastasse seu rosto de nós.-Ele emprega do começo ao fimesta curiosa exegese Os exemplos citados bastam no entanto para mostrar que seu fim único é aplicar ao Messias o cap 53 de Isaías relativo aoEbed luhweh  porém desooiando o Servo de Deus de seu caráter essencial o sofrimento substitutivo Segundo a opinião dos rabinos isto é com

efeito incompatível com a verdadeira missão do MessiasSeria naturalmente possível que este Targum, sob sua forma atual,

tivesse sido retocado contra a identificação cristã de Jesus com o Ebed Iahweh.n(l  A isto se poderia objetar que não se pode encontrar nestetexto nenhuma marca certa de polémica anticristã; e que esta interpretação de Is 53 não dá a impressão de ter sido escrita para combater uma

1,5

 P. SEIDELIN, op. cit., p. 207, traduz, baseando-se em outra leitura (p. 211): "Éporisso que a gloria de todos os impérios chegará a ser objeto de desprezo e desaparecerá". JEREMIAS admite aqui (ThWbNT,  V,p. 692 s.) indício de uma interpretaçãomais antiga, que mais tarde, na segunda leitura adotada por SEIDELIN, teria sidoaplicada aos impérios. Porém, mesmo que se aceite a leitura mais frequentementeadmitida, segundo a qual o "desprezo" se aplica ao Messias, não é de nenhum modoforçoso pensar que havia ali um indício da concepção de um Messias sofredor.Igualmente a segunda passagem (Tg. de Isaías 53.12): "entregou sua alma à morte"não deve ser necessariamente interpretada no sentido da morte do Messias, como opróprio JEREMIAS o reconhece.

IMÉ o que sublinha fortemente J. JEREMIAS em seu artigo publicado nos MélangesGoguel (cf. acima, p. 82, nota 121). Cf. igualmente ThWbNT,  V. p. 693, Do mesmomodo, antes dele, G. DALMAN, Jesus-Jeshtta, 1922, p. 156 (opinião diferente  id..

 Der  leidenderi und der sterbende Messias der Synagoge iin ersten  tiachchristHcheit Jahrtausend, 1888, p. 43 ss.). Cf. igualmente H. HEGERMANN, op. cit., p. 121.

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opinião contrária. Parece, antes, que o fim visado pelo rabino tenha sidoa utilização messiânica positiva deste texto. Segundo J. Jeremias, se teriareorganizado o texto original paradar-lhe um sentido anticristão; porém,

não existe prova alguma disso. Enfim, outro fato do qual teremos aindaque falar deve ser considerado: no seio do cristianismo primitivo, aexplicação da pessoa e da obra de Cristo por Is 53 foi de curta duração,de sorte que a existência de uma polémica a este respeito é pouco provável.

Em conclusão, o judaísmo palestino oficial na época de Jesusnão havia incorporado à sua noção de Messias a ideia de um necessário sofrimento expiatório; talvez existissem, à sombra do judaísmo oficial, meios ou indivíduos para quem esta ideia não estivesseexcluída, porém, não se pode demonstrar este fato como conhecimento certo. Os textos recentemente descobertos em Qumran, sobretudo os Salmos, que insistem sobre a ideia de sofrimento, não atestam até agora, exceto indiretamente, a ideia de um Messias quedeveria sofrer; pois, segundo os documentos publicados até aqui,quem sofre é antes o profeta e não o Ebed, que aceita voluntariamente o sofrimento expiatório substitutivo. A possibilidade de estabelecer um elo entre o profeta sofredor e o Servo de Deus sofredor não é, no entanto, contestável.

2. JESUS E O "EBED IAHWEH"

Como a principal função do "Servo de Deus" reside em seusofrimento e sua morte substitutiva nos perguntaremos, antes detudo,  de forma geral, que lugar tem o sofrimento e a morte namensagem de Jesus. Buscaremos em seguida descobrir se Jesusconsiderou que sua missão consistia precisamente em realizar aobra do Ebed Iahweh tal qual ela é descrita pelo profeta. Reuniremos primeiramente as palavras de Jesus que tratam de sua morte,sem referência direta a Is 53, e, a seguir, reuniremos aquelas quefazem alusão ao Ebed Iahweh.

Jesus considerou seu sofrimento e sua morte como parte integrante da missão que devia desempenhar na execução do planodivino da salvação? A maior parte dos representantes do "libera-

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 87

lismo1' teológico costuma responder,  a priori,  de uma maneiranegativa a esta questão: o próprio Jesus não teria atribuído a sua

morte nenhum valor expiatório. Na realidade, esta ideia teria sidointroduzida pelo apóstolo Paulo.

R. Bultmann crê poder, em seu Theologie des Neuen Testaments,w

resolver esta questão em uma frase: "Pode-se duvidar que estas (as previsões de sofrimentos) não sejam todas vaticinia  e,x eventu?"  No entanto,ele não poderia certamente negar o fato incontestável que a cristologiado  Ebed,  baseada na ideia de sofrimento expiatório, não era muitodivulgada na igreja nascente.

É verdade que Jesus não pôs sua própria pessoa, e em particular seus sofrimentos e sua morte, no centro de sua pregação do Reino de Deus, como o apóstolo Paulo logo haveria de fazê-lo. Porém,Jesus se sentia mais chamado, durante sua carreira terrena, a viversua obra expiatória que a ensiná-la. É por isso que não se limitou apregar o perdão dos pecados por Deus: senão que ao curar os enfermos,  também outorgou efetivamente este perdão: "teus pecadosestão perdoados". Isto tem uma importância capital para o problema da relação entre Jesus e Paulo. Já segundo os sinópticos, o perdão dos pecados está ligado à pessoa de Jesus, pois que é ele mesmoquem perdoa: é esta uma afirmação cuja historicidade não poderiaser posta em dúvida. Porém, então, há que se perguntar: como Jesuspodia atribuir-se tais plenos poderes (é^oixsía)? Se tomarmos estapergunta a sério, deveremos postular nele a consciência de ter sidoenviado ao mundo para realizar precisamente esta missão.

Paralelamente a esta reflexão prévia, numerosas palavras deJesus apresentam, sem equívoco possível, seu sofrimento e suamorte como parte integrante da obra que deve realizar para cumprir o plano divino de salvação.

Há, evidentemente, um método fácil - demasiado fácil - para noslivrarmos das implicações destes textos: afirma-seapriorisuainautentí-

Ia  edição, 1953, p.30

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• 88 Oscar Cullmann

cidade e se \hes considera, a todos, cOTVIo criações da comunidade primitiva que, desta maneira, quis fazer concordar o ensinamento de Jesuscom o do apóstolo Paulo. A questão de sabermos se este método, dema

siado arbitrário, é legítimo, deveria ser esboçada por razões objetivas ecientíficas antes que apologéticas.

Comecemos por indicar rapidamente as principais declarações de Jesus que entram aqui em consideração.

Nos evangelhos sinópticos, trata-se primeiramente do logionrelativo ao jejum, em Mc 2.18 ss. O versículo 20  ("dias  virão,contudo, em que lhes será tirado o noivo")138 supõe, da parte de

Jesus, a convicção de que ele deve morrer. Porém, se sua presençaé tão importante que ela pode dispensar os discípulos da obrigação do jejum, é claro que sob a imagem do esposo Jesus se designa aqui como o enviado de Deus. Sua afirmação de que será tiradopela morte supõe que para ele esta morte faz parte de sua missãomessiânica. Objetar-se-á que se trata aqui de um  vaticinium exeventu destinado a explicar por que a comunidade jejuava enquan

to que os discípulos de Jesus não o faziam.139  Porém, se responderá que uma comunidade com o sentimento de viver não no "tempode luto", mas antes, no "tempo da salvação" teria dificilmenteinventado o versículo 20.140

Em Lc 13.31 ss.,Jesus coloca-seasi mesmo na categoria humana dos profetas: "Não convém que o profeta pereça fora de Jeru-

E. LOHMEYER, Das Evangeliumdes Markus,  1937, p. 60, contempla a possibilidade de uma alusão a Is 53.8: aipetoa àitó xfiç y-ty; TI Çcon, ocú-roú.Cf. E. KLOSTERMANN, "Das Markus Evangelium"  (HdbNT),  3a ed., 1936, adloc.\  E. LOHMEYER, Das Evangelium des Markus,  1937, adloc;  cf. igualmenteR. BULTMANN, Die Geschichtedersynoptischen Tradition, 2a ed., 1931, p. 17 s.' É o que sublinha igualmente H. J. EBELING, "Die Fastenfrag Mc 2.18-22"  (ThStKr,1937-38, p. 387 ss.). Para ele, é verdade, o "tempo de luto e de jejum" não serelaciona ao tempo da comunidade (que não teria jejuado) senão 30 das "doresmessiânicas" futuras, e nega a Jesus a paternidade de todo este discurso. Ao contrário,  para W. G. KUMMEL,  Verheissung und ErfuUung, 2a ed., 1953, p. 69 s,, aoposição de Mc 2.19 e 20 não pode relacionar-se senão ao tempo que precede esegue à morte e ressurreição; de sorte que ainda se o fim desta passagem pôdedesenvolver-se pelas ideias e crenças da comunidade, conta com "uma separaçãomais ou menos longa de Jesus e seus discípulos depois de Sua morte".

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CRISTOLOGIA  DO NOVO TESTAMENTO 89

salém." Porém, é possível que o verbo  TÊXEIO^OI,  empregadono versículo 32, indique uma missão divina particular que Jesusse atribui e que se realizaem sua morte. Com efeito, em Lc 12.50a mesma palavra se aplica a sua morte, qualificada de "batismo"(como em Mc 10.38: "podeis ser batizados com o batismo comque devo ser balizado?"). Aqui a morte não aparece somente comoo epílogo mas como parte integrante da obra de Jesus.

No logion sobre o sinal de Jonas (Mt 12.39 s.),141 Jesus anuncia não só sua morte, como também (no caso do vers. 40 ser autêntico) sua ressurreição, quando diz: "Assim como Jonas esteve trêsdias e três noites no ventre de um monstro marinho, assim também o Filho do Homem estará três dias e três noites no seio daterra." Há aqui, é verdade, razões bastante sérias para não considerar como autêntica senão a primeira parte do logion: "Não serádado a esta geração pecadora e adúltera outro sinal que o de Jonas"(vers. 39). Segundo esta explicação, o "sinal de Jonas" remeteria àpregação do arrependimento feita pelo profeta.142

Não é, contudo, fácil explicar a inserção posterior do vers. 40, poisse os cristãos quisessem introduzir subsequentemente no texto uma alusão à morte e à ressurreição de Jesus, a que está em questão não é adequada. Os "três dias e três noites" de que se fala não concordam com osrelatos da ressurreição, segundo os quais o corpo não ficou mais do queduas noites no túmulo. Esta consideração poderia ser invocada em favor

da autenticidade de todo o  logion.  Neste caso, não teria que se atribuiraos "três dias e três noites" uma precisão cronológica; esta expressão

1 Cf. a este respeito o estudo profundo de P. SEIDELIN, "Das Jonaszeiclien" (StudiaTheologica,  5,  1951, p. 119 ss.).

'  Assim, E. KLOSTERMANN, Das MaithãussEvangeliium, 2" ae,, ,927, ad loc; ;f.igualmente W. G. KfJMMEL,  Verheissung und Erfiillung, 2a  ed., 1953, p. 61 s.Outra solução em J. JEREMIAS, Art.  'IÍOVCÍÇ (ThWbNT,  III, p. 412 s.). Pela auten

ticidade do fragmento transmitido por Mateus (v. 40) se pronunciam entre outros:A. SCHLAÍTTEY\,Der Evangelist Matthíius, 2a éd.,  1933,adloc.; J. SCHNIEW1ND,"Das Evangelium nach Matthaus" (NTD, 1937),  ad loc;  M. J. LAGRANGE,Evangile selon saint Matthieu,  1941, ad loc;  W. MICHAELIS, Das Evangeliumnach Matthaus,  II, 1949,  ad loc. -  Cf. também A. T. NIKOLAINEN,  Der

 Auferstehungsglaitbe in der Bibel und ihrer Umwelt, II, 1946, p. 49.

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90 Oscar Cullmann

designaria simplesmente um tempo breve. No entanto, a questão ficaaberta.4

Temos que mencionar ainda três passagens nas quais Jesusprediz sua própria morte. Segundo os sinópticos - que talveztenham dado a elas um certo esquematismo - elas seguem a confissão de fépetrinaem Cesaréia de Filipe: Mc 8.31; 9.31 e  10.33.No primeiro destes textos, Jesus corrige em dois pontos o que sechama correntemente a "confissão de Pedro":  I o - troca em sua resposta o título que Pedro lhe deu pelo título de "oíòç toíj ãvcptórcou

(veremos mais adiante que isto corresponde a uma tendência quese pode observar em Jesus); 2o - acrescenta que o Filho do Homem que, segundo Daniel, virá sobre as nuvens do céu, deverá,primeiro, sofrer muito. Se se admite que foi a igreja quem colocouestas previsões na boca de Jesus, deve-se também considerar comoinautêntico o fim do relato, cuja invenção é muito pouco provável,haja vista a severa palavra que dirige a Pedro: "Para trás de mim,

Satanás!"144

Os outros textos que têm a ver com isto são Mc 12.7 - a parábola dos lavradores maus: "Eis aqui o herdeiro; venham, matemo-lo!" -  e Mc 14.8 - a palavra de Jesus na ocasião da unção em Betâ-nia: "Ela de antemão ungiu meu corpo para a sepultura". Estessão, é verdade, dois logia cuja autenticidade alguns contestam.145

Uma só vez encontramos em uma palavra de Jesus uma citação direta de Is 53. Está em Lc 22.37: "Pois vos digo: é essencialque esta palavra que está escrita se cumpra em mim: 'Ele foi con-

u 5 Compreender-se-ia, ademais, que em razão deste desacordo com os relatos dos evangelhos se tivesse mais tarde eliminado este verso 40. LAGRANGE supõe que estareflexão levou JUSTINO a suprimir este versículo da citação que faz desta passagem. (Dial. c. Tryph. Iud., 107, I).

,J4

 Com razão E. SCHWEIZER, Erniedrigung und Erhóhiutg, 1955, p. 16, sublinha aunidade do relato. Por esta razão não vê possibilidade de considerar a profecia dapaixão como uma adição e recusa, também, a hipótese segundo a qual toda a cenaseria desprovida de valor histórico.

u5  Sobre Mc 12.1 ss. verW. G. KUMMEL, "Das Gleichnis vondenbõsenWeingartnern"{Mélanges M. Goguel, 1950, p. 120 ss.) e abaixo, p. 376 s.

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9.2 Oscar Culhncuw

que, segundo o Antigo Testamento, o Ebed Iahweh deve realizar.A preposição "por", "em lugar de", que é essencial para a ideia desubstituição, desempenha um papel muito importante em Is 53.

Por outro lado, Is 42.6 e 49.8 atribuem ao Ebed Iahweh a missãode restabelecer a aliança entre Deus e seu povo148 e, na realidade,segundo o contexto, o Ebed é  a própria berit  em pessoa.149

No momento em que Jesus tomava sua última ceia com seusdiscípulos, anunciava, pois, o que realizaria no dia seguinte nacruz.150 Esta palavra projeta assim uma luz sobre os demais logiaque temos citado. Veremos que o título de Ebed Iahweh, aplicado

a Jesus, não estava mais em uso na igreja primitiva quando osevangelhos sinópticos foram redigidos. Estes deram lugar e preferência a outros títulos, em particular o de "Cristo". Isto é tantomais notável que os três, assim como o apóstolo Paulo, no relatoda última ceia, mencionam que Jesus atribui a si mesmo, nessemomento decisivo, o papel do Ebed Iahweh.t;i]

Por conseguinte, não há razão válida para negar a autenti

cidade de outro  logioti (Mc 10.45), que contém igualmente umaalusão muito clara a Is 53, e atribuí-lo, com R. Bultmann, a uma"soteriologia do cristianismo helenístico".152 "O Filho do Homemveio não para ser servido mas para servir e dar sua vida em resgate(Vóxpov) por muitos homens". Trata-se aqui do tema principal dos

" 8  É nesta 5ia6f|Kr| que se tem que pensar nas palavras da instituição da santa ceia, enão no sangue da circuncisão que, entre os rabinos, pode também ser chamado de"sangue da aliança" (Cf. STR.-BILLERB., I,p. 991). Pensou-se mais tarde tambémem Jr 3 1. Porém, a menção de sangue prova que, em sua origem, essa passagem nãopodia ter nenhuma relação com Jeremias 31.

""Cf. G. DALMAN, Jesus-Jeshua,  1922, p. 154; assim como H. W. WOLFF, op.  cit.,p. 65.

15l> É lamentável que W. G. KUMMELque, diferentemente de muitos de seus colegasalemães, não tem o hábito de executar sumariamente, sem justificação, uma opiniãooposta à sua, possa contentar-se em declarar simplesmente, em  Verheissuiig und

Erfiillung, 2aed., 1953, p. 66 s.: "As palavras de instituição da ceia tampouco estabelecem a relação entre a morte de Jesus e a morte expiatória do Servo de Deus".

151 Se as palavras da instituição da Ceia se relacionam com a ideia do Ebed Ihaweh jánão é então necessário considerar toda esta cena como uma "lenda cultural etiológica".

152Cf. Gesch. d. synopt. Tradition, 2"  éd., 1931, p. 154.

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CRISTOLOGIA  DO NOVO TESTAMENTO 93

cânticos do Servo, e a alusão a Is 53.5 é clara.153 É como se Jesusdissesse: "O Filho do Homem veio para realizar a missão do Ebedlahweh."  Jesus conscientemente reuniu em sua pessoa as duas grandes figuras judaicas: a do Bamasha e a do Ebed.

Resta-nos ainda falar de uma passagem particularmenteimportante para o problema que nos ocupa. Seu exame nos permitirá, ao mesmo tempo, dar um passo a mais e responder à perguntaa respeito de quando Jesus adquiriu a certeza de que ele deviarealizar a missão do Ebed lahweh. Esta passagem chave é aquelaque relata a voz celestial ouvida por Jesus durante seu batismo noJordão (Mc 1.11  e par.). É necessário subllnhar, com efeito, que aspalavras: "Tu és meu filho bem-amado, em ti me comprazo",devem ser compreendidas como uma citação de Is 42.1. Ora, noAntigo Testamento elas são dirigidas ao Ebed lahweh; além disso,formam a introdução a todos os cânticos do Servo.

Pode-se considerar como demonstrado que esta voz do céu é realmente uma citação de Is.1 4 O fato de que aqui Ebedtenhã  sido traduzidopor Dtóç e não por  TCCITÇ  (como na LXX e Mt 12.18) não constitui umaobjeção séria. Convém, com efeito, recordar que rotíç significa ao mesmo tempo "servo" e "filho", o que pode ter consequências também paraa tradução grega do  Ebed.]i* Além disso, o epíteto bachir  que a ele seacopla em Is 42.1 e que Mt 12.18 traduz por àvotitritóç, evoca a imagemdo filho e pode ter favorecido a tradução por "uióç. A LXX traduz bachir(Is 42.1) por  èK^EKTÓç. Segundo uma leitura bem atestada e provavel-

153 W. G. KÚMMEL, op. cit., p. 67, reconhece, também, que há ali "sem dúvida alguma ideias tiradas de Is 53". Porém, então pode-se perguntar por que nas outraspalavras de lesus ele recusa a priori toda alusão a Is 53. Segundo ED. LOHSE,

 Mãrtyrer  und  Gottesknecht.  Untersuchung  zur  urchrisúichen Verkilndigung  vomSaímetodJesu Christi,  1955, p.  117 ss., trata-se, em nosso logion, de um elementoda tradição palestina mais antiga.

,Í4

Cf. a este respeito: O. CULLMANN, Le baptême des enfants et la doctrine bibliqtiedu baptême, 1948, p. 16 s.,  tf   1; J. JEREMIAS, em  ThWbNT,  V, p. 699: CHR.MAURER em ZThK, 50, 1953, p. 30 ss.

lí5 Seguindo J. JEREMIAS, ThWbNT, V, p. 677, CHR. MAURER, op. cit., p. 25 ss.,chama particularmente a atenção sobre Sab. de Salomão 2.13-20, e crê dever tirardaí consequências importantes para a questão do sumo sacerdote (Mc 14.55 ss.).

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94 Oscar Cullmann

mente original,156  o Evangelho de João, citando  a voz celestial, traduzbachir, como a LXX, por èKXeKTÓç. O que prova que reconheceu na vozcelestial  a citação de Is 42.1;157  e é igualmente possível que o texto de

Salmos 2.7 "Tu és meu Filho, eu hoje  te gerei" se  tenha imposto comoparalelo do texto de Isaías  e  tenha facilitado  a tradução  por viòç  Estahipótese é  apoiada pela variante ocidental de Lc 3.22, segundo a qual, avoz celestial teria simplesmente citado Salmos 2.7.

A voz celestial, assim compreendida, aparece como um chamado dirigido  a Jesus para que aceite  a missão daquele que, nocomeço dos cânticos do Ebed(\$  42.1), recebe um chamado similar. Por conseguinte, foi no momento do batismo que Jesus deveter adquirido  a convicção  de ser aquele  que  deveria assumir opapel do Ebed. Ao mesmo tempo, a voz celestial  dá a resposta àpergunta que os primeiros cristãos se fizeram posteriormente, a dasignificação de um batismo para remissão de pecados do próprioJesus.158  Os outros judeus vão em busca de João Batista a fim deserem batizados por seus próprios pecados. Jesus, por sua vez, nomomento de ser batizado como todo o povo, ouve uma voz celestialque lhe anuncia implicitamente: "Tu não serás batizado por teuspecados, mas pelos de todo o povo, porque tu és aquele cujo sofrimento expiatório pelos pecados de outros foi predito pelo profeta." Sem dúvida, é nesta perspectiva também que temos de compreender a palavra referente ao "cumprimento de toda justiça" (Mt3.15).159  Isto significa, pois, que Jesus foi batizado em vista de suamorte, e que, ao morrer, levaria o seu povo inteiro num batismo.Ele carrega,  de  certo modo, sobre  si  todos  os pecados que os

líflCf. A. HARNACK, Studien  zur  Geschichte des Neuen Testanients und  der  AltenKirche,  1931, p. 127 ss.; A.  LOISY, Le quatriéme EvemgHe, 2a éd., 1931, ad loc;enfim, C. K. BARRETT, The Gospel According  to St.  John, 1955, p. 148 s. Cf.também O. CULLMANN, Les sacremems dons Vevangile johwmique, 1951,p. 33.

157E. LOHMEYER, Gottesknecht imd  Davidsohn,  1945, p. 9, sublinha igualmente oparentesco dos termos "filho" e "servo".

158Cf., para o que segue, O. CULLMANN,  Le baptême  des enfants  et  la  doctrinebibliqtte du baptême,  1948, p. 13 ss.

l,IJCf. nesta mesma ordem de ideias: H. LJUNGMANN, Das Gesetz erfuUen, Mt 5.17 ff. imd  3.15 wttersucht  (Lunds Univ. Arsskr. N. F , 50, 1954, p. 97 ss.).

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L-R1STOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 95

 judeus levam ao Jordão. Ou seja, no instante de seu batismo elerecebe, ao mesmo tempo, o "programa" do papel que deve desempenhar na história da salvação.

Esta explicação é confirmada pelo fato de que nas duas únicas declarações de Jesus que contêm o verbo pccimcOfivai (Mc10.38 b e Lc 12.50), a expressão "ser batizado" é sinónima de"morrer".160  É por esta razão que Jesus, a partir do momento emque começou a agir independentemente do Batista, não batizoumais com água. Depois de ouvir esta voz, não havia para ele maisque um só batismo: sua morte.

A maneira em que o Evangelho de João relata o batismo deJesus: sob a forma de um testemunho do próprio Batista (João1.29 ss.), dá forte apoio a esta tese. Temos aqui o comentário maisantigo deste acontecimento. Está fora de dúvida que, para o autordo quarto evangelho, a voz celestial era efetivamente um apelodirigido a Jesus para que assumisse a missão do  Ebed Iahweh.Do contrário não se compreenderia por que o testemunho do Batis

ta sobre o batismo de Jesus é enquadrado por estas palavras: "Eisaqui o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo" (vv. 29 e36). Estas palavras estabelecem uma clara relação entre o batismode Jesus e o sofrimento substitutivo. Esta relação é comentadapela voz celestial, que repete para Jesus a palavra de Is 42.1 dirigidaao Ebed Iahweh. No evangelho joanino onde, segundo a leituraque pode ser considerada como a original, o texto se mantém mais

perto do Antigo Testamento,

161

  o fato aparece mais claramenteainda que nos sinópticos.Encontra-se de novo esta ideia em Inácio, quando ele diz em Ef

18.2: "Ele (Jesus) foi batizado a fim de que purificasse a água porseu sofrimento". Inácio cita nesta carta antigos elementos da confis-

'""W, G.  KUMMEL{7Vi/f  ,  18, 1950, p. 37 ss) tenta debilitar este argumento alegando

que se pode encontrar no A.T. uma forma análoga de expressar-se. Porém, as passagens frequentemente citadas em apoio desta tese (SI 42.7 s.; 69.2 s.; 69.14; Is 43.2)dificilmente podem ser seriamente consideradas como paralelas aos textos emquestão.

'"'Cf. acima, p. 92 s.

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•96  Oscar Cullmarm

são cristológica. Porém, ainda que ele tivesse sido o primeiro afazer assim esta afirmação, sua frase provaria que a igreja de entãoconhecia o vínculo entre o batismo de Jesus e seu sofrimento expia

tório.

Insistimos sobre a importai!cia deste duplo testemunho, o joanino eo inaciano, em favor de nossa tese (exposta em O batismo de crianças ea doutrina bíblica do batismo,  1948, p.16 s., e em  Os sacramentos noEvangelho joanino,  1951, p. 33 ss.). pois certos exegetas têm reagidocontra ela rápida e quase automaticamente, como costuma suceder aosuspeitar-se de qualquer tese que permita unir e harmonizar os elementos

diversos do Novo Testamento: rejeitam-na afirmando que ela repousasobre uma construção inspirada por um "desejo de síntese" (cf. p.ex. W.G. Kiimmel, ThR,  1950, p. 39 s.; L. Cerfaux, RHE,  1949, p. 586). Certamente, devemos evitar as tentações de harmonização que façam violência aos textos e devemos deixar subsistir as dificuldades que neles seencontrem de maneira efetiva. Porém, como especialistas do Novo Testamento, não corremos o risco de sucumbir a um tipo de deformaçãoprofissional que consiste em experimentar uma alegria quase insana ao

constatar contradições e a nos irritarmos contra toda tese que estabeleçaum elo ou uma relação - ainda que fosse entre Jesus e Paulo? No queconcerne a nosso problema, J. A. T. Robinson""2, aliás, tentou demonstrar que a relação entre o batismo de Jesus e sua morte é  um motivo quese aclia em todo o Novo Testamento.

É, pois, mnito provável que no momento de seu batismo, ao

ouvir a voz celestial, Jesus tenha começado a tomar consciênciade ser  Ele o Ebed. Eque, desde então, seu caminho já estava traçado. É legítimo situar esta tomada de consciência em um momentodeterminado de sua vida? Veremos no capítulo seguinte16-1 que oautor da Epistola aos Hebreus não hesita em falar de um "desenvolvimento interior" na vida de Jesus.

Chegamos à conclusão de que a designação de Jesus como

Ebed lahweh,  assim como a de "Filho do Homem", remonta ao

62 J. A. T. ROB1NSON, 'The One eaptism as a Category of New Testamene Soieriologyg{Scotttsh JJurnal ofTheology, y, 6,53, p. 252 ss).

" Cf. abaixo, p. 132 s.

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CRISTOLOGIA  DO NOVO TESTAMENTO  97

próprio Jesus. Não é, portanto, a comunidade primitiva a primeiraa estabelecer uma relação entre estas duas noções cristológí-cas fundamentais: resta-nos ver o lugar que nela tem a designação

de Jesus como Ebed Iahweh.

3. JESUS, O "EBED IAHWEH" NO CRISTIANISMO PRIMITIVO

Já temos mencionado que a cristologia doEbednão é, propriamente falando, a dos evangelistas. Encontramos poucas passagens

em que os autores dos sinópticos estabelecem uma relação diretaentre Jesus e a figura do Servo de Deus.Em Mt 8.16 s., a propósito das, curas operadas por Jesus,

trata-se, contudo, de uma reflexão feita pelo próprio evangelista:"Expulsou os espíritos com uma palavra, curou a todos os enfermos, a fim de que se cumprisse o que havia sido anunciado porIsaías o profeta: ele tomou sobre si nossas enfermidades e levou

nossas doenças". O evangelista cita textualmente uma passagemde Is 53 (v.4), com a fórmula habitual de introdução õTWOÇ ^Xr|pcú6fj.Porém, o que interessa aqui não é precisamente o pensamentocentral deste capítulo de Isaías, o sofrimento substitutivo. Não éa morte de Jesus, mas suas curas, que ele considera como o cumprimento da profecia. Enquanto o profeta pensa que o Ebed, porseus sofrimentos e sua morte, toma sobre si as enfermidades de

outros, Mateus visivelmente interpreta o texto em outro sentido:ele "tomou sobre si (levou embora)" as enfermidades. A luz dateologia cristã primitiva, esta explicação não é, por certo, falsa,posto que as curas operadas por Jesus representam, de certo modo,uma antecipação de sua obra definitiva que realizará por sua morte. Contudo, não é menos singular que o evangelista não tenhacitado Is 53 a propósito da obra salvadora central de Jesus.

No relato da Paixão, Mateus, que se refere tão espontânea efrequentemente ao Antigo Testamento, não faz nenhuma alusãoao Servo Sofredor. No cap.  12.18-21,  cita uma passagem docântico do Ebed Iahweh (Is 42.1 ss.); porém, ali também não se

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.98 Oscar Cullmann

interessa senão por um elemento secundário - o fato de que Jesusproibira aos enfermos que curou darem-no a conhecer.

No Evangelho de Marcos, não encontramos nenhuma alusãodo próprio autor ao Ebed Iahweh nem aos cânticos do Servo.

E verdade que Chr. Maurer, em seu artigo já citado,1M  demonstrouque a ideia de Servo de Deus contribuiu de uma maneira decisiva para aformação e elaboração do relato da Paixão no Evangelho de Marcos.Porém, como nisto ele mesmo concorda,[to esta influência se exerce muitomenos sobre o próprio evangelista do que sobre a tradição em que Marcos se inspirou.

O autor do quarto evangelho concedeu maior importância aesta noção? A primeira vista se poderia crer que a identificação deJesus com o Servo de Deus lhe é totalmente desconhecida. Convém, no entanto, reagir contra o preconceito segundo o qual a ideiada morte expiatória teria sido inteiramente relegada, no Evangelho de João, a segundo plano em favor do conceito de glorificação.166  Basta recordar, por exemplo, o relato de João 2.19 ss. e aexplicação que o próprio autor dá acerca do templo: "... ele falavado templo que era seu corpo"; e, sobretudo, a declaração de João3.14 relativa à elevação de Cristo (sobre a cruz): "Como Moiséslevantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do Homemseja levantado"; e, ainda, no vers. 16: "Porque Deus amou ao mundode tal maneira que deu seu filho único." "EÔcoKev é aqui tomado

ao mesmo tempo no sentido dertapé§roKev. Pode-se ainda mencionar o relato das bodas de Cana (cap. 2), em que a alusão à "hora"que ainda não é chegada, se refere, sem dúvida alguma, à morte deJesus.167

164 Cf. acima, p. 76, nota 108: "Knecht Gottes im Passionsbericht des Markusevangeliums"(ZT/iK, 50,1953, p. 1  ss)) V. TAYLOR chega à meema conclusão em "The Origjn olthe Marcan Passion Sayings" (NTS, I, 1955, p. 159 ss.).

165 Op. cit., p. 2.'*6Cf. por ex. R. BULTMANN,  Theologie des Neuen Ttzstaments, 1953, p. 400 s:, id.

 Das Evangeliwn des Johannes, 1941, p. 293 e  passim.'*7 Cf. O. CULLMANN, Les sacrements dans l'Evaitgile johannique,  p. 36 s.

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CkisTOLOCii A DO Novo  TESTAMENTO 99

Porém, há ainda outros testemunhos mais diretos que provamque o autor do quarto evangelho não relegou a segundo plano a

ideia de morte expiatória. Citaremos João  10.11: "Eu sou o bompastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas." Este versículoe os que seguem são perfeitamente claros, sobretudo o vers. 17 s.:"O Pai me ama porque eu dou a minha vida para retomá-la. Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou".A nosso ver, estas palavras sublinham precisamente a diferençaque existe entre o sofrimento do profeta e o doEbedlahweh. É  até

permissível questionar se não temos que relacionar este versículocom o vers. 8 do mesmo capítulo - "todos quantos vieram antes demim são ladrões e salteadores" - para evocar então figuras taiscomo as de Judas o Galileu, ou ainda a do "Mestre de Justiça", daseita de Qumran (mesmo que ele não tenha sofrido o martírio soba forma de execução).168

No quarto evangelho não se trata de uma necessidade geral

da morte de Cristo.169

 No capítulo primeiro (vs. 29 e 36), o testemunho do Batista contém alusões diretas e precisas a Isaías 53:"Eis aqui o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo".Já temos visto que toda esta passagem confirma nossa interpretação do relato sinóptico do batismo de Jesus.170 Os estudos de C. F.Burneym  e de J. Jeremias172 têm mostrado que a expressão grega

É impossível admitir com A. SCHLATTER,  Der Evangelist Johaiines,  1930,p. 236, que se trate de "herodianos, rabinos e chefes de partidos" do tempo de Jesus.Esta hipótese é recusada, com razão, por R. BULTMANN,  Das Evaiigelium des Johmmes,  1941, p. 286. Cf. também O. CULLMANN, Dieit et César, 1956, p. 25.E. SCHWEIZER, "Erniedrigung und Erhõhung bei Jesus und seinen Nachfolgern"(AthANT,  23, 1955, p. 57 s.) não contesta a importância atribuída por João à mortede Jesus, realização suprema da sua carreira entregue à obediência. Porém, comocrê que no pensamento da comunidade primitiva o título de "Servo de Deus" não selimita à morte expiatória mas designa, de uma maneira geral, a Jesus como o Justo

Sofredor (p. 84 s), afirma faltar quase totalmente no quarto evangelho a idtíia damorte expiatória de Jesus.Cf. acima, p. 94 ss.C. F. BURNEY,  The Aramaic Origin of the Fourth Gospel,  1922, p. 107 s. foiprecedido por C. J. BALL  (Expository Times, 1909-10, p. 92).J. Jeremias, 'Au,vòç wo  ÔEOÚ  -itaíç toí> Btov  iZNTW,  ,4, 1935, p, 115 ss.s

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>Q0 Oscar Culhnann

àfivòç xou ôeov corresponde muito provavelmente às palavrasaramaicas í í n ? ^ ÍÍ;?P, que significam ao mesmo tempo "cordeiro de Deus" e "Servo de Deus". Como, por outro lado, aexpressão "cordeiro de Deus" não se emprega correntemente noAntigo Testamento para designar o cordeiro pascal, é provável queo autor tenha pensado, antes de tudo, no Ebed Iahweh. A traduçãopor àpvòç se explica, ademais, tanto mais facilmente pelo fato deque a ideia de Ebed Iahweh é  aparentada à de cordeiro pascal, eque, por outro lado, o segundo Isaías (53.7) compara o Ebed  a umcordeiro. O emprego do verbo cdpeiv, que parece aplicávelsomente ao cordeiro pascal, poderia ser explicado pelo fato, mencionado por Strack-Billerbeck,17-1  que o verbo aramaico 7D3 podetraduzir-se em grego indiferentemente por aípeiv ou por (pépeiv.O título de cqxvòç xox> Oeoft de João 1.29 e 36 poderia, portanto, sesconsiderado como uma variante de TtaTç Beou, OU seja, como umequivalente grego do título hebraico de Ebed Iahweh™

Porém, mesmo no caso de não provar-se correta esta derivação doaramaico tiH7K1  fí vD, a ideia cristológica de Jesus "cordeiro de Deus"deve ser compreendida como uma variante da do Ebed Iahweh. A primeira vista, é verdade, parece que o cordeiro pascal, que nas outras passagens (1 Co 5.7, 1 Pe 1.19) é identificado com Jesus, expressa outraideia. O sacrifício do cordeiro pascal tem por objetivo, para os judeus,obter a expiação dos pecados do povo (Ex 12). Nas origens deste rito,encontramos a ideia judaica do sacrifício oferecido a Deus. A noção do

'7'Tomo II, p. 370.174 C. H. DODD, The Interpretation ofthe Fourth Gospel,  1953, p. 235 s., vê no título

ctu.vòç muito mais uma alusão ao Messias, rei de Israel. Por outro lado, sublinhatambém que a ideia de Servo Sofredor tem uma importância muito particular para oquarto evangelho, embora não adote a explicação filológica de C  F. BURNEY e deBALL. Ver a propósito da noção de "cordeiro de Deus" também C. K. BARRET,"TheLambof  God"  (NTS  1,1955, p. 210 ss.), que parte da relação estabelecida por

C. H. DODD entre o cordeiro e o Messias-Rei, porém, coloca em primeiro plano aideia pascal inspirando-se na teologia e na liturgia do cristianismo primitivo. Sobrea importância cristológica da noção de cordeiro no Apocalipse joanino ver P. A.HARLÉ, " L'Agneau de 1'Apocalypse et le Nouveau Testamet" (Eludes Théologiqueset  religieuses, 1956, p. 26 ss.), que põe em evidência a linha que leva, por um lado,a Is 53 e, por outro, à liturgia do cristianismo primitivo.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMEf^TO 101

EbedIahwehsupôs  também a ideia de sacrifício; contudo, ela está dominada pela ideia da substituição voluntária. O cordeiro pascal, por suanatureza, é puramente passivo: ele tira os pecados sendo passivamentesacrificado. O  Ebed Iahweh,  em compensação, toma  voluntariamentesobre si os pecados de outros, e é unicamente assim que ele os tira. Trata-se, pois, de duas ideias aparentadas, cada uma das quais põe em relevoum aspecto determinado da morte expiatória. Pode-se dizer que a ideiade cordeiro sublinha sobretudo o fim,  e a do Ebed  Iahweh, o meio peloqual este fim é alcançado - a saber, o sofrimento voluntariamentesubstitutivo. O parentesco destas duas ideias é, no entanto, tão grandeque se pode admitir que o profeta, quando descreve o Ebed Iahweh  nocap. 53, tenha pensado também no cordeiro pascal. E por isso que introduz na descrição a comparação com a obediência de um cordeiro (vers.7): "semelhante a um cordeiro que se leva ao matadouro". Este estreitoparentesco explicaria muito bem porque se pôde empregar uma expressão que tivesse, ao mesmo tempo, uma e outra significação. Naturalmente, isto supõe que o texto de João se baseia em um texto aramaico ou que,no mínimo, o evangelista pensava em aramaico.

Deve-se, contudo, reconhecer que em outro lugar do Evangelho deJoão (19.36), o autor pensava  unicamente  no cordeiro pascal. Trata-sedo crucificado, cujos ossos não foram quebrados, contrariamente ao usual.O evangelista explica este fato por duas passagens da Escritura que serelacionam com o cordeiro pascal (Ex 12.46e Nm 9.12). Isto não prova,contudo, que em João 1.29 e 36 o pensamento acerca do Ebed Iahwehnão seja predominante. Admitido o estreito parentesco das duas ideias, éperfeitamente possível que o evangelista expresse ambas.

No relato do batismo de Jesus é o Evangelho de João1

" quemenciona a citação que a voz celestial faz do começo dos cânticosdo Servo. É o único que traduz exatamente por èicXeicTÓÇ a palavra hebraica de Isaías 42.1. Para ele, a vocação batismal de Jesusfoi um chamado a assumir a missão do Ebed Iahweh.

Temos de mencionar, enfim, que pelo menos em um lugar (Jo12.38) se encontra ainda uma citação textual de Isaías 53.1, "Quem

creu em nossa pregação, e a quem foi revelado o braço do Senhor?"

Cf. acima p. 92 s.

* * *

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1-02 Oscar Cullmann

Passemos agora a Atos dos Apóstolos.  Este livro, mais quenenhum outro, prova que já nos tempos mais antigos do cristianismo existia uma explicação da pessoa e da obra de Jesus que podería

mos chamar - de forma um tanto inexata - "cristologia do Ebedlahweh", ou talvez mais corretamente "paidologia". Podemosir aindamais longe e afirmar que aí temos provavelmente a solução maisantiga do problema cristológico. Pode-se pensar antes de tudo norelato da conversão do eunuco etíope (At 8.26 ss.), que prova queJesus foi explicitamente identificado com o Ebed lahweh no primeiro século e que se conservou a lembrança de que o próprio Jesushavia compreendido assim sua missão divina.176

Porém, à parte este relato, há em Atos outras passagens quenão contêm, é verdade, a citação textual de Isaías, porém, quenão são menos importantes para a questão que nos ocupa. Dá-senelas, com efeito, abertamente a Jesus o título de Ebed lahweh,em grego jraíç  xox> Geoíi, termos sue e aXX emprega aara tra

duzir a expressão do Dêutero-Isaías. Trata-se de quatro passagens. Coisa importante: encontram-se todas na mesma parte dolivro (caps. 3 e 4), e são as únicas em todo o Novo Testamento.177

A primeira destas passagens é Atos 3.13, que se refere a Isaías52.13; a segunda (3.26) que fala de "Jesus-Pais", como mais tardese dirá correntemente "Jesus-Cristo". As outras duas passagens(4.25 e 30) dão igualmente a impressão que naiç  foi empregado

como uma espécie de termo técnico com tendência a converter-seem nome próprio, como aconteceu com "Cristo". Isto confirma aexistência de uma cristologia muito antiga, que chamava a Jesusde o Ebed lahweh. Ela desapareceu  lo<*o, mas deve remontar aos

Temos que levar aqui em consideração também, as passagens de Atos nas quais

Jesus é   designado com o título deSímioç, inspirado em Is  53.11:  At 3.14; 22.14e,sobretudo, 7.52 (cf. J. JEREMIAS,  ZNTW,  34, 1935, p. 119).Contra R. BULTMANN,  Theologie des Neuen Testaments,  193 5, p. 5 1 ;E. SCHWEIZER,cy). cit.,  pp. 4 7 e 8 3 , temos que sublinhar aqui, com H. W. WOLFF,op.  cit.,  p. 86 ss., que todo o contexto indica uma relação com o Dêutero - Isaías.Esta é, também, a opinião de J. JEREMIAS, ZNW,  34, 1935, p. 119.

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CRISTOLOGIA  DO NOVO TESTAMENTO 103

tempos mais antigos, já que é na primeira parte de seu livro queo autor de Atos conservou suas marcas.

Infelizmente, nada sabemos de preciso a respeito desta dou

trina cristológica, ou mais exatamente, paidológica. Não obstante,o contexto no qual Atos dos Apóstolos coloca este antigo títulopermite-nos, talvez, adivinhar em que meios da comunidade primitiva seu emprego pôde generalizar-se mais. Não é provavelmentepor acaso que duas das quatro únicas passagens que no Novo Testamento dão a Jesus o nome de TCCUÇ, se encontrem em um discurso atribuído ao apóstolo Pedro e as outras duas em orações pro

nunciadas em sua presença. É demasiado audaz a conclusão deque o autor de Atos tenha conservado a lembrança de ser Pedroquem dava a Jesus, de preferência, o título de "Servo de Deus"?Não é possível, certamente, esta hipótese ser demostrada, masela concorda com o que sabemos de Pedro por outras passagens.Segundo Mc 8.32, é justamente ele quem, em Cesaréia de Filipe,se havia revoltado contra a necessidade dos sofrimentos de Jesus e

o havia chamado à parte para dizer-lhe: "que não te ocorra semelhante coisa", de sorte que Jesus, vendo nele o mesmo Tentadorque uma vez já havia querido desviá-lo de seu caminho, teve derepreendê-lo dizendo: "Para trás de mim, Satanás!" Compreendemos que este mesmo apóstolo, o primeiro mais tarde a ver o Ressuscitado (cf.  1  Co 15.5)) tenha também sido o primeiro a proclamar a necessidade destes sofrimentos e desta morte de Jesus, coisas

das quais não havia querido nem sequer ouvir antes da Paixão - eque tenha até feito destes sofrimentos e desta morte o centro desua explicação da vida terrena de Jesus.178

A este propósito, é interessante recordar também que a Primeira Epístola de Pedro cita com insistência as passagens do livrode Isaías que se relacionam ao Ebed  Iahweh (cf.  1  Pedro 2.21 ss.).Para o nosso problema, esta constatação conserva seu valor, seja

ou não autêntica a Epístola de Pedro, pois ainda que ela não seja

A lembrança de sua negação de Jesus explica também, em Pedro, esta mudançaradical. Cf. O. CULLMANN, Saint Pierre, 1952, p. 57 ss.

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104 Oscar  Culhneuin

dele, o autor deve ter sabido, como o de Atos, que Pedro haviaaplicado regularmente a Jesus a ideia de "Servo Sofredor".

Se é exato, como afirma Papias, que a tradição oral na qual se

baseia o Evangelho de Marcos deva ser posta em relação com aspregações de Pedro, podemos dar um passo a mais na direção daposição de Chr. Maurer,179  que tenta demonstrar que a tradiçãode Marcos está fortemente impregnada da ideia do Ebed Iahweh.Talvez se encontre aí, outra vez, a influência do apóstolo Pedro.

Em resumo, podemos enunciar as seguintes suposições: acristologia do apóstolo Pedro (se nos é permitido empregar esta

expressão, apesar dos poucos dados que possuímos sobre o pensamento do apóstolo) era muito provavelmente dominada pela ideiado Ebed Iahweh. Aquele que quis desviar Jesus do caminho dosofrimento e que até o negou no instante decisivo da Paixão, teriasido, depois da ressurreição, o primeiro a compreender a necessidade deste escândalo. Ele não podia expressar melhor esta convicção senão pelo título de Ebed Iahweh, tanto mais pelo fato de que

o apóstolo devia saber da importância que o próprio Jesus haviadispensado a esta ideia de "Servo de Deus". A posteridade, frequentemente, foi injusta com Paulo ao colocá-lo à sombra de Pedro.Porém, em relação à teologia, não temos sido injustos com Pedro,ao colocá-lo muito facilmente à sombra da teologia paulina?

* * *

Fica demonstrada a antiguidade do título "Jesus, Servo deDeus" também por este outro fato: Os documentos em que durante mais tempo ele se manteve, são os mais conservadores por suaprópria índole, a saber: as antigas liturgias.

É assim que na antiga liturgia da comunidade romana, contida em  1 Ciem. 59.3-61.3, lemos em diversos lugares: "Jesus, teu

servo", ou, em relação ainda mais estreita com o cântico do Ebed Iahweh,  "por Jesus Cristo, teu servo bem-amado" (59.2, 3, 4).

Cf. acima, p. 76 n. 108.

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C^RISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 105

Ou ainda nas célebres orações eucarísticas do  Didaquê:  "Nós teagradecemos, ó Pai, pela santa vinha de Davi, teu servo, que tu nostens feito conhecer através de Jesus, teu servo." (9.2); e ainda: "te

agradecemos pelo conhecimento, a fé e a imortalidade que nos tensfeito conhecer por Jesus, teu servo" (10.2). Observemos que são asorações eucarísticas as que chamam a Jesus "Pais". Não atuaria aía lembrança de que o instante decisivo em que Jesus abertamenteproclamou diante de seus discípulos sua missão de Servo de Deus,foi o da última ceia? Temos visto, de fato, que as palavras pronunciadas por Jesus não podem ser compreendidas de outro modo.

Não é por acaso que, nos fins do século primeiro e começosdo segundo, encontramos o título de Pais aplicado a Jesus só nasliturgias, pois já havia desaparecido do pensamento cristão.

* * *

Qual foi a atitude do apóstolo Paulo no que se refere à figurado Ebed Iahweh e a sua identificação com Jesus? Se se consideraque a morte de Cristo ocupa um lugar central em sua teologia, emprincípio se é tentado a supor que esta identificação lhe foi particularmente cara. Porém, na realidade, se o vemos designar a Jesuscomo "Páscoa" (1 Co  5.7),18° quase não encontramos nele citações explícitas de Isaías 53. Uma só citação direta, Isaías 53.4, se

encontra em Rm 4.25; porém, a passagem em 2 Co 5.21, relativaàquele que "não conheceu pecado", faz clara alusão a Isaías 53.6.E quanto aos textos de Isaías 52 citados em Rm 10.16 e  15.21, serelacionam com a pregação missionária e não propriamente com aobra do Servo de Deus. As passagens que acabamos de citar bastam para demonstrar que a aplicação da ideia de Ebed Iahweh aJesus não era desconhecida para o apóstolo; no entanto, a ausência

de outras citações dos cânticos do Servo, como também a ausência do título Pais em suas epístolas, reclamam uma explicação.

Cf. acima, p. 100 s.

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106 Oscar  CuUmartn

Primeiramente, temos de assinalar que se faltam citaçõesdiretas, as três passagens das epístolas de Paulo, talvez as maisimportantes do ponto de vista cristológico, sublinham, sem dúvida alguma, a ideia do sofrimento substitutivo do Servo de Deus(1 Co 15.3; Fp 2.7 e Rm 5.12 ss.). Em  1 Co 11.3, trata-se de umaantiga confissão de fé que não é obra do próprio Paulo, pois eledeclara explicitamente havê-la "recebido". A primeira afirmaçãodeste Credo - sem dúvida o mais antigo que existe181  -  é a seguinte:  "Cristo morreu por nossos pecados segundo as Escrituras".Quase não cabe dúvida de que as "Escrituras" designam aqui Isaías53.182  Como Paulo recorre aqui a uma confissão de fé já existente,se encontra assim confirmado que a cristologia do Ebed lahwehremonta aos tempos mais antigos da Igreja e que não foi Pauloquem criou a doutrina da morte expiatória de Cristo.

Se,  como pretende E. Lohmeyer, Paulo citou em Fp 2.6-11um antigo salmo da comunidade,183  esta observação é válida tam

bém para o segundo dos textos cristológicos fundamentais mencionados.  Examinaremos este texto detalhadamente nos capítulossobre o "Filho do Homem",184 e sob o título de Kyrios.^5  Porém,

 já temos que destacá-lo aqui pois nesta passagem também nos deparamos com a ideia de Ebed lahweh aplicada à humilhação de Cristo feito homem: jiop(pfiv ÔoíAou ^ocpoòv (v. 7). Aqui, Ebed é  tra-

porduzido por ôcô^oç.186

mCf. O. CULLMANN, Les premières Confessions de foi cltrétienne, p. 17, 36, 43.K2 É possível, na verdade, que Paulo faça alusão à Sagrada Escritura em geral (é o que

sustenta J. HÉRING, La Première Epitre de Paul aux Corinthiens,  1949, p. 134 s.);mas isso não é muito provável. E. LICHTENSTEIN, "Die ãlteste christlicheGlaubensformer  {ZKG, 63, 1950, p. 17 ss.) admite também que Paulo tenha pensado, antes de tudo, em Isaías 53.

la3E.LOHMEYER,"Kyrios Jesus. EineUntersuchungzuPhil.  2.5-11"  (SBHeidelberg,

1928) ; cf. também J. HÉRING, Le wyaume de Dieu et sa venue, 1937, p. 159 ss.184 Cf. abaixo, p. 228 ss185 Cf. abaixo, p. 284 s."6E. LOHMEYER,  Gotteshtecht itndDavidsohn,  1945, p. 3 ss., sublinha, com razão,

que esta tradução é possível. Para V. TAYLOR, o emprego da expressão u.o<<pr|vSoúXov justifica sua opinião segundo a qual Paulo, apesar de ser-lhe familiar a

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CRISTOLOGIA  DO NOVO TESTAMENTO 107

Se bem que Paulo utilize nestas passagens um elemento datradição primitiva, não é menos certo que fez seu o conteúdo dela.Isto é o que prova o terceiro dos textos que nos toca examinar aqui,

odeRm5.12ss. O apóstolo não reproduz aí uma confissão já existente, mas formula, de uma maneira pessoal, sua solução cristológica.Aqui, como emFl 2.6 ss., as duas ideias cristológicas essenciais queremontam a Jesus mesmo, a de "Filho do Homem" e a de "Servo deDeus", se encontram reunidas. O v. 19 mostra claramente que oapóstolo pensou no "Servo" do livro de Isaías: "pela obediência deum só muitos serão justificados". É uma alusão a Is 53.11: "meu

servo justificará a muitos". Talvez pudéssemos pensar aqui tambémno famoso í^aaTnpiov de Rm 3.25.

A questão fica, contudo, de pé: Por que o apóstolo não emprega o título de rcoíiç para expressar sua fé em Jesus. Sem dúvida éporque esta designação se aplica, antes de tudo, à obra terrena deJesus encarnado, enquanto que a cristologia paulina se interessamuito mais pela obra que o Cristo, elevado à destra de Deus, rea

liza na qualidade de Kyrios.É verdade que se lê também em Is 52.13: "Eis que o meu servo

procederá com prudência; será exaltado e elevado e será mui sublime"; em seguida trata-se do assombro dos povos e dos reis. Estapassagem oferece uma possibilidade de aproximação muito importante à crença cristã segundo a qual o Ebed Iahweh é, ao mesmotempo, o Filho do Homem que virá nas nuvens do céu.187 Contudo,

o Dêutero-Isaías não nos dá nenhum detalhe sobre esta obra futuraque ele deve realizar depois de Sua glorificação; e o essencial, noscânticos do Ebed, segue sendo o sofrimento substitutivo do Servode Deus, sofrimento que lhe permitirá chegar a esta glorificação.

ideia de Servo de Deus, teria evitado o título mesmo, por considerar que a palavra"Escravo" não conviria para designar o Kyrios (The Atonement   in the New Teswment

Teaching, 2a ed., 1945, p. 65 s.).is? H. W. WOLFF,o /;. cit., p. 31, sublinha, seguindoG. VON RAD, "Zur prophetischen

Verkiindigung Deuterojesajas"  (Verk. u. Forschtmg,  1940, p. 62) que o Dêutero-Isaías fala dos sofrimentos e da morte do Servo de Deus, do ponto de vista de suaglorificação.

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M)8 Oscar Culhftaitn

Em todo o caso, na época do Novo Testamento, é esta ideia da morte expiatória que evoca no ouvinte ou leitor o título de Pais-Ebect,

Esta é, em suma, a razão pela qual ele só pode ser aplicado à

obra terrena de Jesus. Ademais, Paulo, que não vê o Cristo senão àluz da Ressurreição, deve servir-se de outro título para caracterizar sua obra e sua pessoa, o título de Kyrios, de Senhor glorificadoque faz a sua Igreja participar dos frutos de sua morte expiatória eque, ao mesmo tempo, prossegue sua obra de mediador.

Pela mesma razão, e desde muito cedo, as ideias ligadas àfigura do Ebed lahweh desapareceram cada vez mais dos antigos

escritos cristãos, à exceção de algumas liturgias que o retiverampor um pouco mais de tempo. Encontramos constantemente, é verdade, citações de Isaías 53 aplicadas a Jesus;188 porém, elas nãotêm uma importância capital, e não é a ideia especificamente cristo-lógica do Ebed lahweh que, por exemplo nos Pais apostólicos, sepõe em evidência nessas citações.

Assim, encontramos uma longa citação de Is 53 em 1 Ciem. 16.Todas as passagens importantes do cap. 53 são reunidas aqui e aplicadasa Jesus. Porém, trata-se muito menos de explicar, pela cristologia do Ebed,a pessoa e a obra de Jesus, que de exortar os cristãos de Corinto à mesmahumildade que houve em Jesus. "Pois Jesus - s e diz aí-deve ser contadoentre os humildes,  não entre aqueles que se elevam acima do rebanho.O cetro da majestade divina, Cristo, não se manifestou com pompa,ostentação e orgulho - embora houvesse tido a possibilidade disso - senão

na humildade, como o Espírito Santo o havia predito..." (segue uma citação de Is 53.1 ss. sobre o aspecto exterior do Ebede  o desprezo de que éobjeto). No fim da citação, o autor acrescenta: "Vejam, meus bem-ama-dos, que modelo nos é proposto. Pois se o Senhor foi tão humilde, quedevemos fazer nós, que por ele temos sido submetidos à sua graça?Não temos aí uma utilização cnstológica real da ideia de Ebed Iahweh.A única coisa que importa ao autor é demonstrar pela Escritura um traçodo caráter de Jesus: sua humildade.

Na Epístola de Barnabé, encontramos uma passagem mais importante, pois o autor aí compara Jesus com a vítima oferecida pcios Judeus

Cf. a este respeito H. W. WOLFF, op. cit., p. 108 ss.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO

para reconciliação (Barn. 7.6; 8.1). No cap. 5.2, ele relaciona essa ideiacom o Ebed lahweh e cita Is 53. Porém, esta passagem está isolada nestaepístola.

* * *

Podemos agora resumir os resultados a que temos chegado.1. O judaísmo, na época do Novo Testamento, pôs o nome de

Ebed lahweh em relação com o do Messias; é até possível que emcertos meios (talvez esotéricos) se tenha formado a imagem de um

Messias sofredor. Por outro lado, no messianismo judaico oficial, aideia principal dos cânticos do  Ebed lahweh,  a do sofrimentosubstitutivo e da morte expiatória, está ausente.

2. Jesus não atribuiu a si o título de Ebed lahweh, senão que,segundo os sinópticos, como também segundo o Evangelho deJoão, aplicou a sua pessoa a ideia do sofrimento e da morte substitutivos, assim como a ideia da aliança restaurada entre Deus e seu

povo pelo Ebed. Foi provavelmente na ocasião de seu batismo queele adquiriu a convicção de ser esta a maneira em que deveria realizai* sua obra terrena.

3. O cristianismo primitivo conservou a lembrança de ter opróprio Jesus consciência de realizar a obra do  Ebed lahweh.No Evangelho de João, a Jesus se dá o nome de "cordeiro de Deus".Em Atos 3 e 4, o título Ttcdç  xox> Geou, tradução orega ad Ebed

lahweh,  é empregado como verdadeiro título cristológico. Esteemprego supõe a existência de uma cristologia muito antiga, inteiramente fundada sobre a ideia de  Ebed lahweh,  que parece tersido, em particular, a do apóstolo Pedro. É possível que a formação da tradição oral dos evangelhos (em particular a dos relatos daPaixão) tenha sido influenciada por ela.

4. Em Paulo, a morte expiatória de Jesus ocupa um lugar central.

É verdade que ele não emprega o título de Ebed lahweh. Os doistextos cristológicos mais importantes que reconhecem a Jesus a missão de Servo de Deus (1 Co 15.3, Fl 2.6 ss.) são tomados por ele datradição da Igreja, tradição esta que ele faz sua. EmRm5.12 ss., ele

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rio Oscar Cullmann

utilizou igualmente as ideias relativas ao Ebed Iahweh e sua obraexpiatória.

5. Embora tratando-se de uma das soluções cristológicas maisantigas e mais importantes, pois pode ser atribuída ao próprio Jesus,rapidamente passou a ocupar um lugar secundário. É só nos textoslitúrgicos do Didaquê e em uma oração registrada em 1 Ciem. queencontramos ainda o título de TCaíç aplicado a Jesus. Por que estetítulo desapareceu tão rapidamente? Sem dúvida, em razão de seucaráter limitado. Já fizemos sobre isso uma alusão a propósito dePaulo, e voltaremos a esta questão.

4. A DOUTRINA DO "EBED IAHWEH" COMO SOLUÇÃODO PROBLEMA CRISTOLÓGICO

Recordemos, em primeiro lugar, que a noção cristológica de"profeta do fim dos tempos" pode, por certo, aplicar-se à obra terre

na de Jesus, tal como é descrita no Novo Testamento; porém, quenão cobre mais que um aspecto dela, a saber, sua obra de pregador ede curador. Por outro lado, esta noção não pode explicar a funçãopresente e futura de Jesus. A explicação trazida pelo título de Ebed

 Iahweh não é uma opinião popular que o Novo Testamento se limitaria a reproduzir sem partilhar dela (como é o caso para a assimilação de Jesus ao Profeta); podemos concluir, a priori, que nesta

relação nossa conclusão será mais positiva - tanto mais pelo fatode que o próprio Jesus entendeu desta maneira sua obra na terra.No que concerne a esta obra, a noção de Ebed Iahweh permi

te captar o acontecimento cristológico central de uma maneira perfeitamente adequada ao testemunho de todo o Novo Testamento.Pois a morte expiatória de Jesus não é só o ato central de sua vidaterrena; é também o acontecimento central de toda a história da

salvação, desde a criação até a nova criação no fim dos tempos.Deste ponto de vista, a cristologia do "Servo" deve ser considerada como uma solução capital do problema cristológico neotesta-mentário: Jesus aparece como aquele que realizou, no momentodecisivo, a obra definitiva designada por Deus para a salvação do

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CRIÍTTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 111

mundo. O princípio de toda a história da salvação encontra aquisua expressão clássica. Quando muito, se pode objetar que estaconcepção deixa de lado a pregação de Jesus. Porém, à exceçãodos sinópticos, este aspecto da atividade de Jesus não aparecesenão em segundo plano no Novo Testamento, ou antes, se achaimplícito na obra redentora que ela anuncia. Podemos, pois, concluir que a noção de EbedIahweh  caracteriza a obra e a pessoa doJesus  histórico  de uma maneira perfeitamente de acordo com otestemunho cristológico do Novo Testamento.

À primeira vista, a figura do "Servo de Deus" não parece admi

tir uma prolongação que se aplique a uma ação presente e futurade Jesus. No entanto, o cântico central sobre o sofrimento do Ebedcomeça pela visão de um tempo em que o Senhor "subirá e seelevará bem alto" (Is 52.13); e ao fim se diz dele que "verá a suaposteridade e prolongará seus dias" (Is 53.10), que ele terá "suaparte com os grandes" (Is 53.12). Daí não se conclui, é verdade,uma continuação propriamente dita de sua obra; trata-se, antes, de

um epílogo. Porém, tudo o que o Novo Testamento diz acerca doReino presente de Cristo pode encontrar aqui seu ponto de partida.Enquanto o profeta escatológico, por sua própria natureza, nãotem mais que uma função preparatória, a obra realizada pelo Ebed

 Iahweh já tem um caráter definitivo e proporciona a redenção: elarepresenta o ponto decisivo da história da salvação. A partir daí,pode-se, com efeito, traçar uma linha tanto para frente como para

trás, para o passado como para o futuro. Mesmo que a obra realizada pelo Ebed Iahweh  basta-se a si mesma como obra terrena,anuncia, em virtude mesmo do seu caráter decisivo, as consequências que esta obra deve ter para além da vida terrena de Jesus. Istosignifica que a noção de Ebed Iahweh pode perfeitamente aliar-seàs noções que fazem ressaltar a obra do Cristo presente, futuro epreexistente.

Em princípio, o Novo Testamento poderia ter resolvido, pois,o problema cristológico dando a Jesus o título de Pais. Pois, partindo da importância decisiva reconhecida pelos primeiros cristãos à morte redentora de Cristo, era possível considerar sua obra,

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1-12 Oscar Cullmatin

presente e futura, como incluída neste título. Pode-se até dizer queisso convinha bem à teologia cristã primitiva, para a qual a mortede Cristo domina absolutamente a história da salvação. O rápido

desaparecimento de Pais deve-se ao fato de que o Cristo presentedeterminou de uma maneira muito imediata a vida das comunidades cristãs primitivas, de forma que sua fé em Jesus estava maisligada à ideia do "Senhor" presente, do Kyrios. Ainda que a obrahistórica realizada por Jesus no passado ocupasse um lugar central no pensamento dos primeiros cristãos, a fé nas consequênciasdesta obra, istoé, a fé no £j y /ms elevado à destra de Deus e reinan

do sobre a igreja e o mundo teve, para a vida quotidiana dos cristãos e para a igreja, uma importância maior ainda que a própriaobra. E ao Str\\\or presente que as orações se dirigiam, e no "partirdo pão" também a alegria de sua presença ultrapassava até a lembrança de sua morte. Isto nos permite compreender porque o títulode Ebedlahweh  devia desvanecer-se frente a outros títulos apesarda importância capital que a teologia continuava atribuindo à morte

de Cristo.No entanto, este título cristológico mereceria mais atenção

que a que se lhe concede, de ordinário, a teologia moderna. Não sópor ser uma das mais antigas respostas à pergunta: "Quem é Jesus?",mas também por remontar ao próprio Jesus. É pois por ele quemelhor podemos decifrar o segredo da consciência messiânica deJesus. Não seria mais exato falar de sua "consciência de ser o Servo de Deus", que de "sua consciência messiânica"? Porém, veremos logo que ainda uma outra ideia tem para ele uma importânciafundamental de sorte que, tampouco para ele a noção de Ebed  basta para abarcar toda a sua obra. Assim, ele atribuiu a si mesmo umoutro título que, por outro lado, vinculou ao de Ebed, a saber: o de"Filho do Homem".

Antes nos será necessário, no entanto, falar de outro títuloneotestamentário que se refere principalmente à obra terrena deJesus - título que ademais, só apareceu depois de sua morte e serviu unicamente em certos meios para resolver a questão cristo-lógica: o de Sumo Sacerdote.

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CAPÍTULO III

JESUS, O SUMO SACERDOTE(àpXi£p£Í>ç)

Ao ser aplicada a Jesus, a noção de sumo sacerdote guardaestreita relação com a de Servo de Deus. Poder-se-ia até considerá-la como uma variante desta última. Contudo, cabe consagrar-lheum capítulo à parte, pois, por um lado, a aplicação da noção deSumo Sacerdote a Jesus teve, no cristianismo primitivo, um desenvolvimento muito distinto - e, por outro, esta noção apresentaaspectos estranhos à figura do Ebed lahweh. É, com efeito, uma

concepção cristológica mais complexa que a de Profeta ou a de Servo de Deus, por não relacionar-se exclusivamente à obra do Jesusterreno.

Diferentemente dos títulos que havemos de estudar nos capítulos seguintes, não temos de nos perguntar aqui se existem analogias no paganismo.

1 .0 SUMO SACERDOTE, FIGURA IDEAL DO JUDAÍSMO

O sumo sacerdote é uma figura essencialmente judaica. Podeparecer supérfluo, no entanto, consagrar aqui, como se fará paraoutros títulos cristológicos, um parágrafo particular à ideia que sefazia no judaísmo acerca do sumo sacerdote, já que o redentoresperado pelos judeus não parece, à primeira vista, ter traçossacerdotais. Não obstante, encontramos no judaísmo tardio certosindícios de uma possível relação entre o Messias-Rei e o SumoSacerdote. Mencionemos, em primeiro lugar, as especulações que

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114 Oscar Cullmanii

se relacionam ao misterioso rei Melquisedeque, citado em Gn 14.18ss.  eSl 110.4.

Em Génesis 14.13-24 lemos como Abraão liberta seu sobrinho Ló das mãos de Kedor-Laomer, rei de Elam, e de seus aliados.Quando Abraão volta como vencedor da batalha, Melquisedequesai ao seu encontro e o abençoa e Abraão lhe dá o dízimo de seusaque. O livro de Génesis não nos informa nada mais a respeitodeste misterioso rei Melquisedeque diante de quem Abraão, assim,se humilhou. Sua pessoa também estimulou desde a antiguidade a

imaginação dos judeus.No célebre SI 110, que os cristãos não deixam de citar, lemosno vers. 4: "Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem deMelquisedeque". Estas palavras se dirigem ao rei, a quem são atribuídas as funções sacerdotais de ordem mais elevada. Incluem-seno quadro da festa judaica da entronização.189 Assim como o misterioso rei da época cananéia era ao mesmo tempo sacerdote, aquele

que se espera deve, também, assumir uma função sacerdotal que seeleve muito acima do sacerdócio ordinário - um sacerdócio que nãoperece, mas que é eterno. Se aqui trata-se do sacerdócio ideal do rei- ideia que se pode encontrar em todo o Antigo Oriente - e se aideologia real está na base mesma do messianismo, tem-se o incentivo para uma interpretação messiânica da figura do sumo sacerdote.

Que Jesus cite o salmo  110 afim de mostrar que a descendência davídica do Messias é problemática, pressupõe que o rei doqual fala este salmo, e que deve ser sacerdote pela eternidadesegundo a ordem de Melquisedeque, não é outro senão o próprioMessias (Mc 12.35 ss.).190 Tal é também o sentimento dos LXX.

""'Cf. H. SCHMIDT, Die Psalmen,  1934, p. 203; A. WEISER, "Die Psalmen"  (ATD),

1950, p. 459 ss. Sobre a relação entre Melquisedeque eZadoque, cf. H. H. ROWLEY,"Melchizedek and Zadok"  (Festschrift   A.  Bertholet,  1950, p. 461 ss.).1911 Esta constatação conservaria seu valor se, como o admite R. BULTMANN, Gesch.

d. synopt. Tradition,2* éd,, 1931, p. 145 s., este trecho de Mc 12.35 ss. não devesseser atribuído a Jesus mas à comunidade primitiva, o que, por outro lado, é poucoprovável (cf. abaixo, p. 174 s.).

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 115

Contudo, temos que assinalar que nenhum testemunho apoia semelhante tese nos escritos rabínicos anteriores à segunda metade doterceiro século de nossa era.191 Talvez seja porque o judaísmo tendia, por razões de polémica anticristã, a diminuir a figura de Melquisedeque.192

Como em Génesis 14.19 Melquisedeque nomeia primeiro a Abraãoe a Deus somente em segundo lugar, tira-se-lhe o sacerdócio supremopara transferi-lo a Abraão  (Ned. 32 b; Sanh.  108 b)."-1 No tratado  Abot R.  Nat. 34,  o sumo sacerdote fica expressamente subordinado ao Mes

sias. Aí  se  diz (tal é ao menos o sentido geral): "Tu Messias, tu és príncipe superior a Melquisedeque; e tu és, por conseguinte, mais amado deDeus que este sacerdote messiânico."

No entanto, tudo leva a crer que no tempo de Jesus não só jáse interpretava messianicamente o Salmo 110 mas que, sobre abase de certas especulações teológicas, o judaísmo identificavao próprio Melquisedeque, se não com o Messias, ao menos comoutras figuras escatológicas. O capítulo 7 da Epístola aos Hebreus,assim como certas tentativas patrísticas posteriores de ver emMelquisedeque um tipo, uma prefiguração do Cristo, supõem aexistência de uma tradição judaica sobre o alcance escatológicoda figura do Rei-Sacerdote. É assim que num Midrash (tardio éverdade) do Cântico dos Cânticos,194 o Rei-Sacerdote não estálonge de assumir a função de um mediador messiânico. Por umlado, o Elias ressuscitado aparece sob o duplo aspecto de profeta e sacerdote do fim dos tempos.195  Este Rei-Sacerdote podetambém assumir, em certas especulações, os traços de Adão con-

vn  STR-BILLFJRBECK,  IV, p. 452. Para o que se segue, ver todo o excursus:  "Der110.  Psalm in der altrabbinischen Literatur", IV, p. 452 ss.

v>-  Ver a este respeito, M. SIMON, "Melchisédech dans la polemique entre juifs etchrétiens et dans la legende"  (RHPR,  17, 1937, p. 58 ss.)

n3Cf. STR-BILLERBECK, IV, p. 453 s.l,J4 Midr. Cantique de Cantiques (100b); cf. Pesiq. 51a.li,5Cf. J.JEREMIAS, art.'HX(e)íccç (ThWbNT, III p. 934 s.);; também STR-B1LLERBECK,

IV, p. 462 s.

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r1 6 Oscar Cuttmann

siderado como o homem ideal.196  Ocorre, por outro lado, que umsacerdote escatológico apareça na qualidade de Kohen zedek, aolado de Elias.197  Enfim, devemos mencionar que Fílon assimilao Logos a Melquisedeque e o chama "Sacerdote de Deus".198

Os Pais da igreja falam de certas especulações cristãs gnósticasrelativas a Melquisedeque.199 Sem dúvida, aludem a antigos temas

 judaicos fundidos com ideias gnósticas. E. Kãsemann200  parece,em todo caso, ter razão ao postular a existência, anterior à Epístolaaos Hebreus, de especulações relativas a Melquisedeque, de origem em parte judaica e em parte cristã-gnóstica, que assimilavamo sumo sacerdote a personagens dos primeiros e dos últimos tempos, tais como Sem, o arcanjo Miguel, o primeiro homem Adão,Metatrom.201

É preciso ainda citar, a este propósito, o "Mestre de Justiça"  " dseita de Qumran. Por um lado, ele apresenta caracteres escatológicos; por outro, como o mostra o Comentário de Habacuque,202 é

lW,F.  J. JEROME,  Das geschichtUche Melcíiisedek-Blld und seine Bedeutung im Hebrãerbrief, 1920.

is? STR-BILLERBECK, IV, p. 463 s., recorda-nos que o "Mestre de Justiça"  da seitade Qumran também é sacerdote, V. abaixo, p. 154 s.

m Leg. Alleg.,  III, 79; De congr.  erud.. 99.""AMBRÓSIO, Defide,  III,  11; JERÓNIMO, ep. 73; EPIFÂNIO, Haer, 55, 5; 67, 3

e 7. Em HIPÓLITO,  Refut.  Vil, 36; X, 24 e em outros Pais, também se trata de"Melquisedequianos" que colocavam a Melquisedeque acima de Cristo. V. a esterespeito G. BARDY, "Melchisédec dans la tradition patristique"  (Revue Biblique,1926, p. 496 ss.; 1927, p. 25 ss.).

200E. KÃSEMANN,  Das wandernde Gottesvolk, 1939 p. 130.201 V. sobre as especulações concernentes a Melquisedeque, além dos autores já cita

dos: M. FRIEDLÀNDER, "Melchisédec et 1'Epitre aux Hébreux" (Rev. des Etudes Juives,  1882, p. 188 ss; 1883, p. 186 ss.); G. WUTTKE, "Melchisédech derPriesterKõnig von Salem. EineStudiezurGeschichte der Exegese" (BZNW,  1927);H. STORK,  Die sogenannten Melcliisedekianer,  1928: H. W. HERTZBERG,"Die Melchisédecli traditionen"  (Journ. of the Palestime Oriental Society,  1929,p.  169 ss.); O. MICHEL, Art. MeXxioeSÉK (ThWbNT,  IV, p. 573 ss.); id. DerBriefaan die Hebriíer, 1949, p. 160. Cf. igualmente J. JEREMIAS em ThBl  1937, p. 309;outras indicações bibliográficas em C. SPICQ,  L'Epitre aux Hébreux,  II, 1953,p. 213 s.

2111II, 8; K. ELLIGER, Studien zum Habakuk-Kommentar vom Toten Meer, 1953, p. 168.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 117

sacerdote. Convém também mecionar os  Testamentos dos DozePatriarcas,  em parttcular Testt Levi  18, onde se anuncia a vindade um "novo sacerdote'1.203 Se a tese de Dupont-Sommer é exata

(e são muitos os argumentos que apontam a seu favor) este "novosacerdote" não seria outro senão o próprio "Mestre de Justiça".204Seja como for, os textos de Qumran (IQS 9.11 e IQSa 2.12 ss.),mesmo o Documento de Damasco (12.23; 14.19; 19.10; 20.1) eosTestamentos dos Doze Patriarcas (Rub. 6.7 ss., Sim.7.2 e pass.),distinguem um Messias sacerdotal e um Messias-Rei político, umMessias de Levi e um Messias de Judá, "Messias de Aarão" e

"Messias de Israel", o Messias real estando subordinado ao Messias sacerdotal.205 É importante advertir que nestes textos a identificação do sumo sacerdote com o Messias se realiza.

Chegamos, pois, à conclusão que o judaísmo já conhecia umsacerdote ideal que devia consumar, no final dos tempos, o sacerdócio judaico, como o único sacerdote verdadeiro. A noção judaica de sacerdócio deveria, inevitavelmente mais cedo ou mais tar

de, fazer surgir semelhante esperança, por ser, em virtude de suafunção, o Sumo Sacerdote o verdadeiro mediador entre Deus e seupovo e ocupar, em razão disso, uma posição soberanamente elevada. O judaísmo possuía, na pessoa de seu sumo sacerdote, umhomem que já podia satisfazer, dentro do quadro cultual, a necessidade do povo de contato com Deus. Porém, quanto mais o sacerdote existente decepcionava as altas esperanças que nele se depo

sitavam, tanto mais era inevitável que a esperança do fim dostempos, em que todas as coisas haveriam de encontrar sua consu-

,J Cf. também 8,11-18. J. JEREMIAS cita ainda emThWbNT,  II, p. 934, nota30, todauma série de trechos que considera, com razão, de origem pré-cristã.

11 A. DUPONT-SOMMER,  Nouveaux aperçus sur les mamtscrits de la mer Morte,1953,  p. 63 ss. A este propósito se pode mencionar que M. FRIEDLÀNDER, noartigo já citado da Revue des éutdes juives  (cf. acima, nota 201), já havia declarado

a hipótese de que as especulações relativas a Melquisedeque, e ainda à seita dosMelquisedequianos, teve sua origem no Essenismo.

"K. G. KUHN, "Diebeiden Messias Aarons und Israels" (NTS,  1, 1955, p. 168 ss.)eSTAUFFER, "ProblemederPriestertradition"  (Theol. Lit. Ztg.,  1956, col. 135 ss.),cf. abaixo, p. 143, nota 241 e p. 155.

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1.18 Oscar  Cullmann

mação, englobasse também a imagem de um sumo sacerdote ideal,cuja figura se aproximava cada vez mais da do Messias.

Porém, este sumo sacerdote esperado não somente realiza ocumprimento do sacerdócio, mas deve, antes de tudo, superar asinsuficiências do sacerdócio representado pelo sumo sacerdoteempírico. Sua missão é, pois, determinada por oposição ao papeldeste último. É importante esta observação para compreendermoscomo esta noção de sumo sacerdote foi transferida para Jesus.

2. JESUS E A CONCEPÇÃO DE SUMO SACERDOTE

É possível falar, num sentido cristológico, da atitude de Jesuspara com a noção de sumo sacerdote? Alguém poderia sentir-setentado a descartar, de inicio, esta questão como carente de objetoe passar imediatamente à ideia de  'ITICTOÍÍç àpxiepcóç no cristianismo primitivo.

Com efeito, parece à primeira vista impossível que Jesus tenhaatribuído a si mesmo funções sacerdotais quando se pensa, porexemplo, em sua atitude para com o templo. Mesmo se a purificação do templo teve por objetivo não sua supressão, mas a restauração de sua autêntica missão, não é menos certo que Jesuspronunciou palavras que põem diretamente em questão o cultodo Templo. Por exemplo, quando disse: "Há aqui alguém maiorque o Templo" (Mt 12.6). Ou ainda, a palavra que desempenhaum grande papel no processo de Jesus - palavra que os sinópticosapresentam como "falso testemunho" (Mc 14.58 par.), que porém, oquarto evangelho cita de uma forma ligeiramente diferente, comouma palavra pronunciada por Jesus (Jo 2.19). Atrás destas palavras há, certamente, uma declaração de Jesus que anunciava odesaparecimento do Templo. Na interpretação que o Evangelhode João lhe dá (2.21), o próprio Jesus se apresenta como aqueleque substitui o Templo.

Tenha ou não compreendido sua missão desta maneira, emtodo caso Jesus estava persuadido de que, com a sua vinda, inaugura o fim dos tempos, o culto do templo não podia permanecer

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{-RiSTOLOGIA DO INovo TESTAMENTO 119

como antes; ele deve pois ter tido uma atitude crítica com respeitoà perenidade da função do sumo sacerdote judaico. Se os evangelhos se fazem sobretudo o eco de sua polémica contra os fariseus,não temos que tirar daí a conclusão de que ele tenha estado maispróximo do partido sacerdotal dos saduceus. Os relatos sinópticosdo processo de Jesus - mesmo influenciados pelas tendências dacomunidade primitiva - têm conservado, incontestavelmente, alembrança de que os inimigos de Jesus, aqueles que queriam a suamorte, pertenciam, sobretudo, aos meios sacerdotais. João 11.47dá provas disso.

A atitude crítica de Jesus para com o sacerdócio não deve, noentanto, fazer-nos recusar a ideia de que ele tenha podido integrara noção de sumo sacerdote à concepção de sua missão. Temosvisto que já no judaísmo, a crítica ao sacerdócio empírico seguiaparalela à esperança de um sacerdócio ideal. No Salmo 110, emque o rei é chamado "sacerdote segundo a ordem de Melquisede-que", ele não é só colocado acima do sumo sacerdote judaico, comotambém é posto, de certo modo, como seu concorrente.

Não se descarta que Jesus tenha aplicado a si mesmo, se nãoo título ao menos a ideia de um sumo sacerdote "segundo a ordemde Melquisedeque". Pode-se dizer mais. Foram conservadas duaspalavras de Jesus nas quais aplica expressamente o salmo 110 aoMessias. Trata-se, primeiro, da pergunta feita aos escribas a respeito do Filho de Davi (Mc 12.35 ss. par.). O próprio Jesus citaaqui o Salmo que - conforme adiante206  - teve uma importânciacapital para a teologia cristã primitiva. Trata-se da passagem doAntigo Testamento citada com mais frequência no Novo. A explicação dada por Jesus a este Salmo em Mc 12.35 ss. é, para sermosfrancos, uma das falas mais difíceis que os sinópticos nos transmitiram. De nenhuma maneira é certo que com esta fala Jesus negueser de ascendência davídica. Pergunta-se também se falava de simesmo ou se se limitava a uma declaração geral sobre o Messias.

V. abaixo,  p. 292 s.

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1'20 Oscar Cutimann

Examinaremos logo este texto e veremos que a chave de sua interpretação deve ser buscada em Mc 3.33.207 Em todo caso, a hipótese de Bultmann208 segundo a qual trata-se de um relato criado pelaigreja primitiva, não é razoável: pois é difícil admitir que se tenhainventado uma palavra que necessariamente suscitaria imensasdificuldades teológicas. Porém, podemos supor que Jesus fala desi mesmo. Se tal foi o caso - e bem parece que seja assim, emrazão do contexto e da intenção segundo a qual Jesus cita o Salmo- isto seria de suma importância para o conhecimento da consciência que Jesus tinha de si mesmo: ele saberia ser o Rei-Sacer-dote "segundo a ordem de Melquisedeque". Poderíamos, nessecaso, admitir que a ideia de ter que realizar o verdadeiro sacerdócio não lhe foi estranha.

A segunda passagem em que Jesus cita o Salmo 110 é maisclara. Trata-se de sua resposta ao sumo sacerdote em Mc14.62.Jesus uniu aqui, em um só pensamento, Daniel 7 e o Salmo 110:

"Vereis o Filho do Homem sentado à direita do poder de Deusvindo sobre as nuvens do céu." O estar "sentado à direita" liga-seindissoluvelmente à imagem do Rei-Sacerdote "segundo a ordemde Melquisedeque". Não é significativo que Jesus aplique a simesmo a palavra relativa ao Sumo Sacerdote eterno no precisoinstante em que comparece diante do sumo sacerdote judaico, queo interroga sobre a pretensão ao messiado? Por sua resposta suben-

tende-se que o seu messiado não é o do Messias nacional que os judeus esperavam; mais ainda: não reivindica nem a função desumo sacerdote  terreno que tem diante si; senão que quer ser oFilho do Homem celestial e o Sumo Sacerdote celestial. Esta resposta é, pois, paralela à que dá a Pilatos no Evangelho de João(18.36): diante do representante terreno da autoridade, afirma queSua soberania não é deste mundo; frente ao sumo sacerdote terre

no, afirma que também o Seu sacerdócio não é deste mundo.

V. abaixo, p. 174 s.Cf.  Gesch. d. synopt. Tradition, 2a ed., 1931, p. 145 s.

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CRISTOLOGIA 1X5 NOVO TESTAMENTO 121

Jesus considera, pois, sua missão como uma consumação dosacerdócio. Há aí perspectivas muito ricas para descobrir e compreender a consciência que Jesus tinha de si mesmo. De qualquerforma, vê-se que a explicação sacerdotal que principalmente a Epístola aos Hebreus dá do problema cristologico encontra um pontode contato com os duas passagem em que Jesus cita o Salmo 110.

3. JESUS O SUMO SACERDOTE, SEGUNDO O CRISTIANISMO PRIMITIVO

Temos que falar, antes de tudo, da Epístola aos Hebreus.' Apxiepeúç,, sumo sacerdote, não é sem dúvida o único título cristologico atribuído a Jesus neste escrito, já que também lhe designa ode Kyrios, Senhor; e, sobretudo, como íaòç  xov  GEOÍ>, Filho deDeus. Isso não impede que seja principalmente como sumo sacerdote que a Epístola aos Hebreus, no conjunto, fale de Jesus.

O título fiec Í Tqç, mediadorr -ermo técnico dd erdem jurídicc, como qual se designa o árbitro ou o fiador - não é mais que uma variante dotítulo de sumo sacerdote. Não é, pois, necessário consagrar a este termoum capítulo especial. Encontramo-lo também na Epístola aos Hebreus(8.6; 9.15; 12.24) como também em I Tm 2.5.

O centro da Epístola aos Hebreus é o capítulo 7. Apoiando-se

em Génesis 14 e no Salmo 110, que Jesus mesmo havia citado, oautor, fundamentando-se sobre a Sagrada Escritura, designa a Jesuscomo o verdadeiro sumo sacerdote. Enquanto outros cristãos intentavam então provar, com auxílio do Antigo Testamento, que Jesusera o Messias esperado pelos judeus, o autor da Epístola aos Hebreusse esmera em demonstrar que Jesus consuma, de forma absoluta, afunção do sumo sacerdote judaico, i.e, que esta função tinha para

os judeus só um caráter passageiro e imperfeito e que, em razãodessa mesma insuficiência, ela anuncia um sacerdócio que a supera.

A argumentação do capítulo 7 repousa sobre uma interpretação tipológica do Antigo Testamento relacionada com uma tradi-

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122 Oscar Cullmatm

ção judaica relativa a Melquisedeque.209  O autor busca no próprioAntigo Testamento indícios em favor da ideia sobre a qual insiste

com tanta frequência: O sacerdote do antigo pacto nada tem dedefinitivo, de absoluto, e que, pelo contrário, tem de ser substituído pelo sacerdócio, desta vez definitivo e absoluto, do novo pacto.O elemento novo é a realização deste sacerdócio na pessoa de JesusCristo: ele é o Sumo Sacerdote no sentido absoluto e definitivo;ele é o cumprimento de todo sacerdócio, de sorte que, daí em diante, desqualifica e torna supérfluos todos os demais sacerdotes.

Apoiando-se na tradição judaicajá mencionada, o autor encontra este sacerdócio absoluto e perfeito prefigurado já na figura misteriosa deste Melquisedeque de Gn 14. Não nos toca dar aqui umaexegese detalhada de Hb 7. Importa, contudo, familiarizarmo-noscom as grandes linhas da especulação cristológica elaborada peloautor acerca de Melquisedeque, embora sua cristologia não selimite a esta figura de Cristo, que haverá de ocupar a imaginação

da igreja antiga, após a do judaísmo.Antes de tudo o autor - com argumentos um tanto arbitráriosdo ponto de vista exegético - estabelece um vínculo entre Melquisedeque e Jesus. E se esforça em seguida por demonstrar a superioridade deste rei sacerdote, que prefigura a Jesus, sobre os levitas,os sacerdotes da antiga aliança. Seu argumento é o seguinte: o antepassado dos levitas, ou seja, da tribo sacerdotal judaica, é Levi.

Este, era um descendente de Abraão e, segundo a teoria judaicaquanto a descendência- teoria que o autor faz sua - Levi existia jános "rins" de Abraão; assim, o que aconteceu a Abraão tambémfoi a Levi. O fato de haver Abraão recebido, segundo Génesis 14, abenção de Melquisedeque, demonstra que aquele é inferior a este:pois quem abençoa é superior ao abençoado. Levi, e todo o sacerdócio israelita que dele descende, está assim subordinado a Melquise

deque. Este abençoa e recebe o dízimo. É o Sumo Sacerdote por

Cf. acima, p. 114 s., G. SCHILLE, "Erwãgungen zur Hohenpriesterlehre desHebrãerbriefes"(Z íVH / 

T46 1955, p. 81 ss.), supõe a utilização de uma tradição cristãem razão da permuta entre íepeíiç e ctpx\zazx>c.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 1_23

excelência. Ora, este sacerdócio verdadeiro encontrou sua realização em Cristo, que é para sempre o verdadeiro Sumo Sacerdote, overdadeiro mediador entre Deus e os homens. Toda essa linha de

raciocínio parece peculiar para nós especialmente em seus detalhes(alguns eruditos a têm considerado até como um Midrash de Gn 14e SI 110.4).210 Porém, em sua base se encontra um pensamento teológico profundo: Jesus Cristo, o Sumo Sacerdote verdadeiro, não sópôs fim ao antigo sacerdócio judaico, ele o consumou em sua pessoa.

A noção de sumo sacerdote não está muito distanciada da deEbed lahweh. Para este último o caráter voluntário de seu sacrifício é um ponto essencial. Encontra-se de novo uma afirmação análoga na Epístola aos Hebreus, que transforma a antiga concepção

 judaica de sacrifício para por em primeiro plano o caráter voluntário do sacrifício oferecido pelo sumo sacerdote: "Ele se ofereceu asi mesmo" (Hb 7.27). Aqui o autor se liberta das especulações

 judaicas relativas ao sacerdócio, pois sendo Jesus designado comosumo sacedote, a ideia sacerdotal se associa automaticamente à de

Ebed. A função do sumo sacerdote é oferecer sacrifícios. Porém,Jesus mesmo é a vítima. É ao mesmo tempo o sacrificador e osacrificado, quer dizer, ele só pode sacrificar a si mesmo.

Uma relação direta entre Isaías 53.12 e Hebreus 9.28 pode serestabelecida; onde se diz que Cristo foi sacrificado de uma vez portodas a fim de "tirar os pecados de muitos homens". Nesta passagem, só a ideia de sacrifício oferecido pelo mediador para expiaros pecados do povo depende da noção judaica de sumo sacerdote.A ideia de um sacrifício voluntariamente consentido lhe é estranha.2" Deste ponto de vista, o título de  Ebed lahweh  expressa

'Cf. H. WINDISCH, Der Hebrãerbrief (Hdb. z. N.T), 2a ed., 1931, p. 59.É possível que a ideia de um sacrifício sacerdotal voluntário para a expiação dospecados de outros tenha surgido já no seio do judaísmo. O mártir Eleazar, que considera sua morte um sacrifício expiatório por seus compatriotas (4 Mac 6.29), é umsacerdote. Igualmente, o suposto martírio do "Mestre de Justiça", da seita de Qumran,toma uma importância particular pelo fato deste Mestre ser sacerdote. Em seu con

 junto estes sacrifícios se relacionam antes com a ideia da virtude expiatória do sofrimento do justo.

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124 Oscar Cullmaw

com maior exatidão o que Jesus mesmo e a igreja primitiva consideravam como sua obra. Em outros termos, a vinculação das noçõesde sumo sacerdote e de  Ebed   corrige o que a noção judaica desacerdócio tem de equívoca e imperfeita.

O elemento novo e valioso que entra, no entanto, na cristologia,graças à concepção judaica de sumo sacerdote, é a ideia de que Cristo, ao sacrificar-se, manifesta suasoberania sacerdotal; isto é, que aespécie de passividade do cordeiro pascal é descartada ainda maiscabalmente do que na noção deEbedIahweh.  E precisamente sacri-ficando-se, indo, portanto, ao mais fundo da humilhação, que Jesusexerce a função mais divina que se conhece em Israel: a de mediador sacerdotal. Daí o elo estreito que aparece na Epístola aos Hebreusentre a ideia de Soberano Sacerdote e a de Filho de Deus. A dialéticaprópria ao Novo Testamento, que descobre a majestade mais altana humilhação mais profunda, se manifesta, graças à noção desumo sacerdote, na morte expiatória de Jesus. Aí reside a grandeimportância desta concepção cristológica. Jesus realiza de uma

vez o antigo sacerdócio judaico e cumprindo-o, o torna supérfluoEm Hebreus 10.1 ss., o autor afirma que o sangue dos touros

e de bodes não pode tirar os pecados. Isto quer dizer que no verdadeiro ofício sacerdotal, tal como Jesus o realiza, o sacrificador e avítima são um só.

A cristologia da Epístola aos Hebreus tem ainda um outroaspecto: Jesus, o sumo sacerdote, leva a humanidade a sua "perfeição" tornando-se ele mesmo "perfeito". Ele restabelece assim opacto com Deus. O termo TÉAxioç e as expressões que lhe sãoaparentadas têm um papel importante e permitem uma aproximação à noção de Filho do Homem. Como o sumo sacerdote é mediador entre Deus e o homem, a realização do homem perfeito representa a coroação de sua obra. O termo  TÉA-EIOÇ evoca a ideia deperfeição e plenitude.212

21 2C. SPICQ, L'Epttre ctux Hèbreux, II, 1953, p. 39e /;«í sim, aproxima, por esta razão,o teXeicDv da Epístola aos Hebreus à palavra de Jesus sobre a cruz, tetéXeoTai,que Jo 19.30 relata.

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CRISTOLOGIA  DO NOVO TESTAMENTO 125

Têm razão os comentários quando sublinham o caráter cultuale sagrado da "perfeição" de que aqui se trata. Voltamos a encontrareste termo, inclusive, na linguagem dos mistérios, e na LXX tem o

sentido de "consagrar" "dedicar a"213. Na Epístola aos Hebreus, nocentro da qual se ergue a figura do sumo sacerdote, temos que partirdesta significação litúrgica e sagrada para compreender o verboT-eXeiow, sem que seja necessário por isso, excluir toda ideia deperfeição moral ou dizer que este termo é "neutro do ponto devista ético".2''' Pois se diz de Jesus Cristo que o Pai o tornou perfeito(Hb 2.10; 5.9; 7.28) e, por outro lado, enquanto sumo sacerdote, ele

mesmo leva seus irmãos à perfeição (Hb 2.10 s.; 10.14), uma interpretação puramente cultual é demasiado estreita.215  Quando éJesus Cristo quem dá conteúdo à noção de sumo sacerdote, este sevê elevado a um nível que ultrapassa a esfera puramente litúrgica;é por isto que o termo cultual Te^evovv toma um acento geralmente mais humano e supõe necessariamente também a ideia de umaperfeição moral, tanto para Jesus, o perfeito sumo sacerdote, como

para seus irmãos, perfeitamente "santificados" por Ele (2.11).

Muitos teólogos temem falar da perfeição "moral" de Jesus, comose isso devesse necessariamente significar uma recaída na concepçãoliberal da vida de Jesus. O autor da Epístola aos Hebreus, talvez mais quenenhum outro dos autores do Novo Testamento, teve a coragem de falarda humanidade de Jesus em termos às vezes chocantes;216 e, no entanto,é quem mais fortemente sublinhou a divindade do Filho.

Para conduzir os homens à perfeição deve o próprio sumo sacerdote percorrer as diferentes etapas de uma vida humana. É justo e

213Porex. Ex 29.9 ss.; Lv4.5 ("enchera mão"). Cf. a este respeito (além dos comentários de WINDISCH e de MICHEL sobre Hb 5.9) o tratamento detalhado de C.SPICQ, op.cit., p. 214 ss, na qual se encontra também uma importante bibliografia.

2HPor ex. J. KÓGEL, "Der Begriff   TÊAELOW  ira Hebráerbrief'  (Theol. Studienf.  M.Kàhler,  1905, p. 35 ss.).

2,5É o que expressa com razão H. WINDISCH,  Kommentar ad  5.9, p. 45.216Este aspecto não aparece suficientemente no estudo, mesmo assim notável, de M.

RISSI "Die Menschlichkeit Jesu nach Hebr. 5.7 und 8" (ThZ, II, 1955, p. 28 ss.).

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126 Oscar Cuiimann

natural, antes de tudo, pensar na fase final desta vida, na Paixãoconsiderada como sua "consumação". Porém, acentuar a necessá

ria humanidade do sumo sacerdote é afirmar que é através de suavida inteira, até ao sacrifício final de sua morte voluntária, que eledeve realizar a leXeíoaaiç. Embora tenha conhecido uma condição humana inteiramente semelhante à nossa, foi o único a mos-trar ao mundo o que é ser um homem sem pecado: "tentado comotodos nós em todas as coisas, sem cometer pecado"  (Hb 4.15).

A impecabilidade de Jesus já havia sido afirmada antes da

Epístola aos Hebreus; porém, seu autor se interessa por ela de umamaneira muito especial em razão do caráter sacerdotal de suacristologia. Insiste neste ponto não somente no capítulo 4.15, comotambém nos caps. 7.26 e 9.14. Encontra-se novamente, ao menosimplicitamente, a ideia em 2 Co 5.21; 1 Pe 1.19; 2.22; 3.18; Jo7.18; 8.46; 14.30. Os Sinópticos devem ter compartilhado destaideia já que atribuem a Jesus o poder de perdoar os pecados. Com

respeito a Mateus pode-se afirmar isto com certeza, senão nãoteria modificado a declaração de Mc 10.18: "Por que me chamas bom?" para "Por que me interrogas tu sobre o que é bom?"(Mt 19.17). Evidentemente, ele considerou que a interrogação, talqual a relata Marcos, punha em dúvida a impecabilidade de Jesus.Porém, a compreendeu bem, para modificá-la assim? A maneiraem que Marcos relata esta pergunta parece discordar da afirmação

de ser Jesus isento de pecado. A contradição desapareceria se fosse interpretado o fato de "não ser bom" no sentido de cco*6éveta,como possibilidade de estar sujeito à tentação. Em todo caso, parao autor da Epístola aos Hebreus, o fato de Jesus poder ter sidotentado não atenta contra sua impecabilidade. Talvez seja estemesmo o pensamento de Marcos; ele estava persuadido da perfeição moral de Jesus, afirmando ao mesmo tempo, com toda a tradi

ção sinóptica, que Jesus foi tentado.Porém, nos Sinópticos, Jesus (salvo talvez na cena do

Getsêmani) não aparece como verdadeiramente atingido pela tentação. A Epístola aos Hebreus, por sua parte, mesmo mencionando a ausência de pecado, pressupõe, enfaticamente,  apossibilida-

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CRISTOLOGIA DO NOVO  TESTAMENTO 1_27

de de pecar. Por isto a possibilidade de Jesus ser tentado desempenha um papel muito mais importante nela do que nos Sinópticos.Veremos, ademais, que sobre este ponto a Epístola aos Hebreussublinha a humanidade de Jesus mais vigorosamente que os evangelhos ou qualquer outro escrito do primeiro século. É que o sumosacerdote deve não só entrar totalmente na humanidade, mas também, no seio da humanidade, participar de tudo o que é  humano.Se pensarmos na importância dada ao fato de que Jesus poderiaser tentado, compreendemos que a ideia de uma "perfeição" moraldo sumo sacerdote não resulte chocante a nosso autor.

Muito pelo contrário, é pelo fato de Jesus poder ter sido tentado que sua impecabilidade alcança todo o seu sentido. De outramaneira ela não teria, no fundo, sentido algum.217 A diferença profunda entre Jesus e os demais homens aparece plenamente, na Epístola aos Hebreus, por sua cabal incorporação ao género humano.A noção de sumo sacerdote dá todo seu rigor à dialética destacristologia.

A dupla afirmação de que Jesus podia ser tentado e de nãohaver sucumbido à tentação dá a sua ausência de pecado (Hb 4.15)um caráter menos dogmático que nas outras passagens mencionadas há pouco, ainda que aqui também apareça, como pano de fundo,  a ideia da vítima sem mancha (como em 1 Pe 1.19) ou a deEbed Iahweh (como em  1 Pe 2.22).

Para medir todo o alcance da expressão x^P^ç ccfictpTÍaç =

sem pecado, temos que ler o começo do versículo no qual se encontra: "Porque nós não temos um sumo sacerdote que não possa secompadecer de nossas debilidades; pelo contrário, ele foi tentadocomo nós em todas as coisas" (4.15). Esta declaração relativa àhumanidade de Jesus é raramente apreciada em toda sua força, emtodo seu imenso alcance. Sem dúvida, aqui o autor não pensasomente no relato da tentação narrada pelos Sinópticos, por tratar-se

H. WINDISCH, Der  Hebrãerbrief, 2a e<±, 1931, p. 39 parece equivocar-se completamente ao dizer: " Pode-se afirmar que é sem pecado, no sentido estrito do termo,aquele que era exposto, exatamente como nós, à sedução das tentações?"

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128 Oscar Cullmaiw

de uma tentação especificamente messiânica à qual só Jesus podiaser submetido. Quando o autor de Hb 4.15 afirma que Ele foi tentado como nós em todas as coisas (íte7ieipáo|o,evov Kccrà  návxaKa8' óu,oiÓTtyca ), as palavras agregadas a jre7te£paou,évoç indicam que o termo não se aplica exclusivamente ao relato da tentação, nem às passagens nas quais se vê a Jesus "tentado", posto àprova, pelos debates doutrinários (cf. Mc 8.33; 12.15; Jo 8.1 ss.):trata-se verdadeiramente de uma tentação geral devido à nossadebilidade humana, à que estamos todos expostos pelo fato de sermos homens. A expressão "como nós", não se emprega como merafórmula; ela tem um sentido profundo.

Esta declaração da Epístola aos Hebreus, que vai mais longeque o testemunho dos Sinópticos, é talvez a afirmação mais ousada de todo o Novo Testamento sobre o caráter absolutamentehumano de Jesus. Esta observação breve, porém carregada de consequências, lança uma luz particular sobre a vida de Jesus e atrainossa atenção a aspectos desta vida que não conhecemos, e que oautor da Epístola aos Hebreus seguramente tampouco conhecia.Temos de tomar muito cuidado para não buscarmos nela um temade novela, pois nada de concreto sabemos destas tentações KaiàTtávra: o essencial, do ponto de vista cristológico, é a afirmaçãode que Jesus foi tentado em todas as coisas como nós mesmos,porém, sem sucumbir.

A plena participação do sumo sacerdote na humanidade é afirmada do mesmo modo em Hb 2.17: "Em consequência, ele se fezsemelhante em tudo a seus irmãos, para vir a ser misericordioso efiel sumo sacerdote no serviço de Deus, para fazer expiação pelospecados do povo: pois como ele mesmo padeceu sendo tentado, écapaz de socorrer os que são tentados."

A ideia da debilidade de Jesus, ele também sujeito à tentação,domina ainda o começo do cap. 5. O autor menciona aqui umatentação concreta (v. 7 s.): "Foi ele quem, nos dias de sua carne,havendo apresentado com grande clamor e lágrimas orações esúplicas àquele que podia livrá-lo da morte e, tendo sido escutadoe se livrado da angústia aprendeu, embora sendo Filho, a obediên-

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 129

cia pelo que padeceu." Que o autor tenha pensado aqui no Getsê-mani parece-nos evidentemente a explicação mais provável.3I8

As expressões "clamor" e "lágrimas" são tão concretas que devem

referir-se a um acontecimento determinado em que Jesus tenhaorado para ser salvo da morte. Esta descrição, no entanto, não seenquadra bem na crucificação, a despeito da menção do grito deJesus. Só pode referir-se à terrível tentação do Getsêmani, onde aJesus ficava, todavia, a possibilidade de escolher outro caminhoque o da obediência que devia levá-lo à cruz.219

Tampouco compreendo como, em presença de duas possíveis traduções de eiaaKoixrfleiç àrcò xfjç eyX,aJÍ£Íccç "ouvido e livrado de suaangústia" ou "escutado por causa de sua piedade", se possa decidir cmfavor da segunda."" Todo o contexto leva a dar a eíActpeía o sentido de"angúst ia"."' Justamente aí está a tentação de Jesus, éa í que se mostra suaào"9évera: como todo homem, teme morrer. Porém, Deus respondeu à suaoração já que ele superou suaangústiac pôde dizer: "não o que eu quero..."

Estes versículos são de suma importância para a cristologia.Não há neles o menor traço de docetismo: Jesus é verdadeiramente homem e não simplesmente um Deus disfarçado de homem.O autor emprega expressões que mostram que a seus olhos aangústia de Jesus foi mais terrível ainda do que o relato dos evangelhos permite supor. Na cena do Getsêmani, tal como a conhece-mos,  tem de ser acrescentado que Jesus em sua angústia mortal

-,|SÉ também a opinião de J. HÉRING,"L'Epítreauii Hchreux" {Cominem, d\t NoiíwtinTem.),  19M,  a<i  loc.  Contra esta tese, M. R1SSI,  op.  <.7r ,  p. 39. Em nosso estudo,

 Ininorleilité  de \'âme  OH  résurrecúon des morts, 1956, p. 25 ss., insistimos sobre aangústia de Jesus ao nos referi mios precisamente a este trecho da Epístola aos Hebreus.

;ií,Cr. O. CULLMANN, Dieu et César,  1956, p. 42 s.2-"Se não se leva em conta o contexto, as duas traduções são admissíveis. O. MICHEL

c C. SPICQ, em seus comentários, preferem aqui a segunda tradução (um e outrodão,  igualmente, um resumo da história da interpretação deste trecho); igualmente

M. RISSI,  op. cit.,  p. 31Í. Por outro lado, os comentários de J. HÉRING c de H.WIND1SCH traduzem como o temos proposto (este último, no entanto, com umsinal de interrogação).

2-' A conjectura muitas vezes citada de HARNACK (o acréscimo da partículaoòic) nãose justifica, nem é  necessária para explicar o texto assim traduzido.

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)3t) Oscar Cullmann

gritou e chorou. Ele não considerou a morte, como um estóico resignado, como a passagem natural de um estado para outro.Viu nela algo terrível que Deus detesta: o "último inimigo", comodiz o apóstolo Paulo (1 Co 15.26).222

O autor da Epístola aos Hebreus teve, à sua disposição, uma tradição independente da dos evangelhos? Sobre isto não é possível pronun-ciar-se com certeza. É possível que em outros lugares ainda faça alusão afatos precisos da vida de Jesus transmitidos somente pela tradição oral,por exemplo quando escreve no capítulo 12.3: "Considerai aquele quesofreu contra sua pessoa tal oposição da parte dos pecadores". Porém,

talvez pense aqui só em episódios já relatados pelos evengelhos.

A confirmação mais nítida do ensino da Epístola aos Hebreussobre a plena humanidade de Jesus é a afirmação segundo a qualele  aprendeu  a obediência (5.8). Esta expressão (a qual, se temtentado atenuar, mas sem nenhum êxito, a meu modo de ver)supõe um desenvolvimento interior, uma evolução da pessoa de

Jesus. A vida de Jesus não seria verdadeiramente humana se nãose pudesse descobrir nela algum desenvolvimento. Outra passagem do Novo Testamento (Lc 2.52) o diz por outro lado claramente:  "Jesus crescia (TcpoéKOJtxev) em sabedoria, estatura e graça,diante de Deus e dos homens."

Este £U.cc6ev de Hebreus 5.8 esclarece também a expressãoTe^eioOv, da qual já falamos e que aparece precisamente no

versículo seguinte. Paralela à passagem onde se diz que Jesus"aprendeu" a obediência, lemos, de fato (2.10), que ele foi "levado à perfeição pelo sofrimento". Há aqui uma indicação evidentede um certo desenvolvimento, de um progresso moral que encontra seu coroamento na obediência expiatória, obediência queJesus precisou "aprender", para levar a bom termo a missão deEbed lahweh. A  "obediência" de Hebreus 5.8 recorda a mesma

expressão em Fl 2.8. A gradação que se expressa lá por u.é%pi

- n  Só na medida em que se leva a sério a morte, pode-se também levar a sério a ressurreição, Cf. nosso estudo: Immortalitê de i'âme ou résurrection desmorts,  p. 32 ss.

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CRISTOLOGIA DO NOVO .TESTAMENTO 131

supõe, ademais, um certo progresso no caminho da humilhação:"obediente até a morte".

Para a Epístola aos Hebreus, o essencial não é tanto a maneira em que Jesusfoi feito homem, mas, antes, que foi homem. Nistoreside sua função propriamente sacerdotal. Ao Cur deus homo deAnselmo a Epístola aos Hebreus responde baseando-se na ideia desumo sacerdote: é necessário que este sofra  com os homens, parapoder sofrer por eles.

A ideia de um desenvolvimento interior de Jesus é, para muitos teólogos, mais insuportável ainda que a de uma perfeiçãomoral.223 Vêem nela o espectro, muito justamente desacreditado,da imagem liberal de Jesus. Este é um temor injustificado: tirar,com a Epístola aos Hebreus, todas as consequências da encarnaçãode Jesus, e mostrar que como feito homem, foi homem, não significa  ipso facto, entregar-se a uma interpretação "psicologizante".Seria, antes, necessário precaver-se de outro perigo: o do docetismoque, desde as origens e já no Novo Testamento, representa a here

sia por excelência. Escandalizar-se por estes traços tão humanosde Jesus prova que não se tem compreendido o que o Novo Testamento entende por "fé em Cristo". Pois esta fé é, essencialmente,a fé  apesar   do escândalo da humanidade. Os escritos do NovoTestamento que insistem mais vigorosamente sobre a divindadede Cristo são também aqueles que mais sublinham sua humanidade; e é justamente na Epístola aos Hebreus onde a divindade de

Cristo é afirmada com mais ousadia, já que o Filho é aí interpelado como criador do céu e da terra (1.10).

Tampouco seu autor teme, celebrar as qualidades e atributoshumanos de Jesus: lemos que tornou-se "um sumo sacerdote misericordioso e fiel" (2.17); trata-se inclusive da fé de Jesus. A doutrina sacerdotal da epístola quer, com efeito, que Jesus - "chefe econsumador da fé" (12.2) - tenha, ele mesmo, também crido,224 e

que tenha conduzido os homens a crer em sua obra.

"'Cf. acima, o. 124 s., , , „  r  , , . . . . . . , . ,• .  ' - Í , ' - ?1 Esta interpretação se toma lícita também qb^âb sêíJiía-o^meco do •camitnio rynn

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132 Oscar Cullmann

Segundo a doutrina fundamental da Epístola aos Hebreus,Jesus o Sumo Sacerdote, graças à sua humanidade, "santifica" nossa

humanidade; a "completa", a torna "perfeita". É o que já temosconstatado a propósito do termo  xeXeiovv. E. Kãsemann temrazão ao estabelecer aqui uma relação com a figura do primeirohomem celestial.225 Pode-se mencionar, a título de comparação, omito gnóstico segundo o qual o Redentor teve de ser resgatadopara chegar, assim, a ser chefe dos demais.

Fica-nos, todavia, por colocar em evidência um aspecto da obra

sacerdotal de Jesus que, não obstante o paralelismo indicado, mostra o abismo que separa a teologia de hebreus da mitologia e dagnose: é o caráter único da obra do sumo sacerdote, o ètpánaÇ. Estaunicidade está em oposição total à constante necessidade que persegue o sacerdote do antigo pacto de repetir seu ministério. Desseponto de vista também, Jesus não somente realizou o antigo sacerdócio judaico como também eliminou todas as suas imperfeições.

Por isso a Epístola aos Hebreus insiste tanto no ècpámí;. A obrade Jesus é ato definitivo e decisivo que, precisamente por ser único, traz aos homens a salvação. Aqui a ideia essencial é que nãose trata de um ato a ser renovado pelo próprio sumo sacerdote.Porém, um outro pensamento se encontra ainda como pano de fundo: este ato tampouco pode ser renovado pelos irmãos, apesar dasolidariedade do sumo sacerdote com a humanidade destes. "Uma

vez", ècpá7ta%, significa aqui "de uma vez por todas": "entrou deuma vez por todas no lugar santíssimo com o seu próprio sangue,tendo obtido uma redenção eterna" (Hb 9.12); veja também 9.26;"somos santificados pelo sacrifício do corpo de Jesus Cristo, deuma vez por todas"  (10.10). No capítulo 10.14, "uma vez" significa igualmente "para sempre" (eíç tò ôirjveKéç). O acontecimentohistórico único, irrepetível, possui um valor redentor decisivo e

infinito. O que Jesus, o sumo sacerdote, realizou sobre o planoterreno é, por conseguinte, o centro de toda a história da salvação,

E. KÃSEMANN, op. cit.  (cf. p. 116, nota 200), p. 136 s.

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CRISTOI.CHUA  MO No VO I -:.STAMI-:NTO 133

o divisor (meio) do tempo. Todo o cullo posterior centra-se nesteacontecimento histórico: a vida humana vivida  de uma vez portodas por este sumo sacerdote, coioada <U> uma vez por todas pela

morte expiatória que dá a esta vida sua plenitude e sua perfeição.

Deste ponto de vista o culto cristão não c possível senão sob a condição de respeitar absolutamente este é<ptxTtaS;. É verdade que é inexatoqualificar a missa católico-romana como ''repetição" do sacrifício deJesus, como o fazem, amiúde, os protestantes.226 Os teólogos católico-romanos sempre recusaram esta interpretação e têm afirmado que se tra

taria de uma "atualização" do sacrifício de Cristo. Porém, não é isto jáum ataque ao è<pcbia£ da Epistola aos Hebreus, em particular quando sequalifica a missa de ''sacrifício"? O sacrifício, como tal, não pode ser"atualizado". Senão, corre-se o perigo de recair ao nível do antigo sacerdócio judaico, no qual o sumo sacerdote deve repetidamente oferecer osacrifício. Um culto cristão fiel aoè(pá7tc(£ deve evitar toda tentação, pordébil que seja, de "reproduzir" este ato central em lugar de deixá-lo alionde o próprio Deus o Senhor dos séculos o tem colocado: em um

momento preciso do terceiro decénio da nossa era Oqueéatual operantec eficaz em nosso culto são as consequências  deste ato salvador e não oato em si O Senhor presente no culto é o Kyrios da igreja e do mundoelevado à destra de Deus o Senhor que sobre a base de seu ato expiatóriocontinua sua obra de mediador é o ressuscitado A relação entre sua crucificação e a celebração da eucaristia é indicada pelas palavras Eic tfivéufiv àváuvnõ"iv "em memória de mim" o que quer dizer:em lembrança do ato que eu realizei em virtude do qual eu estarei no meio de vós

como o Senhor ressuscitado

É por isso que o autor da Epístola aos Hebreus insiste tantosobre o fato de Jesus ser, na qualidade de sumo sacerdote, o mediador de um novo pacto com Deus: "É por isso que ele é o mediador de um novo pacto" (9.15). No capítulo 12.24, igualmente selhe chama SiaOfjicriç véocç u,£0"í/niÇ. Aqui o sumo sacerdote se

une de novo com o Ebed lahweh, que tem também por função orestabelecimento do pacto com Deus.

'•"Cf. O. CULLMANN, Christ et le Temps, p. 120.

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134 Oscar Cullmaim

Chegamos assim ao problema do efeito duradouro e permanente deste ato único sobre os crentes. Cristo torna-se o àp^rr/óç,o chefe de uma nova humanidade, o autor (ocmoç) da salvaçãopara quantos o obedeçam (Hb 5.9). A correspondência é perfeita: obedecem ao Cristo, como o próprio Cristo obedece ao Pai.Já vimos que ele faz deles xéXeioi, assim como Ele próprio tor-nou-se o TéXeroç. Em um plano mais elevado, ,hes dá capaciiaçãopara apresentarem-se diante de Deus, assim como o sacerdote doantigo pacto lhes tornava aptos para render-lhe culto. "Por um sósacrifício conduziu para sempre à perfeição aqueles que são santi

ficados" (Hb 10.14). TeXeioíjv é quase sinónimo de áyiáÇeiv.Igualmente, no capítulo 2.11: "Pois o que santifica e aqueles quesão santificados provêm de um só".

A Epístola aos Hebreus não diz como se deve representar arelação entre o ato único de Jesus e a santificação daqueles quesão levados à perfeição, fazendo-se abstração da fé de cada um.A Epístola se limita a constatar o efeito deste ato. Por analogia

com Rm 5.12 ss., pode-se talvez pensar que esta relação é paralelaà que existe entre Adão e a humanidade pecadora. Porém, na Epístola aos Romanos, esta relação tampouco é explicada senão meramente constatada.-27 A interpretação que Agostinho dá sobre elanão se encontra explicitamente no Novo Testamento.

Considerando a importância dada à humanidade de Jesus, asua solidariedade conosco na qualidade de sumo sacerdote, existi

ria a tentação de se buscar esta relação em uma Imitatio Christi.De fato, uma expressão tal como ctp%n.YÓç poderia sugerir umaexplicação deste género e se pode descobrir já na Epístola aosHebreus alguns indícios do que será mais tarde a ideia de "imitação de Cristo". Contudo, a importância capital dada ao ètpáTca^mostra que, segundo nossa Epístola, uma imitação de Cristo não épossível sem a condição de se reconhecer de antemão que não

podemos imitar a Jesus: ele é sem pecado e nós somos pecadores;ele oferece o sacrifício de sua morte expiatória, do qual somos

Cf. abaixo, p. 223 ss.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 135

incapazes. O ato decisivo de obediência que, precisamente, faz denós,  TÊXEIOI,  é inimitável.228 Assim, como em Paulo, a relaçãoentre nossa perfeição e a do sumo sacerdote se encontra unicamente na fé no ècpáixa do ato sacrificial de Cristo.

* * *

Em Hebreus 6.20, encontramos no termo irpó5popioç, precursor, outra maneira de caracterizar as relações entre o sumosacerdote e os crentes. Este título apresenta um novo aspecto daobra sacerdotal de Jesus: o de  glorificado. Até aqui temos vistoque o Cristo, graças a sua vida humana que culmina em sua morteexpiatória, se converteu no autor (ocíxioç,  àç>%r|yóç, Hb 5.9) dasalvação dos homens. Porém, ao "penetrar mais além do véu",como precursor, leva também consigo os seus em sua ressurreiçãoe suas consequências. Certamente, este segundo aspecto estáinteiramente subordinado ao primeiro; é por isto que neste capítulo temos introduzido a noção de Jesus Sumo Sacerdote no grupodos termos cristológicos que se relacionam, antes de tudo, com aobra terrena de Jesus. No cap. 9.12b lemos ainda que "Ele entroude uma vez por todas no lugar santíssimo, com seu próprio sangue", porém, ao escrever isto, o autor se refere também à ressurreição, e a expressão rcpóôpouoç indica um pensamento próximoà afirmação que encontramos em Paulo229  e no Apocalipse deJoão:230 Jesus tornou-se por sua ressurreição o ApcuTÓTotcoç ixõvvefcpcòv A relação entre a ressurreição de Jesus e a nossa é análoga à que Paulo estabelece em  1 Co 15 12 ss

Porém, o autor sublinha, ademais, que desde então o sumo sacerdote permanece no lugar santíssimo, e que ali continua sua obra.Expressa ainda a mesma ideia quando, inspirando-se no Salmo 110.4,

" s Em INÁCIO DE ANTIOQUIA não ocorre o mesmo. Parece, com efeito, que afirmaque a perfeição pode ser encontrada pelo mártir que dá sua vida por Cristo.

"'Rm 8.29; Cl 1.18. Cf. 1 Co 15.20: ÒLiuxp%r\ tâx  K£KOip<onÉvcovc-;"> Ap 1.5.

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I'36 Oscar Cullinann

o proclama o sacerdote eiç tòv aíôva, por toda a eternidade(Hb 6.20), £iç  xò  8ir|V£Kéç, para sempre (7.3). Sacerdote

"segundo a ordem de Melquisedeque" tem o mesmo sentido que"sacerdote por toda a eternidade". Na segunda metade do cap. 7,estas expressões "por toda a eternidade", "para sempre", formamo  leitmotivm  que corresponde ao  leitmotiv  que é o è(pánaií,.Na qualidade de Sumo Sacerdote, Jesus cumpre pois um duploministério: por um lado, o do ato expiatório já realizado de umavez por todas; por outro, o daquela prolongação, da extensão desta

obra que dura por toda a eternidade. No fundo, não se trata verdadeiramente de um ministério duplo, já que tudo repousa sobre oseu sacrifício único: "mas ele, porque permanece eternamente,possui um sacerdócio imutável" (Hb 7.24). Aqui este sacerdócio échamado à7tapápccTOÇ, imperecível. Isto é, que o reino atual doCristo é considerado também como uma obra sacerdotal. A noçãode sumo sacerdote permite, pois, ao autor estabelecer uma relação

tão estreita quanto possível entre a obra atual de Cristo e sua morte sobre a cruz: "é também por isso que ele pode salvar perfeitamente aqueles que por meio dele, se aproximam de Deus, vivendosempre para interceder por eles" (Hb 7.25). Trata-se aqui, incontestavelmente, de um sacerdócio que o Cristo exerce desde aressurreição e continua exercendo eíç, TO navce^éç, para todo osempre.

A ideia da mediação sacerdotal do Cristo presente está expressa nesta passagem (Hb 7.25) de um modo verdadeiramente clássico, quando aqueles a quem aproveita esta mediação são chamados7r.pooepxóu.evoi ÒY cunoí) TÔ> Beô> "aqueles que se chegam a Deuspor meio dele". Por certo este acesso repousa inteiramente sobre osacrifício realizado no passado por Jesus; porém, o autor pensaaqui no efeito, na prolongação deste sacrifício, ou seja, na obra

que Jesus Cristo, o Sumo Sacerdote, realiza agora que está assentado à destra de Deus.

:"C..  igualmente cap. 10.13 s

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 137

lim que consiste o ministério sacerdotal que Jesus Cristo realiza iitualmente por nós? Aquele que "vive para sempre", "intercede por nós"  (èvix>yxávei,  7.25); comparece  "por nós  diante deDeus" (9.24). Em outros termos: sua obra consiste em intercederpelos seus. O autor insiste em que é o Cristo presente quem intercede, o designado como o itáviOTE Çrôv (7.25), o Cristo vivo.112

A intercessão de Cristo - que, em virtude de sua obra realizada deuma vez por todas, é sempre eficaz - é ação autenticamente sacerdotal. No sentido de que "vive para sempre" deixou de intercederpor nós de uma maneira exclusivamente coletiva, como em suamorte expiatória; agora intercede, também particularmente, por cadaum de nós diante Deus. Vemos, pois, novamente, o quanto ambosos aspectos do ministério sacerdotal de Jesus, a obra realizada deuma vez por todas, e a obra que prossegue no presente, estãoestreitamente relacionadas, mantendo sua diferença: "Jesus Cristo, o mesmo ontem e hoje..." (Hb 13.8).

Se o Cristo vivo pode interceder por nós ainda agora é porque ele é o mesmo que viveu sobre a terra, sendo homem e tentadoem tudo como nós. Só por isso pode ainda hoje solidarizar-seconosco. Sua encarnação não foi, pois, necessariamente tão só pararealizar seu sacrifício único e perfeito, mas também para poderinterceder, hoje ainda, em nosso favor. A ideia de intercessão contínua, presente, do Cristo é de importância capital para a cristologia;e a dogmática deveria levá-la mais em conta. Veremos, aliás, que

não se trata de uma opinião particular do autor da Epístola aosHebreus. Voltaremos a vê-la em Paulo e, mais explicitamente ainda, nos discursos de despedida do Evangelho de João.

Temos na Epístola aos Hebreus uma linha que, partindo dosacerdócio de Jesus Cristo, conduza ao terceiro aspecto de sua

•'1•'Já a expressão familiar ao Amigo Testamento, "o Deus vivo," que reaparece muitas vezes na Epístola aos Hebreus (3.12; 9.14;  10.31;  12.22), indica que Deusopera de uma maneira constante. Enquanto que o Verbo Çíyv, aplicado a Cristo nocap.  7.8 (como em Lc 24.5 e Ap 1.18) evoca, sobretudo, a vitória obtida sobre amorte pela ressurreição, aqui (cap. 7.25) o autor deve ter pensado na ação deCristo que continua.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 139

os três aspectos fundamentais da ação de Jesus: a obra terrena única (è(páKot ), a obra presente do Cristo glorificado (éiç TO 5vr|VEKéç)

e a do Cristo que volta  (ÈK Ôeutépovj); "ontem", "hoje", "eternamente" (Hb 13.8). Poder-se-ia, quando muito, objetar que nesteesquema a obra do Cristo preexistente não foi levada especialmente em consideração. No entanto, mesmo fazendo abstração dafrase ousada (1.10) que faz de Cristo o Criador do céu e da terra,as especulações relativas a Melquisedeque apresentam ao menosalguns indícios neste sentido. Por outro lado, o autor atribuiu aJesus, além do título de sumo sacerdote, outro título cristológicoque indica justamente sua preexistência: "Filho de Deus".

Ademais, a doutrina do sumo sacerdote estabelece um elo entrea história da salvação, tal qual se desenvolve no Antigo Testamento,e as afirmações características do Novo Testamento: Cristo cumpriu todo o sacerdócio do povo de Israel, como cumpriu em suapessoa a função do Templo e o substituiu. O sacerdócio do antigopacto tornou-se supérfluo, pois Jesus compreende em sua pessoatoda a vida cultual do povo escolhido. Isto é o que também faz supora passagem de Mateus (27.51), em que se diz que o véu do Templose rasgou em dois: o evangelista deve ter pensado que Jesus é oSumo Sacerdote que nesse momento penetrou no lugar santíssimo.

Em conclusão, podemos dizer que, entre as doutrinas cristo-lógicas examinadas até aqui, a que diz respeito ao sumo sacerdoteé a que expressa, de modo mais exaustivo e adequado, a ideia queo Novo Testamento faz acerca de Jesus. Sua vantagem apóia-seem unir os três aspectos da obra de Jesus, embora o último, oaspecto escatológico, seja mais mencionado do que desenvolvido.Ademais, a relação recíproca destes três aspectos concorda com oconjunto do testemunho do pensamento cristão primitivo, já que,por um lado, o sacrifício da cruz se encontra no centro da obrasacerdotal de Jesus e, por outro, sua função mediadora presenteassume uma importância que corresponde ao interesse atual daigreja pelo Kyrios glorificado.

* * *

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140 Oscar Culhnann

É, então, na Epístola aos Hebreus que se encontra a única cristologia  completa  que gire em torno do sumo sacerdote.No entanto, a encontramos mais ou menos explicitamente emoutros escritos do Novo Testamento.-^ É por isso que o Filho doHomem que aparece no meio dos sete castiçais (Ap 1.13), é representado na figura do sumo sacerdote: "vestido de longas túnicas ecingido pelo peito com um cinto de ouro". O autor não dá muitaatenção a esta imagem, já que a do "Cordeiro" tem para ele maiorimportância.

A cristologia do sumo sacerdote se apresenta mais vigorosamente e com maior relevo no Evangelho de João. De todos oslivros do Novo Testamento é este o que, também a partir de outrospontos de vista, mais se aproxima da Epístola aos Hebreus. Não ésurpreendente, pois, encontrar aí novamente a ideia de Sumosacerdote. C. Spicq2-35 fez notar que segundo Jo 18.15 o discípulobem-amado era conhecido do sumo sacerdote judaico. Suas relações com os meios sacerdotais explicariam seu interesse pela função sacerdotal de Jesus. m  A tese de Spicq, segundo a qual o autorda Epístola aos Hebreus haveria tão-somente tomado emprestadosua cristologia sacerdotal dos escritos joaninos, não se impõenecessariamente: com efeito, esta concepção remonta, de maneiradefinitiva, ao próprio Jesus; e a igreja primitiva inteira aplicava o

'  M   A interessante tentativa de G. FRIEDR1CH,  "Beobachtungen zw messianishen Hohepriestererwartimg in den Synoptikerrí'   (ZTIiK, 53, 1956, p. 265 ss.) de descobrir, por onde quer que vá nos Sinópticos, indícios de uma cristologia do sumosacerdote, revela numerosas relações entre a ideia do sumo sacerdote e o resto dacristologia do Novo Testamento, mesmo que, em muitos casos, estes continuemproblemáticos. O autor parte da pressuposição de que a messianologia do judaísmotardio dependia em grande parte da ideia de sumo sacerdote messiânico.

21Í C. SPICQ, "L'origine johanniqtie de la concepcion du Christi-prêtre dans 1'Epítreaux Hiíbreux" (Ata Sources de ia tradition chrétieitne, Mélanges Aí. Goguet, ,950,

p. 258 ss.). Sobre o mesmo tema, cf. também, O. MOE, "Das PriestertumChristi imNeuen Testament ausserlialb des Hebracrbriefs"  (TliLz,  72, 1947, col. 335 s.);E. CLARKSON, "TlieantecedentsoftheHigh-PriestTheme in Hebrews" (Atiglican.Theol. Ri'v., 1947, p. 92 ss.).

2w Ademais, C. SPICQ chama a atenção ao fato de que a túnica de Jesus que, segundoJoão  19.23, era sem costura, lembra a vestimenta do sumo sacerdote.

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CÍOÍÍTOLOGIA  DO NOVO TESTAMENTO 141

SI 110 a Jesus. Assim, pois, pode não ter havido nenhuma dependência direta.

É primordial reconhecer, contudo, que o autor do quarto evan

gelho adere espontaneamente a esta concepção. Pensemos, antesde tudo, no capítulo  17. Esse capítulo forma parte dos discursos dedespedida e geralmente é intitulado de "oração sacerdotal". Estetítulo não é tão antigo como se poderia crer. Os Pais da igreja nãoo conheciam; embora, por exemplo, Cirilo de Alexandria assinalaa propósito de Jo 17.9 que Jesus opera aqui como sumo sacerdote.2"  O título, "oração sacerdotal", só foi aplicado ao conjunto

deste capítulo na primeira metade do século XVI, pelo teólogoprotestante Chytraeus, e logo se impôs, tanto na teologia protestante como na católica.

Chytraeus não se equivocou ao empregar esta expressão. Comefeito, toda esta oração não se explica senão pela consciência quetem quem a pronuncia de realizar uma função sacerdotal. Jesusdirige esta oração ao Pai, a fim de que santifique aos seus e os

torne capazes de recolher os frutos do sacrifício que ele, jesus, vaioferecer. A oração pela santificação dos seus (17.17) e por suaseparação do mundo (17.11 ss.) é uma oração tipicamente sacerdotal, com a diferença de que no Antigo Testamento tinha umcaráter cultual enquanto aqui deve entender-se num sentido moral,

 já que Jesus cumpriu o sacerdócio israelita. Como o próprio Cristo foi santificado pelo Pai (10.36), da mesma maneira os seus

devem ser santificados. Pe. Spicq faz notar, com razão,2-58 que amesma ideia de santificação se encontra em Hb 10.10.

Porém, é principalmente o segundo aspecto da cristologia daEpístola aos Hebreus que se desenvolve nos discursos de despedida: a ideia de que Jesus em sua qualidade de "iniciador" (àp^iryóç)e "precursor" (7tpóôpou.oç) precede os seus e continua assim nopresente seu ofício sacerdotal de mediador. Este é o sentido da

passagem da oração sacerdotal em que Jesus pede que aqueles que

17 MPG, 74, col. 505. Cf. C. SPICQ, op. cit., p. 261, nota 4.,KUEptire aux Hébreux,  I, 1952, p. 122 s

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Ij)2 Oscar Cuiimaim

o Pai lhe tem dado estejam com ele onde ele estiver (17.24). Igualmente a palavra relativa à "preparação das moradas na casa do

Pai" (14.2 ss.) corresponde, como mostrou Spicq, à "preparaçãoda cidade celestial" em Hb 11.16.Os escritos joaninos também são os que, com a Epístola aos

Hebreus, mais insistem na ausência de pecado em Jesus: "Quemdentre vós me convence de pecado?" (Jo 8.46); "nele não há pecado" (1 Jo 3.5).2-19

Porém, é a ideia de Paracleto a que mais nos parece estar em

relação com a de sumo sacerdote. Tem-se advertido, muito justamente, sobre o caráter jurídico do Paracleto.240 No momento, estecaráter está em relação com o papel de mediador do sumosacerdotete: "Se, todavia, alguém pecar, temos um rcccpáioliitoç,advogado, junto ao Pai, Jesus Cristo, o justo" (1 Jo 2.1). A funçãode Jesus é descrita da mesma maneira em Hb 7.25 e 9.24. Segundoas passagens do Novo Testamento que citam o SI 110, Jesus segue

operando atualmente como aquele que está à direita de Deus. Igualmente, o Evangelho de João afirma que Ele sustenta aos seus naterra pelo Paracleto. Jesus parece inclusive resumir todas as orações que dirige ao Pai e, portanto, toda sua função sacerdotal,pedindo a Deus que envie aos seus outro Paracleto, a fim de quepermaneçam eternamente com Ele (Jo 14.16). É este Paracleto que,de agora em diante na terra, tem de "santificar" aos crentes; é ele,

"o Espírito de verdade, a quem o mundo não pode receber", o queconduzirá em toda verdade aqueles que pertencem a Cristo. Ademais, se Jesus, em seus discursos de despedida, recomenda a seusdiscípulos dirigirem-se a Deus "em seu nome", indica com issoque continuará, uma vez glorificado, sua função sacerdotal, encar-regando-se, ele próprio, de apresentar a Deus suas orações. Tal é osentido da fórmula com que os cristãos terminam suas orações:

8ux 'Iricot) Xpiccoí).

Ver também a expressão de 1  Jo 3.7, onde Jesus é  chamado "justo".TH.  PREISS, "La justification clans la pensée johanníque" (Hommage etreconnaissancc Por ocasião do óO* aniversário de K. Barth, 1946, p. lOOss.).

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CRISTOLOGIA  DO NOV O TESTAMENTO 143

Temos constatado que a ideia de Cristo Sacerdote não éexclusiva da Epístola aos Hebreus, como se costuma pensar, masque está na base das afirmações cristológicas de outras passagensdo Novo Testamento. É verdade que nelas esta ideia não tem acoesão que tem na Epístola aos Hebreus; e temos de reconhecertambém que muito rapidamente a figura do sumo sacerdote deixará de ser tomada por centro de toda a cristologia, embora nãotenha nunca desaparecido completamente, e que tem, na históriados dogmas, um papel muito maior que a antiga cristologia doEbed lahweh,  por exemplo. Mais adiante ela servirá, sobretudo,para pôr em evidência um aspecto cristológico ao lado de outros, asaber, o múnus sacerdotcáe do Cristo.241 Se esta cristologia sacerdotal se perpetuou assim, é sem dúvida porque se encontra no centro de um dos escritos canónicos do Novo Testamento, a Epístolaaos Hebreus.

* * *

Temos chegado assim ao término da primeira parte do nossoestudo, em que nos propusemos estudar os títulos cristológicosprimordialmente relativos à obra  terrena de Jesus.

241 A distinção feita por HIPÓLITO entre o Messias de Judá e o de Levi, unidos napessoa de Jesus, é sumamente interessante. Esta distinção é importante tambémporque os textos de Qumran, o Documento de Damasco, e o Testamento dos DozePatriarcas, falam de uma esperança de dois Messias (Messias de Aarãoe Messias deIsrael) (cf. acima, p. 116 s.) L. MARIÈS, "LeMessieissudeLevíchezHíppolytede

 Rome" (Mélanges j . Lebreton, \,Rech. Sc. Rei,  1951, p. 381 ss.) provou que Hipólitodevia conhecer a tradição referida pelo Testamento dos Doze Patriarcas. Ver também, J. T. MILIK  (Revue Biblique,  1953, p. 291).

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SEGUNDA .PARTE

OS TÍTULOS CRISTOLOGICOS

REFERENTES À OBRA FUTURADE JESUS

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PEQUENO INTRÓITO

Antes de tudo, e para evitar qualquer mal entendido, é neces

sário começarmos sublinhando aqui que nossa divisão cronológica de nenhuma maneira tem a pretensão de encerrar cada títulocristológico nos limites estreitos do período a que cada um corresponde. Se estudarmos, nesta segunda parte, os títulos e noçõesque se relacionam, principalmente, com a obra escatológica deCristo, cabe-nos sublinhar este "antes de tudo". Como já temosvisto, não ocorre, praticamente nunca, que um título se relacione

exclusivamente a um só dos quatro aspectos cristológicos quetemos distinguido. Por exemplo, temos visto que a concepção desumo sacerdote se refere, sobretudo, à obra terreena de Jesus,porém, concerne também em grande parte à obra presente do Cristo glorificado e, inclusive, à sua obra futura. A distinção quetemos feito se justifica por razões práticas; seria, pois, completa

mente falso ver nesta distinção uma espécie de esquema imposto àforça à cristologia do Novo Testamento. Ela tem, essencialmente,um valor metodológico: permite distribuir a matéria e tratá-la deuma maneira conforme à teologia do cristianismo primitivo e evita estabelecer de um modo arbitrário a ordem das noções a seremexaminadas; permite-nos, pois, apoiarmo-nos sobre as ideias doNovo Testamento preferivelmente às interpretações cristológicas

da dogmática posterior.Por outro lado, temos de repetir que as diversas noções que

estudamos não são na realidade tão rigorosamente diferenciadasumas das outras, como poderia parecer. Influenciam-se reciprocamente em grande medida e esta interpretação já se efetuou, por um

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T48 Oscar Cullmann

Ocorre frequentemente que um título abarque não somente concepções que lhe sejam próprias como também outras que se ligama um outro título.

Não é possível, então, traçar limites absolutamente rigorososentre cada título ou função cristológica mencionada no Novo Testamento. Convém operar por distinção e analisar as diversas concepções uma após a outra, mas sob a reserva expressa de que nãose poderia excluira priori a possibilidade de influências recíprocas.

Esta reserva já se impõe para o prirne ho destes títulos, ode Messias.  Embora aprovemos, em suas linhas gerais, a tese principal expostapor Jean Héringem sua obra: Le Royaume de Dieu etsavenue,  1937242 -obra particularmente importante para esta parte de nosso estudo - pare-ce-nos que o autor não escapou ao perigo de esquematização contra oqual nos pomos em guarda.

1Cf., igualmente, os complementos <jue ele fez a este texto em seu artigo "Messiejuifet Messie chrétien"  (RHPR,  18, 1938, p. 419 ss.) Uma tese análoga foi defendidapor A. VON GALL.

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CAPÍTULO I

JESUS, O MESSIAS(XpiGTÓÇ)

Este capítulo trata de um título cuja origem jaz, antes de tudo,na esperança escatológica do Judaísmo. Recordemos que o adjeti-vo "messiânico" é empregado quase como sinónimo de "escatológico" . Porém, sua aplicação a Jesus - no cristianismo primitivo,cuja concepção de tempo implica uma tensão característica entreo presente e o futuro - teve, por consequência inevitável que englo

bar também outras concepções cristológicas do Novo Testamento.Este título tornou-se como que um ponto de cristalização: doponto de vista exterior, quase todas as outras concepções ficaram-lhe subordinadas. É por causa disso, ademais, que falamos de"cristologia" sem termos exclusivamente em vista a noção de Mes-sias-Cristo.

Já no seio do Judaísmo, todas as noções relativas ao fim dos

tempos têm a tendência de vincular-se ao título de Messias, mesmo quando quase não têm pontos em comum.Na época de Jesus, encontramos entre os judeus ideias mui

to diversas e que costumam diferir radicalmente entre si acercado Mediador do fim dos tempos. Não existia, então, uma concepção única e firme acerca do Messias. Costumamos falar doMessias judaico, como se se tratasse de uma figura bem conhe

cida, com contornos rigorosamente demarcados. Sem dúvida, aesperança de todos se resumia num Redentor, que apresentava sempre traços nacionais judaicos. Porém, dentro deste enfoque comum a todos, podem apresentar-se os conteúdos mais

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150  Oscar Cuítmann

diversos.243 É verdade, também, que na época do Novo Testamento, um certo tipo de Messias se tornou predominante: aquele que

se pode chamar, grosso modo, o "Messias político", ou simplesmente, o "Messias judaico". Neste capítulo, o empregaremos nes-te  sentido  para simplificar;  porém, sem  esquecer que a palavra"Messias" não é ainda um termo técnico para designar unicamente esta concepção, embora, esteja em vias de chegar a sê-lo. Comefeito, certas ideias judaicas sobre o Redentor se formaramdeliberadamente por oposição ao tipo de Messias predominante,embora todas elas se classifiquem sob o mesmo termo comum: ode "Messias". No Novo Testamento os que adquirem preponderância são, precisamente, os conceitos e títulos cristológicos judaicos que têm um caráter diferente do de Messias político. Contudo,os primeiros cristãos nem por isso deixaram de adotar o título de"Messias" para designar a Jesus.

Para nos convencermos da importância que davam a este título, basta lembrar que, desde a época do Novo Testamento até nos

sos dias, "Messias" chegou a ser para os cristãos o título cristológicopor excelência: pois a palavra grega Xpurcóç (derivada de xptfo,ungir) não é outra coisa que a tradução da palavra hebraicamaschiach, o Ungido. Desde muito cedo, os cristãos adquiriram ohábito de associar o título de "Cristo" ao nome de Jesus. JesusCristo, pois, significa Jesus-Messias. Já nos mais antigos escritoscristãos que nos chegaram, as Epístolas de Paulo, o termo "Cris

to" mostra a tendência a converter-se em nome próprio (emboraPaulo, invertendo às vezes a ordem usual, escreve "o CristoJesus", evidenciando, assim, que não esquece a verdadeira significação deste título). Na época apostólica, o verdadeiro sentido dotítulo de Messias é, pois, conhecido. Deveríamos sempre nos lembrar, ao ler o Novo Testamento, que, no espírito de seus autores,"Jesus Cristo" significa correntemente "Jesus o Messias".

'É o que mostram F. J. FOAKES JACKSON e K. LAKE,   The Beginnings ofChrisúanity,I,  1920, p. 356. Cf. também, A. E. J. RAWLINSON,T  /ie NewTestament Doctrine of the Christ,  1926 (3" ed.. 1949)) p. 12 ss.; W. MANSON,  Jesus The Messiah,  1946, em particular p. 134 ss.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 151

No entanto, não temos que deduzir daí que as ideias ligadas;u>  título de "Messias" provenientes do judaísmo tiveram uma

importância particular para os autores cristãos que o aplicaram aJesus.  Se assim fosse, deveríamos consagrar a este capítulo umlugar bem central. Na realidade, só alguns traços - aliás, importantes - da imagem predominante do Messias foram apropriados pelos cristãos, enquanto que outros aspectos essenciais do Messias judaico não foram aplicados a Jesus. Se o título "Messias"acabou por impor-se de uma maneira quase exclusiva, isso prova

que podia englobar noções muito diversas; e que, por sua vez, sedevia recorrer a ele, se se quisesse tornar compreensível aos judeuso papel escatológico de Jesus.

Porém, se se pensa no caráter político tão marcante deste título judaico, estas vazões não bastam para explicar seu emprego exclusivopor parte dos cristãos. É necessário que alguns traços tirados da imagem predominante  do Messias judaico e aplicados a Jesus tenham

tido, para os primeiros cristãos, uma importância teológica particular.Será, pois, necessário examinarmos isto com muita atenção.O grande êxito do título "Messias-Cristo" é tão mais surpre

endente quando notamos que o próprio Jesus - voltaremos a falarsobre isso - sempre manifestou uma singular reserva quanto aoseu emprego, cada vez que se o fazia para designar sua pessoa esua obra. Que precisamente este epíteto de Messias (em grego:

Xpiotóç) ficou para sempre associado ao nome de Jesus, poderáparecer irónico; como também o fato de ser este título aquele quenomeou a nova fé: foi em Antioquia que seus adeptos receberampela primeira vez o nome de "cristãos", ou seja, de "messianistas"(At 11.26). Não é possível que tenham recusado completamente aimagem tão especificamente judaica de Messias.

Porém, temos de demonstrar, antes de tudo, que o próprio

Jesus jamais se autodelegou a missão que seus contemporâneosatribuíam, de maneira característica, ao Messias esperado. Umexame da concepção acerca do Messias político corrente na épocade Jesus, no pensamento e na esperança da grande massa do povo judeu, nos permitirá descobrir aí certos traços, ao menos, que

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152  Oscar Cullmann

podem ter sido atribuídos a Jesus e que justifiquem, assim, emalguma medida,o êxito deste título.

1. O MESSIAS NO JUDAÍSMO244

O particípio  mâschiach  significa o "Ungido"; é empregadone.ste sentido para designar em particular ao rei de Israel, a quemse chama "O Ungido de Iahweh" - alusão ao rito da unção real(1 Sm 9.16; 24.7). Porém, este título não se reserva unicamente aorei: todo homem de Deus, encarregado de uma missão para com

seu povo, também pode tê-lo. É assim que em Ex 28.41 o sacerdote é chamado o "Ungido",  mâschiach;  e, segundo I Reis 19.16,Eliseu deve ser "ungido" como profeta. Mesmo um rei estrangeiroe pagão pode receber este título quando o Senhor o encarrega deuma missão particular, ou seja, quando é instrumento do planodivino de salvação. É assim que em Is 45.1, o próprio Ciro é chamado de "Messias", ungido.245

Para dizer a verdade, no período monárquico o enviado especial de Deus é o rei de Israel e a expressão o "Ungido de Iahweh"geralmente indica o rei. O rei tem um caráter divino; a realezaisraelita é, pois, de "direito divino". São-lhe atribuídos, como sinónimos de "Ungido do Senhor", títulos que expressam a origemdivina de sua função: 2 Sm 7.14, por exemplo, o chama "Filho deDeus". Na base destas invocações se encontra a ideia de ser Iahweh

o verdadeiro rei de Israel; e o rei terreno, seu lugar-tenente queexerce esta função divina.

Cf., entreoutros, aeste respeitoP VOLZ, D /VEschatirf'>giederJiidischeitCeitieittáeim iwutestamentlidwii Zeituiter, 2a c<J., 1934; partie. p. 173 ss. - H. GRESSMANN, Der Messias,  1929. - W. KUPPERS, "'Das Messiasbild der spaijiidísclienApofcalyptifc"  (Ini, kirclil.  Ztschr. ,  2.1, 1933, p. I'J3 ss.; 24, 1934, p. 47 ss. -

 J. HÉRING, Le Royawiie de Dieu et sa vrnite,  1937.- S. MOWINCKEL, Han sonkoiumcr.  1951; cd. inglesa:  He  theit  Cometi),  1956. - A. BENTZEN,  ftiiif;  and Messialu 1954-Com uma abundante bibliografia, O. EISSFELD, art. "Chrisius 1"(RAC, l. H, col. 1250 ss.).Cf. ;i CSK*  respeito E. JENNI, "Die Rollc efes Kyrios bei Dculcrojesaja" (77/Z, 10,1954, p. 241 ss.).

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CRISTOLOGIA  f>0 NOVO TliSTAMF.f^O _153

Conforme 2 Sm 7.12 ss., Deus havia prometido a Davi queseu reinado duraria eternamente. E embora esta predição tivessesido brutalmente desmentida pela história, a esperança escatológicanão fez senão aderir com maior vigor a esta esperança não realizada:  é assim que o "Ungido de Iahweh", o "Messias", torna-se, poucoa pouco, uma figura escatológica (embora - coisa singular- o termomâschiach não seja empregado no Antigo Testamento como títuloescatológico).

Isto não significa que este "Ungido" aparecerá fora do âmbito terrestre. A palavra ''escatológico" deve ser tomada aqui em seusentido etimológico, ou seja, temporal. Pensa-se que é preciso umarealeza terrena para trazer a salvação futura. É assim que lemos noSalmo 89.3 ss.: "Fiz aliança com o meu escolhido e jurei a Davi,meu servo: Para sempre estabelecerei a tua posteridade e fumareio teu trono de geração em geração". Trata-se de uma esperançaescatológica que deve realizar-se inteiramente na esfera terrena.

Provavelmente foi durante o exílio, época em que o trono deDavi já não existia mais, que a promessa feita a Davi se projetoupara um futuro distante, em que a salvação deveria ser realizadacertamente no âmbito terrestre, porém, de uma maneira definitiva."Nesse dia, diz Iahweh Zebaoth, os filhos de Israel servirão ao seuDeus e a Davi, seu rei, que eu levantarei para eles." (cf. Jr 30.8ss.).  Os Salmos 2 e 72 anunciam, por sua vez, que todos os povos

deverão submeter-se ao rei de Sião estabelecido por Iahweh.Quando do exílio, é particularmente Ezequiel quem confereao futuro rei os traços precisos que caracterizarão, doravante, afigurado Messias. Segundo Ez 37.21 ss., o dia virá em que o reinode Israel inteiro será unido sob o cetro de Davi, eeste reinará eternamente.

Porém, a esperança da vinda de um rei da casa de Davi no fim

dos tempos assumiu suas formas mais vivas posteriormente, quando,  sob a dominação grega, o nacionalismo judaico alcançara seudesenvolvimento máximo. Esperava-se então um rei totalmenteicrreno, político, e não um ser celestial que apareceria sobre a terra de uma forma milagrosa. Segundo uns, por exemplo o redator

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CwsTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO  _155

tenham se combinado aqui: segundo uma, o rei messiânico instaura o reino definitivo, segundo a outra (sem dúvida a mais antiga) éo próprio lahweh quem o fará. Onde ambas ideias se apresentamassim acopladas, o rei messiânico (que, naturalmente, reveste muitomais os traços de um soberano terreno) inaugura uma época que jánão é a nossa, nem tampouco ainda a do "século vindouro", senãoque resulta ser, no fim das contas, uma época escatológica intermediária. Importa muito à concepção de tempo, própria do cristianismo, que houvesse, em certas correntes de pensamento judaico, esta "época intermediária".

 No Apocalipse de Esdras, o caráter político do reino messiânico aparece a plena luz.248 O Messias-rei aniquila os pecadores econcede sua graça aos bons que esperam, então, o fim dos tempos.Igualmente no Apocalipse de Baruque, o rei aniquila os inimigosde Israel e estabelece sobre a terra um estado de perfeição: a natureza é  mais fecunda, os animais perdem sua maldade, os eleitosgozam de longa vida e de saúde perfeita.249  Verdade é que muitosdestes escritos do judaísmo tardio que descrevem o futuro não mencionam expressamente o Messias; porém, fora de toda dúvida, pressupõem sua função.

Temos exposto, grosso modo, as concepções judaicas de umMessias-rei político. Porém, não esqueçamos que elas se associam,muitas vezes, a outras ideias sobre o Redentor esperado. É assimque no Documento de Damasco e nos textos de Qumran, o "Messias proveniente de Aarão e Israel" assume visivelmente, também, ostraços de sumo sacerdote. Esta mesma associação pode ser encontrada, novamente, nos Testamentos dos Doze Patriarcas.250

Antes de examinarmos como esta concepção de Messias foiaplicada a Jesus, resumiremos os pontos essenciais.

1. O Messias cumpre sua missão em um plano puramente terreno.

'"Cf. 4Ed. 11 s,, 13 e7.26 ss.J ,Ap. Bar. 72 ss.'"Cf. acima, p. 116 e os artigos de K. G.KUHN  e E. STAUFFER lá citados.

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156 Oscar Cullmanii

2. Segundo a opinião atestada pelos Salmos de Salomão, eleinaugura o fim dos tempos; segundo opinião mais recente, umperíodo intermediário. Porém, em todo caso, o eon em que aparece não é mais o "século presente". Do ponto de vista temporal, oMessias se distingue, pois, do profeta escatológico.

3. A obra do Messias é a de um rei político de Israel, seja seucaráter pacífico ou guerreiro.

4. O Messias judaico é da casa de Davi. É por isso que levatambém o título de "Filho de Davi".

2. JESUS E O MESSIAS

Jesus considerou a si mesmo como o Messias? Este é um dosgrandes problemas no estudo de sua vida como de sua doutrina.Quando se fala da consciência messiânica de Jesus, geralmente sedá a este adjetivo uma acepção muito ampla, e não a restrita dosSalmos de Salomão, por exemplo. Porém, neste capítulo, é este

sentido preciso e limitado o que adotamos ao indagar em que medida Jesus aplicou a si mesmo, ou recusou, as ideias particularesque no judaísmo estavam associadas ao título de Messias.

A este respeito temos de examinar três textos sinópticos:Mc 14.61 s. par.; 15.2 ss. par. e 8.27 ss. par. Em Mc 14.61 s. aquestão se põe com toda clareza. Trata-se do processo de Jesus.Caifás pergunta a Jesus: "És tu o Messias, o filho do Deus bendi

to?"

251

 Evidentemente, quer jogar-lhe um laço a fim de comprometê-lo, em qualquer que seja a sua resposta. Indubitavelmenteesperava uma declaração afirmativa, já que estimava que Jesushavia exercido seu ministério com pretensão messiânica. O sumosacerdote necessita de uma declaração messiânica pronunciadapelo próprio Jesus, para poder substanciar a acusação preparadacontra ele e denunciá-lo aos romanos como agitador político. Poispretender o título e a função de Messias, significaria que Jesusquer restabelecer o trono de Davi; portanto, estabelecer um

Para a vinculação entre "Messias" c "Filho de Deus", cf. abaixo, p. 367.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 157

governo independente. Desta maneira o sumo sacerdote teria ummotivo de acusação. Até mesmo uma resposta negativa não lhe

seria necessariamente desfavorável, pois desacreditaria Jesus aosolhos do povo: este, decepcionado, se desligaria dele, ou ainda,se voltaria contra ele. A resposta de Jesus, qualquer que fosse,devia, portanto, comprometê-lo.

Porém, qual foi sua resposta? Aqui se esboça, antes de tudo,um problema exegético e filológico. Segundo a explicação corrente, que parece também a mais natural, Jesus teria respondido

de uma maneira muito clara e sem equívocos pela afirmativa. Contudo, veremos que esta explicação não é tão segura como parece,se examinarmos os textos sinópticos paralelos e se nos referirmosao original aramaico, cuja existência devemos supor, ao menossegundo Mateus.

Por outro lado, Jesus acoplou à sua resposta uma frase pelaqual ele se atribui um papel discordante com o do Messias político

esperado pelos judeus. Segundo o texto grego de Marcos, Jesus respondeu: éyíí) eijii.252  Sem dúvida, isto significa "sim". No entanto,os textos paralelos de Mateus e de Lucas são diferentes. Em Mt26.64, lemos: cri) eírcaç, "tu o disseste". Esta expressão grega deveria sem dúvida significar "sim". Em compensação, as palavrasaramaicas correspondentes (FTXlK ÍÍDK) - supondo que devamosadmitir aqui uma correspondência literal -  não têm, de nenhum modo,

o sentido de um "sim" perfeitamente claro. Estas são, doravante,um meio de evitar uma resposta unívoca; podem, inclusive, encerrar um "não" dissimulado. O sentido seria, então, mais ou menos oseguinte: "És tu quem o diz, e não eu". Se é permissível compreender assim esta resposta, Jesus não teria respondido claramente nemsim nem não à pergunta capciosa do sumo sacerdote.

v  A  variante  GX>  èutocc çõi  KTX.,  ,testadd asmente eor rlggns ma mt se ri tos,  ,eve eerlido por origem uma tentativa de harmonização com Mateus. Muitos exegetas (porexemplo LOHMEYER, TAYLOR) no entanto crêem dever atribuir-lhe a prioridade,  porque graças a ela os textos de Mateus e de Lucas se explicariam mais facilmente. Neste caso, Marcos também teria conhecido a existência de urna respostaevasiva de Jesus.

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158 Oscar Cullmann

Esta interpretação, que traz consequências para outras passagensdo Novo Testamento,25-1  porém, à qual os comentaristas quase não dão

consideração, foi exposta no estudo sólido e bem documentado deA. MERX, Das Evangeiium Matthaeus nach der  syrischeni im Sinaiklostergefundennn Palimpsesthandschrift   (t. II, 1, de uma obra mais vasta: Dievier kanonischen Evangeiien nach ihrem ãltesten bekannten Texte), 1902,p.  382 - 384. Sua tese foi adotada particularmente por J. HÉRING, Le Royaume de Dieu et savenue,  1937 p. 112s. Porém, já na antiguidade, aresposta de Jesus não foi sempre considerada como afirmativa. Temos decitar, antes de tudo, ORIGENES. Em seu Comentário de Mateus (MPG13, col. 1957), escreve expressamente que a resposta de Jesus não foinem afirmativa nem negativa. "Ele não nega ser o Filho de Deus porémnão o declara expressamente". Orfaenes admite, pois que Jesus deu umaresposta evasiva

Não há certeza absoluta de que as palavras gregas ai>  eircaçtenham em sua origem o equivalente aramaico exato n~)D>í  KFiK.

C  ± T - — T   T  —

Mas isso é muito provável e, em todo caso, o sentido das duas

palavras aramaicas não é duvidoso, não significam "sim". Ademais, como já temos observado, a frase agregada a estas palavrasevoca uma ideia que não corresponde à imagem corrente e oficialdo Messias. Em todo caso, no texto de Mateus de nenhumamaneira temos uma precisão ou uma interpretação; é o que indicaa conjunção  nXr\v que introduz a frase:  "Mas vos digo: vereis oFilho do Homem sentado à direita do poder de Deus, vindo sobre

as nuvens do céu". A conjunção itkúv  tem o sentido de um "mas"acentuado, ou seja, que opõe a uma afirmação recusada outra afirmação^54 Pressupõe, pois, uma resposta prévia  negativa. Então,Jesus haveria dito assim: "Eu não respondo a esta pergunta masdigo outra coisa." E esta "outra coisa" que se segue não concerne ao

Mí  Na obra que vamos citar, A. MERX não toma por ponto de partida nosso trecho,

mas a resposta de Jesus à pergunta de Judas durante a última ceia: "Mestre, sou eu?(Mt 26.25). Ai, também, uma resposta evasiva de Jesus ("És r« quem o dizes"), quese harmoniza, notavelmente, com o contexto.

254 Segundo BLASS-DEBRUNNER,Gr oJ/i«i. D. neutest. Griechisch,!* ed., 1943, par.449, em Mateus e Lucas: "no entanto, não obstante"; em Paulo: "em todo caso".Cf. também W. BAUER, Wõrterbuch, 4a ed., 1952, ad voe.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 159

Messias tal qual os judeus esperavam, senão ao Filho do Homem,com quem Jesus se identificava.

Falaremos no capítulo seguinte danoção de "Filho do Homem"que Jesus opõe aqui, de certo modo, à de Messias. Por agora, tra-ta-se somente de descobrir a atitude de Jesus com respeito a aplicação a sua própria pessoa da ideia judaica de Messias. A afirmação relativa ao "Filho do Homem sentado à destra de Deus e vindosobre as nuvens do céu" não pertence à ideia messiânica quecaracterizamos no parágrafo precedente. O Filho do Homem é,

com efeito, um ser celestial; não é um rei terreno que deva dominar sobre o mundo depois de ter vencido os inimigos de Israel.Sob a forma que Mateus dá à resposta de Jesus, a oposição é clara.É por isso que ele parece ter dado uma tradução mais fiel do original aramaico. Poder-se-ia, pois, traduzir da seguinte forma: "És tuquem o tem dito; porém, eu te digo" - seguido logo da declaraçãorelativa ao Filho do Homem.

Contudo, temos de reconhecer que neste caso se esperaria um èycòbem destacado. Sua ausência se explica, talvez, pelo fato de que oevangelista, escrevendo em grego, já não compreendesse muito bem osentido aramaico das palavras cru etnocç. É certo que, em todo caso,Marcos não se deu conta de sua significação negativa, e que as tomoucomo uma afirmação ao traduzir èyá>  £ÍUA.2SS Porém, isto não exclui fundamentalmente a hipótese segundo a qual o matiz aramaico - que nãoequivale de nenhuma maneira a uma resposta afirmativa -  se encontrassena base do texto de Mateus, e talvez até na de Marcos.

A passagem paralela de Lucas (22.67 ss.) é um argumento emfavor desta explicação e confirma a suposição segundo a qual

'^ Esta interpretação pode também ter sido favorecida em Marcos pelo fato de que, noplano geral de seu evangelho, a declaração messiânica de Jesus, nessa passagemocupa um lugar importante: depois de haver sido reconhecido como Messias primeiro pelos demónios e logo depois pelos discípulos, eis aqui que, no ponto culminante de sua vida, seus inimigos lhe reconhecem como tal. - Sobre este plano deconjunto, comparar a obra instrutiva de J. M. ROBINSON, "Das Geschichtsverstãndnísiles Markus-Evangeliums" (AThANT,  30), 1956.

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Mateus teria conservado, por uma tradução literal, a expressãoaramaica original. À pergunta do sumo sacerdote, perguntando-lhe se é o Messias, Jesus responde: "Se vô-lo disser, não o acreditareis; também, se vos perguntar, de nenhum modo me respondereis.De agora em diante, o Filho do Homem estará sentado à direita doDeus Todo-poderoso". Vê-se que Lucas nos conservou a lembrança de Jesus haver respondido evasivamente à pergunta do sumosacerdote: se nega a responder por um sim ou por um não, e acrescenta ainda uma declaração relativa não ao Messias, mas ao Filhodo Homem. Assim, encontra-se confirmado o texto de Mateus talqual deve ser compreendido segundo o original aramaico: Jesus senega a reivindicar para si, sob esta forma, o título de Messias;porém, não responde, no entanto, diretamente com um "não", jáque, então, a ideia de Filho do Homem devia ser posta em relação,de uma maneira ou de outra, com a de Messias.

Porém, o resultado mais importante a que nos conduz o exame

dos textos de Mateus e de Lucas é que, em todo caso, mesmo fazendo abstração do original aramaico, Jesus corrige conscientemente apergunta do sumo sacerdote, substituindo o título de Messias pelode Filho do Homem. Jesus sabe que as ideias messiânicas judaicas*são essencialmente políticas, e nada está mais longe dele que semelhante maneira de compreender sua missão. Para prevenir de antemão todo mal entendido, evita escrupulosamente o emprego do

título de Messias. Porém, para sublinhar bem que nem por isso émenos certo que está encarregado de executar o plano divino desalvação para seu povo e para a humanidade, e que tem disso consciência, acrescenta logo a declaração sobre o Filho do Homem que,como um ser celestial, está, a bem dizer, mais próximo a Deus doque o Messias. A recusa ao título de Messias não significa, pois, denenhuma maneira que Jesus renuncie à sua pretensão soteriológica.

Muito pelo contrário, pois o Filho do Homem, no sentido que olivro de Daniel lhe dá, este ser celestial que vem nas nuvens do céu,excede e transcende a figura de um Messias puramente político.O que Jesus recusa é, por conseguinte, somente o papel político doMessias rei.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 161

Ao mesmo tempo, ele adota diante do Sinédrio a mesma atitude que em outros casos quando seus adversários, por formularem perguntas capciosas, querem comprometê-lo qualquer que seja

sua resposta. No presente caso é justamente nesta intenção que osumo sacerdote lhe põe a questão sobre o seu messiado. Jesus,desta vez, não se compromete tampouco, já que não responde,nem por "sim", nem por um "não". E o fez sem parecer insincero,pois na realidade aqui, como em outras ocasiões, sua resposta transcende a questão apresentada.

O segundo texto que nos toca examinar é Mc 15.2 ss. par.

Jesus comparece diante de Pilatos, que lhe pergunta: "És tu o reidos judeus?" O título de "Messias" se traduz aqui em categoriasromanas. Para o governador romano, o Messias é o "rei dos

 judeus": é somente nesta perspectiva que o assunto é susceptívelde interessar-lo.256 Em sua denúncia, os Judeus, provavelmente,devem ter empregado o termo "rei". Jesus responde: "Tu o dizes"(cn> Xéyeiç). A resposta é literalmente a mesma em Mateus e em

Lucas. É provável que aqui também os evangelistas tenham compreendido a expressão gregací> XeYeiç no sentido de "sim". Contudo,  é possível igualmente se pensar em uma resposta evasiva.O diálogo relativo ao rei "que não é deste mundo" - diálogo que,no Evangelho de João, segue a pergunta de Pilatos (Jo 8.33 ss.) -poderia, em todo caso, fazer compreender o texto nesse sentido eisto estaria em perfeito acordo com a conclusão que se depreende

do interrogatório de Jesus diante do sumo sacerdote, tal qual orelatam os Sinópticos. E, com efeito, notável que, sempre segundo Mc 15.2 ss., Pilatos não reaja como seria normal de se esperarse Jesus houvesse realmente afirmado ser "rei dos Judeus". No texto paralelo de Lucas, depois de haver escutado a resposta de Jesus,Pilatos declara: "Eu não encontro culpa alguma neste homem"(23.4). Como poderia haver dito isto, ele que era encarregado, em

nome do Império Romano, de reprimir e castigar toda pretensão à

•"* Sobre o papel dos romanos no processo de Jesus, cf. nosso estudo, Dieit et César,1956, p. 27 ss.

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realeza nas províncias submetidas à sua autoridade, se houvessecompreendido a palavra de Jesus como uma resposta afirmativa àsua pergunta? Como não haveria interrompido imediatamente ointerrogatório, já que a acusação teria sido, incontestavelmente,provada?

O terceiro texto concerne à cena, muitas vezes já mencionada, de Cesaréia de Filipe (Mc 8.27 ss. par.) e em particular àconfissão de Pedro. "Pedro lhe disse: Tu és o Messias" (Mc 8.29).Segundo a explicação geralmente admitida, Jesus nesta ocasiãohaveria aceitado expressamente que Pedro proclamasse seumessiado. Porém, esta interpretação é influenciada pelo texto deMateus que insere neste lugar a famosa declaração: "Tu és Pedro...etc",  declaração que, sem dúvida, não pertence a este contexto.257 É, então, em Marcos que devemos examinar mais de perto a reação de Jesus à confissão de Pedro. Lemos em Mc 8.30:"Advertiu-os Jesus de que a ninguém dissessem tal coisa a seurespeito. Então, ele começou a ensinar-lhes que era necessário

que o Filho do Homem sofresse muito, que fosse recusado pelosAnciãos, os principais sacerdotes e os escribas e que fosse mortoe ressuscitasse depois de três dias".

Admite-se comumente que, ao proibir a Pedro e aos outrosdiscípulos falar disso, Jesus implicitamente teria aceitado a confissão messiânica de Pedro, e que somente teria acrescentado quedevia sofrer e morrer. Porém, já temos visto, ao estudarmos anoção de Ebed lahweh, que o sofrimento é dificilmente compatível com a esperança messiânica judaica.

Na realidade, devemos constatar que aqui também, frente àdeclaração messiânica de Pedro, Jesus não diz nem sim nem não.Antes, mantém silêncio acerca desta confissão e fala, como nasoutras passagens citadas, do Filho do Homem que deve sofrer muito. E quando Pedro quer desvia-lo deste sofrimento, lhe atira norosto a tremenda acusação: "Para trás de min, Satanás!" (Mc 8.33).

Cf. O. CULLMÂNN, Saint Pierre, 1952, p. 154 ss. e abaixo, p. 366 s.

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Que significa esta repreensão, senão que Jesus vê uma tentaçãosatânica na concepção de Messias que Pedro defende aqui,e que já tinha, sem dúvida, no momento de sua confissão? Jesusadmite, pois, que o diabo, que desde o batismo lhe havia propostoaceitar o papel de Messias político, se serve desta vez do discípuloPedro para desvia-lo de sua verdadeira missão e para leva-lo aassumir um papel político.258  A extraordinária vivacidade com queJesus reage em Cesaréia de Filipe mostra o quanto a intervençãode Pedro o afetou. Não se trata de ser rei de Israel desta maneira,pois sem dúvida desde seu batismo, como o temos visto, Jesustem a firme convicção de ter de cumprir sua missão pelo sofrimento e pela morte, não pelo estabelecimento de uma dominaçãopolítica.

Não é por coincidência que, segundo os Sinópticos, o diaboataca a Jesus imediatamente depois do batismo. Os três evangelhos sinópticos estão de acordo em colocar aí a cena da tentação.

Se a explicação que temos dado ao relato do batismo de Jesus écxata, então nesse momento ele adquiriu a certeza de que deviarealizar sua função divina morrendo pelo seu povo como  Ebed

 Iahweh. É contra isto que o diabo se lança prontamente, por compreender que a realização desta missão, da parte de Jesus, significaria o fim de seu próprio reinado. Por outro lado, sabe que ooutro caminho, o do Messias rei político, faria de Jesus seu servo

obediente. Assim lhe mostra "todos os reinos do mundo e sua glória" dizendo-lhe: "Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares".(Mt 4.8 s.). É Com razão que Mateus coloca esta tentação, querevela o sentido de toda a cena, como uma coroação ao fim dorelato; e como também depois em Cesaréia de Filipe, na presençade Pedro, a resposta de Jesus é também: "Para trás de mim, Satanás!" A oferta que o diabo faz a Jesus de dar-lhe todos os reinos da

(erra, corresponde, com efeito, exatamente ao que o judaísmo oficial esperava do Messias.

'1!!Cf. também I. M. ROBINSON, op. cit., p. 75.

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1-64 Oscar Cullmann

Esta maneira de conceber seu papel de Salvador devia, noentanto, ser particularmente sedutora para Jesus; é de fato suatentação particular. Não se pode ser tentado senão pelo que nos atraisecretamente. Jesus não deve ter sido, pois, inteiramente impermeável à ideia corrente de um Messias político.259 Por isso combateu esta tentação com tanta energia, desde o seu batismo. Por outrolado, a proposta de Pedro a Jesus mostra até que ponto esta concepção o tocava de perto, inclusive àqueles que o rodeavam maisproximamente; pois Pedro, neste caso também, deve ter sido orepresentante de todos os discípulos. Não sem razão Marcos

escreveu que Jesus olhou para todos (Mc 8.33) lançando a Pedroesta palavra severa: "Para trás de mim, Satanás!" Ele conheciabem o sonho secreto que agitava o cérebro de todos os seus discípulos, a esperança de vê-lo assumir a função gloriosa de umMessias político; pois eles haveriam de beneficiar-se com isso.Para eles fazer parte dos íntimos de um Messias, rei poderoso,seria algo muito diferente de ser discípulo de um condenado à

morte. O pedido dos filhos de Zebedeu em relação aos lugares dehonra no reinofuturo, mostra claramente que tipos de pensamentos abrigavam. Se abandonaram a seu mestre no momento de suaprisão e tomaram o caminho da fuga, isso não se explica somente por sua debilidade humana, mas também por sua desilusão aover que Jesus não correspondia, absolutamente, à imagem judaica do Messias rei.

Não é errado buscar também nesta desilusão a razão subjetiva datraição de Judas Iscariotes.260 Os relatos sinópticos mostram que, deaccr-do corn a mais antiga tradição, a cobiça não pôde ser o motivo principal.Judas Iscariotes aparece como representante extremo de um pecado que

 jazia latente em todos os discípulos. O relato de Cesaréia de Filipe mostra que o diabo não somente estava ativo em Judas como às vezes tam-

2WEm nosso estudo já citado, Dieit et César,  p. 15 ss., mostramos como Jesus tinhaconstantemente que lidar com a questão dos zelotes.

2M1 Sobre a históriadas explicações desta traição, cf. K. LUTHI, Judas Iscariot in derGeschichte der Auslegung von der Reformation bis in die Gegenwart, 1955.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMEÍ^TO 165

bém em Pedro, o representante de todos. É o pecado de todos  os discípulos que se personifica em Judas. O diabo que está ativo em todos emJudas triunfa. A coisa seria tanto mais plausível se Judas Iscariotes tives

se pertencido ao partido dos zelotes (como se pode supor se vincularmos"Iscariotes" a  sicaríius).26 '

Importa sublinhar que Jesus via por detrás da concepçãomessiânica do Judaísmo de então, a obra de Satanás. Assim seexplica o que se chama, desde W. Wrede, o "segredo messiânico".262

Não temos, pois, que interpretar a proibição feita por Jesus de

proclamá-lo como o Messias - proibição que reaparece semprenos Sinópticos - como o faz Wrede; com efeito, não se trata dealgo inserido posteriormente destinado a explicar aos primeiroscristãos porque Jesus, durante a sua vida, não foi reconhecido comoMessias.263

Seria levar ao extremo o princípio da "a história formativa" (já aplicada por Wrede antes da aparição da Formgeschichte  propriamente dita),não investigar sequer se tal ou qual motivo dos Evangelhos (neste caso, osegredo messiânico) tern um fundamento na própria história. Esta nãopode reduzir-se a uma soma de teorias apologéticas da comunidade primitiva.

•'"' Cf. a este respeito O. CULLMANN, Dieu et César, p. 18 s.:'' 2 W. WREDE, Das Messiasgeheimnis in den Evangelien,  1901. Cf. a este respeito H.

J .EBELING, Das Messiasgeiíeimnis unddie Botschchaft des Marcus-EvangeUsten,1939, e E. PERCY, Die Botschaft Jesu, p. 271 ss. Veja-se também abaixo, p. 187,nota 302, e 204, nota 330.

•''•' H. J. EBELING, op. cit., p.  167 ss,, sublinha, ademais, um motivo literário paralelodos evangelistas: a incompreensão dos discípulos, contrastando como um fundosombrio com o esplendor radiante da revelação trazida por Jesus. - E. PERCY,  op.í.7/ ., adota, em linhas gerais, a tese de WRÉDE, modificando-aem um ponto: admitea existência, desde o começo, de uma tradição relativa à consciência messiânica deJesus; esta havia sido transformada mais tarde por meio da teoria do "segredomessiânico", de modo a corresponder à fé em Cristo, tal qual se havia constituído àluz da cruz e da ressurreição. O "segredo messiânico" serviria para justificar a ideia(.(ue a comunidade fez do Cristo depois da cruz e da ressurreição. Temos que reconhecer que os sinópticos não revelam nenhum indício sério em apoio desta tese.Encontra-se, em troca, no quarto evangelho. Cf. O. CULLMANN, Les sacrementsdans VEvangile joliannique,  1951, p. 19 ss.

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166 Oscar Ciálmann

Esta proibição provém, na realidade, do próprio Jesus, e seexplica muito naturalmente por seu cuidado em impedir uma proclamação que pudesse favorecer  uma  falsa interpretação de suamissão -  precisamente a que reconhecera e combatera como umatentativa diabólica. Daí sua reserva até o último momento comrespeito ao título de messias.264

O próprio fato de que se trate de uma reserva, e não de uma recusa, meparece  ser a  melhor prova  de que  aqui estamos diante  da  história,  e nãodiante  de uma  teoria cristã primitiva. Convém afirmá-lo também contra

R. Bultmann,  que em sua Theologie  des  Neiten Testanients,  1953, p. 32, sealia inteiramente à tese de Wrede.í<í5  Não é só nas "frases redacionais" queaparece  a reserva  de  Jesus. Se Bultmann  não pode admitir que a ideia deMessias  foi recusada  por Jesus em  favor  da de Filho do Homem,  é porque nega igualmente  a  Jesus toda convicção de ser o Filho do Homem.

As três passagens sinópticas que temos comentado estão, pois,inteiramente de acordo no que concerne à atitude de Jesus com res

peito à ideia de Messias. Jesus não recusa verdadeiramente o títulode Messias, mas antes, manifesta para com ele grande reserva. Ademais, quando os sinópticos empregam  a palavra, quase nunca é opróprio Jesus quem a aplica a si; são outros que lha atribuem.266

Não ocorre o mesmo no Evangelho de João267 que ainda confirma nossa conclusão de um outro ponto de vista. Sem voltarmos

1M  E. PERCY, op. cit., p. 272, está  de acordo  com WREDE  em  recusar  a  opiniãoexpressa aqui. Seus argumentos são de um caráter geral e, por conseguinte, poucoconvincentes. Segundo cie, Jesus, em geral, não se guia por considerações de prudência. Porém, é sobretudo o argumento seguinte que - em relação aos textos citados acima  -  parece-me dificilmente compreensível:  "a  gente  se  pergunta, comWREDE, por que Jesus não diz simplesmente que ele não tem nada que ver com oMessias político".  E, no entanto,  é  o que Jesus deu a  entender de uma maneirainequívoca e não somente segundo o Evangelho de João. Se não recusou expressamente o título de Messias, é porque o título não está necessariamente ligado à ima

gem do Messias político. Daí sua reserva, em lugar de recusa.;í5Cf. também  sua Geschichee der  synoptischcn Tradition, 2"  ed., 1931, p. 371 s."asCf. V. TAYLOR, The Naines of Jesus,  1953, p. 19.2f,7Cf. V. TAYLOR, op, cit., p. 20. Um só trecho parece contradizê-lo: Jo 4.26, a res

posta de Jesus à samaritana. Porém, aqui o evangelista atribui, sem dúvida, a Jesus,por iniciativa própria, o qualificativo corriqueiro de "Cristo".

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C^IUSTOLOGIA DO rsovo  TESTAMENTO 167

ao diálogo com Pilatos em que Jesus afirma que seu reino não édeste mundo, temos que mencionar João 6.15, no qual o povo quertorná-lo rei e onde Jesus, reconhecendo sua intenção, foge-lhesretirando-se, só, para a montanha.

Chegamos, portanto, à conclusão de que Jesus sempre observou a mais extrema reticência no tocante ao título de Messias, eque, inclusive, considerou como tentação satânica as ideias específicas que se agregavam a ele. Em certos momentos decisivos,substituiu o título "Messias" pelo de "Filho do Homem", comoque opondo um ao outro.268 Temos, enfim, visto que opõe cons

cientemente a ideia de  Ebed Iahweh  à de um Messias político.Que ironia o fato de ter sido Jesus crucificado pelos romanos precisamente como Messias político!

A seita de Qumran parece também ter se oposto ao idealmessiânico político, já que coloca o Messias sacerdotal acima doMessias real.269  Porém, esta oposição é colocada em um planomuito diferente do de Jesus.

Mas,  não houve pelo menos  um  aspecto do messianismo judaico que Jesus tenha podido aceitar? No que concerne ao títulode Messias, não houve de sua parte uma recusa direta, senão umagrande reserva frente a todas as imagens que se concentravam emtorno do messianismo político.

Se não o recusou categoricamente, é porque, em seu tempo,este título já não estava mais circunscrito a seu aspecto político;

comportava um elemento positivo que podia harmonizar-se com aconcepção que tinha de sua missão. Neste título de Messias seexpressa, com efeito, a continuidade entre o Antigo Testamento ea obra realizada por Jesus. O Messias cumpre este papel de medi-

•''*E. STAUFFER, "Messia oder Menschensohn" (Novum Testamentum, I, 1956, p. 81ss.) expõe, como J. HERING antes dele, uma tese análoga que leva, contudo, a umaposição extrema, quando pretende que Jesus nunca tenha se autodesignado comoMessias - inclusive no sentido apolítico. Pensa, com efeito, que ao designar-secomo Filho do Homem, Jesus não poderia, sem contradizer-se, designar-se tambémcomo Messias.

•'"''Cf. acima, p. 116 s. e 155 s.

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ador que o povo escolhido de Deus tinha que ter assumido em suatotalidade. Esta ideia se encontra, ademais, na base da maior partedos títulos cristológicos de origem judaica; o Messias o compartilha, em consequência, com outras figuras escatológicas do Judaísmo;  porém, é neste título onde se encontra sua expressão maisvigorosa. A concepção judaica de Messias tem um caráter nacional profundamente arraigado. O sentido de toda a história de Israel se condensa nesta figura. O elemento do messianismo que sepode aplicar a Jesus é o fato  de que o Messias, como tal, realiza amissão de Israel. Porém,  a maneira  em que Jesus a cumpre seopõe à esperança judaica, tomada em seu sentido mais restrito.

Muitas declarações de Jesus indicam haver ele designado a simesmo a tarefa de cumprir a função de Israel. Compreende-se,pois, porque admitiu, com certas reservas, ser chamado Messias,melhor dizendo, porque não recusou absolutamente o título masse contentou em evitá-lo.

Jesus não poderia, em vista de sua obra vindoura, escatológica,tomar alguns traços à imagem do Messias que ele devia categoricamente recusar para sua obra terrena. O fato de citar o Salmo 110em sua resposta ao sumo sacerdote (Mc 14.62 par.) faz supor quetenha incluído em sua esperança escatológica a ideia de uma futura dominação do mundo, - aqui e como sempre - porém, excluindo dela os caracteres políticos. Contudo, fica estabelecido que aofalar diante do sumo sacerdote sobre sua obra futura, ele não senomeia o Messias, mas, Filho do Homem, portanto, seguindo aDaniel, como um ser que transcende a história.

Fica-nos por examinar outro título que é uma variante do título de Messias; ou, de preferência, que designa o Messias de acordo com a sua origem: filho de Davi.

Temos aqui duas questões independentes uma da outra:Ia Jesus é verdadeiramente proveniente da família que a tradiçãofazia descender da casa real de Davi? 2a  Considerou Jesus a

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 169

origem davídica como uma condição essencial à realização de suamissão? Do ponto de vista cristológico, em suma, só a segundaquestão é importante; porém, como a primeira lhe está relacionada, nos é necessário falar dela brevemente.

Haveria também uma terceira questão: em que medida a comunidade primitiva atribuiu uma importância fundamental à filiação davídica, ecomo a combinou com a afirmação do nascimento virginal? Porém, estaquestão não vai ser discutida aqui, mas unicamente a atitude de Jesus aeste respeito. Ela não entra em consideração senão na medida em que

teria influenciado sobre a tradição evangélica relativa às declarações deJesus sobre esta questão.

Começaremos, pois, por averiguar se a família de Jesus retrocede sua genealogia até Davi. Só se pode pôr o assunto destamaneira, pois seria impossível verificar historicamente a exatidãode semelhante tradição, no caso de ter existido.

A maioria dos historiadores crê cumprir um dever ao negara existência de uma tradição familiar davídica na família de Jesus;270

o argumento que empregam, mais frequentemente,  é que esta tradição teria sido criada mais tarde pela igreja, para responder àpolémica judaica; pois, o Messias esperado devia sair da famíliade Davi. A comunidade primitiva teria, pois, postulado e afirmado posteriormente a filiação davídica de Jesus. Porém, esta hipó

tese não se impõe tão facilmente como muitas vezes se crê.Não podemos, por certo, nos apoiar nas genealogias dadaspor Mateus e por Lucas, por causa de suas divergências: elas diferem uma da outra em pontos importantes e estabelecem a vinculação entre Jesus e Davi por linhas genealógicas muito diferentes.Desde Annius de Viterbe (cerca de 1490), costuma-se resolver estasdivergências admitindo que a genealogia dada por Lucas seria a de

Maria, enquanto que a dada por Mateus seria a de José. Isto supõeque Maria também tinha ascendência davídica, como muitos pensa-

Cf., por exemplo, as considerações de M. GOGUEL, Jesus, 2a ed., 1950 p. 195 ss.

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1.70 Oscar  CuUmann

ram desde o século II.27'  Porém, não possuímos testemunhos maisantigos do que estes acerca desta opinião. Como quer que seja, aconfrontação das duas genealogias faz surgir dificuldades que

não podem ser descartadas, senão, graças a hipóteses e combinações complicadas.272  Por outro lado, pode alguém se perguntarse a afirmação da origem davídica de Maria não provém já deum desejo de harmonizar as duas declarações justapostas no NovoTestamento, uma das quais proclama a filiação davídica de Jesus"segundo a carne", enquanto a outra declara que nasceu de umavirgem.273 Em razão destas dificuldades - às quais se acrescenta

ainda o fato que em certos meios rabínicos já havia genealogiasbem prontas do Messias esperado - sem dúvida é preferível nãopartir das genealogias dadas pelos Evangelhos para saber se existia, na família de Jesus, uma tradição que a fizesse descender deDavi.

Estas duas genealogias entram, no entanto, em consideração,pois provam que entre os anos 70 e 90 já existia uma tradição bem

estabelecida, segunda a qual a família de Jesus seria provenienteda família real de Davi. Deve ser, por outro lado, sensivelmentemais antiga, por já ser atestada por Paulo no começo de sua Epístola aos Romanos (Rm 1.3); e como o apóstolo cita aí muito provavelmente uma confissão de fé da comunidade primitiva,274 pode-se concluir que esta tradição se formou bem cedo. Isto é importante,

Referências em W. BAUER, Das Leben Jesu im Zeitalter der neutestamentlichen Apokryphen,  1909, p. 13 ss.Um exemplo muito antigo de tentativa de harmonizar as duas genealogias é apresentado por um texto de JULIUS AFRICANUS, conservado por EUSÉBIO, Hist.EccL, 1, 7. Sobre o valor histórico das tradições genealógicas aí utilizadas, cf. G.KUHN (ZNTW,  22, 1923, p. 225 ss.).K. BORNHÀUSER,  Die Gebwis-und Kindheitsgeschichte Jesu. Versuclt einer

 zeitgenôssischen Auslegung von Matthãus I und 2 und Lukas  1-3, 1930, p. 22 ss.,recusa, é verdade, a possibilidade de que a genealogia dada por Lucas seja a deMaria; porém, a solução que ele propõe para reconhecer as duas genealogias como"históricas" e fazê-las concordar entre si, apelando ao costume do levirato, nosparece bastante artificial.Cf. CULLMANN,  Les premières cotifessions de foi,  1934, p. 4. Ver também,O. MICHEL, em seu Commentaire, p. 30 s.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 171

pois,  na ocasião os membros da família de Jesus ainda viviam.Não é absolutamente impossível, ainda que difícil, admitir que,sob seus olhos, essa tradição não se apoiasse em nenhuma informação que remontasse à época do próprio Jesus. É, pois, bem possível que a família de Jesus pretendesse, com efeito, remontar-se aDavi.275 No tempo de Jesus não ocorreu a nenhum membro dessafamília confirmar esta tradição pelo estabelecimento de umagenealogia completa, e se pode admitir que seja a igreja quem,mais tarde, se ocupou disto. Em sua origem, poderia tratar-se simplesmente de uma tradição de família, que não se preocupava em

demonstrá-la. Não podemos esquecer que para os judeus, pertencer a tal ou qual linhagem era importante para situar cada família

povo.no seio de seu povo.276

Hegesipo, autor judeu-cristã o de uma história da igreja antiga, daqual nos foram conservados alguns fragmentos, relata, segundo Eusébio,-77

que o imperador Domiciano, preocupado, apesar da destruição de Jerusalém no ano 70, com assegurar-se da lealdade dos judeus, teria ordenado certo dia investigar e fazer comparecer diante de si a todos os descendentes de Davi. Devia, pois, saber que os levantes messiânicos judaicosestavam ligados à esperança de um descendente de Davi que, fundamen-tando-se sobre sua pretensão à realeza, se lançariam contra os romanos.Hegesipo conta que nesta ocasião se denunciou e prendeu, também, aosnetos de Judas, irmão de Jesus. O imperador lhes teria perguntado seeram da família de Davi, ao qual responderam afirmativamente. Aí mesmo se havia informado de sua condição, para saber que todos estes não

possuíam mais do que 9000 denários e que trabalhavam a terra parapoderem viver. Para prová-lo, teriam mostrado suas mãos calejadas.Domiciano, convencido de que estes descendentes de Davi eram pobrese inofensivos os teria libertado desdenhosamente. Citamos esta históriapara demonstrar que a tradição davídica relativa à família de Jesus defato não era contestada.

275

Tese sustentada, entre outros, por J. WEISS, Das Urchristemum,  1917, 89; G.DALMAN, Die Worte Jesu,  2a ed., 1930, 262 ss.; E. STAUFFER, Theologie des Neuen Testaments,  1948, p. 261 s.

™ A este respeito, podemos nos recordar que Paulo, também, parece ter possuído umatradição familiar, segundo a qual ele era proveniente da tribo de Benjamim (Fl 3.5).

'"EUSÉBIO, História Eclesiástica, 3, 19 s.

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1.72 Oscar Cuttmcum

Estes testemunhos datam, é verdade, do fim do primeiro século,ou seja, de uma época em que os parentes de Jesus, por causa desteparentesco, estavam à frente do judeu-cristianismo na Transjor-dânia.278  Poder-se-ia, pois, ver na afirmação acerca da origemdavídica de Jesus um produto tardio de um interesse "dinástico"legitimador por parte dos judeu-cristãos. No entanto, a passagemcitada de Rm 1.3, mostra que muito antes e, até muito antes de Paulo, a filiação davídica de Jesus era indiscutível; e se nesta época,então, Tiago, irmão do senhor, já desempenhava um papel importante na igreja mãe de Jerusalém, não parece ter reclamado, todavia,para si -  no que lhe concernia particularmente - a filiação davídica.Ora, seria singular que a origem davídica de Jesus fosse afirmadatão cedo, sem que Tiago nada tivesse sabido acerca disto antes, poisesta afirmação lhe concernia de maneiramuito particular. Sem dúvida, este argumento não é decisivo. Parece-nos, no entanto, apoiar ahipótese segundo a qual a família de Jesus (como provavelmenteoutras famílias da época) possuía, senão uma arvore genealógica,279

ao menos, uma tradição oral, segundo a qual ela pertencia à linhagem de Davi. Isto não tinha nada de excepcional, pois, devia haverainda outras famílias que faziam remontar sua origem a Davi.280

Resta-nos, no entanto, apresentar uma questão mais importante: Jesus se autodesignou como o "filho de Davi"? Só temosum texto que nos possa informar a este respeito, é Mc 12.35 ss.par.: "Jesus continuava ensinando no templo e disse: Como dizemos escribas que o Cristo é o filho de Davi? Davi mesmo animado

sCf. H. J. SCHOEPS,  Theologie und Geschichte des Judenchristentums,  1949,p. 282 ss.

2nDeviam existir famílias providas de árvore genealógica: JOSÉPHE, em sua  vita,nos dá indicações detalhadas sobre seus ancestrais.Sobre outras famílias davídicas da época judaica tardia epós-cristã, cf. TH. ZAHN,

 Das Evangeliuin des Mailhãus, 2a

 ed,, 1905, p. 43, nota 6 . -A título de curiosidade,mencionamos aqui o exemplo de diversas famílias aristocráticas da Basileia quefazem remontar sua genealogia a Carlos Magno. A comparação, todavia, é imperfeita, pois, entre os judeus a questão da origem familiar não respondia a um merointeresse histórico: tinha uma importância teológica, já que dela dependia a situação da família no seio de seu povo.

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CRISTOLOGIA I -1 NOVO TESTAMENTO 173

pelo Espírito Santo disse: o Senhor disse a meu Senhor: Senta-te àminha direita, até que ponha a todos teus inimigos por estrado deteus pés. Davi mesmo lhe chama Senhor: como é ele então seu

filho?" Temos aqui das palavras de Jesus, uma das mais difíceis deser interpretada; daí que esta declaração foi explicada de maneirasmuito diversas. A dificuldade consiste, em grande parte, na extremaconcisão com que, segundo os Sinópticos, Jesus se expressa aqui.Quase se tem a impressão de que os próprios evangelistas já nãosabiam mais qual era exatamente o sentido destas palavras.

Segundo uma explicação muito generalizada, Jesus teriaexpres-samente negado, nesta passagem, sua origem davídica.25' Porém,isto não é tão certo como pode parecer à primeira vista. Em todocaso, é pouco provável que os evangelistas, que nos transmitiramesta perícope, tenham-na compreendido desta maneira. Eles mesmos, com efeito, estavam persuadidos da filiação davídica de Jesus,e dificilmente transmitiriam um logion no qual ela fosse contestada. Porém, é possível compreender estas palavras de outro modo.

O que Jesus nega não é necessariamente sua ascendência davídica,mas a importância cristológica dada pelos judeus a esta ascendênciapara a obra de salvação que ele haveria de realizar.

Jesus utiliza aqui o método de demonstração em voga na suaépoca. Cita o célebre Salmo real 110, do qual já temos falado emoutro contexto diferente e do qual tornaremos a nos ocupar.!S2  Ora,segundo a tradição, todos os Salmos são obra do rei Davi. É nisso

que Jesus funda sua argumentação. Segundo a intenção primitivado salmista, a palavra XvWas no nominativo significa, naturalmente,Deus; a palavra Kyrios no dativo designa o rei; é, pois, este últimoa quem se chama "meu Senhor". Originalmente, o sentido do Salmo era tão só este: "Deus disse ao rei: senta-te a minha direita,etc." Porém, o sentido do Salmo hebraico muda a partir do momento em que alguém se convence que não tenha sido composto para

-S 1Ct\  a tranqiiila segurança com a qual, por ex., E. MEYER,  Urspntng und  Anféingeáes Christentums, II, 1921, p. 446, expressa esta opinião.

•" Cf. acima, p. 118 s. e abaixo, p. 292 s.

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174 Oscar Cullmann

honrarão  rei, mas, pelo próprio rei, Davi. OKyrios no nominativosegue sendo Deus, porém o Kyrios no dativo não pode mais serconsiderado como o rei, já que é o mesmo quem fala. As palavras

"meu Senhor" devem, pois, designar o Messias.Uma coisa em todo caso é clara: Jesus combate aqui a opinião segundo a qual a ascendência carnal do Messias seja determinante. Busca refutar esta opinião mostrando então que Davi nãopoderia chamar ao Messias de seu "Senhor"; não poderia, comefeito, dar a seu descendente, a seu filho, o título de "Senhor", sedava alguma importância ao fato de ser o Messias seu descenden

te segundo a carne. O Messias que Davi chama seu "Senhor" deve,pois,  ser maior que Davi. Consequentemente, sua origem verdadeira não pode remontar a Davi, mas a alguém maior. Por detrásdesta palavra de Jesus estaria então a ideia desenvolvida, por exemplo, no Evangelho de João, segundo a qual o Cristo deve, na realidade, sua origem não aos homens, mas a Deus.

Se esta explicação é exata, a atitude de Jesus relativa ao título

de "filho de Davi" seria totalmente análoga à sua atitude para como título de Messias em geral. Isto é, que por oposição à esperançamessiânica corrente, ele recusa, também aqui, o ideal de um Mes-sias-rei político, e o recusaria tanto mais pelo fato de ser conhecida sua ascendência davídica.

Segundo R. BuHmann;f;j  e outros, não se trata de uma palavra

autêntica de Jesus, senão de um relato inventado mais tarde pela igreja.Porém, não se vê com clareza onde poderia ter-se originado estetheologounienon. Pensa-se, por exemplo, em uma origem helenística; estaexplicação choca-se com maiores dificuldades que a tese da autenticidade, poisa afirmação segundo a qual Jesus teria "nascido da descendênciade Davi segundo a carne" (Rm 1.3) parece ter pertencido a uma confissão de fé geralmente admitida. Ademais, o sentido do logion de Mc 12.35ss.,  deveria ser mais claro, se se tratasse de uma afirmação da teologia

posterior da comunidade.

Cf.  Gesch. d. .ynoptt Tradilion, 2'   ed.. 19331 p. 145 s.; e também:  Theologie des Neuen Testaments, 1953 p. 28 s.

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CRISTOLOGIA DO NO VO TESTAMENTO 175

Nosso texto não implica, pois, necessariamente que Jesustenha negado o fato  de sua filiação davídica. Isto se mostra quandoconfrontamos o texto com outra palavra de Jesus, na qual não negaseu parentesco segundo a carne com sua família, mas onde ele negaa isto qualquer importância decisiva. Trata-se de Mc 3.31 ss.: "Nisto chegaram sua mãe e seus irmãos e, tendo ficado do lado de fora,mandaram chamá-lo. Muita gente estava assentada ao redor dele elhe disseram: Olha, tua mãe, teus irmãos e irmãs estão lá fora à tuaprocura. Então, ele lhes respondeu, dizendo: Quem é minha mãe emeus irmãos? E, correndo o olhar pelos que estavam assentados aoredor, disse: Eis minha mãe e meus irmãos. Pois, qualquer que fizera vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe."

Aqui também Jesus fala de uma filiação ou de um parentescodiferente do da carne. É, pois, possível que em Mc 12.35 ss. Jesusnegue todo valor  cristológico  à filiação davídica, sem por issonegar necessariamente sua ascendência davídica. Sendo assim,Jesus haveria, pois, mostrado a respeito do título de "filho de Davi"a mesma reserva que ao título de Messias, sem recusar por isso,

categoricamente, os títulos em si.Assim, se encontra também excluída toda explicação psicológica

que fizesse derivar a "consciência messiânica" de Jesus da existência, emsua família, de uma consciência de sua ascendênciadavídica. iSJ  Se Jesusdeprecia tão categoricamente esta origem, este elemento psicológico, consequentemente, não poderia ter desempenhado um papel decisivo sobresua "consciência messiânica".

Chegamos, pois, à seguinte conclusão: Jesus não recusoudiretamente o título de "filho de Davi" quando outros davam-lho,285

porém, recusou energicamente a ideia de uma realeza política,associada a este título.

• sl  A. E. J. RAWLINSON,  The New Testament Doctrine of the Christ,  3a ed., 1949,p. 42, nota 3, contém uma observação neste sentido; esta tese havia sido defendidaem particular por F. SPITTA.

2t" Marcos e Lucas não contêm, a este respeito, mais que uma só referência: Mc 10.47

s. (Lc 18.38); porém, encontramos ainda outras cinco em Mateus (Mt 9.2.7;   12.23;15.22; 21.9; 21.15).

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176 Oscar Cultinann

No entanto, devemos fazer aqui uma observação análoga àque fizemos a propósito do título de Messias. Na medida em que

Jesus tinha consciência de realizar a missão do povo de Israel, aideia de realeza não estava em contradição com sua vocação;porém, ele dá a ela um conteúdo novo: segundo a expressão joanina,trata-se de uma realeza que "não é deste mundo".

3. A COMUNIDADE PRIMITIVA E O MESSIAS

Temos indicado que o título de Messias se impôs a ponto deapagar, ou ao menos de subordinar os demais títulos cristológicos:nenhum destes teve a honra de permanecer ligado para sempre aonome de Jesus.

A comunidade palestina primitiva estava bem longe de compartilhar da reserva de Jesus em relação ao título de messias; pelocontrário, à luz do acontecimento da Páscoa e da espera de um fimpróximo, a fórmula "Jesus é o Messias (Cristo)" se converteu emprofissão de fé. No Evangelho de Marcos, o qualificativo de Mes-sias-Cristo atribuído a Jesus é ainda relativamente raro. Torna-semais freqtiente em Mateus e Lucas, como também no Livro deAtos.286 Temos de observar, no entanto, que nestes escritos o título não tinha chegado ainda a ser nome próprio. Mesmo no Livrode Atos (que neste ponto é, sem dúvida, influenciado por fontesmais antigas), o sentido original da palavra "Cristo" segue domi

nando.Porém, quando o título "Cristo" torna-se nome próprio, é indí

cio de que a concepção especificamente judaica de Messias estáem retrocesso. Esta evolução deve ter se produzido, em particular,sobre o solo das comunidades  helenísticas, onde não existia uminteresse messiânico, no sentido original do termo. Resulta, paradoxalmente, que a transformação do título de "Cristo" em nome

próprio - transformação favorecida por seu emprego cada vez maisfrequente - o aproxime da ideia que o próprio Jesus se fazia acerca

Cf.  íi este respeito V. TAYLOR, The Names of Jesus,  1953, p. 19 s.

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C^RISTOLOGIA DO NOVO ThSTAM;iNTU 177

do Messias: este título é despojado, assim, de seu caráler nacional

e político.Podemos constatar em Paulo o início dcsla evolução. Certamente ele tem clara consciência de não ser a palavra "Cristo" nomepróprio; pois, costuma colocar o título de Crislo antes do nome deJesus.287  Porém, nos demais escritos do Novo Testamento, a transformação em nome próprio não cessa de progredir.

Mas,  como explicar que a comunidade palestina, contradi

zendo a atitude de Jesus, tenha empregado com predileção e conscientemente este título de Messias? Sobre este problema, temosque mencionar aqui, em primeiro lugar, as discussões entre os primeiros cristãos e os judeus. Com o auxílio deste título era possívelfazer os judeus de então compreenderem a fé dos discípulos deJesus.288  A isso se ajuntam razões teológicas. Recordava-se, porcerto - os Sinópticos o provam - que Jesus mesmo desconfiava do

título de Messias e o havia substituído pelo de Filho do Homem;porém agora, à luz de sua morte e sua ressurreição, se podia considerar legítimo proclamá-lo como o "Cristo". Conforme a vocaçãoque reconhecera a si mesmo, Jesus cumprira a missão de Israel; eeste cumprimento resplandecia agora com tal luz que as diferenças se apagavam entre o Messias político esperado pelos judeus eo Filho do Homem.

Na medida em que a comunidade primitiva tomava consciência de já viver nos tempos da consumação e de ser o "povo deDeus", o povo eleito, a ideia que o messiado se havia cumpridotambém em Jesus devia impor-se; não segundo o esquema político, mas segundo o esquema da história da salvação. A fim de trazer

!t7 Tampouco cremos que Rm 9.5 seja a única passagem onde Paulo tenha empregado

a palavra "Cristo" no sentido de "Messias", como pensa V. TAYLOR, op. cit., p. 21(e ainda aí com um sinal de interrogação). - A. STUIBER  (RAC,  t. 3, col. 25)utiliza, como nós, este critério: achar no emprego da palavra "Cristo" antes do nomede Jesus uma pista para buscar, na Igreja antiga, impressões da sobrevivência de suasignificação primitiva.

**K Ver por ex. o papel que a ideia de Messias tem na obra apologética de JUSTINO: Diálogo com o judeu Trifo.

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178  Oscar Cullmann

à luz a continuidade entre o antigo e o novo pacto, sublinha-setambém a filiação davídica de Jesus,289  à qual o próprio Jesushavia dado tão pouco valor. Assim, o título de "Filho de Davi"

adquiria uma importância tal que passou a estar inserido nas confissões de fé (Rm 1.3; Inácio, Esmirna 1.1; Trall. 9.1). O sentidoprofundo da realeza davídica era realizado no reinado de Jesus,elevado à destra de Deus. O fim ao qual tendia a realeza em Israelera, assim, alcançado.

Esta convicção da consumação em vias de realização permitia tomar emprestado certos traços do Messias político. Pelo fato

de já não ser mais o povo de Deus uma entidade política, mas acomunidade de discípulos de Jesus, estes traços purificaram a simesmos: a realeza do filho de Davi era, acima de tudo, a realezaque exercia sobre a igreja. Quanto mais vigorosa era a fé nestecumprimento, tanto mais potente tornava-se, também, a esperançada manifestação final e total de sua consumação. Pois tornamos aachar no cristianismo primitivo, como no próprio Jesus, a tensão

entre "o já cumprido" e o "por cumprir-se".Jamais a comunidade primitiva situou a realeza de Jesus somente

na instituição da Igreja. A esperança escatológica do cristianismo primitivo era demasiado forte para que esta tensão pudesse ser eliminada, comohaveria de ocorrer mais tarde na igreja Católica. A tese desenvolvida porJ. L. Leuba em L'"mstitution et Vevénement,  1950 (tese do paralelismoneotestamentário entre a ideia da "instituição" e a do "acontecimento"profético) deveria ser examinada à luz da tensão temporal entre o cumprimento já realizado e a consumação final.

Segundo a fé dos primeiros cristãos, é unicamente no futuroque a realeza de Jesus se manifestará de modo visível. Porém,aqui pode existir o perigo de uma interpretação política do messianismo de Jesus, e talvez não tenha sido sempre evitado no que dizrespeito à segunda vinda de Cristo. Em Paulo, em todo caso, não

se encontra nenhum traço de semelhante interpretação. Sem dúvi-

2KV Sobre a relação entre a filiação davídica e o nascimento virginal, cf. abaixo, p. 386 s.

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CRISTOLOGIA DO NOVO  TESTAMEPÍTO 179

d;i, ele também espera a aparição visível de Cristo no fim dos tempos,  porém, mesmo assim a ação escatológica do Cristo jamaistem um aspecto político. Por outro lado, quando a ideia da realeza

futura de Jesus se concentra em um reino de mil anos (como ocorre no Apocalipse, cap. 20.4), então as ideias recusadas pelo próprio Jesus para sua missão terrestre podem novamente surgir, massob uma nova forma e aplicadas à Igreja visível do fim dos tempos.290

Em conclusão, devemos reconhecer que o Cristianismo primitivo não só adotou a  terminologia  relativa ao Messias (assim

como indicamo-lo no começo deste capítulo) como também aplicou a Jesus, à luz do "cumprimento" e transformando-as em umsentido cristão, certas ideias próprias da esperança messiânica judaica. E isto, das três maneiras seguintes: Jesus apareceu sobre a terracomo filho de Davi; exerce a realeza sobre a comunidade dosfiéis;  virá como Messias no fim dos tempos. Estas ideias cristo-Jógicas retrocederam frente a outras, desde que o termo "Cristo"

passou a ser empregado como nome próprio, o que havia de pro-duzir-se sobretudo no seio das comunidades helenísticas.

1"Com J. HÉRING,  "SaintPaula-t-ilenseignédeuxrésurreçiions?(RHPR,  12, 1932,p. 300 ss.), nós não vemos (contra A. SCHWEITZER) a possibilidade cie incorporara crença tio "reinado de mil anos" à esperança escatológica de Paulo. Antes de tudo,a ideia de uma "segunda" ressurreição em vista do juízo nos parece incompatívelcom a doutrina da ressurreição, desenvolvida pelo apóstolo em 1 Co 15.35 ss. Paulonão conhece mais do que uma ressurreição: aquela em que os ressuscitados serevestirão do  soma pneumatikòn.  Sobre este ponto, H. BIETENHARD,  Dastausendjãhrige Reich. Eine biblisch-Theologische Studie, 1944, p. 65 ss., não trástampouco argumentos convincentes.

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CAPÍTULO II

JESUS, O FILHO DO HOMEM(bamasclia, mòç  TOÍ> >vQpómov)

Com a noção de Ebed Iahweh, a de Filho do Homem é umadas mais importantes das que estudamos. Sua aplicação cristológicatambém remonta ao próprio Jesus. Contudo - coisa singular - aspreciosas ideias cristológicas que aí estão contidas, nunca foramutilizadas em dogmática como mereceriam sê-lo. Nos sistemas ofi

ciais de dogmática, e especialmente nas discussões dos séculos IVe V, a ideia de Logos ocupa um lugar tal que todas as demais concepções cristológicas ficaram, mais ou menos, relegadas a segundo plano. Daí o fato de não possuirmos uma verdadeira cristologiabaseada na ideia de Filho do Homem. Já temos visto que a noçãode Ebed Iahweh explica de uma maneira exaustiva a obra de Jesusencarnados, sobretudo, o ato central da salvação: sua morte. Vere

mos, no curso deste capítulo, que a noção de Filho do Homem émais ampla e que, mais do que nenhuma outra, é suscetível dedescrever a obra total de Jesus.

Um primeiro fato basta, de per si, para demonstrar a importância deste título messiânico, a saber: este é o único que, segundoos Evangelhos Sinópticos, Jesus aplicou a si mesmo, enquantoque jamais designou a si próprio como "Messias". Intencionalmente, sem dúvida, substituiu o título de Messias pelo de Filho doHomem. É isto tanto mais importante pelo fato de que os própriosevangelistas jamais empregam este título quando querem expressar sua fé em Jesus. Já em sua época, é a invocação messiânica"Cristo" que domina. Mesmo este fato sendo claro colocam, não

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182 Oscar Ctillmann

obstante, na boca de Jesus o título de Filho do Homem, provandoque reproduzem uma tradição já fixada, segundo a qual o próprioJesus se autodenominou desta maneira.291

1. O FILHO DO HOMEM NO JUDAÍSMO

Como de costume, tomamos por ponto de partida a significação que o judaísmo dá à expressão que examinamos. Aqui sereveste de especial importância porquanto ao mencionar-se como"Filho do Homem" Jesus evoca uma concepção determinada,

difundida em certos meios de seu povo. E necessário, inclusive,desobstruir os limites do judaísmo: com efeito, trata-se - comopara o título de Logos que estudaremos mais tarde - de um conceito difundido nas outras religiões (se bem que com caracteresdiferentes). Poderia, pois, parecer indicado inserir aqui um parágrafo especial consagrado a esta concepção nas religiões pagãs.Nos limitaremos, não obstante, a tratar este problema no quadro

do judaísmo, pois não cabe admitir uma influênciadireta da ideiapagã de Filho do Homem em Jesus e no cristianismo primitivo.O contato com a figura de um "homem" celeste forânea ao judaísmo se produziu em solo judaico, de sorte que a relação entreJesus Filho do Homem, e o Filho do Homem pagão passa pelo

 judaísmo.A primeira questão que se esboça aqui é esta: o que signifi

ca a expressão mòç  TOÍ> àvBpámox> do ponto de vista puramente filológico*? Teremos de remontar ao aramaico: mòç  xo\)ctBppÓTWOcorresponde ao aramaicoNti?7  "13. Bar, como se sabe,é o equivalente aramaico do hebraico ben = filho. Encontramoseste termo em diversos nomes próprios tais como Barnabé, Bar- jonas,  Bartolomeu etc.  Nascha,  derivado da mesma raiz que ohebraico isch, plural anaschim, significa "homem". Barnascha é

pois a expressão aramaica à qual corresponde o grego mòç xox>ÓCV9pG)7tOt>.

Cf. abaixo, p. 205.

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CRISTOLOGIA  DO NOVO TESTAMENTO

Pois bem, o termo aramaico bar  costuma ser empregado emsentido figurado. Diz-se, por exemplo, em lugar de "mentiroso","filho da mentira"; os pecadores são chamados "filhos do pecado"; e um rico é um "filho da riqueza". Nesta construção o genitivoque segue a bar  designa, portanto, a espécie à qual pertence a pessoa em questão. Bamascha é, portanto, em aramaico, aquele quepertence à espécie humana e significa simplesmente "homem"(mais ou menos como em alemão se diz Menschenkind 292). A tradução grega tàòç  TOÍ> àvôpcíwtoi) é pois, no fundo, o,exata por sesdemasiado literal. Bamascha deveria ser traduzida em grego sim

plesmente por avGpcorcoç. Porém, o problema não se resolve comrecordar este fato filológico tão conhecido. Falta-nos, pois, aindasaber em que sentido Jesus pôde qualificar a si mesmo de "homem", segundo o uso linguístico judaico de seu tempo.

H. Lietzmann consagrou em 1896 seu primeiro estudo a estaquestão.293  Segundo ele a expressão não poderia ser, entre os

 judeus, um título messiânico; baseando-se em considerações

filológicas chega a um resultado negativo, hoje geralmente abandonado. A partir de um fato exato {bamascha  ssgnifica ssmplesmente"homem") conclui que o judaísmo do tempo de Jesus não pôdenomear assim ao Messias; a atribuição que Jesus houvesse feito a simesmo deste nome, tão vago e tão geral, não teria, consequentemente, nenhum sentido. Em Dn 7.13, onde o "Filho do Homem"aparece pela primeira vez, esta expressão não teria, segundo ele,

nenhum caráter messiânico. Tratar-se-ia, nesta visão, unicamentede um ser humano, por oposição aos animais que se mencionam namesma passagem. Seria a comunidade primitiva quem teria posto otermo na boca de Jesus, dando a este "homem" uma interpretaçãomessiânica e convertendo esta expressão em título cristológico.

Esta tese à qual se havia aliado - com certas reservas, é   verdade -J. Wellhausen,  Skizzen und Vorarbeiten, VI, 1899, p. 187 ss., foi logo

M-Igualmente, a expressão hebraica correspondente, benadam (Ez 2.1; SI 8.4; 80.18).M  H. LIETZMANN,  Der Menschensoh.. Ein Beitrag zur neutesíamentlichen

Theologie,  1896.

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184 Oscar Cuttmanti

rejeitada com razão.2!M  Sua refutação por G. Dalman,  Die  Worte Jesu,1898, p. 191 ss., nãoé, contudo, inteiramente satisfatória: pois ele tentademonstrar que a expressão  bartiasckci  não era corrente em aramaico-

galileu no sentido geral de "homem". Porém, esta afirmação não podesustentar-se como tem demonstrado P. Fiebig, Der  Menschensolui, JesuSelbstbezeichnung tnit besonderer Berilcfcsichtigung des aramãischetiSprachgebrauchsftir Mensch, 1901: filologicamente, bariiascha  significa simplesmente "homem"; porém, a conclusão que Lietzmann eWellhausen tiraram daí, a saber, que não podia ser uni título messiânico,é falsa.

A literatura judaica tardia indica que este termo geral, "homem", serviu, na época de Jesus, para designar um salvadorescatológico: é o título que ostentaria um mediador especial a aparecer no fim dos tempos.295

Onde o encontramos pela primeira vez, em Dn 7.13, não sepode saber se já se trata de um salvador  individual. O "Filho doHomem" aparece por oposição aos quatro animais; estes, segundo a

explicação que segue, são os reis de quatro grandes impérios. Emseguida se diz: "Eu estava olhando nas minhas visões noturnas e eisque vinha com as nuvens do céu um como o Filho do Homem, edirigiu-se ao Ancião de dias, e o fizeram chegar até ele. Foi-lhedado domínio, e glória, e o reino, para que os povos, nações ehomens de todas as línguas o servissem; o seu domínio é domínioeterno, que não passará, e o seu reino jamais será destruído (ver. 13

s.). Segundo a explicação dada em seguida pelo visionário (v. 15ss.), este "Filho do Homem" representa os "santos do Altíssimo".

LIETZMANN mesmo, mais tarde, a abandonou.Cf'., a este respeito, W. BALDENSPERGER,  Die  messianisch-apokaiypíischen

 Hoffnungen  des Judeniitms,  3a ed., 1903, p. 91 ss.; A. V. GALL, BaaiXeía xav6Eoíi, 1926, p.  409  ss.; W. BOUSSET,  Die Religion des Judeniums imneutestainentlichen Zeitalter, 3a ed., 1926;G. DUPONT, Leflls de 1'homme, 1927;C. H. KRAELING, Anthropos andSon ofMctn. A Study tu the Religious Syncretismofthe Hellenistic Orient,  1927; H. GRESSMANN, Der  Messias,  1929, p. 343 ss.;R. OTTO, Reich Gottes tutd  Meiíschensohn.  Ein  religionsgesclticlitlicher  Versuch,1934. - E, sobretudo, recentemente E. SJÕBERG,  Der Menschensoltn imcithiopischen Henochbitch,  1946, em partic. p. 41 ss.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 185

Identifica-se aqui, pois, o Filho do Homem com povo de Deus: nãose pode perder de vista esta fato. Porém, por que, nesta visão, opovo dos santos aparece precisamente como um "homem", por oposição aos animais? Notou-se, com razão,296  que há na explicaçãoda visão uma certa inconsequência, um ligeiro desequilíbrio, nosentido de que os animais são compreendidos como reis, isto é,como os  representantes  dos quatro grandes impérios, enquantoque o Filho do Homem  aparece como o próprio povo de Deus.Pode-se, pois, supor que originalmente o "homem" tenha simbolizado (da mesma maneira que os animais) o  representante do

povo dos santos. No judaísmo, se passa facilmente de um ao outro.Já conhecemos a importância da ideia de substituição: o substituto, o representante, pode ser identificado com a coletividade querepresenta. Em nosso capítulo sobre o Servo de Deus já mencionamos este fenómeno tão importante para a cristologia neotestamert-tária297  e teremos ainda ocasião de encontrá-lo. Como quer queseja, o Filho do Homem anunciado por Daniel (7.13) foi posteri

ormente considerado pelos judeus como uma figura individual  m

E como tal que ele aparece também em outros escritos apocalípticos tardios. No Apocalipse designado com o nome de 4° livrode Esdras, o Filho do Homem surge das ondas do mar e se elevasobre as nuvens como um salvador.299 Dele se afirma que o Altíssimo o manteve por muito tempo reservado a fim de salvar a criação por meio dele. Ele aparece também nesta obra com o nome de

Messias.Porém, é sobretudo nos caps. 37-71 do livro etíope de Enoque

que a figura do "homem" é interpretada assim.300 Em termos gerais,

''Cf. porex. H. GRESSMANN, Der Messias, 1929, p. 345 ss.7Cf. acima, p. 79 s.* Cf. JUSTINO, Dial. c. Tryplt. 31 s.

''4 Esdras 13."R. H. CHARLES, The Ethiopic  Version ofthe Book of Enoque, 1906, p. 86 s., supõeque o demonstrativo "este" (este Filho do Homem) do texto etíope é a tradução doartigo definido do modelo grego. Sobre esta questão muito discutida, cf. E.SJÕBERG, op. cit., p. 44 ss„ que, ademais, chega à conclusão de que o "Filho doHomem" é um título messiânico.

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líi6 Oscar Culbnann

esta obra judaica tardia é muito importante para a compreensãodos começos do cristianismo. Os capítulos mais importantes emque se trata do "Filho do Homem" são Enoque 46, 48 s., 52, 62,

69, 71; porém, outras passagens também são consideradas. Podedar-se por demonstrado que não se trata aqui, como em Dn 7.13,de uma personificação do povo de Israel; mas antes, de uma personalidade individual (ficando bem entendido, contudo, que a ideiade Filho do Homem, por sua origem e em virtude do próprio sentido da palavra, supõe que  os homens são representados por  umhomem).

N. Messel  {Der Menschensohn in den Bilderreden des Henoche,1922) tentou, sem êxito, fornecer a prova de uma interpretação puramente coletiva. Não pôde fazê-lo sem eliminar, como interpolações cristãs, toda uma série de textos importantes. M. J. Lagrange  {Le judaísnteavanT  Jèsus-Christ,  1931, p. 242 ss.) buscou também, sob outra forma,demonstrar a presença de interpolações cristãs no livro de Enoque.Porém, de nenhum modo se torna forçoso admitir esta hipótese, à qual

é demasiado fácil recorrer quando se trata de explicar escritos judaicostardios - às vezes por razões apologéticas com a intenção de assinalarbem a distância que os separa dos escritos cristãos primitivos.A constatação de afinidades existentes deveria, pelo contrário, nos lançar na busca da novidade do Evangelho onde ela se encontra verdadeiramente. O que dizemos aqui se aplica também à confrontação atualdos textos de Qumran com as ideias que se expressam no Novo Testamento.

No livro etíope de Enoque, o "Filho do Homem" é aquelecujo nome é pronunciado pelo "Ancião de dias" no começo dacriação; aquele que, por conseguinte, foi criado antes de todas asdemais criaturas.-101  Até no fim dos tempos, quando vier para julgar o mundo e exercer sobre ele o domínio, ele mesmo, entretanto,

™l ENOQUE 48.2, 6.-Como assinala com razão E. SJOBERG,í> p. «í .,p. 94, o Filhodo Homem do livro de Enoque não é unicamente um anjo, como pensa M. WERNER,

 Die Entstehtmg des chrísúichen Dogmas, 2a ed., 1953, p. 302 ss. Cf. também a esterespeito W. MICHAEUS, Zur  Engelchristologie im Uivhristentum,  1942.

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188 Oscar Cullmann

majestade divina não pode ser excessivamente sublinhada: não é,com efeito, um ser celestial preexistente que vive nos céus desde aorigem dos tempos, antes de vir à terra no fim dos tempos?

Então, por que a este mediador se lhe chama "homem"? Nãoé sair do quadro de um estudo histórico examinar seriamente estaquestão. Pelo contrário, não é uma singular falta de curiosidadecientífica Hmitar-se a constatar que no seio do judaísmo subitamente tenha surgido uma figura do Salvador que, por um lado, seassocia à imagem do Messias e, por outro, relega essa mesma imagem a um plano secundário, e que tem o título de "homem" ou de

"Filho do Homem"? Se esperaria, ao contrário, que semelhantemediador fosse designado de modo tal que indicasse sua origemcelestial. Ora, o chamam simplesmente "homem". Os textos

 judaicos não nos permitem explicar este fato singular. Isso provahaver uma relação com as concepções não judaicas de um "homem"que, sendo realmente homem, possui uma dignidade divina particular; com efeito, a história das religiões nos ensina que existem

especulações relativas a um "primeiro homem", protótipo divinoda humanidade.

Isto não quer dizer que o judaísmo tenha simplesmente tomado esta concepção do mundo ambiente como um corpo estranho.Há também no património espiritual judaico e bíblico uma ideiaque se inclina neste sentido e pode dar um fundamento sólido aesta concepção: a criação do homem à imagem de Deus. Partin

do daí, compreendemos que seja justamente o "homem" (na medida que representa a imagem fiel de Deus) o destinado a salvar ahumanidade decaída. É verdade que em nenhum texto judaico setiram tais consequências da  imago Dei; porém, trata-se tão-so-mente de encontrar o ponto de contato do judaísmo com estadoutrina do "primeiro homem".

Esta doutrina era muito difundida entre as religiões orientais

que rodeavam o judaísmo; inclusive, era um elemento de seupatrimónio comum; porém, é muito difícil de captá-la na formaplenamente desenvolvida. Se bem que sobre este ponto os representantes da história comparada das religiões às vezes se têm

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO J_S9

excedido em suas construções,305  não é menos certo que se encontram alusões a este protótipo ideal de homem nas religiões iraniana,305 caldaica, egípcia,307 nocultode Átis,308 entre os Mandeus,309

os Maniqueus310 e de uma maneira geral, na Gnose. Esta noçãoparece haver-se estendido tanto como a deLogos  divino. A verdade é que ela não assumi, em todas as partes, a mesma forma;assim, a ideia segundo a qual o primeiro homem deva ser salvo,ele mesmo, para poder salvar aos homens - ideia característica damaior corrente do gnosticismo - não constitui, necessariamente,uma parte integrante desta crença.31'

Seria interessante reunir todos os textos da história das religiões relativas ao "primeiro homem".3'2 Porém, não podemos examinar aqui, em todos os detalhes, a questão tal qual se põe aoshistoriadores das religiões. O que importa para a cristologia doNovo Testamento é a identificação deste homem celestial idealcom Adão. Vinculada à concepção escatológica do retomo final

""É,  no entanto, graças a eles que a atenção tem-se voltado para estas relações -Cf. em particular, W. BOUSSET,  Hauptprobleme der Gnosis,  1907, p. 160 ss.,238 ss.;  Id., Kyrios Christos,  2a  ed., 1921: R. REITZENSTEIN,  Das iranischeErlõsungsmysterium, 1921; R. REITZENSTEIN- H. H. SCHAEDER,  Studien zumantiken Synkretismus aus Iran und Griechenland,  1926; resenha crítica deW. MANSON, Jesus the Messiah,  1946, p. 237 ss.

1"<' Cf., etu particular,os estudos citados de REITZENSTEIN e SCHAEDER. Insistem,sobretudo, em Gayomart, o "primeiro homem" na religião iraniana. Cf. também a

este respeito as reservas de G. QUISPEL.'"7 REITZENSTEIN chama a atenção sobre o Poimandres. A respeito deste escrito cf.E. HAENCHEN, "Aufbau und Theologie des Poimandres" (ZThK, 53,1956, p. 149ss.). Também C. H. DODD, The Bible and the Greeks, 2a ed., 1954, que dá especialatenção ao "primeiro homem", do  Poimandres.

3<la H. HEPDING, Attis, seine: Mytthen und sein Kuit, 1903, em partic. p. 50 ss.•""Cf. Além dos estudos já citados: R. REITZENSTEIN, Das mandáische Buch des

 Herrn der Grõsse und die Evangelienuberlieferung,  1919.110 W. HENNING,  Gebitrt und Entsendung des mankháischen Umienschen,  1933. -

Cf. também H. CH. PUECH, Le manichéisme,  1949, p. 76 ss.311 É igualmente falso, nos estudos atuais relativos ao gnosticismo da seita de Qumran,considerar a presença, ou ausência, deste mito como critéri o para determinar o cará-ter gnóstico, ou não gnóstico, desta seita.

"2Recentemente, C. G. JUNG aplicou à ideia de Filho do Homem sua teoria do"arquétipo".

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iy0 Oscar Cttllmann

da idade de ouro, conduz, com efeito, à esperança de que o primeirohomem tem de voltar no fim dos tempos para salvar a humanidade.

É difícil estabelecer esta identificação no seio do judaísmo

devido ao fato de não estar claramente estabelecido o elo entre oprimeiro homem e o "homem" escatológico, ou "Filho do Homem";além disso: não pode  ser estabelecida sem mais nem menos, jáque o primeiro homem se encontra relacionado à origem do pecado. Veremos que só no paulinismo este problema achará solução.Porém, nesse momento, trata-se de demonstrar o porquê, no judaísmo, a noção de arquétipo da humanidade e a de Filho do Homem

que virá seguiram, em seu desenvolvimento, caminhos separadose, consequentemente, porque seu parentesco original deixou deser visível. Pois este deve ter existido; senão, como compreenderque o salvador escatológico seja chamado "homerrT?

Insistiremos na exposição que se seguirá sobre a necessidadeinterna do desenvolvimento separado destas duas noções: pois deoutro modo, a identificação que cremos dever estabelecer entre o

"Filho do Homem" e o "segundo Adão" poderia parecer arbitrária. Por isso geralmente esta identificação não é reconhecida sobpretexto de que os documentos judaicos, tanto quanto os do cristianismo primitivo, não permitem fazer-nos perceber nenhumarelação entre ambas as concepções.

É assim que na visão de Daniel (cap. 7) e, sobretudo, nasespeculações relativas ao Filho do Homem que se lhe acoplam

nos Apocalipses do quarto livro de Esdras e no de Enoque se desenvolva unicamente o aspecto escatológico, enquanto que as demaisideias acerca do "primeiro homem" só tenham traços isolados.Tampouco, trata-se de uma verdadeira encarnação: o Filho doHomem surge do mar, ou vindo sobre as nuvens do céu, não seencarna na humanidade pecadora.313  É verdade que leva, às vezes,

E. SJÕBERG, op. CÍV., p. 147 ss., tenta demonstrar que a identificação com Enoquenão é mais levada em conta, dado que, originalmente, este só se torna Filho doHomem depois de sua ascensão. A questão da encarnação poderia, quando muito,pôr-se para o problemático Metatron. Ver, a este respeito, H. ODEBERG, 3. Enochor the Hebrew Book of Enoch,  1928.

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CRISTOLOGIA  DO NOVO TESTAMENTO 191

atributos  do Ebed Iahweh -  por exemplo, os epítetos de "servo"cm 4 Esdras (7.28; 13.32) ou de "justo", de "eleito", de "luz dasnações" em muitas passagens  de Enoque. Porém,  em nenhuma

parte reveste a forma de servo sofredor.3141

Junto com esta utilização escatológica da concepção de "primeiro homem" o judaísmo não abandonou  a  ideia (que brota damesma raiz) de um primeiro homem perfeito, visto que, como játem sido indicado, a afirmação bíblica daimagoítei  se lhe aproximava. É assim que nasceu, nos escritos apócrifos e nos escritosmísticos surgidos dos meios rabínicos, toda uma literatura relativa

a Adão.315

 Porém, também achamos os vestígios do problema deAdão na grande corrente da literatura judaica tardia. O problemaera,  em suma,  o seguinte:  a  ideia primitiva de uma identidadeentre o homem celestial e o primeiro homem buscava constantemente penetrar no judaísmo; porém, não podia consegui-lo, pois,segundo  o  Antigo Testamento, Adão pecou.  De acordo  com orelato bíblico foi, com efeito, o primeiro homem aquele que des

pojou  a humanidade de seu caráter divino  e é precisamente porcausa dele que se fez necessário que o  homem celestial leve oshomens ao seu verdadeiro destino. A ideia extrajudaica do primeiro homem devia, pois, sofrer uma profunda transformação antesde poder arraigar-se no judaísmo; é por  isso que, ainda no seiodo cristianismo primitivo, as noções de "Filho do Homem" e de"segundo Adão" parecem totalmente diferentes, quando, em sua

essência, estão estreitamente enlaçadas.Posto que os dois conceitos, o de Filho do Homem e o de "segundo

Adão", representam dois aspectos de uma mesma ideia cristológica, nãoconsagraremos um capítulo especial ao de "segundo Adão".

114 O sofrimento do Filho do Homem, admitido por J. JEREMIAS, "Erlõserund Erlõsungim Spãtjudentum" (Deutsche Theol., 2, 1929, p. 106 ss.) continua problemático. Cf.

E SJÒBERG, op. cit., p. 116 ss.115 25 Cf. em part.:  Vita Adae, 12 ss.; Enoque (Eslav,), 30. -  Textos rabínicos tambémdevem  ser  considerados.  Cf. B.  MURMELSTEIN, "Adam.  Ein  Beitrag  zurMessiaslehre"  (Wiener  Ztschr. f d. Kunde d  . Morgenlandes,  ,128, p. 242  ss,; ;929,p. 51  ss.).

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•192 Oscar Cidimann

O fato de que Jesus seja chamado "segundo Adão" e não simplesmente Adão, já nos mostra por que era necessário se distinguir

"Adão" de "Filho do Homem". Permite-nos, igualmente, reconhecer onde residia, para o judaísmo, a dificuldade de adotar a ideia,tão frutífera do ponto de vista teológico, de Filho do Homem. Porum lado, trata-se de pôr a ideia de homem divino, do bamaschaem relação com o tempo da criação: o homem celestial é o homemtal qual Deus quis, quando o criou à sua imagem. Porém, comopor outro lado, o relato da criação está ligado ao da queda do primeiro homem, era impossível aos judeus introduzir, pura e simplesmente em sua teologia, o homem celestial identificado comAdão.  Será que  é   por isso que as especulações relativas aobarnascha não se desenvolveram no seio do judaísmo oficial, masantes nos meios esotéricos que o Apocalipse de Esdras e o livro deEnoque nos têm dado a conhecer? Nós só podemos esboçar a questão. Talvez seja pela mesma razão que os autores dos Apocalipsesrodearam estas concepções de tanto mistério e não falaram delas,senão em termos fechados e valendo-se de alusões.

Para superar estas dificuldades existiam duas possibilidadesbem diferentes, e ambas foram tentadas. Podia-se não insistir naidentificação do homem celestial e o primeiro Adão, ou antes sepodia negligenciar o relato da queda de Adão. No livro etíope deEnoque, o Filho do Homem desempenha um papel particularmente importante. Ali - e isso é sintomático -  se passa, purae simplesmente, em silêncio a queda de Adão. Isto poderia ser uma coincidência carente de importância, se justamente este livro não seesforçasse por explicar a origem do pecado. Porém, fala disso - oque não pode deixar de surpreender-nos - sem mencionar a quedade Adão. Nos capítulos 83-90, encontramos um resumo da históriado mundo desde a criação até o estabelecimento do reino messiânico: não se encontra aí uma só palavra sobre a queda. Quantoao livro eslavo de Enoque, este afirma que o diabo tentou somentea Eva e não a Adão, e não se trata aí de uma mera coincidência;antes, pelo contrário, da tendência evidente de inocentar Adão dopecado original. Para explicar a origem do mal o livro de Enoque

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CRISTOLOGIA DO fsovo TESTAMENTO 193

escolheu outro relato de Génesis: o da queda dos anjos (Gn 6). Emmuitos lugares encontramos desenvolvida uma teoria do pecadonessa conexão. O autor descreve as consequências que decorremdas relações culpáveis de anjos com as filhas dos homens: é daíque vem todo o mal, toda a violência, todo pecado e em particular,toda idolatria.

Segundo esta interpretação, o mal, por conseguinte, não temsua fonte na queda do primeiro homem. Não é, de nenhum modo,abusar do argumento e silentio, emitir a hipótese seguinte: o autordo livro de Enoque - que eé ,ecorddmoss ,do sscritores sudaicos s

que utiliza mais conscientemente a noção de Filho do Homem -pôde conservar inconscientemente a lembrança de ser obarnascha,que tem de voltar no final dos tempos, idêntico ao primeiro homem.No entanto, não se atreve a dar o passo decisivo e identificar abertamente o Filho do Homem com Adão. Porém, não se atrevendotampouco a negar expressamente a queda de Adão, se contentacom passá-la em silêncio.

O passo decisivo foi dado pelos judeu-cristãos gnósticos, cujasespeculações nos foram conservadas nos escritos pseudoclemen-tinos.-116 Embora reconhecendo Jesus como o Cristo, eram, em suaatitude, muito mais judeus do que cristãos. Podemos quase consi-

H. J. SCHOEPS,  Theologie mui Geschichte des Judenchristentums,  1949, p. 305ss., procurou refutar seu caráter gnóstico, contra W. BOUSSET e contra nossa pró

pria tese  (Le pwblème iiuéraire et historique du roman pseudo-clémentin,  1930).Sua tentativa não parece ter tido êxito. Pois ao afirmar, rigorosamente, a origemrabínica das concepções pseudoclementinas não prova nada contra seu gnosticismo.R. BULTMANN objetacom razão {Gnomon 26,1954, p. 177 ss.) que o gnosticismohavia penetrado nos meios rabínicos. G. BORNKAMM  (ZKG, 1952-53, p. 196 ss.)refuta também a argumentação de SCHOEPS. Ct, igualmente O. CULLMANN,"Die neiwiudeckten Qttmrdantexteu. das Judenchristeniunt der Pseudoklemenimen(Tlwot.  Sud.f. R. BULTMANN, 1954, p. 35 ss). -Recentemente H. J. SCHOEPSmesmo em "Das gnostische JudentumindenDeadSeaScrolls"(Z fíe/if:/   Religions-u. Geistesgeschichte,  1954, p. 277) reconheceu: "Até aqui o resultado, para mim,

mais importante é que o "judaísmo gnóstico da época pré-cristã'", qualificado deproblemático e improvável em meus dois livros, realmente existiu". A gente se surpreende então de o ver, em sua última obra, Urkirche, Judenchristentum und Gnosis,1956,  retomar, a respeito da gnose, suas antigas posições e afirmar que todos oselementos gnósticos do judaísmo são só "pseudognósticos".

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•194 Oscar Cullinann

derá-los como uma seita judaica; e, quanto à sua teologia, pertencem, sem dúvida alguma, ao judaísmo.317 Temos de incorporá-los,em todo caso, ao judaísmo no que concerne ao desenvolvimento

da ideia de Filho do Homem. Com efeito, a forma pela qual elesresolveram o problema da identidade do protótipo divino da humanidade com Adão, se relaciona diretamente com o ponto de vistaque encontramos no livro de Enoque.

Já vimos que a obra pseudoclementina chamada KerygmataPetrou tem a Jesus como o "verdadeiro profeta".318 Neste livro seidentifica o verdadeiro profeta com Adão. Deram, portanto, o pas

so decisivo: o Filho do Homem e Adão são um só e o mesmo ser.Segundo estes judeu-cristãos, o verdadeiro profeta se encarnouem diversas ocasiões, a primeira das quais foi em Adão.

Porém, como eles compreendem esta identificação? Comopodem considerar a encarnação do verdadeiro profeta, este, do quala Bíblia nos diz que foi o primeiro pecador? Aqui os judeu-cristãos gnósticos não vacilam em ir mais longe que o livro de Enoque:em lugar de passar em silêncio sobre relato da queda, declaramsimplesmente que é falso. Conforme sua teoria da syzygies,319 Adãorepresenta o princípio do bem, Eva, o do mal. Adão, portanto, nãopecou. A obra pseudoclementina não pode arriscar esta ousadaafirmação sem apoiar-se sobre sua singular teoria das "falsas períco-pes", que estariam contidas nos cinco livros de Moisés. O recursoa um ensinamento secreto permitiria eliminar estas mentiras, insinuadas na bíblia pelo Diabo, das quais uma das mais graves é o

relato da queda de Adão, o primeiro homem. Uma vez desmascarada esta mentira pode-se, sem dificuldade, identificar Adão comJesus, o verdadeiro profeta.

Assim, os judeu-cristãos professam por Adão a maior veneração e o glorificam como valoroso adversário do diabo. Encontramos uma glorificação semelhante de Adão, ligada a idêntica

É o que mostra, também, a relação com a seita de Qumran, indicada em nosso artigoprecedentemente citado.Cf. acima, p. 59 ss.Cf. acima, p. 63 s.

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CRISTOLOGIA  DO JVOVO TESTAMENTO 195

oposição entre ele e o diabo, nas teorias judaicas apócrifas, sobretudo na "Vida de Adão".32íl Porém, foi entre os judeu-cristãos queesta teoria mais se desenvolveu; graças à recusa total do relato daqueda de Adão, ela se vê livre de todo obstáculo.

Adão - segundo esta doutrina - foi ungido com o azeite daárvore da vida. Ele é o sacerdote eterno que se reencarna em Jesus,o homem perfeito, o protótipo da humanidade. No momento da criação,  Deus apresentou a cada criatura um protótipo: aos anjos, umanjo; aos espíritos, um espírito; às estrelas, uma estrela; aos demónios,  um demónio; aos animais, um animal; e ao homem, enfim,apresentou o homem - o  homem por excelência, que apareceu napessoa de Adão. Estamos aqui diante da origem comum das noçõesde "Filho do Homem" e de segundo Adão. Entre os judeu-cristãos, é verdade, não se trata de um segundo Adão, mas do próprioAdão: a partir do momento em que negam a queda, não têm necessidade de um segundo homem, já que o primeiro preencheu verdadeiramente o papel que lhe havia sido designado por Deus.

Segundo esta teoria, a salvação reside então, simplesmente,em um retorno perfeito da primeira idade. Abandona-se a concepção bíblica de um tempo que progride de maneira contínua; e depreferência, nos vemos na presença da concepção grega de umlempo cíclico: todas as coisas voltam ao mesmo ponto; e não há,falando propriamente, progresso no tempo. Já temos sublinhado321

que os Kerygmata Petrou  apresentam influências gnósticas. Ora,

a concepção gnóstica acerca do tempo não é a da bíblia, mas a dohelenismo; pressupõe o retorno de todas as coisas. Contrariamente a ela, o Messias do judaísmo oficial, como o "Filho do Homem"da escatologia do livro de Enoque, não se limita a repetir o queexistia desde o começo da criação: traz algo novo. Deste ponto devista também os cristãos não podiam simplesmente assimilar aideia de Filho do Homem àquela sobre o primeiro homem. Pois,

'•'" Vita Adae,  12 ss.; 39. Enoque (Eslav.) 30.11 ss. Cf. a este respeito o artigo de B.MURMELSTEIN, citado acima, p. 191, nota 315.

'•'• Cf. acima, p. 193, nota 316 e ainda p. 61.

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196 Oscar Cullmcmn

segundo a doutrina bíblica, Adão rebelou-se contra a vocação quelhe havia sido designada por Deus; e a idade de ouro, no queconcerne ao homem, existiu no começo, na intenção de Deus;

porém, não foi realizada.Temos de ver ainda como Fílon, o grande filósofo judeu de

Alexandria, resolveu o problema esboçado pela aparição da ideiade Filho do Homem no judaísmo. Nele esta noção tambémdesempenha um grande papel. Se no seio do judeu-cristianismo, aidentificação do homem celestial com Adão não era possívelsenão graças a uma recusa do relato da queda de Adão, em Fílon

encontramos uma solução menos rigorosa e menos radical do problema. Ele também aceita, é verdade, a identificação do homemcelestial com o primeiro homem; porém, busca, ao mesmo tempo,afirmar esta identidade e conservar o relato bíblico da queda.As soluções radicais, como a dos pseudoclementinos, não eram deseu agrado; não se esforçou, durante toda sua existência, por conciliar com o Antigo Testamento sua filosofia de inspiração pura

mente grega. De maneira que tampouco recorreu àquele métododesesperado, que consiste em tirar da Bíblia as passagens que apresentam dificuldades. Quando estas se lhe contrapõem, busca dar-lhes, graças a uma interpretação alegórica, um sentido que se harmonize com suas convicções filosóficas. E conseguiu desta maneira,ao mesmo tempo, conservar os relatos bíblicos e os tornar inofensivos por uma espécie de "desmitologização".

Graças a este método exegético Fílon realizou a proeza deafirmar a identidade do homem celestial com o primeiro homem eainda aceitar o relato da queda de Adão. Porém, aqui se vale deum método que não só é alegórico, mas especificamente rabínico,que consiste em confrontar duas passagens da Escritura. SegundoFílon, no relato bíblico se distingue duas personagens diferentesque levam o mesmo nome de Adão; o Génesis conhecia, pois, a

dois "primeiros homens". Baseia esta afirmação em uma interpretação assaz arbitrária de duas passagens: Gn 1.27 e 2.7. Em Gn1.27 lemos: "Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagemde Deus o criou".

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 197

E em Gn 2.7: "Então formou o Senhor Deus ao homem do póda terra, e lhe soprou nas narinas o fôlego da vida, e o homempassou a ser alma vivente."

Em duas ocasiões encontramos em Fílon especulações relativas a estes textos: na "interpretação alegórica das leis" (Leg. alleg.I,31 s.) e no tratado "Sobre a Criação do Mundo" {De opif. mundii134 ss.). Nestas obras, confronta os dois textos de Génesis e conclui que no primeiro (Gn 1.27) trata-se de um outro Adão, distintodo do segundo (Gn 2.7). O Adão de Gn 1.27 é idêntico ao homemcelestial ideal: formado à imagem de Deus, vem do céu e possui a

virtude do Espírito Santo. Nele nada há de perecível. É o homemtal qual Deus quis quando o criou à sua imagem. Puro de todoinstinto sexual, está situado para além da distinção entre homem emulher. É o ser humano em si, o homem celestial. Tudo o que asreligiões orientais ensinam sobre o "primeiro homem", o ser perfeito, o protótipo divino da humanidade, Fílon aplica ao Adão deGn 1.27.

Por outro lado, ele pensa que no capítulo seguinte, em Gn2.7, se nos fala da criação de outro Adão, e tudo o que é relatadodepois, acerca do pecado e do castigo de Adão, se aplicaria a esteoutro Adão que é, verdadeiramente, o homem pecador, o autor dopecado. Ele não foi criado à imagem de Deus, nem vem do céu,mas da terra. Deus o formou do pó da terra; e assinala que mesmoque Deus tenha escolhido, o pó mais nobre, para o modelar, ainda

teve que soprar em suas narinas o sopro da vida, para que esteAdão, surgido da terra, se tornasse alma vivente.Assim, a partir destes dois relatos da Criação de Génesis (que a

pesquisa atual explica pela existência de duas fontes), Fílon concluiu que Deus havia criado dois homens diferentes, dois Adões: ohomem celestial, protótipo do homem ideal, que aparece em Gn1.27 para desaparecer em seguida do relato; e o outro, o homem que

transgrediu o mandamento divino, aquele de que trata Gn 2 e 3.O fato de Fílon ter desenvolvido esta teoria em dois tratados

diferentes prova que lhe dava uma importância particular. Encontramo-la também na literatura rabínica, porém, muito mais tarde

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J98 Oscar Cullmarm

para que se possa suspeitar que Fílon a houvesse tirado dali, apesar do caráter especificamente rabínico de sua demonstração.322

Como quer que seja, era necessário estudar esta teoria de Fílonpara compreender o desenvolvimento da ideia de "Filho do Homem"e de "segundo Adão" no Novo Testamento; pois veremos que émuito provável que o apóstolo Paulo a tenha conhecido.

A explicação filoniana da relação entre o homem celestial e oprimeiro homem tem, em relação às outras soluções judaicas edoponto de vista que nos interessa aqui, a vantagem de não recusar orelato da queda de Adão. Porém, (e mesmo fazendo abstração deseu fundamento exegético arbitrário) tem a mesma falha que ateoria gnóstica judaico-cristã. No fundo, ela delata claramente seucaráter grego: o homem celestial, figura ideal, se encontra neladesde o começo e, como entre os judeu-cristãos, não há mais apossibilidade de uma nova ação deste homem-espírito na sucessão do tempo, já que desde o começo ele realiza o absoluto. Fílonnão conhecia nenhuma encarnação, nem um retorno escatológico

deste homem; para ele não pode haver novas revelações divinasno tempo; por conseguinte, não poderia haver também desenvolvimento desta revelação, e a salvação não poderia inscrever-senuma  história.

* * *

Chegamos, pois, no que toca à concepção judaica de Filho doHomem, à conclusão seguinte: o homem celestial, que é tambémconhecido pelas religiões extrabíblicas, aparece no judaísmo sobduas formas diferentes.

1. Sob a forma de um ser celestial que - agora ainda oculto -aparecerá somente no fim  dos tempos, sobre as nuvens, com oobjetivo de julgar o mundo e de realizar o povo dos santos. Encon-

A utilização de uma tradição antiga não fica, contudo, totalmente excluída, aomenos em Leg.  aíí eg.  I, 31. Cf. H. LIETZMANN, An  die Korinther   1-2  (Hdb. z.  NT),4"ç<l.,  1949, p. 85.

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CRISTOLOGIA  DO NOVO TESTAMENTO 199

iramos esta figura exclusivamente escatológica em Daniel, nolivro de Enoque e no 4o Esdras.

2. Sob a forma de um homem celeste ideal que se identificacom o primeiro homem desde o inicio dos tempos. Esta concepção se desenvolve em Fílon de Alexandria e se encontra tambémtios Kerygmata Petrou, como também nas especulações rabínicasrelativas a Adão.

A primeira destas formas corresponde ao pensamento judaico e particularmente à concepção judaica de tempo. Os textos judaicos que falam do homem celestial futuro,  não contêm reflexões sobre sua origem. Supõe-se, no entanto, que está no céu eque no final dos tempos descerá do céu (ou surgirá do mar). Portanto, deve ser tido como preexistente. No livro de Enoque chega-se a dizer que, antes da criação do mundo, foi eleito e escondidopor Deus. (Enoque 48.3-6; 62.7; 70.1).

A segunda destas formas se encontra de preferência nos textos que ostentam traços helenísticos. Estes não se interessam primordialmente pela escatologia, mas, ao contrário, pelo que ocorreu no começo dos tempos - o que concorda com a tendência dafilosofia e do gnosticismo. Por isso, estes textos afirmam a identidade do "Filho do Homem" com o primeiro homem.

Porém, a despeito das diferenças existentes entre as duas formas trata-se, no fundo, de uma só e mesma ideia, a de "homem",do homem celestial. Em ambas as categorias de textos encontramos o barnascha. Nos dois casos, trata-se do homem que permanece fiel à sua vocação divina, que consiste em ser a imagem deDeus. Aí está a raiz comum da duas formas que devemos distinguir. A passagem de uma a outra se manifesta no fato de que Daniel,Enoque e o Apocalipse de Esdras postulam a preexistência do"Filho do Homem" escatológico; se se o representa como já existindo antes do fim dos tempos, pôe-se, implicitamente, a questãoda sua origem. Num e noutro caso, no entanto, a ideia de umaencarnação do Filho do Homem segue sendo totalmente forâneaaos judeus. Não resulta dos textos escatológicos nem dos textosde caráter filosófico e helenístico, que o próprio Filho do Homem

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200 Oscar  Cullntann

deva tornar-se um homem entre os homens. Mesmo o Filho doHomem, que vem sobre as nuvens do céu no fim dos tempos, nãose incorpora realmente à humanidade. É verdade que nos escritos

pseudoclementinos, o verdadeiro profeta, que primeiramente viveusobre a terra na pessoa de Adão, reaparece sob a figura de muitaspersonagens bíblicas. Porém, não se trata, precisamente, de umaencarnação do homem celestial, mas, antes como jáfoi visto,323 deum regresso muitas vezes repetido do profeta. Tem-se conectadoaqui a ideia de Filho do Homem com a de profeta, surgida de umcomplexo de concepções completamente diferentes.

Quanto ao sincretismo oriental que achamos no gnosticismo exterior ao judaísmo, cie sabe muito menos ainda acerca de uma encarnaçãodo homem celestial. Sem dúvida trata-se de sua descida à terra. Conforme o mito conhecido que encontra sua expressão clássica, por exemplo,no Hino dos Nassênios (Hippol.,  Philos.,  V. 6-11), o próprio salvadortambém tem de ser salvo. Porém, não é sua encarnação aqui o verdadeirofundamento da salvação; ele não sai fora do domínio mitológico paraentrar no domínio histórico. Como o diz com razão R. Bultmann,Theologie des Neuen Testaments, 1953, p. 166 s.: somente se "disfarçou"de homem. Por isso, todos os gnósticos são docetas.

2. JESUS E A IDEIA DE FILHO DO HOMEM

Jesus qualificou a si mesmo de "Filho do Homem", e emque sentido? É esta uma das perguntas frequentemente mais tratadas e das mais controversas da ciência do Novo Testamento.Temos citado no parágrafo precedente o estudo de H. Lietzmann.324

Recordemos a tese que sustenta: Jesus não se considerou o "Filhodo Homem". Lietzmann se apoiava sobre o fato indiscutível, doponto de vista filológico, de que a expressão  x>iòç t o x> àv6pÓKO"o

significa simplesmente "homem". Porém, isso não exclui que Jesus

Cf. acima, p. 60 s.Cf. acima, p. 183, nota 293.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 201

tenha podido atribuir-se, por meio deste título, um papel particular de Salvador, já que no judaísmo esta expressão, "o homem",pode ser um título de majestade e evocar, de maneira precisa, um

ser celeste.Sobre apenas um ponto é possível fazer uma concessão à tese

de Lietzmann: existem, talvez, uma ou duas falas de Jesus em quea expressão mòç xov  ccvQpcMWD não se reporta a aua própria pessoa, mas que designa ao homem em geral. Poderia ser tal o casopara o logion, bem conhecido, relativo ao sabat (Mc 2.27). Trata-se da resposta de Jesus à pergunta dos fariseus que interrogavam-

no sobre se era permitido trabalhar no dia do sabat. "O sábado foiestabelecido por causa do homem, e não o homem por causa dosábado". Aqui a palavra aramaica  bamascha  se traduz correta-mente em grego por avGpamoç. Trata-se evidentemente dohomem em geral: não do homem celestial, do Filho do Homem.No versículo seguinte (Mc 2.28) lemos: "de sorte que o Filho cioHomem (uíòç xoí> >v0pó>7toi>) é éenhor ata dd sábado". Se tivés

semos que tirar, sem ideia preconcebida, a conclusão que sedepreende do v. 27, teríamos que entender que Jesus fala aqui dohomem em geral: todo homem é senhor do sabat, já que o sabat foifeito para o homem. Porém, no v. 28 não temos, como no versículoprecedente, a simples palavra avGpcoiraç, "homem", mas a expressão mòç  xox) àvGpcorayu "Fiiho do Homem".

Pode deduzir-se disso que Marcos tenha pensado que ao

empregar o título de "Filho do Homem", Jesus queria designar a simesmo como o Senhor do sabat; senão, teria usado simplesmentea palavra "homem", como no versículo precedente. O evangelista,pois, teria interpretado esta palavra num sentido análogo ao de Jo5.17, onde Jesus explica de uma maneira cristológica sua liberdade com respeito às leis sabáticas. Porém, nesse caso, a conexãológica entre vs. 27 e 28 não aparece com clareza. É, pois, possível

(apesar da interpretação do evangelista) que Jesus não tenha aplicado a si mesmo esta segunda frase. Falava em aramaico e, portanto, empregava nos dois versículos a mesma palavra bamascha.Podemos admitir que esta palavra tem o mesmo sentido em ambos

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202 Oscar Cullntann

os versículos, isto é, que se aplica ao homem em geral e não ao"Filho do Homem", Jesus.

Não afirmaremos, contudo, que a interpretação do evangelista devanecessariamente ser recusada. T. W. Manson, depois de haver partilhadoprimeiramente da opinião segundo a qual o oiòç  xox>  àvÔpcÓTtou de Mc2.28 repousa em uma má interpretação de barnascha (empregado em umsentido geral), propôs, recentemente, outra solução.,:5  Admite que obarnascha do v. 27 designava, não o homem em geral, mas o Filho doHomem: "O sabat foi feito para o Filho do homem e não o Filho doHomem para o sabat". Esta interpretação é  possível somente na condição

de se dar, como o faz Manson, um sentido coletivo à expressão "Filho doHomem". O Filho do Homem para quem o sabat foi feito e que é  Senhordo sábado, é Jesus com seus discípulos, que em conjunto formam o "povodos santos do Altíssimo". Sem dúvida alguma, há uma ideiajustanabasedesta interpretação interessante; porém, não se pode sustentá-la sob umaforma tão extrema.326  Por outro lado, a proposição feita por Th. Preiss,

 Leftís de 1'homme,  1951, p. 28 s., merece ser levada em conta. Partindodo duplo sentido da expressão  barnascha, que designa, ao mesmo tempo, a cada homem e ao "homem" - a saber, o homem que representa acoletividade - supõe que Jesus quis dar a este  logion um duplo sentido:"Se o  homem  em geral é o fim do sabat, com quanto maior razão o

 Homem será senhor do sabat, ele que veio para salvar os homens!"

Outra passagem que poderia ser considerada é a de Mt 12.31s. (Lc 12.10), embora aqui a hipótese de uma interpretação erradada palavra aramaica, por parte do evangelista, seja mais incerta:

"Por isso, vos declaro: todo pecado e blasfémia serão perdoadosaos homens; mas a blasfémia contra o Espírito não será perdoada.Se alguém proferir alguma palavra contra o Filho do Homem, ser-lhe-á isso perdoado; mas, se alguém falar contra o Espírito Santo,não  lhe será isso perdoado, nem neste mundo nem no porvir".O importante é o versículo 32, com o deslocamento de ícaxà  iox>mo>  TOÍ»  áv0p(ujr.oi). Segundo o texto grego e a opinião do

m T.  W. MANSON, "Mark 2.27 s." (Coniect. Neotest. 11, 1947, in honorem A. Fri-dricftsen, p. 138 ss.).

326Cf. também a este respeito, abaixo, p. 204, nota 330.

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204 Oscar Cullmmw

por outro lado, não há diferença; assim, é possível que em tal ouqual lugar se tenham equivocado na tradução do termo bamascha,cujo sentido é equívoco.

Porém, talvez o próprio Jesus deu à expressão "Filho do Homem"um duplo sentido; o que é bem possível, já que no livro de Danielo termo tem uma significação coletiva330  e já que, em virtude desua própria origem, supunha a ideia de que a humanidade perfeitaestava personificada no primeiro Homem.3-11 Voltaremos ainda aeste assunto; porém, se esta hipótese fosse tida como válida nósnão seríamos mais colocados, pelos textos que temos citado, dian

te de uma alternativa rigorosa.Tão numerosas são as palavras sinópticas em que Jesus apa

rece designando-se como o "Filho do Homem" que não precisamos mencioná-las todas. É demasiado simples e sumário afirmarque os evangelistas foram os que puseram este título nos lábiosde Jesus, apoiando-se para isso na teologia da comunidade cristã.Só um fato basta para tornar insustentável esta tese: a designação

de Jesus como "Filho do Homem" não é, de modo algum, correnteno cristianismo primitivo. Este argumento, válido já para o títulode Ebed Iahweh,m  é muito mais ainda no caso presente. Se fossecerto que foram os evangelistas que introduziram o título de "Filhodo Homem", como se explica o fato de o empregarem somente

É, sobretudo, T. W. MANSON quem não parou de sublinhar, com razão, o sentidocoletivo, originado no livro de Daniel, que apresenta a ideia de Filho do Homem emnumerosos  logia cie Jesus:  The Teaching of Jesus,  2a  ed., 1935, p. 231 ss.;  TheSayings of Jesus, 1949, p. 109. Cf. também o artigo citado mais acima, p. 202, nota325. Segundo ele, Jesus designa pela expressão "Filho do Homem", ao mesmo tempo, a si mesmo e aos seus, considerados como o "povo dos santos do Altíssimo".MANSON vai, talvez, um pouco longe demais na afirmação desta  tese, justificadaem si quando por exemplo explica o segredo messiânico recorrendo à ideia de Filhodo Homem "coletivo'' ("Realized Escfiatology and ttie Messianic Secret",  Studiesm the Gospe/s, In memoriam R. H. LIGHTFOOT, 1955, p. 209 ss). - Cf. também a

este respeito A. E. J. RAWLINSON,  The New Testament Doctrine of the  C  /jmr ,3a ed., 1949, p. 247 ss. e os estudos citados mais abaixo, p. 206, nota 334.Th. PREISS tentou levar esta ideia até suas últimas consequências, em seu estudocitado mais acima, p. 203, nota 328.Cf. acima, p. 86 s.

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CRISTOLOGIA oo  Novo  TESTAME^O 205

quando é Jesus quem fala?333 Jamais o mencionam por si mesmosc nenhum de seus interlocutores nunca dá a Jesus tal nome. Fatoeste que seria inexplicável, se verdadeiramente eles tivessem sidoos primeiros a pô-lo nos lábios de Jesus. Na realidade, nos foiconservada a lembrança precisa de ser somente Jesus quem seautodenomina desta maneira.

E o que faz ressaltar, entre outros, W. Manson,  Jesus the MessUih,1946, p.160, e G. Kittel, art. "Menschensohn"  (RGG1  t. III, col. 2119).Este últinio propõe com razão esta pergunta: "Por que a tradição não fez

Pedro dizer, por exemplo, quando do diálogo de Cesaréia de Filipe, oque teria sido a  fé   da comunidade: Tu és o Cristo, o Filho do Homem?'

Temos de distinguir aqui duas categorias de falas de Jesus:aquelas em que se atribui o título de "Filho do Homem", pensando em sua obra escatológica a ser realizada no futuro; e aquelascm que o faz pensando em sua missão terrestre. As primeiras cor

respondem à noção que encontramos em Daniel, no Apocalipsede Esdras e no livro de Enoque: inegavelmente, é um título demajestade. Temos visto, com efeito, que já nos meios judaicos otermo "Filho do Homem", tomado neste sentido, designava a máxima função escatológica. Jesus, pois, se auto-atribuiu, para o fimdos tempos, o papel mais elevado que se possa conceber e é quasecerto que (como em Dn 7.13, onde este título é empregado coleti-

vamente), ao dar-se Jesus este título, tem consciência de representar, em sua pessoa, o "remanescente de Israel" e, por meio deste

m  Este argumento não se debilita pelo fato de que em certas passagens, entre as quaiscertamente Mt  16.13, o fazem equivocadamente. Uma só vez, em At 7.56, o títulode "Filho do Homem" é aplicado a Jesus por outro', por Estevão. Por ser justamenteum "helenista" quem emprega esta expressão, parece-nos que se trata de uma lembrança exata do autor. Temos, em demasia, o costume de não estimar em seu justo

valor o papel dos "helenistas". Do ponto de vista que nos ocupa - e também deoutros pontos de vista - eles nos parecem pertencer a estes meios judaicos cujasopiniões e crenças o próprio Jesus compartilhou. Cf. O. CULL.MANN, La Samarieet les origines de la mission chéúeniie (A/muaire de VEcole pratique des HautesEtudes. Paris, 1953, p. 3 ss); e também abaixo, p. 241 s.

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206 Oscar Cutlinatm

"remanescente", a humanidade inteira.334  Pois na passagem deDaniel, na qual Jesus se refere expressamente diante do sumo sacerdote, o termo "Filho do Homem" se aplica ao povo dos santos.335

No entanto, é a figura de um Salvador individual a que está emprimeiro plano, e é a que se depreende também do Apocalipse deEsdras e do livro de Enoque.336  Porém, já temos visto que, nopensamento judaico, uma não exclui a outra.

É ao Filho do Homem que há de vir  que se referem as palavras sobre os "dias do Filho do Homem" (Lc 17.22 ss.) e sobre o"advento do Filho do Homem" (Mt 24.27 e 37 ss.), sobre sua vin

da "na gloria de seu Pai com os santos anjos" (Mc 8.38). Pode-se,é verdade, reconhecer a autenticidade destas palavras sustentandoque Jesus, ao pronunciá-las, não pensa em si mesmo, mas emoutro "Filho do Homem": porém, esta explicação esboça mais problemas do que resolve.337

A palavra que, sobretudo, merece ser levada em consideração é a que Jesus pronuncia diante do sumo sacerdote (Mc 14.62

"4T. W.MANSON, The Teaching of Jesus, 2aed., 1935, p.227 ss., põe em relevo esteaspecto (rapidamente recusado por E. PERCY,  Die Botschaft Jesu,  1953, p. 239,nota 1); igualmente V. TAYLOR, Jesus andhis sacrifice,  1948, p. 24 ss.; e tambémM. BLACK {Expôs. Times, 6.0, 1949, p. 33 s.). F. KATTENBUSCH, "Der Quellortder Kirchenidee"  (Festgabe f. A. Hnmack,  1921, p. 143 ss.) tirou consequênciasimportantes para a ideia de igreja em Jesus.

í,5Cf. acima, p. 184.,,w Sobre a tese insustentável de MESSEL, segundo a qual o Filho do Homem, no livro

etíope de Enoque, seria uma figura coletiva, cf. acima, p. 185 s." 7 É assim que R. BULTMANN, Theol. d. NT, 1953, p. 26 ss.. está disposto a considerar

estas palavras como autênticas; porém, à questão de saber se Jesus se identifica a simesmo com o Filho do Homem anunciado, responde negativamente. O argumentodecisivo, segundo ele, é o seguinte: as profecias de Jesus relativas a seu sofrimentonão dizem nada sobre o porvir; as profecias relativas ao porvir não dizem nada acercade sua morte. A ideia de que o Salvador deva morrer seria, pois, inconciliável coma esperança do Filho do Homem; e o Filho do Homem escatológico, esperado por

Jesus, não poderia, portanto, ser identificado com um homem que já tivesse aparecido sobre a terra. Só a igreja, para a qual a morte de Jesus era um fato consumado,pôde estabelecer uma relação entre as duas séries de declarações e identificar oFilho do Homem esperado com o Jesus sofredor. Porém, este juízo se fundamentana tese afirmada, sem provas, por BULTMANN, segundo a qual todas as pregaçõesde Jesus sobre os seus sofrimentos seriam Vaticinia ex eventu. Cf. acima, p. 87

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CmsTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO 207

par.) e que já estudamos no capítulo precedente ao falarmos acerca do Messias.338  Recordemos que Jesus  não aceita  sem mais otítulo de Messias e que talvez até o recuse, se na verdade as pala

vras aramaicas "tu o dizes" contêm  uma negação implícita. Emtodo caso -  e temos dado uma importância muito particular a estaafirmação - Jesus agrega imediatamente (em Mateus com um nXT\V-porém,  fortemente adversativo) uma declaração relativa não aoMessias, mas ao Filho do Homem. Fala do Filho do Homem quehá de vir nas nuvens do céu nos mesmos termos que Daniel, associando a isto a declaração do SI 110, relativa ao "Senhor" que se

senta à direita de Deus.339

A função essencial do Filho do Homem que vem (como já noslivros judaicos antigos e particularmente no livro etíope de Enoque)é o juízo. Na importante passagem relativa ao juízo final das "ovelhas e dos bodes" (Mt 25.31-46), sem dúvida o juízo é pronunciadopelo Filho do Homem. Ocorre o mesmo em Mc 8.38 par., ondesemelhante  aos anjos do judaísmo tardio,  ele exerce  a função de

testemunha contra aqueles que dele se envergonharam.340

 A atribuição a Jesus do juízo (que no Novo Testamento costuma atribuir-setambém a Deus) está diretamente relacionada com a noção de Filhodo Homem. Não temos necessidade de consagrar um capítulo especial a Jesus como "juiz": esta qualificação não representa senão umaspecto da ideia de Filho do Homem.

Ainda que em Paulo, como nos demais escritos do Novo Testamento,  seja Deus, também, quem exerce o juízo (1 Ts 3.13; Rm 3.5; 14.10), oapóstolo está, contudo, convencido de que "todos devemos comparecer

l l s Cf. acima, p. 156 ss.-™E. PERCY, Die Botschaft Jesu, 1953, p. 226, elimina rapidamente esta palavra como

não sendo autêntica, antes de tudo porque lhe parece impossível explicar, satisfatoriamente, como esta declaração poderia ser considerada como "blasfémia". Esta ques

tão  se relaciona  ao  problema mais geral  do aspecto jurídico do processo  de Jesus.Parece-me certo que aqui os Sinópticos (diferentemente do Evangelho de João) modificaram a situação jurídica real; porém, a autenticidade do título de Jesus não é, porisso, afetada. Cf. também nosso estudo, Dieu et  César, em partic. p. 44 ss.

•"0Cf. a este respeito TH. PREISS, op. cit., p. 36 s. e abaixo, p. 240 s.

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210 Oscar Cullmarm

exclusivamente escatológico, deviam ser transpostas para o presente quando Jesus as aplicava a si, já que para Ele sua vindasignificava o começo do fim dos tempos. Tal é o que põe em

claríssima evidência a resposta de Jesus ao Batista (Mt 11.4 ss.)."Ide, e anunciai a João o que estais ouvindo e vendo...", ou ainda apalavra de Mt 12.28, par.: "Se, porém, eu expulso os demóniospelo Espírito (Lc: dedo) de Deus, certamente é chegado o reino deDeus sobre vós." - e muitas outras declarações mais.345

Daí que Jesus, durante sua encarnação terrena, pudesse se auto-designar como "Filho do Homem", mesmo que não tenha descido

à terra "nas nuvens do céu". Ideia nova é esta da encarnação doFilho do Homem, feito no seio da humanidade um homem entreos homens, tanto no que concerne a Daniel ou Enoque, como aFílon: até agora, não se descobriu traço algum dela em nenhumaparte do judaísmo.

Verdade  é   que  Jesus  nunca faia de uma "segunda" vindado Filho do Homem.346 Nos Sinópticos nunca diz: "Eu voltarei".

Ao fazer sua, a esperança judaica, fala unicamente da "vinda", da"parusia", do Filho do Homem. Não dá, tampouco, o nome de"parusia" à sua aparição sobre a terra, a seu nascimento; por estaexpressão estar demasiado ligada á ideia de gloria messiânica. Nãoespecula sobre sua preexistência; nem sonha em falar de suaencarnação, nem situá-la paralelamente à parusia, como se haveria de fazer mais tarde. Nem tampouco nos informa sobre a passa

gem de sua vida humana e terrena - que será coroada por sua morte-para a parusia.347  E, no entanto, certamente concebeu sua duplamissão (presente e futura) como unidade indivisível, se se admiteque considerou a si mesmo como o Ebed Iahweh.

Cf. W. G. KUMMEL, Verheisswtg und Erfullimg,  2a ed., 1953, em part, p. 98 ss.Trata-sede uma segunda aparição, portanto de um retorno, em Hb. 9.28; cf. acima,

p. 136 ss. Mais tarde em JUSTINO, Dial. com Tryph.  14.8; 40.4.Na resposta ao sumo sacerdote (Mc 14.62), rtãoé, ademais, somente Dn 7.13 queécitado, mas também o SI 110, ao qual Jesus já se havia referido anteriormente (cf.acima p. 173 s.). O "sentar-se à direita de Deus" constituía, também, um laço temporal entre a vida terrena de Jesus e sua vinda no final dos tempos; embora, deacordo com o logion, não seja contemplado senão no fim.

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CfUSTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 211

O título de Filho do Homem, quando Jesus o aplica a suamissão terrena, expressa, também, sua humilhação. Em outros termos: pôde Jesus, em certos momentos decisivos, relacionar estreitamente o título de "Filho do Homem" e os sofrimentos do Ebed

 Iahweh. Pensemos na clássica passagem em que Jesus exclamou:"O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir edar a sua vida em resgate por muitos" (Mc 10.45). Ou naquelaoutra: "É necessário que o Filho do Homem padeça muito e sejarejeitado pelos anciãos, pelos principais dos sacerdotes e pelosescribas e ser morto" (Mc 8.31). Nesta pregação Jesus emprega otítulo de "Filho do Homem" e lhe associa a ideia348  de Servosofredor de Deus. Esta associação, de importância fundamentalpara a consciência que Jesus tinha a respeito de si, se expressatambém na declaração citada em Mc 2.10: "O Filho do Homemtem sobre a terra autoridade para perdoai' os pecados".34í>

Cabe perguntar por que Jesus não preferiu simplesmente o título de

Ebed Iahweh e não subordinou ao mesmo a ideia de Filho do Homem.350

De fato, das duas, a noção de Filho do Homem é a mais exaustiva, porquanto se relaciona, por um lado, à obra futura de Jesus; e por outro, à obrade Jesus encarnado, em cujo caso a sua humanidade está referida. Entende-se, pois, a subordinação da ideia de Ebed Iahweh à de Filho do Homem.Em Jesus, a missão do Ebed Iahweh converte-se, em certo sentido, no conteúdo essencial da obra terrena do Filho do Homem. Desde o momento emque a noção de Filho do Homem se aplica a uma vida terrena (o que, como

 já o temos dito constituiria uma total inovação no desenvolvimento destanoção) ambos os títulos cristológicos capitais: Filho do homem e Servosofredor de Deus deveriam forçosamente, encontrar-se.

Portanto, as duas noções, a de Filho do Homem e a de  Ebed Iahweh, já existiam no judaísmo; porém, o realmente novo é que

348

 Portanto, não somente o título em 4 Esdras e Enoque.348 Se pensarmos que devemos sempre levar em consideração a significação coletivade "Filho do Homem", o trecho deMt 18.18 ss., no qual Jesus dá a seus discípuloso pleno poder de ligar e desligar "sobre a terra", se esclarece a nossos olhos. Cf. TH.PREISS,i* Fils de 1'komme,  1951, p. 27.

VM  Cf. também a este respeito W. MANSON, Jesus the Messiah,  1946, p. 156 s.

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 Í]2 Oscar Culhnann

Jesus as tenha reunido, que tenha misturado ambos os títulos, oprimeiro dos quais expressa a majestade mais soberana que se pode

conceber, enquanto que o outro é a expressão da humilhação maisprofunda. Mesmo admitindo-se que o judaísmo já conhecia a ideiade um Messias sofredor é impossível demonstrar que tal sofrimento tenha sido associado à imagem do homem celestial que vemnas nuvens do céu.351  Temos aí a obra absolutamente nova, consumada por Jesus, de haver reunido em sua consciência as duasvocações aparentemente contraditórias, e de haver expressado sua

unidade por seu ensinamento e por sua vida.No entanto, uma condição prévia importante para esta vinculação já existia no judaísmo, no sentido de terem em comum, obamascha e o Ebed Iahweh, a noção de substituição: o "Fiiho doHomem", segundo sua significação mais profunda, expressajá pelopróprio termo, representa a humanidade (segundo Daniel, o "povodos santos"), e o Ebed Iahweh  representa o povo de Israel. Em

uma e outra figura a coletividade é representada por um indivíduo.No capítulo sobre o Servo de Deus demonstramos como todo osentido da história da salvação reside nesta ideia. Ela encontra suaexpressão nos títulos cristológicos mais importantes.

Já vimos que Jesus opôs a ideia de Filho do Homem à deMessias nos momentos decisivos de sua vida, para expressar aconsciência que tinha de si mesmo: em Cesaréia de Filipe, onde é

ele quem formula a seus discípulos a pergunta "cristológica",352

  ediante do sumo sacerdote, onde é a ele a quem se faz a pergunta.Verdade é que em Cesaréia de Filipe trata-se de sua obra terrena, ediante do sumo sacerdote trata-se de sua obra futura. Em Cesaréia

Em 4 Esdrase no livro etíope de Enoque as relações entre o Filho do Homem e o Servo de Deus são puramente formais e não concernem ao sofrimento. Cf. acima, p. 190.

Segundo E. PERCY, Die Botschaft Jesu,  1953, p. 227 ss. (e também segundo R.BULTMANN, Gesch. d. Synopl. TradUion, p. 276), este relato não deveria ser considerado como histórico. É verdade que PERCY - diferentemente de BULTMANN-  crê que Jesus se considerou ser o portador escatológico da salvação. Porém, nãoencontra a prova senão em Mt  11. 4 ss. par. (resposta ao Batista); Mc 2.19 s. (palavra do esposo); e ainda em Mt 10.35 e Mt 12.41 s. par.

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CRISTOLOGIA  DO NOVO TESTAMEÍ TTO 213

de Filipe o termo "Filho do Homem" expressa, pois, sua humilhação, enquanto que diante do sumo sacerdote expressa sua soberania. Porém, o fato  de que, em ambos os casos, Jesus oponha ao

título de Messias o de Filho do Homem, prova justamente que paraele tratava-se de dois aspectos diferentes de uma mesma função.Na antiga dogmática se opunha frequentemente  o "Filho do

Homem" ao "Filho de Deus". Do ponto de vista do dogma "verdadeiro Deus e verdadeiro homem", proclamado mais tarde, a qualificação de "Filho do Homem" era considerada como expressandounicamente a natureza "humana" de Jesus, por oposição a sua natu

reza "divina".  Não se conhecia, então, as especulações judaicasrelativas à figura do Filho do Homem e não se percebia que Jesus,ao aplicar-se este título, conferia a si mesmo um caráter celestial,até divino. Reagindo contra esta errada interpretação, muitos dosatuais exegetas do No vo Test ame nto afortun adame nte sublinhamu.iu«io  L A V ^ U U

  U VJ n V * "  i v j m i i i w i i u , a i ir i iu i iuuui i iwi i .1 . , auuni i i i tuu

a pretensão à soberania que supõe a adoeão deste título por partede Jesus. Porém, talvez vão demasiado longe neste sentido; pois é

possível que a antiga utilização do título "Filho do Homem" contenha um elemento de verdade. Certamente a ideia de "Natureza"é forânea a Jesus. Porém nos parece que ao adotar este título igualmente para  sua vida  terrena, Jesus quer por em relevo sua humilhação. No instante em que se admite que o Filho do Homem seencarne que deva sofrer muito e ser morto  a ideia de humilhação- consequência da encarnação do homem celestial -  se impõe necessariamente ao espírito Encontramos também esta ideia na basedo hino de Fl 2 6 ss  do qual nos ocuparemos no'parágrafo seguinteAqui nos limitamos  a sublinhar que Jesus  ao aplicar a sua obraterrestre o título de Filho do Homem alude também a sua humilhação  Há uma confirmação disso' nas palavras de Mt 8 20:"As rinosas têm covis e as aves do  céu  têm ninhos  mas  o Filho

do Homem  não tem onde reclinar  a cabeça.  Mi  Igualmente em

'Para outra explicação (se se tratasse de homens  em geral), cf. acima,  p.203,  nota329.  E  também possível reunir as duas explicações como o tem  feito igualmenteaqui TH. PREISS, op. cit., p. 29 (e também para Mt 11.19, cf.  ibid., p. 30), já queJesus tem consciência de representar  a humanidade.

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214  Oscar Cullmann

Mt  H.19 a palavra relativa ao Filho do Homem que "veio comendo e bebendo" tem de ser tomada no mesmo sentido.

Veremos que, ademais, Jesus se considerou como "Filho de

Deus". Em consequência, o emprego do título "Filho do Homem",a despeito da pretensão à soberania que supõe, deveria necessariamente evocar a ideia de humilhação.-354 O sentido etimológico de"homem" por oposição a Deus, não pôde ser, com efeito, inteiramente suplantado pelo sentido técnico tirado da dogmática escatológica; e tanto mais pelo fato de que Jesus tinha consciência de achar-se em uma relação muito particular, única, com Deus. Ao identificar

em sua pessoa o "Filho do Homem" celestial e o Ebed Iahwehsofredor, não pôde ignorar todas as passagens do Antigo Testamento, e particularmente os Salmos, em que a expressão ben-adam(filho do homem), indica a debilidade, a precariedade do homemfrente ao poder de Deus.

É necessário recordar aqui, ademais, que a ideia de Filho doHomem como a de Ebed Iahweh supõe a noção de substituição:"o homem" representa "os homens" e ele, na qualidade de Filhodo Homem, participa, por conseguinte, da debilidade deles.

Creu Jesus em sua preexistência? Temos visto que os textos judaicos não mencionam uma encarnação do  barnascha,  massomente sua aparição em gloria, no final dos tempos; e, no entanto, admitem sua preexistência. Como as ideias judaicas eram, porcerto, familiares a Jesus, pode-se perguntar se ele refletiu sobre asua própria preexistência. Esta questão, que voltaremos a encon

trar no capítulo relativo a Jesus Filho de Deus, se põe já a propósito do título Filho do Homem. Na verdade, aqui é difícil respondê-la. A fórmula quase técnica de "o Filho do Homem veio..." poderia,no entanto, nos permitir supor uma resposta afirmativa.

Tampouco Jesus disse algo acerca de sua relação com Adão,salvo uma vez em que parece expressar a convicção de uma cor-

Segundo W. MANSON,  Jesus the Messiah,  1946, p. 159 s. Jesus opõe também o"Filho do Homem" ao "Filho de Deus", e isto no relato da tentação, onde o diabodisse: "Se tu és o filho de Deus", e onde Jesus responde com Dt 8.3: "não só de pãoviverá o homem."   O Targwn de Jonathan escreve aqui, para "homem",  barnascha.

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CRISTOLOGIA  DO NOV O TESTAMENTO 215

rupção geral da humanidade, quando disse: "Vós sendo maus..."(Mt 7.11). Porém, não se poderia interpretar esta palavra no sentido de uma especulação sobre a origem do pecado. No máximo

podemos supor que ao qualificar-se como "Filho do Homem", deuma ou outra maneira, pôs sua obra em relação com a criação dohomem e, talvez, inclusive com Adão. Com efeito, se ao empregareste título para designar sua pessoa e sua função, pensou, por umlado, no Filho do Homem que vem sobre as nuvens do céu e, poroutro, em sua primeira vinda, para sofrer e morrer em lugar doshomens é possível admitir que contemplasse sua obra em relação

à criação do homem "à imagem de Deus". Em todo caso, na basedo relato sinóptico da tentação de Jesus se encontra a ideia de umaoposição entre a desobediência de Adão e a obediência de Jesus,diante da tentação diabólica.

Chegamos assim à seguinte conclusão: Jesus - abstração feita de duas ou três passagens em que é possível que esta expressão designe  todos  os homens - expressou pelo título "Filho do

Homem" sua convicção de haver realizado a obra do homemcelestial. E isto de duas maneiras: por um lado, no fim dos temposna gloria conforme a esperança de certos meios judaicos; e poroutro, na humilhação da encarnação no seio da humanidade pecadora (ideia alheia a todas as concepções anteriores acerca do"Filho do homem"). Quanto à relação que Jesus estabeleceu entresi mesmo, na qualidade de "Filho do Homem", e o "primeiro

homem", só se pode arriscar, neste momento, conjecturas.

3.  A CRISTOLOGIA DO FILHO DO HOMEM FOI APRESENTADA DE UMA MANEIRA PARTICULAR NO SEIODO CRISTIANISMO PRIMITIVO?

Já vimos que a cristologia do Filho do Homem não é a dos

evangelistas sinópticos. Embora a expressão "Filho do Homem"apareça mais frequentemente nos três primeiros Evangelhos queem qualquer outro escrito cristão primitivo (aparece 69 vezes) nãoexpressa a fé pessoal de seus autores em Jesus. Para eles, Jesus é o

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2lfi  Oscar Culhnann

"Cristo"; onde lemos "Filho do Homem" - sempre na boca deJesus - trata-se de uma tradição existente antes deles, a qual simplesmente reproduzem. Quais eram pois, no cristianismo primi

tivo, aqueles círculos que viam no título "Filho do homem" - j átão importante para Jesus - a solução do problema cristológico?Lohmeyer, em sua importante obra: Gahlãa und Jerusalém, 1936,busca resolver esta questão pela geografia. Houve na Palestina -sustenta - em essência, dois cristianismos primitivos: o galileu e ohierosolimitano. Daí surgem duas tradições, assim como duas cris-tologias, cada uma das quais tem uma origem geográfica distinta.

A da Galileia: a cristologia do Filho do Homem (e do Kyrios); e ade Jerusalém: a cristologia do Messias.Lohmeyer, certamente, tem razão quando distingue diferentes

correntes no seio do cristianismo palestino primitivo. Temos sublinhado, já em muitas ocasiões, a extrema variedade que o judaísmopalestino apresenta.. Os textos de Qumran recentemente confirmaram esta opinião. E muito provável que também haja variedade

análoga no seio do cristianismo palestino primitivo. A distinçãocorrente Pa\esúna.-diáspom é éfetiva e endubiiavelmente insuficiente. Porém, não cremos que a delimitação de diversos grupos nointerior da Palestina possa ser feita, como o propõe Lohmeyer,utilizando-se de um critério geográfico. Uma repartição esquemática das crenças cristãs primitivas entre Galileia e Jerusalémé um tanto fictícia e arbitrária, e mal pode apoiar-se nos textos.

Não encontramos, na tradição cristã primitiva, mais que umadivergência onde atua a oposição geográfica Galileia - Jerusalém;a saber: nas aparições do Ressuscitado. Porém, nada nos permiteestabelecer análoga distinção no domínio das crenças cristológicas

Por outro lado, encontramos em Jerusalém, no seio da comunidade primitiva, o grupo dos helemstas, ao qual se deveria conceder muito mais importância, para o estudo das origens do cristi

anismo, do que a que se costuma dar usualmente,355

 no estudo das

Em nosso artigo sobre a importância dos textos de Qumran para o estudo da literatura cristãprimitiva (Positions luthériennes, 4, 1956, p. 5 ss.;cf. acima, p. 84, nota

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V^RISTOLOGIA DO Novo  TESTAMENTO 217

origens do cristianismo. O helenismo - ou mais exatamente: o sincretismo oriental helenístico - não existe somente fora da Palestina. Desdenhar este fato em favor de uma concepção excessiva

mente esquemática acarreta muitas vezes uma localização muitoprematura dos escritos cristãos primitivos: pensemos, por exemplo, no Evangelho de João.

Temos que relacionar a questão dos "helenistas" palestinoscom a da cristologia do Filho do Homem. Sobre outros pontos -por exemplo: a atitude frente ao Templo - eram eles mais fiéis queoutros grupos ao ensinamento de Jesus.356 Não terão sido também

mais fiéis que os Sinópticos à consciência que Jesus tinha de suaprópria pessoa e de sua obra? Porém, dado que sua maneira decompreender o evangelho não era a predominante no seio dacomunidade primitiva, não possuímos senão magros indícios desuas opiniões peculiares. No entanto, não devemos perder de vistaestes indícios.

No judaísmo - já o temos visto - a esperança no Filho do

Homem já era tida em certos meios esotéricos quase como umadoutrina secreta. Jesus deve ter entrado em contato, de uma maneira ou outra, com estes meios. Não será possível que, durante sua vida, alguns de seus discípulos fossem provenientes daí?O grupo dos "helenistas" não se formou, por certo, subitamente e,por assim dizer, ex-nihilo, depois da morte de Jesus. Suas origensremontam, muito provavelmente, à época da vida terrestre de Jesus.

Assim se abrem certas perspectivas susceptíveis de projetar umanova luz sobre as relações entre certas correntes do cristianismo

130) emitimos a hipótese de que as relações entre a seita de Qumran e o cristianismo primitivo passariam por estes "helenistas"'. 'EM/nviaTcá não designa os judeusque "falam grego", mas aqueles que vivem à maneira grega: como, igualmente, para'EppocTov não se pode citar um texto que prove de uma maneira certa que se tratavasomente de uma designação linguística. Sobre a questão dos "helenistas" em Atos

dos Apóstolos, cf. JACKSON-LAKE, The Beginníngs ofChristiamtv,  vol. V. 1933,p. 59 ss. Sobre o conjunto da questão, cf. abaixo, p. 239 ss.

'^Cf. O. CULLMANN, IM  Samarie et les origines de la mission chrétierme (Annuairede VEcoh pratique des Haittes Eutdes, Paris, 1953, p. 3 ss). Cf., ademais, o arligocitado na nota precedente.

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2.18 Oscar Cuitmaim

primitivo e esses círculos esotéricos Judaicos.357 O termo "helenis-tas" se explicaria então muito simplesmente pelo fato de não existir então outra expressão com que designar o judaísmo "sincrético-

helenístico".Limitamo-nos, no entanto, neste parágrafo, a esboçar a ques

tão. Antes de buscar resolvê-la, armando-nos de toda a prudêncianecessária, estudaremos os caracteres que apresentam, nos diversos escritos neotestamentários, à parte os Sinópticos, as concepções relativas ao "Filho do Homem".

4.  A NOÇÃO DE "FILHO DO HOMEM" SEGUNDO O APÓSTOLO PAULO

Começaremos com o apóstolo Paulo, em quem encontramosacristologia mais desenvolvida do cristianismo primitivo; no entanto, o título de "Filho do Homem" não aparece em seus escritos -ao menos na forma em que nos é familiar nos Evangelhos. Das

duas noções judaicas que têm suas raizes comuns na ideia de "primeiro homem", Paulo parece não ter conhecido senão aquela quese refere a Adão. Com efeito, é especialmente neste aspecto doproblema que ele se interessa. Contudo, a teologia e a cristologiapaulinas estão tão profundamente banhadas na escatologia quePaulo chama ao "segundo Adão" o "último Adão" (ó £ox«.xoç'Aôáu., 1 Co 15.45) ou o "Adão que há de vir" (ó u.éX,Xtov, Rm

5.14). Ainda se suas declarações, relativas ao "homem", não contêm nenhuma alusão direta a Daniel 7, nem por isso deixam departicipar na crença segundo a qual o Cristo há de vir nas nuvensdo céu. Em 1 Ts 4.17 escreve que "nós seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens para o encontro do Senhor nos ares, eassim estaremos para sempre com o Senhor". Esta esperança deve

,57Cf. nossos artigos citados p. 142 sobre os textos de Qumrane ainda particularmentenosso estudo "Secte de Qumran, Hellénistes des Actes et IVe  Evangile", na obracoietiva Les manuscrits de la mer Marte; COLLOQUE DE STRASBOURG,  25-27mai./1955, Paris, 1957, p. 61 ss., no qual expusemos nossa tese detalhadamente.

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CRISTOLOGIA DO NOVO XBSTAMENTO 219

ter sua origem em Dn 7.13, onde o Filho do Homem vem "nasnuvens".

No entanto, o interesse de Paulo se concentra primordialmente

no homem celestial encarnado, no "segundo Adão". É que Paulopode olhar para trás, em direção ao "Filho do Homem" que  jáapareceu. Porém, dá também grande importância à relação entre oEncarnado e o "último homem" que há de vir no fim dos tempos.Vê-se isto claramente nas passagens de 1 Co 15.45ss. que teremosde comentar logo, cujo quadro é totalmente escatológico.

Paulo trouxe a solução cristã ao problema judaico da relação

entre o Filho do Homem e Adão, de maneira totalmente em acordo com a consciência que Jesus tinha de si mesmo. Parte, por certo, de especulações judaicas cuja finalidade, segundo temos visto,era tornar possível a identificação (em si irrealizável) do Filho doHomem com Adão. Porém, ao mesmo tempo, assinala o caminhoque permite superar estas especulações. O elemento absolutamente novo é que, antes de tudo, o Filho do Homem se vê identificado

com um homem histórico que viveu sobre a terra em um momento determinado da história do mundo. Portanto, já não se trata doeterno retorno do homem celestial, ensinado por certos meios

 judeu-cristãos, nem tampouco do mito gnóstico da descida à terrade um ser celestial disfarçado de homem. Tudo isto fica superado.Porém, de fato, a relação entre o Filho do Homem e Adão assumeum aspecto cabalmente distinto.

Para compreendermos perfeitamente a originalidade da solução paulina do problema, temos de conhecer e ter constantementepresente a teoria dos "dois homens", desenvolvida por Fílon deAlexandria e que já foi exposta acima.

Três passagens merecem aqui reter especialmente nossa atenção:  1 Co 15.45 ss.. Rm 5.12-21 (passagem já ciiada no capítuloconsagrado ao Servo de Deus);353 e enfim, Fl 2.5-11 (este hino já

estudado também, a propósito do Servo de Deus).

359

Cf. acima, p. 106 s.Cf. acima, p. 106 s.

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220 Oscar Cullmann

Começaremos por 1 Co 15.45-47: "O primeiro homem, Adão.foi feito alma vivente; o último Adão, espírito vivificante. Masnão é primeiro o espiritual, senão o animal, e depois o espiritual.

O primeiro homem, sendo da terra, é terreno, o segundo homem édo céu". Parece-nos haver aqui clara alusão polémica a uma doutrina muito análoga à de Fílon. Como tomou Paulo conhecimento dela? Leu-a no próprio Fílon, talvez em um de seus tratados?Não é muito provável. Poder-se-ia, de preferência, admitir que teveconhecimento destas coisas nos meios rabínicos, pesando-se o fatode não haver, na literatura rabínica, texto antigo em que ela se

encontre.

360

 Fílon não foi o único, por certo, a defendê-la.Seja isso como for, parece-nos certo que Paulo parte desta doutrina testemunhada em Fílon,íúl  ao mesmo tempo em que a combate em todos os seus pontos essenciais. Ele fala de um "primeiro" e de um "último" Adão: 7rpccTroç e êa%ocTo<; 'Aôáu. No demais,não encontramos em nenhuma outra parte a expressão "últimoAdão". Paulo, portanto, a criou simplesmente por analogia com o

Ttpóòxoç 'Aôáu.. Nesta antítese ela deve ter a mesma significaçãoque "segundo homem", ôeíiTEpoç ávOpomoç, expressão que lemosno v. 47: ó ôewepoç avGpcoTtoç è£, oúpavoí). É patente aqui arelação entre o "homem" encarnado e o "homem" futuro. O v. 48explica porque aparecem neste capítulo, sobre a ressurreição, estasconsiderações. Trata-se da relação escatológica entre o carátercelestial do Filho do Homem e os homens que lhe pertencem.

Paulo retoma, assim, a teoria do homem celestial, porém, identifica este com um personagem histórico, Jesus de Nazaré: nesteponto a relação com a tradição judaica se torna nítida. Mas, quedizer quanto à identificação do homem celestial com Adão e, portanto, do problema particular posto ao pensamento judaico? Nesteponto Paulo se separa deliberadamente da doutrina Filoniana à

'"Cf. STR.-B1ILLERBECK, III, p. 478. - Quanto à possível existência de tradiçõesmais antigas cf. acima, p. 198, nota 322.

11 É também a opinião de J. HÉRING, Laprimière Epitre de Saint Paulaux Cormthiens, \9A9,fií/ . loc; cf. também, do mesmo autor, Le Royawne de Dieuetsa venue, 1937,p. 153 ss.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 221

qual ataca expressamente. O v. 46 o mostra com clareza: não é oespiritual,  xò  jcvEvpaTiKÓv, o primeiro (isto é, não é o "últimoAdão" paulino) senão o animal, TÓ XIÍ XVKÓV, ou seja, o primeiroAdão; só depois vem o espiritual. É evidente que esta frase carecede sentido, a menos que Paulo pense em uma doutrina que afirmaprecisamente o que ele nega.

Em outros termos, o homem celestial não deve ser identificado (como em Fílon) com o primeiro homem criado, nem mesmosob a forma atenuada que esta identificação toma em Fílon. A originalidade do pensamento de Paulo consiste em que, se ele retoma

a doutrina do homem celestial e também relaciona este com o primeiro homem criado, recusa, em troca, absolutamente sua identificação. No princípio o homem celestial não era precisamente oprimeiro homem da criação. Não há dois "primeiros homens" queteriam sido criados no começo do tempo. Não há mais que umAdão que foi o primeiro criado; e não há mais que um Adão que,infiel a sua missão divina, transgrediu o mandamento de Deus.

Inversamente, o homem celestial ideal, o protótipo perfeito dahumanidade, não pertence à história da criação do homem relatada em Génesis; não é senão mais tarde, EJTÊITCÍ, que apareceu comohomem encarnado.362 A ordem cronológica de Fílon se inverteu.

Certamente Paulo crê, também, na preexistência do homem celestial.Já vimos que no judaísmo, inclusive ali onde o Filho do Homem desempenha só um papel escatológico (como em Daniel, 4 Esdras ou Enoque),

sua preexistência é implicitamente admitida; e justamente aí se encontraa relação entre as duas doutrinas: a puramente escatológica e a que acentua a relação corri o primeiro homem.if>í   Porém, não encontramos emPaulo (como tampouco nos textos escatológicos do judaísmo) nenhuma

'2 K. BARTH, Christus itnd Adam  nach Rom. 5.  "Ein Beitrag zur Frage nach demMenschen und der Menschheit"  (Theol.  Stud.  35), 1952, não leva suficientementeem consideração esta última determinação cronológica da relação entre Adão e Cristo.

Por outro lado, reconheceu e sublinhou a importância que representa para a antropologia a teoria paulina Cristo - Adão. J. HÉRING demonstra muito bem as consequências teológicas da doutrina Cristo-Adão, em seu estudo: "Les bases bibliquesd'um liumanisme chrétien" RHPR, 1945, p. 17 ss.

w,Cf. acima, p. 198 s.

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222 Oscar Culimattn

especulação relativa a esta preexistência; pára ele é um fato: o "segundoAdão" vem do céu, onde está como a "imagem de Deus".

Como representar esta preexistência? O Novo Testamento respon

de a esta pergunta partindo não da ideia de Filho do Homem, mas da de Logos, M   que lhe esta vinculada: o Evangelho de João nos diz, com efeito, que o Logos estava "com Deus".

Segundo Paulo, o homem celestial Jesus, não só não é idêntico a Adão, mas, pelo contrário, veio reparar a falta de Adão, isto é,cumprir a missão que o primeiro homem não cumpriu. Paulo não

admite que haja dois "primeiros homens", dos quais o primeiroseria o de Gn 1.27 e o segundo o de Gn 2.7. Para ele trata-se de umsó e mesmo Adão. Cita unicamente, é verdade, a Gn 2.7, onde sediz que Adão foi formado do pó da terra e que Deus soprou emsuas narinas para convertê-lo em ser vivente. Porém, Paulo nãopensa, em nenhum momento, em opor esta passagem ao de Gn1.27, que afirma ter sido criado o homem à imagem de Deus. Não

pode haver aí oposição pelo fato de Gn 1.27 não se referir a umhomem celestial, que mais tarde se encarnaria em Jesus: o Adão,criado à imagem de Deus é o que caiu em pecado. Verdade é que,segundo vimos, ao homem celestial Jesus, se lhe considerava preexistente; porém para Paulo o relato de Génesis não contém alusãoalguma a este Jesus preexistente; como em todo o Novo Testamento (exceto João 1.1 ss.), esta preexistência é mais implicita

mente suposta que descrita. Na passagem que nos ocupa (1 Co15.45 ss.) Paulo expressa, com meridiana clareza, a opinião dehaver aparecido o Filho do Homem pela primeira vez na terra napessoa de Jesus, ao cumprir-se o tempo antes do qual na terra sóexistia o Adão pecador. Paulo representa o Filho do Homem comoo mediador da criação (1 Co 8.6; Cl  1.15). Em seu pensamentonão cabe, pois, a ideia de ter ele existido no começo como um "ho

mem" criado e encarnado. Sua preexistência é anterior à criação.365

Cf. abaixo, p. 327 s..Cf. a este respeito o que se diz mais abaixo, p. 231, sobre a ideia da "imagem deDeus", EÍKÔV.

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CíUSTOL0Gt& DQ NOVO TESTAMENTO 2TÍ-

No entanto, se houver uma identidade entre Adão e o Filhodo Homem Jesus, esta não reside em sua pessoa mas em sua missão,366  a missão de representai" a imagem de Deus. Porém, no que

diz respeito à execução da missão, se opõem radicalmente um aooutro: Adão foi infiel, pecou; e, por conseguinte, toda a humanidade se tornou pecadora; isto é, ela deixou de ser a imagem deDeus. Um só ser é a exceção: o homem celestial que já existiadesde o começo e que não estava na terra e que não veio a elasenão como "homem" encarnado muito mais tarde, EFEITO;.

Sua vinda à terra não está, no entanto, desprovida de relação

com o "primeiro homem", já que ele vem expiar o pecado deste.Ainda que esta idéía não estejadiretamenteexpressa em 1 Co 15.45-47 o está, ao menos, implicitamente. Por conseguinte, o "Filho doHomem" se situa em uma dupla relação com Adão: positivamente, partilha com ele a missão divina de representar a imagem deDeus, negativamente, deve reparar a falta de Adão. Um e outroaspecto são dignos de atenção.

* * *

Este aspecto "reparador" ocupa o primeiro plano em outrapassagem paulina onde voltaremos a encontrar a ideia de Filho doHomem: Rm 5.12 ss. A resposta dada por Paulo ao problema deAdão-Filho do Homem, ao qual o judaísmo não pôde dar umaverdadeira solução, aparece aqui com nitidez. Com efeito, tentarfazer recair o pecado dos homens não sobre Adão, mas sobre aqueda dos anjos (Enoque), ou negar pura e simplesmente a quedade Adão (judeu-cristãos), ou ainda, defender uma solução intermediária pelo desdobramento do "primeiro homem" (Fílon), nãoresolveria o problema. Somente Paulo poderia apresentar uma verdadeira solução já que, segundo ele, o Filho do Homem não se

s KARL BARTH, no estudo citado mais acima, p. 221, nota 362, insiste sobre o fatode que em Rtn 5, tudo o que se diz de Adão tião se torna compreensível senão à luxdo segundo Adão, do Cristo: ele tem razão no sentido de que, segundo Paulo, ohomem imago dei não apareceu verdadeiramente senão com Jesus.

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'224 Oscar Cullmemn

limitou a meramente repetir o que já existia desde o princípio, masproporcionou algo radicalmente novo. Paulo contempla toda a história da salvação a partir do "homem" encarnado; chega a com

preender o que é o "Filho do Homem" baseando-se na encarnação.Em outras palavras, capta todo o alcance da  encarnação  dohomem celestial. Isto lhe permite manter a relação entre o Filhodo Homem e Adão no sentido já indicado, mas ao mesmo temporecusar categoricamente sua identificação: só no final dos tempos,inaugurado pela vinda de Jesus, é que a semelhança do homemcelestial com Deus se tornará eficaz para a humanidade criada,tanto na obra expiatória efetuada por seu pecado, como na transformação do seu corpo de pecado em corpo de glória.

Os versículos que, em Rm 5.12, têm uma importância decisiva para a questão que nos ocupa são os seguintes: "Assim comopor um só homem o pecado entrou no mundo e pelo pecadoa morte, assim a morte se estendeu a todos os homens... (v.12).

Porém, não assim com o dom gratuito como a ofensa, pois se pelaofensa de um só muitos morreram, com muito maior razão, a graça de Deus e o dom da graça vindo de um só homem, Jesus Cristo,foram estendidos abundantemente sobre muitos... (v. 15). Assim,como por  uma só  ofensa, a condenação alcançou a todos oshomens, da mesma maneira, por um só ato de justiça, a justificação que dá a vida, se estende a todos os homens. Pois assim como

pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, pela obediência de um só, muitos se tornarão justos" (vs. 18, 19).?S7

Nestes versículos, o apóstolo insiste, sobretudo, na  obraexpiatória realizada pelo homem Jesus. As noções de "Filho dohomem" e de Ebed Iahweh  estão pois estreitamente vinculadas.

J. HÉRING, em seu Cominentaire (Cf. acima, p. 220, nota 361) e anteriormente jiíem Le Royaume de Dieu et sa venite, 1937, p. 155 ss., propõe traduzir £iç-etç por"um-outro". Esta tradução não me parece impor-se: trata-se, com efeito, da oposição "um-muitos", e o apóstolo quer mostrar que esta mesma oposição aparece nosdois casos, com Adão e com Jesus.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO _225

Poderia, à primeira vista, parecer arbitrário querer encontrar nestetexto uma alusão à ideia de Filho do Homem. É-nos necessário examinar,pois,  sobre que fundamento descansa tal confrontação estabelecida aquientre Adão e Cristo. O v. 14b diz acerca de Adão que é o  TÍITCOÇ  TOÚu,éXXovT,oç, portanto, do ecr^ccToç, do ôeút epo ç 'ASáu.. Porém, é evidente que em nosso texto esta noção, de "segundo Adão", tem a mesmaraiz que a ideia de Filho do homem. Esta terminologia não deve induzir-nos aqui a conclusões erróneas. Verdade  é   que a expressão xúòç w ôccvôpíújtov  não se encontra nestes vers ículos; porém, no v. 15 Jesus édesignado por estas palavras: eíç ôtv6pamoç  'ITICTOOÇ.  Agora, sabemosque entre os evangelistas a palavra simples av0pco7toç, assim como inòçTOÍ>  àvSprójtoT), ,raduz z mesmo oocábulo oramaico:  :antascha.  Neste

texto, que comentamos atites (1 Co 15.45 ss.), onde se trata do homemcelestial, Paulo emprega igualmente a palavra ctvepcúJtoç. Pois bemele nunca emprega a expressão rjíòç  TOO àvQpá>nox>.  Esta se encontrasomente nos Evangelhos, em Atos dos Apóstolos e no Apocalipse de

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226  Oscar Cullntann

João.368 A razão é que os evangelistas, inclusive João, conservavam ainda a impressão de haver Jesus atribuído a esta expressão um sentido particular: a fim de que a expressão "Filho do Homem", que Jesus utilizoupara qualificar-se a si mesmo, não corresse o risco de confundir-se com apalavra corrente para designar simplesmente ao "homem", empregam aexpressão "oiòç xov  àv&pá>nox> quando lhes parece que Jesus lhe atribuíaum sentido cristológico. Porém, em Paulo não ocorre o mesmo; não sepoderá portanto deduzir daí que ele queira excluir a interpretaçãocristológica do termo  bamascha  quando escreve somente ctv9píú7ioç.Em 1 Co  15.21,  também, (5i' ccvôpómov» àváotaoiç) deve-se tomarbamascha em um sentido cristológico. A ideia (que sem dúvida já era deJesus) segundo a qual o "Filho do Homem" representa também ahumanidade é tão familiar ao apóstolo que, em grego, ele não estabelecediferença entre o "homem", no sentido específico (Jesus), e o "homem"em geral, como tampouco se faz em aramaico.

Compreendemos como Paulo pôde e precisou ver nesta junção das ideias de "Filho do Homem" e de Ebed lahweh a soluçãodo problema "Filho do Homem-Adão" que os judeus não tinham

resolvido. Estes dois conceitos têm em comum a ideia de substituição. A noção de "homem celestial" supõe absolutamente ditaideia, e inclusive se baseia nela, já que o homem celestial tem pormissão salvar aos homens fazendo com que eles sejam o que elemesmo é: a imagem de Deus. Agora, os homens pecaram; Adão, oprimeiro homem, o representante de todos os homens, pecou eeste pecado tem que ser expiado. O homem celestial, o protótipo

divino da humanidade, a fim de poder livrá-la de seus pecadostem de incorporar-se à humanidade pecadora.

Não basta que, como no gnosticisnio helenístico, para salvar oshomens, o homem celestial desça à terra e logo suba ao céu (cf. por exemplo, o Hino dos Naasenianos segundo Hipólito, Philos, V, 6-11). Pois no

 judaísmo e no cristianismo não se trata de livrar o homem da matéria,mas do pecado. Para isso uma simples "aparição" sobre a terra não basta.

O que se necessita é a expiação pelo "homem".

E também em um versículo da Epístola aos Hebreus, que é uma citação do Salmo !(Hb 2.6).

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C-RISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO Tp

Vemos aqui como, em terreno cristão, a noção de Filho doHomem devia necessariamente reunir-se à de Ebed Iahweh, quedescansa sobre o conceito de substituição quanto ao pecado. Paulo

mostra, por outro lado, como Adão também desempenhou porseu pecado este papel de substituto, embora para o mal, é verdade.

No entanto, o apóstolo faz ressaltar no v. 15 (que deve serlogicamente considerado como um parêntese) que existe a este respeitouma diferença fundamental. Um só homem, Adão, bastou para fazer detodos os homens pecadores. A obra da graça de Jesus tem idêntico cará-

ter substitutivo por quanto livra, a todos os homens, do efeito do pecado:esta é sua semelhança. Porém, Paulo quer, também, expressar nesteversículo que o poder do ato expiatório deve ser maior que o do pecado:esta é sua diferença. Uma imagem nos fará compreender melhor: bastauma só faísca para atear fogo em todo o bosque; porém, para apagar oincêndio é necessário uma força superior. No caso da obra expiatória dosegundo Adão, esta força desencadeada provém, da mesma forma, de umsó indivíduo, e quem realiza este milagre é o Filho do Homem.

No judaísmo - já o vimos - a noção de Filho do Homem jásupunha o conceito de substituição,369  ainda que a relação entre opecado humano e o Filho do Homem não se contemplava nele damesma maneira: em Daniel 7.13 ss. é o Filho do Homem, segundoa interpretação que se dá à visão, quem representa o "povo dossantos", assim como os quatro animais representam os reis dosgrandes impérios. Porém, em Daniel, o papel destinado ao Filho

do Homem é só o da salvação sem a expiação feita em vista destasalvação. Em nossa passagem da Epístola aos Romanos, ao contrário, a ideia fundamental é que o único homem Jesus incorporaem si toda a comunidade de homens libertos do pecado. No fundose encontra, sem dúvida, a ideia de igreja - corpo de Cristo - que,também, guarda relação com o conceito de substituição.

Toda a humanidade presente está, pois, localizada entre dois

pólos, designados pelos nomes de Adão e de Jesus, entre o pri-

'*'Isto vale igualmente para a ideia de "primeiro homem" fora do judaísmo.

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. 228 Oscar Cullmann

meiro Adão e o segundo Adão. Como pecadores estamos relacionados com Adão, o primeiro homem; como resgatados, estamos

com Cristo. Aqui também aparecem, com clareza, a unidade e adiferença entre o primeiro homem e o homem celestial. Em suaação, um e outro, englobam uma multidão: em um pelo pecado,no outro pela expiação, cuja força tem de ser necessariamentesuperior à do pecado. Deste modo Paulo resolveu o antigo problema judaico da relação entre o primeiro Homem e o homemcelestial.

Sem dúvida, temos de situar na mesma perspectiva os desenvolvimentos paulinos relativos ao velho homem e ao novo homem.Verdade é que nas passagens em que se trata disto, o aspecto subje-tivo e antropológico ocupa o primeiro plano e, portanto, o alcancedestas noções sobre os iroXkoi,  sobre a humanidade. Porém, nofundo, indubitavelmente, está a ideia desenvolvida em Rm 5.12ss., segundo a qual o velho homem é determinado pelo primeiro

Adão e o novo homem pelo segundo, Jesus. Em Cl 3.9 s., o apóstolo escreve: "Não mintais uns aos outros, uma vez que vos despistes do velho homem com os seus feitos e vos revestistes donovo homem que se renova no pleno conhecimento, segundo aimagem daquele que o criou." A expressão "revestistes do novohomem", claramente paralela à expressão "revestistes de Cristo"de Gl 3.27 (cf. também Rm 13.14), mostra que Paulo pensa aquique ao ser transformado de "velho homem" em "novo homem"passa da incorporação a Adão à incorporação a Cristo. Por outrolado, a menção do homem criado à imagem de Deus aludia igualmente a Adão e ao Filho do Homem: é unicamente graças àqueleque representa a imagem do Criador em toda sua pureza e clarezaque podemos ser renovados segundo a imagem do Criador. Este"homem", o único que é e continua sendo a imagem do Criador,pode modelar-nos conforme esta imagem se nos "revestirmos donovo homem". O KOCT' eiKÓva provém, com segurança, de Gn 1.26.Achamos um pensamento análogo na passagem paralela de Ef 4.24:"e vos revistais do novo homem, criado segundo Deus". Aqui,também, encontramos a expressão que corresponde a "revestir-se

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CEUSTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 229

de Cristo"; e, também, a alusão à criação do homem à imagem deDeus e, por conseguinte, à lembrança de haver sido Adão (e comele toda a humanidade pecadora) infiel à sua missão: a de representar a imagem de Deus, enquanto que Jesus, sim, cumpriu estamissão.

* * *

Resta-nos considerar uma terceira passagem paulina na qualaparece a ideia de Filho do Homem: Fl 2.5-11. Este texto extraor

dinariamente rico, do ponto de vista cristológico, reúne três noções:a de Filho do Homem, a de Servo de Deus, e a de Kyrios: voltaremos novamente a esta passagem ao considerar o título Kyrios.

Limitar-nos-emos aqui a citar os versículos que são considerados particularmente por causa da ideia de Filho do Homem e porsua relação com Ebed Iahweh (Fl 2.5 ss.). "Haja em vós o mesmosentimento que houve em Cristo Jesus que, sendo em forma de

Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas a si mesmo seesvaziou, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aoshomens. E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo,sendo obediente até a morte, e morte de cruz."

E. Lohmeyer370  supõe, como se sabe, que Paulo cita aqui umantigo salmo aramaico cristão. Esta tese, com efeito, é muito provável, embora não se possa demonstrar com certeza absoluta.

Porém, pode, em todo caso, considerar-se como demonstrado queeste texto contém aramaísmos.

Outros admitem que Paulo tenha tomado aqui um velho hino judeu-gnóstico adaptando-o à sua teologia cristã.371 Neste caso, omodelo judaico teria cantado a aparição do homem celestial sobre

E. LOHMEYER,  "Kyrios  Jesus, Eine Untersuchung zu Phil.  2.5-11" (SB HeidelbergerAk. d. Wiss., phil.  -hist. KL, 1927-1928). Todos os estudos exegéticosposteriores deste texto se apoiam neste estudo fundamental. Cf. também a divisãodo hino em duas estrofes de seis tercetos. LOHMEYER vê nas palavras "e morte decruz" do v. 8, uma interpretação acrescentada por Paulo.Por ex. P. BONNARD, UEpitre de Sctint Paul attx Philippiens, 1950, p. 49.

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•230 Oscar Cullmann

a terra. Porém, como quer que seja J. Héring372  parece-me terdemonstrado, de maneira definitiva, que se trata, neste texto, dohomem celestial e até do homem celestial em sua relação comAdão. Com Lohmeyer, J. Héring admite que se trata de um salmopré- paulino cuja origem busca na Síria. Porém, a maneira em queeste hino - já o veremos - põe o homem celestial em paralelo comAdão e o identifica, por outro lado, com oEbedIahweh,  harmoni-za-se tanto com a argumentação de Paulo em  1 Co 15.45 ss. e Rm5.12 ss. que toda esta passagem não pode ser compreendida senãoà luz destes textos paulinos. Não encontramos esta teoria, ao menos

nesta forma, nem no judaísmo nem na comunidade primitiva: istoé o que temos sempre de sublinhar ainda que com Lohmeyer, Héringe outros, tivermos que admitir a existência de um modelo.

E. Kãsemann, "Kritische Analyse von Phil. 2.5-11"  {ZthK,47,1950,p. 313 ss.), insiste, vigorosamente, em que nosso texto tem suas raízes nopensamento helenístíco, único, segundo ele, que pode permitir-nos compreender este hino. Jazeria no fundo o mito helenístico do "primeirohomem-salvador". Assim se explicaria o carííter exclusivamente soterio-lógico (e não ético) desta passagem. Porém, em compensação, o quadromítico foi rompido pela escatologia especificamente cristã. Seguramentedo ponto de vista da história comparativa das religiões, pode este textode Paulo ter analogias distantes nas especulações sincretistas relativas aoprimeiro homem. Porém, partir daí para explicar esta passagem não meparece o mais indicado, já que não se pode demonstrar que tenha havidouma influência direta deste mito gnóstico; e, sobretudo, já que o desen

volvimento do pensamento de Fl 2.5 ss. repousa essencialmente sobre orelato de Génesis e não pode ser compreendido senão a partir do mesmo:a ideia de p.op(pr| é tirada de Gn 1.26 e não é   necessário invocar nistoconcepções helenísticas e gnósticas. Todos os paralelos propostos (porex. com Herm. 1.13 ss.) são, na verdade, interessantes do ponto de vistada história das religiões; porém, muito pouco probantes do ponto de vistaexegético.

372J. HÉRING, "Kyrios  Anthropos"  (RHPR, ,6, ,196, p. 196 ss.); Le Royoume ed Dieuet sa venue, ,937, pp .62 2.s *'Les sases síbliqqes sdun humanisme cfirétíen"(RHPR.,  1945, p.  .7 ss.). HÉRING ccmpletouu ,d ema maneira aecisivv, a axplicação de LOHMEYER, ao menos no que concerne à significação da ideia de noptR.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 231

A relação com Adão e o relato da criação em Génesis se tornaindubitável graças ao emprego da expressão nopcpfi. J. Héring faznotar, com razão, que esta palavra grega corresponde ao hebraico

mETI, de Gn 1.26. A Peschitta estabelece a mesma relação quando,na passagem que nos ocupa, traduz j-iop(pri por demutha. Deste fatou.opcpri de Fl 2.6 se aproxima estreitamente da ideia expressa poreitcóiv; pois a palavra semítica original rnf"T ou seu sinónimo u?Xpode corresponder a estes dois vocábulos gregos.3" Porém, nessecaso o v. 6 não evoca a "natureza" divina de Jesus, mas a imagem deDeus que Jesus representou desde o princípio. E nós nos achamos

assim dentro do campo das concepções do homem celestial, único acumprir a missão confiada ao homem de ser imagem de Deus. Estaterminologia corresponde perfeitamente às afirmações paulinas queencontramos em outros escritos do apóstolo. Vem à mente emespecial, Cl 1.15, onde se diz que Cristo é o eiKtòv do Deus invisível.374 Ou ainda 2 Co 4.4: "O Deus deste século cegou o entendimento dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evan

gelho da glória de Cristo, o qual é a imagem (eiKóv) de Deus."Vemos, pois, que é uma ideia familiar a Paulo a que se expressa apartir do início deste hino no v 6: Cristo a única imagem verdadeira de Deus o "homem" celestial É daí que Paulo parte paraafirmar que nossa renovação não pode operar-se senão por uma"transformação" à imagem de Cristo - que é a imagem de Deus

Esta afirmação reaparece em diversas ocasiões no apóstolo;

encontra-se implicitamente expressa na passagem já citada de Cl3.10, onde nosso "novo homem" formado à imagem de Deus éoposto ao "velho homem". Porém, a relação entre a "metamorfose"e a imagem aparece com absoluta nitidez em 2 Co 3.18; "E todosnós, com o rosto desvendado, refletindo como um espelho a glóriado Senhor, somos transformados (pETa^op(poOaSai) na mesmaimagem (ei-Któv) de glória em glória..." A mesma ideia aparece

também em Rm 12.2 onde a "imagem" não é mencionada expres-

573 Comparar a tradução de D?X   em Gn 1.26 s. e ern Dn 3.19 (LXX).374Cf. CH. MASSON,  LEpítre de SaBÀfô^QfljífcÇdlosSieiís,,  195Q, p. 98.

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232  Oscar Citllmanri

sãmente, porém, onde está contida no verbo |X8TaLiopcpoí>o"8ca:"Mas transformai-vos pela renovação da vossa mente".375

Daí decorre a esperança de nossa transformação definitiva nofinal dos tempos (o apóstolo pensa, sem dúvida, no corpo espiritualdo qual nos revestiremos) - transformação que se efetua igualmente por nossa conformação à imagem de Cristo, o homem celestial. E assim que lemos em Rra 8.29: "Aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes (<ráu,p,op(poç)à imagem (EÍKÓV) de seu Filho, a fim de que ele seja o primogénito

entre muitos irmãos." Temos de notar que encontramos aqui, também, a raiz popcpn. ao lado de EÍKGJV e isto nos confirma na opiniãoque no começo da passagem da Epístola aos Filipenses temos quepensar, efetivamente, em Gn 1.26. Desta mesma forma se diz nesta Epístola aos Filipenses: "Transformará o corpo de nossa humilhação (pexaaxTjpaxtÇeiv; cf.  a^fj(ic  em nosso texto, Fl 2.7),fazendo-o semelhante (cK>jiu,op(poç) ao corpo de sua glória." (3.21).

E finalmente  1 Co 15.49 - esta passagem se reveste de particularimportância pois vem logo em seguida à argumentação relativaaos dois Adões e porque representa, por assim dizer, sua aplicaçãoao nosso corpo terreno e à sua transformação. "Assim como trazemos a imagem do terreno (isto é, a do homem terrestre, Adão)levaremos também a imagem do celestial (ou seja, do homemcelestial)." Novamente encontramos repetida a palavraetKtbv, pela

qual se indica a semelhança do homem celestial com Deus.Temos que pôr todos estes textos em relação com o começode nossa passagem da Epístola aos Filipenses (2.6) e veremos quecontribuem muito mais para a sua explicação do que todos osparalelos gnósticos. Pois somente assim podemos compreender oque o apóstolo entende neste versículo por "forma de Deus" naqual Jesus existia no começo: trata-se do homem celestial, único

representante da verdadeira imagem de Deus. Vê-se, pois, novamente, que a designação de Jesus como Filho do Homem não

Cf. J. HÉK1NG, Le Royaume de Dieu et savenue,  1937, p. 164 ss.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 233

visa, em primeira instância, sua humilhação, mas sua soberania:pois Jesus é o Filho do Homem, o homem celestial preexistente, apura imagem de Deus: é já o homem-Deus em sua preexistência.

Tal é a forma, a jiopqyn, que Jesus Cristo, o Filho do Homem,possuiu. Os textos que acabamos de citar mostram, consequentemente, que a expressão u,opcpri designa esta semelhança com Deus edeve ser compreendida no sentido do hebraico mD"l, D^S S do grego ÊÍKCÒv. Porém, por outro lado, os textos paulinos citados supõema concepção teológica que encontra sua expressão mais clara em Fl2.6 ss. Esta é uma razão a mais para sublinhar o caráter paulinodeste salmo: pois ainda que se inspire num modelo, seu conteúdocorresponde inteiramente à cristologia do apóstolo dos gentios.

A afirmação segundo a qual Jesus existiu em forma de Deus,se segue esta passagem difícil: "subsistindo em forma de Deus,não julgou como usurpação o ser igual a Deus." Esta frase, também, só se explica como um paralelo antitético entre o homemcelestial e Adão. Pois, sem a doutrina paulina dos dois Adões, não

compreenderíamos este versículo sem nos perdermos em especulações dogmáticas forâneas ao cristianismo primitivo.-376 Para secompreender esta passagem basta pensar na promessa da serpente: "Assim que comerdes sereis como Deus" (Gn 3.5). Adão, tentado peio diabo quis ser como Deus; este foi seu pecado, foi assimque perdeu o que possuía de mais precioso: a semelhança comDeus. O homem celestial, em troca, não quis arrebatar esta "pre

sa" e, por conseguinte, permaneceu fiel à sua vocação de imagemde Deus. O que se manifesta precisamente no fato de haver-se"despojado", vale dizer que resolveu tornar-se um homem e incor-porar-se à humanidade decaída da semelhança de Deus.

A igualdade com Deus deve, pois, ser considerada aqui como xxxm.reírapienda?11  Aquii precisamente, reside o pecado de Adão:

"fiP. HENRYdáumaboa visão de conjunto da bibliografia relativa a este tema em seuartigo "Kértose" do Dicúonnaire de la Bible, supl. Vol. V, col. 7 ss.

1,7 Não se pode, pois, aceitar a conjectura engenhosa de A. FRIDRICHSEN  (RHPR, 3,1923, p. 441), segundo a qual deveríamos ler em lugar de aprosynóv,  õinpor/jAov=apoio.

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234 Oscar Çidimaim

por orgulho não se contentou com a alta missão que Deus lhe haviaconfiado de ser sua imagem terrestre.

Há uma velha controvérsia relativa à questão de se saber se o

verbo èicévocrev écroxóv, "se despojou", refere-se ao ser preexistente ou ao ser encarnado. Provavelmente o Apóstolo, neste texto,tenha pensado  em ambas  as coisas  ao mesmo tempo. Primeiramente em que o "Homem" se fez "um homem"; e logo em seguida- como o afirma o vs. 8 - que assumiu  o papel de Ebed lahweh.Pode-se, com efeito, separar estes dois aspectos; num e noutro, o"Filho do Homem", contrariamente  a Adão, é quem demonstrou

sua obediência  (/ÍJTUÍKOOÇ, V. 8). É esta obediência o que importa,por residir o pecado de Adão precisamente em uma desobediência. Encontramo-nos aqui novamente  com  algo análogo ao quevimos em Rm 5.19, onde também Adão é caracterizado pela desobediência, e ao Filho do Homem, Jesus, pela obediência. A semelhança com Deus se revela pois na obediência, e esta se manifestade duas formas: Jesus se fez homem, e se humilhou até à morte,

assumindo assim a função  do Ebed lahweh.  Para poder tomar auopcpfi ÔcóXOD previamente lhe foi necessário tomar a forma dehomem, isto é, de um homem participante da decadência humana.Tal  é o  significado  da  expressão "tornando-se semelhante  aoshomens" (èv àaouòpoca àvGpwicov, v. 7). Este sentido deóuoíoua justifica-se perfeitamente.'378  Tanto mais quanto que a frase seguintesublinha que Jesus, "o homem", ao encarnar-se aceitou cabalmen

te  a  condição  dos  "homens". Quem  por  essência  era o únicohomem-Deus, o único a ostentar legitimamente este título, em virtude de sua semelhança  com Deus, se fez, por obediência a suavocação  de  homem celestial  e  para consumar  sua  obra expiatória  um homem encarnado na carne decaída.

Tendo o título  de  ávOpcojraç sido assim explicado, em suadupla referência  ao homem celestial  e ao homem encarnado cor

rompido pelo pecado de Adão, o v. 8 desenvolve e justifica o epíteto de ôoftÁ.oç;  o papel do Ebed lahweh  se apresenta ao Filho do

"8 Pode-se recordar por exemplo Rm 5.14: èíri t<£i ónoiwnceu Tf\ç jnapaftóaewoçASá^.

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CRISTOLOGIA  DO  NOVO TESTAMENTO 235

Homem como conteúdo e coroação da obediência; é uma obediência até  a morte. Estas palavras não têm, bem entendido, um sentido cronológico: elas não podem meramente significar que Jesus

foi obediente "durante toda a sua vida". Ao contrário, com elas seconsidera a morte como o grau culminante da obediência; daí quese lhes ajunta "até a morte de cruz", que quer dizer que Jesus cumpriu tão plenamente a missão do Ebed lahweh que aceitou a mortemais ignominiosa. Para os homens da antiguidade era a cruz o quepara nós é a forca. É precisamente o maior oicávôccXov, a mortepor enforcamento, que constitui para o Ebed lahweh o máximo da

obediência, como também constitui o máximo da obediência parao bamasha, em oposição à desobediência de Adão (Rm 5.19).Várias vezes sublinhamos o parentesco estreito que une os

conceitos de "Filho do Homem" e de "Servo sofredor de Deus",em virtude da ideia de substituição, que lhes é comum. A ideia deobediência nos conduz ao mesmo resultado: o homem celestial,por sua própria essência, há de ser obediente em sua capacidade

de segundo Adão com o encargo de reparar a falta do primeiroAdão, que - nisto consiste seu pecado - não contentou-se em ser aimagem de Deus. Pois bem, a obediência é também a característica essencial do Servo de Deus, que sofre substituindo.

Assim se encontra confirmada nossa tese segundo a qual estehino, assim como Rm 5.12 ss., uniu a ideia de bamaslia e de Ebedlahweh - união que, à parte o paulinismo, não encontramos senão

no próprio Jesus (por certo, uma forma teologicamente menos precisa). Se com Lohmeyer e outros admitimos que Paulo toma aquium salmo da igreja devemos, consequentemente, admitir, ao mesmo tempo, que esta união remonta à comunidade primitiva. O quenão é impossível porquanto Jesus já havia reunido estas duas ideias.Porém -  e isto é que é o essencial - este salmo corresponde, precisamente nesta forma, à essência mais íntima do paulinismo.379

O. MICHEL chega ao mesmo resultado: ("Zur Exegese von Phil. 2.5-11", Theologiea h  Glaubenswagnis, Mélanges K. Heim,  1954, p. 79 ss.). Porém, para provar estarelação, parte da afirmação do v. 7 e não faz mais que tocar de leve na exegese dov. 6 que damos aqui.

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236 Oscar Cidimann

Como já foi enfatizado, às duas ideias de "Filho do Homem"e de "Servo de Deus" este texto reuniu a de Kyrios, de sorte queestes poucos versículos nos oferecem, de maneira condensada, umacristologia completa. No capítulo relativo ao Kyrios explicaremosos versículos 9-11, que falam do senhorio conferido a Jesus depoisde sua morte. Porém, teremos de mencionar aqui a relação lógicaque neste texto fundamental se estabelece entre os três títulos cris-tológicos. Ela reside no verbo Ú7r,£pvj\|/coCTev (v. 9). Geralmente overbo ímepini/ffvv é considerado como uma espécie de pleonasmoenfático que não significaria mais do que í)í|rorjv.ííu  Contudo, J.

Héring observou que neste lugar o verbo composto í>jt£p-m|/ó(odeve significar mais do que o verbo simples i)yò(tim ,  de sorte quenão se deve traduzi-lo por "ele o elevou soberanamente" mas antes:  "ele fez  mais  do que elevá-lo." Se Jesus era já, em suapreexistência, a imagem de Deus - é, com efeito, do v. 6 que épreciso partir de novo (èv u,op(pfj Geoí>) - e se agora se diz queDeus fez mais do que elevá-lo, não significa isto que, depois de

sua morte, Jesus não voltou tão-somente à existência que tinhaantes de sua encarnação quando na qualidade de homem celestialpreexistia junto a Deus, mas que em virtude de uma nova função,entrou em relação ainda mais estreita com Deus relação que lheconfere o título de Kyrios  com plena soberania sobre o universointeiro? O título de  Kyrios  é com efeito a tradução grega dohebraico  Adonai  que desistia a Deus  o'Pai  n2  Dito de outra

maneira isto significa que Deus rx>r causa da obediência testemunhada pelo Filho do Homem Jesus lhe confere doravante seuprÓDrio nome com toda a soberania A igualdade com Deus estaigualdade que o homem celestial com sua obediência nãoquis"arrebatar como uma presa" ele a'recebe agora do próprio Deus

Não que Jesus tenha sido elevado à categoria de divindadenaquele instante. Não estamos aqui com a doutrina do adocia-

3íflE. LOHMEYER, DerBriefandie Philipper,  1930, p. 97 n. 2: •bitEpwyoíiv é idêntico a So^áÇeiv (Is 52.13; Test. Naftali 5; Test. Jos.  10.3).

3:1 J. HÉRING, Le Royawne de Dieu et sa venue, 1937, p. 163.3e2Cf. abaixo, p. 264 s.

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(^RISTOLOGIA DO Novo  TESTAMENTO 237

nismo, que na antiguidade e ainda em nossos dias tem queridose passar por cristologia do Novo Testamento, segundo a qual,Jesus não havia recebido seu caráter divino senão depois de suaelevação.383 Se se afirma que Jesus tinha a |K>p(pf|  (imagem) deDeus, isto não quer dizer outra coisa que o que afirma o prólogodo Evangelho de João ao proclamar que no começo ele estavacom Deus como "Verbo". Segundo Fl 2.6 ss., ele possuía adivindade desde o princípio, em sua preexistência como homemcelestial e divino. Já, então, estava vinculado a Deus como o sermais alto que se possa conceber: a imagem perfeita, resplendorde Deus, como disse Paulo em outro lugar. Porém, agora graçasa sua obediência, se acrescenta a isto a igualdade com Deus,mediante o exercício total da soberania divina. Em tudo isto, denenhum modo estamos aqui diante de especulações sobre as "duasnaturezas" mas diante da história da salvação: algo novo se agrega kfunção  de Jesus. Todas estas afirmações devem ser entendidas a partir da história de Adão. Este havia sido criado à imagemde Deus, semelhança que perdeu por querer "arrebatar como umapresa" a igualdade com Deus. O homem celestial, que representaa verdadeira imagem de Deus em sua preexistência, pelo contrário se humilhou na obediência. Não só não perdeu a semelhançacom Deus senão que recebeu com o título e função de Kyrios, aigualdade com Deus, não como presa arrebatada, mas como umdom. Depois de ter sido vióç,  agora chega a ser mòç  %ov Qeov

èv ôvjvápei (Rm 1.4). Segundo a expressão do autor de Atos(2.36), foi "feito" Senhor.384

Temos visto como Paulo, nestas três passagens essenciais,uniu, de maneira tão harmoniosa, a ideia de Filho do Homem à

Em seu artigo citado, p. 153, nota 1, P. HENRY não vê outra solução que o adocia-nismo, no caso de que wtepíntrwcsv significasse que o Cristo, por sua elevação,recebeu mais do que o que possuía na preexistência, antes da encarnação. Assim,ele crê que deve recusar este sentido que, contudo, é mais plausível. Porém, narealidade a consequência admitida por ele desta explicação não resulta de todo necessária: trata-se de uma nova função no plano da salvação.Cf. abaixo, p. 283 s.

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238 Oscar Cullmann

sua concepção cristológica geral: sua interpretação cristológicaconflui assim com a consciência que Jesus tinha de si mesmo.

5. O FILHO DO HOMEM NOS OUTROS ESCRITOS DONOVO TESTAMENTO

Temos perguntado em que meios do cristianismo primitivo otítulo de Filho do Homem, com as ideias que lhe estão associadas,havia sido considerado como a solução do problema cristológico.

Certamente Paulo trouxe uma contribuição decisiva a esta aplicação da ideia de Filho do Homem a Jesus: não se pode, contudo,admitir que ele tenha sido o primeiro a retomar para o compreender teologicamente, este título que Jesus dava a si mesmo. Temosvisto que abundam razões para sustentar a tese de Lohmeyer,segundo a qual o texto de Fl 2.6 ss., tão importante para a questão que nos ocupa, teria por base um hino cristão pré-paulino.Por outro lado, não pudemos aderir à outra tese do mesmo autor,segundo a qual o berço da cristologia do Filho do Homem deveriaser buscado na Galileia. Finalmente, temos chamado a atenção aofato de que a espera do Filho do Homem aparecia, de preferência,fora dos muros do judaísmo, nos meios esotéricos, quase comouma doutrina secreta. Jesus deve ter entrado em contato com estescírculos. Temos de buscar, então, entre os discípulos origináriosdeste judaísmo "periférico" ou, pelo menos, relacionados a ele,os primeiros paladinos de uma cristologia do Filho do Homem.Defendemos a hipótese de que poderia tratar-se de membros

 palestinos da comunidade primitiva, designados em Atos dos Apóstolos pelo nome de "helenistas". Temos indicações que poderiamapoiar esta hipótese ou mesmo torná-la provável?

Para responder a esta pergunta estudaremos a posição adota-

da pelos demais escritos neotestámentários em relação ao título de"Filho do Homem".Em várias partes temos tido ocasião de mencionar que a

cristologia do Filho do Homem não é a dos Sinópticos, ainda queesta expressão apareça neles mais frequentemente que em qual-

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CEUSTOLOGIA DO NOV O TESTAMENTO 239

quer outro escrito do Novo Testamento, já que ela ocorre nãomenos de 69 vezes. E ainda que não se conte mais que uma vez amenção deste termo nas passagens paralelas, fica de pé todavia ametade daquela cifra. O Evangelho de João a emprega só dozevezes.  Também assinalamos que os Sinópticos recorrem a estetítulo unicamente quando é Jesus quem fala. Agora, como suaintenção primordial é reproduzir as palavras de Jesus tal qual eleas havia pronunciado,385  e não - como no quarto Evangelho - dereencontrar, sob a inspiração do Paracleto (Jo 14.26), o Jesus dafé da igreja no Jesus da encarnação, não temos de tirar, desta diferença numérica, a conclusão de ser a cristologia do "Filho doHomem" privativa dos Sinópticos. A cristologia destes é antes ado "Messias". Portanto, se eles põem o título de Filho do Homemunicamente naboca de Jesus e jamais nade seus interlocutores, sedeve a que, fiéis às tradições dos  Logia,  sabiam que este título,empregado por Jesus, não era corrente em outras bocas, à parte a sua.

É verdade que  os  Sinópticos, quando traduzem em grego a palavrabamascha, ,fzem uma diferença eetre e oentido oristoló^icodesta palavra (uíòç  TOÍ>  àvGpwjrou) ) eeu uentido ordinário od"homem" (avOpomioç). Isto prova simplesmente que os evangelistas- sem uma noção muito clara - tinham consciência de que Jesusassociava a este título certas ideias precisas e conhecidas.

O livro de Atos talvez contenha um indício no sentido de queé neste círculo dos "helenistas", tão pouco conhecido e, no entan

to, tão importante, que se deve procurar os adeptos da cristologiado "Filho do Homem". Com efeito, se esta expressão não seencontra mais que uma vez em Atos, é pela boca do "helenista"

381 Não se trata de recusar por isso a legitimidade do método da "história da forma"para o estudo dos Evangelhos Sinópticos. Porém, este método não deve levara eliminação de toda diferença entre os Sinópticos e o Evangelho de João. Se é verdade

que nos Sinópticos também a consciência da igreja amiúde influenciou a maneirade repetir as palavras de Jesus, trata-se de uma tendência inconsciente e coletiva;enquanto que o autor do Quarto Evangelho tem o desígnio deliberado de apresentar

 juntos o Cristo encarnado e o Cristo glorificado e fazer-lhes, por assim dizer falara um e a outro, simultaneamente.

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Estêvão que é proferida (7.56). Em seu apedrejamento, o primeiro mártir exclama: "Eis que vejo os céus abertos, e o Filho do

Homem, que está em pé à mão direita de Deus." Destaca o autorque Estêvão, ao pronunciar estas palavras, "foi ficando cheio doEspírito Santo". Como foi dito por Jesus diante do sumo sacerdote(Mc 14.62) também aqui trata-se da glorificação do Filho doHomem.386  Porém, enquanto que Jesus, referindo-se ao SI 110,fala do Filho do Homem, assentado à direita de Deus, Estêvão ovê de pé (èoxòxa):  aqui, pois - diferentemente de outras passa

gens - Jesus não aparece como juiz387

 mas antes, como testemunha, como advogado.388 Não se deve atribuir esta menção ao Filhodo Homem a Lucas, mas fazê-la chegar a uma tradição anterior aele.  Segundo o pouco que sabemos das opiniões teológicas deEstêvão (que talvez fosse o homem mais importante da comunidade primitiva, à parte o apóstolo Paulo), ele deve ter captadomelhor que ninguém o que havia de novo no ensinamento de

Jesus.  Não é de surpreender, pois, ouvir precisamente ele dar aJesus o título pelo qual o próprio Jesus designava-se a si mesmo.Em todo caso, é digno de menção de que seja na boca de Estêvãoque o autor coloque esta expressão, e é a única vez que a ela recorre nos vinte e oito capítulos de seu livro. Recordemos que em Atos,Pedro chama a Jesus "Servo de Deus".389  Admitimos que deviatratar-se de uma lembrança digna de confiança. Tal como pode sertambém no caso em que  é   precisamente Estêvão, o "helenista"palestino, quem fala do Jesus glorificado como o "Filho do Homem".

Lucas, em seii relato da paixão, recorda a palavra de Jesus relativa ao Filhodo Homem "sentado à direita de Deus", sem associar a ela a vinda "sobre as nuvensdo céu''.Cf. acima, p. 207 s.Cf. também acima, p. 208, nota 341. - TH. PREISS,  Le Fils de Cliomme,  1951,

deduz disso consequências de grande alcance para a ideia de Filho do Homem, queele aproxima à de Paracleto. Ele faz a observação seguinte a propósito de Atos 7.56(op. cit., p. 23): "No instante em que a justiçados homens condena seu testemunhoterreno, o Filho do Homem celeste se ergue como testemunho, intercessor e Paracleto,garantia diante de Deus para justificá-lo (cf. Mc 8.38)".Cf. acima, p. 103.

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CRISTOLOGIA  ÍX> NOVO TESTAMENTO 241

Esta conclusão pode parecer ousada. Porém, ganha veracidade, no entanto, ao recordar que, além disso, já nos vimos leva

dos a formular a hipótese de que os "helenistas" palestinos -como o próprio Jesus - devem ter tido contato com esse grupo judeu esotérico que os livros de Enoque - e mais recentementeos textos de Qumran - nos têm dado a conhecer. Estes "helenistas"devem ter desempenhado na formação do cristianismo um papelmuito mais importante do que aquele que o relato de Atos nospermite supor. Entre os autores do Novo Testamento, Lucas e o

autor do Quarto Evangelho são os únicos - como o demonstramos em outro trabalho390 - que nos permitem, ao menos, suspeitar esta importância. O Evangelho de João nos parece, inclusive,empreender uma verdadeira reabilitação destes "helenistas" aoafirmar pela boca de Jesus (4.38) não ser os doze os que fundaram a missão em Samaria mas os akXoi,  em cujos trabalhos osdoze não têm feito mais do que "entrar". Esta palavra nos remete

a Atos 8.4 ss., onde os "helenistas" são apresentados como osfundadores da missão cristã, havendo os doze limitado-se a sancionar sua obra. Porém, se o Evangelho de João toma partido a favor dos "helenistas" e se interessa por eles é permitidoconcluir que provavelmente se tenha originado em um meio próximo a eles. Observemos ademais que as ideias contidas noQuarto Evangelho denotam certo parentesco com esse judaísmoesotérico  3"

í 0Cf. nosso artigo citado mais acima, p. 217, nota 356: La Sumarie et les origines dela mission chétienne, p. 3 ss.

311 Isto éo que H. ODEBERG, adiantando-se a seu tempo, havia já reconhecido, comrazão, em seu livro infelizmente tão difícil de conseguir: The Fourth Gospel, 1929.Suas observações têm sido grandemente confirmadas pelos textos descobertos emQumran. - Cf. a este respeito K. G. KUNH, "Die in Palástina Gefundenen hebrãischen

texte unddas Neue Testament",  (ZThK,  1950, p. 193 ss.); como também os artigoscitados mais acima, p. 194, nota sobre os textos de Qumran e o cristianismo primitivo. F. M. BRAUN, "Hermétisme et johannisme" (Revue Thomiste,  1955, p. 22 ss.e 259 ss.) chega a conclusão análoga, considerando também o pensamento hermético. Ver ainda W. F. ALBRIGHT, "Recent Discoveriesin Palestina and theGospelofSt. John", Melanges C. H. Dodd, 1956, p. 153 ss.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 243

velmente, ao homem celestial preexistente e divino que desce docéu, aparece sobre a terra, se incorpora à humanidade decaída evolta ao céu em glória. Coisa característica para o Evangelho deJoão: ao empregar este título quase sempre o faz para sublinhar amajestade do Filho do Homem e não para pôr em relevo a debilidade inerente à sua humanidade. A maneira especificamente

 joanina de unir o Cristo encarnado ao Cristo glorificado394 é muitoadequada para expressar o pensamento cristológico fundamentalda ligação do Filho do Homem celestial e do Servo de Deus. Comefeito, se diz imediatamente depois (v. 14) que é preciso que oFilho do Homem seja "elevado". Ora, sabemos que, segundo ouso joanino, o verbo ín|/co9fjvca significa ao mesmo tempo "serlevantado sobre a cruz" e "ser elevado à destra de Deus."395

Em Jo 12.23 e 13.31 de novo Jesus se qualifica como "Filhodo Homem" pensando em sua glorificação, embora aqui ela sejacontemplada simultaneamente com sua morte: "A hora é chegada

em que o Filho do Homem deve ser glorificado".E mesmo nas passagens em que se emprega o título Filho doHomem em relação à missão  terrena de Jesus é título de soberania, que designa o homem celestial e divino. Assim em Jo 1.51se diz que "os anjos de Deus sobem e descem sobre o Filho doHomem", enquanto reside ainda na terra. Observar-se-á que aescada que une o céu e a terra - alusão a Gn 28.12 - já não aparece

relacionada a um lugar determinado mas hpessoa de Jesus Cristo,na qualidade de "Filho do Homem". O céu, com efeito, está "aberto" desde que o Filho do Homem dele desceu para vir e estar comos homens. Eles podem agora contemplar o céu graças àquele queé a imagem de Deus.

Em Jo 5.27 se evoca a função jurídica do Filho do Homem:"E lhe deu autoridade para julgar, porque é o Filho do Homem".

Cf. a este respeito O. CULLMANN, Les sacrements dans 1'Evangile johannique,1951,  p. 9ss.O. CULLMANN, "Der johanneische Gebrauch doppeldeutiger Ausdriicke aisSchlussel zum Verstãndnis des vierten Evangeliums" (ThZ,  1948, p. 360 ss.).

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244 Oscar Cullmann

Wendt3% crê que seja conveniente suprimir o genitivo àvGpcòjtoi)e ler: "porque é o Filho". Esta conjectura não é necessária nem

convincente, já que a função de juiz pertence à própria essência doFilho do Homem,397 seja o juízo futuro ou presente, ou ambos aomesmo tempo (como no Evangelho de João).

Em Jo 6.27 e 53, o Filho do Homem aparece novamente comoo Senhor glorificado da Igreja, que outorga, pelo sacramento daeucaristia, o pão da vida. Seria interessante investigar a ideia deque se o Cristo glorificado dá seu corpo como alimento, isto é,

como a imagem de Deus limpa de toda corrupção, o faz na qualidade de homem celestial, de "Filho do Homem".Este título, "Filho do Homem", tomado em seu sentido espe

cificamente cristológico reaparece por todo o Evangelho de João.Não é, pois, surpreendente ler no relato da cura do cego de nascença esta pergunta (Jo 9.35): "Crês tu no Filho do Homem?"398

A forma em que a pergunta é  feita supõe que o leitor sabe de que

se trata. Devemos, então, admitir que as ideias associadas ao Filhodo Homem são tão familiares ao Quarto Evangelho como a Pauloe ainda mais, que elas constituem o fundamento de sua cristologia.Isto concorda plenamente com nossas suposições relativas ao meiono qual este Evangelho deve ter vindo à luz e donde - já no seio do

 judaísmo - o Filho do Homem era objeto de reflexão teológica.Ao afirmarmos que a ideia de Filho do Homem é uma con

cepção cristológica fundamental do Evangelho de João, tropeçamos inegavelmente em contradições, dado que, segundo opiniãoamplamente difundida e imposta pelo prólogo, Jesus é sobretudooLogos,  a "Palavra". Por certo, não se trata de minimizar a importância da ideia de Logos no Quarto Evangelho; voltaremos a isso.Porém, isto não modifica o fato de ser muito mais importante para

H. H. WENDT, Das Johannesevaitgeliuni, 1900, p. 121.Cf. acima p. 207 s.A maior parte dos exegetas estão de acordo em considerar a leitura mòç  TOTÍ 6EO0como secundária. Cf. a este respeito as reflexões de J. H. BERNARD, The Gospel

 According to St. John (ICC, 3a, 1949, p. 338).

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 245

o Quarto Evangelho, tomado em seu conjunto, a ideia de Filho doHomem que a de  Logos.

Por outro lado, do ponto de vista da preexistência, a noção de

Filho do Homem não está tão distante da de Logos. O Logos também estava no começo com Deus, e é revelado com Deus. Mesmoassim chegou-se a afirmar -  e talvez com razão - que se na célebrepassagem do prólogo (Jo 1.14) o Evangelho de João emprega apalavraaáp^ em lugar da palavra avôpamoç, que se esperaria, é porsaber, o autor, que esta "Palavra", que estava no começo com Deus,

 já era um homem celestial, no sentido que temos indicado. Por isso

não nos disse: "se fez homem", mas: "se fez carne",399

Esta hipótese seria mais provável ainda se, como se supõe,400

houvesse na base do prólogo do Evangelho de João um hino pré-cristão em honra do primeiro homem.

Em todo caso, os últimos versículos do prólogo (v. 14-18)parecem relacionar-se diretamente com a ideia de Filho do Homem:"Temos contemplado sua glória (ôó^a), glória como do Filho único vindo do Pai". Este versículo recorda as considerações paulinasrelativas a Jesus imagem de Deus: em virtude de ser Jesus Cristo aimagem de Deus, nós também podemos agora conhecer ao próprio Deus; é sua própria glória a que vemos, ao ver a de Cristo:"Ninguém jamais viu a Deus; o Filho único que está no seio doPai,  é quem o revelou." A mesma ideia também tem um papelimportante na primeira Epístola de João.

No Apocalipse a expressão "Filho do Homem" aparece duasvezes: "E no meio dos sete castiçais, vi a um semelhante ao Filhodo homem" (1.13); "Olhei, e eis uma nuvem branca, e sentadosobre a nuvem um semelhante ao Filho do Homem" (14.14). Ambasas passagens aludem evidentemente a Daniel 7.13; e a expressãoÕfxoioç indica seguramente - como em Daniel 7 . 13 - 0 caráter

Cf. J. HÉRING,  "KyriosAnthmpos"  (RfíPfí, 16, 1936, p. 207 ss,).R. REITZENSTEIN -  H. H. SCHAEDER, Studien zitm andken Syncretismus aus Iraii und  Griechenland,  1926, p. 306 ss.

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246  Oscar Cullmarm

misterioso e apocalíptico do Filho do Homem.401 Pode-se encontrar também em Apocalipse 12.3 ss. uma alusão indireta a Jesus,o segundo Adão; com efeito, a mãe do Messias, fundador da

nova humanidade, que é perseguida pela serpente recorda, incontestavelmente, a mãe da humanidade decaída, seduzida pelaserpente.

A Epístola aos Hebreus merece uma menção especial. Levan-do-se em conta sua afinidade com o Evangelho de João (coisa aque não se costuma dar a devida consideração) deve-se esperarque a ideia de Filho do Homem ocupe nela um lugar importante.

Efetivamente lemos já no v. 3 do primeiro capítulo que o Filho é"o reflexo (ânavyocCTpa) da glória de Deus e a imagem (xapctKTrin)de sua pessoa". Temos de mencionar também Hebreus 2.5 ss.onde se trata da superioridade do Filho do Homem sobre osanjos,  e a este propósito o autor cita o célebre Salmo 8 (v. 4):"que é o homem, que dele te lembres, e o Filho do Homem queo visites?"

Aqui este salmo é aplicado a Jesus, Filho do Homem. Comesta citação e a interpretação que lhe dá, o autor da Epístola aosHebreus demonstra ter opiniões muito precisas sobre a doutrinaacerca do Filho do Homem.

* * *

Em conclusão, no seio do cristianismo primitivo, foram os"helenistas" e os círculos representados pelo Evangelho de Joãoque - concordando estreitamente com o pensamento do próprioCristo - expressaram sua fé em Jesus valendo-se da ideia de Filhodo Homem - ideia que Paulo particularmente aprofundou.

"R. H. CHARLES,  The Revelation of   St.  John,  1920, p. 27, afirma que <&; uiòçàvGpwjtoi), não significa outra coisa na Apocalíptica que o ó víòç TOO àvBpcíiitoudos Evangelhos e de Atos. Pergunto se o èv op.oiopp.aTi àvGpwjtoo de Fl 2.7 podeser aproximado a õpoioç de Ap 1.13 e 14.14, Em lodo caso O. MICHEL, em seuartigo citado mais acima, p. 235, nota 379, vê nesta expressão de Fl 2.7 o "'estiloapocalíptico perifrástico".

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CRISTOLOGIA  DO NOVO TESTAMENTO 247

6. OFILHODOHOMEMNOJTJDEU-CRISTIANISMOEEMIRINEU

Apesar de nos limitarmos, neste estudo, aos escritos do primeiroséculo, isto é, aos livros do Novo Testariiento, neste ponto estenderemosnossas investigações até o segundo século. Sem citar todas as passagensem que ocorre a expressão "Filho do Homem" falaremos, ao menos, dedois autores cristãos antigos que têm importância no desenvolvimento daideia de Filho do Homem. Por um lado se trata do escritor judeu-cristãoHegesipo, e por outro de um autor milito mais essencial do ponto devista teológico: Irineu Pai da igreja que viveu e escreveu na segundametade do século II

O relato de Hegesipo pode lançar luz, sobre os círculos cristãosonde subsistia o título "Filho do Homem". Este texto, conservado porEusébio, (H.E., II, 23,4-18), nos relata 0 que segue:

A Tiago, o irmão do Senhor, se pede que fale ao povo. Conduzidoem seguida ao templo, lhe dizem: "Justo, em quem todos temos de confiar, visto que o povo se deixa extraviar seguindo a Jesus o crucificado,declara-nos qual é a porta de Jesus. E ele respondeu em alta voz: por queme interrogais acerca do Filho do Homem? Ele está sentado no céu àdireita do Todo poderoso, e virá nas nuvens do céu".402  Hegesipo nosrecorda em seguida que os escribas e fariseus logo lançaram a Tiago doalto do templo e o apedrejaram. Porém, como ainda vivesse, um soldadoo matou com seu bastão.

Segundo este texto, citando as palavras do próprio Jesus diante dosumo sacerdote, Tiago havia qualificado a Jesus de "Filho do Homem".Pelo menos, tal é o título que o judeu-cristão Hegesipo pôs em sua boca.E. Lohmeyer crê ver nele uma confirmação de sua tese segundo a qual aesperança do Filho do Homem se localizava na Galileia,403 porém, semque se compreenda muito bem o porquê. Deveríamos, antes, perguntar-nos se não se trata de um esforço judeu-cristão em manter, de uma maneira puramente formal, uma antiga tradição sem captar como Paulo, porexemplo, seu sentido profundo. Agregue-se a isto que as especulaçõesrelativas a Adão e ao Filho do Homem (por outro lado, deformadas eassociadas à ideia de "Profeta") desempenham um papel importante naobra judeu-cristã pseudoclementina  dosKerygniata Petrou. Ali se repre-

1,2Tradução G. BARDY, Sources chrétiennes 3i3 Paris, 1952, p. 87 s,°'Cf. E. LOHMEYER, Galilãa und Jerusalém,  19193 p. 68 ss. Ct. acima, p. 216.

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248  Oscar Cultmann  _____

senta a Adão como o "verdadeiro Profeta" que se encarna sempre denovo e acaba por aparecer em Jesus e no Filho do Homem esperado.Estamos aqui na presença do judaísmo ebionita que depois da queda deJerusalém se reforma e se deforma ao mesmo tempo do outro lado doJordão, à margem da evolução geral da igreja, vindo desembocar numlegalísmo rígido e ficando, por outro lado, aberto às influências gnósticase sincréticas. Como cremos haver demonstrado em outra obra,JW  esteramo do cristianismo antigo conservou certos traços desse judaísmoesotérico mais ou menos gnóstico, que os textos de Qumran nos deram aconhecer.

Indiscutivelmente as especulações judeu-cristãs concernentes a Adãoe ao primeiro homem sofreram essas influências; porém, sublinhamos

que elas jamais foram elaboradas teologicamente num sentido  cristão,como ocorre no caso de Paulo, mesmo quando neste o título de Filho doHomem não apareça em primeiro plano.

* * *

Com Irineu, nos encontramos em outro terreno. Entre os escritores

eclesiásticos do século II ele foi o único a captar, em toda sua profundidade, a concepção paulina de Filho do homem. Nós achamos aqui umatentativa - única em toda a história dos dogmas - de edificar umacristologia sobre a ideia de "homem". A oposição Adão-Cristo dominatodos seus estudos cristológicos. Em sua obm Adversus Haereses (V, 21,1), após mostrar o exato paralelismo entre os atos de Adão e os de Jesusdiz assim: "Por isto o Senhor se designa como o Filho do Homem, porque volta a tomar em sua própria pessoa a este primeiro homem, paraque, pela vitória do homem, regressemos à vida assim como, pela derrota

do homem, o género humano desceu à morte. Do mesmo modo em quepor um homem a morte obteve sua vitória sobre nós, também por umhomem obtemos a vitória sobre a morte."

Segundo Irineu, não se pode compreender a obra de Jesus semremontar à' história da criação. Jesus completa à criação divina dohomem. Preenche o fim para o qual Deus havia criado o homem. Irineu,com efeito, sempre estimou ser sua tarefa principal afirmar diante dagnose a relação entre a criação e a redenção, entre o Antigo e o Novo Testa-

O. CULLMANN, "Die neuentdeckten Qumran-Texte und das Judenchristentum derPseudoklementinen" (Neutestt.iudicn fiir  R. Buhnmnn,  1954, p. 35 ss.)s

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CRISTOLOGIA  DO NOVo TESTAMENTO

mento. Sua cristologia inteira se orienta nesse sentido. Pois bem, o eloque liga a cristologia com à doutrina da criação é, precisamente, a noçãode Filho do Homem, o "segundo Adão".

É assim que Irineu, em seu tratado Adversas Haereses assim comoem seu esboço dogmático "para a demonstração da verdade da pregaçãoapostólica", descreve como Jesus retomou ponto por ponto a obra deAdão, porém, realizando, desta vez, o que Adão não havia realizado e,portanto, reparando a falta deste. No entanto, Irineu insiste muito mais narealização que na reparação. Por isso, reduz ao mínimo o pecado de Adãochegando, inclusive, até a desculpá-lo. Diferentemente do apologetaTaciano que havia ensinado a condenação eterna de Adão, Irineu conta

com a possibilidade de sua salvação: a maldição cai antes na serpenteque sobre Adão. Irineu trata de representar o pecado de Adão como umaespécie de necessidade: Adão seria igual a um menino e não pecou senãopor falta de amadurecimento. Portanto, em sua obra Jesus aparece maiscomo quem leva a cabo a obra não realizada por Adão, do que comoquem repara sua falta.

Irineu insiste mais na criação de Adão segundo a imagem de Deus,que na perda dessa semelhança por seu pecado. Em sua obraEiç èiú8eii;iv

(1,1,11 s.), glorifica a criação do homem por Deus: de sua própria mão,Deus o criou e o colocou na terra qual sua própria imagem. O autor logomostra como Deus tornou Adão senhor de toda a criação. Porém, estatarefa foi demasiado pesada para ele. Adão era um menino, e faltava-lheainda o amadurecimento. Por isso sucumbiu ante o tentador. Vemos aquique Irineu, diferentemente de Fílon e os judeu-cristãos, tem uma concepção totalmente linear do tempo da história da salvação: tudo está em andamento a partir do começo. A salvação final não é mero retorno ao princí

pio; vale dizer, o Cristo traz mais do que havia no começo.No conceito de "Cristo, o homem celeste" de Paulo, se relaciona

Jesus com Adão, sem identificá-lo com ele; isto significa que a salvaçãonão reside simplesmente em um retorno a Adão, já que Jesus, por suaencarnação, trouxe algo totalmente novo. Irineu adota esta ideia, porém,a exagera ao sublinhar demasiado exclusivamente o caráter retilíneodo desenvolvimento da história da salvação. Assim, não levou bastante em consideração que Jesus, em sua qualidade de Filho do Homem,assumiu a missão do Ebed lahweh.  Irineu não viu tão claramente comoPaulo (Rm 5.12 ss.) que a missão de Jesus, quanto a Adão, não consistetão-somente na  consumação da obra não realizada por este; mas maisainda, e primordialmente, na  reparação  de sua falta, reparação sem aqual seria impossível o cumprimento de sua missão. Irineu não levou

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250 Oscar Cullmann

suficientemente a sério este ato de rebeldia contra Deus, que constitui opecado de Adão. Não compreendeu todo o alcance do fato de que porculpa de Adão, de seu pecado, a linha contínua foi quebrada não poden

do prolongar-se a menos que sua direção retilínea seja restabelecida pelaexpiação.Apesar desta reserva, temos de reconhecer o grande valor dos estu

dos de Irineu sobre Jesus - "segundo Adão". Consagra-se, com predile-ção, ao fato de corresponder a vida de Jesus, pontualmente, à de Adão;porém, o faz de forma tal que com Jesus tudo se consuma. Assim, Jesusnasceu de uma virgem do mesmo modo que Adão foi formado da terra,ainda virgem por ainda não haver chovido. A queda de Adão foi causada

pela desobediência de uma virgem: Eva. Da mesma forma a obra salvadorase realiza graças à obediência de outra virgem: Maria. Vê também Irineuoutro paralelismo de natureza mais externa no fato de que o objeto concreto que foi a ocasião da queda de Adão era a árvore de cujo fruto haviacomido. Outra árvore lhe corresponde, outro ''madeiro", na história dosegundo Adão: a cruz, a árvore da obediência. No  Adversus Haereses,Irineu junta ainda outros exemplos que demostram até que ponto estáenamorado desta ideia de ser Jesus o "segundo Adão".

Mostra, por exemplo, como Adão sucumbiu à tentação comendoum fruto proibido, enquanto que Jesus resiste a Satanás negando-se aromper seu jejum. Outra comparação estabelecida em Adversus HaeresesV, 21,2 tem maior valor teológico: Jesus, tanto como Adão, foi tentadopelo diabo, tratando-se em ambos os casos da mesma tentação já que odiabo oferece tanto a Adão como a Jesus a igualdade com Deus. Em ume outro caso quer levar a sua vítima a ultrapassar os limites que Deus lheestabelecera. Adão, em sua falta de maturidade se deixa seduzir; porém,

Jesus resiste à tentação de cobiçar por orgulhoso a igualdade com Deus.Já temos visto que esta também é a ideia essencial do texto cristológicofundamental de Fl 2.6 ss. Irineu, pois, captou com exatidão esta ideiaessencial já que a converte na base de sua própria cristologia.

* * *

Depois disso, a noção especificamente bíblica de Filho doHomem vai caindo paulatinamente no esquecimento. É verdadeque o termo "Filho do Homem" costuma aparecer nas exposiçõescristológicas posteriores; porém, para indicar unicamente a humilhação de Jesus, para ressaltar sua "natureza humana". E por "natu-

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 251

reza humana" se entende tão-somente sua encarnação em carnedecaída, sua incorporação a uma natureza  pecadora.  A ideiaessencial - a saber, que Cristo já era o Filho do Homem em suapreexistência, e que em sua "pós-existência", ao aparecer em seuretorno seguirá sendo o "Filho do Homem" - j á não é levada emconsideração. Esqueceu-se por completo que declarar que Jesus éo Filho do Homem é dizer que ele é a "imagem de Deus". Quandomuito se acha, de maneira esporádica e marginal na história posterior da teologia, a ideia de que Jesus é o "protótipo da humanidade" - por exemplo em Sclileiermacher. Só em época muito recen

te, graças a Karl Barth, se tem voltado a recorrer à ideia da imago Dei para a interpretação da cristologia.405  Porém, fica ainda porpôr-se a plena luz, dogmaticamente, o valor de todos os aspectosda concepção específica de Filho do Homem tal como está contida no Novo Testamento. Seria, portanto, sumamente instrutivofazer um estudo sobre os vestígios de uma cristologia do Filho doHomem na história do dogma e da teologia.

Porém, seria mais importante ainda que um dogmático moderno empreendesse a tarefa de edificar uma cristologia baseadana ideia neotestamentária de Filho do Homem. Semelhante cristologia apresentaria uma dupla vantagem: primeiro, estariainteiramente centrada no Novo Testamento e associada a um títuloque Jesus reivindicou para si mesmo. Em segundo lugar, o problema (no fundo, logicamente insolúvel) das duas naturezas em Cristo, se encontraria transferido a um terreno sobre o qual se pudesseencontrar a solução: o Filho do Homem preexistente, que está comDeus desde o princípio e que existe com ele como sua imagem

 já é,  por sua essência,  homem divino. A penosa discussão queoutrora dominou as controvérsias cristológicas seria assim superada.

Sobretudo em  Kirchl. Dogmatik,  III, 1. Cf. a este respeito os comentários de umexegeta do Antigo Testamento, J. J. STAMM, "Die Imago-Lehrc von Karl Barthund die alttestamentliche Wissenschaft"  (Antwort. Festch: K. Barth,  1956, p. 84ss.). No tomo IV, 2, a ideia de Filho do Homem associada à glorificação de JesusCristo desempenha um papel importante.

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TERCEIRA PARTE

OS TÍTULOS CRISTOLOGICOSREFERENTES À

OBRA PRESENTE DE JESUS

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PEQUENO INTRÓITO

O aspecto cristológico que passaremos agora a abordar é considerado em seu justo valor nas exposições sobre a teologia doNovo Testamento, porém, ele é frequentemente negligenciado nasdogmáticas protestantes. No entanto, para os primeiros cristãosdesempenhava um çaçel de primeira ordem em sua vida eclesiástica, exceto, talvez, em seu pensamento teológico. Por isso, esteaspecto da obra de Cristo exige de nós uma atenção particular-Que o Cristo prossiga sua obra desde sua glorificação não é invenção "católica" mas um pensamento fundamental de todo o NovO

Testamento, que surge com especial nitidez no Evangelho de João-Alguns dos títulos estudados até aqui, em particular o de sumo

sacerdote, dizem respeito também à obra presente de Cristo elevado à direita de Deus. Porém, o título do qual nos ocuparemos  ccuja importância para a cristandade primitiva não se poderá subli-nhar excessivamente: Jesus o Senhor (Kyrios), diz respeito, antesde tudo, ao Cristo glorificado.

O título "Salvador", que aparece de preferência na periferiados escritos do Novo Testamento tem menos importância; convi-rá, no entanto, estudá-lo também nesta terceira parte.

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CAPÍTULO I

JESUS O SENHOR (KYRIOS)

Melhor do que qualquer outro, o título "Senhor", expressa o

fato de Cristo ter sido elevado à direita de Deus e de intercedei'atualmente pelos homens, em sua condição de glorificado. Os primeiros cristãos ao darem a Jesus o título de Kyrios proclamavamcom isso que Ele não pertencia unicamente ao passado da históriada salvação, nem que era meramente objeto de uma esperança

 futura, mas queé também uma realidade, vivendo no presente; eleestá tão vivo atualmente que até pode entrar em relação conosco, e

o crente pode dirigir-lhe suas orações, e a igreja invocá-10 em seuculto, para que Ele apresente suas orações a Deus e as torne eficazes. A comunidade inteira, e não só a fé individual do cristão, perfaza experiência de que Jesus vive e prossegue sua obra. O Senhoíglorificado continua intervindo nos acontecimentos terrestres, razãopela qual a igreja é considerada como o corpo de Cristo. Os primeiros cristãos expressaram esta profunda convicção em sua pro-

fissão de fé: Kyrios Iêsous: " Jesus é o Senhor".

1. O TÍTULO "KYRIOS" NAS RELIGIÕES HELENÍSTACAS ORIENTAIS E NO CULTO AO IMPERADOR

Sobretudo no mundo helenístico o termo Kyrios, aplicado aJesus, se converte em título cristológico; convém pois investigar a

significação deste termo fora do cristianismo, na linguagem religiosa e profana do helenismo. Este vocábulo estava ligado a ideiasmuito precisas e correntes: pode-se, pois, admitirapriori que quan-

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2.58 Oscar Cuttmaiin

do a fé cristã se implantou nesse meio, tais ideias exerceram influência na consciência dos cristãos. Isto não significa, contudo, queseja preciso admitir a tese muito discutida que W. Bousset expôs

em seu Kyrios Christos,406 

 segundo a qual o título de Senhor foiatribuído a Jesus por exclusiva influência do helenismo e em suaprópria esfera. Porém, ainda que após examinada, esta afirmaçãopareça excessiva, todavia fica em pé o fato de que, graças ao estudo de Bousset, a atenção dos exegetas foi sendo focada na importância capital que o nome Kyrios  tinha no paganismo helenísticooriental.

No entanto, não devemos esquecer que, no campo do helenismo,tampouco se emprega o termo Kyrios exclusivamente em relação acertas concepções religiosas; como ocorre com seus equivalentesem todos os demais idiomas, usa-se no sentido geral de "dono","proprietário"; ou, no caso vocativo {Kyrié), como fórmula de cortesia, que não significa nada mais que nosso corrente "senhor".O defeito da tese de Bousset é que - tanto para o vocábulo grego

como para seus equivalentes semíticos - não leva em conta a relação que pode existir entre o uso do termo no sentido profano e seuemprego nos sentidos religiosos. Não aceita, portanto, que da ideiageral de superioridade, propriedade, ou potência que designa estetermo, se possa passarà idéiada soberania absoluta de um só Kyriosdivino. Pois bem, nos escritos do Novo Testamento podemos traçaresta passagem de um sentido ao outro. Porém, Bousset se nega areconhecê-lo. Segundo ele o emprego do termo em um sentidoabsoluto seria, no terreno do Novo Testamento ako totalmente inu-sitado que só poderia explicar-se pela influência do helenismo emPaulo e em Lucas, por exemplo. O recurso ao título de Kyrios paradesignar o caráter único do Senhor divino não pode, segundo ele,ser de origem palestina: na Palestina Jesus não teria sido chamado"Senhor" senão no sentido profano e banal da expressão.

Sublinhemos que esta distinção taxativa entre os usos profano e religioso do termo descansa em um a priori  injustificado e

W. BOUSSET, Kyrios Christos,  Ia ed., 1913, 2"  ed. 1921.

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CRISTOLOGIA  DO NOVO TESTAMENTO 259

que na realidade - por necessária que seja a distinção - temos queadmitir a passagem que há de um ao outro.

É possível, também, demonstrar-se que já no helenismo o

sentido profano do termo  Kyrios  apresenta aspectos que podemconduzir ao Kyrios divino. A este respeito uma comparação entreKyrios e seu sinónimo ÔEaTtótnç é sumamente instrutiva.407  Semalcançar ainda o sentido preciso de nosso vocábulo "déspota" otermo ôecríiórriç já contém a ideia de algo arbitrário, enquanto quea ideia associada a Kijpioç corresponde à de uma autoridade legítima. Somente partindo de KÚpioç, e não de ôecTcótriç, pode-se

chegar à ideia de um Senhor divino único.Assim se explica por que a divindade - considerada sob o

aspecto de sua potência e de sua superioridade absolutas - pôdeser designada por esta palavra, Kyrios, e que esta tenha chegado,inclusive, a ser o nomepelo qual seu caráter divino era expressode uma maneira particularmente exclusiva. Neste sentido, encontramos numerosas constatações do vocábulo  Kyrios  empregado

como sinónimo de "Deus" nas religiões helenísticas orientais doImpério Romano. As referências tem sido reunidas com suficientefrequência408  para que seja o bastante agora sublinhar o empregogeral e muito difundido desta acepção de Kyrios: nas religiões daÁsia Menor, do Egito e da Síria os deuses e as deusas como Serápis,Osíris e ísis são nomeados  Kyrios e Kyria,  e isto tanto nas religiões nacionais como nas dos mistérios. Quando no mundo hele-

nístico se diz "o" Kyrios, trata-se sempre de uma divindade.Mal o cristianismo saiu da Palestina deve ter se deparado comeste uso do vocábulo  Kyrios,  vendo-se na necessidade de tomar

Cf. a este respeito TRENCH,  Syiionyma des Neuen Testaments,  1907, p. 60;FÒRSTER,  Herr ist Jesus,  1924, p. 61 ss., e K. H. RENGSTORF, art. Secitóiriç(ThWbNT, II, p.43 ss.).

Cf. F. CUMONT, Les religions orientales dans le paganisme romain, 4a

 ed., 1929;art. KÚpioç em PAULY-WISSOWA,  Realencyclopàdie  XXIII, 1924, col. 176 ss.(WILLIGER); art. jcópioç em W. H. ROSCHER, Ausfiirlicheí Lexikon der grieschi-schen und rõmischen Mythologie  (II, sect. 1, 1890-94); W. BOUSSET,  op. cit.;FÒRSTER, Herr ist Jesits,  1924, p. 69ss.,eart.  KÚpioç (ThWbNT, IH, p. 1.038 ss.).

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260 Oscar Cullmann

posição frente a ele. Se fosse preciso corroborar bastaria citar a passagem de 1 Co 8.5 s.. "... como há muitos deuses e muitos Kyrioi,para nós só há um Deus... e um só  Kyrios, Jesus Cristo". Para ocristão, que sabe que Jesus desde sua glorificação recebeu a onipo-tência no céu e na terra, estes Kyrioi que existem para os pagãos, jánão são mais Kyrioi absolutos; seu poder foi absorvido pelo do únicoKyrios. Atrás desta afirmação - à qual voltaremos405* - certamentetambém se acha a crença segundo a qual estes Kyrioi, estas "potências" e "domínios", como os chama Paulo, foram vencidos por Cristo,lhe foram submetidos e, por conseguinte, já não podem ser Kyrioinum sentido absoluto. Se Paulo diz, por um lado, haver muitos Kyrioie por outro, não haver senão um só Kyrios, esta maneira paradoxalde expressar-se se explica pela relação que temos assinalado entreos dois usos do termo, o profano e o religioso: estes  kyrioi  dospagãos com sua pretensão a serem Kyrios no sentido absoluto daexpressão já não são, para os cristãos, senão kyrioi no sentido banale não têm sobre nós nenhum direito absoluto de soberania.

Outro tanto ocorre com o  Kyrios  que no Império Romanoexigia rigorosamente o reconhecimento de sua soberania:  oImpe-rador.4™  E verdade que este título imperial de Kyrios tinha primitivamente um sentido político e jurídico, sem implicar a afirmação da divindade do imperador.411

Cf. abaixo, p. 292 ss.'Cf. a este respeito A. DEISSMANN,  Licht vom Osten,  4a  ed., 1923, p. 287 ss.;P. WENDLAND,  Die hellenistisch, rõmisclie Kitltitr in ihren Beziehungen zu

 Judentum und Christentum, 2a e 3a ed., 1912 (Hdb. z,. NT), p. 123 ss.; K. PRÚMM,"Der Herrscherkult im Neuen Testament"  {Bíblica,  1928, p. 1 ss .) ; id. Religionsgeschichtliches Handbuchfir den Raitm deraltchristlichen Umwelt, 1943,p.  54 ss.; 83 ss., W. FÕRSTER,  Herrist Jesus, 1924, p. 99 ss.; L. CERFAUX, "Letitre Kyrios et  ladignité royalede Jesus. Le titre et les róis" (Recueil L.  Cerfaux, t.

 I, Louvain, 1954, p. 3 ss.). - Bibliografia completa em J.TONDRIAU, "Bibliographie

du culte des souverains heilénistiques et romains"  (Buli. de l'Ass. G. Budé, n. s. 5,1948, p. 106 ss.)É o que sublinham F. KATTENSBUSCH,  Das apostolische Symbol,  II, 1900,p. 596 ss., e, sobretudo, W. FÕRSTER em sua monografia,  Herr ist Jesus, 1924, eem seu artigo KÚpioç  (ThWbNT,  III, p. 1.038 ss.). Porém, quando partindo daliestabelece uma separação de princípio entre o emprego político do título  Kyrios e o

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CRISTOLOGIA  DO NOVO TESTAMENTO 261

Igualmente o adjetivoKupicíKÓç,, que achamos empregado com sentido cultual em expressões neotestamentárias tais como KupiaKT) T](iÉpo;e KUpicxKÒv ôetítvov, se encontra também na linguagem administrativa,

com o mero sentido jurídico e político de "imperial". É assim que asfinanças imperiais são chamadas Kupioxcu yí)<poi e a caixa imperialKupiotKÒç ^.óyoç (W. Dittenberger,  Orientis Graecae InscriptionesSelectae,  1903-05, n°669).

Porém, sabemos também que no Oriente, muito antes da época romana, os soberanos eram honrados como deuses. Os imperadores romanos herdaram esta dignidade divina. Se lhes rendia um

culto porque se lhes atribuía ascendência e natureza divinas. Originariamente este culto era devotado só aos imperadores romanos jámortos; porém, mais tarde estendido também ao imperador vivo.No Império Romano, por conseguinte, este culto tinha seu centrono Oriente. No entanto, os imperadores reconheceram bem cedo oproveito que podiam tirar dele para a unidade do Império e oincentivaram com todas as suas forças. Assim, na pessoa do impe

rador, a divindade toma um caráter visível: o èvap^nç èrcupáveia.O imperador era chamado, pois,  Kyrios  como sinal de seu

poder político; e por outro lado, era honrado como um deus: otítulo Kyrios, já associado a seu nome, por força havia de adquirirum caráter religioso a partir do momento que se recorresse frequentemente a este vocábulo para designar os deuses pagãos, o quesucedeu nos tempos do Império Romano.

W.Fõrster {Herrisl Jesus,  1924, p. 103 ss, eThWbNT, III, p. 1.052ss.) e outros insistem muito sobre o fato de que nos textos profanos otítulo Kyrios não se aplica senão como título político, sem relação diretacom o culto ao imperador. Isso é exato. Porém, o que temos dito mostraque não se pode tirar daí a conclusão de que este título designava unicamente ao soberano político e não ao deus. Pois há outros dois fatos igualmente incontestáveis: por um lado, o imperador era honrado como um

culto imperial parece-me cometer a falta que ele mesmo busca combater emBOUSSET; a saber, uma distinção demasiado taxativa entre o uso profano do termoe seu uso religioso. Cf. ainda abaixo, pp. 262 s. e 273.

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262 Oscar Cullmatm

deus;  por outro, o termo  Kyrios  na linguagem corrente do paganismohelenístico oriental, designava uma divindade. Como teria sido possívelnão evocar o sentido religioso deste termo, cada vez que se conferia este

nome ao imperador?

Ademais, não se pode fazer uma distinção categórica entre alealdade política ao imperador e o culto que lhe é devotado na qualidade de deus. Quando nessa época se empregava a fórmula KyríosKaisar,  não só os cristãos  (Mart. Polyc.  8.2)412  mas também ospagãos subentendiam nela seu sentido religioso e absoluto. O uso

profano e político deste nome devia achar-se muito fundido ao seuemprego religioso em razão de na antiguidade entender-se que asoberania sobre o Império era considerada como a emanação dasoberania sobre o universo. A profissão de fé política Kyrios Kaisarnecessariamente devia ter um verniz religioso e se aproximava deum 0EÒÇ Kcucap, que talvez esteja na base da misteriosa cifra 616(variante do 666) de Ap 13.18.413

Estavam os judeus dispensados deste culto ao imperador? Eisaí uma questão que não foi ainda perfeitamente esclarecida. Emtodo caso suportavam, também eles, as consequências de uma confissão da soberania imperial imposta a todos os súditos do Império, como o demostram os dados referentes aos zelotes.414

Chega-se assim ao problema da significação, para os judeus,deste termo "Senhor" em suas formas aramaica, hebraica e grega.Pode-se dar por coisa certa que a profissão de fé  Kyrios lesousChristos,  onde ela ocorre no Novo Testamento, representa umaespécie de resposta polémica ao mesmo título Kyrios conferido às

W. FÓRSTER, Herr ist Jesus, 1924, p. 106, tenta, cio mesmo modo, aplicar sua tese(segundo a qual o título Kyrios dado ao imperador se referia unicamente à sua pretensão à soberania política) a este trecho do Martírio de Policarpo em que se pergunta a

Policarpo:  "Que tem, pois, de mal em dizer:  Kyrios Kaisar  ...?" Todo o contextoprova que aqui a explicação de FÒRSTER é insustentável. Cf. abaixo, p. 287 s.Cf. a proposição plausível de A. DEISSMANN em Licki vom Osten, 4a ed., 1923,p. 238, nota 3. Cf. também O. CULLMANN, Dieu et César,  1956, p. 85 ss.Cf. em particular JOSEFO, Bell. Jud., VII, 10, 1. Outros textos em W. FÕRSTER,

 Herr ist  Jesus, p. 106 s.

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ORÍSTOLOGIA DO INOVO TESTAMENTO 263

divindades helenísticas e ao imperador; porém, a conclusão de W.Bousset, segundo a qual nenhuma influência judaica contribuiupara sua significação é, incontestavelmente, demasiado apressada.

2.  O "KYRIOS" NO JUDAÍSMO415

A palavra grega Kyrios corresponde ao hebraico "JiTK, e aoaramaico  "113. Devemos, pois, antes de tudo perguntar-nos se estasduas formas semíticas possuíam, na época do Novo Testamento,

uma dupla significação como seu equivalente grego: a significação geral de "amo, proprietário", e a significação absoluta de "oSenhor".

Não é necessário dar exemplos de  Adon,  tomado em suaacepção geral. Este substantivo não se emprega sozinho, ele é determinado, de uma maneira mais precisa por outro substantivo ou porum sufixo que indica de que Senhor se trata. Assim, pode aplicar-

se a Deus, a quem se chama "meu Senhor" ou "Senhor do mundo".Um fato sumamente importante para o problema que nos ocupaé que os judeus não pronunciavam o nome de Deus: JHVH.A partir de certa época- porém, certamente no século I a.C. e noséculo I d.C. - o substituíram na leitura litúrgica por Adonai.  Nãoé possível saber em que data precisa este costume se introduziu.Talvez seja anterior ao século I antes de nossa era; talvez seja mais

antigo que a tradução dos Setenta. O que se pode admitir comcerteza, é que já existia na época do nascimento do cristianismo.416

É verdade que este emprego absoluto de Adonai não se difundiu

Cf. a este respeito W. BAUDISSIN, Kyrios ais Gottesname im Judentum und seineStelle in der ReUgionsgeschichte,  t. 1-4, 1926-29; O. GRETHER,  Name und WonGottes im Alten Testament, 1934; G. QUELL, art "ícúpioç im AT" (ThWbNT,  III,p.  1056 ss.);para o judaísmo tardio, W. FÒRSTER, art. xrópioç  (ThWbNT,  III,

p.  1 .08 1  s.); para osLXX   e o judaísmo helenístico os dois estudos de L. CERFAUX,"Le nom divin  Kyrios  dans la Bible grecque" e "Adonai et Kyrios"  (Recueil L.Cerfaux,  t. I. 1954, p. 113 ss.: 137 ss.).É também a ideia de BAUDISSIN, que tem em geral tendência a atribuir-lhe a datamais tardia possível.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 265

Teríamos, com efeito, de admitir que então já se lia Adonat era lugar deJHVH, o que é contestável.418 Como quer que seja, Adonat  deve ter possuído, durante muito tempo, uma ressonância muito especial para oterem selecionado para esta função litúrgica, a mais honrosa de todas.Isto é o que os tradutores da LXX devem, também, ter visto para quetraduzissem com tanta naturalidade este termo por ícópioç,.

Além disso, no seio do judaísmo de língua grega, o empregoabsoluto dzKyrios  em lugar de "Deus" não havia ainda penetradona língua corrente, porém, era considerado revestido de caráter

litúrgico e sagrado. Em Josefo, por exemplo, o encontramos somente nas citações bíblicas e nas orações; à parte isso, ele não costumava empregar a palavra KÚpioç para designar a "Deus".419  Emtroca, este uso é muito frequente nos apócrifos e nos pseudepígrafosgregos.

Para o judaísmo da época neotestamentária - tanto na Palestina como na Diáspora -Adon-Kyrios  é, em suma, geralmente uma

designação litúrgica de Deus.O que podemos dizer quanto ao equivalente aramaico  mar,que nos interessa particularmente, já que os primeiros discípulos -como o próprio Jesus - falavam o aramaico e que - voltaremos aisso com mais detalhe - a invocação litúrgica aramaica da comunidade primitiva,  Maranatha, nos é conhecida pelo Novo Testamento? A primeira questão que se coloca é saber se este termo, ao

lado de seu sentido geral de "amo, proprietário", e também de seuemprego ordinário como fórmula de cortesia, era, ademais, usadono sentido absoluto de Senhor = Deus, como o temos constatadopara os casos de Adonai  e Kyrios. No tocante ao período pré-cristão não podemos responder afirmativamente:420  mar   jamais éempregado para designar a Deus, nem sequer em Daniel 2.47 ou5.23. Porém, não podemos perder de vista que todo judeu sabia

Sobretudo por BAUDISSIN, op. cit.  Cf. contudo W. FÕRSTER, em ThWbNT,  III,p. 1082: e também os estudos deL. CERFAUX citados mais acima, p. 263, nota 415.Cf. A. SCHLATTER, Wie sprach Joseplms von Gotfí  1910.G. DALMAN, Die Worte Jesu,2a ed., 1930, p. 146 ss.

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266 Oscar Cullmaitn

que em hebraico Deus é "o Senhor", Adonai. Por outro lado, nalíngua corrente, mari é uma maneira particularmente respeitosa de

dirigir-se a alguém, algo assim como  rabbí, que se emprega damesma maneira. Pois bem, também rabbí  significa algo mais que"doutor" e pode ser traduzido para o grego por  Kyrie. Mariexpressa uma deferência maior ainda e se emprega para dirigir-seao rei, ao imperador, ou ainda aos doutores reverenciados. A repetição "Senhor, Senhor" {mari, mari), ,gual à reiteração  rabbíí,abbí,era considerada como um acentuado sinal de respeito.42' Porém,

estamos ainda muito longe do uso desta palavra como designaçãode Senhor absoluto.Notamos no parágrafo precedente que, no mundo helenístico,

Kyrios havia passado do sentido geral de "senhor" ao sentido absoluto de "o Senhor". O mesmo acontece no caso de Adon. Podendoser provada semelhante evolução dos termos, não temos o direitode negar a priori a possibilidade de uma evolução análoga para a

palavra aramaica mari: este vocábulo, que ao princípio só denotava as relações entre Jesus e seus discípulos durante sua vida terrestre, pôde chegar ao  Kyrios Iesous,  que caracteriza, em particular, a fé das comunidades helenísticas. W. Bousset - e com eleR. Bultmann - afirma que não se trata aqui de uma evolução, masde uma brusca passagem para algo totalmente novo por influênciado helenismo. Para ele não há solução de continuidade entre o

termo "Senhor", que os discípulos empregavam para dirigir-se aseu  rabbí, e o único  Kyrios Christos, cujo culto não poderia ternascido, por conseguinte, senão em terreno helenístico. Estas conclusões nos parecem bem discutíveis.

Não podemos trazer a prova desta evolução senão no parágrafo seguinte, quando examinarmos a fé pós-pascal da comunidade no Cristo glorificado. Se os discípulos que, durante a vida

de Jesus, haviam simplesmente expressado com as palavras "meuSenhor" sua reverência pelo mestre, depois de sua ressurreição

Ver o exemplo citado por G. DALMAN,  op. cit.,  p. 258. Isto explica a palavracitada de Mt 7.21; "Aqueles que me dizem: Senhor, Senhor..."

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 267

empregaram o mesmo termo para designar o Cristo glorificadopresente em seu culto, e para reconhecer diante dEle um direitototal sobre eles, temos um fundamento para admitir uma passagem, sobre o próprio terreno do cristianismo, do aramaico mari aogrego KÚpioç. Em outros termos, a aplicação a Jesus deste usohelenístico da palavra  Kyrios  e os trechos da LXX onde  Kyriosaparece, não constitui então uma inovação filológica e teológica,mas o registro de um uso aramaico.

W. Bousset afirma que a origem desta veneração cultual de

Jesus tem de ser buscada em terreno helenístico e mais precisamente em Antioquia, e não na comunidade palestina. Sobre estaafirmação-cujo fundamento discutiremos - é que ele baseia suarejeição em admitir que do aramaico mari derive o grego KÚpioçXpictóç. Não poderemos fazer um juízo global sobre esta tesesem termos estudado primeiro a fé dos primeiros cristãos no Cristoglorificado. Neste momento, trata-se de mostrar que, por analo

gia ao KÍipioç helenístico e ao Adon  hebraico, é filologicamentepossível que a palavra aramaica  mar,  empregada primeiro emsentido profano, tenha sido por fim empregada no sentido teológico do grego icòpioç, com a condição de que, todavia, esta evolução teológica valesse já para os discípulos palestinos, que falavam aramaico. Ora, veremos que se deve admiti-lo. O elo queune, do ponto de vista teológico e filológico, mari e KÚpioç, é a

invocação cultual aramaica Maranatha, que trataremos a fundo.

Porém, antes, temos de encarar uma última questão a respeito dotermo "Senhor" no judaismo. Esta palavra serviu para designar ao Messias? Os poucos trechos rabínicos em que o Messias recebe o nome deJahvé*1-- mal podem ser considerados como referências válidas. Eu dariamais importância à interpretação que Jesus dá ao SI 110 em Mc 12.35 ss.par. Disso já falamos423 e a isso voltaremos ainda. Toda a argumentação

de Jesus nesta passagem baseia-se no fato de que Davi chama ao Messias

4" W. HEITMÚLLER, Im Nameti Jesu, 1903, p. 273.

""-'Cf. acima, p. 173 s.

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seu "Senhor". Não se pode, por certo, concluir com certeza que já no judaísmo este título se relacionasse ao Messias. Porém, esta passagemme parece confirmar a ideia de que já no judaísmo a palavra "Senhor",

segundo as circunstâncias em que era pronunciada, podia ter uma especial ressonância de majestade, tornanado possível a passagem de suasignificação banal à do "nome que é sobre todo nome".

3. "KYRIOS IESOUS" E O CRISTIANISMO PRIMITIVO

Jesus se autodenominou  Kyrios, e em que sentido? Trataremos esta questão no exame global da fé primitiva no Kyrios; poisé claro que este título, aplicado a Jesus, não recebeu sua plenasignificação senão depois de sua morte e glorificação. A associação dos termos  Kyrios e  lesous  é, com efeito, característica dafunção presente e pós-pascal do Jesus glorificado. É, pois, naturalque o uso deste título se tenha desenvolvido junto com a salvação.Isto é o que experimentaram os primeiros cristãos ao proclamarem que Deus/ez de Jesus "Senhor e Cristo" (At 2.36), que é graças a sua obediência de Ebed  que ele foi "mais do que elevado" eque Deus lhe deu este nome/S/  yr áw que está "acima de todo nome"(Fl 2.9).

Não esperamos, pois, encontrar este termo  Kyrios  - em umsentido absoluto - na boca do Jesus terreno. Aflora, no entanto,

pouco a pouco dos seguintes modos: indiretamente, na passagemde Mc 12.35 ss. par., mencionado há pouco onde Jesus cita o Salmo 110 para provar que a descendência davídica não tem valordecisivo para o Messias; diretamente em Mc 11.3: "dizei-lhe: oSenhor precisa dele (do jumentinho)"; ou ainda em Mt 7.21: "osque me dizem, Senhor, Senhor!..." Porém, em nenhuma destas passagens se emprega a palavra  Kyrios,  no sentido absoluto que o

cristianismo primitivo lhe conferiu ao aplicá-lo a Jesus. Podemosver, portanto, segundo estes três exemplos, que este termo podeter um conteúdo diferente, segundo o contexto em que é empregado. Ninguém pode contentar-se em dizer que, em todo caso, Kyriossignifica simplesmente "amo".

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CRISTOLOGIA DO NOVO  TESTAMEhrro 269

É verdade que em Mc 1235 ss. par., o vocábulo não tomouainda seu sentido absoluto. Trata-se do Kyrios de Davi. Contudo,este título se reveste aqui de uma dignidade muito particular, já

que sobre ele repousa toda a argumentação elaborada para demonstrar a superioridade do Messias sobre o rei Davi. Ao mesmo tempo se encontra subentendida a ideia de que uma descendência terrestre não pode  ter importância para o Cristo que Davi chamaKyrios.

Com Mc 11.3 as coisas se apresentam de um modo diferente.Encontramos ó icópioç, com artigo; e em Marcos é a única passa

gem onde Kyrios é empregado assim. Poderíamos supor, então, quetemos aqui a lembrança precisa do próprio Jesus haver se expressado desta maneira. Porém, não é possível concluir daí que aqui seautodesignou como o Senhor divino. Pois, por um lado, é muitoprovável que a expressão aramaica tenha sido "nosso Senhor" ou"meu Senhor"; por outro lado, a Palavra aramaica  mar  pode tersido empregada meramente para expressar a relação entre os discí

pulos e seu mestre. Esta segunda hipótese me parece a mais provável.Sem dúvida, este é também o caso para o terceiro exemplocitado, Mt 7.21. O próprio logion deve ser autêntico. Temos vistoque a reiteração, "Senhor, Senhor" é um sinal de gentileza semítica.424

Deve, pois, também aqui, tratar-se da forma que o discípulo dirigea palavra a seu mestre reverenciado.

Este último exemplo - que poderia ser colocado em paralelo

com João  13.13: "Vós me chamais de mestre e Senhor" - mostra,no entanto, que a relação entre o-s discípulos e o rabbí  pode, deacordo com a situação, conferir ao título Kyrios uma ressonânciaque evoca algo muito mais elevado que a dignidade de um simplesmestre. Quando este  rabbí  exige do discípulo a entrega de todasua pessoa, quando faz dele seu verdadeiro ÔoíAoç e lhe constrange, em virtude de sua autoridade particular, a uma obediência livre

e total, então este termo, Kyrios, adquire uma significação que ultrapassa em muito a simples fórmula de cortesia e expressa precisa-

"•-4Cf. acima, p. 26ó.

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270 Oscar Culhnann

mente esta exigência total e absoluta. O uso de KÚpioç, Senhor,neste sentido evoca automaticamente um ôoí)Àoç, servo, corres

pondente tomado, ele também, em uma acepção total e absoluta.Quando o rabbí, como foi o caso de Jesus, se atribui o poder deperdoar os pecados, então os títulos de rabbí  e de mari, qqu es ehedão significam muito mais que meramente "mestre". Estamos, porcerto, muito longe do sentido absoluto que a palavra Kyrios tomará mais tarde, quando os cristãos serão chamados "aqueles queinvocam o nome de nosso  Kyrios  Jesus Cristo.425 Porém, vemos

aparecer aqui essa possibilidade da passagem a um emprego absoluto do termo que já temos constatado para o Kyrios helenístico epara o Adon hebraico a partir do momento em que o rabbí  Jesustorna-se objeto de um culto, o Mestre e Senhor que fala e age comautoridade deve necessariamente converter-se no único Senhor.

Porém, é exato, como o pretende W. Bousset, que semelhanteadoração só tenha podido surgir no âmbito helenístico e quando

muito, como ele opina, em Antioquia? Ela é verdadeiramente alheiaà comunidade palestina primitiva? Será verdade que para esta sóimporta o Filho do Homem que há de vir, e não o Senhor glorificado e presente? Se assim fosse faltaria, efetivamente, o elo que permiti unir mar  aramaico ao Kyrios tomado em seu sentido absoluto. É nesta forma que se esboça verdadeiramente a questão.

Devemos discutir aqui a tese de W. Bousset não somente porqueseu livro (aliás, já antigo)  Kyrios Christos é   considerado como a obraclássica relativa à questão que nos ocupa,Jí<i  mas também porqueR. Bultmann conferiu à tese de Bousset nova atualidade, ao retomá-laplenamente, por sua conta, em suaTheoiogee des Neuen Testaments (1953,p. 52 s; 123 ss.).

W. Bousset crê encontrar uma confirmação de sua tese, segun

do a qual não haveria nenhuma relação entre a maneira em que se

1 Co 1.2;  2 Tm 2.22; cf. At 9.14, 21.Cf. acima, p. 258, nota 406 - Sobre a questão formulada por ele, ver também E. V.DOBSCHUTZ, Kíipioç  '1T\GOX>Ç(ZNTW, 30, 1931, p. 97 ss.).

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272 Oscar Cuttmann

teses puramente subjetivas e artificiais. É assim que, sem mais, se faz dacomunidade primitiva uma seita escatológica judaica e se tacha de"helenismo" tudo quanto a distingue essencialmente do judaísmo. A cha

mada escola da "escatologia consistente", com seus fortes preconceitos,favoreceu consideravelmente semelhante método, tão discutível do ponto de vista científico. Pois bem, as recentes descobertas do Mar Mortodeveriam ser particularmente adequadas para pôr fim a semelhantes simplificações, já que elas mostram que o judaísmo palestino não apresentamais o aspecto dessa entidade homogénea por meio da qual se quiscontrapô-lo, em bloco, ao helenismo.

Antes de tudo, como uma comunidade particular, depois damorte de cristo, pôde constituir-se? Se verdadeiramente os adeptos de Jesus o esperavam unicamente para o futuro, se do ponto devista estritamente cristológico, o Filho do Homem futuro  significava algo para eles, não vemos com clareza de onde haveria procedido o impulso que deu nascimento a uma comunidade na qualreinava o entusiasmo e cuja vida inteira era regida pelas manifes

tações do Espírito.Certamente a esperança escatológica era particularmente

intensa. Mais intensa do que jamais o havia sido no judaísmo.Porém é aí precisamente que está o problema; e a única respostapossível é a convicção dos discípulos de que a ressurreição deCristo havia inaugurado o fim dos tempos. O que já havia sidorealizado dava a sua esperança esta firme confiança na realizaçãototal que caracteriza sua atitude. E posto que o fim dos tempos jáhavia começado, Cristo não podia mais ser para eles meramente oFilho do Homem que havia de vir. Ele devia, também, ter umasignificação presente, já que este presente pertencia ao tempo daconsumação. A esperança ardente da manifestação próxima doséculo vindouro não é, pois, a causa, mas a consequência da fé naressurreição de Cristo. No próprio âmago da fé cristã está a ressurreição de Jesus; e quem ousaria pretender que esta fé tenha nascido unicamente fora da Palestina? Se Jesus ressuscitou dentre osmortos, a morte já está vencida: a passagem do "século presente"ao "século vindouro" é uma realidade.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 273

Mesmo que os primeiros cristãos não tenham contado commais do que um intervalo assaz breve entre a ressurreição de Cristo e seu regresso, contudo, é necessário que tenham tido uma certaideia da função atribuída a Cristo durante este intervalo. Morreu,ressuscitou e voltará. Porém, entre estes dois acontecimentos eledeve desempenhar um papel; sua obra não pode interromper-se.

W. Bousset tem razão ao ligar a fé na soberania presente deCristo ao culto cristão. É ai, com efeito, onde a igreja recebeu arevelação de que Deus não somente havia ressuscitado o Cristocomo também lhe havia "tornado Senhor" (Rm 1.3 s.; At 2.36).Porém, este culto já existia na comunidade hierosolimitana; nãonasceu unicamente em Antioquia.

W. Fõrster, cuja obra fundamental e cujos artigos em dicionário427

temos já citado amiúde, tem certamente razão quando contesta, resolutamente, que o emprego cristão do título Kyrios date unicamente do cristianismo helenístico. Remete-nos justamente à entrega total que Jesus exige

de seus discípulos. Eis aí uma ideia teológica sumamente iniportante.No entanto, ela não me parece explicar suficientemente o nascimento dafé no Kyrios. Fõrster se equivoca ao rejeitar, com o erro de Bousset (aorigem helenística desta fé), o que havia de justo em sua tese (a raizcultual da fé  no Cristo Kyrios).

Esta soberania presente do Cristo não devia somente ser

experimentada como um chamado a entregar-se a Ele individualmente; devia também ser experimentada coletivamente como umarevelação cristológica, como a maneira de ser atual de Jesus: é istoo que ocorria nas primeiras assembleias cultuais de então.

Nestes cultos, onde se partia o pão "com alegria" (At 2.46), apresença do Cristo ressuscitado era "vivida" repetidamente comouma realidade. Seu fim era precisamente tornar possível a comu-

Além de seu trabalho e o de W. BOUSSET, temos que mencionar, sobre esta questão acerca do nome Kyrios, os diversos estudos de L. CERFAUX, que agora estãono primeiro tomo do "Recueil L. Cerfaux" (Bibl. Ephem. Tlteol. Lovaniensium, vol.6-7), cf. também seu artigo "Kyrios" (Dict. de la Bible, suppL V, p. 200 ss.).

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274 Oscar Cullmann

nhão com o ressuscitado que aparecera aos discípulos no dia daPáscoa para participar de sua ceia. Tal era o sentido do culto nosprimeiros tempos.428 As "ceias da aparição" - se nos é permitido

esta construção - deviam levar a comunidade a experimentar repetidamente a presença do Senhor, ainda que não fosse de uma maneira tão direta e manifesta como durante os "quarenta dias" depois daPáscoa.

Não há razão para se contestar que fosse a comunidade hiero-solimitana a que tenha dado a Jesus o título de "Senhor": era considerado como o Senhor invisível que governa sua igreja e que

durante o culto aparece "ali onde dois ou três estão reunidos emseu nome", no meio dos irmãos congregados, embora, ao mesmotempo, esteja sentado à direita de Deus e governe o mundo.

Porém, a tese de Bousset se revela ainda insustentável - játemos feito alusão a isso - por uma razão filológica. Com efeito, amais antiga fórmula litúrgica que conhecemos contém o títuloKyrios  em sua forma aramaica. Trata-se da mais antiga oração:

 Maranatha.  No Novo Testamento encontramos esta fórmula nofinal da primeira Epístola aos Coríntios (1 Co 16.22). O fato deque o apóstolo, em uma carta escrita em grego e dirigida a umacomunidade de língua grega, tenha conservado esta fórmula emsua forma aramaica original, prova sua antiguidade. Paulo devetê-la recebido da igreja de Jerusalém. Ademais, cita em aramaicoorações muito antigas, características da primeira comunidade,

como a que cita duas vezes em uma passagem teológica sobre aoração e que começa -çorAbba, Pai (Rm 8.15; Gl4.6), e onde devetratar-se do começo da oração dominical.429

A fórmula  Maranatha  se encontra, no fim da Epístola aosCoríntios, em um contexto inteiramente litúrgico. E está transcritanaturalmente em caracteres gregos. Porém, em caracteres hebraicosse apresenta desta maneira fríníO"lft. Que significa? Uma coisa,

antes de tudo, é certa: contém o termo aramaico mar, que significa

Cf. em part. O. CULLMANN, Le culte dons 1'Eglise primitive, p. 5 ss., 25.Em sua forma primitiva (sem pronome possessivo) que encontramos em Lc (11.2).

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 275

"Senhor". Temos constatado até aqui que esta palavra era empregada como fórmula de cortesia. Agora, aqui, o contexto mostra

que este já não pode ser o caso. Temos de estudar, pois, o quadrodentro do qual esta fórmula aramaica era pronunciada, para podermos estabelecer o sentido deste termo "Senhor". Porém, vejamosprimeiramente a segunda parte desta expressão.

Trata-se de uma forma verbal do aramaico Kílfrí  = vir. Porém,tropeçamos aqui com uma dificuldade pois obtem-se dois sentidos diferentes, segundo a maneira em que se decomponha a fór

mula. A separação pode, com efeito, fazer-se de duas maneiras:Ou, maran atha: KDK  ]™ID;Ou, marana tha: KD KHD

No primeiro caso, estamos diante da terceira pessoa do indicativo e se deve traduzir: "Nosso Senhor vem".430  No segundocaso trata-se de um imperativo e deve traduzir-se: "Senhor nosso,

vem!". No primeiro caso nos encontraríamos na presença de umaconfissão de fé, no segundo de uma oração. A gramática e o sentido permitem ambas as interpretações431  as quais, por outro lado,se situam em um quadro litúrgico.

No entanto, a segunda possibilidade nos parece a mais provável. É mais normal, com efeito, que se tenha conservado, em suaforma original, uma oração em vez de uma confissão litúrgica que

precisasse provavelmente ser traduzida. Com efeito, constatamosque no Novo Testamento as fórmulas mais numerosas de confissãode fé são todas traduzidas para o grego, enquanto que, à parte nossafórmula, outra oração, ou ao menos seu começo, tenha sido conservada em aramaico por Paulo, oAbba,  Pai, de que já temos falado.

É possível somar-se ainda outro argumento que parece decisivo. No Apocalipse de João que contém, aliás, numerosos elemen-

3tlCr\ E. HOMMEL, "Maran atha" (ZNW, 15, 1914, p. 317 ss.); E. PETERSON, EtçQeóç, 1926, p. 130 s.

1,1 É a esta conclusão que se limita prudentemente K. G. KUHN em seu artigoMapavaGá  (ThWbNT, IV, p. 470 ss.).

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Í176 Oscar Cullmúnn

tos litúrgicos antigos, se encontra, no penúltimo versículo do último capítulo, um chamado que deve ser certamente a tradução gre

ga desta antiga fórmula e que nos permite, pois, ver que o autor atinha compreendido como um imperativo, como uma oração: £p%ot>KÚpie, "vem, Senhor !" (22.20).432

Ainda, pode ser apresentado um outro argumento. Em suaforma aramaica esta fórmula se acha outra vez na coletânea deliturgia mais antiga que possuímos: o Didaquê (10.6), onde finaliza uma oração eucarística.113-1 É indubitável que quem tenha reuni

do estes fragmentos litúrgicos, os tenha considerado como umaoração. Apesar de reproduzir em sua forma grega a oração que aprecede, conserva, contudo, para esta invocação, a forma aramaica.Sem dúvida se manteve durante muito tempo a lembrança destaoração estar envolta numa dignidade particular por ter sido a dosprimeiros cristãos na comunidade mãe de Jerusalém; valedizer: comunidade na qual o Senhor havia aparecido. Por isto era

pronunciada com o mais profundo respeito e se evitava dar-lheoutra forma que aquela dada na igreja palestina. Porém, como querque isso seja, o contexto indica, também aqui, que deve tratar-seantes de uma oração.

H. Lietzmann tem, sem dúvida, razão quando vê em  Did.  10.6 afórmula  Maranatha  inserida numa liturgia antifonal da santa ceia:

O celebrante: Que a graça venha e que este mundo pereça!A assembleia: Hosana ao Filho de Davi!O celebrante: Se alguém é santo que se aproxime; se não o é, que

faça penitência! Maranatha!A assembleia: Amém!434

í3;Creu, talvez, dever traduzi-la, pois seu livro inteiro é mais ou menos uma traduçãodo aramaico. Quando se traduz tudo, se esquece facilmente de que há certos frag

mentos que ganhariam em ser conservados na língua original, assim como o fez oapóstolo Paulo.J'1? 'EX9ÉTCÚ %ápiç (a tradução copta lê aqui ó KÍ>pioç, o que é talvez a versão origi

nal) KOU jrapeXuétw ó KÓOJIOÇ OÍJTOÇ/  ácavvà xQ 9cw Actoíõ/ eí tiç áyióç êfltiv/èpxÉcôco/ eí Tiç OUK eoW u.EtavoeTT«j/ ^apaváGa àufiv.

1,4 Cf. H. LIETZMANN, Messe Und  Herrenmahl,  1926, p. 237.

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 \_.R1STOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO

Lietzmann tem certamente razão também ao ver nas fórmulas desaudação das Epístolas de Paulo fragmentos da mais antiga liturgiaeucarística; pois o apóstolo sabe que suas Epístolas devem ser lidas

durante o desenvolvimento do culto, no momento do partir do pão.O curto parágrafo com que termina aprirt^rira Epístola aos Coríntios, noqual se encontra Maranatha, deve ser também um fragmento da liturgiada santa ceia, análoga à do Didaquê:

Se alguém não ama ao Senhor que seja maldito!Maranatha!A graça do Senhor Jesus seja convosco!

E sumamente importante que Maranatha dê a impressão deser uma oração  eucarística,  isso nos permite também desentranhar melhor sua significação, ao mesmo tempo que o sentido quetinha o título Kyrios para a comunidade primitiva. Ao escutai* estainvocação pensamos, antes de tudo, em uma oração escatológica;uma oração que implora a vinda do Senhor no fim dos tempos,sobretudo se se pensa na primeira parte da oração dominical. Porém,

sabemos que no cristianismo primitivo todo o culto era considerado como as primícias do Reino de Deus: na igreja reunida já seproduzia o que, no fim dos tempos, haveria de ser uma realidadedurável. Isto caracterizava o culto conferindo-lhe sua grandeza (acabando por logo esfumar-se). É principalmente durante o "partir dopão" da celebração eucarística, que a "vinda" de Cristo, ou antes,o seu anunciado regresso, acha sua antecipação. Só no fim dos

tempos ele voltará à terra; entretanto, volta já agora ao seio de suaigreja reunida para o partir do pão. Não havia prometido que "alionde estivessem dois ou três reunidos em seu nome" ele estaria nomeio deles? A relação entre a eucaristia da igreja nascente e a esca-tologia se enquadra, ademais, perfeitamente ao sentido que o próprio Jesus, durante sua última ceia, deu à distribuição do pão e dovinho. Já naquele momento a relação com o fim dos tempos é

evidente já que, segundo os relatos dos três Sinópticos, aludiu,então, ao banquete messiânico onde "beberá de novo do fruto davide no reino de Deus". A verdade é que estas palavras não se encontram no relato acerca da ceia dado por Paulo em 1 Co 11.23 ss.

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278  Oscar Cullmann

Porém, o apóstolo faz também alusão ao aspecto escatológico quando escreve (v. 26): "Porque todas as vezes que comerdes deste pãoou beberdes deste cálice anunciais a morte do Senhor  até que

venha"   Enfim, temos que recordar, agora, uma palavra do Apocalipse. Já advertimos que este livro considera o culto como asprimícias das últimas coisas; e que, por esta razão, se vale naturalmente de imagens e fórmulas litúrgicas em que cita hinos cristãosde sua época para descrever o drama final. Assim em Ap 3.20trata-se ao mesmo tempo, sem dúvida, do banquete messiânico noreino de Deus e do banquete litúrgico da igreja: "Eis que estou à

porta e bato, se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta eu entrarei; cearei com ele e ele comigo." Nada prova que semelhante eloentre o presente litúrgico e o futuro escatológico só seja possívelno âmbito do helenismo. De fato, a experiência de uma presençaviva do Ressuscitado durante o culto se explica perfeitamente pelaesperança judaica da presença do Messias no banquete escatológicoe por sua aparição, na noite de Páscoa, no instante em que os dis

cípulos estavam reunidos para sua ceia.Compreendemos melhor agora tudo o que a igreja esperava

quando orava:  Maranatha!  "Senhor, vem!" Ela não lhe pediameramente para que apressasse o dia de seu retorno final, mas lhepedia também que aparecesse no meio dela, à sua mesa, comohavia aparecido no domingo de páscoa, para consolá-la e assegurá-la de seu próximo regresso. E para quantos, durante o partir do

pão, experimentavam sua vinda, a esperança do retorno definitivonão haveria de ser um dogma no qual se deveria crer somente poradesão à tradição. Eles sabiam, com efeito, por experiência pessoal, que o Senhor podia descer à terra e renovavam esta experiênciacada vez que se reuniam e oravam juntos pela vinda do ressuscitado. Sabiam também que o Senhor haveria ainda de aparecer nestaterra quando viesse para a consumação de todas as coisas.

 Maranatha, esta antiga oração significava, para aqueles quea pronunciavam, ao mesmo tempo: "Senhor, vem no fim dos tempos para estabelecer teu reino!" e: "Vem já agora enquanto estamosaqui reunidos para a ceia!" A distinção entre o presente e o futuro,

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igreja reunida no partir do pão é o mesmo Senhor que virá no finaldos tempos para cumprir todas as coisas, reinando desde o presente, embora de modo invisível.

Temos advertido que a significação de mar, como a de Adon ede  Kyrios,  é suscetível de evolução e não pode ser determinadasenão em referência a seu contexto - daí esta digressão para estabelecer o sentido do emprego de Maranatha no culto do cristianismoprimitivo. Ela nos leva a concluir que nos é absolutamente impossível interpretar o termo  mar,  nesta fórmula, como simples sinalde gentileza, cujo sentido seria tão só o de Rabbi, Com razão A.

E. Rawlinson fez ressaltar435  a impossibilidade de se traduzir Maranatha por: "Mestre, vem!" Dizer que Cristo não havia sidoainda invocado no culto da comunidade palestina é, pois, umaafirmação que, longe de estar provada por algum dado, é, pelocontrário, desmentida cabalmente e em particular pelo fato deque a oração Maranatha foi conservada durante muito tempo emaramaico.

Também se a tem denominado justamente o "calcanhar deAquiles" da tese de Bousset.436  Nem ele nem Bultmann, que adotatodas suas conclusões, podem explicar de uma maneira satisfatóriacomo esta oração pôde conservar-se em sua forma aramaica aténas igrejas gregas. Onde se observa nestes autores um certo embaraço. Em Bousset aparece nitidamente: na primeira edição de seuKyrios Christos  (1913) intentou, com muita sutileza, dar uma

explicação conforme sua tese acerca da origem puramente helenís-tica do culto devotado a Cristo; porém, não estando, sem dúvida,ele mesmo convencido da exatidão desta explicação a abandonoumais tarde em sua obra posterior Jesus der Herr  (1916) - onde asubstituiu por uma explicação mais inverossímil ainda - para voltar à primeira na segunda edição de  Kyrios Christos. Quanto aBultmann, também sem dúvida insatisfeito com esta solução, ado-

tou em sua Theologie des Neuen Testaments a segunda proposta

The New Testament Doctriíte ofthe Christ,  1926 (reimpr. 1949), p. 245 s.A. E. RAWLINSON, op. cit., p. 235.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 281

feita por Bousset em 1916 e que este julgou não dever mantê-la.Estas vacilações são significativas e mostram que não se conseguiu dar à fórmula aramaica  Maranatha  outra explicação que a

que se impõe naturalmente ao espírito, quando não se parte deuma ideia preconcebida: ela expressa a adoração cultual do Cristo pela comunidade de língua aramaica.

Em sua primeira explicação em 1913,àqual voltou em 1921,Boussettenta escapar a esta conclusão inevitável dizendo que não está provado quea fórmula deva, necessariamente, ser de origem palestina em razão de suaforma aramaica. Ela poderia ter nascido em território bilingue da Antioquia,Damasco e Tarso e, portanto, em solo helenístico.4:r' Não sem razão, abandonou momentaneamente esta explicação; não é tampouco sem razão queBultmann não possa adotá-la: pois ela não resiste verdadeiramente ao exame. Uma fórmula aramaica originária de um território bilingue mal teriapodido impor-se ao ponto de conservar-sc intacta nos textos gregos. Se lhefoi devotada tanta piedade, isto se deve à memória de que procedia daigreja de Jerusalém; da mesma formase respeitou a fórmula aramaica Abba,

Talha Kumi, ou Eli, Eli lama sabachtani, porque se sabia que quem haviapronunciado estas palavras era Jesus.Bousset mesmo em 1921, não parece ter-se persuadido do valor da

explicação que tornou a adotar. Observa, com efeito, que já que a origempalestiniana do título Kyrios é  discutível a de Maranatha  também deveser buscada fora da Palestina. Eis aí uma petição de princípio.

A outra tentativa de explicação que o próprio Bousset abandonoupor causa de sua improbabilidade, Bultmann retoma, aliás, sem justificá-

la/ 1

^ É desprovida de qualquer fundamento:  Maranatha  seria uma  fórmula de juramento dirigida a Deus. Originariamente, pois, não dizia respeito em nada a Cristo.

Na realidade, Maranatha assinala a passagem da fé palestina àfé helenística no Cristo Senhor. A afirmação de Bousset e deBultmann, segundo a qual haveria neste ponto uma ruptura comple

ta entre a comunidade palestina primitiva e o cristianismo helenístico

m  Kyrios Chrisws, T  T d.d  1921, p. 84.•"8R. BULTMANN, Theoiogii des Nenen Testaments,  1953, p, 53.

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2fi2 Oscar Cullmann

é  uma construção do espírito que prescinde dos elementos legadospela comunidade primitiva sem poder, tampouco, explicar satisfatoriamente a génese da fé helenística em Jesus o Senhor. Pois é evi

dente que Paulo, por exemplo, sempre que menciona a profissão defé Kyrios Christos, se refere a uma antiga tradição, cujo conhecimento é a base pressuposta de toda a pregação cristã.

Sem dúvida, no terreno do helenismo, o uso pagão do termoKyrios, seu vínculo com o culto do soberano e, primordialmente,o fato de que por este termo os LXX tenham traduzido o nome deDeus, contribuíram para fazer de Kyrios o título mais corrente paradesignar o Cristo. Porém, tal evolução não teria sido possível se acomunidade primitiva já não tivesse invocado o Cristo como "Senhor". O título Kyrios tem sua origem na vida cultual - neste ponto Bousset tem razão - mas na da primeira igreja de Jerusalém.

Não há razão alguma para pensar, com E. Lohmeyer, que foi aGalileia o berço do título  Kyrios  aplicado a Jesus (cf.  Galilãa und

 Jerusalém,  1936, p. 17, 24).

Partindo-se da invocação cultual e litúrgica do Senhor, se desenvolveu a oração pessoal dirigida a Cristo. Encontramo-la em Paulo que, em certos momentos decisivos, invoca diretamente aoSenhor Cristo (2 Co 12.8; 1  Ts 3.12; 2 Ts 3.2 ss.)) Achamos também a "invocação" de seu nome nas orações dirigidas a Deus que

devem ser levadas ao Pai "por Jesus Cristo". É o que constatamosem particular no Evangelho de João (Jo  14.13; 15.16; 16.24 ss.).Porém, Paulo ora também a Deus "por Jesus Cristo" (Rm 1.8; 7.25;2 Co 1.20; Cl 3.17); semelhante aproximação é importante do pontode vista cristológico, porque a ideia de poder orar "por Jesus Cristo" pressupõe, com efeito, que possa dirigir-se diretamente a Ele.

* * *

Temos visto que indiscutivelmente deve-se considerar a fórmula Maranatha uma oração e não uma confissão de fé. Isto é,que a confissão de fé, Kyrios Christos, se origina na oração ou ao

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C.RISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 283

menos lhe está muito perto. No cristianismo primitivo, aliás, nãohá uma distinção nítida entre confissão de fé e oração, e a "invocação" do Kyrios (èriíKaXetoSca) supõe, com certeza, também que

se se dirija a ele na oração. Já que a oração Maranatha remonta àcomunidade palestina, deve ser o mesmo para a confissão de fé;embora tenhamos de reconhecer, também aqui, que só no terrenohelenístico esta confissão de fé adquiriu sua cabal significação,porque ela desmentia a fé nos kyrioi pagãos e, sobretudo, porquese opunha ao Kyrios Kaisar. Se, com Lohmeyer e outros, se reconhece uma base aramaica para o hino a Cristo de Fl 2.6 ss., tería

mos aí uma confirmação da origem aramaica desta confissão defé, porquanto este hino culmina na afirmação do senhorio de Jesus.

Porém, por que não se conservou em aramaico a fórmula daconfissão de fé como a da oração? Sem dúvida por conceder-se àoração mais alta dignidade que à confissão de fé; entretanto, podeter sido principalmente pela grande necessidade de encontrar umafórmula, um "slogan da fé", que fosse o contraposto mais taxativo

possível ao Kyrios Kaisar. E a manutenção da fórmula aramaicanão teria preenchido este propósito.

A confissão Kyrios Iesous indubitavelmente é uma das maisantigas que possuímos. Em sua forma comprimida, só pela palavra Kyrios  ela expressa toda a fé em Cristo da igreja primitiva.Sem dúvida, este título não remete diretamente senão à função

 presente de Jesus. Porém, a partir dele se pode abarcar toda a obrade Jesus, sua obra passada e futura assim como a presente. Isto é,sua obra expiatória assim como seu retorno em glória são vistos àluz da convicção triunfante que já hoje Cristo exerce a soberania,ainda que isso seja invisível, ainda que só os crentes sejam os únicos a sabê-lo e que os pagãos creiam, todavia, que haja outrosKirioi que disputam o senhorio do mundo.

Em Atos 2.36 lemos: "Deus o fez Senhor e Cristo, a este Jesusque vós crucificastes."439  Isso significa, claramente, que a digni-

Igualmente em Fl 2.9 ss. (cf. abaixo, p. 286 s.), ele é "feito" Kyrios.

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dade de Kyrios  foi conferida a Jesus depois de sua ressurreição,simultaneamente com a dignidade de Messias. De maneira que sóa partir de agora é que Jesus pode ser também denominado "Mes

sias", pois é agora verdadeiramente soberano. Não é provavelmentesem intenção que o título  Kyrios  tenha sido aqui colocado antesdo de Cristo; é, pois, somente por causa de sua soberania invisívelque as ideias associadas ao Messias-rei podem ser aplicadas a Jesus.

É  Paulo  sobretudo, quem forneceu a base teológica para aafirmação da soberania presente de Cristo. Primeiramente, no quediz respeito à fórmula mesma da confissão de fé, devemos estudar

de perto três passagens: Rm 10.9,Fl2.9e  1 Co 12.3. Porém, quanto ao fundo, convirá, ainda, levar em consideração todas as passagens que tratam da glorificação de Jesus ou de sua vitória e de seudomínio sobre as potestades. Os três textos que contêm expressamente a confissão de fé no Kyrios lesous demonstram, antes detudo, que Paulo não inventou esta fórmula, mas que a herdou dacomunidade palestina junto com as concepções que lhe estão

associadas. Mostram também que sua própria fé no Kyrios baseia-se em sua experiência litúrgica da presença do Senhor. Isso aparece com singular nitidez na primeira das passagens citadas (Rm10.9):  "Se, com tua boca, confessares Jesus como Senhor e, emteu coração, creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serássalvo." Aqui, "confessar com a boca" e "crer com o coração" estãoexpressamente ligados. Coisa significativa: quando se trata de "con

fessar com a boca", a confissão que se impõe naturalmente a Paulo é "Jesus é o Senhor". Inegavelmente, nos achamos diante daconfissão de fé por excelência, que está na origem de todas asdemais e a todas abarca. É preciso então que antes de pertencer aPaulo, tenha pertencido ao uso litúrgico de maneira geral.

Já nos ocupamos extensamente do texto de Fl 2.6 ss., no capítulo consagrado ao Filho do Homem. Indicamos aí que o hinointeiro culminava nesta mesma confissão de fé, proclamada portodos os seres nos céus, na terra e debaixo da terra. A breve fórmula original se expandiu aí em uma cristologia acabada, abarcando a ação pretérita do Cristo desde o princípio, sua preexistência,

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CRISTOLOGIA  DO NOVO  T ESTAMENTO 285

quando Jesus estava ainda "em forma de Deus", tanto quanto suaglória futura e incontestada. Todo este segmento está regido pelotítulo  Kyrios,  esse  Kyrios  que Deus tem "mais que exaltado"

(ítnepvycoaev); a dito título também se referem, como já vimos, osoutros títulos fundamentais: "Filho do Homem" e "Servo de Deus".

Notamos que este ímep-óii/tooev não é uma mera figura deretórica, mas que o prefixo ímép, "sobre", tem de ser tomado emseu pleno sentido. Cristo, já no princípio, era "em forma de Deus";porém, como não cobiçou rebeldemente a igualdade com Deus,esta lhe foi dada por Deus em razão de sua obediência até a morte

na cruz. Ele foi "feito Senhor" (Atos 2.36). Esta exaltação até aigualdade com Deus se manifesta pelo fato de que Deus lhe concede, daí em diante, um nome que é sobre todo nome; precisamente o de Kyrios. Por que este nome não pode ser sobrepujado pornenhum outro? Porque é o nome do próprio Deus, sendo Kyrios atradução grega do hebraico Adonai. É evidente que temos de pensar aqui no equivalente hebraico do título Kyrios, e não compreen

demos como Bousset - e com ele muitos outros, em particular W.Fõrster440  que, aliás, combate a tese de Bousset - que se possadescartar pura e simplesmente esta derivação. Ademais, o outorgar o nome de Deus não se limita somente a este nome enquantotal, mas no judaísmo, como em todas as religiões antigas, o nomerepresenta ao mesmo tempo um poder. Consequentemente, se senos diz que Deus dá a Jesus seu próprio nome, isso significa que

lhe transmite, ao mesmo tempo, todo o seu poder. Esta ideia está,certamente, contida na maneira em que os cristãos primitivos compreendiam a glorificação de Jesus, como o veremos mais adianteao estudarmos a soberania de Cristo segundo as passagens quenão contêm diretamente o título Kyrios; porém, que encerram, sobuma forma ou outra, a ideia de seu senhorio.

A soberania concedida ao Kyrios Iesous,  doravante igual a

Deus, se manifesta concretamente em que todas as potestades da

W. FÕRSTER, Herr ist Jesus,  1924, p. 122; igualmente e de uma maneira muitocategórica, L. CERFAUX, La Théologie de Saint Paul,  1951, pp. 347-358.

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criação (inclusive as invisíveis) lhe estão submetidas e que verdadeiramente "todo joelho se dobra nos céus, na terra e debaixo da

terra e toda língua confessa que Jesus Cristo é o Senhor". Quandono Novo Testamento se coloca a Cristo em pé de igualdade comDeus, é sempre nesta base.

À luz desta convicção, de haver Cristo recebido "todo podernos céus e na terra", se considera também sua existência anterior.Assim, em Fl 2.6 ss. o apóstolo mostra como esta soberania finalde Jesus foi preparada desde o começo pela obediência daqueleque era a imagem de Deus. Mas veremos que em outras passagensdo Novo Testamento uma outra espécie de vínculo se estabeleceentre a soberania atual do Cristo e sua preexistência. São as passagens que falam da participação de Cristo na criação ou antes desua função como mediador  na criação; os estudaremos na últimaparte ao tratar os títulos relativos à preexistência de Jesus. Aquinos limitamos a constatar que a fé no Senhor presente conduz.necessariamente à certeza de estar Jesus predestinado desde o princípio a reinar sobre toda a criação, e consequentemente que acristologia tem desde o início também um aspecto cosmológico.Assim, a ideia de Filho do Homem é a única que relaciona acristologia ao relato do Génesis.

Porém, antes de falar das consequências que decorrem da

noção de  Kyrios  (e que fazem com que excepcionalmente Jesuspossa simplesmente ser chamado "Deus"), nos falta, todavia, examinar o terceiro texto paulino em que se encontra a fórmula "Jesusé o Senhor".

Paulo pensa aqui na situação das comunidades helenísticas,e o emprego da confissão de fé cristã, fora de toda dúvida, foiinfluenciado pelo pensamento acerca dos outros kyrioi  helenís-

ticos,  e primordialmente do  Kyrios Kaisar.  Em 1 Co 12.3,lemos: "Por isso, vos declaro que ninguém que fala pelo Espíritode Deus afirma: Jesus seja amaldiçoado! Por outro lado, ninguémpode dizer: Jesus é o Senhor senão pelo Espírito Santo." Estapalavra se encontra no começo de uma exposição sobre os dons

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CRISTOLOGIA DO iNOVO TESTAMENTO 287

espirituais; costuma-se aplicá-la à glossolalia. E, com efeito, tendoem conta o contexto, se poderia talvez interpretar este versículo

deste modo. Só que a glossolalia é uma maneira de falar desarticulada; e aqui se trata de palavras perfeitamente inteligíveis comas quais se trata de maldizer a Jesus Cristo ou de confessá-lo.A situação se assemelha à de Rm 8 onde Paulo quer demonstrarque em toda oração é o próprio Espírito quem fala. Ao fazê-lo,pensa seguramente também naquela forma extrema de linguagem ditada pelo Espírito que resulta na glossolalia; porém, dizem especial que toda oração, portanto também a que se formulacom palavras inteligíveis, é obra do Espírito. Em  1 Co 12.3 nãose trata da oração, mas da confissão de fé. De forma muito análoga, a confissão é compreendida aqui como operada pelo Espírito.E possível que aqui ainda Paulo pense também nesta linguagemdireta do Espírito que é a glossolalia; mas ele pensa antes, de umamaneira geral, em toda confissão de fé -  e especialmente na confissão de fé primitiva: "Jesus é o Senhor" e seu contrário: "Maldito seja Jesus!". Ambas as declarações são postas em relação com oEspírito; a primeira, como prova da ação do Espírito; a segunda,como prova de sua ausência.

Acredito que trata-se aqui antes do culto imperial e das perseguições sofridas pelos cristãos, por causa da confissão de fé*. KyriosChristos. Muito provavelmente haja aí uma alusão à palavra deJesus que promete aos discípulos a inspiração do Espírito Santopara o dia em que, submetidos a perseguições, tenham de comparecer diante dos juízes e devam confessar sua fé   (Mt JO.17 ss.):"Porque vos entregarão aos tribunais e vos açoitarão nas suassinagogas; por minha causa sereis levados à presença de governadores e de reis, para lhes servir de testemunho, a eles e aos gentios.Mas, quando vos entregarem, não cuideis em como ou o que haveisde falar, porque, naquela hora, vos será concedido o que haveis de

dizer, visto que não sois vós os que falais, mas o Espírito de vossoPai é quem fala em vós."

Cabe-nos comparar este texto com a carta do governador Plínioao imperador Trajano, em que descreve o procedimento empregado

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contra os cristãos. Por ela nos inteiramos de que para renegar nãobastava dizer Kyrios Kaisar  e oferecer um sacrifício à estatua doimperador: os cristãos acusados deviam, ademais, maldizer a Cristo,

para provar que o sacrifício oferecido ao imperador era sincero.Encontra-se uma situação análoga também no  Martírio dePolicarpo (8.2), onde o funcionário romano diz a Policarpo: "Quetem de mal em dizer Kyrios Kaisar  e fazer o que a respeito estáprescrito?" Este fim de frase indiscutivelmente alude à maldiçãoexigida contra o Cristo. Embora, em ambos os casos, se trate detestemunhos do começo do século II, não temos razão alguma para

supor que no primeiro século, em que o culto ao imperador era tãocelebrado, o procedimento tenha sido sensivelmente diferente.Vemos, com efeito, que em Tessalônica os judeus acusam a Pauloe a seus partidários de atuar contra os éditos de César "dizendoque existe um outro rei, Jesus" (At 17.7).

Se pensarmos nesta situação, a promessa de Jesus lança umaluz particular sobre 1 Co 12.3. Os cristãos que haviam falhadoante os tribunais pagãos, que tinham oferecido um sacrifício aoimperador e amaldiçoado a Cristo, sem dúvida buscaram emseguida desculpar-se diante de seus irmãos amparando-se naspalavras de Jesus (Mt 10.17 ss.) e afirmando que o Espírito Santo,conforme a promessa, havia falado por sua boca no momento dointerrogatório, e lhes havia induzido a dizer: "Maldito seja Jesus!"Provavelmente é em tais situações que Paulo pensava ao recordaraos Coríntios que o Espírito Santo, que assiste aos perseguidos,atua exclusivamente ali onde se confessa ao Kyrios lesous. Aquele que na perseguição amaldiçoa a Cristo, mostra, enfim, que oEspírito Santo não falou por ele.

Vemos, pois, que desde muito cedo, a confissão de fé Kyrioslesous  adquiriu acentuada importância para os cristãos fora da

Palestina, principalmente durante as perseguições. Inquestionavelmente, a ideia da soberania de Cristo já existia, vinculada à fé emsua glorificação e em sua vinda ao seio da igreja reunida para oculto. Porém, esta ideia se concretiza de maneira particular emoposição ao culto imperial, no qual se devia adorar como Kyrios

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 289

um ser cuja soberania mundial estava à vista de todos e era, porassim dizer, palpável.441 O caráter vivo, atual, do senhorio do únicoe verdadeiro soberano, Jesus, se tornava, por contraste, mais preciso.

O Estado não podia entender por que os cristãos preferiam morrer aceder neste ponto. É que a confissão Kyrios Christos careceria desentido se houvesse ao seu lado outro  Kyrios. No Apocalipse deJoão, que está repleto de alusões ao culto imperial, Cristo é designado expressamente como KÚpioç ícopícov, e "Rei dos reis". Isto significa que o Kyrios é  Jesus, e não o imperador (Ap 17.14).

O título PaoiXevç, "rei", é uma variante do título  Kyrios

e não temos necessidade de consagrar-lhe um capítulo particular.Já vimos que a ideia de Messias-rei não pode ser aplicada senão aessa soberania que Jesus exerce desde sua ressurreição. Não setrata, ademais, do reino terrestre do Messias esperado pelos

 judeus, mas de um reino que "não é deste mundo".Jesus é chamado "rei dos judeus" em Mt 2.2; 27.11, 29, 37;

Mc 15.2, 9, 12, 18, 26; Lc 23.3, 37, 38; Jo  18.33, 39; 19.3, 14, 19

ss. Aparece como "rei de Israel" em Mt 27.42; Mc 15.32; Jo 1.49;12.13.  A maior parte destas passagens se relaciona à acusaçãoromana contra Jesus. A inscrição posta na cruz, o titulus, dá comocausa de sua condenação o haver aspirado à realeza. Esta expressão é pois tomada aqui no sentido político dos zelotes, enquantoque os cristãos lhe atribuíram uma significação não política, relacionada ao título Kyrios.

Se quiséssemos estabelecer uma distinção entre Paoi^eíiç eKyrios poderíamos dizer que "rei" sublinha mais vigorosamente asoberania de Jesus sobre sua  igreja,  na medida em que esta ésucessora de Israel, e em que Jesus Cristo leva a realeza de Israel à

Sobre a relação entre o culto ao imperador e o título - puramente político originariamente - de Kyrios concedido ao imperador, cf. acima, p. 259 ss. A lembrança deter sido o próprio Jesus condenado pelos romanos como pretendente ao trono (comoo prova a inscrição colocada sobre a cruz) deve já, por si mesma, ter favorecido, naconsciência dos cristãos, esta oposição entre o KúpioçXpicTÓçe o Kúpioç Katoop-Cf. O. CULLMANN, Diett et César, 1956, p. 45 s.

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CRISTOLOGIA  DO NOVO TESTAMENTO 291

do Antigo Testamento de 1 Co 10.26 ("a terra c do Senhor"), é possívelque com "Senhor" se designe a Deus. Porem, não devemos nos limitaraqui aos trechos que contenham expressamente o termo  Kyrios,  antes,

temos que estender nosso estudo até àqueles que falam de maneira geralda soberania de Jesus. Se Fõrster recusa a ideia de uma soberania deJesus no mundo, é  por pensar que para os primeiros cristãos, Jesus não éo Senhor senão na medida em que ele faz uma reivindicação absoluta desoberania sobre nós.

* * *

Falta-nos falar das passagens que, sem conter necessariamenteos títulos de "Senhor" ou de "Rei", expressam a ideia teológica dasoberania de Cristo.442 Unicamente assim, ampliando o campo denosso estudo, poderemos captar todo o alcance do título e da função de Kyrios para a cristologia do Novo Testamento. Como sobreeste ponto reina acordo total entre os escritores do cristianismonascente443  podemos, contrariando nosso método habitual, apelar

aqui, para cada aspecto do problema, a passagens tiradas de diversos autores. Paulo, certamente, ocupará um lugar de honra. Umparágrafo especial será consagrado ao Evangelho de João mesmoconsiderando que sua concepção não difere da dos demais textosneotestamentários. Este  consenso é   suficiente para demonstrar aimportância capital que o cristianismo primitivo atribui à fé nasoberania de Cristo. Nossa pergunta é a seguinte: em que consiste,

exatamente, afunção indicada pelo título de Kyrios concedido aoCristo glorificado?

No que concerne à ideia de "soberania de Jesus", temos delevar em conta todas as passagens (são numerosas) que declaramque Jesus está "sentado à destra de Deus" e que "todos os inimigos lhe estão submetidos". Como vimos no capítulo concernente

^Utilizamos aqui as ideias principais de nosso estudo sobre "Laroyautédu Christ etTEglise dans le Nouveau Testament", Foi et Vie, Paris, 1941.

1H. CONZELMANN estima que sobre este ponto, Lucas tem uma concepção diferente {Die Milte derZeit, 1954, p.146 ss. Cf. abaixo, p. 309, nota 461.

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292 Oscar Cullmann

ao sumo sacerdote, trata-se de uma aplicação do Salmo 110 a Jesus,interpretado messianicamente. Não é demais recordarmos que a proclamação da elevação de Cristo à direita de Deus - que muito cedo

aparece no Credo - emana formalmente deste salmo real.Nada demonstra melhor quão central era, no pensamento docristianismo primitivo, a ideia da soberania presente do Cristo doque as numerosas citações deste Salmo. Estas não se limitam adeterminados autores, mas se espalham por todo o Novo Testamento. Inquestionavelmente, não há nenhuma passagem do Antigo Testamento tão citada pelos autores do Novo. Nós a encontra

mos em: Rm 8.34;  1 Co  15.25; Cl 3.11 Ef 1120; Hb 1.3; 8.11 ;0.13;1 Pe 3.22; At 2.34; 5.31; 7.55; Ap 3.21 ;Mt 22.44; 26.64; Mc 12.36;14.62; 16.19; Lc 20.42; 22.69. Voltamos a encontrá-la até nos Paisapostólicos:  1 Ciem. 36.5 eBarn. 12,10.

Dizer que Jesus, cumprindo esta palavra do Salmo, "sentou-se à destra de Deus", é confessar o Kyrios  Christos em outros termos. Esta expressão se tornou tão corrente que inclusive era repe

tida sem referência direta ao Salmo. Até a achamos, já no NovoTestamento, inserida na fórmula de confissão de fé mais desenvolvida que, em 1 Pe 3.22, se destaca nitidamente do contexto:"Está sentado à destra de Deus, havendo subido ao céu e lhe estãosujeitos anjos, autoridades e potestades."444  Os "anjos, autoridades e potestades" são uma alusão implícita aos "inimigos", àqueles que o Salmo 110 diz que serão postos "sob os pés do Senhor".

Enquanto o salmo se refere aos inimigos terrenos de Israel, os primeiros cristãos os identificaram com as potestades invisíveis; amenção da "sujeição" destas potências significa Cristo ser agorapara eles, o único soberano ao lado de quem não existe outro, nemnos céus e nem na terra. Ainda que estas potestades existam, todavia, todo poder lhes foi tirado.

Um fato demonstra a importância desta certeza para os pri

meiros cristãos: as mais antigas confissões de fé, as que encontramos no Novo Testamento e nos Pais apostólicos, repetem com

Cf. BO REICKE, The disobedient Spirits and Christian Baptism,  1946, p. 198 ss.

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C-RISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 293

regularidade que Cristo está sentado à destra de Deus e que todasas potestades lhe foram submetidas. Sem tal dominação das potências invisíveis Cristo não seria o Kyrios ao lado de quem não há

nem pode haver outro. Assim, lemos na confissão de fé contidaem  1 Tm 3.16 "...visto pelos anjos". Além do texto já mencionadode 1 Pe 3.22, encontramos também a ideia da dominação exercidapor Jesus sobre os ènoupávux,  è jii ycro: e Ko.xaxQò\m na passagem estudada, já muitas vezes, da Epístola aos Filipenses (2.9 s).São estas potestades que confessam que Jesus é o  Kyrios e quedobram seus joelhos diante dele. À parte o Novo Testamento, a

submissão dos poderes é afirmada nas confissões de fé citadas porInácio de Antioquia e Policarpo {TralL 9.1; Epístola de Pollcarpo2.1).  Em Justino  (Apol.  1.42) e em Irineu  (Adv. Haer.  1.10, 1),constatamos que a confissão de fé em Cristo "o Senhor" mencionaseu domínio sobre todas as forças da criação, visíveis e invisíveis.Sublinhamos este fato para demonstrar a importância desta afirmação para a fé dos primeiros cristãos. Estas antigas confissões

conservam, da fé cristã primitiva, só os pontos essenciais e os formulam, da maneira mais concisa possível. Logo, se nestes resumos condensados se menciona com regularidade a soberania deCristo sobre as autoridades e potências, não é por ser um artigo defé secundário, mas, pelo contrário, por ser fundamental.

Surge da experiência da presença, do "senhorio" do Cristo,que os primeiros cristãos tinham em seu culto; e é compreensível

que este senhorio tenha chegado a ser como a bússola graças àqual podiam orientar-se em todos os acontecimentos que se desenvolveram ao redor deles e neles.

A simultaneidade das declarações relativas à soberania de Cristosobre o pequeno grupo dos fiéis por um lado, e sobre o universointeiro, por outro, é notável. Temos visto, também, que os primeiroscristãos confessavam sem cessar como senhor  do mundo  a este

Senhor, cuja presença viva experimentavam no cultoda igreja. Como justificaram teologicamente esta simultaneidade?

Antes de mais nada, precisamos estabelecer o que há decomum entre estas duas "soberanias" de Cristo: sobre a igreja e

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sobre o mundo. Em primeiro lugar, ambas se relacionam ao mesmo período temporal limitado, no que se distinguem do "reino deDeus".4115 Este viria unicamente no fim dos tempos; o senhorio deCristo, em troca, assim como a própria igreja, pertence ao períodointermediário que vai da ascensão à parusia. Isto é, que a soberania de Cristo, diferentemente do reino de Deus, já começou: "(Deusnos tem) transportado ao reino do Filho do seu amor" (Cl  1.13).Todos os textos que falam de "Cristo sentado à destra de Deus",ou da "submissão" das potestades, se referem, implícita ou explicitamente, à ascensão como ponto de partida cronológico deste

Senhorio; todos, excetuando-se Hebreus 10.13 e 1 Co 15.25. Nestas duas passagens, a submissão das potestades é anunciadasomente para o fim dos tempos. Encontramos novamente a concepção neotestamentária acerca do tempo, segundo a qual a fasefinal da história já começou, mas sem que o fim tenha ainda chegado. Assim se explica que, segundo toda uma série de textos, avitória sobre as potestades seja coisajá conquistada, enquanto que

segundo estes dois textos ainda é esperada. Para empregar umaimagem tomada do Apocalipse, poderíamos dizer que estas potestades estão temporariamente "amarradas", devendo aguardar o fimdos tempos para serem definitivamente vencidas

A tensão resultante da coexistência do "já" e do "ainda não", tãocaracterística da situação do Novo Pacto tem então por resultado que,segundo  1  Pe 3.22, asubmissão das potestades hostis já se tenha produzido, enquanto que segundo a Epístola aos Hebreus, o Cristo sentado àdestra de Deus ainda a "aguarda" (Hb 10.13). Daí nasce também essatensão típica entre a "submissão" e a "aniquilação" das potestades.O verbo Kcetcípyeív, que o Novo Testamento emprega livremente nestasduas passagens, tem dois sentidos: "submeter" e "aniquilar". Encontramo-lo em 2 Tm 1.10, onde se trata da vitória já alcançada sobre a morte peloCrucificado, mas também em  1 Co 15.26 onde sedizquea vitória sobrea morte terá lugar depois do retorno de Cristo. Da mesma forma em Ap

20.14, só no fim dos tempos a morte será lançada no lago de fogo. Em um

115 Sobre a diferença entre o Pai e o Filho, que não concerne senão à obra da salvação,cf. abaixo, p. 382 s.

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CRISTOLOGIA E>O Novo TESTAMENTO 295

e outro caso trata-se cie uma vitória: na primeira vez a morte é somente"despojada de seu poder" (2 Tm  1.10), enquanto que na segunda vez édefinitivamente aniquilada (1 Co 15.26; Ap 20.14). Outro tanto ocorre

com respeito às demais potestades. Entre as duas vitórias, as potênciassão sujeitadas à dominação de Cristo; porém, estão, ao mesmo tempo,por assim dizer, atadas por um laço que tanto pode encurtar-se como alar-gar-se, de sorte que têm a ilusão de poderem livrar-se. Ilusão, pois na realidade já estão vencidas. A decisão já interveio e a soberania do Cristo, porconseguinte, começou. Cristo é, a partir do presente, o Kyrios.*^

Assim como esta soberania tem um começo, terá também um

fim. Qual será a data? O Novo Testamento não o diz; porém, elacoincidirá com um acontecimento determinado: o retorno de Cristo. O senhorio de Cristo começou, pois, com sua ascensão e acabará com seu regresso. É por isso que os dois "homens vestidos debranco" de Atos 1.10 afirmam a analogia exterior dos dois acontecimentos que emolduram a soberania de Cristo: "Este Jesus quefoi elevado ao céu do meio de vós, virá da mesma maneira (isto é,

nas nuvens) como o haveis visto ir ao céu."Em Apocalipse e em 1 Co 15.24, o retorno de Cristo e osacontecimentos que o seguem imediatamente, se apresentam comoo fim da soberania de Cristo. Depois da vitória final alcançadapelo Filho, este "entregará o reino a Deus o Pai", como disse oapóstolo (1 Co 15.24). De maneira concentrada e definitiva esteato final resume tudo o que se passou antes, logo, o que ocorre na

fase atual da história da salvação, principalmente a vitória sobreSatanás e as "potestades".

Dissemos que a soberania de Cristo acaba com seu regresso. Estaafirmação necessita de uma ligeira correção no sentido de que, ao menosno Apocalipse, o reino de Cristo avança um pouco sobre o "século vindouro". Isto é o que surge da ideia de milénio,411 que só encontramos noApocalipse, e que representa a Igreja tal qual será na época deste aconte-

H,'Cf. sobre o conjunto da questão: O. CULLMANN, Les premiares confessions de foichrétiennes,  1943. Dieu et  César,  1956, p. 97 ss.

117 Sobre esta questão, cf. o estudo recente de H. BIETENHARD, Das tausendjãhrige Reich, 2a ed., 1955.

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cimento final. Não cremos que, para o Apocalipse, este reino de mil anostenha de identificar-se com todo o tempo da igreja compreendido entregaascensão e z.parusia, como pensava St. Agostinho, seguindo ao donatista

Ticônius. Trata-se de um reino escatológico, no sentido específico dotermo, que não se realizará senão no futuro.  É, por assim dizer, o últimocapítulo da soberania de Cristo que invade o século vindouro. Por conseguinte, não temos que identificar o milénio  nem com a duração total dasoberania de Cristo, nem com a Igreja tal qual é agora. A soberania deCristo abarca algo a mais, pois, já começou e está ligada ao século presente, por tempo indeterminado. O milénio, por outro lado, do ponto devista temporal pertence ao momento final desta soberania que começará

com seu retorno para, então penetrar no éon futuro. Para o Apocalipse asoberania de Cristo não começará no seu regresso;  iá é um fato desde aPáscoa e a Ascensão Com efeito no Apocalipse desde o princíbiolemos que o Cristo tem as chaves da morte e do lugar dos mortos (1 18iequeéorjríncÍDedosreisdatevrad   5  Mais adiante queelegoverrrt^nações com vara de ferro  (12 5'  19 5"l e que o seu nome é "Rei dos rei*;"e "Senhor dos senhores" (19 6)

O tempo da igreja coincide exatamente com o tempo da realeza de Cristo, no qual se encontra a mesma tensão entre o presente eo futuro, e assim como o avanço sobre o século vindouro.A igreja também tem um começo e um fim. Ela também tem porponto de partida a morte e a ressurreição de Cristo. Certamente oAntigo Testamento já conhecia uma "igreja": o povo eleito de Deus,depois o "remanescente" de Israel que se converteu. Porém, estemera antecipação da igreja verdadeira. Pois esta não existe senãodesde o momento em que o Espírito Santo foi dado àqueles que Lhepertencem, isto é, desde a Páscoa e Pentecostes. O tempo da soberania de Cristo é, efetivamente, o tempo do Espírito Santo e este nãopode começar senão depois da glorificação de Cristo (Jo 7.39). EmMt 16.18 Jesus também refere-se ao futuro: "Eu construirei minhaigreja  (OÍKOÔOUT|CTG>)", isto é, depois de sua morte e ressurreição.

O fim da igreja coincidirá, também, com o fim da soberaniade Cristo, a saber: com a parusia, ainda que penetre também umpouco no século vindouro. É assim que no ato final, Cristo serárodeado daqueles que sobre a terra formaram sua igreja: os após-

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO  297

tolos se sentarão sobre doze tronos (Mt 19.28) e reinarão com ele(Ap 5.10; 20.4; 2 Tm 2.12). Quanto aos "santos", isto é, todos osmembros da igreja, eles julgarão as potestades angélicas (1 Co 6.2s.). O milénio anunciado pelo Apocalipse será, por conseguinte, aigreja do fim dos tempos.

Quanto à tensão entre o "já" e o "ainda não", ela se dá com apresença do Espírito Santo que constitui a igreja. O Espírito Santoé então ele mesmo as primícias do fim (catapxTi Rm 8.23:  àppapdw,2 Co 1.22; 5.5; Ef   1.14).

Não obstante esta identidade fundamental quanto ao tempo,entre a soberania do Cristo e a igreja, existe entre elas uma diferença essencial ligada não ao tempo, mas ao  espaço. O domíniosobre o qual se estende o senhorio do Cristo não coincide com oda Igreja; e esta diferença espacial nos permite distinguir a soberania de Cristo sobre o mundo de sua soberania sobre a igreja. Parabem compreender o caráter da K\)pióiri<; do Cristo, devemos elaborar com cuidado este ponto.

A extensão da soberania de Cristo suplanta infinitamente oslimites da igreja. Nenhum elemento da criação lhe escapa: "Todopoder lhe foi dado no céu e sobre aterra" (Mt28.19); "toda criatura no céu e na terra e debaixo da terra confessa que Cristo é oSenhor" (Fl 2.10); "tudo o que está sobre a terra e nos céus" foireconciliado por Jesus Cristo com Deus (Cl 1.14 ss.).

O senhorio presente de Cristo é exercido não só sobre o mundo visível como também sobre as potestades invisíveis, presentespor detrás dos dados empíricos e de maneira grandiosa e principalmente sobre as potestades invisíveis ocultas por detrás do Estado.

Costuma-se combater como mais ou menos "extravagante" a opinião que defendemos, com outros, segundo a qual para o Novo Testamento o Estado está vinculado às potestades invisíveis, aos èi^oocrícu de

que fala Paulo. Seguimos, no entanto, crendo firmemente que em Rm13.1 o termo è^owícu designa muito provavelmente duas coisas: apotestade empírica do Estado e as potências invisíveis ocultas por detrásdele. A crença do judaísmo tardio na existência de "anjos das nações"nos inclina, também, nesse sentido. Além disso, temos que sublinhar que

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298 Oscar CuUmann

a expressão è^oucvai jamais tem em Paulo outro sentido, e que - pensa;mos por exemplo nos "arcontes" de 1 Co 2.8 s. - a justaposição daspotestades invisíveis e seus órgãos executivos terrestres se apresenta cor

rentemente no Novo Testamento. (Cf. a este respeito nossa obra Dieu etCésar,  p. 60 ss. 97-120). Para responder às objeções que também seposicionaram contra os argumentos desta última obra, gostaríamos deinsistir no fato de que quando a cristandade primitiva remete ao Salmo110, os  è%0poí   que aí são nomeados, isto é, os inimigos políticos deIsrael - são entendidos regularmente como "autoridades" e "potestades"invisíveis. Remetemos igualmente ao relato da tentação em Lucas queR. Morgenthaler recentemente estudou sob este aspecto (Cf.  "Roma  -

Sedes Satanae Rõnt.  13.1 jfim Lichte von Lk. 4.5-8" (ThZ,  12, 1956,p. 289 ss., Festgabef. Karl Barth, 2a parte).

O senhorio de Cristo há de estender-se a todos os âmbitos dacriação. Se houvesse um só onde este senhorio fosse excluído nãoseria total e Cristo deixaria de ser o Kyrios. Por isso a esfera doEstado também, e ela principalmente, tem que estar incluída emsua soberania. A confissão de fé Kyrios Christos que se opõe ao

Kyrios Kaisar, o prova e mostra quão central é esta ideia para a féna soberania de Cristo.

Sobre um ponto, contudo, convém formular uma restrição: emborao senhorio de Cristo não conheça limites, seu domínio não coincide purae simplesmente com a criação, como há de ser no fim dos tempos.No interior desta soberania total subsiste ainda uma potência que havendo sido, sem dúvida, vencida, não foi, todavia, aniquilada: A potestade

da "carne", da "morte", que é o "último inimigo". O Espírito Santo, que já está operando, não pode ainda transformar os corpos terrestres emcorpos "espirituais"; porém, o fará no futuro (Rm 8.11, 23; 1 Co 15.35ss.).*18 Falar de "restrição" do senhorio de Cristo não significa, pois, queuma parte da criação Lhe fique excluída. Temos que entendê-lo de preferência da maneira seguinte: por um lado a "carne" e a "morte", emboravencidas, estão, todavia, ativas no interior do domínio submetido a Cristo; por outro, cada elemento da criação pode, aparentemente, escapar à

submissão a Cristo e rejeitá-lo; assim o Estado pode tornar-se "demoníaco" e aparentar ter escapado a este senhorio.449

Cf. O. CULLMANN, Immortalité de Vâme ou réssurrection des morts?,  1956.Cf. O. CULLMANN, Dieu et  César,  1956, p. 83 s.

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CRISTOLOCÍÍA  DO NOVO TESTAMENTO 299

Nas epístolas aos Efésios e aos Colossenses o senhorio deCristo sobre a criação visível e invisível é representado pela imagem da tce(paXri, a cabeça: "Cristo é a cabeça de todo principado e

de toda autoridade" (Cl 2.10). "Deus decidiu, quando se cumprirem os tempos, reunir todas as coisas em Cristo (= reunir sob umasó cabeça: àvaKE<paXaió)cao"9ai), as que estão nos céus como asque estão na terra" (Ef   1.10). Porém, ao mesmo tempo Cristo éapresentado nestas duas epístolas como "cabeça" da igreja (Cl 1.18;Ef   1.22), o que é importante para o problema das relações entre osenhorio de Cristo sobre a igreja e seu senhorio sobre o mundo.

Cristo reina sobre a criação inteira, porém, reina também sobreesta pequena igreja terrena.Depois de havermos constatado a diferença espacial que existe

entre os dois domínios da soberania de Cristo, temos de achar oelo que os une a este respeito. Seria erro afirmar simplesmenteque Cristo é o chefe da igreja porque ela forma parte da criaçãorepresentando, assim, um fragmento do universo sobre o qual se

estende o Seu senhorio. A importância da igreja para o senhoriototal de Cristo é muito maior; pois, do ponto de vista do espaço,ela é o centro apartir do qual Cristo exerce sua realeza invisívelsobre o mundo. Em  Christ et le temps,450  tentamos representargraficamente esta relação pela imagem de dois círculos concêntricos: o círculo interior representa a igreja, o exterior a totalidade dodomínio sobre o qual Jesus Cristo exerce sua soberania.

O Novo Testamento expressa a posição central que a igrejaocupa no senhorio de Cristo denominando a igreja "corpo de Cristo". A igreja é o corpo terreno do Cristo ressuscitado, que desde aascensão está sentado à destra de Deus, na plenitude da glória doPai.  Porém, ao mesmo tempo, este Cristo também se chama"cabeça" (KetpocJtT)) de toda a criação e "cabeça" da igreja. Dissoresulta uma certa incoerência na comparação, pois ele é ao mesmotempo cabeça e corpo para a igreja, e por outro lado, como estádito em Ef  4.15, o corpo cresce para aquele que é a cabeça. Porém,

2a ed., 1957, p. 134.

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300 Oscar Cullmann

esta incoerência aparente caracteriza, justamente, a relação particular que existe entre a igreja e o senhorio de Cristo: por um lado, aigreja é parte do domínio total submetido a seu senhorio, domínio

do qual ele é a cabeça; por outro, Jesus Cristo está presente nestedomínio limitado da igreja de uma maneira particular, diferente queno resto do mundo que lhe está sujeito. Este fato situa a igreja emuma tensão muito especial, no sentido de que, por um lado, é ocorpo de Cristo, isto é, o que de mais elevado possa haver sobre aterra, e por outro, ela está submetida a Cristo, seu chefe, como todasas demais partes da criação compreendidas pelo seu império.

A fim de captar melhor as relações entre estes dois domínios,dos quais Cristo é a KE(paAr\,  é  preciso falar ainda de uma outradiferença. Esta concerne aos membros da igreja, no que se refere atudo quanto está, por outro lado, submetido a Cristo: os membrosda igreja  conhecem  este senhorio enquanto o restante pertencea este senhorio sem ter disso consciência. Se dentro da criação,sobre a qual todo o poder lhe foi dado, Cristo escolheu justamente

por centro este espaço estreitamente limitado que é a igreja, estaextrema concentração também há de ter um sentido para seusenhorio total. Ter um senhor significa sempre duas coisas: estarsubmetido e também, não obstante, ter parte no senhorio. Tocamos aqui na diferença mais importante entre o senhorio de Cristosobre o Universo e seu senhorio sobre a igreja. Vimos que todas ascriaturas no céu, na terra e debaixo da terra, formam parte da esfe

ra sobre a qual Cristo é o Senhor; por conseguinte também todasas autoridades e todas as potestades invisíveis, com seus órgãosexecutivos, tais como os estados terrenos. Elas estão totalmenteincorporadas ao seu senhorio; e assim se compreende porque mesmo aqueles que confessam o senhorio de Cristo devem-lhes obediência (Rm 13.1 ss.).

Contudo, todas estas potestades exteriores à igreja não sãomembros do senhorio de Cristo senão de um modo muito indireto;pois, não conhecem necessariamente o papel que lhes é destinadono interior deste senhorio. Quando Paulo, e antes dele Jesus, falousobre a submissão ao imperador e ao Estado, se referia ao Estado

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 301

pagão que não conhece a Cristo e seu reino, nem a Deus o Pai deJesus Cristo. Um Estado pagão, tal qual o império romano, pode,pois, também cumprir, dentro do senhorio de Cristo, a missão que

Deus lhe destinou sempre que se limite a sua função de Estado eque permita, assim, à igreja, que ocupa neste senhorio lugartão importante, "levar uma vida pacífica e tranquila" (1 Tm 2.2).Assim um Estado pagão pode plenamente desempenhar seu papele ocupar seu lugar dentro deste senhorio sem saber que faz parte dele.

Por isso, segundo o Novo Testamento, a resistência cristã a

um Estado nunca pode justificar-se pelo mero fato desse Estadoser pagão. Uma resistência não é legítima salvo quando o Estado,saindo do seu papel, se autodeifica, isto é, quando tenta ultrapassar os limites que o Senhor lhe destina.451

Como o único que conhece esta subordinação do Estado ao senhorio de Cristo é o cristão, para este o Estado tem - o que pode parecerparadoxal - uma importância maior do que para qualquer outro cidadão.

Porém, se por outro lado o Estado ultrapassa seus poderes, o cristão é oque mais é afetado, em comparação aos não-cristãos que, talvez, tenhamsuas dúvidas a respeito. Pois, neste caso, o cristão vê o Estado desfazer-se do senhorio de Cristo. Vê a potência demoníaca safar-se de seus laçose surgir "a besta".

A diferença fundamental entre os membros do senhorio deCristo, tomados em conjunto, e os membros da igreja reside, pois,

em que unicamente os membros da igreja  sabem que estão sujeitos ao Senhor universal. Os membros da igreja pertencem, pois,conscientemente ao reino do Kyrios, enquanto que os demais pertencem da mesma maneira, porém, inconscientemente. Assim, doponto de vista teológico esta pequena comunidade pode ser o centro do senhorio total de Cristo sobre o universo, sobre as potênciasvisíveis e invisíveis. A desproporção aparente entre este pequeno

grupo de homens e sua enorme importância para o mundo inteiro,

Cf. O. CULLMANN, Dieu et César, 1956, em part. p. 62 ss.

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302 Oscar Cullmann

é explicado pelo princípio de substituição, que se encontra -já otemos visto - em toda a história da salvação.452

Os membros da igreja conhecem não somente a situação dos

membros inconscientes do senhorio de Cristo: sabem, também, eprincipalmente, que missão cabe àqueles que confessam o senhorio de Cristo. Por isto, no ato final de sua soberania (Cf. Ap 20.1ss.), os membros conscientes tomarão parte no juízo feito sobre osmembros inconscientes do senhorio de Cristo (1 Co 6.3); reinarãocom Cristo como se disse em 2 Tm 2.12: crvju.(JaciÀ£Í>o~o"i>criv.Agora, recordemos que este ato final não faz senão recapitular o

que caracteriza o senhorio presente do Cristo. Temos, pois, quetomar desde agora e ao pé da letra, o que Paulo disse em  1 Co 4.8acerca do "reino" dos cristãos, e o que lemos em Ap 1.6: formamos, desde já, uma PocaiXeícc, um reino.

Porém, em especial, temos que relevar também o outro aspectodeste "reino"45-1, o que supõe esta alta missão: cada qual deve terconsciência de ser escravo, servo, do "Senhor" Jesus Cristo (2 Co

4.5). Conhecer o senhorio de Cristo é, também, ter consciência dodomínio total e absoluto do "Senhor" sobre nossa pessoa. Cristonão é somente o Senhor do mundo, o senhor da igreja: é também omeu Senhor. Experimentado e reconhecido como Senhor da igrejaé também Senhor de cada um dos que a compõem.

* * #

Este último aspecto é o que se põe particularmente em relevono Evangelho de João, ao qual consagraremos um parágrafo especial, embora sua concepção acerca doKyrios não seja, basicamente, diferente da do resto do Novo Testamento: encontraremos denovo,  no Evangelho de João, tudo o que temos dito até aqui arespeito da fé dos primeiros cristãos no  Kyrios,  particularmente

Cf. acima, p. 79 s.W. FÕRSTER, op. cit., diferentemente do que se expõe aqui, considera este aspectocomo primordial.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 303

tal qual a expressa o apóstolo Paulo. Convém tão-somente ressaltarmos os aspectos que lhe são característicos. No final deste Evangelho encontramos na boca de Tomé esta confissão que é, por

assim dizer, a culminação suprema: ó KÚpióç uo> tcai ó 0eóçuou, "meu Senhor e meu Deus" (Jo 20.28). Tomé, que depois deter duvidado chega à convicção expressa nesta confissão, é  também o último que, segundo o quarto Evangelho, viu corporalmente ao ressuscitado. As palavras que Jesus lhe dirige então: "Porqueme vistes, crestes? Bem-aventurados os que não viram e creram",deverão, pois, ser consideradas ao mesmo tempo como uma exortação aos futuros leitores a crerem neste Kyrios, especialmente selembrarmos que a história de Tomé se encontra no fim do Evangelho, já que o capítulo 21 éum acréscimo posterior. A confissão deTomé é, pois, a coroação do Evangelho.454

Porém, a propósito desta confissão, temos que assinalar, muito particularmente, o emprego do genitivo  \LOX>. No Evangelho deJoão o senhorio de Cristo parece ser compreendido mais particularmente sob o ângulo da relação individualentre o Cristo glorificado e cada um dos seus. Pensa-se também na palavra de MariaMadalena: "Levaram meu Senhor" (Jo 20.13).

À parte estas passagens há outras em que o vocativo ícòpie servepara apostrofar a Jesus: porém, igual aos sinópticos, trata-se simplesmente de uma fórmula de cortesia, sem alcance teológico particular.

Encontramos, não obstante, outras passagens que, sem empregar o termo KÚpioç, afirmam que o Cristo, desde sua ressurreição,

exerce um reino soberano. Tal é, em particular, o tema dos "discursos de despedida". Depois de haver deixado a terra e subido ao céu,Jesus não deixara a terra órfã. Pelo contrário - e esta é a ideia principal destes discursos - sua ação na terra será mais eficaz ainda doque durante o tempo de sua encarnação. Em Jo 14.12 Jesus prediz

J?4 Também a importância do título  Kyrios  para o Evangelho de João nos parece sermuito maior que a que admite, por exemplo, R. BULTMANN, Theologie cies NeuenTestaments, 1953, p. 383, que sublinha que é unicamente no relato da Páscoa que estetítulo é empregado. Porém, isto se deve, sem dúvida, ao fato de que para o quartoevangelista também, Jesus não se tornou Kyrios senão depois de sua ressurreição.

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que aqueles que crêem nele realizarão obras maiores que aquelasque ele mesmo realizou durante sua encarnação, dando a seguinterazão: "pois vou ao Pai". Isto quer dizer que Cristo atuará, doravante,

por intermédio daqueles que creram nele e que esta ação será maispotente ainda do que durante seu ministério terrestre. Estas palavras: "Vou para o Pai" significam pois: "Todo poder me foi dadopelo Pai". Ainda que este Evangelho não se valha destes termos, éclaro que o pensamento da soberania cósmica do Ressuscitado nãoestá ausente, muito pelo contrário.

* * *

Depois de tudo quanto foi dito até aqui, se reconhecerá a enorme importância do título Kyrios e do lugar central que ocupa nopensamento teológico dos primeiros cristãos. Não se trata, é certo,de uma noção que, como a de Filho do Homem ou a de  Ebed

 Iahweh, remonte ao próprio Jesus. Antes, temos aqui uma expli

cação da obra e da pessoa de Jesus que supõe a fé em sua ressurreição.Ela baseia-se inteiramente em dois elementos essenciais da

história da salvação: primeiro, sobre a certeza de que Jesus ressuscitou e, logo em seguida, sobre a convicção que a história da salvação não foi interrompida porque o acontecimento decisivo daressurreição já foi efetuado embora a manifestação escatológica

da vitória de Cristo esteja ainda por vir. Em outros termos, não háuma espécie de "hiato cristológico" entre a ressurreição de Cristoe aparusia. Qualquer que seja a duração deste período intermediário, a função mediadora de Cristo não está interrompida, ela continua.

Este lapso intermediário é algo totalmente novo no tocanteao plano da salvação tal qual os judeus concebiam. Não represen

ta, como afirmam sem cessar os partidários da "escatologia consequente", uma solução de improviso; antes, pertence organicamenteao pensamento do cristianismo primitivo no qual ocupa, inclusive, como já dissemos, um lugar central. Concorda, assim, perfei-

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tamente, com a maneira em que Jesus concebia o plano da salvação, já que nele também encontramos a tensão entre o "já" realizado e o "ainda não" de sua manifestação.455  De fato, depois de tudo

quanto destacamos, temos de afirmar que, precisamente a incorporação deste período intermediário é o que caracteriza essencialmente a concepção cristã neotestamentária acerca da salvação.Daí a importância da fé no  Kyrios Christos.  Se as cristologiasdogmáticas clássicas do protestantismo não concedem a esta idéiao lugar que lhe corresponde, deve-se a que a teologia protestantenão tem reconhecido plenamente a importância deste período

intermediário para a compreensão do pensamento do Novo Testamento.456

4. "KYRIOS CHRISTOS" E A DIVINDADE DE CRISTO

Falta-nos ainda falar de um último e importante aspecto daidéia de Kyrios, aspecto que adquire, ademais, importância para a

quarta e última parte deste livro, onde falaremos dos títulos relativos à preexistência de Jesus. Até aqui nos temos ocupado principalmente dafunção do Kyrios Ièsous. Porém, a obra e a pessoa deJesus são sempre inseparáveis. A convicção de que Deus, com otítulo Kyrios, lhe deu sua própria soberania, tem um alcance imenso para a compreensão da pessoa de Jesus, ainda que fique entendido que a fé nafunção  senhorial do Cristo a preceda.

Por exemplo, todas as passagens do Antigo Testamento quefalam de Deus podem, em princípio, de agora em diante, ser aplicadas a Jesus. Isto sem dúvida não diz respeito às palavras pronunciadas pelo próprio Jesus; quando cita o Antigo Testamento apalavra Kyrios se refere a Deus. Porém, nas Epístolas, a aplicaçãoa Jesus das passagens do Antigo Testamento referentes a Deus é

!í  W.  G. KUMMELL o demostrou bem era seu livro  Verheissutig und Erfiilluitg, AThANT2Teú,,  1953.

!Í Por outro lado, não se deve dar a este período intermediário um valor absoluto, como ofaz a teologia católica. Cf., a este respeito, O. CULLMANN, La tradinon, 1954.

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muito comum. Temos visto que a tradução grega do Antigo Testamento, chamada Septuaginta, transcreve o nome de  Iahweh porKyrios. Um olhar lançado ao uso deste termo em uma concordân

cia grega mostra que, com frequência, o Novo Testamento aplica aJesus,  sem mais, passagens onde no Antigo Testamento estapalavra refere-se a Deus. É por exemplo o caso de Is 44.23, passagem citada no hino de Fl 2.10 s. que fala das criaturas que dobramseus joelhos e confessam a soberania do Kyrios Jesus.

O exemplo mais surpreendente se encontra em Hebreus 1.10.Trata-se de uma citação do SI 102.25 ss.: "Em tempos remotos, lan

çaste os fundamentos da terra; e os céus são obra das tuas mãos".O texto bíblico fala aqui manifestamente de Deus, o Pai, o Criador.Porém, o autor da Epístola aos Hebreus, aplicando a Jesus o nomede Kyrios, não vacila em apostrofá-lo com as palavras do Salmo102 e fazer assim dele o criador do céu e da terra. O v. 8 diz expressamente que esta citação - assim como a citação precedente do SI45.7 s., onde irrompe inclusive o termo Geóç457 - se refere ao Filho.

Ao nosso modo de ver, não se concede suficiente atenção aeste texto ao tratar-se a cristologia do Novo Testamento. Em geral,deveríamos, por outro lado, levar mais em consideração o fato deque os primeiros cristãos, depois da morte de Jesus, lhe transferiram, sem rodeios, o que o Antigo Testamento diz acerca de Deus.458

Isto prova que eles deram toda amplitude à ideia da soberania presente do Cristo. O que diz Fl 2.9 s., de haver Deus "mais que elevado" a

Cristo, dando-lhe seu próprio nome e transferindo-lhe todo seu poder, deve ter sido admitido e confessado por toda a igreja primitiva.

Voltaremos a esta citação quando falarmos do título Oeóç atribuído a Jesus.V. abaixo, p. 404 s.W. FÒRSTER, Herrist Jesus, 1924, p. 173, argumenta aqui de uma maneira singular, para diminuir a importância deste fato. Do modo ingénuo, irrefletido, em que oNovo Testamento opera esta transposição, ele conclui que carece de importância.Para justificar sua exegese observa que unicamente  1 Pe 3.15 agrega a explicação:"a saber, Cristo". Porém, é justamente a conclusão oposta que tinha de tirar disso: amaneira tão natural com que é feita esta transposição prova que a convicção daunidade entre Deus e Cristo, fundada sobre a dignidade do Kyrios, estava profundamente enraizada na consciência dos escritores do Novo Testamento.

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CRISTOLOGIA  DO NOVO TESTAMENTO 307

A fé na "divindade" de Cristo - expressão empregada peladogmática posterior - tem sua origem na crença da \>7cep\)\}ra)oiO"de que fala Fl 2.9. Mesmo que Cristo tenha sido desde o princípioèv jj,op(pfi Qtox>, só com esta glorificação chega a ser igual a Deus.Veremos que isto se dá por entendido também em Rm 1.4, isto é,em um texto que reproduz sem dúvida uma antiga confissão de fé.Segundo esta passagem Cristo é, certamente, o filho de Deus desde o começo; porém, "desde sua ressurreição" é^ àvaotâoecoç, éuíòç  XOTJ 9eoí>  èv âvvá/iei,  expressão, fora de dúvida, sinónimade Kyrios. Doravante é o Filho de Deus èv 5i)váu,xi.

Temos que formular a questão acerca da "divindade" de cristono Novo Testamento, tomando como ponto de partida o títuloKyrios  e o senhorio universal e absoluto que supõe. É a únicamaneira, de foímulá-la. em tecmos bíblicos; pois, utitizar o esquema das "duas naturezas" é pensar em categorias gregas. É inegávelque o Novo Testamento presume a divindade de Cristo; porém, ofaz sempre em relação ao senhorio que exerce a partir de sua glorificação: trata-se de sua função, antes que de seu ser.

Incontestavelmente, segundo a fé cristã primitiva, este Kyriostambém é preexistente. Pois se Cristo é um com Deus desde suaressurreição é necessário que desde o princípio tenha estadounido a ele. É à luz da soberania presente do Cristo  Kyrios  e,portanto, de sua função na história da salvação, que se deve compreender a fé da igreja nascente na preexistência de Jesus, naexistência do  Logos  com Deus desde o princípio. É assim, porexemplo, que na confissão de fé binária utilizada por Paulo em1 Co 8.6, não se menciona a atividade do Jesus preexistente, mediador da criação, senão em função do título  Kyrios:  "... um sóKyrios,  Jesus Cristo por quem todas as coisas são e por quemnós somos." Porque Cristo é hoje para nós o único  Kyrios,  oSenhor que reina sobre todas as coisas, é preciso que ele tenha já

estado, no princípio, em relação com todas as coisas (Ap 3.14) eele esteve, segundo nosso texto e Jo 1.1 e Cl 1.16, como o mediador da criação. Se quisermos verdadeiramente captar o sentidoprofundo da cristologia do Novo Testamento, devemos pensar

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sempre no lugar central que tem na vida da igreja a certeza triunfante de que Cristo já reina e que, desde sua glorificação, é o

único Senhor e único Rei.Se quisermos compreender a génese e o desenvolvimento do pensa

mento cristológico temos que partir do título Kyrios como de um centro apartir do qual se situarão as demais funções de Jesus no conjunto dacristologia. Recordemos que dito título já está no centro das primeiras confissões de fé.4ííl

Com isso não pretendemos dizer, de nenhuma maneira, que acristologiado/^/mr tenha sido, do ponto de vista cronológico, a primeira explicação da pessoa e obra de Jesus. Quase todas as respostascristológicas que temos examinado rios capítulos precedentes são, de fato,mais antigas. Porém, a partir da cristologia do  Kyrios  é que se temempreendido a síntese em que todos os aspectos associados aos títuloscristológicos encontram seu lugar, conforme o papel que têm na históriada salvação. Nisto reside a importância suprema da concepção de Kyrios:é   a única que torna possível o que podemos chamar de cristologia doNovo Testamento. Poderíamos dizer, talvez, para voltar à imagem paulina

de TcetpcAfi, queé tão importante neste capítulo, que o título tcíipioçé, emrelação aos demais títulos cristológicos o que a  K£<P«XTI  é para osdemais membros do corpo o que os situa e ordena a todos, sem desqualificar a nenhum.460

A fim de evitar algum mal entendido, teremos de insistir em que aofalarmos do "lugar central" ocupado pela ideia de Kyrios, temos em vistaa génese desta síntese cristológica na vida e no pensamento dos primeiros cristãos. Porém, é claro que o centro  cronológico  no interior desta

síntese é a morte e a ressurreição de Cristo.

A atribuição a Jesus do título Kyrios tem outra conseqviênciaa mais: que todos os títulos dados a Deus - à exceção do nome de

 Ai<> Com razão, pois, o Símbolo dos Apóstolos, em seu segundo artigo agrega o título deKyrios a "Jesus Cristo, seu único filho", e fala do Cristo "sentado à destra de Deus".

460

Tem razão E. STAUFFER quando escreve em  seu Die Theologie des NeuenTestaments,  1941, p. 94: "De todos os títulos cristológicos odeKyríos é  o mais ricopelas relações que gera. Sua história é um compêndio, ao mesmo tempo que umarepetitorium, da cristologia neotestamentária. Pois percorre sucessivamente toda agama dos títulos cristológicos e desdobra, ante nossos olhos, o caminho que leva dadignidade doutoral e da realeza de Jesus Cristo à sua dignidade divina.7'

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CRAÍ>TOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 309

"Pai" - podiam, doravante, ser conferidos a Jesus. Se, de acordocom a fé primitiva, o nome "que é sobre todo nome", isto é, onome mesmo de Deus: "Senhor", Adonai, Kyrios, foi dado a Jesus

desde a sua glorificação, a transferência de atributos divinos tor-nou-se ilimitada. Em virtude disso poderíamos, já aqui, junto como título Kyrios, estudar a aplicação a Jesus do termo "Deus", 6eóç,que aparece no cristianismo primitivo: pois ele não representa deforma alguma, como seríamos tentados a crer, um grau mais elevado que o nome insuperável Kyrios.461 Porém, como esta atribuição subentende o problema da relação entre o Pai e o Filho e ao

mesmo tempo o da preexistência, o estudaremos na última partedeste livro, a propósito dos títulos que concernem, antes de tudo, àobra do Cristo preexistente.462

Já nos ocupamos de outro atributo de Deus transferido a Jesus:o de juiz do Juízo final.463  Ademais, todas as funções de Deus,inclusive a de Criador, lhe foram atribuídas.

Porém, tratando-se aqui da obra do Senhor presente, nos res

ta examinar o título de "Salvador",  Sotér.

461 Segundo H. COIVZELMANN, op. cit., p. 146 ss., Lucas diminui o alcance teológi-codestft  título. Cf. abaixo, p. 408, ivota655.

v'1 Cf. abaixo, p. 399 ss.4W Cf. acima, p. 207 s.

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CAPÍTULO  I I

JESUS O SALVADOR(CFtOTlíp)

Quando pensamos no papel que tem no vocabulário de todasas igrejas cristãs o título "Salvador", tão comum e tão popular,particularmente nos meios pietistas, nos surpreendemos principalmente por não ter sido este um dos títulos essenciais de Jesus desde a origem. Nos escritos cristãos mais antigos, salvo uma única

passagem da Epístola aos Filipenses, ele não aparece. Aparecerelativamente tarde; encontra-se esporadicamente no Evangelhode Lucas e de João; torna-se mais frequente nas Epístolas Pastorais na Segunda Epístola de Pedro e nas epístolas de Inácio. Ten-tou-se explicar a raridade do título Sotér   invocando-se o fato deser o mesmo muito difundido nos meios pagãos do mundohelenístico, o que fez com que seu uso se tornasse suspeito para os

cristãos.464 Porém, a mesma coisa poderia ser afirmada, e com maiorrazão, a respeito do título Kyrios; no entanto, isso não foi obstáculo para que bem cedo chegasse a ser, para o cristianismo primitivo, a principal expressão de sua fé em Cristo. A aparição tardiado título "Salvador", nos parece devida justamente ao papel eminente que desempenhou o de Kyrios: por um lado, a fé no Senhorglorificado permitiu conferir a Jesus o título "Salvador", que oAntigo Testamento atribuiu a Deus, por outro, o nome de Kyrios,que é "sobre todo nome", havia de relegar à sombra, ou atrair asua órbita todos os outros títulos orientados no mesmo sentido.

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312 Oscar Culhnatm

Por conseguinte, não é surpreendente que Sotér  seja empregado,amiúde, no Novo Testamento como mero complemento de Kyrios(F13.20; 2Pe 1.1,11; 2.20; 3.2, 18).

Por outro lado, um outro fato deve nos chocar: as EpístolasPastorais, onde Jesus é mais frequentemente chamado Sotér  dãogeralmente, e frequentemente na mesma passagem, o título de Salvador, Sotér, a Deus. Isto nos faz supor que tal intttulação cristo-lógica seja um título divino do Antigo Testamento transferido aJesus, e isto confirmaria que o título "Salvador", como todos ostítulos divinos, foi atribuído a Jesus por Eleja haver sido confes

sado como Kyrios. Sem pretender minimizar a influência do emprego helenístico de Sotér  em seu sentido cristão, parece-nos, contudo, indicado falar do título Sotér  no judaísmo antes de estudar suasignificação no helenismo.

1.  O TÍTULO "SOTÉR" NO JUDAÍSMO E NO HELENISMO

No Antigo Testamento Deus é chamado "Salvador". As palavras hebraicas PST., STtthQ e illílUT\ que provêm todas da mesmaraiz, são traduzidas por Gcycfjp na LXX.465  Os Salmos4ÉSe oslivros de Isaías467  são os que mais reiteram este título; porém, aparece também em outros escritos podendo ser seguido por toda aliteratura do Antigo Testamento468  e do Judaísmo.4*59

Temos que considerar sua aplicação a Deus como primitiva.Acontece que este título também é recebido, na verdade, por certos homens de Deus que salvaram, salvam ou salvarão o povo emSeu nome e por Sua ordem. Assim, no passado, Moisés "salvou" aseu povo; e posteriormente outros chefes de Israel foram chama-

 A<

"  Na literatura apócrifa erabínica posterior ao Antigo Testamento, às vezes se emprega ^X/U no mesmo sentido; porém, se aplica mais ao Messias. j«Por ex SI 24.5; 27.1; 34.3; 61.3, 7; 64.6; 78.9.**7Is 12.2; 17.10; 43.3, II; 45.15, 21; 60.16; 62.11; 63.8.468 Cf. Jr 14.8; Mq 7.7; He 3.18; I Sm 10.19; Dt 32.15.'"'Cf. I Mac 4.30; Sab. 16.7; Eclo. 51.1; Baruque4.22; Judite 9.11.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 313

dos "salvadores".470 Conforme este uso, o Messias também é considerado como o "Salvador que virá" para livrar definitivamente aseu povo.471  Esta intitulação corresponde perfeitamente à função

que o Messias tem de realizar; e é curioso que não seja chamado"Salvador"472  com maior frequência.

* * *

Enquanto que no Antigo Testamento e no judaísmo em geral,o Sotér  é essencialmente o libertador do povo, este título assume

no helenismo outro sentido.473

 Neste caso são deuses, mas também heróis, e mais tarde príncipes, que são chamados "salvadores", dado que libertam ao povo de toda sorte de males físicos e deenfermidades, que os salvam de perigos tais como naufrágios, horrores da guerra e incertezas da existência.

P. Wendland reuniu os textos essenciais relativos a este tema.474

É assim que Asclépio, por exemplo, é o "Salvador" que traz a cura

da enfermidade.475

  Aqui a ideia de "Salvação" se relaciona à da"Providência", da Ttpóvoía. Porém, ocotrjp é principalmente umdos títulos mais correntes para designar ao soberano divinizado;

4™Por ex. Otoniel e Eúde: Jz 3.9, 15; Cf. também 2 Rs 13.5; Ne 9.27.471 Is 19.20.472Deve-se isto ao fato de se sentir que o título "Salvador" está reservado a Deus?""' Sobre o problema formulado pela concepção do Sotér  na história das religiões, cf.

os dois volumes de W. STAERK,  Sôter, Die biblische Erlõsererwartung aisreligionsgeschicbdiches  Problem,  I (1933), II (1938).

474 P. WENDLAND,  XÍOTTIp (ZNTW,  1904, p. 335 ss.). - Cf. também a este rspeito aW. WAGNER, "ÚberotiiÇeivund seineDerivateim  NT"  (ZNTW,  1905, p.205 ss.);H. LIETZMANN,  Der  Weltheiland, 1909; W. BOUSSET,  Kyrios Christos, 2a ed.,1921, p. 240 ss.; art. acotfip em PAULY-WISSOWA, Realenc. (2. R., vol. V), 1927,col. 1211 ss. (DORNSEIFF); E. B. ALLO, "Les dieux sauveurs du paganisme gréco-romain" (RSPTh,  1926, p. 5 ss.); DIBELIUS-CONZELMANN, "Die Pastoralbriefe"(Hdb. z. NT), 3a ed., 1955, excursus sobre  2 Tm 1.10.

475 K. H. RENGSTORF, "Die Anfã*nge der Auseinandersetzung zwisclien Chrismsglaubeund Asklepiosfrõmmigkeit"  (Schriften der Gesellschatt z. Fõrderung derwestfàUsclien Laiidesuniversitát zit Miinster, n° 30), 1953, tem a mesma opinião deque o emprego cristológico do título Sotér  se deve a um protesto dos cristãos contraa atribuição corrente deste título a Asclépio.

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representa, pois, para o culto ao imperador uma espécie de variante do título Kyrios. O soberano é Sotér  na medida em que traz aordem e a paz.476  Podemos lembrar, a este propósito, a famosaQuarta Égloga de Virgílio.

A noção de Sotér  assume outros aspectos nos cultos de mistério. Aqui a divindade salva do poder da morte e da matéria; confere a imortalidade. Para as religiões de mistério este título  Sotértem a importância fundamental que se tem afirmado?477

A questão está aberta à discussão.478  É impossível afirmar comcerteza, então, que isso tenha influenciado o emprego cristão dotítulo  Sotér.479 Se existe uma relação entre o emprego pagão dotítulo Sotér  e sua aplicação a Jesus, temos que pensar, primeiramente, em seu uso no culto ao soberano.

 2. JESUS, O SALVADOR, NO CRISTIANISMO PRIMITIVO

Poderia, à primeira vista, alguém sentir-se tentado a fazerderivar unicamente do helenismo a aplicação a Jesus do títuloSotér,

 já que, segundo temos visto, este título aparece pela primeira vez,quase exclusivamente, nos escritos cristãos nascidos nos meioshelenísticos.480 Seu emprego no paganismo pode, com efeito, ter

 favorecido  sua utilização cristã por um desenvolvimento paralelo

Cf. A. DEISSMANN, Licht vom Osten, 4a ed., 1923, p. 311 s.; W. OTTO, "AugustasSoter"  (Hermes,  1910, p. 448 ss.); E. LOHMEYER,  Christuskult und Kaiserkult,1919, p. 27 ss.G. ANRICH, Das antike Mysterienwesen in seinem Einfluss auf das Cliristentum,1894, p. 47 ss.;G. WOBBERM1N, ReUgionsgeschichtliche Studien,  1896, p. 105 ss.Cf. P. WENDLAND, op. eh.,  p. 353. - Cf. também os trechos relativos a esta questão na excelente obra de K. PRUMM,  Religionsgeschichtliches Handbuchfiir den Raum der altchristlichen Uinwelt, Hellenistisch-rõmische Geistesstrõmtingen undKultur mit Beachtung des Eigenlebens der Provinzen,  1943, p. 339, n. 1.

ANRICH, WOBBERMIN, BOUSSETeF. J. DÓLGER (Ichthys, I, 1910, p. 407 ss.)crêem que devem admitir semelhante influência. Tese contrária: P. WENDLAND, op.cit., p. 353 eE. MEYER, Ursprung undAnfãnge des Christentumss,II, ,923, p. 339 1ssEste argumento foi apresentado porL. KÕHLER. "Christus im Altenundim NeuenTestament". TltZ, 9, 1953, p. 42 s., que defende uma origem puramente helenísticadeste termo quando aparece no Novo Testamento.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 315

ao assinalado a propósito do título Kyrios Iesous Christos. Porém,assim como o nome Kyrios aplicado a Jesus se originou no judaísmo, o título de Sotér  deriva mais do Antigo Testamento e do juda

ísmo que do helenismo. Os primeiros textos cristãos que chamama Jesus "Salvador", por tardios que sejam, não denotam influênciaalguma da concepção helenística de  Sotér.  Bultmann mesmoadmite aqui uma influência bíblica e uma influência helenística.481

Porém, a influência helenística nos parece, neste caso, concernirmais à forma que ao conteúdo.

Com efeito, quase todas as passagens em que Jesus é chamado

"Salvador" contêm exclusivamente temas cristãos. O que não querdizer, no entanto, como parece crer Harnack, que esta designaçãoseja consequência das curas operadas por Jesus.'182 É verdade que osentido restrito de "curai*", por  CÓIÇEIv, é, amiúde, encontrato nostextos; porém, nenhuma das passagens em que Jesus é denominadoSotér, contém a menor alusão às curas realizadas por ele.

Durante sua vida Jesus nunca foi chamado Sotér  por ninguém,

nem se chamou a si mesmo assim; e inclusive na época em queeste nome lhe foi ocasionalmente conferido, não se relacionava sóa uma das funções de sua obra terrena, mas a toda a sua obra, vistaalém disso, à luz de sua ressurreição e de sua glorificação. Como ode Kyrios, o título Sotér  pressupõe toda a obra de Jesus realizada esancionada por sua Ascensão.

Já ficou indicado que se chama a Jesus Sotér  sobretudo nos

escritos que dão o mesmo nome a Deus, acima de tudo nas Epístolas Pastorais, onde Deus é chamado, preferentemente, o "Salvador" (1 Tm 1.1; 2.3; 4.10; Tito 1.3; 2.10; 3.4), mas também no

R. BULTMANN, Theologie des Neuen Testaments,  1953, p. 79. - No que concerneao judaísmo tardio, H. GRESSMANN, Der Messias,  1929, p. 370, admite que em 4Esdras  13, o Sotér judaico e o Sot ò'helenístico estão associados. Não se compreende bem por que então se nega a admitir análoga associação no cristianismo.A. HARNACK, Die Mission und Ausbreitung des Christentums in den ersten drei

 Jahrhunderten, I,5oed., 1915, p. 115 55. (tese recusada também porP. WENDLAND,op. cit., p.336). A tese de HARNACK é atualizada por K. H. RENGSTORF, op. cit.(cf. acima, p. 313, nota 475).

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Evangelho de Lucas, onde o Magnificai (Lc 1.47) chama a Deus"Salvador", ao estilo do Antigo Testamento onde, por outro lado,o relato de Natal anuncia: "hoje vos nasceu, na cidade de Davi, o

Salvador, que é o Cristo, o Senhor" (Lc 2.11).E a Epístola de Judas dirige a doxologia final (v. 25) "ao único Deus, nosso salvador, por Jesus Cristo nosso senhor". Não é,então, surpreendente que a segunda Epístola de Pedro, tão estreitamente relacionada com a de Judas, empregue naturalmente aexpressão owtfip 'Inaoíiç Xpicrcóç associada a KÚpioç, como emLucas 2.1l.483  O que vem confirmar a ideia de que a elevação de

Cristo à soberania divina exerceu influência decisiva no empregodeste título cristológico. É, pois, permitido considerar como fontesecundária o uso deste título no culto ao imperador.

Trata-se, pois, principalmente da transferência a Jesus de umatributo que o Antigo Testamento reserva a Deus. Jesus é o Sotérporque salvará a seu povo do pecado. Assim explica Mt 1.21 onome "Jesus". Efetivamente, este nome próprio é uma das formas

hebraicas de "Salvador", referido a Deus pelo Antigo Testamento.Por isso, ao menos ali onde se deve pressupor um conhecimentodo hebraico, temos que levar em consideração a significação donome "Jesus" para explicar a origem do título ooixrip 'InaoOç."Jesus", com efeito, não significa outra coisa que  CCÚTTP, salvador. Entretanto, o autor do Evangelho de Mateus seguramente nãoera o único a sabê-lo.

Porém, o vínculo com o Antigo Testamento aparece primordialmente na afirmação de que Jesus veio salvar ao povo do pecado eda morte. A despeito de analogias terminológicas com o culto aoimperador e em particular com sua "epifania",484  é esta ideia doAntigo Testamento que se reflete nas declarações relativas à aparição do "Salvador" Jesus Cristo quando do seu nascimento (Lc 2.11),à "epifania de nosso Salvador Jesus Cristo que destruiu a morte"

Cf. acima, p. 31 11Cf. também, a este respeito, DIBELIUS - CONZELMANN,  Die Pastoralbriefe,3a ed., 1955, p. 78.

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CRISTOLOGIA  DO NOVO  TESTAMENTO 317

(2 Tm 1.10), e à sua epifania gloriosa futura (Tito 2.13). Após haverevocado esta epifania do fim dos tempos, esta última passagem acrescenta:485  "que se deu a si mesmo por nós para redimir-nos de toda

iniquidade, e fazer um povo seu purificado por Ele." E sintomáticoque este versículo, em que o Cristo é exaltado como o soberano quevem -  talvez em oposição consciente ou inconsciente à epifania dossoberanos terrestres deificados - lembre precisamente a obrApassa-ih,  terrena de Jesus, sobre a qual repousa sua elevação soberana.Atos 5.31 associa da mesma forma a glorificação de Jesus, sua elevação à destra de Deus como Sotér, à afirmação de que esta glorifi

cação há de trazer a Israel "o arrependimento e o perdão dos pecados". Sem dúvida, aqui estamos dentro de categorias de pensamentoque são mais judeu-cristãs do que pagã-cristãs. O Cristo é  Sotérporque nos salvou do pecado.

Este título, Sotér, se bem que pode ser considerado, com justiça, como uma variante do título Kyrios - do qual até é possível queprovenha - põe em evidência, contudo, uma ideia que aparece com

menos nitidez na noção de  Kyrios: a obra expiatória de Cristo écondição essencial para sua elevação à categoria de  Sotér  divino.Lembremos Filipenses 2.9: "Por isso (isto é, por causa de sua humilhação na obediência até a cruz) Deus mais que o elevou" e lhe deuum nome, Kyrios, que " está acima de todo nome". É isto que, emsolo cristão, está implicitamente contido no título  Sotér. Jesus éSotér  porque reconciliou Deus e o mundo por sua cruz. Um fato a

mais o demonstra: mesmo onde, como na doxologia de Judas 25  -conforme o uso do Antigo Testamento - é Deus quem é chamadoSotér, as palavras "por Jesus Cristo nosso Senhor" remetem à obraexpiatória de Cristo, fundamento de toda "salvação" divina.

No entanto, o títuloSotér  não é mera variante  deEbedlahweh,como se poderia crer ao ver quanto a salvação, aacorripía que trazo "Salvador", está inextricavelmente ligada a sua morte expiatória.

Pois o sofrimento expiatório pelo perdão dos pecados não adquire

Sobre a construção:  xov  \ie7Ó<ko\)  Qeoí> Kai crroTfjpoç finwv XpiotoO 'IriaoíiCf. abaixo, p. 408 s.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 319

Cristo". Eis aqui de novo essa característica associação  àcSotéreKyrios, diferentemente de 2 Tm 1.10 onde Cristo já consumou seupapel de Sotér, mas concordando com Tito 2.13, é dito que Cristo

realizará sua função de Sotér  no fim dos tempos. Não há aqui contradição; o que temos é aquela tensão peculiar que se encontra noNovo Testamento e que também se manifesta na cristologia e que

 já constatamos ao estudar outros títulos cristológicos. Bultmannassinala, acertadamente, que Paulo emprega aqui um títulocristológico já cristalizado, pois, à parte esta passagem, Sotér  nãose encontra nunca nas epístolas que são inegavelmente de Paulo.488 Deve tratar-se então de uma expressão que, sem ter se tornado ainda corrente, era anterior a Paulo. Ademais, seu sentido emFl 3.20 coincide perfeitamente com a ideia expressa em  1 Ts 1110(sem a menção do título Sotér): "Esperamos dos céus a seu Filho oqual ressuscitou dos mortos, a Jesus, que nos salva (puóu.£vov) daira vindoura".

Já vimos que o significado do nome de "Jesus", em terrenosemítico, devia convidar a uma aproximação ao título de "Salvador", empregado no Antigo Testamento e que, sem dúvida, não foio evangelista Mateus o primeiro a fazê-lo (Mt  1.21). Ademais, éevidente que na Palestina, "Salvador" não podia converter-se notítulo de Jesus, porque nesse caso teria que repetir o nome próprio"Jesus": alesousSotér, corresponderia. leschoualeschoua.  Resulta,então, que Jesus só poderia chamar-se "Salvador" ali onde se falavagrego. Porém, isto ocorreu, por certo, muito cedo; tanto mais quan

to que na igreja palestina já se tinha a convicção de que a Jesus nãosó se chamava "Salvador" (Ieschoua = Jesus) senão que ele o  era.Porém, o alcance teológico do títuloSotér  só chega a sua plena

expansão no final da época apostólica, quando este título, associadoa outros atributos importantes do nome de Jesus, tomou lugar naantiga fórmula Ichthys:  ' ITICTOTJç Xpiaxòç  QEOX> Yíòç Ewrfip.489

Cf. R. BULTMANN, Theologie des Neuen Testaments,  1953, p. 79, que mencionaigualmente a passagem paralela de 1 Ts 4.15-18, na qual Paulo declara expressamente ser da "tradição".Cf. F. J. DÓLGER,  Ichthys, I, 1910, p. 248, 259, 318.

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QUARTA. PARTE

TÍTULOS REFERENTES ÀPREEXISTÊNCIA DE JESUS

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PEQUENO INTRÓITO

Nesta quarta e última parte estudaremos três conceitos cristoló-

gicos: o de "Logos", "Filho de Deus" e "Deus". Partindo do títuloKyrios os primeiros cristãos - segundo já se viu - podiam aplicara Jesus tudo o que o Antigo Testamento diz acerca de Deus. Porém,seria simplificar o problema, e cair em heresia condenada pelaigreja antiga, atribuir ao Novo Testamento a ideia de uma identidade total entre Deus e Jesus o  Kyrios,  e afirmar que na fé docristianismo primitivo não existia nenhuma diferença entre um eoutro. A antiga confissão de fé binária de 1 Co 8.6, por exemplo,prova que a diferença não foi, de modo algum, eliminada, nemainda ali onde - como nesta confissão de fé - Cristo aparece comoo mediador da criação: "Há um só Deus e Pai de (è^) quem procedem todas as coisas e  para  (eiç) quem somos; e um só SenhorJesus Cristo  por   (ôiá) quem são todas as coisas e  por   quem

somos". Aqui a distinção está claramente expressa pelo empregodas preposições:  è%  e eíç para Deus s eôá parr Cristoo Porém,seria em vão a busca de uma definição mais precisa da relaçãooriginal entre Deus o Pai e Cristo o Kyrios.

Os títulos Logos e "Filho de Deus" nos permitem aproximarde tal definição, na medida em que atraem a atenção para a preexistência de Jesus, isto é, a sua existência "no princípio". Porém,veremos que estes termos tampouco contemplam uma unidade deessência ou de natureza entre Deus e o Cristo; trata-se de umaunidade de ação, na obra da revelação. Tal é também -j á o vimos- o sentido da transferência a Jesus do nome divino Kyrios: Deuse Jesus glorificado são um, do ponto de vista da soberania sobre o

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O título Kyrios designa, antes de tudo, a soberania divina de Jesusno período presente da história da salvação. Porém é empregado,também, referindo-se à ação mediadora de Jesus quando da criação, por exemplo, no texto citado anteriormente de 1 Co 8.6, ouainda em Hebreus L10 ss. Esta extensão deriva, no entanto, da féno Senhor  presente, enquanto que a concepção de Logos, por suaprópria natureza, faz remontar à obra reveladora de Deus em Cristo ao "começo" de todas as coisas, à ação preexistente e divina deJesus. Este termo uniu, pois, mais ainda que o título de Kyrios, acriação à redenção; a criação pelo mediador preexistente, "o Verbo"; e a redenção em quem o verbo se encarnou, que agora reina evoltará. Aqui surge, ainda que só perifericamente, a questão darelação de essência entre Deus e o Cristo preexistente; porém, coisa característica, a resposta não é de ordem ontológica: não toma aforma de uma especulação relativa às "naturezas"; mas, permanece firme sobre o terreno da história da revelação. Poderíamosdizer outro tanto do título "Filho de Deus". Este título põe, implicitamente, também, a questão da relação de essência de entre o Paie o Filho, independentemente da encarnação. Porém, também,aí se encontra a mesma resposta: a unidade deles é a de ser um noato da revelação que funda, acompanha e consuma a história dasalvação.

Sem dúvida se diz acerca do  Logos:  "No princípio  era  "oVerbo", o Verbo  estava com Deus,  era Deus." Porém, como setemesse que toda especulação avançasse mais nesta linha, rapidamente o Prólogo de João passa destas afirmações ontológicas àsconcernentes ao ato da revelação: "Todas as coisas foram  feitaspor ele", e "o Verbo se fez carne". Do mesmo modo, porém destavez não no começo, mas no fim de todas as coisas, Paulo nos levaaté o limite de uma assimilação total do Filho ao Pai: quando oFilho terá submetido todas as coisas ao Pai e se submeterá, Elepróprio, a fim de que Deus seja "tudo em todos" (1 Co 15.28).

Como não se pode falar do Filho senão em relação com arevelação de Deus, enquanto que se pode, em princípio, falar doPai mesmo fora da revelação e como, por outro lado, o Novo Tes-

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(^APÍTULO I

JESUS, O "LOGOS"

Este título ocupa um lugar predominante na cristologia clássica da igreja antiga. Inclusive, costuma-se considerá-lo como aexpressão mais acabada de toda a cristologia. Porém, no NovoTestamento temos de constatar que unicamente o grupo de escritos joaninos o menciona e ainda assim, em um bem reduzido númerode passagens: no prólogo do Evangelho, no começo da primeira

Epístola e em uma passagem do Apocalipse (19.13). É um efrocrer na preponderância do título Logos no Evangelho de João: narealidade, outro título, como o de "Filho do Homem", aparece muitomais frequentemente. A. Harnack, baseando-se no fato de que otítulo Logos não aparece senão no prólogo, chegou a sustentar qtieoriginariamente este prólogo não havia pertencido ao Evangelho,sendo-lhe acrescentado ulteriormente.490 Sua tese, nessa forma, é

dificilmente sustentável; no entanto, temos de constatar que, efeti-vamente, este título não aparece senão nos primeiros versículos.Porém, no lugar em que o autor do Evangelho faz uso deSte

título mostra quão indispensável ele é para falar da relação entre arevelação divina na  vida de Jesus e a sua preexistência. Não lheinteressa situar, como Marcos, o começo, o  ápxf| da história deJesus,  no momento da aparição de João Batista, mas na pre

existência, o que remete ao "princípio" absoluto de todas as coisas.No entanto, para excluir todo mal entendido ulterior, como os que

A. HARNACK, em ZThK, 2, 1892, p. 189 ss. Cf. a este respeito E. KÀSEMAHN,"Aufbau und Anliegen d. Johanneischen Prologs"  (Mélanges  E  Delekat,  1957,

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328 Oscar Cullmann

encontramos nas discussões cristológicas da igreja antiga, elesublinha implicitamente, logo no início, que não se trata aqui deuma especulação sobre esta preexistência do Cristo; o evangelistasó fala deste "princípio" em estreitíssima relação com o que nosnarra em seu evangelho acerca das funções ulteriores do Cristo.Aquele de quem se diz que estava "no princípio com Deus", omesmo do qual fala todo o evangelho, cuja vida, "na carne", constitui o centro de toda a história da salvação e da revelação. Estemesmo Jesus, que levou a cabo, "na carne", o ato decisivo da revelação, está também ativo na história de Israel (o prólogo alude a isto

claramente)49' e é quem, para além de sua morte, continuará atilando no seio da igreja, como os "discursos de despedida" o afirmam.

Temos que partir daí para estimar em seu justo valor a importância que o evangelista dá à preexistência de Cristo. Dado que elevê no Cristo encarnado, no Filho do Homem, tal qual apareceu"na carne", o centro em torno do qual se ordenam todos os acontecimentos, a questão de sua ação preexistente deve também, neces

sariamente, delinear-se: aquele que é o centro de toda a história dasalvação não pode ter surgido do nada. É por isto que a participação do Cristo preexistente na criação - afirmação já encontradaem outros escritos do Novo Testamento - é valorizada mais queem qualquer outro livro. Tanto a criação como a redenção peloCristo encarnado são, com a mesma importância, parte integranteda revelação de Deus.492 Não se pode perder de vista que o Evan

gelho de João começa com as mesmas palavras que o primeiro

C. H. DGDD, r/tá  interpretation ofthe Fourth Gospel,  1953, p. 284, insiste comrazão que o prólogo fala, por um ladc>, do Logos que não foi recebido pelo mundo,pela criação; e por outro, de sua perseguição por Israel.M. E. BOISMARD, Le Prologue de Saint Jean, 1953, e C. H. DODD, op.cit., p. 277ss., fazem notar que Paulo em Rm 1.18 ss. fala dos ímpios que se negam a reconhecera revelação de Deus em sua criação, de uma forma muito análoga à do Evangelho de

João. Ainda que Rm 1.18 ss. não atribua expressamente a Cristo a revelação de Deusna criação, seria certamente falso intefpretá-lo como se fosse possível opor a criaçãopor Deus e a redenção por Cristo. W. BAUER, Das Johannesevangelium, 30cd,,p. 6,escreve, com razão, que as concepções de Paulo relativas ao Cristo preexistente juntoao Pai, unido com Ele e participando com Ele na obra da criação, são muito semelhantes às do Evangelho de João. Cf. Também abaixo, p. 348 ss.

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CRISTOLOCTIA DO NOVO TESTAMENTO 329

livro do Antigo Testamento. Se, como os primeiros cristãos dadiáspora, estivéssemos acostumados a ler a Bíblia em grego, istonos impressionaria desde o primeiro momento. "No princípio", èv

àpxfi, se encontra no começo de ambos: em Génesis e no QuartoEvangelho. No Antigo Testamento está dito: "No princípio criouDeus o céu e a terra"; e no Evangelho de João: "No princípio era oVerbo, o Logos... todas as coisas foram feitas por ele". Um novoGénesis é o que aqui se nos apresenta, porém, à luz do mediadorda revelação.493

Dada a alta frequência de utilização da ideia de Logos antes

do cristianismo e simultaneamente a ele, se faz necessário estudá-la tal qual aparece no helenismo e no judaísmo. Se o Quarto Evangelho recorre ao termo Logos,  retomando assim uma concepçãopré-cristã corrente, é, sem dúvida, por que vê em Jesus a realização dela. Ele se vale precisamente deste vocábulo para expressar auniversalidade cristológica.

1. O "LOGOS" NO HELENISMO

Não se trata aqui de dar uma história exaustiva da concepçãode Logos. Há numerosos estudos*34 sobre o tema, e a maior partedos comentários, antigos e recentes, lhe têm atribuído a importância que ela tem na filosofia helenística e nas religiões helenísticasorientais. Nossa intenção se restringe a lembrar que trata-se de

uma concepção muito difundida no mundo antigo,495 que o autor

R. BULTMANN reconhece esta relação com o relato de Génesis, tanto em  DasEvangeliwn des Johannes  (p. 6) como em seu  Theologie des Neuen Testameitts(p.411); porém, não mede todo o seu alcance.Cf. as abundantes indicações bibliográficas, por ex., em PAULY - WISSOWA, Realeencyclopaedie,  XIII (1927), p. 1035 ss (H. LEISEGANG); e também emThWbNT, IV,p. 70. Maii anttgo: A. A AL, Geshiclue der Logosidee I: indergiiechiscíienPhilosophie,  1896.C. H. DODD, The Interpretation oftlie  Fourth Gospel,  1953, p. 265, pensa, é verdade, que a concepção de Logos considerada como uma hipóstase, um mediador, estavamenos difundida no Oriente do que se admite geralmente. Porém, pode-se dizer isto arespeito dos materiais abundantes que a história das religiões nos trazem?

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do Quarto Evangelho não poderia ter ignorado. É imprescindíveldar-se conta disso para compreender todo o alcance da afirmação:"O Logos se fez carne". Começamos por lembrar que o títuloLogos

ocorre já na mais antiga filosofia grega, a de Heraclito,496 e, maistarde, especialmente no estoicismo.497  O Logos aí é a lei supremado mundo, que rege o universo e que, ao mesmo tempo, está presente na razão humana. Trata-se pois de uma abstração e não umahipóstase. Consequentemente, ao falar do Logos, e mesmo que sepostule acerca dele que "era desde o princípio", esta alma impessoal e panteísta do mundo, de que fala o estoicismo, é coisa muito

distinta do Logos joanino.498 O platonismo também conhecia estanoção: aqui já nos aproximamos mais da ideia de um ser real;"real" no sentido do idealismo platónico. Porém, ainda assim, nãoestamos diante de uma hipóstase, e a ideia de uma encarnação do Logos é absolutamente inconcebível. A analogia da terminologianão deve induzir-nos a identificar a concepção de Logos atestadano judaísmo tardio ou mesmo a do Evangelho de João com a da

filosofia  CTrega A incorporação total do  Logos  na história e nahumanidade é completamente estranha ao platonismo S Agostinho também admite haver-se deixado levar pelas analogias formais ao afirmar haver encontrado nos livros de Platão comexpressões um DOUCO diversas  a doutrina de João relativa aoLogosque "era no princípio" (Conf   7 9) A rigor  a analogia está mais rnterminologia que nas concencões

No entanto, esta concepção filosófica do  Logos  ocupa umlugar essencial na história longa e complicada deste termo, poisinfluenciou ao menos na forma, as ideias judaicas e pagãs tardiasde um Logos mais ou menos personificado. É possível que temasmitológicos tenham influenciado mais profundamente; no entan-

fiH.  DIELS, Die Fragmente der   Vorsokratiker,  51 ed.. 1934, Fr. . e 2. P. .50 s.7 Cf. K. PRÚMM, Der christliche Glaube itnddie altheid/iische Weh, II 1935, p, 227ss; M. POHLENZ, Die Stoa, t. I, 1948 (ver o índice); e também R. BULTMANN,"Der Begriff des Wortes Gottes im Neuen Testament"  (Glauben mui Verstehen,  I,1933, p. 274 ss.).

5Tal é a opinião de R. BULTMANN, Das Evangeliuin des Johãtmes,  1941, p. 9.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 331

to, a doutrina filosófica do Logos, incontestavelmente, é uma dasfontes destas concepções tardias. Tal é, especialmente, o caso deFílon de Alexandria, cujos desenvolvimentos relativos ao Logostêm muito espaço nos comentários do Evangelho de João. Emboraachemos já nele a ideia de um ser intermediário personificado, arelação da sua doutrina com estas doutrinas filosóficas é evidente.Muito se tem polemizado para saber se Fílon considerava o Logoscomo pessoal ou impessoal. É incorreto partir de semelhantealternativa, pois a doutrina filosófica do Logos  tem mais do queuma fonte.

Com esta reserva se acompanhará a R. Bultmann quando,investigando a origem da doutrina do  Logos  no judaísmo e emJoão,  discerne no paganismo uma direção de pensamento que,segundo ele, constitui uma preparação mais direta que o conceitodos filósofos gregos e que ele denomina de: a direção do pensamento "gnóstico". Aqui o Logos é  um ser mitológico, intermediário entre Deus e o homem. Não é tido só por criador do mundo é,em primeiro lugar, o portador da revelação e a este título, Salvador; pode também, transitoriamente, revestir-se da forma humana,porém, sempre dentro de um quadro mítico e doceta; jamais noquadro histórico de uma verdadeira encarnação.499  Bultmannencontra aqui o mito da humilhação e da ascensão do Salvador,que salva o mundo, salvando-se a si mesmo. Porém, esto Logos é  amesma figura que encontramos nas especulações pagãs relativasao "primeiro homem".

E sumamente provável que semelhante figura mitológica do Logostenha existido no paganismo. Porém, é muito difícil captá-la nos textos. R. Bultmann não pode citar, segundo ele mesmo o reconhece emseu  Comentário de João, p. 11, senão textos tardios, contemporâneosdo cristianismo. Poder-se-á conceder-lhe, no entanto, que as concepções testemunhadas por estes textos podem ser mais antigas que os

próprios textos. Em todo caso, a descrição que Bultniann dá do Logos

Com razão R. BULTMANN <iiz a este respeito, em seu Comentário de João, p. 10,que ele está somente "disfarçado" de tiomeP

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CRISTOLOGIA DO NOVO  T ESTAMEhrro 333

nos textos mandeus.504 O parentesco entre a ideia de Logos e a deprimeiro homem no paganismo é tanto mais digno de atenção pelofato de que o encontramos, também, no cristianismo primitivo,mesmo que aqui possa tratar-se apenas de uma influência exercidapela mitologia pagã.

Enfatizemos, desde já, que a noção de Logos estava tão disseminada no pensamento antigo que muitas ideias confluem nesseconceito, sem que possamos fazê-las derivar umas das outras. Coisaigual ocorre, naturalmente, no tocante às concepções do judaísmoe do cristianismo primitivo acerca do Logos. Haveremos de inves

tigar quais destas ideias exerceram direta influência sobre a noçãocristã; porém, será necessário, antes, perguntarmos, como a fé cristã,ao trazer novos motivos, transformou a noção de  Logos. Assimconstataremos que o Evangelho de João não deduziu, da ampladifusão da ideia de  Logos,  uma revelação geral não necessariamente cristã; pelo contrário, submeteu cabalmente a concepçãonão cristã ou pré-cristã de Logos à suprema e única revelação de

Deus em Jesus de Nazaré, dando-lhe assim forma inteiramentenova.

 2. O "LOGOS" NO JUDAÍSMO

Tratamos aqui de duas formas diferentes da concepção de Logos: por um lado, a concepção tardia, segundo a qual o "Verbo"

é uma hipóstase e até um mediador personificado e que, certamente, está mais ou menos influenciada pelas ideias pagãs mencionadas; por outro, a concepção autenticamente bíblica que remonta aGn  1, segundo a qual o Verbo de Deus, odebarIahweh,  é entendido em seu sentido primitivo e toma-se, às vezes, em virtude de umdesenvolvimento imanente do pensamento, uma hipóstase divina.Esta distinção conserva seu pleno valor, mesmo se constatamos

que uma forma tenha influído sobre a outra. É assim que a concep-

GINZA (ed. LIDZBARSKI, 1925), p. 295; cf. W. BAUER, Das Joiíannesevangelium,3a ed. 1933, p. 10.

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334 Oscar Cullmann

ção tardia certamente não está desvinculada da concepção bíblica.Os estudos da história das religiões, aliás meritórios e, sobretudo,

as conclusões que R. Bultmann tirou deles, contribuíram muitopara exagerar esta distinção necessária ao ponto de não se querermais admitir o elemento comum a ambas as concepções. Ora, esteelemento comum existe: a ideia de revelação. Não é por acidenteque o termo "Verbo" tenha sido escolhido para designar a ambas.

Para estudarmos a ideia de Logos no cristianismo primitivo,não é um método correto levarmos em consideração exclusiva

mente a doutrina, comprovada no judaísmo tardio, de uma hipóstasedivina, sob pretexto de ser a única que, junto com o Evangelho deJoão e o mito pagão do Salvador, conheceria um mediador maisou menos personificado. A noção corrente no Antigo Testamentoacerca da Palavra de Deus pode, também, ter influenciado direta-mente a concepção cristã, mesmo que se demonstre que a concepção helenística do judaísmo tardio, e até a concepção pagã deLogos,

tenham sido familiares a certos meios do cristianismo nascente.Porém, só podemos examinar esta questão estudando antes asdeclarações joaninas acerca doLogos.  O que interessa dizer aqui éque não temos o direito, para compreender a maneira pela qual o

 judaísmo falou do Logos, de eliminar, a priori  como carente deimportância, o que o Antigo Testamento disse a respeito

Tal acontece, precisamente, com a maior parte dos comentárioschamados "críticos" do Evangelho de João. Inversamente os exegetas"conservadores" costumam levar em consideração tão-somente a ideia,corrente no Antigo Testamento, acerca da Palavra de Deus. Estes doispontos de vista exclusivos foram evitados no artigo X,éYco, Xóyoq do Tfheol.Wõrterbuch,  graças ao método observado nesta obra de distribuir amatéria a ser tratada: ThWbNT, IV, p. 69 ss.; os autores são G. Kittel, A.Debrunner, H. Kleinknecht, O. Procksch, G. Quell e G. Schrenk. De qual

quer forma, deveríamos abandonar o costume de qualificar uma exposição de "crítica" ou de "conservadora" pelo simples fato de ressaltarem,seja a concepção judaico-helenística de Logos,  seja a concepção atestada pelo Antigo Testamento. Esta questão científica não deveria ser orientada por uma posição teológica.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 335

Há, no Antigo Testamento, toda uma série de passagens nasquais a "Palavra de Deus", se não está personificada é, ao menos,considerada como uma entidade independente e que passa a serobjeto de reflexão teológica em razão do enorme poder de suaação.505 Esta reflexão se orienta primeiramente à história da criação na qual tudo se realiza por ordem da Palavra pronunciada porDeus; "Haja luz; e houve luz". Meditar nisso é chegar à ideia deque toda a ação criadora de Deus se efetua por meio de sua Palavra;  e esta palavra, é o próprio Deus enquanto se comunica aomundo. Assim lemos no Salmo 33.6: "Os céus foram feitos pelaPalavra de Iahweh". Aliás, mesmo depois da criação, a Palavra doSenhor faz a vida surgir do nada. Também os Salmos nos falam,em diversos lugares, da Palavra de Deus como de um mediador;por exemplo, no SI 107.20: "Enviou-lhes a sua Palavra e ossarou"; ou no SI 147.15: "Ele envia as suas ordens à terra e suaPalavra corre velozmente." Aproximamo-nos muito de uma personificação da Palavra ern Isaías 55.10 s.: "Assim como descem a

chuva e a neve dos céus e para lá não voltam, sem que primeiroreguem a terra, a fecundem e a façam brotar para dar semente aosemeador e pão ao que come, assim será a Palavra que sair daminha boca: não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraze prosperará naquilo para que a designei."506 Aqui não nos encontramos muito longe da  Sabedoria de Salomão  (submetida já àinfluência alexandrina), onde lemos no capítulo 18.15: "Tua Pala

vra onipotente sai do trono real como um guerreiro implacável..."A expressão  memra déjahvé   empregada no  Targum, e que é adesignação aramaica da Palavra de Iahweh, também deve ser mencionada aqui507  O fato de que  memra  possa ser empregada emlugar do nome de Deus implica uma reflexão particular sobre a"Palavra de Deus"  considerada como tal No entanto nãoencontra-

Cf. O. GRETHER,  Name und Wort Gottes im Alten Testament,  1934, em part.p.  150 ss.Para paralelos no Oriente antigo, L. DÚRR, "Die Wertung des gõtlichen Wortes imA. T. und im Alten Orient" (Mitt. d. Vorderasiatischen Geselleschaft,  42, 1, 1938).V. HAMP, Der Begriff "Wort" in den aramãischen Bibleiibersetzttngeti, 1938.

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336 Oscar Cuihnann

mos nos textos rabínicos, no que diz respeito à memra de Deus,considerações análogas às que se consagram, por outro lado, ao

 Logos personificado ou à sabedoria personificada.

508

Unicamente no campo da concepção alexandrina, no judaísmo helenístico, é que encontramos verdadeiramente o Logos ou asabedoria convertidos em hipóstases. Aqui temos que supor, semdúvida, a influência de concepções pagãs relativas a um mediadormitológico.509 No entanto, também temos que levar em conta areflexão sobre a atividade criadora da Palavra de Deus, mesmo alionde já não é o caso da "palavra de Deus", mas, meramente, da"Palavra", nem da "Sabedoria  de Deus'",  mas simplesmente da"Sabedoria".

É verdade que em Fílon, cuja doutrina acerca do Logos não éhomogénea e remonta a diversas fontes,510  a concepção estóicareferente ao Logos, considerado como a razão universal, é a quedomina.5" Para nós, esta concepção não entra em consideraçãosenão de uma maneira indireta; porém, por outro lado, vemos aparecer nele, em Fílon, em parte por influência platónica e em parte,talvez, por influência mitológica, a ideia de um mediador personificado.512

Porém, foram as especulações do judaísmo tardio acerca daSabedoria - e os trabalhos de J. Rendell Harris o têm demonstra-dosl3 - as que mais influenciaram a noção de Logos do cristianis-

sos p or outro ]ado a questão da data é  de difícil solução; não se pode determinar comcerteza se esta concepção pertence a época pré-cristâ. Cf., a respeito, STRACK-BILLERBECK, t. II. p. 302 ss.

5"*Cf. R. BULTMANN, Johanneskomtnentar,  p. 8.510É o que indica com razão W. BAUER, Das Johannesevangelium,  3a ed., 1933, p. 8.

Para numerosos textos que entram aqui em questão cf. A. AALL,  Geschichte der Logosidee,  1896, p. 184 ss. Cf. também E. BREHIER, Les idéesplúlosophiques etreligieuses de Philon d'Alexandria.  2* ed., 1925, p. 83 ss.; H,A. WOLFSON,  Phiío,

t. I, 1948, p. 200 ss; 325 ss.511 Cf. acima, p. 329 s.512 Sobre o conjunto da questão das relações entre Fílon e o Evangelho de João, cf. C.

H. DODD, The Interpretado/} ofthe Fottrth Gospel,  1953, p. 54 ss.5,,The Origin ofthe Prologue to St. John s Gospel, 1917; id.,  Atltena, Sophia and the

 Logos" Bullet. ofthe John Ryland s Ubrary,  1922, p. 56 ss.).

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 337

mo primitivo.514 Não está provado, é certo, como o admite Harris,que o prólogo de João remonte diretamente  a um hino à Sabedoria. Mas, em todo caso, topamos aqui com concepções muito vizinhas até o ponto em que  Logos  e  Sophia  são palavras quaseintercambiáveis. Entre os numerosos textos que podemos invocarreteremos só algumas fórmulas particularmente características.515

Em Provérbios (8.22-26), a própria Sabedoria diz: "O Senhor mecriou no início de sua obra, antes de suas obras mais antigas. Desde a eternidade fui estabelecida, desde o princípio, antes do começo da terra". E mais adiante: "Antes de haver abismos, eu nasci, eantes ainda de haver fontes carregadas de água. Antes que os montes fossem firmados, antes de haver outeiros, eu nasci. Ainda Elenão tinha feito a terra, nem as amplidões, nem sequer o princípio dopó do mundo." Encontramos a mesma ideia em Eclo. 1.1 ss.; 24.1ss., e ainda em diversos outros lugares.516 NâSabedoria de Salomão

se diz que a Sabedoria é um "reflexo da luz eterna de Deus" (7.26).Para compreendermos o prólogo de João, temos que citar muitoespecialmente os textos que falam do "ódio" do mundo, ao qual aSabedoria está exposta (Pv. 1.28 ss.; cf. Sir. 24.7).

Há textos rabínicos que identificam a sabedoria preexistentecom a  Thorá,  que desta maneira se converte, também, em umahipóstase mediadora da criação e "Filha de Deus".517 É provável

que estas especulações derivem daquelas outras da "Sabedoria",518

porém, mostram até onde era familiar,  ao judaísmo tardio, a ideiade um ser intermediário que, na qualidade de hipóstase divina,fazia parte de Deus. Temos que mencionar, também, um texto de

514C. F. BURNEY, TheArconaic Originofthe Fourth Gospel, 1922; R. BULTMANN, Der religionsgeschichtliche Hiníergnmd des Prologs zuni Johatnnesevangeliuin

(Eucharisterion, 2, 1923, p. 3 ss.); C. SPICQ, "Le siracide et la structure litterairedu Prologue  (Mém. Lagrange,  1940, p. 183 ss.); C. H. DODD, op. cit., p. 274 ss.í, 5Outras referências na bibliografia indicada mais acima, p. 336, nota 510. Textos

rabínicos em STRACK-BILLERBECK, t. II, p. 356 s.516Cf., por ex., FÍLON, Leg. Alleg., II, 49.mCf. STRACK-BILLERBECK, t. II, p. 353 ss.; t. III, p. 131.í l8 Como o diz com razão R. BULTMANN, Johamieskommentar,  p. 8.

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. 338 Oscar Cullmatm

Qumran {Manual de Disciplina  11.11) no qual "o pensamentodivino" está na origem de toda existência.

Temos distinguido, por princípio, duas linhas diretivas no judaísmo; a linha especificamente bíblica acerca da Palavra deDeus, do debar Iahweh, e a linha mais tardia que se desenvolveupor ação de influências exteriores, a da "Palavra" simplesmente.Ambas têm em comum o expressarem a obra pela qual Deus serevela. Porém, a ideia desta obra, esta Palavra dirigida por Deus aomundo, poder finalmente encarnar-se no quadro histórico de umavida humana e terrena, é coisa tão estranha a uma como a outra.

3. A IDEIA DE "LOGOS" APLICADA A JESUS

No Evangelho de João o título Logos só é atribuído a Jesus noprólogo; nos demais escritos joaninos, unicamente em mais duaspassagens. Não aparece, ademais, em nenhuma outra parte do NovoTestamento; e no tocante a outros escritos do cristianismo primiti

vo, Inácio de Antioquia é o único a empregá-lo, muito provavelmente sem direta influência do Evangelho de João.519 Não parece,pois, tratar-se de uma concepção cristológica central para o NovoTestamento, como no caso de outros títulos, tais como o de "Filhodo Homem" ou Kyrios. No entanto, o título Logos destaca especialmente, um aspecto importante da cristologia dos primeiros cristãos: a unidade, para a história da revelação, do encarnado e do

preexistente. Assim ele situa Cristo em relação a Deus.É claro que a identificação de Jesus com o Logos não se produziu, senão, depois de sua morte. Ocorreu o mesmo quanto àaplicação a Jesus do título tão importante de  Kyrios.  Porém,enquanto que este tem sua origem, seu  Sitz im Leben,  no cultocristão, a atribuição a Jesus do título Logos é, certamente, antes

n Magn.  8.2. Cf. a este respeito H. SCHLIER, "Rel igionsgeschichtl icheUntersuchungen zu den Ignatiusbriefen" (BZNW8,  1929). CHR. MAURER, Ig /jati!«vonAntiochien wtddas Joltannesevangeliuin (AThANT,  18, 1949) sustenta que Inácioleu o Evangelho de João; porém, reconhece que o Logos de que se trata neste trechonão se refere, necessariamente, ao quarto Evangelho (p. 41 s).

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CRISTOLOGIA DO NOVO  T ESTAMENTO 339

fruto de uma reflexão teológica; reflexão que, aliás, pressupõe também a experiência litúrgica da soberania do Cristo. Para compre

endê-lo, então, temos que levar em consideração, primordialmente, as concepções extra - ou pré-cristãs que podem ser citadas comoparalelos, posto que a concepção cristã do Logos se vincula de ummodo mais consciente (mesmo que o paralelismo seja, sobretudo,formal) às concepções extracristãs de Logos que os demais títuloscristológicos aos paralelos extracristãos que se possam encontrarpara eles.

Cometeríamos, por conseguinte, um erro metodológico se,por causa do caráter mais teológico da reflexão acerca do Logos, oestudássemos exclusivamente em paralelo com a concepção oriental e helenística. Pois sabemos hoje que o Evangelho de João, apesar ou por causa dos elementos helenísticos que contém, pertencea esse vasto domínio do judaísmo  palestino  influenciado pelosincretismo, cujos aspectos começam a ser melhor conhecidos gra

ças aos textos de Qumran.

520

 Disso deduz-se que, muito mais agora, temos de considerar os elementos helenísticos do Evangelhode João na relação que têm com as ideias que remontam ao AntigoTestamento.

Além disso, é indispensável também não perdermos de vistaa relação entre as ideias joaninas e o conjunto do pensamento docristianismo primitivo, e não somente para constatar em seguida

entre elas uma oposição. Porque se falta o termo Logos quase demaneira absoluta nos demais escritos neotestamentários, temos queaveriguar se não se encontra neles a mesma ideia da preexistênciade Jesus e aquela relação específica entre Deus o Pai e Jesus, quecaracteriza o Logos Joanino. Veremos, então, que sobre este pontoo prólogo de João não traz uma doutrina essencialmente diferenteda que achamos em Paulo ao examinar outros títulos cristológicos;por outro lado, o título "Filho de Deus", presente já na mais antigatradição sinóptica, parece recobrir bem concepções análogas emalguns aspectos.

Cf. acima, p. 241  s.

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.  340 Oscar Cullmaim

Porém, antes de tudo, temos que ver no quarto Evangelho,assim como nos demais escritos do Novo Testamento, se o uso

corrente, isto é, não diretamente cristológico do termo  Logos,poderia ser uma das fontes da aplicação deste título a Jesus.521

A palavra de Jesus, ou seja, a palavra anunciada por ele,desempenha em todo o Evangelho de João um papel tão importante que quase não pode admitir-se que o evangelista deixe de pensarnesta "Palavra" quando no prólogo identifica o Logos com Jesus.Esta suposição se impõe ainda mais se tivermos em conta este

pensamento fundamental do Evangelho joanino: Jesus não somentetraz a revelação, mas, Ele é  a revelação. Traz a luz e é, ao mesmotempo, a luz: dispensa a v idaeéa vida; anuncia a verdadee  «averdade; ou antes: se ele traz a luz, a vida e a verdade, épor ser  elea luz, a vida e a verdade, O mesmo cabe dizer no tocante aoLogos:ele traz a Palavra, porque Ele é  a Palavra.

Se consultarmos uma concordância ficaremos sabendo que o

termo Logos,  no sentido de "palavra pronunciada e anunciada",ocorre com muita frequência no Evangelho de João, e expressauma de suas ideias essenciais. Segundo o uso corrente, Àóyoç nãosignifica nem mais nem menos que a palavra concreta percebidapelo ouvido (por ex. Jo 2.22; 19.8). Porém, um sentido teológicovem juntar-se ao usual: o Xóyoç que Jesus proclama é ao mesmotempo a revelação divina eterna, que exige não só um ouvido aten

to, mas também a compreensão da fé. Esta acepção está implícitano verbo átcofteiv.522  Quando o assunto é "permanecer na Palavra" (8.31), "guardar a Palavra" (8.51), a Palavra que dispensavida a quem a escuta com fé (5.24), é deste sentido da palavra

5ÍI Com razão este aspecto da questão foi levado em consideração por diversos autores:  nos artigos lexicográficos do  Biblisch-Theologisches Wõrterbuch des

neutestamentlichen Grieschischde CREMER-KÒGEL  (111

 ed., 1923); no ThWbNTpor KITTEL; também por C. H. DODD,  The Interpretation ofthe Fourlii Gospel,1953,  p. 265 ss. Cf. ainda J. DUPONT, Essais sur la christologie de Saint Jean,1951, p. 20 ss.

522 Cf. C. H. DODD, The Interpretation ofilie Fourth Gospel, 1953, p. 266; ele sublinha a distinção que existe entre XaXvx e Xó-yoç em Jo 8.43.

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CRISTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO 341

 Logos que se trata. A palavra anunciada por Jesus aqui é idênticaao kerygma, que constitui uma das noções preferidas da teologia

contemporânea. No Evangelho de João é idêntica à "Palavra deDeus" (17.14; v. também 5.37 ss.). Elaé aVerdadc por excelência(17.17). É mais que uma mera  (f>covf|. Quando, em Jo 1.23, JoãoBatista, citando Is 40.3, declara ser uma voz, cpwvTi, o autor pensacertamente no prólogo que precede imediatamente e que faladaquele que não é, como o Batista, uma<pa>vr|, mas o Logos (1.8).

No Evangelho joanino, a ideia teológica anunciada acercado

 Logos  conduz diretamente ao  Logos  que se encarnou em Jesus.Efetivamente, o objetivo do Evangelho é exatamente mostrar quetoda vida humana vivida por Jesus é o centro da revelação da verdade divina.

A Palavra de Deus, idêntica ao Àóyoç pregado por Jesus, é a"verdade" (Jo 17.17); agora, o próprio Jesus é a verdade em pessoa (14.6). A designação de Jesus como Logos decorre, portanto,

necessariamente do emprego ordinário da palavra Xóyoç no quarto Evangelho. Certamente esta explicação não basta; porém, indica uma orientação do pensamento da qual não se deve, de nenhummodo, descuidar.

Se é sobretudo no Evangelho de João que a palavra Àóyoçassume o sentido absoluto de "revelação", este uso da palavra é,no entanto, considerável na literatura do cristianismo primitivo.

No Novo Testamento a expressão ó Xòyoq xox> Qeoí» não designasomente a "Palavra de Deus" particular  (debar Iahweh)  que noAntigo Testamento é a palavra que responde a uma situação dadae que é dirigida aos profetas sempre novamente. Porém, na maioria das vezes, esta expressão visa, de um modo geral, o anúncio dasalvação. É assim que freqéntemente recorre-se à "Palavra" - ogenitivo TOV Geoujá não aparece como necessário- para designar

a pregação do Evangelho. Podemos encontrar esta acepção de À,óyoçem todos os livros do Novo Testamento.523  Às vezes, o termo estáassociado a um genitivo que define o conteúdo da palavra prega-

• Por ex Gl 6.6 ; Cl 4.3 ; Mc 2.2; 4.14 ss.; 8.32 ; Lc 1.2 ; At 8.4 ; 10.44; 16.6, etc.

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• 342 Oscar Cuitmann

da: a "palavra da cruz"(1 Co 1.18)oua"palavra da reconciliação"(2 Co 5.19). Porém, aí também o termo Logos denota a revelação

definitiva.O prólogo da Epístola aos Hebreus expressa com muita clareza a diferença entre esta Palavra e aquela dirigida esporadicamente aos homens de Deus no antigo pacto: "Depois de haverKoXv\i£pcòç, Kod 7roVoTpÓJWoç falado aos nossos pais pelos profetas, Deus, nestes últimos tempos nos tem falado pelo Filho". Quando, em seguida, na mesma frase, o autor fala da criação do mundo

pelo Filho e nomeia a este no versículo seguinte, como "reflexo daglória divina" x«pcoerrip xf|ç ííTiooxáoewç aínorj, a analogia como prólogo de João salta à vista. É verdade que o termo mesmoX,óyoç não aparece aí; porém, como em Jo 1.1, o falar de Deus emseu Filho está associado com a criação do mundo e ligado a umadefinição da relação eterna entre o Filho e Deus o Pai. De fato,este texto constitui um paralelo muito mais direto que muitasoutras passagens as quais se alude geralmente para esclarecer aconcepção joanina de Logos. Seja Hb 1.1 ss. mais antigo ou maisrecente que Jo 1.1 ss., uma coisa tem que ser lembrada, e é queuma linha contínua vai da maneira em que Deus falava no AntigoTestamento à revelação por excelência que é o Filho, reflexo daglória divina. Nesta linha também se encontra um elo intermediário: o uso da palavra Aóyoç para designar o anuncio definitivo dasalvação, que já encontramos no Novo Testamento. Certamente,em Hb 1.1 ss. só se diz que Deus tem falado no ou pelo Filho524

Certamente se formula a questão da relação entre esse Filho e Deus;ela recebe uma resposta análoga àquela que é dada no prólogo deJoão, porém, não há uma identificação absoluta entre esta "Palavra de Deus" e o "Filho" A este não se chamaLogos  Se o primeiro capítulo de João estabelece esta identificação é por tratar-se deum prólogo a uma vida de Jesus  vida que é ela mesma  o ponto de

partida de toda reflexão cristológica ulterior Nesta vida  a revelaçãode Deus se manifesta não só nas palavras ciue Jesus pronuncia mas

èv instrumental.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 343

também nos atos que realiza. O que Jesus faz é o que ele mesmo é.O uso hebraico segundo o qual "palavras" (debarim) pode também

significar "história",525

  deveria necessariamente, ao considerar-seprimeiramente a vida, a "história" de Jesus, favorecer a identificação de Jesus com "a Palavra".

Por conseguinte, se o Evangelho de João ao designar a Jesuscomo "a Palavra", oLogos,  se aproxima das concepções vindas dopaganismo e do judaísmo tardio, a identificação repousa, no entanto, sobre uma reflexão imediata relativa à relação entre a vida his

tórica de Jesus e a origem de toda revelação. A palavra de Deus éreconhecida como suaação,  o que estabelece uma relação naturalcom sua palavra criadora, pela qual já se revelou "no princípio".Quando se formula assim a questão da origem última da auto-revelação de Deus, necessariamente, se é levado a remontar, paraalém das palavras anunciadas pelos profetas, até a palavra de Deusquando da criação do mundo. Esta concepção é preparada pelos

textos bíblicos antes mencionados que já consideram a Palavracriadora e atuante de Deus quase como uma hipóstase.526 As especulações judeu-helenísticas utilizam, por sua vez, a história da criação para sustentar suas doutrinas relativas à hipóstase divina queexistia "no princípio". Porém, não é somente por este rodeio dostextosjudeu-helenísticosqueo prólogo de João se vincula a Gn 1:interessa-se, também, diretamente pela relação entre a história de

Jesus e a da criação. Se o evangelista começa toda a sua narraçãoda vida de Jesus com as palavras com que o Antigo Testamentoabre a história da criação é porque, para ele, esta relação tem importância decisiva; tão decisiva que todas as influências judaicasou helénicas, que possam ser descobertas, não podem ter senãovalor secundário.527

Cf. O. PROCKSCH em  ThWbNT, IV, p. 91 s.Cf. acima, p. 334 ss.Temos visto que R. BULTMANN reconhece também, tanto em seu Comentário de João (p. 6) como em sua Theologie des Nenen Testaments (p, 411), que o prólogode João se relaciona com Gn I; porém, não dá a este fato mais que um alcancemenor em sua explicação do prólogo.

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,344 Oscar Cullniami

Se a Palavra de Deus que chamou o mundo à vida ("e fez-se aluz") é a mesma Palavra que se dirige a nós na vida de Jesus, então

a identificação desta com o Logos divino se dá espontaneamente.Então, a criação e a vida de Jesus têm ambas por denominadorcomum a "Palavra", a "revelação". Porém, por este fato o problema da relação entre Jesus e Deus fica implicitamente formulado, eao mesmo tempo resolvido no sentido do prólogo, isto é, partindode Génesis 1.1 ss.

Neste prólogo, o evangelista permanece fiel à forma do pensamento do Antigo Testamento,528 quando fala da recusa da revelação: porque assim como a revelação não foi recebida na criação(Rm 1.18  ss.),529  Israel recusou a palavra dos profetas. É a estepovo de Deus rebelde que fazem alusão os ííôioi de Jo 1.11,530

As afirmações joaninas relativas ao Logos são fruto de umareflexão teológica profunda sobre a vida de Jesus, considerada comoa revelação central de Deus. As especulações judeu-helenísticasque não podem ser provocadas pelo exame da vida de um homemaparecido na história, mas que surgem de concepções filosóficas emitológicas, por certo ajudaram o autor a compreender e a explicar o mistério da pessoa de Jesus. Porém, o outro ponto de partida,totalmente diferente, o da reflexão joanina, que é a vida concretade Jesus, dá à ideia cristã de Logos, em todos os seus elementos,um sentido radicalmente novo.

R. Bultmarm assinala, com razão, que o prólogo de João não

diz "Palavra de Deus" mas simplesmente o Logos, a Palavra, semgenitivo explicativo, como se se tratasse de algo bem conhecido.

H. SAHLIN,  Zttr Typologie des Johaimesevangeliwiis,  1954, sustentou recentemente que não somente o prólogo mas o Evangelho de João inteiro deveria serconsiderado como paralelo tipológico ao pensamento do Antigo Testamento, emparticular da tradição do Êxodo. No entanto, a tentativa de SAHLIN (p. 60 s) de

incorporar o prólogo de João neste esquema explicando-o pela tradição do Êxodonão é, de nenhuma maneira, convincente.Cf. acima, p. 328, nota 492.Esta  é   também a opinião de C. H. DODD,  op. cit.,  pp. 270, 272, que, de umamaneira geral, sublinha vigorosamente o fundamento do prólogo no Antigo Testamento.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 345

Poderia isto significar que o autor se refere, de maneira perfeitamente consciente, a concepções judeu-helenísticas ou ainda pagã-

helenísticas relativas a um Logos compreendido como hipóstase?

SÍI

É difícil dar com certeza uma resposta afirmativa a esta questão.Porém, é muito provável que o evangelista pense também noLogos

 já personificado, tal qual se encontraria correntemente no helenismosincrético e no judaísmo helenístico e que, intencionalmente, serefira a uma concepção deste género sem ter em vista, no entanto,um texto determinado. O autor, que colocou este prólogo no começo de seu Evangelho sabe que, ao designar a pessoa histórica deJesus de Nazaré como o Logos, anuncia algo tão radicalmente novoque pode, serenamente, sem temer um mal entendido filosófico eespeculativo, tomar e utilizar o que, no tocante ao Logos, autoresnão cristãos haviam ensinado em sua época ou ainda antes.

Nem sequer é impossível, segundo admitem atualmente algunssem dificuldade, que haja, efetivamente, se valido aqui de um

hino à Sabedoria"

2

 ou de um modelo mandeu.

533

 Porém, a semelhança de termos não implica forçosamente, e especialmente aqui,a semelhança de pensamentos. Quando o evangelista fala do

 Logos  pensa automaticamente em Jesus de Nazaré  encarnado,no Verbo feito carne, e que é nesta vida humana de Jesus, a revelação definitiva de Deus ao mundo: é esta uma ideia absolutamente inconcebível fora do cristianismo, ainda que se empregueo mesmo termo.

Ao afirmar, com respeito ao seu Logos, o que pagãos e judeusafirmavam em relação ao deles, o autor chama a atenção para a

O emprego mencionado mais acima, p. 341 s. do termo Xóyoç, sem outra determinação, entra também em consideração; porém, não constitui uma explicação suficiente. Porque não se trata aí mais do que da pregação da palavra; enquanto que aquio emprego desta expressão é o fruto de uma reflexão teológica amadurecida.

Porex. J. RENDELL HARRIS; cf. acima, p. 336 s.RE1TZENSTEIN-SCHAEDER, op. cit.,p. 306 Ss.,eR.B\JLJWÍANN, Jolianneskommcntar, p.  5 ss., como também o artigo de E. KÀSEMANN citado acima, p. 230, n. I. R.SCHNACKENBURG supõe jazer na base um hino  cristão  ao Logos  que se teriaoriginado na Ásia Menor ("Logoshymnus und joh. Prolog."  Bibl. Ztsc/u:,  NF 1,1957, p. 69 ss).

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346 Oscar Cullinann

novidade inaudita que ele se propõe anunciar; e isto não somenteno prólogo mas em todo o Evangelho. A forma pode ser idêntica,

a terminologia não é modificada; porém, o tema já não é mais omesmo; não é o Logos estóico abstrato, nem o Logos mitológico;mas um  Logos  que se toma homem e que, justamente por estarazão, é o Logos.

Aqui encontramos, pois, um universalismo autenticamentecristão e em nada sincretista. O evangelista não procede à maneirade certos teólogos modernos adeptos da história comparada das

religiões; os quais falam, em primeiro lugar, de uma revelação geralpresente em todas as partes, a aprovam, e acabam por chegar auma revelação cristã especial. Totalmente falso seria interpretarassim o prólogo de João. Se o autor adota afirmações relativas ao

 Logos  tiradas não só do Antigo Testamento como também dohelenismo, ele não quer dizer com isto que os gregos, ao falaremdo Logos, já possuíam já o conhecimento da verdade que este vo

cábulo expressa para o evangelista: isso seria uma forma modernade pensar. Antes, o evangelista sustenta que os gregos falavam do

 Logos sem conhecê-lo, porquanto estes ignoravam o Logos  feitocarne. Porém, de um ponto de vista puramente formal, o que elesensinavam acerca dele era exato. Nisto consiste o universalismodo Evangelho de João: ver a  Cristo  onde os pagãos ensinavamuma verdade; este mesmo Cristo que, num momento determinado

da história, se fez homem.

E pois perfeitamente justificado estabelecer paralelos alicerçadosna história comparada das religiões. Porém, quando se trata de explicar aconcepção joanina de Logos, semelhantes paralelos não parecem deverser empregados à maneira de R. Bultmann, por exemplo. Ou seja, procuramos os temas cristãos e bíblicos do prólogo em seu ponto de partida,na óptica teológica adotada por seu autor no instante da redação; e nãograças a um processo de "desmitologização" pelo qual nós os encontraríamos livrando o prólogo dos elementos mitológicos que o autor teriasimplesmente utilizado por sua própria conta. Dado o caráter douniversalismo joanino temos de dizer que os elementos extracristãos doprólogo não são a fonte em que o autor se inspira; mas, pelo contrário, a

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CRISTOLOGIA DO  NOVO TESTAMENTO 347

prova dele haver tomado conscientemente lemas estrangeiros para dar-llies um tom cristão.

Para compreendermos bem os primeiros versículos do prólogo é preciso sempre ter presente o v. 14 onde se diz que o Logos sefez carne. É verdade que o evangelista ao começar o prólogoremonta para além da criação ao falar do  ser  do  Logos  junto aDeus; porém, já então, pensa na função deste Logos em sua ação.A própria essência do  Logos é   ação, pois é agindo que Deus se

revela; o que quer dizer que mesmo se achamos aqui algumasreflexões sobre o ser  do Logos, feitas à margem, sabe o autor, noentanto, que o Logos possui o ser unicamente em vista da sua ação,e até que, em última análise, o ser do Logos é essencialmente suaação.

Não obstante, estamos aqui na presença de uma dessas raraspassagens do Novo Testamento que tratam do "ser" da Palavra

preexistente. Verdadeiramente descobrimos aqui algo quanto à origem desta ação mediante a qual Deus se revela; e isso tem porobjetivo sufocar imediatamente toda ideia de uma doutrina "duo-teísta", como se o Logos fosse um deus, ao lado do Deus altíssimo.Não se pode dissociar o "Verbo" que Deus pronuncia do próprioDeus; "estava com Deus" (fjv npòç tòv 8eóv). Não se pode poisfalar, comos arianos, de uma criação exnihilo  do Logos; nem com

Orígenes, de uma emanação.

534

 O "Verbo" de Deus é dado, pelocontrário, com o próprio Deus. Tampouco é o Logos um subordinado a Deus, pelo fato de pertencer-lhe. Ele não lhe é nem subordinado, nem justaposto como um segundo ser. Com razão Bultmannsublinha aqui535 que não se pode inverter a frase do v. 1. Não sepode dizer: 0eòç f|v Tipòç  TÒV Xó^ov, e isto por ser o  Logos, opróprio Deus, enquanto Deus fala, enquanto se revela; o Logos é  o

próprio Deus em sua revelação. Neste sentido a terceira frase do

51JCf . R. BULTMANN, Johanneskontitientar,  1941, p. 16, que traz sobre este pontonotáveis esclarecimentos.

535 R. BULTMANN, Johanneskommeittar, ibid.

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.348 Oscar Cullmann

prólogo pode proclamar: íccá 6eòç fjv ô Xóyoç. Não temos o direito de mutilar este texto a fim de suavizar o que tem de taxativo e de

absoluto.

Muitas tentativas deste género foram empreendidas e as há hoje,ainda. Interpreta-se aqui, por exemplo, 6eóç como sefosse9eToç: "O Logosera de natureza divina". Semelhante interpretação - que Bultmann recusatambém em seu Comentário pág. 17 - é insustentável. Se isto fosse o queo autor quisesse dizer teria a sua disposição o adjetivo Geíoç que, aliás, seacha no Novo Testamento (At 17.29; 2 Pe 1.3). Tampouco é possível, com

Orígenes, atenuar a força desta afirmação dizendo que falta o artigo antesde 0eóç, mostrando assim o autor que o  Logos  não é Deus, mas tão-somente de natureza divina, que é uma emanação de Deus.

É, deveras, a opinião do evangellsta aque se expressa aqui, quandochama ao Logos "Deus". Isto é o que a parte final de seu Evangelhomostra quando Tomé, convencido, exclama diante do Ressuscitado:

"Meu Senhor e meu Deus!" (Jo 20.28). Com este último e decisivo"testemunho", fecha-se o círculo: o evangelista retorna ao prólogo.Não obstante, para evitar a qualquer custo o equívoco que

consistiria em não distinguir diferença alguma entre Deus e o Logos,o autor em seu prólogo repete insistindo: "Aquele que estava desde o princípio com Deus". Deste Logos, a respeito de quem acabade afirmar que é Deus, deve, ao mesmo tempo, dizer que estava

com Deus. Não são dois seres, e no entanto, não coincidem pura esimplesmente. Pois, pelo menos em princípio, Deus pode ser imaginado independentemente do ato pelo qual se revela, o que não éo caso para o Logos. Contudo, não podemos esquecer que a Bíbliatem por objeto não a Deus enquanto tal, mas a Deus orientado aomundo em sua revelação.

Devemos deixar este paradoxo subsistir em toda a cristologia.

O Novo Testamento não traz solução, antes se contenta em justapor as duas afirmações: por um lado, o  Logos  era Deus; e poroutro, o Logos  estava com Deus. Aliás, voltamos a encontrar omesmo paradoxo no curso do Evangelho; porém, desta vez a propósito da ideia de "Filho de Deus". Nos é dito, com efeito, por um

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CRISTOLOGI/^ DO NOVO TESTAMENTO 349

lado que "o Pai e o Filho são um" (Jo 10.30), e por outro que "oPai é maior que o Filho" (Jo 14.28).536

Dado que o Logos é  Deus que se revela, que se comunica emsua ação, e dado que o Novo Testamento tem por único objeto estaação, toda especulação abstrata sobre as "naturezas" do Cristo énão só um empenho vão, como também, em suma, uma recusa delevar em conta o fato de que, em virtude da própria natureza do

 Logos, não se pode falar dele senão em referência à ação de Deus/ 137

Sobre o "ser" do Logos não se pode dizer mais do que o que se

encontra no prólogo: no princípio estava com Deus, e ele é Deus,nada mais. Pois o prólogo mesmo passa rapidamente à  ação do

 Logos: "Todas as coisas foram feitas por ele". Deus se revela primeiramente na criação. Tal é o que une estreitamente, no NovoTestamento, a criação e a redenção: em ambos os casos se trata deDeus no ato de revelar-se, de comunicar-se. Assim, é o próprio Logos  quem aparece em carne como mediador humano, e quehavia, já antes, sido o mediador da criação. Precisamente pelo fatodo Evangelho de João atrever-se a ver, em uma simples vidahumana a revelação máxima de Deus, dá evidências de levar radicalmente a sério o fato de ser toda revelação desde o começo umaobra de Deus em Cristo; isto é que no plano da soteriologia não épossível opor a criação à redenção.

Temos notado, muitas vezes, que esta unidade entre a criaçãoe a redenção caracteriza também o paulinismo. Lembramos especialmente a muito antiga confissão de fé binária que se encontraem  1 Co 8.6, devendo, ,nclusive, ser anterior a Paulo. AH iambémCristo é o mediador da criação. E também como tal que ele aparece em Cl 1.16, em Ap 3.14 e em Hb 1.2. A reflexão sobre Cristomediador de toda revelação, mesmo da revelação original, é pois

"''Aqui também estamos inteiramente de acordo com R. BULTMANN,  Johanties-kommentar,  p. 18.

"7 É o que sublinham também, com clareza gratificante, exegetas católicos tais comoJ. DUPONT,  Essais sur la christologie de Saint Jean,  1951, p. 58, e M. E.BOISMARD, Le prologue de Saint Jean 1953, p. 122.

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•350 Oscar Cullmann

anterior a João. Porém, o Evangelho de João, que captou a concepção de Logos  em toda sua profundidade, levou esta reflexão

até suas últimas consequências. Ideias já comuns sobre uma hipós-tase divina lhe facilitaram uma identificação ousada entre a revelação (Xóyoc,) e Jesus. Porém, seu ponto de partida é a convicçãoespecificamente cristã de que a vida terrestre e humana de Jesus éo momento capital, exaustivo da revelação divina. Jesus  vive aPalavra de Deus ao mesmo tempo que a anuncia: ele mesmo é aPalavra de Deus.

É a esta identificação que deve chegar, necessariamente, a vidade Jesus como revelação decisiva de Deus. Assim como a experiência litúrgica do Kyrios fez nascer a fé na divindade de Cristo,assim também, a reflexão teológica sobre a revelação em Jesusleva à convicção de que Jesus Cristo foi Deus desde o começo;Deus enquanto aquele que se revela ao mundo. Se Deus se revelouna vida de Jesus de maneira que a plenitude de sua doxa divina se

fez patente (Jo 1.14 ss.), é preciso que Jesus já tenha sido antes arevelação de Deus aos homens. Então ele é Deus, Deus revelando-se; assim, ele é dado com o próprio Deus desde o princípio.

Vimos que a Epístola aos Hebreus, que, na questão da Palavra de Deus, associa da mesma forma Jesus à criação do mundo, ochama "reflexo" e "imagem" de Deus. Aqui também, a reflexãoconduz a uma definição da divindade de Jesus que, não obstante,

não apaga sua distinção com respeito a Deus.E quando Paulo chama a Jesus de "imagem de Deus", nos

põe na presença de uma definição bem análoga. Ela remete à ideiade Filho do Homem, tal qual a encontramos por exemplo em Fl2.6 ss. Lembremos que neste texto a oposição entre a obediênciade Cristo, imagem preexistente de Deus, e a desobediência de Adão,criado à imagem de Deus, tem uma importância capital. As duas

concepções, a de "Filho do Homem" e a de  Logos  se tocam;porém, a ideia de Filho do Homem mostra mais em que consiste aredenção pelo "homem" Jesus Cristo, enquanto que a de  Logosacentua mais a noção de revelação como tal: a própria doxa divinacuja manifestação estava vinculada, até então, ao lugar de culto de

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• 352 Oscar Cullmann

do Génesis, que narra a criação pela "Palavra", uma reflexão teológica acerca da origem de toda a revelação se apoia sobre esta

certeza. O elemento secundário é a utilização de especulações contemporâneas sobre as hipóstases divinas. K[o entanto, esta utilização não chega a um universalismo sincretista, mas a um universalismo propriamente cristão.

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(^APÍTULO  11

JESUS, O FILHO DE DEUS

Também o título cristológico "Filho de Deus" costuma serexaminado, na dogmática posterior, exclusivamente do ponto tjevista das duas naturezas. "Filho de Deus" qualificaria a naturezadivina de Jesus Cristo; e "Filho do Homem", a humana. Porém, jános é patente que semelhante maneira de ver é só parcialmenteexata, ao menos no que diz respeito ao título de "Filho do Homem"que é acima de tudo (se nos ativermos a Dn 7.13) um título cie

soberania. Inversamente, veremos que, se bem que seja verdacieque o título "Filho de Deus" alude à majestade divina de Jesus e asua unidade última com Deus, subentende, também, como elemento essencial, a obediência de Cristo a seu Pai, sua humildade.

Indiscutivelmente, o título"Filho de Deus" caracteriza de maneira particular e totalmente única a relação entre o Pai e o Filho.É pois com alguma razão que os teólogos da igreja antiga se vala.

ram também deste título em suas discussões cristológicas. Porérndevemos cuidar para não atribuir aos primeiros cristãos, nem sequerao próprio Jesus, a intenção de afirmar, por este título, uma identidade de substância entre o Pai e o Filho. Que o Filho seja geraciopelo Pai e que seja divino são tomados, por certo, em consideração; porém, não no sentido das polemicas posteriores sobre a substância e as naturezas.539

Cabe-nos aqui, também, averiguar o significado que tinha estaexpressão "Filho de Deus", na época do Novo Testamento, para

O que não quer dizer que algumas dessas discussões, em relação com afirmaçoesheréticas, não tenham sido necessárias posteriormente.

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, 354 Oscar Culhnann

 judeus e gentios. Entre estes e aqueles, o termo era corrente. 0 problema da influência do uso judeu e gentil do mesmo, em seu uso

cristão, se esboça de maneira análoga àquela acerca do títuloKyrios.540 Nos esforçaremos por examinar sem ideias preconcebidas se a afirmação de ser Jesus o Filho de Deus se relaciona maiscom a concepção judaica ou com a helenística referente ao Filhode Deus. Mesmo com o risco de ser tomado por um espírito nãocrítico e "conservador", será necessário, também neste caso, nãoexcluir a priori a possibilidade de que os primeiros cristãos, e quemsabe o próprio Jesus, tenham podido dar a este termo um conteúdototalmente novo. Um dogmatismo desta espécie seria cientificamente tão condenável como o dogmatismo "conservador".

1.0 "FILHO DE DEUS" NO ORIENTE E NO HELENISMO

É necessário examinar o emprego do título Filho de Deus nohelenismo, tanto mais pelo fato de R. Bultmann, em sua Teologia

do Novvo Testamento,54'  voltar a tomar, como no caso do títuloKyrios, a tese de W. Bousset e declarar que a aplicação do título"Filho de Deus" ao Jesus terreno é impossível não só na boca domesmo, como também por parte da comunidade palestina. Estetítulo não poderia ter sido conferido a ele senão no cristianismohelenístico e com o sentido que já possuía no mundo helenístico.

R. Bultmann, Theologee des N. T., p. 51, concede somente que acomunidade palestina teria conferido o título de "Filho de Deus" ao Ressuscitado referindo-se ao SI 2. Encontra prova para isso particularmenteem Mc 9.7, pois que o relato da transfiguração, com a voz de Deus que sefaz ouvir, seria na realidade uma transposição retrospectiva da históriada Páscoa (Cf.  abaixo,  p. 247); assim como na antiga confissão de fécitada por Paulo em Rm 1.3 s., onde Jesus é chamado filho de Davisegundo a carne, Filho de Deus com poder segundo o Espírito desde suaressurreição.

Com esta diferença, no entanto, temos que nos perguntar se Jesus atribuiu a si mesmo este título.R. BULTMANN, Theologie des N. T   „  1953, p. 128 ss.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 355

O belo estudo de G. P. Wetter sobre o "Filho de Deus"542 contém uma rica documentação sobre os "filhos  de Deus" no hele

nismo. A origem desta noção tem que ser buscada nas antigas religiões orientais onde principalmente os reis eram considerados comogerados pelos deuses. Esta crença estava particularmente espalhada no Egito, onde os faraós passavam por ser filhos  do deus solRá.543  Ela é  atestada também, porém,  com menor clareza, naBabilónia e na Assíria. A escola de Upsala,544  de acordo com suatendência geral, pensa que a ideia da filiação divina do rei se rela

ciona com as festas de entronização que o Oriente antigo conhecia. Para  a época do Novo Testamento, pode-se pensar tambémnos imperadores romanos  e no título de  divi filius  que lhes eraconferido.545

Porém, no helenismo, este título não é monopólio exclusivode monarcas. Muito pelo contrário, gente de toda classe, a quemse atribuíam forças divinas, era chamada "filho de Deus"; ou recla

mavam para  si  mesmos este título: todos  os  taumaturgos eram"filhos  de Deus", ou, como se dizia também, GEToi âvÔpeç. Porexemplo, Apolônio de Tyana, de quem Filostrato nos relata a vidade  uma forma que, em  determinados momentos, lembra certaspartes do Evangelho; ou ainda Alexandre de Abonouteichos, queconhecemos por Luciano.546 Com esta significação este título eramuito difundido.  Na época  do  Novo Testamento  era  comum

encontrar homens que, em virtude de sua vocação particular ou de

í12 G. P. WETTER, Der  Solm Gottes. Eine Untersttcluwg tiber  den Charakter und dieTendenz  des Johannesevangeliums,  1916. Cf.  também  W. GRUNDMANN,  DieGoaesskindschatt   in der   Geschichte Jesu  und   ihre reíigionsgeschichtlichenVoraussetzitngen, 1938. Entre os trabalhos mais antigos, cf., p. ex., P WENDLAND,

 Die hellenistisch-rômische Kulliir   in  ihren Beziehuingen  zti Judentum  undChristentum,  2a e 3a ed., 1912, p. 123 ss.; H. USENER,  ReligionsgeschichtUche

UiUersuchungen  I ,1 , Das Weilmaclusfest,  2a

 ed., 1911, p. 71 ss.,13Cf. C. J. GADD, Ideas ofDivine Rule in the Ancien East, 1948.í14Cf. acima, p. 43, nota 55.1-15 Cf.  A. DEISSMANN, Licht voni Osten, 4a ed.,  1923, p. 294 s.; E. LOHMEYER,

Christuskult   und  Kaiserkult, 1919.íJÍ'LUCIANO,  Alexandre,  p. 11 ss. Cf.  Também  W. BAUER,  "Das Johannesevan-

gelitan" (Hdb.  z. MT *,), 3a ed., 1933, p. 37.

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•356 Oscar Cttllmann

suas forças sobrenaturais, se apelidavam a si mesmos "filhos deDeus". Este título não tinha, pois, o caráter único e singular que ele

apresenta no Novo Testamento. Pela obra de Orígenes contra Celso(7.9), sabemos que na Síria e na Palestina, se podiam achar pessoasque diziam de si mesmas: "Eu sou Deus, o filho de Deus, o espíritode Deus; eu vos salvo".547 Bultmann sublinha energicamente a analogia entre estes 0£Toi âvôpeç e Jesus "Filho de Deus".

A pretensão destes homens de serem "filhos de Deus" baseia-se unicamente na convicção que tinham de serem dotados de "for

ças divinas". Ademais, no helenismo esta noção está tão vigorosamente arraigada em uma maneira de pensar politeísta que eladificilmente pode ser transplantada para o terreno monoteísta. Estestaumaturgos carecem da consciência de cumprir o plano divino,aquela consciência de uma unidade de vontade com o Deus único,que encontramos em Jesus. Mesmo nas religiões de mistérios ondeo iniciado, o "mista", pode também chegar a ser "filho de Deus",

nos achamos em num nível totalmente distinto do dos evangelhos.O que o mundo helenístico nos dá por "filho de Deus" costuma terum caráter totalmente diferente do que por ele entende o NovoTestamento. Porém, cabe perguntarmos se o monoteísmo do Antigo Testamento já não possui uma noção de Filho de Deus, quesem ser idêntica à concepção cristã, poderia, no entanto, oferecera esta um ponto de partida mais direto.

2. O "FILHO DE DEUS" NO JUDAÍSMO

No Antigo Testamento esta expressão é empregada de trêsmaneiras diferentes: primeiro, o povo de Israel inteiro é chamado"filho de Deus"; em segundo lugar, o rei porta este título; e, finalmente, certos comissionados especiais de Deus, tais como os

anjos e, talvez, também o Messias, são chamados assim. O fato de

Segundo C. H. DODD, The Interpretation ofthe Fourth Gospel,  1953, p. 251, nota1, tratar-se-ia de  cristãos  inspirados e exaltados, de maneira que este trecho nãopoderia ser tomado como referencia.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 357

que o povo todo e seu representante possam ser designados pelomesmo termo nos lembra aquilo que já temos visto a propósito do

Ebed Iahweh ou do Barnascha.Os textos a considerar aqui são: primeiro, aqueles onde o povoé chamado "fi Vho de Deus". Em Ex 4.22 s., Moisés recebe a ordemde dizer ao Faraó: "Israel é meu filho, meu primogénito". Em Oséias11.1  Iahweh  diz: "E do Egito chamei o meu filho". Em Is 1.2 e30.1,  os israelitas em conjunto são chamados "filhos", e em Jr3.22 se lhes qualifica de "filhos rebeldes". Em Is 63.16 os israelitas

dizem a Deus: "Tu és nosso Pai", e dão a esta palavra uma acepçãoque implica que Israel é "filho de Deus" em um sentido muitoespecial. Poder-se-ia, na mesma ordem de ideias, citar aindaoutras passagens como Jr 31.20; Is 45.11; SI 82.6; Ml 1.6.548

Em todos estes textos o título "filho de Deus" expressa, aomesmo tempo, a ideia de Deus eleger este povo com vistas a umamissão particular e a deste povo dever-lhe obediência absoluta.

Isto corresponde exatamente à maneira como Deus chama"filho" ao rei, representante do povo escolhido: "Eu serei para eleum pai eele será para mim um filho" (2 Sm 7.14); ou: "Tu és meufilho; hoje te gerei" (SI 2.7: passagem do Salmo real tão amiúdecitado pelos cristãos); ou ainda: "Ele (o rei) me invocará: Tu ésmeu pai, meu Deus e a rocha da minha salvação" (SI 89.27). O reié também "filho" como eleito e mandatário de Deus. Não necessi

tamos averiguar aqui em que medida as noções orientais, forâneas,acerca de uma geração divina puderam, por outro lado, influir nesta concepção israelita de rei.549 Surge, em especial, dos textos citados, que ao rei se chama "filho de Deus" pela mesma razão que aopovo. Se o rei é o filho de Deus, é por sê-lo o povo. É aí onde osanjos aparecem como "filhos de Deus" - sem dúvida trata-se parci-

5JS O israelita de coraçãoretoé chamado "filho de Deus''em Eclo. 4.10; SI. de Salomão13.9; o povo inteiro em Salmos de Salomão 17.27; 18.4.

in  Tratar-se-ia, sem dúvida, essencialmente, do ritual real da cerimónia de entronização.Cf. acima, p. 354s.,G. VON RAD, "Dasjudaísche Kõnigsritital"  (ThLZ, 72, 1947,p. 211 ss) eA. AIST., Kleine Scltriften zur GescMchte Israels, II p. 133 s., sublinhama relação entre o ritual real e a adoção do rei como "filho de Deus".

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.358 Oscar Cullmaim

almente de ideias míticas: Cf. os "filhos dos deuses" de Gn 6.2 - aideia dos autores do Antigo Testamento é sempre a de que são

mandatários de Deus.550

O Messias também leva este título? Esta questão foi tratadacom frequência sem que, até agora, tenha sido perfeitamente esclarecida. A dificuldade provém do fato de não conhecermos nenhumtexto antigo em que, incontestavelmente, o Messias seja chamado"filho de Deus". No livro etíope de Enoque (105.2), trata-se provavelmente de uma adição posterior.551 As passagens do Apocalipsede Esdras (4 Esdras 7.28 s.; 13.32, 37, 52; 14.9) quase não sãolevados em consideração pois têm em vista, sem dúvida, o rcaíç(no sentido àtEbedlahweh)  e não se referem diretamente àfiliaçãodivina.552  Compreende-se, pois, que G. Dalman e W. Bousset551

contestem formalmente que o título "filho de Deus" tenha sidouma designação judaica do Messias e que W. Michaelis554  vejaalgo totalmente novo na nomeação "Filho de Deus" conferida aJesus, no Novo Testamento.

Ainda que seja verdade que não temos referências concludentes parece, no entanto, difícil admitir que este atributo real nãotenha sido algumas vezes conferido ao Messias,555 tanto mais pelofato de que a esperança messiânica dos judeus estava estreitamente

siIIJó 1.6;  2.1; 38.7; SI 29.1; 89.7; Dn 3.25, 28. Cf. F. STIER, Gott itndseine Engel im Alten Testament, 1932.

5'lCf.  G. DALMAN, Die Worte Jesu,  I, 2a ed., 1930, p. 221; isto é confirmado pelaausência deste trecho num fragmento grego de Enoque (cf. C. BONNER, The LastCliapters of Enoch in Greek, 1937).

532 B. VIOLET, Die Apokalypsen des Esraunddes Baruch in deutscher Gesiati, 1924,ad loc.

S"G. DALMAN, op. cit., p. 223; W. BOUSSET, Kyrios Chrisws,  2aed., 1921, p. 53 s.Ver também E. HUNTRESS,  "Son ofGod in Jewish Writings prior to the ChrisúanEra" (JBL, 54, 1935, p. 117 ss).

554 W. MICHAELIS, Ztír Eiigelchristologie im Urchristentitm, 1942, p. 10 ss.555

 R. BULTMANN, Theologie des N. T., 1953, p. 51, admite também esta possibilidade,  como também J. BIENECK,  "Sohn Gottes ais Cliristusbezeiclmung derSynoptiker"   (ATIiANT,  21), Í9551 p. 25. Porém, este último, ,em dúvida equivocadamente, não pensa que esta questão seja importante. C. H. DODD, The Interpretaúonofthe Fourth Gospel, 1952, p. 253, considera esta hipótese, se não certa, ao menosprovável.

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•360 Oscar Cullmann

quando esta tese se revele, diante do exame, ser insustentável, haveremos de perguntar se, todavia, não foi a comunidade primitiva

quem considerou a Jesus como o Filho de Deus, por influência doAntigo Testamento, sem que o próprio Jesus houvesse atribuído asi mesmo este nome. Detendo-nos no método da história da forma, investigaremos se no cristianismo primitivo "Filho de Deus"era um título atribuído correntemente ao Cristo. Examinaremos,ao mesmo tempo, se o uso deste termo no Antigo Testamento e no

 judaísmo basta para explicar a convicção dos primeiros cristãos de

que Jesus era o Filho de Deus, sem fazer intervir a consciência dopróprio Jesus de ser este Filho.Se fossemos, ao fim, levados a atribuir a Jesus esta consciên

cia, haveríamos, então, que determinai* em que sentido ele entendia esse título. Tudo que se pode dizer no momento é que, segundoo testemunho unânime da tradição evangélica, o título "Filho deDeus", aplicado a Jesus, deve expressar o que há de único, de incom

parável, em sua relação com o Pai.

W. Grundmanníí<! sustentou a tese de que Jesus havia se considerado Filho de Deus no sentido lato e geral, que faz de todos nós "filhos deDeus."  Só posteriormente esta filiação geral teria se tornado a filiaçãoparticular e única. Neste caso, o título "filho de Deus", aplicado a Jesus,não significaria, para o problema cristológico propriamente dito, nada.Tal simplificação nãoé adequada para resolver o problema. Ela baseia-se

inteiramente em uma hipótese que, aliás, não pode se apoiar em nenhumtexto; pois já os sinópticos, começando por Marcos, empregam o título"Filho de Deus", seja ou não na boca de Jesus, de uma maneira tal que,nem com a melhor boa vontade do mundo, seja possível crer que tenhampensado em uma filiação geral e comum. Também Paulo, que em Gl 4.4ss. e Rm 8.14 ss., fala de nossa filiação, a deduz do caráter único da deJesus. Do ponto de vista teológico, a relação entre a nossa filiação e a deJesus, é, pois, concebida por Paulo no sentido inverso da que supõe

Grundmann.

sCf.seu livro citado mais acima, p. 355, nota 542. Segundo uma publicação maisrecente: "Sohn Gottes, ein Diskussionsbeitrag . Z AfH', 47, 1956, p. 113 ss., parece,no entanto, haver seriamente corrigido sua tese.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 361

Começaremos por examinar a questão da origem helenísticado emprego deste título, por esta tese gozar hoje de especial aco

lhimento graças à teoria que R. Bultmann defende em sunTheologiedesNeuen Testaments.559 Tentando definir o conteúdo do conceitohelenístico de "filho de Deus" já temos observado que este malpode separar-se do meio politeísta da antiguidade pagã e que aideia de uma simples posse de forças divinas, característicadaqueles Beíoi ÔcvSpeç, aqueles taumaturgos de quem possuímosainda algumas biografias, não é a da tradição evangélica, quandoesta apresenta a Jesus como o Filho de Deus. As principais passagens sinópticas, nas quais Jesus aparece como o Filho de Deus,não o mostram, precisamente, com o aspecto de um taumaturgoou de um salvador semelhante a muitos outros: muito pelo contrário,  eles o distinguem radicalmente de todos os demais homenspara os quais ele se sabia enviado, no sentido que eles lhe atribuem a convicção de ter de cumprir sua obra terrena em concordância perfeita e total com a vontade do Pai. Esta separação, este afastamento, não significa em primeiro lugar para Jesus a posse de umpoder sobrenatural, mas a  obediência absoluta  no cumprimentode sua missão divina. É isto que os Sinópticos enfatizam. No relato do batismo, onde se ouve a voz celestial (Mc 1.11 par.), o títulode "Filho"-já o vimos, ao examinar o de Ebed Iahweh - é  associado ao começo dos cânticos do Servo Sofredor. É até provávelque o texto hebraico de Isaías já suponha a ideia de "Filho". Volta

remos a isto. Parece-nos evidente que neste relato, precisamente,os Sinópticos insistiram no elo entre a ideia de "Filho" e a de Ebed;e, portanto, na ideia de ser a filiação de Jesus regida pela afirmação de sua obediência. Porém, o que separa ainda mais radicalmente a Jesus de todos os "filhos de Deus" helenísticos é a história da tentação, tão estreitamente ligada a seu batismo.560  Foi justamente por ter sido chamado "Filho de Deus" no momento de

seu batismo que Jesus foi submetido à tentação e, coisa caracte-

JCf. acima p. 354 s. e 359.>É   certo que os dois textos já formavam uma unidade na tradição oral (contra R.BULTMANN, Geschichte d. Sytiopt. Tradition, 2a ed., 1931, p. 270).

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362 Oscar Cuílinann

rística, segundo Mateus as primeiras tentações começam pela frase: "Se tu és o Filho de Deus..."561  (Mt43, 6; cf. Lc 4.3,9). Temos

visto que o diabo busca impor a Jesus um papel de Messias político que deve preservá-lo do sofrimento. Observemos agora que paraseduzi-lo utiliza a convicção que Jesus tem de ser o Filho de Deus,convicção que não é simplesmente um elemento da consciênciamessiânica.562  É muito significativo que Jesus recuse como diabólica esta concepção "helenística" de filho de Deus que o diaboqueria sugerir-lhe, a de um milagreiro. O que o diabo ataca essen

cialmente nestas duas primeiras tentações, não é a confiança deJesus em que o poder milagroso de Deus se manifestasse em seufavor por ser seu Filho; o que tenta provocar é a desobediência doFilho para com o Pai, sugerindo-lhe milagres estranhos a sua missão específica de Filho.

Assim J. Bieneck chega, em seu estudo das passagenssinópticas relativas ao Filho de Deus, à conclusão de que estestextos traçam uma "imagem tão pouco grega quanto possível" doFilho de Deus. A única passagem na qual Jesus é chamado "Filhode Deus", em um sentido concordante com o sentido helenístico,seria o da versão dada por Mateus do episódio de Jesus caminhando sobre o mar onde os discípulos exclamam: "Tu és verdadeiramente o filho de Deus" (Mt 14.33). Sem mencionar o fato de queMarcos dá aqui uma conclusão muito distinta, o próprio Evangelho de Mateus não dá a este testemunho maior importância.563

J. BIENECK,  Solm Goítes ais Ckrístusbezeicimung der Synoptiker,  1951, p. 64,nota 18, explica corretamente a ausência no escrito de Mateus da fórmula "se tu ésFilho de Deus", no começo da terceira tentação, pelo fato de que ali o diabo exigealgo muito diferente do que nos dois casos precedentes: um ato de submissão e nãoum ato de poder.Tampouco há mais coincidência automática entre a consciência de ser Filho e a deser Messias na questão do Sumo Sacerdote (Mc 14:61), onde os dois títulos são

 justapostos, ou nas burlas dos que passavam ao pé da cruz (Mc 15.29 ss. par.).Uma dificuldade se apresenta a este respeito: segundo o plano do Evangelho deMateus, com efeito, é somente a partir de Mt 16.16 que os discípulos reconhecerama Jesus; parece, pois, ilógico que este reconhecimento já seja antecipado em Mt14.33.  J. BIENECK,  op. cit.,  p. 56, tenta explicá-lo admitindo que se trata de umreconhecimento ainda imperfeito: explicação que pode ser levada em consideração,porém, que nos parece um pouco rebuscada.

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CRISTOLOGIA DO NOVO  TESTAMENTO 363

A sequência do testemunho dos Sinópticos é clara: Jesus é oFilho de Deus não como taumaturgo, mas como aquele que realiza

sua missão em obediência e, mais particularmente, como aqueleque aceita o sofrimento. Voltaremos a estas passagens; porém, jáaqui temos de chamar a atenção para o fato de que na confissão dePedro (Mt 16.16), tanto como no testemunho do ccnturião ao péda cruz (Mc 15.39),564 a dignidade do Filho de Deus está associada a seu sofrimento; e que no relato da transfiguração (Mc 9.7,par.), ela é proclamada como a confirmação de sua missão divina e

da unidade perfeita com o Pai na execução de sua missão. Estaunião estreita se expressa, também, na palavra tão controvertidade Mt 11.27 relativa ao Filho que "só o Pai conhece".565 Esta afirmação tem, é verdade, paralelos na piedade helenística dos mistérios;566 porém, nos Evangelhos Sinópticos guarda conexão com aideia de que a relação de Jesus com seu Pai é seu segredo, e quepara conhecer este segredo deve-se possuir um conhecimento

sobrenatural, o qual só pode ser dado a um homem, que lhe vemde fora: quer seja do Pai, como em Pedro (Mt 16.17), quer seja dodiabo, como na "confissão" dos endemoninhados (Mc 3.11; 5.7).

A tese da origem helenística do título "Filho de Deus" atribuí

do a Jesus não pode, então, ser sustentada em relação aos Sinópticos; e a este respeito, ao menos, não temos razões para duvidar a

 priori da autenticidade de algumas declarações de Jesus nas quaisele se auto designa "Filho". Seria possível, no entanto, como dissemos, que fosse a comunidade palestina primitiva a que houvesse

lj A passagem paralela de Mt 27.54, que não consideramos ser a versão original, emoposição a J. BIENECK, op. cit.,p.  55 (que segue sobre este ponto a SCHALATTERe ZAHN) nos parece antes, próxima a Mateus  14.33.

'5 Sobre a explicação deste logion cf. abaixo, p. 373 ss."W. BOUSSET, Kyrios Christos, 2a. Ed., 1921, p. 48 s., cita, entre outras, uma ora

ção a Hermes, do papiro mágico de Londres 122,50: "Eu te conheço, Hermes, e tume conheces; eu sou teu, e tu és meu".

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•364 Oscar Cullmaitn

posto este título em Sua boca; pois "Filho de Deus" é, com efeito,um dos nomes pelos quais os primeiros cristãos expressaram sua

fé em Jesus. Veremos, com efeito, que existiu uma breve confissãode fé: "Jesus é o Filho de Deus". No Evangelho de João e na Epístola aos Hebreus, "Filho de Deus" é uma das concepções cristo-lógicas fundamentais. Paulo a emprega igualmente, embora commuito menor frequência que o título  Kyrios.  Já vimos que osSinópticos o utilizam também, e não somente na boca de Jesus.Marcos, sobretudo, parece dar-lhe particular importância, já que

segundo antigas leituras,567

  intitula sua obra "Evangelho de JesusCristo, o Filho de Deus". A situação não é pois a mesma para otítulo "Filho do homem" e para o de "Servo de Deus". Quanto asaber se Jesus havia atribuído a si mesmo o título de "Filho doHomem", e o papel do "Servo de Deus" sofredor pudemos responder de maneira afirmativa, apoiando-nos no fato destes títulosnão haverem influenciado no surgimento da fé em Jesus, por parte

da igreja nascente; e no fato de que os Sinópticos só se servem daexpressão "Filho do Homem" quando Jesus fala de si mesmo, masnunca quando terceiros falam dEle. Em troca, a fé em Jesus "Filhode Deus" é uma das crenças cristológicas da igreja primitiva, jáque este título não se encontra somente nas palavras de Jesus, masque é frequente nos primeiros autores cristãos, quando estes delefalam.

Por conseguinte, seria possível, em princípio, que a comunidade primitiva houvesse posto posteriormente este título na bocade Jesus. Contudo, temos de observar que, segundo os Sinópticos,unicamente em casos excepcionais e por revelação sobrenaturalele foi, durante sua vida, reconhecido como "Filho de Deus", porPedro a quem não são "a carne nem o sangue" que o revelam (Mt16.17);  pelo diabo (Mt 4.3, 6); pelos demónios (Mc 3.11; 5.7).

Nos demais casos ou bem é a voz celestial que o chama "Filho"(batismo, transfiguração), ou bem, excepcionalmente, é o próprio

Cf. abaixo, p. 384, nota 605.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 365

Jesus quem assim se autonomeia.568  Os Sinópticos recordariamque o reconhecimento de Jesus como "Filho de Deus" remontava

ao próprio Jesus?569

 Tentaremos, na continuação, responder a estapergunta.Uma outra consideração, em compensação, nos parece deci

siva: tanto pelas crenças do Antigo Testamento como pelas do judaísmo, a igreja nascente não tinha nenhuma razão aparente parachamar a Jesus "Filho de Deus". Não é impossível, certamente,que o Messias judaico tenha, às vezes, recebido este nome em

conexão com a ideia de sua realeza. Porém, a ausência total de umtexto que apoie esta hipótese prova que, ao menos, não se trata deum atributo essencial do Messias. Ademais, no próprio Novo Testamento, e mesmo na questão formulada pelo sumo sacerdote aJesus, o título Filho de Deus não deriva nunca da vocação especificamente messiânica de Jesus.

É verdade que segundo Mc 14.61 o sumo sacerdote pergunta: "'Estu o Messias, o Filho do Deus bendito?" Segundo Mateus 26.63 sua pergunta é semelhante: "Eu te conjuro, pelo Deus vivo, que nos diga se és oMessias, o Filho de Deus". É possível que tenham sido os evangelistas,para quem Jesus era ao mesmo tempo  (embora de dois pontos de vistadiferentes) Messias e Filho de Deus, os que posteriormente estabeleceram esta associação, porém, certamente, sem fazer derivar a segundadignidade da primeira. É possível que Lucas (22.67) siga uma melhor

tradição, ao separar a questão relativa ao Messias da concernente aoFilho de Deus, situando-as no interrogatório em dois momentos distintos.

Unicamente na versão de Mateus, a confissão de Pedro une oMessias ao Filho de Deus: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo"(Mt 16.16). Marcos e Lucas falam só do Messias (Mc 8.29; Lc9.18). Temos aí duas tradições diferentes que se referem, prova-

sMc 14.61 e Mt 27.43 não devem ser levados em consideração, pois nem o sumosacerdote, nem os zombadores ao pé da cruz, criam na filiação de Jesus.

aO.  BAUERNFEIND,  Die  Worte der Dãmonen im Markusevangelium,  1927, p. 78ss.,  faz notar que a menção do testemunho dos demónios não é compatível com ateoria de WREDE sobre o "segredo messiânico".

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366 Oscar  Cullmeutn

velmente, a dois acontecimentos históricos distintos, aludindo umaao Messias e a outra ao Filho de Deus. A primeira se encontra nos

relatos de Marcos e de Lucas. Mateus combinou as duas. A resposta de Jesus e a declaração acerca da igreja fazem parte somenteda segunda tradição. J. Bieneck570  mostra, com razão, que as palavras (v. 17): "Não foi carne nem sangue quem te revelou, mas meuPai que está nos céus" (palavras que, com as afirmações famosassobre a pedra da igreja e o poder de ligar e desligar, não se encontram senão em Mateus) se relacionam à confissão de fé no Filho

de Deus e não à identificação de Jesus com o Messias. Marcos eLucas, depois que Pedro confessa sua fé somente no Messias, nãomencionam a resposta de Jesus acerca da inspiração divina da confissão de Pedro. Mas, ainda estudando a atitude de Jesus relativaao título de messias571 vimos que, segundo a versão de Marcos,Jesus não tinha na verdade nenhuma razão nesse momento paraconsiderar a Pedro como inspirado por Deus, já que ele se equivo

cou sobre a dignidade messiânica e teve que ser repreendido severamente: "Para trás de mim, Satanás!"Avancemos um passo a mais: J. Bieneck teve razão em relacio

nar a palavra de Jesus; "Tu és bem-aventurado, Simão...", assimcomo a frase relativa à revelação direta de Deus (Mt 16.17), a umsó elemento da confissão de Pedro: o que ele diz acerca do "Filhode Deus". Iremos ainda mais longe nesta linha, retomando nossa

sugestão de que o relato de Mt 16.17-19 pertencia primitivamentea outro quadro histórico,572 pensamos que Jesus responde aqui a

°Op.  cit., p. 50, nota 15'Cf . acima, p. 161 s.!2Cf. O. CULLMANN,  Saiu! Pierre, disciple, apôtre, martyr,  1952, p. 154 ss., e

nossa contribuição aos Mélanges T. W. Manson, que aparecem sob o título de; "Pedro,instrumento do diabo e instrumento de Deus; o lugar de Mt 16.16-19 na tradiçãoprimitiva". O fato de nos atrevermos a considerar estas palavras como autênticasnos valeu, como era de se prever, muitas "repreensões". Porém, nossa tese, a saber,o ensaio visando incorporar em outro lugar da vida de Jesus o segmento da tradiçãorelatada porNlt 16.17-19 (e que na origem não tem nada que ver com o quadro deCesaréia de Filipe, Mc 8.27 ss.), quase não foi discutido por haver excessiva preocupação pela questão da autenticidade.

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CRISTOLOGI A DO NOVO TESTAMENTO 367

uma outra confissão de Pedro totalmente diferente, que tem umparalelo em Jo 6.69, e onde Pedro teria dito somente: "Tu és o

Filho do Deus vivo", ao que Jesus teria respondido declarando-obem-aventurado porque só Deus podia revelar-lhe  isto, já que só oPai conhece ao Filho (Mt 11.27).

Estaríamos até dispostos a crer que é somente no segmento da tradição referida por Mt 16.16-19 que se trata verdadeiramente de uma "confissão de Pedro". O ponto de Mc 8.27 ss. é, com efeito, muito dilcrenlc,

 já que não se trata aí em nada de uma confissão de Pedro mas de uiva

repreensão que lhe é dirigida por causa de sua faixa noção acerca do Messias.  Mateus reuniu aqui, como faz com frequência, duas perícopesentre as quais, de certo ponto de vista teológico, viu uma relação.

É de capital importância o fato de que os Sinópticos distinguem cuidadosamente os títulos "Filho de Deus" e "Messias". Se defato a igreja primitiva não fez derivar a dignidade de Filho de Deus

da "messianidade" que atribuía a Jesus, então não se pode ver oque é que pôde levá-la a afirmar, acerca de seu próprio chefe, quepretendia ser "Filho de Deus". A explicação que se impõe é que opróprio Jesus se autodesignou com este título.

W. G. Kummel, "Das Gleichnis von den bõsen Weingãrtnern", ("Auxsources de la tradition chrétienne, Mélanges M. Goguel, 1950, p. 120 ss.),acredita que deve negar a Jesus a paternidade desta parábola, principal

mente por causa do título de "Filho" que aí  se acha, mas não dá explicaçãosatisfatória da aparição deste título na igreja nascente. Também reconheceque para os judeus, a noção de Filho de Deus não depende da noção deMessias. Porém, não basta ver, como ele o faz, a origem da afirmação dafiliação divina de Jesus na utilização que os primeiros cristãos faziam do SI2.7.573 Pois ficaria ainda por explicar o que os levou a utilizá-lo assim.

Também é significativo queW. BousseteR. Bultmann tenhamse sentido obrigados a recorrer às biografias helenísticas de todasorte de taumaturgos para explicar que o título "Filho de Deus"

Op.  cit., p.  .131 ,eguindo C. H, DODD.

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. 36ÍÍ Oscar Cullinann

tenha sido atribuído ao Jesus terreno, e, portanto, não vendo eles apossibilidade de situar a origem deste título na primeira igreja

palestina. W. Grundmaiin, que tropeça no escândalo de um Jesusque se toma a si mesmo por Filho único de Deus crê, no entanto,que se deve atribuir o emprego deste título ao próprio Jesus,porém, adotando a tese, um tanto ingénua, segundo a qual paraJesus o título não teria nada de especificamente cristológico, masque deveria ser entendida num sentido geral de "criança de Deus".

* * *

Em virtude da importância e dificuldade do problema, foinecessário se fazer um desvio antes de se poder precisar em quesentido Jesus se considerou como o "Filho de Deus". Já apontamos que Jesus, sem chegar a recusá-lo diretamente, ao menos,evitou conscientemente o título de "Messias"; em troca, não vaci

lou em se aplicar o de Filho de Deus. No entanto, raras vezes oemprega; e não podemos considerá-lo como uma designação à queJesus recorre correntemente como foi o caso do título "Filho doHomem". E, no entanto, a convicção de ser o "Filho de Deus",num sentido totalmente único e especial, há de ter sido um elemento essencial da consciência que Jesus tinha de si mesmo. Ainda neste caso a tese de W. Wrede não nos parece satisfatória. Nãopodemos falar, é certo, de um "segredo do Filho" como o fizemosdo "segredo messiânico". Porém, se nos referimos a Jesus mesmo,a explicação, no entanto, tem que ser buscada na mesma direçãoque a indicada para o "segredo messiânico": Jesus prefere, em geral,o título "Filho do Homem" ao de "Filho de Deus" por temor deque o título "Filho de Deus" pudesse levar o povo a só considerá-lo sob um dos dois aspectos que este título supõe: a majestadedivina sem o outro a obediência da humildade

Junte-se a isso outra razão. O título de Filho de Deus efetiva-mente contém também uma afirmação de soberania, de dignidadedivina excepcional. Porém, ela pertence ao mais íntimo da consciência de Jesus, em maior grau que a afirmação de soberania implí-

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 369

cita no título Filho do Homem ou no de Messias: com efeito, eladiz respeito à constante certeza de uma congruência perfeita entresua vontade e a do Pai, e a alegria de saber-se cabalmente conhecido pelo Pai. Temos aqui muito mais que a mera consciência profética de um homem que se sabe um instrumento de Deus; e maisque a "obrigação" experimentada pelo apóstolo quando exclama:"Ai de mim se não anuncio o Evangelho!" (1 Co 9.16). Deus agiunão somente por ele mas com ele. Pode assim reivindicar o direitode perdoar pecados, o qual lhe acarreta, da parte dos escribas, aacusação de blasfémia por igualar-se, dessa maneira, consciente

mente a Deus: "Quem pode perdoar os pecados senão só Deus?"(Mc 2.7). Está claro que executa, também, o plano de Deus naqualidade de profeta, de apóstolo. Porém, em tudo isso sente-seum com o Pai. Esta unidade é um segredo de Jesus: seu segredomais íntimo. Assim também se explica o fato que, como o costume que ele tem de retirar-se a um lugar deserto para orar (Mc1.35),574 Jesus, segundo os sinópticos só muito raramente fala de

si mesmo como o "Filho". E quando o faz, em geral, não é paraproclamar este segredo que ultrapassa toda inteligência humana,mas tão-somente para deixá-lo ser adivinhado. Pois para o entendimento humano comum, semelhante maneira de entender-se comoo "Filho de Deus" era incompreensível e devia ser interpretada,mesmo na antiguidade, como sinal de exaltação e até de alienaçãopsíquica. Se os taumaturgos do mundo helenístico podiam, sem

surpreender demasiadamente, se dizer abertamente "filhos de Deus",é por darem a este título, que compartilhavam com muitos outros,um conteúdo muito distinto. Porém, o caso de Jesus é totalmenteoutro; daí sua reserva, reserva que nos proíbe, a priori,  classificá-lo entre os "casos" psiquiátricos bem conhecidos e que foram considerados análogos.

Nas poucas passagens sinópticas - falaremos mais adiante do

Evangelho de João- onde Jesus fala de si mesmo como "Filho dd Deus"ou simplesmente "Filho", aparecem sempre estes dois aspectos: por

Este paralelo mostra que a teoria de WREDE, para explicar a discrição de Jesus, é inútil.

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370 Oscar Cullmarm

um lado, a obediência filial ao plano de Deus, por outro, a experiência contínua, desde seu batismo, de manter com Deus uma rela

ção essencialmente diferentes da dos demais homens.Se Jesus recorre, para designar esta experiência, à expressão"Filho de Deus" não é - sabemos agora - porque este título satisfazia a ideia judaica de Messias, é antes, mas também não unicamente, em razão de como se expressa o Antigo Testamento acercado "Filho de Deus". Este título, já o temos visto, é ostentado pelopovo de Israel e seu rei, na qualidade de instrumentos escolhidospara executar o plano divino de salvação. Se a consciência de serFilho de Deus se expressa em Jesus pela  obediência,  a relaçãocom esta concepção bíblica é evidente. Porém, como explicação,isto não basta. Em Jesus, se agrega algo novo, próprio de sua pessoa: esta experiência íntima que o acompanha constantemente emsua obediência, de uma unidade integral entre sua vontade e a doPai. Agora, sobre este ponto, o "Filho de Deus" do Antigo Testamento não nos oferece paralelo algum.

Porém, o fato de que Jesus, ao empregar o nome de "Filho",retome um termo bíblico que pode designar ao povo de Israelinteiro, nos permite estabelecer uma conexão entre este título e osoutros que expressam a consciência que Jesus tinha de si mesmo:como nos casos de "Filho do Homem" e EbedIahweh,  a ideia desubstituição, que é o princípio de toda história da salvação,575  estátambém compreendida no título "Filho de Deus".

Esta aproximação entre os títulos "Filho de Deus" e "Servode Deus" é tanto mais importante quanto pelo fato de que, na vidade Jesus, o batismo constitui o ponto de partida dessa sua consciência de ter de cumprir a missão do Ebede,  ao mesmo tempo, deser o Filho de Deus de uma maneira única. É verdade que o começo dos cânticos do Servo (Is 42.1) que ressoa dos céus no momento do batismo de Jesus, não contém em hebraico a palavra ben,

"filho". Porém, se tem observado acertadamente que a expressãoempregada em seu lugar, bechiri, "meu bem-amado", àyaKrycóc,,

Cf. O. CULLMANN, Christ et le Temps, 1947, p. 81 ss.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 371

supõe a ideia de filiação e ainda a ideia de que o filho em questãoé um filho único.576 Daí  vem, talvez, que os LXX não traduzam

Ebed  por  ÔOÍJXOÇ mas por ícaíç, palavra que significa  ao mesmotempo servo  e  filho.577 De todas as maneiras a voz celestial  fazrecair o acento tanto sobre "tu és meu filho único", como sobre "tudeves assumir o papel de Ebed Iahweh". Esta relação com o temado Servo Sofredor mostra que junto à soberania  a obediência é,para os  Sinópticos,  um  elemento constitutivo  da  ideia  de Filhoúnico de Deus.578

O batismo de Jesus, com a revelação que o acompanha, iniciao Evangelho de Marcos tanto como o Evangelho  de João. Abrecaminho à compreensão de toda a vida de Jesus e também a toda acristologia pois, nesse momento, Deus revelou a Jesus, simultaneamente, quem Jesus era e  qual  a sua missão;  e,  desde então, aconsciência de sua perfeita unidade com o Pai e do dever que oespera não o abandonará nunca. O relato da tentação o mostra em

seguida: "Se tu és o Filho de Deus ...", diz o diabo; porém, Jesusresiste ao saber que, precisamente porque é  o Filho de Deus, nãopode ser nem um taumaturgo,  à  maneira dos  "filhos  de Deus"helenísticos,579  nem um soberano do mundo, à maneira do Messias político. Justamente por ser o "Filho", não pode contar com opoder milagroso de Deus, a menos que Lhe obedeça em sua missão e não se jogue do alto do Templo. Entendida desta maneira,

a tentação de Jesus, Filho de Deus, corre paralela com a de Adão.É o mesmo paralelo antitético que, segundo a explicação expostaacima, jaz por detrás de Filipenses 2.6 ss., onde a semelhança deJesus com Deus não o leva a "roubar" a igualdade com Deus, comoAdão quis fazer;  mas sim à obediência, até a cruz. O sentido do

576

Cf. G. SCHRENK, em ThWbNT, II, p. 738; W. BAUER,  Wõrterbucli, 4a ed.,  1952,p.  10 s.577É o que indica também L. CERFAUX, Le Christ datis la Théologie de Saint Paul,

1951, p.  340.5™ J. BIENECK,  op. cit., tem o mérito de haver posto em evidência este fato.57!>Cf. G. DELLING,  "Das Verstãndnis  des  Wunders im N.T."  (2, sy jf . Th. 1956,

p.  265  ss.).

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relato da tentação de Jesus é, pois, que para ele, ser Filho de Deussignifica estar constantemente submetido à vontade de seu Pai.

Igualmente, a consciência de sua unidade íntima com o Pai oacompanhará sem cessar desde o momento de seu batismo. O fatode que a voz que se dirige a ele no momento da transfiguração580

reproduza em parte a voz celestial que ele ouviu então, não é certamente devido ao acaso. Precisamente é, naqueles instantes desua vida em que os limites entre o céu e a terra desaparecem porum momento para Jesus, que se ouve chamá-lo "Filho de Deus".

Porém, mesmo à parte esses momentos, tem ele permanente consciência de ser um com o Pai.581 Sabe, assim, que só um conhecimento sobrenatural pode revelar a outros - seja Pedro, seja aosdemónios - a natureza única de sua filiação.

Não é certamente por acaso que, de acordo com os Sinópticos, osdemónios empreguem, junto ao título "Filho de Deus", somente o de "Santo de Deus" (Mc  1.24).  Este nome se aproxima, com efeito, muito ao de

Não há nenhuma razão para considerar este relato como uma cena de aparição doRessuscitado projetada retrospectivamente à vida de Jesus, como o querem J.WELLHAUSEN,  Das Evãiigeiuim Marci,  1909, p. 71 e R. BULTMANN,Geschichie d. synopt. Tradition,  2a  ed, 1931, p. 278. A. HARNACK,  "DieVerklãritngsgeschichte Jesu" (S. B. de preitss, Ak. D. Wiss., 1922, p. 76 ss.), assimcomo E. MEYER,  Ursprung undAtifãnge des Cltristentuins,  I, 1921, p. 152, ss.,consideram, pelo contrário, o relato da transfiguração como uma tradição antiga e

admitem que este mesmo fato da vida terrestre de Jesus constitui a razão da visãoque Pedro teve depois da morte do Senhor. E. LOHMEYER,  "Die Verklãrung

 Jesu nach dem Markusevangeliitm" (ZNTW   21, 1922, p. 185 ss.) contesta igualmente que este relato da transfiguração seja derivado de uma aparição do Ressuscitado; no entanto, não considera a transfiguração como histórica, senão que atribui sua origem a concepções judaicas. O que faz também H. RIESENFELD emseu detalhado estudo: Jesus Transfigure,  1947, onde remete, antes de tudo, à festa

 judaica dos tabernáculos.Mesmo quando da última tentação no Getsemâni, esta consciência não o abandona.

Deve, uma vez mais, dar a medida de sua obediência filial. É somente no instanteem que a morte-para ele como para Paulo o "último inimigo"-o alcança é que elegritará: "Deus meu, Deus meu por que me abandonastes?" Porém, mesmo este gritonão é verdadeiramente compreensível senão a partir de sua consciência de ser oFilho de Deus. Cf. a este respeito O. CULLMANN,  Immortalité de  l'âme  ouréssurection des morts?,  1956.

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CRISTOLOCJIA DO NOVO TESTAMENTO 373

Filho de Deus,ÍSÍ  pois indica, igualmente, a situação excepcional deJesus, sua posição àparte de todas as criaturas. Podemos pois nos limitar

a tratá-lo rapidamente aqui.Encontramos este título, além de em Mc 1.24, no Evangelho deJoão e, justamente, no paralelo joanino da "confissão de Pedro". "Nóstemos crido e temos conhecido que tu és o Cristo,  o Santo de Deus"(6.69).  Este texto se apoia, sem dúvida, sobre a mesma tradição queMt 16.16-19 (passagem que Mateus inseriu no âmbito de Mc 8.27 ss.);podemos ver que as expressões "Filho de Deus" c "Santo de Deus" sãoquase intercambiáveis. Por aí se pode explicar, sem dúvida, também Jo

10.36: "Ao que o Pai  santificou  e enviou ao mundo, este c o Filho deDeus". Enfim, o mesmo vínculo se encontra no anúncio do anjo Gabriela Maria: "Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo", "o ser quenascerá de ti será chamado  santo, Filho de Deus" (Lc 1.32, 35). Como,com acerto, o fazem notar M. J. Lagrange, L'Evangile selon Saiitt Marc,2a ed., 1947, p. 22 e R. Bultmann, Joharmeskommentar, p. 344, "o santonão é título que se atribua ao Messias; deste ponto de vista temos queaproximá-lo do de "Filho de Deus" (cf. a este respeito J. Bieneck,  op.

cit., p. 46 s)

A palavra dirigida a Pedro: "Na foi nem a carne, nem o sangue quem te revelou, (que eu sou o Filho de Deus)" deve ser classificada com as declarações feitas pelo próprio Jesus, acerca desua filiação divina. Tornamos a encontrar aqui a rigorosa discriçãocom que Jesus fala do segredo escondido no mais profundo de seu

ser; compreendemos melhor porque ele se atribui só muito raramente o título "Filho de Deus". É por isso precisamente que nãose deve ter muita pressa em declarar inautênticas as raras passagens onde Jesus se auto-aplica este título, sobretudo quando seencontra nelas a discrição de Mateus 16.17.

Em primeiro lugar, vejamos a célebre palavra de Jesus em Mt11.27, que já temos mencionado: "... ninguém conhece ao Filho

senão o Pai; e ninguém conhece ao Pai senão o Filho e a aquele aquem o Filho o quiser revelar". Entre os raros logia sinópticos nos

Segundo G. FRIEDRICH (ZThK, 53, 1956, p. 275, ss.), os dois títulos srmeeem àideia de Jesus como sumo sacerdote.

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,374 Oscar Cullmann

quais o Jesus terreno se nomeia "Filho"583  - unicamente Mc 13.32•eMc 12.6 (=Mt 21.37) entram em consideração aqui-estáaque

le cuja autenticidade foi posta mais rigorosamente em dúvida.Numerosos comentaristas negam inteiramente a Jesus o uso deste título, precisamente porque ele se acha neste texto tão problemático. Não há comentário que não sublinhe o caráter joaninodeste título. Já K. von Hase o havia chamado "um meteorito caído do céu joanino".584  Esta observação é perfeitamente exataporque se reconhece aí, imediatamente, um dos temas favoritosde João. Em varias ocasiões temos sublinhado que o quarto evangelista, persuadido de estar em posse do  Paracleto, desenvolvenaturalmente suas próprias concepções cristológicas no âmbitodos discursos de Jesus. Faz isto convencido de que "o EspíritoSanto (o) ensina todas as coisas e (o) lembra de tudo o que Jesusdisse" (Jo 14.26) e que somente esta compreensão pelo Espírito"conduz a toda verdade", dado que, durante a vida de Jesus,havia muitas coisas que os discípulos "não podiam ainda supor

tar" (Jo 16.12). Não cabe nenhuma dúvida que o autor, partindodeste ponto de vista, utilizou-se só de alguns temas, tomados davida e ensinamento de Jesus, porém, para desenvolvê-los em todaa sua riqueza.585  Mas a opinião generalizada segundo a qual oEvangelista se iludiu ao crer estar atrelado à substância mesmado Evangelho de Jesus, tal qual o conhecemos pelos Sinópticos,é um desses dogmas pseudocientíficos de vida tão pertinaz como

a de certos dogmas da igreja. É verdade que, em razão de suasperspectivas muito pessoais, não podemos tomar o Evangelho deJoão como base para expor a vida e o ensinamento de Jesus, coisa que não temos feito nesta obra. Porém, uma atenciosa análisede seus temas essenciais mostra que estes, estando dispostos demaneira geral segundo as perspectivas que são próprias a este

ÍK:l Como palavra do Ressuscitado, temos que agregar a ordem de batizar em nome doPai, do Filho e do Espírito Santo (Mt 28.19).

5!tlK. v. HASE, Geschichte Jesit, 1876, p. 422.5t3Cf'.  a este respeito O. CULLMANN,  Les sacrements dans VEvangile johamtique,

1951, p. 9 ss.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 375

evangelho, não são pura e simplesmente ajuntados posteriormente à vida de Jesus.

Agora, o tema da unidade total do Pai c do Filho na obra darevelação é um dos temas principais do Evangelho de João. Voltaremos a isto mais adiante. Porém, não será possível reuni-lo aotestemunho dos Sinópticos, ainda que fazendo abstração da declaração de Mt 11.27? Ou há aqui uma contradição com os Sinópticos?Indubitavelmente, a forma discreta em que Jesus falava de suafiliação divina, segundo os Sinópticos, desaparece no Evangelho

de João. Porém, isso se deve a que o Paracleto, que fala pela bocado evangelista anuncia, doravante abertamente, o que antes os discípulos "não podiam suportai'". A ideia joanina de que somenteuma revelação superior pode comunicar o conhecimento da filiaçãodivina de Jesus, não está aliás de forma alguma em contradiçãocom a tradição sinóptica: a mesma ideia aparece em Mt 16.17, eainda se quisermos duvidar da autenticidade da palavra de Jesusencerrada neste versículo, a ninguém nunca ocorreu qualificá-lade "joanina". O "céu joanino" não é, neste aspecto, diferente docéu sinóptico; porém apresenta-se com outra claridade. De nossaparte, não vemos em todo caso nenhuma razão para declararinautêntico o logion de Mt 11.27 pelo único motivo de seu estreitoparentesco com um tema favorito do Evangelho de João.586

Não podemos entrar aqui nos detalhes da exegese (cf. sobre as

explicações mais recentes, J. Bicncck op. cit., p. 75 ss.). Esta declaraçãoapresenta, ademais, um problema relativo à história do texto. A transposição pela qual a frase "ninguém conhece ao Pai senão o Filho" se encontra localizada no começo; é atestada cm escritores dos séculos II e III, emoposição à tradição dos manuscritos (cf. A. Harnack, Spriiche ittidReden Jesit, 1907, p. 196 ss.). Com A. Schlatter, Der Evangelist Maítáus, 1929,ad. loc;;J. Schniewind, "Das Evctngeliwn netchMatthâus" (NTD), 1937,p. 147, e alguns outros, e contra M. Dibelius,  Die Formgeschichte des

Evangeiium,,  2a

 ed., 1933, p. 279 ss., adotamos como lectio dijficiUoraversão dos manuscritos: com efeito, a ideia de ser Deus incognoscível

5!f >É o que pensam também, entre outros A. SCHWEITZER,  Geschichite der  Leben- Jesu-Forschung,2*ed.,  1913, p.310,eV.TAYLOR,TheNamesof   Jesus, 1953,p, 64.

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deve ter sido muito mais corriqueira para as gerações posteriores do quea ideia de o ser Cristo o icognoscível. Pela mesma razão temos que recusara proposta de eliminar a parte do  logion consagrada ao Filho, para conservar somente a afirmação relativa ao Pai (proposta feita por A. Harnack,Spruche undReden Jesu,  1907, p. 189 ss., e T. W. Manson, The Sayittgsof Jesus, 1949, p. 80).

Se a declaração é autêntica então há que se formular com todaa prudência a questão que temos anunciado a propósito de outrostítulos; porém, para dar-lhe desta vez uma resposta negativa: Jesus

refletiu sobre sua preexistência? Na dignidade de Filho também,trata-se em primeiro lugar da ação pela qual Deus se revela; açãopela qual Jesus experimenta continuamente sua unidade com o Pai.No entanto, conforme o observa com razão A. Schweitzer,587  "opoderoso hino de Mt 11.25-30 dá, contudo, o que pensar"; e o v. 27pode, com efeito, "ter sido pronunciado em virtude de uma consciência da preexistência". O exegeta e o historiador não podem pretender saber mais. Tal consciência não surge da ciência exegética ehistórica. Nas declarações análogas de Jesus no Evangelho de João,588

estamos diante de considerações do evangelista que está persuadidode ser conduzido "a toda verdade" pelo Paracleto. Ademais, é certoque o Jesus da história temia uma tal difusão de seu segredo deFilho. Porém, aqui também, o quarto evangelista poderia apoiar-seem seus sinais momentâneos de revelação cristológica que, segundo os Sinópticos já aparecem esporadicamente na vida e nos discursos de Jesus

Da mesma forma, na outra frase em que Jesus se declara "Filho"(Mc 13.32), trata-se de sua relação com o Pai na perspectiva dahistória da salvação: "Mas a respeito daquele dia ou hora ninguémsabe; nem os anjos no céu, nem o Filho, senão o Pai." Esta declaração pressupõe, em última análise, a convicção da unidade totalentre o Pai e o Filho; e só assim adquire todo seu sentido. Ela indica o único ponto onde esta unidade, durante a encarnação de

A. SCHWEITZER, ibief.,  ,p .30.Jo 8.56 ss.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 377

Jesus, apresenta uma lacuna: o conhecimento da data do fim. A fixação desta data é além disso, segundo o Novo Testamento, o ato por

excelência da soberania do Pai. É Ele quem a fixa por sua própriaautoridade (èÇowíoc, At 1.7). Muito mais difícil é explicar estadeclaração de Mc 1332 considerando-a como uma invenção posterior da igreja, que atribuí-la ao próprio Jesus. À luz da afirmaçãoda onisciência de Jesus em Mt 11.27 (considerada autêntica) apalavra de Mc 13.32, que restringe esta onisciência torna-se muitomais compreensível, se for considerada como palavra de Jesus.

Por outro lado, deve-se perguntar se a igreja primitiva pôde atribuir posteriormente a Jesus, inventando, uma declaração que restringe assim a unidade do Pai e do Filho, em questão tão capital.

Assim, a autenticidade deste logion foi muito menos rejeitada quea de Mt 11.27 (recentemente, contudo, por W. G. Kíímmel no artigosobre a parábola dos trabalhadores na vinha, citado mais acima, p. 367).Poderíamos, contudo, alegar uma razão plausível para explicar a criação

desta declaração pela comunidade: o desejo de justificar o atraso da parusia  recorrendo ao próprio Jesus. Porém, pode-se, por outro lado,admitir que a comunidade se tenha arriscado a introduzir no Evangelhouma afirmação tão ousada? Não podemos esquecer que Lucas a tirou deseu Evangelho e que em muitos manuscritos do Evangelho de Mateus foieliminada, sem dúvida, porque escandalizava a seus leitores. Num casocomo este,emque ume outro partido pode trazer argumentos válidos emfavor de sua tese, deveríamos determinar-nos a não formular a questão

da autenticidade salvo ali onde os problemas da crítica textual, ou razõesteológicas obrigam a isso de forma absoluta.

A questão de saber se, na parábola dos trabalhadores da vinha(Mc 12.1 ss.), Jesus pensou em si mesmo ao falar do "filho", depende do juízo geral que se tenha acerca desta parábola. Não nosparece haver razão que obrigue a responder negativamente.589  Neste

caso, a ideia de "Filho" está também ligada à missão de Jesus, queveio realizar o ato decisivo da história da salvação. Porém, também aqui, Jesus toma só indiretamente o nome de "Filho", já que

58!> Contra W. G. KUMMEL, op. cit., (cf. acima, p. 376 s.).

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•378 Oscar Cullmann

o faz no âmbito de uma parábola onde esta expressão serve, simplesmente, para fazer compreender, de maneira imaginária, a rela

ção particular e única do último enviado com o "senhor da vinha".Se esta consciência de ser o "Filho" tem tamanha importância

para permitir-nos compreender a pessoa e obra de Jesus, não devemos,  tampouco, restringir-nos aqui unicamente aos poucos  logiaonde se encontra a palavra "filho". Também temos que levar emconsideração a maneira em que Jesus fala de Deus como do "Pai".Sempre diz: "meu Pai" ou "vosso Pai", porém, jamais "nosso Pai".

Pois a oração que, segundo a versão de Mateus, começa com estaspalavras não é uma oração que Jesus pronuncia com seus discípulos, mas uma que ele lhes ensina:"Vós, pois, deveis orar assim" (Mt6.9 oftxojç 7ipoaeí>X£O0e vfietç). É Justamente esta maneira espontânea, e quase inconsciente, com que Jesus afirma em tais passagens,  indiretamente, sua relação pessoal com o Pai, que confirmatratar-se aí de um segredo que lhe é próprio e que deve ser revelado,

para ser descoberto por outros; isto explica, ao mesmo tempo, porque Jesus não emprega, salvo por exceção, o termo "Filho".Para terminar, lembremos da atitude de Jesus com respeito à

questão do "filho de Davi". Ao estudar Mc 12.35 ss.590 vimos queesta palavra de Jesus não significa meramente que Jesus simplesmente negue sua ascendência davídica, mas que quer certamentenegar a importância messiânica fundamental que os judeus atribuíam

a ela assim como Ele, de modo geral, não atribui um valor primordial aos laços de sangue (Mc 3.31 ss.). Se ele finaliza o diálogoperguntando "como, pois, eleé o seu filho (isto é, o filho de Davi)?"não podemos deixar de perguntar-nos se isto não significa que, aseus olhos, a única filiação que verdadeiramente conta é esta outraque faz dele o Filho de Deus. Neste caso teríamos aqui uma ponteque uniria este texto às discussões joaninas no tocante à origem de

Jesus, que não vem dos homens, mas diretamente de Deus (Jo 7.14ss.; 8.12 ss.).

* * *

™Cf. acima, p. 173 s.

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C^RISTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO 379

Entre os títulos que Jesus dá a si mesmo, o que domina não éo de "Filho de Deus", mas o de "Filho do Homem". Ora, tentando

penetrar no segredo da consciência que Jesus tinha de si mesmo,temos que completar o título de Filho do Homem não só pelo deEbed Iahweh, mas, também, pelo de Filho de Deus. Dissemos, nocomeço deste capítulo, que "Filho do Homem" e "Filho de Deus"são títulos que afirmam, ambos ao mesmo tempo, a soberania e ahumilhação. Anexemos ainda que a consciência que Jesus tinha deser o Filho de Deus remete, como a de ser o Filho do Homem,

simultaneamente a sua pessoa e a sua obra. A unidade do Pai e doFilho se manifesta pela ação de Jesus em trazer ao mundo a salvação e a revelação. Esta concepção de Filho de Deus está, também,na base da fé dos primeiros cristãos que, à luz do acontecimentoda Páscoa, o confessam como o "Filho".

4. A FÉ DO CRISTIANISMO PRIMITIVO EM JESUS, FILHODE DEUS

As primeiras "testemunhas da ressurreição" já não tinham porque retardar a proclamação de sua fé em Jesus, Filho único deDeus.  Este conhecimento que "o sangue e a carne" não podemrevelar (Mt 16.17), lhes havia sido confirmado pela ressurreição

de Cristo e, doravante, devia ser anunciado a todo o povo. A declaração de que "Jesus é o Filho de Deus" deve, então, haver figuradoentre as primeiras formas de confissão de fé da igreja primitiva.Muito provavelmente era muito utilizada na mais antiga liturgiado batismo, da qual achamos indícios em At 8.36-38. Quando oeunuco pergunta se há algum impedimento para que seja batiza-do,591 Felipe lhe responde (no v. 37, que falta em uma parte dos

manuscritos; porém que, mesmo se tivesse sido interpolado, representaria uma adição muito antiga): "Se crês de todo o coração,

Cf. O. CULLMANN, Lê beipiême des enfatus et la doctrine bibHqite dtt baptême,1948, p. 63 ss.

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380 Oscar Cullmann

é possível". Após o que, o eunuco pronuncia a fórmula que semdúvida já tinha um caráter litúrgico: "Creio que Jesus Cristo é o

Filho de Deus".Talvez não seja por mera coincidência que este antigo credo

pertença, precisamente, à liturgia do batismo. Não teríamos aí umalembrança do fato de Jesus ter tomado consciência de ser o Filhode Deus ao ser-lhe dada a revelação no momento de seu batismono Jordão? Enquanto em outras circunstâncias se empregava a brevefórmula "Jesus é o Kyrios",592 era o batismo uma ocasião especial

mente propícia para se confessar a fé em Jesus "Filho de Deus".Convém lembrar, ademais, que já durante sua vida os demó

nios (Mc 3.11; 5.7) e também Pedro (Mt 16.16) pronunciaram estafórmula como uma confissão de fé.

Como credo fundamental a encontramos em seguida na primeira Epístola de João: "Aquele que confessar que Jesus é o Filhode Deus, Deus permanece nele, e ele em Deus" (1 Jo 4.15). Sem

dúvida, esta fórmula é posta pelo autor a serviço de suas ideias"joaninas"; porém, é evidente que cita aí um antigo credo da igre

 ja. Falaremos mais adiante da relação que ele estabelece entre afiliação divina de Jesus e a participação dos disccpulos nesta fifiaçãograças a sua fé no Filho. Em sua polémica contra o docetismo aEpístola se apoia, também, nesta antiga fórmula. Ela parece serpara o autor a expressão suprema da fé. Em 1 Jo 2.23 ele faz,

expressamente, o conhecimento da relação entre o Pai e o Filhodepender da "confissão": "Qualquer um que nega o Filho não tem oPai; quem confessa o filho tem também o Pai." Encontraremos amesma ideia desenvolvida e repetida liturgicamente no Evangelhode João, mesmo que sem citação expressa da fórmula.593  Se lembrarmos até que ponto este Evangelho se preocupa, continuamenteem estabelecer uma relação entre a vida de Jesus e o culto cristão 594

12  Sobre as diversas ocasiões nas quais as confissões de fé eram pronunciadas, cfO. CULLMANN, Lês premiares confessions de foi chrétiennes,  1943, p. 13 ss.

" Ela está, no entanto, contida nele como citação na acusação dos adversários (Jo 10.36).14 Cf O. CULLMANN, Lês sacrements dans 1'Evangile johamiique,  19511 p. 9 ss,

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CRISTOLOGIA DO Novo TESTAME-;NTO 381

podemos considerar estas passagens, de certo modo, como comentários desta antiga fórmula litúrgica.

Sua existência na igreja nascente é ainda comprovada por outras passagens: a Epístola aos Hebreus ao convidar os leitores a"permanecerem firmes na confissão" (4.14) chama a Jesus de o"Filho de Deus"; a fé "no Filho de Deus" é atestada também emuma confissão citada por Paulo e que, de uma forma mais desenvolvida, deve, no entanto, ser muito antiga (Rm 1.3 s.). Enfim, amenção concernente a "Filho"595 se introduziu, de forma perma

nente, no credo posterior

596

 e até nas fórmulas que o precederamimediatamente, por exemplo, a que é empregada por Irineu, Adv. Haer   1,1 ,,  l.597

Em Rin 1.3 s., onde o apóstolo cita evidentemente um texto já formulado e transmitido pela tradição,598  se diz que o Filho de Deus nasceu,segundo a carne, da posteridade de Davi e que foi declarado ''Filho deDeus com poder segundo o Espírito de santidade, por sua ressurreição

dentre os mortos". Já indicamos que é essencial sublinhar aqui as palavras év Swájiet, Jesus é ''Filho de Deus" desde o princípio. É, ao menos,o que Paulo parece ter pensado quando ao v. 3 faz preceder toda a fórmulaacercado título de "Filho de Deus". Porém, desde a ressurreição esta filiaçãodivina que existia desde o começo se manifesta èv SuVccuei:o Filho de Deus se torna o Kyrios.m  Por outro lado, a filiação divina ("segundo o Espírito") está associada aqui à ascendência davídica ("segundoa carne"). Enquanto que o próprio Jesus, se nossa suposição é exata6tl"

M5Mais tarde, acompanhado do epíteto "único", tirado do Evangelho de João. Cf.abaixo, p. 388 s.

MSJá na fórmula IX8YX, que representa igualmente uma confissão de fé. Cf. a esterespeito o estudo de F. J. DÕLGER, Ichthys,  1910.

597 As  fórmulas de confissão contidas nas  Epístolas  de INÁCIO não mencionam o"Filho". Isto poderia ser devido ao fato de que Inácio, que em outras passagensaplica também a Jesus o título cie "Filho", o chame 6eóç na introdução das fórmulas

de Esm. I, 1  e Ef  18.2. Cf. abaixo, p. 408 s.5 MO.  CULLMANN,  Les prenderes confessions de foi  chrétiennes,  1943, p. 45. R.BULTMANN, Theologie des Neuen Testaments, p. 50, reconhece também a origempré-paulina deste texto.

,,JÍ>Cf. acima, p. 306 s.mCf.  acima, p. 173 s.

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•382 Oscar Cullmann

deprecia em Mc 12.35 ss. a ascendência davídica em benefício da filiaçãodivina, aqui estão reunidas sem que se chegue a considerá-las, no entanto, como equivalentes: pois o que Jesus é segundo o jtveíjncc representauma mais alta dignidade do que o que é segundo a oápí;, ainda que estatenha também a sua importância.

*  * *

Se agora passamos  da confissão  de fé  citada  por Paulo aopróprio Paulo constatamos, antes de tudo, que ele também emprega o  título "Filho de Deus" em passagens que não se referem àtradição, como em Romanos 1.3. Por certo o título "Filho" é muitomais escasso em seu escritos que o título Kyrios, pois o de máximo valor para ele é o de "Filho de Deus com podef\   Porém, sabeque  se Jesus é o Kyrios é  também desde  o princípio  o  "Filho",integralmente consagrado ao propósito de seu Pai. É por isso queo apóstolo insiste em valorizar a ideia que desempenhou um papeltão importante acerca de Jesus, a saber: que por sua vida, e especialmente por sua morte, o Filho de Deus cumpriu o plano divino desalvação. Deus não "poupou" a seu próprio "Filho". É isto o queescreve Paulo em Rm 8.32 pensando no sacrifício  de Isaque, quemais tarde é considerado como o tipo de sacrifício  do Filho único.601  Ser Filho de Deus é sofrer e morrer. Aqui também estamos agrande distância dos "filhos de Deus" do helenismo. A fim de resga-tar-nos, Deus "enviou" seu Filho (Gl. 4.4). É  "pela morte de seuFilho" que somos reconciliados (Rm 5.10). É também o "Filho" deDeus que realiza a obrafutura de salvação, aquele a quem "esperamos dos céus" (1 Ts 1.10). O fim da reconciliação, àqual o "Filho"nos conduz, é fazer de nós também "filhos".602  O apóstolo mostra o

1)1 Recentemente ainda O. MICHEL, Der Briefan  die Rõmer,  1955, ad. loc. Sobre arelação estudada, já na igreja antiga, entre Rm 8.32 e Gn 22, cf. D. LERCH, "IssaksOpferung, chrhtlich gedeutet" (Beitr. z. Hist. Theologie,  12), 1950.

112 Paulo compreende, pois, a relação entre nossa filiaçãoe a de Jesus contrariamente àtese de W. GRUNDMANN  (cf.  acima, p. 360); é por ser Jesus  o Filho, de umamaneira muito diferente  de nós, que pode tomar-nos filhos.

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CRISTOLOGIA  DO NOVO TESTAMENTO  383

elo entre nossa filiação e a filiação única de Jesus em Rm 8.14 ss.(cf. Gl. 4.6 ss.), onde une os termos "filho" e "herdeiro" como na

parábola dos trabalhadores na vinha (Mc 12.1 ss.). Somos chamados à "comunhão"  (KOIVCOVÍO;) com o Filho de Deus (1 Co 1.9).Paulo menciona também outro aspecto: a soberania do Filho

de Deus, que se revela em sua origem. Enquanto "filho" ele é aimagem de Deus desde o começo (Cl 1.14 s.). Épor isso que Deusnos predestinou "a sermos semelhantes à imagem de seu Filho"(Rm 8.29). Aqui o apóstolo aproxima a ideia de Filho de Deusà de

"imagem de Deus" que, como já se viu, está por trás da noção de"Filho do Homem".Resta-nos falar ainda de um texto cristoJógico capital,  1  Co

15.28, que também demonstra que Paulo fala da unidade entre oPai e o Filho, mas só em relação com a história da salvação, isto é,com a obediência do Filho. Neste texto, o apóstolo nos conduz aolimite escatológico extremo da obra divina da revelação, como o

Evangelho de João que, com a ideia de Logos,  nos faz remontaraté seu extremo limite inaugural. Ser "Filho de Deus" significaestar empenhado na obra de salvação, obedecer até o fim. Agora aúltima realização desta obra é a submissão final do Filho ao Pai:"Quando todas as coisas lhe estiverem sujeitas então, também, oFilho mesmo se sujeitará àquele que lhe sujeitou todas as coisas,para que Deus seja tudo em todos." Esta é a chave de toda a

cristologia do Novo Testamento: falai' do Filho não tem sentidosenão em relação à obra de Deus e não em relação ao seu "ser".Se é possível dizer que o Pai e o Filho são verdadeiramente um, éunicamente em relação com a obra de salvação. Do "Filho de Deus",como do Logos, se pode dizer: ele é Deus, enquanto Deus se revela em sua obra de salvação, obra da qual fala todo o Novo Testamento. E por isso que o reino no qual nos encontramos agora,

antes de seu fim, é o "reino do Filho" (Cl 1.13).603

* * *

Cf. O. CULLMANN,  La royauté du Chríst et l'Eglise,  p. 9 ss.

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CRISTOLOGIA DO NOVO THSTAMIÍNTO 385

cumprir seu intento utilizam visivelmente, e independentemente umdo outro, certas tradições relativas ao nascimento de Jesus que eram

correntes na igreja primitiva, às quais se haviam incorporadotemas orientais e helenísticos bem conhecidos. No entanto, neleso interesse narrativo cede lugar à preocupação teológica: não querem dizer mais do que o necessário para afirmar que Jesus foi concebido pelo Espírito Santo. Neste sentido, sua preocupação diferefundamentalmente da dos evangelhos apócrifos da infância que,não obstante seu caráter secundário, remontam a uma época rela

tivamente antiga.609

A explicação da filiação divina de Jesus pelo nascimento virginal610 faz surgir logo um problema: como harmonizá-lo com aafirmação contida na confissão de fé citada por Paulo (Rm 1.3 s),segundo a qual Jesus "nasceu da posteridade de Davi segundo acarne"?6"  Para este antigo  credo  não existia ainda o problema:

 junto à ascendência davídica "carnal", menciona paralelamente afiliação divina "espiritual", "com poder, em virtude da ressurreição"; sem formular a questão do modo desta filiação. Porém, vistoque as genealogias de Jesus dadas por Mateus (Mt  1. 1  ss.) e porLucas (3.23 ss.) passam por José, o pai, o problema não pode serevitado nestes Evangelhos, pois reproduzem ao mesmo tempo atradição de haver sido Jesus concebido sem pai humano. Tentaram

resolvê-lo supondo que Jesus havia sido admitido por adoção nafamília davídica de José. Lucas o faz mediante a fórmula obçèvojxíÇeTO (ele era considerado como filho de José), que ele acrescenta no começo de sua genealogia (Lc 3.23); Mateus, pela frasecom que, segundo o texto sem dúvida mais antigo, termina sua

Cf. a este respeito a introdução de meu estudo: Apokryphe Kindhetisevangelien,  na

3a

 ed., por aparecer, deE. HENNECKE, Neutestamentliche Apohyphen,  publicadaporW. SCHEEMELCHER.Sobre os problemas relativos ao nascimento virginal, cf. a volumosa monografia deJ. G. MACHEN, The Virgin Birth ofChrist,  1930, A intenção do autor é provar quea crença no nascimento virginal de Jesus é um elemento constitutivo da fé cristãprimitiva e que ela permanece, por conseguinte, hoje.Cf. acima, p. 170, s. e 177 s.

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genealogia: "Jacó gerou a José, marido de Maria, da qual nasceuJesus, que se chama o Cristo" (Mt 1.16).

Não parece, ademais, esta explicação dos dois evangelistas haversempre satisfeito; pois muito cedo já aparece outra tentativa de harmonizar a ascendência davídica de Jesus com seu nascimento virginal: Se ofaz descender de Davi, não por José, mas por Maria; e não só José comoela também seria de ascendência davídica.''13  E assim que manuscritosposteriores, porém, também antigos, substituem no relato de Natal deLucas (2.4)  odnóv  por cròicòç (outros lêem ainda mais claramente

àutpoTépoiíç): "porque eles eram da casa e família de Davi". Esta afirmação é também atestada no Proto-evangelho Apócrifo de Tiago (10.1),em Justino, Dial. 43.45, em Irineu, JWV. haer. 3.21 5;3.9,2eemTertuliano,

 Adv. Marc. 3.17,20. Porém, ela deve remontar ao começo do século II.Pois Inácio de Antioquia emprega, como arma contra os docetas, umaantiga fórmula que, como Mateus e Lucas, afirmava ao mesmo tempo aascendência davídica e o nascimento virginal. Ele não pode pois terinterpretado o KCCTCC cápica como os evangelistas admitindo uma ado-ção mas deve ter crido que Jesus descendia ca nuamente  de Davi por suamãe Nas posteriores confissões de fé a menção da ascendência davídicadesapareceu em razão sem dúvida desta dificuldade A evolução foipois a seguinte: no princípio a ascendência davídica KOCTÒC OÓCOKCÍ é posta em paralelo à filiação divina  KOLXÒL  JWEmux (Rm  1  3 s 1 sem que seintente explicar a segunda Mateus e Lucas as juntam explicando o processo da filiação divina pelo nascimento virginal e a ascendência davídicaKoctcc CTWDKCI pela adoção A partir do começo do século II novamenteaparece a tendência de tomar a expressão Kaxà oáoKCt em seu sentidopróprio; mas então deve-se introduzir Maria na posteridade de Davi se seciuer manter a afirmação do nascimento virginal

É difícil determinar a data exata do surgimento da tradição ado-tada por Mateus e por Lucas para explicar o nascimento do Filho deDeus. O que se pode dizer, com certeza, é que no primeiro séculoela não é atestada senão nestes dois evangelistas.613 Todas as tenta-

•^Cf. acima, p. 168 s.613Encontramo-la mencionada no começo do século II nas fórmulas de INÁCIO,

indicadas mais acima (p. 380 s.). Ela devia, pois, já ser conhecida em Antioquia nofim do século I e começo do II. Alguns quiseram descobrir uma fonte literária

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 387

tivas de descobri-la com certeza, explícita ou ao menos implicitamente, nos demais livros do Novo Testamento resultam muito arti

ficiais para serem convincentes. A expressão: "nascido de mulher"(Gl 4.4), pode ser aplicada a qualquer homem e conforme o contexto, deve unicamente afirmar a total incorporação do Filho deDeus à humanidade. Da mesma forma, em Jo 1.13 o singular "quinatus esf\   adotado por um certo número de manuscritos antigos,na maioria ocidentais, ainda se fosse original614  não provaria demodo algum que o autor estivesse pensando aqui no nascimento

virginal. Pois se chega, nesse caso, à seguinte tradução: "Ele (oVerbo) deu o poder de se tornarem filhos de Deus aos que crêemno nome daquele que não nasceu nem de sangue, nem da vontadeda carne, nem da vontade de homem, mas da de Deus." Esta é umaideia bem joanina que encontramos também em Paulo:  nossafiliação está baseada na do Filho único e se torna realidade nafé nele.615

Não recusaremos, pois, esta leitura tão resolutamente como o fazR. Bultmann em seu Johanneskommentar,  p. 37, nota 7, que não vê napreferência que lhe concedem certo número de exegetas modernos senãoo desejo de encontrar, pura e simplesmente, o nascimento virginal testemunhado no Evangelho de João. Isso pode ser certo no caso de váriosexegetas; porém, não se deve tampouco, ao recusar esta leitura, se deixarguiar pela ideia de que, necessariamente, ela se origina no desejo deintroduzir nesta passagem o nascimento virginal. "Nascido da vontadedo homem" significa simplesmente "nascido de homem", por oposição a"nascido de Deus", que esta passagem quer sublinhar. Agora, esta oposição quanto à origem de Jesus, está em todo o Evangelho de João, semdizer nenhuma palavra do nascimento virginal. A relação entre o novonascimento do crente e o nascimento daquele "que desceu do céu" (3.13)está também na base do diálogo com Nicodemus. Não poderíamos

comum aos relatos canónicos da infância (L. CONRADY, Die Quelle derKanonischen Kindheitsgeschicluen,  1900; A. RESCH,  Das Kindheitsevangelium,TU 10,5, 1897). MACHEN,  op. cit.,  admitiria que Lucas e Mateus retomam umatradição já bem estabelecida, o que é difícil de provar.

614 O papiro Bodner II, publicado em 1956, tem aqui o plural.SI5 Cf acima p. 383.

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388 Oscar Cullmann

tampouco, recusar sem mais a proposta de C. F. Burney,  The AmmaicOrigin ofthe Fourth Gospe,,  1922, p. 34, que explica o plural mediante

um recurso ao aramaico. No entanto (contra a opinião de W. Bauer,  Das Johantiesevangeliuin,  3a ed., 1933, p. 22), há outras possibilidades deexplicação desta mudança do singular ao plural, pois o plural "facilita" acompreensão do texto e o encadeamento das ideias. O fato de que A.Loisy em: Lê Quatrième Evangile, 2a ed.,  1921, ad loc, considere o singular como original, para ver nisso (erradamente, sem dúvida) justamente uma negação do nascimento virginal, prova que a discussão sobre aformulação original desta passagem nada tem que ver com a afirmaçãoou ncaçãodo nascimento virginal. A parte os comentários que citam osestudos antigos relativos a esta questão (em part. o de W. Bauer), temosque indicar como monografia recente: F. M. Braun, "Qui ex Deo natusest" (Aux sources de la tradition chrétienn,, Mélanses M. Gogue,, 1950,p.  11 ss.), que reconsidera toda a documentação e se pronuncia pelosingular vendo nisso um testemunho do nascimento virginal. Maisrecentemente, a maioria dos comentaristas por ex.: C. H. Dodd,  The Interpretotion ofthe Fourth Gospe,  1953 p. 260 nota  1 e C. K. BarretThe Gospel Accorditig to St John  1955 p. 137 s. têm dado sua preferência ao plural

Ao explicar a filiação divina de Jesus pelo nascimento virginal, Mateus e Lucas se distinguem dos demais autores do NovoTestamento, e em particular de Marcos, para quem a fé em Jesus,Filho de Deus, ocupa um lugar muito mais central, embora respeite o segredo com que, o próprio Jesus, havia rodeado este título.

* * #

Nem João nem Marcos intentam explicar amaneira pela qualo filho é gerado pelo Pai recorrendo ao relato do nascimento virginal.616 Mas assim como Marcos, o quarto Evangelho coloca a féem Jesus, "Filho de Deus", no centro de seu Evangelho.617  Para

616 Nem tampouco a uma especulação sobre a "substância" ou as "naturezas".SI7É o que bem viu R. BULTMANN, Theologie des Nenen Testaments, 1953, p. 380

ss.  Sobre a questão do "Filho de Deus" no Evangelho de João, cf., ademais,"W.LUTGERT, Die Johanneische Christologie,2"  ed,, 1916, emais recentementeC. H.DODD, The Interpretation ofthe Fourth Gospel,  1953, em part. p. 250 ss.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 389

ele também, o essencial é o fato da filiação divina de Jesus e suaunidade com o Pai e não a explicação deste fato. Jesus saiu do Pai.

João o indica, como bem o tem assinalado61

8 C. H. Dodd, pelapreposição 8K; para os demais enviados se emprega coto ou 7tapá.João afirma tão vigorosamente esta "saída do Pai" que a questãode se saber como concorda esta origem com o nascimento humano de Jesus, pelo fato dele ter pais conhecidos (7.27) e que sejaoriundo de Nazaré (1.45; 7.41 s.), nem sequer se formula.M';  Maisque o nascimento humano de Jesus, o que importa é que ele é

EK  680Í>.O caráter único da filiação de Jesus não fica debilitado em

relação ao que dizem Mateus e Lucas; constitui, pelo contrário, oleitmotiv das discussões joaninas tão importantes sobre a unidadeentre o Pai e o Filho. Para fazer ressaltar este caráter os autoresempregam a palavra "único" (U.OVOY£VT|ç), mais tarde introduzidano Símbolo dos Apóstolos. Ela aparece, duas vezes, já no prólogo

(1.14,18),620

 e corresponde ao hebraico TTP. Significa "unigénito"e também, "bem-amado". Encontramos novamente aqui a ideia judaica já encontrada nos Sinópticos: o "Filho de Deus" é eleitodesde o princípio; Movoyevfiç não difere, pois, essencialmente,de àyajiTjtóç, já que a ambos os termos se recorre para traduzirTrP. O fato deste atributo poder ser aplicado no judaísmo a todo opovo de Israel621  concorda com o que temos referente ao título

"Filho de Deus" em geral. Palavra esta que não se encontra aplicada a Jesus, à parte os escritos joaninos: no Evangelho, além doprólogo, em 3.16,18; e na primeira Epístola (4.9).62-

C. H. DODD, op. cií,, p. 259.Segundo R. BULTMANN, Johanneskommentar, 1941, p. 37, nota 7,eC. H.DODD,op.  cit., p. 260, o nascimento virginal seria inclusive excluído pelo Evangelho de

João.É verdade que no v. 18, temos que preferi riiovoyevT|ç 6eóç a ó piovoyevfiç moç.Cf  abaixo, p. 402 s.Cf. Sal. de Salomão  18.4; 4 Esclras 6.58.Sobre  novoyevriç, e também sobre as relações desta palavra com a história dasreligiões, cf.  R. BULTMANN, Johanneskommentar, 1941, p. 47 ss.

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• 390 Oscar Cullmemn

Como expressão quase sinónima de "Filho", achamos nosSinópticos o título "Santo de Deus".623 Nós temos falado de seu

emprego na versão joanina da confissão de Pedro (Jo 6.69), e daexplicação de João 10.36 à luz desta expressão. Este título também faz ressaltar a diferença entre Jesus e todas as demais criaturas.

A pregação joanina relativa ao Filho de Deus se distingue, noentanto, em um ponto essencial da de Marcos. Pois se bem quenão explique a geração divina comunica, por outro lado, sem amenor reserva em relação aos judeus incrédulos, tanto como aos

discípulos, o fato em si da filiação divina de Jesus. O Cristo joanino,por quem o Paracleto anuncia todas as coisas - mesmo aquelasque os discípulos, durante a vida de Jesus, "não podiam aindasuportar" (Jo 16.12)-já não tem mais motivo para falar de maneira velada e discreta acerca de sua unidade com o Pai. Mais amiúdeque em qualquer outro escrito do cristianismo primitivo, estafiliação é constante e abertamente proclamada, a despeito de todos

os cépticos e adversários que não querem aceitar que Jesus dê testemunho acerca de si mesmo. Ao proceder assim, o quarto Evangelho se diferencia não só do Evangelho de Marcos como tambémdo Jesus histórico.624 Não devemos esquecer aqui que João voluntariamente reorganizou todos os atos e discursos de Jesus em umaperspectiva pós-pascal.

Que conteúdo ele deu à noção de Filho de Deus?

Temos visto que o logion de Mt 11.27, cujo caráter "joanino"sempre chocou os exegetas, está perfeitamente na linha da ideiafundamental que, segundo os Sinópticos, caracteriza em Jesus aconvicção de ser "Filho de Deus". Em João também são encontrados

fi;:,Cf. acima, p. 371 s.^  Pode-se, no entanto, encontrar no Evangelho de João um certo paralelo com a ideia

expressa nos Sinópticos, segundo a qual é necessário uma revelação particular parase reconhecer Jesus como o Filho de Deus (em part. Mt 16.17; cf. acima, p. 364 s.):é a incompreensão dos interlocutores, com os quais Jesus fala de sua união comDeus. Por outro lado, há indícios do segredo messiânico em Jo 10.24: "Se tu és oCristo diga-nos abertamente". Cf. a este respeito R. BULTMANN, Theologie des

 Neuen Testainettts, 1953, p. 394; e também abaixo, p. 392 s.

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CRISTOLOGIA DO NOVOTESTAMENTO 391

os dois motivos sinópticos da obediência tio Filho ao Pai e da unidade entre o Pai e o Filho na obra reveladora de Deus. Porém, o

segundo motivo é aí mais vigorosamente destacado por ser maiora insistência do Evangelho de João na ideia de que Deus se revela.Neste quadro da história da salvação, a noção de "Filho de Deus"se une à de  Logos. O título  Logos,  em João, sublinha que Jesusé um com o Pai pela obra que realiza sobre a terra. Por outro lado,a afirmação segundo a qual Jesus é o Verbo, ou seja, "Deus quese revela", deve ser provada por todo o  relato da vida de Jesus.

Assim, a unidade do "Filho de Deus" com o Pai é inteiramenteregida pela ideia, que remonta ao próprio Jesus, de ser ele o Filhoúnico e bem-amado, por cumprir em perfeita obediência a missãoque, em favor do mundo, Deus lhe confiou: "Nada posso fazer pormim mesmo... e não busco minha vontade mas a vontade do Pai"(Jo 5.30). Se há unidade de essência, é por haver total unidade devontade na realização da obra da salvação. "Minha comida é fazera vontade daquele que me enviou e cumprir a sua obra" (Jo 4.34).A imagem é particularmente eloquente: assim como o corpo nãopode viver sem alimento, da mesma forma o dever  de fazer o queDeus quer pertence ao ser mais íntimo de Jesus.

Este dever, esta obrigação não é da mesma ordem que a "coação" profética ou apostólica. Pois Jesus não é, como eles foram,

um mero instrumento da vontade de Deus; Ele é para Deus umcolaborador que Lhe está unido. Isto é o que sua resposta, quandofoi acusado de quebrar o sabath (Jo 5.17) traz à luz: "Meu Pai atéagora trabalha, e eu trabalho também".625 Como, no sentido escatológico de Hb 4.3 ss, não há ainda um sabath para a obra redentora de Deus, tampouco, Jesus pode repousar. Seu tempo é o tempode Deus. Encontramos um idêntico pensamento em Jo 9.4. "Devo

fazer as obras daquele que me enviou enquanto é dia".

!:l  Sobre a relação entre esta palavra e o dia da ressurreição, cf. O. CULLMANN,Sabbat und  Soitittag nach dem Johannesevwtgelium,  In memoriam E. LOHMEYER,1951, p. 127 ss.

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392 Oscar Cullmann

Tão longe vai a unidade  de vontade  e de ação que o Filhoinclusive participa na criação da vida, que é a obra por excelência

do Pai. Assim como no princípio é o Filho mediador da criação, podetambém, em colaboração com o Pai, ressuscitar mortos. Na ocasião da ressurreição  de Lázaro, disse Jesus: "Pai, graças  te douporque me ouviste. Aliás, eu sei que sempre me ouves" (Jo 11.41).

Para os Sinópticos, assim como para Paulo, o Filho está especialmente unido ao Pai ao sofrer e morrer. Poderíamos esperar queeste tema não se destacasse  no Evangelho de João. No entanto,

não se diminuem nele, nem o sofrimento, nem a morte, obra central  de Jesus.626  É assim que o tão conhecido versículo  de João3.16, que apresenta Jesus precisamente como o Filho "único" ou"bem-amado"627  de Deus, anuncia que ele foi oferecido em sacrifício: "De tal maneira amou Deus  ao mundo que deu seu Filhounigénito ("bem-amado")". Em outro lugar temos indicado628 queo verbo EÔcoKev tem aqui o duplo sentido de "enviar" e de "ofere

cer  em  sacrifício".  Se partimos  da  dupla acepção  da  palavrau.ovoyEVT|ç, nos parece sem dúvida haver aí, como há em Rm 8.32,uma alusão ao sacrifício de Isaque.

O que temos dito acerca das obras de Jesus, aplica-se tambéma seu ensinamento; pois sua ação e seu ensinamento são inseparáveis: tanto num como noutro, se revelam o Pai e oFilho. "Segundome ensinou  o Pai, assim falo"  (Jo 8.28). "Minha doutrina não é

minha mas daquele que me enviou" (Jo 7.16; cf. também 14.16 b).A menção do Pai, nestas passagens costuma ser acompanhada pela expressão ó 7téfiyccç  ixe que, empregada sozinha, pode serum sinónimo de "Pai". O que demonstra, mais uma vez, a estreitarelação que une a filiação divina de Jesus e sua vinda à terra paraexecutar  o  plano divino. Porém,  o Filho não é meramente umenviado como o foram  os profetas  e, depois deles, os apóstolos.

s2í Cf. acima, p. 97 s.s2 '  H.OVOY£VVJ<;; cf. acima, p. 388 s.*2*Cf. O. CULLMANN,  "Der  Johannische Gebrauch doppeldeutiger Ausdriicke ais

Schlííssel zum Verstãndnis des vierten Evangeliums" (77iZ4, 1948, p. 360 ss).

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CRISTOLOGIA  DO NOVO THSTAMI-NTO 393

Já chamamos a atenção para a preposição Ètc que cumpre aquiuma importante função diacrítica. O envio do l-'ilho "junto ao Pai"supõe que estão juntos desde o começo. Não se trata, portanto, deuma vocação semelhante à do profeta, como se vê com clareza cmJo 5.19, 20: "Tudo o que o Pai faz, também o Filho o faz igualmente; pois o Pai ama o Filho". Esta palavra nos remete ao próprio fundamento da unidade do Pai e do Filho no alo da revelação.629

Assim, ouvimos reiteradamente o  leitmotiv  "saído do Pai":

eu vim de Deus e aqui estou; pois não vim de mim mesmo, masele me enviou (Jo 8.42). Porém, a unidade se expressa, também,no fato dele voltar ao Pai: "Eu saí do Pai e vim ao mundo; agoradeixo o mundo e vou ao Pai" (Jo 16.28). Dessa maneira não é sóna realização de sua obra na terra, mas em tudo o que faz é o Paique opera, não por  ele, mas com ele: "Não sou eu só, mas eu e oPai que me enviou" (8.16). "...e me deixareis só; contudo, não

estou só, pois o Pai está comigo" (16.32).Sem dúvida, nunca se esquece que "o Pai é maior que oFilho", porém, maior somente enquanto o Filho, portador da revelação, vem do Pai e ao Pai volta. É por isto que o Evangelho podechegar a fazer afirmações tão vigorosas como esta: "Eu e o Paisomos um" (Jo 10.30); "o Pai está em mim e eu nele" (Jo 10.38);que nos lembram as declarações do prólogo sobre o Logos. O Filho

de Deus proclama abertamente sua preexistência: "Antes que Abraãoexistisse, eu sou" (Jo 8.56).Todavia, o Evangelho de João sabe, tanto como os Sinópticos

que, do ponto de vista do entendimento humano, semelhante pretensão é inaceitável: "Vós dizeis: tu blasfemas! E isto porque eudisse: sou Filho de Deus" (Jo 10.36). Isto se relaciona, indubitavelmente, a uma antiga tradição na qual se vê a "blasfémia" não

na pretensão de Jesus de ser o Messias, mas na de ser, ainda que

Ela nos lembra ao mesmo tempo a voz que, segundo os Sinópticos, chama a Jesus"Filho bem-amado" durante seu batismo e lhe dá, implicitamente, a missão de assumir o papel de Ebed lahweh.

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• 394 Oscar Cullmaim

velada, o Filho de Deus. A pretensão de ser o Messias não podia,em suma, chocar senão os romanos.630 Para os judeus, por outro

lado, o que devia forçosamente ser escandaloso era a pretensão deser Filho de Deus, sobretudo na forma que em Jesus esta se apresentava. Os judeus entendem bem esta palavra, ao ver nela umaafirmação de igualdade com Deus: "Tu, sendo homem, te fazesDeus" (Jo 10.33).631

Porém, o que se lhe recrimina, sobretudo, é fundamentar tamanha pretensão unicamente em seu próprio testemunho. O Cristo

 joanino responde a estes ataques (5.30 ss.; 8.13 ss.); busca provarque seu testemunho é verdadeiro e mostra como esta revelaçãopode ser reconhecida. O quarto evangelista não procede comoMateus e Lucas que, pelo relato do nascimento virginal, narram,de uma maneira por assim dizer material,  como Jesus foi geradopelo Pai. O Evangelho de João não explica o como. Jesus saiu doPai, e ele se limita a afirmar que ele veio do Pai. Mas, ele dá bases

para esta afirmação. Pode-se dizer que em suas discussões com os judeus (Jo 5 e 8), de certo modo ele apresenta uma "epistemologiacristológica".

Para podermos provar uma afirmação ordinária temos quechamar testemunhas e, geralmente, podemos encontrá-las. Porém,para provar que Jesus tem razão ao pretender ser Filho de Deus,nenhum homem está em condições de dar testemunho, unicamen

te Deus pode testificar acerca disso, por Ele ser a única testemunha competente, a única possível. A afirmação de ser Filho de Deusfaz todos os limites humanos estourarem de tal maneira que não fica

"'Cf. O. CULLMANN,  Dieu et César,  1956, p. 27 ss. Inversamente, a pretensãode ser Filho de Deus é  desprovida de interesse para os Romanos e não pode escandalizá-los.

11 Esta mesma interpretação está pressuposta em Jo 8,53: "Quem, pois, te fazes ser?"Cf. também o texto mandeu contra Jesus  (R. Ginza,  I, 200): "Ele disse: Eu souDeus, Filho de Deus, e foi meu Pai quem me enviou aqui" (M. LIDZBARSKI,Ginza, 1925, p. 29). Na medida que a pretensão de ser Filho de Deus signifique umapretensão de igualdade com Deus é, entre os judeus, passível de condenação (Ez28.2 ss.; Dn 6; cf. também At 12.20ss.; Mc 2.7 ss).

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(-RISTOLOGIA DO NOVO  T  liSTAMM.NTO 395

outra coisa senão o círculo: o próprio Pai deve testificar que Jesusé o Filho; por sua vez, é justamente no Filho que este testemunho

divino tem que»ser dado. O Evangelho não conhece pois mais doque dois meios para captar a revelação da filiação divina de Jesus.Io) Temos que conhecer o Pai e fazer sua vontade: "Se alguémquiser  fazer a vontade daquele que me enviou,  descobrirá  se omeu ensino vem de Deus, ou se falo de mim mesmo" (Jo 7.17). 2o)Temos que ver as obras de Jesus: "Se não faço as obras de meuPai, não acrediteis em mim. Mas se as faço, e não credes em mim,

crede nas  obras,  para que possais saber e  reconhecer  que o Paiestá em mim, e eu nele (Jo 10.37 s.).

Não há, nem pode haver, outro critério cristológico. É só seguindo este caminho, tornando-nos, nós mesmos, "filhos" - aceitandocom fé o testemunho que Jesus dá acerca da sua filiação divina efazendo a vontade de Deus - que poder-se-á reconhecer que ele éo Filho. É só assim que podemos testificar, com os apóstolos, "queo Pai enviou o Filho como Salvador do mundo" (1 Jo 4.14). "Aqueleque confessar que Jesus é o filho de Deus, Deus está nele, e ele emDeus (1 Jo 4.15). Já mencionamos este versículo que utiliza oantigo Credo cristão6-12 colocando-o inteiramente a serviço daquilo que denominamos "epistemologia cristológica" do joanismo.O paralelismo com Jo 10.38b é evidente. O que, neste versículo,

Jesus diz de si mesmo, pode pois ser entendido por aqueles quecrêem que ele é o Filho de Deus.Em conclusão, podemos dizer que o Evangelho de João pene

trou mais profundamente que Mateus e Lucas no segredo da consciência filial de Jesus. Deu acertada expressão, em particular, aosdois aspectos inseparáveis: a obediência e a unidade com o Pai;porém, contrariamente ao Jesus histórico, "proclamou dos telha

dos" o que Ele disse ocultamente.* * *

Cf. acima, p. 379 s.

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3% Oscar Cullmaim

Os demais livros do Novo Testamento não empregam estetítulo senão muito esporadicamente. Vimos que para Marcos a fé

em Jesus "Filho de Deus" ocupa um lugar primordial ainda que,como o próprio Jesus, evite falar abertamente disso. Paulo falamuito mais do Kyrios sem desconsiderar, no entanto, o título deFilho. Porém, este título está totalmente ausente nas Epístolas Pastorais, na de Tiago e na primeira de Pedro;633 no Apocalipse sóaparece uma vez (Ap 2.18) e duas vezes emAtos (At 9.20; 13.33).Parece, consequentemente, que em amplos círculos do cristianis

mo primitivo muito cedo se perdeu o sentido do alcance que podiater a consciência de Jesus de ser o Filho de Deus para explicar suapessoa e sua obra.634

Não ocorre o mesmo no que toca à Epístola aos Hebreus. Jáconstatamos, repetidas vezes, o estreito parentesco que a une aoEvangelho de João em todas suas afirmações cristológicas essenciais: aqui nos deparamos com ela outra vez.635

Verdade é que o autor desta Epístola se ocupa principalmentedo sumo sacerdote. Com efeito, sua contribuição original e pessoal à solução do problema cristológico consistiu em agrupar as afirmações relativas à fé em Cristo em torno desta noção; e já destacamos as vantagens de seu esforço. Porém, também notamos quepara falar especialmente da preexistência de Cristo, une ao títulode sumo sacerdote o de Filho de Deus. A antiga tradição sobre

Jesus "Filho de Deus" lhe era, por certo, conhecida; pois cita afórmula de confissão de fé dando-a a conhecer expressamente como

Na 2 Epístola de Pedro (1.17), este título aparece somente uma vez onde o autor,recordando a transfiguração, cita o SI 2.7.A explicação que dá V. TAYLOR, The Names of Jesus, 1953, p. 57, ao fato de quealguns dão tanta importância ao título de Filho de Deus, enquanto outros quase nãoo empregam, não nos parece suficiente. Segundo o autor o título "Filho de Deus"

predomina ali onde o interesse se ampara, sobretudo, na pregação, enquanto faltaonde se centra particularmente no culto.Se é exato que o autor do Quarto Evangelho deva ser classificado, como o ternosproposto, entre os "helenistas" palestinos de que fala Atos (cf. acima, p. 241 s.), aEpístola aos Hebreus deveria, sem dúvida, ser classificada no mesmo grupo que aPrimeira Epístola de João.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TIÍSTAMENTO 397

tal: "Porque temos um Sumo Sacerdote... Jesus, o Filho de Deus,permaneçamos firmes em nossa confissão de fé"   (Hb 4.14).

Indiscutivelmente ele captou o sentido profundo desta confissão de fé. Por um lado, vê que a filiação divina de Jesus repousasobre uma missão: a comunicação da revelação divina. Compreende haver nisso algo de comum entre Jesus e os profetas da antiga aliança. Porém, quer demonstrar, por outro lado, que esta missão de Jesus é maior que a dos profetas pois, exatamente comoJoão, a apoia na unidade do Pai e do Filho. Cristo, também, desde

o começo se distingue dos profetas: ele é o "Filho"; "Depois dehaver em outro tempo, em muitas ocasiões e de diversas maneirasfalado a nossos pais pelos profetas, Deus, nestes últimos tempos,falou-nos pelo Filho" (Hb 1.1 s). Depois seguem os atributos quenos recordam o prólogo do Evangelho de João e que expressam aparticipação total do Filho na divindade do Pai.636

Para provar o caráter único do Filho, o autor mostra, com a

ajuda de citações do Antigo Testamento, que o Filho está acima detodas as criaturas, acima dos anjos (Hb 1.5 ss.), e de Moisés, quenão é senão um "servo" (3.6 ss.). Como já assinalamos, nenhumoutro escrito do Novo Testamento, à parte o Evangelho de João,afirma tão categoricamente a divindade de Jesus. A expressão"Filho de Deus" expressa aqui a unidade com Deus como em Jo10.33,  36. Os Salmos (por ex. SI 45.7 s.; 102.25) se aplicam a

Jesus e ele pode assim ser chamado diretamente Deus (Hb 1.8 s.),podendo a criação do mundo ser-lhe atribuída (1.10 ss.). Temosque observar muito especialmente a fórmula que introduz estascitações: "E disse ao Filho...". Ser"FilhodeDeus" significa, pois,participar totalmente na divindade do Pai.637

Por toda esta Epístola a cristologia do Sumo Sacerdote estáassociada à do Filho de Deus. O autor não esquece tampouco que

o tema da obediência  constitui parte integrante da concepção deFilho de Deus, por concordar, dito tema, tão adequadamente com

Cf. acima, p. 341 s.Sobre o nome de "Deus" diretamente atribuído a Jesus, ver o capítulo seguinte.

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CAPÍTULO  III

JESUS CHAMADO "DEUS"(©£OÇ)

Da utilização cristológica que o Novo Testamento faz dostítulos Kyrios, Logos e "Filho de Deus" resulta que eles implicama poss'2b})'iàaâe àe se chamar a Jesus "Deus": Deus, enquantosoberano presente, que desde sua glorificação rege a igreja, o universo e a vida de cada indivíduo (Kyrios); Deus, enquanto aqueleque se revela desde o começo (Logos); Deus, enfim, enquanto aque

le cuja vontade e ação são perfeitamente congruentes com as doPai, enquanto aquele que vem do Pai e ao Pai retorna (Filho deDeus). Mesmo a ideia de Filho do Homem nos conduz à"divindade" de Jesus, já que Jesus se apresenta aqui como a única e verdadeira "imagem de Deus". A pergunta se o Novo Testamento ensina a "divindade" de Cristo, deve-se pois, em princípio, responderafirmativamente; mas, sempre e quando esta afirmação não se

associe às especulações gregas posteriores sobre a "substância" eas "naturezas", na condição, pois, de considerá-la estritamente sç>bo ângulo da história da salvação. Fora desta história divina da salvação falar da "divindade" de Jesus careceria de sentido: em talcaso Ele seria simplesmente um dos tantos "heróis" que enchem ahistória das religiões e nada mais. Inversamente se o situarmosem outro plano que não seja o da história da salvação será coisa

igualmente desprovida de sentido distinguir entre Deus o Pai e o Logos  que é Deus no ato de revelar-se

Em razão de sua cristologia inteiramente regida pela históriada salvação, o Novo Testamento ensina a subordinação de Jesus

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400 Oscar Cullmami

Cristo a Deus, não no sentido do que mais tarde se haveria dechamar "subordinacionismo", mas no sentido de Jesus Cristo ser

Deus só enquanto este se revela. A reflexão teológica do Antigo edo Novo Testamento se orienta pela história da salvação; e nãoesgota, portanto, a essência de Deus. Se as confusões posterioresentre o Pai e o Filho, com razão condenadas pela igreja comoheresias, são totalmente estranhas ao cristianismo primitivo, issose deve, precisamente, a que este tem por tema central a históriada salvação. O perigo de semelhantes confusões surge no instante

em que se tenta resolver o problema cristológico por meio de especulações acerca da substância e das naturezas.638

Já que o Novo Testamento, partindo de uma série de concepções cristológicas fundamentais, chega à ideia da divindade deCristo no sentido indicado, a questão de sabei* se Jesus é efetiva-mente chamado "Deus" não tem, senão, importância secundária.Ou seja, examinaremos os textos que devem ser levados em conta,sem esquecermos, nem por um momento, que não são determinantes para saber se Cristo é Deus ou não. Se deste exame resul-tasse que o Novo Testamento não chamou a Jesus Deus, isso nãomudaria em nada, portanto, as conclusões a que já temos chegado.Se, pelo contrário, a explicação destas passagens mostra, como ocremos, que Jesus foi, em determinadas ocasiões, chamado "Deus",isso não faz senão confirmar o que foi exposto anteriormente.

É deplorável que mesmo nesta questão, puramente exegética, adecisão dependa, tão amiúde, da cor teológica do exegeta. Aqui, também, não é somente a atitude "conservadora" mas também a atitude opostaque frequentemente influencia o exegeta.

Semelhante confusão prática se manifesta também frequentemente na piedade cató

lica popular. Até hoje o monofisismo domina o pensamento religioso do católicomediano, apesar de sua condenação oficial. Ainda na terminologia ocorre, amiúde,que não se faça distinção entre Deus e Jesus. Tem-se perguntado, com razão, se anecessidade da veneração mariana não se desenvolveu tão fortemente no povo católico porque o próprio Jesus, em razão desta confusão, se tem afastado do crente.Cf., por exemplo, M. THURIAN,  "Le dogme de UAssomption,. Verbum Caro,1951, p. 2-41.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 401

No fundo, as passagens nas quais Jesus leva o nome deKyrios,a saber o nome de Deus, são pelo menos tão importantes, se não

mais, para a questão que nos ocupa, que aquelas onde é direta-mente chamado "Deus". Vimos, com efeito, que o cristianismoprimitivo não teme aplicar a Jesus, ao dar-lhe o título de Kyrios,tudo o que o Antigo Testamento diz acerca de Deus.639  Causa-nossurpresa que um fato de tamanha importância não tenha chamadomais a atenção. Além disso, constatamos no capítulo precedenteque os adversários de Jesus perceberam, no emprego do título "Fi

lho de Deus", uma pretensão à igualdade com Deus, e que Jesusnão os contradisse.640

As passagens onde o nome de "Deus" aparece aplicado aJesus não são muito numerosas e, além disso, muitas delas apresentam dúvidas, do ponto de vista da crítica textual. Já na antiguidade foi atribuída, equivocadamente, muita importância à questãode saber se Jesus foi ou não chamado "Deus". Principalmente em

relação às polémicas cristológicas, a designação 0EÓÇ foi tida oracomo perigosa, ora como necessária. Daí as numerosas variantesexistentes nas passagens das quais nos ocuparemos em seguida.

Não temos que nos deter nos Sinópticos: Jesus não se chamou a si mesmo KÚpioç nem tampouco se designou Geóç, e osevangelistas tampouco parecem querer fazê-lo. Os testemunhosmais claros, e menos equívocos, da aplicação a Jesus do nome

6eóç se acham no Evangelho de João e na Epístola aos Hebreus.No quarto Evangelho há pelo menos duas passagens para as quaistoda contestação fica excluída: Jo 1.1  KOÚ GEÓÇ, f\v ó Xòyoç, e Jo20.28, a confissão de Tomé: ó KÍpióç u,ot> Kotv ò Geóç \iox>. Já dissemos641  que, de certa forma, estas enquadram o Evangelho inteiro.

6W

Deve-se classificar na mesma categoria a aplicação ao Filho do Homem, em Ap1.13 ss, da descrição do "Ancião de Dias" contida em Dn 10.5-7. O fato de que oautor não vacila em descrever sua visão do Cristo exatamente como Daniel descreveu a visão de Deus é importante do ponto de vista cristológico.

MUCf. acima, p. 392 s., a propósito de Jo  10.33, 36; 8.53.fi41 Cf. acima, p. 347.

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CRISTOLOGIA DO fNOVO  1 E5TAMF j]NTO 403

ítióç. A leitura Geóç é, sem dúvida, a melhor atestada, como qualquer edição crítica permite reconhecer. Se certos exegetas/ 144  no

entanto, preferem t>íoç é, principalmente, por causa da dificuldade que a leitura Geóç apresenta em razão do contexto, pois entãoteríamos que traduzir: "Ninguém jamais viu a Deus; o Único, Deus,que está no seio do Pai é aquele que o fez conhecer." liste texto,inquestionavelmente, parece ser alectio difficilior  que se quis tornar mais compreensível colocando víoç em lugar de  Geóç.  Comefeito, não se concebe como um copista, a fim de atribuir a Jesus o

nome de Deus, teria podido transformar inoç em Geóç sem suprimir, ao mesmo tempo, "que está no seio do Pai". Em troca, se aleitura Geóç é original, o fato de encontrar-se no contexto chocará,certamente, a leitores futuros, porém, ela não é inteiramente impossível dentro do âmbito do prólogo de João. Pois, no fundo, o quechoca é unicamente o paradoxo cristológico; porém, este já seencontra em Jo 1.1 e é, justamente, característico do Evangelho de

João. Ali lemos: "O Logos estava com Deus e o Logos era Deus".Que significa isto senão que Deus estava perto de Deus? Se é assim,está em perfeita concordância com o pensamento joanino que ninguém tenha jamais visto a Deus (o Pai), mas que Deus, enquantouovoyevTiç, revela a Deus na vida de Jesus que se passará a relatar.Referindo-nos, pois à melhor leitura, e em concordância com amaioria dos comentaristas recentes, agregaremos aos dois anterio

res este terceiro texto joanino que declara que Jesus é Deus

E à mesma conclusão que chegam W. Bauer, "Das Johannesevan-gelium" (Hab. z. NT), 3a ed., 1933, p. 29 s - C. F. Burney, The Aramciicorigin of   the Fourth Gospe,,  1922, p. 39 s., considera também a leituraOEÓÇ como a original, porém, crê dever explicá-la como uma traduçãodeficiente do original aramaico, segundo o qual deveria haver ali o genitívo(Seoíi): "O unigénito de Deus". Conforme o que foi dito mais acima, esta

1 Por ex.. R. BULTMANN, Johanneskonimentar, ad loc; o mesmo em H. CREMER-KÓGEL, Wõiierbuclt  desneutest.  Grieciúsch, III ad., ,9223 p. 490 e ttmbém C, K.BARRET, The Gospel According to St. John, 1955, p. 141 - embora estes doisúltimos não excluam inteiramente a outra possibilidade.

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4Ò4 Oscar Cullmaiw

explicação não nos parece necessária. Que jj.ovoyevfiç, se se adota alição ÔEóç, seja empregado como substantivo, não deve apresentar dificuldades acerca dos textos de história das religiões reunidos porR. Bultmann ena seu comentário, p. 47 ss.

Sendo claro o testemunho joanino, parece normal admitir comWindisch-Preisker,645 que a declaração de 1 Jo 5.20 se refira também a Cristo: "Sabemos que o Filho de Deus veio e nos deu entendimento para conhecer ao Verdadeiro; e estamos no Verdadeiro,em seu Filho Jesus Cristo. Este (ovioç) é o Deus verdadeiro  e a

vida eterna." Esta explicação impõe-se não só por razões filológicas,mas também por causa do próprio conteúdo da passagem queretoma, ao mesmo tempo, a unidade e a diversidade do complexoPai-Filho próprio do pensamento joanino.

* * *

Uma vez mais, não é de surpreender-se que, à parte o Evangelho de João, unicamente a Epístola aos Hebreus dê, sem dúvida,o nome "Deus" a Jesus. Esta Epístola pertence, com efeito, aomeio joanino. É verdade que a palavra "Deus" é empregada, aliásduas vezes seguidas (Hb 1.8 s.), só em uma citação do Antigo Testamento (SI 45.7 s.): "O teu trono, ó Deus, é  para todo o sempre"(v. 8) e "por isso, ó Deus, teu Deus te ungiu ..." (v. 9). Porém, cita-

se o Salmo justamente por causa do vocativo "ó Deus" e o autorsublinha expressamente que se relaciona ao Filho de Deus: 7rpòçxòv t>ióv (v. 8). Este vocativo tem, pois, para ele especial importância. Como no Evangelho de João, o que o torna possível é aqualidade única da filiação divina de Jesus. Isto corresponde perfeitamente ao resultado a que chegamos no capítulo precedente.Porém, ao mesmo tempo, se vê aqui que a distinção entre o Pai e o

Filho não fica, contudo, eliminada: segundo a interpretação cristãdo Salmo, a palavra "Deus" no v. 9 remete, na mesma frase, como

** H. WINDISCH - H. PREISKER,  "Die Katholischen Bríefe" (Hdb. z. NT),  3a ed.,1951,  p. 135.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 405

sujeito ao Pai, como objeto (no vocativo) ao Filho: "Teu Deus (oPai) te ungiu, ó Deus (o Filho)." Este texto se baseia num Salmoreferente à realeza em que Deus se dirige ao rei, dando-lhe o títulode "Deus" (cf. também Is 9.6).646 Assim, por seu modo de empregar esta citação, a Epístola aos Hebreus também como o Evangelho de João, atesta este paradoxo de toda cristologia: que JesusCristo, o Logos, está em Deus e é, ao mesmo tempo, Deus, pararecorrermos novamente aos termos do prólogo joanino.

Além disso, os versículos seguintes (1.10 ss.) da Epístola aosHebreus confirmam o que dissemos anteriormente acerca da relação entre o título Kyrios e a divindade de Jesus.647 Encontramos,com efeito, uma citação de outro Salmo (102.25 ss.); aqui aquele aquem o Pai se dirige não se chama "Deus", mas "Senhor", Kirie.Porém, esta citação tem o mesmo propósito que a do versículoprecedente, e é provar que o Filho de Deus está acima dos anjos,porquanto se se dirige a ele como a Deus.  Entre as designaçõesKyrios e "Deus" não há diferença essencial; isto vem também do

conteúdo da citação; o Kyrios que aqui se identifica com o FilhoJesus Cristo, é o criador do céu e da terra; "Tu, Senhor, tu no princípio fundaste a terra; e os céus são obras de tuas mãos", assimcomo no prólogo de João ao dizer acerca do  Logos:  "Todas ascoisas foram feitas por ele", não se estabelecia nenhuma diferençaentre o criador e o Salvador, tampouco faz-se aqui. Temos sublinhado, desde o começo, que esta distinção posterior favorecida

pela divisão trinitária do Credo e que aparece ainda hoje na maiorparte das dogmáticas,648  não se acomoda ao Novo Testamento.A distinção entre o Pai e o Filho não é uma distinção entre a criação e a redenção; é uma distinção entre Deus, enquanto se pode, arigor, falar dele independentemente de sua revelação, e de Deus,enquanto se fala efetivamente dele somente como do Deus que serevela. Tal é também o pensamento da Epístola aos Hebreus.

* * *

Para os demais testemu ti lios no Antigo Testamento, cf. acima, p. 237.Cf. acima, p. 305 ss.A Dogmática de K. BARTH constitui, a este respeito, uma exceção.

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406 Oscar Culíiitann

Se Paulo designa a Jesus como "Deus", não o faz tão abertamente como o Evangelho de João ou a Epístola aos Hebreus. Porém,

convém aqui, muito especialmente, lembrar aquela nossa observação inicial  de estar bem implícita a divindade de Cristo no títuloKyrios. Ora, o emprego deste título é muito frequente em Paulo, oque dá a entender que é por esse título ou na linha deste título queo apóstolo pensava expressar a divindade de Cristo. Dentre muitíssimas passagens, podemos tomar por ex., 1 Co 8.6. O hinocristológico de Fl 2.6 ss. com sua expressão  èv  p-Opcpf| Geoí>

ímápxwv, vai no mesmo sentido. Pois a  expressão "imagem deDeus"  (Cl 1.15) com a  qual  o  temos relacionado,649  supõe a"divindade" de Jesus (Cl  1.15 s.), tanto como o título Logos de Jo1.1. Em Cl 2.9, aliás, está claramente dito que em Jesus "habitacorporalmente toda a plenitude da divindade". Quaisquer que possam ser as relações desta passagem com as especulações gnósticas,é evidente que semelhante texto, como aqueles citados anterior

mente, tem  como consequência natural que se veja a "Deus" emJesus Cristo. O fato de Paulo orar a Cristo (2 Co  12.8)650  provatambém que ele podia, dado o caso, chamar a Jesus Geóç; mas, defato  ele o  fez? Isto não pode ser estabelecido  com certeza. Masmesmo se fosse isto teria sido nele excepcional Isso não tem desurpreender-nos  já que para  ele Jesus é o  Kyrios  e já que estenome,  "que está acima  de  todo nome", expressa claramente a

divindade de Jesus do ponto de vista de sua soberania presente; eé isto o que ao apóstolo interessa particularmente

Entre  as Epístolas positivamente autênticas há em especialuma passagem que deve ser considerada: Rm 9.5. É a conclusãode uma enumeração de todas as prerrogativas do povo escolhido,Israel: è\  &v ó XpiaTÒç TÒ Kcaà cápKa  ó cov è jri návxcov Geòç£Í )XoYnr òç  eíç xoi>ç aicòvaç, àpfiv. Cabem aqui duas possíveis

M!,Cf. acima, p. 231.*i0Cf. acima, p. 282 s., onde chamamos também  a atenção sobre a èTtitccAeíadai do

Kyrios ou de seu nome  (1 Co 1.2; Rm  10.12). Esta invocação está, ademais, nolimite da oração e da confissão  de fé e as supõe ao mesmo tempo.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TIISTAMENTO 407

traduções, segundo a maneira em que se colocar os sinais de pontuação. Ou bem, depois de aápica, pomos um ponto (ou pelo

menos uma vírgula) ou não. Sem ponto se obtém a tradução quesegue: "... dos quais, segundo a carne, veio o Cristo, o qual é Deussobre todas as coisas, bendito pelos séculos, Amém." Porém, secolocamos um ponto depois de aápica, a frase final em que estácontida a palavra Geóç é gramaticalmente independente de XpiCtóç.Então nos encontramos diante de uma dessas doxologias que Paulo costuma introduzir, ao chegar no apogeu de um de seus raciocí

nios,  e que neste caso se dirigiria a Deus, o Pai e não a Cristo.Depois da enumeração das graças concedidas a Israel, sendo a maiordelas o nascimento de Cristo segundo a carne, Deus (o Pai) é bendito por todos os seus benefícios: "Deus, que está acima de todasas coisas, seja bendito eternamente, Amém!"6íl

Não se pode a priori, e por razões teológicas, preferir uma ououtra destas soluções. Mas, não obstante, temos de declarar que se

bem que não se possa excluir a segunda, não é esta a que o examedo contexto nos predispõe a adotar.652 Aliás, as doxologias independentes costumam construir-se de outra maneira: começam peloatributo evXóyTrroç (cf. 2 Co 1.3; Ef   1.3),653 enquanto que nestecaso o sujeito apareceria no princípio. Consequentemente, não setrata de uma doxologia propriamente dita e independente, mas deuma aposição doxológica relativa a uma palavra antecedente: como

por ex. em Rm 1.25 e 2 Co  11.31,  onde Deus é louvado destaforma. Porém, mesmo fazendo abstração disso, a estrutura do primeiro membro da frase referente a Cristo Katá (Tópica exige, como

Segundo uma antiga conjetura do século XVIII, de J. J. WETTSTEIN, à qual K.BARTH, entre outros, adere em seu Rõmerbrief, 2a ed., 1922, p. 314 s (nota), deveríamos ler em lugar de ó div KtX.: WV Ó èiti rcávccov 8eóç Esta conjetura é pouco

provável pois o sentido que dela resultaria seria muito artificial: além das graçasenumeradas, o Deus onipotente pertenceria também a Israel.Sobre a história da exegese deste versículo cf. O. MICHEL, DerBriefan die Rõmer,1955, p. 197 s. MICHEL mesmo se pronuncia pela interpretação cristológica.No Antigo Testamento o SI 66.20 não é exceção senão aparentemente. Cf. a esterespeito M. J. LAGRANGE, Sawt   Paul, Epitre aux Romains,  2°  ed., 1922, ad loc.

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408 Oscar  Cullmarm

na fórmula de Rm 1.3 s., uma sequência que vá além do KaràoápKa.654 Ademais, as palavras àít\ -návtov são mais facilmente

compreensíveis se se referem a Cristo. Passam então de ser merafórmula retórica e fazem com que a enumeração dos sinais da eleição de Israel culmine nesta afirmação final: de Israel saiu, segundo a carne, aquele que está "acima de todas as coisas". Por conseguinte, se não podemos dizê-lo com certeza, é pelo menos provávelque em Rm 9.5 seja Jesus Cristo a quem se chama "Deus".

A crítica textual vacila quanto ao sentido exato de Cl 2.2:

"...para conhecer o mistério TOÍ> 8EOÍ> Xpicrtoí) »m qqem estãoescondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência". No entanto, esta lição é tida por original pela maioria dos comentaristas,tanto mais quanto ao fato de que a proposição relativa que segue(v. 3), e que se relaciona certamente aXpicrcoí), atribui ao Cristo oque ordinariamente se atribui a Deus.

Em troca, a fórmula contida em 2 Ts 1.12: Kaià  TT|V %ápiv

iox) Geoíi fipôv Kcd icopíor) 'Iricroí) Xpimou não pode apenasser considerada como uma simples expressão que se relacionaunicamente ao Cristo, embora esta possibilidade não fique inteiramente excluída. A fórmula análoga, contida em 2 Co 1.2: "Graça epaz àTtò Geoíi itcerpòç rpcov  KCCÍ íeopun)  'ITICTOV Xpiatoí)" parece mesmo demonstrar que se trata, em primeiro lugar, de Deus eem segundo de Cristo.

A passagem de Tito 2.13 dá lugar também a muitas interpretações. Porém, a mais provável é que, efetivamente, Cristo sejachamado ali "Deus":655  "Aguardando a bem aventurada esperançae a manifestação gloriosa TOO [iEyáXox>  QBOX) KaK GGttrpoç í>povXpCctov 'Ir|aoí>, quem se deu a si mesmo por nós, afim de...

fiSJ H. CREMER - KÒGEL,  Wõrterbuch des neutesit  Grieclhsch, 11a ed, 1923, p. 488,chama a atenção, aqui, à oposição basar-ehhim que se encontra no Antigo Testamento.

''"Contra M. DIBELIUS - H. CONZELMANN, "Die Pastoralbriefe" (Hdb. z. NT),3a ed.,1955, ad loc. Segundo este comentário, nos encontraríamos aqui (como emLucas) em uma etapa da evolução em que, apesar da possibilidade de uma transferência a Cristo dos atributos de Deus, se teria ainda ensinado uma cristologia estritamente "subordinacionista".

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 409

fazer-se um povo que pertencesse a ele, purificado por ele." O fatode que a fórmulaGeòç  KO.1 o«XT\P - amiúde empregada pava deno

tar a Deus656

  - não deva ser desmembrada, sem dúvida, já é umargumento contra uma distinção entre Deus e o "Salvador JesusCristo."657  Além disso (como em Cl 2.2 s.), o membro final dafrase, certamente relativa a Cristo, indica uma função que, de ordinário, só se atribui a Deus.658 Enfim, uma "inanifestação" escatológica simultânea de Deus e de Cristo não corresponde à esperança geral.659

Vale pronunciar idêntico juízo sobre 2 Pe 1.1 onde aparece amesma combinação de OEÓÇ KoCÍ atoxrip: èv ôiKcaoo"úvr| xov Qzovfipftiv Kcd atotfjpoç 'lT|aoí) Xpiccou A expressão empregada namesma epístola para designar a Jesus, KÚpioç  KOCÍ acoTtíp (2 Pe1.11; 2.20; 3.2, 18), prova que aqui 0eóç é, junto com oení|p, umatributo de Jesus Cristo. Constata-se pois aqui também que a nomeação cristológica GEòç é uma variante do termo mais corrente

icópioç.Se fizermos abstração de At 20.28, onde a leitura xoí> 0eoiJ é

muito incerta,661  chegamos à conclusão seguinte: naquelas poucaspassagens do Novo Testamento onde Jesus recebe o título "Deus",

wsIsto é justamente, também, o caso nas Epístolas pastorais. Cf. 1 Tm l1.1 2.3; 4.10;Tt 1.3; 2.10; 3.4; e também, Lc 1.47.

657Como paralelo ao adjetivo }xéyaç, que qualifica a Cristo, podemos citar 2 Pe 1.16,onde a jj.£7a>.etóxT\<; é igualmente atribuída a Cristo.

^8Cf. Ex  19.5; Dt 7,6; 14.2, etc."^ Outro trecho das epístolas pastorais (1 Tm 3.16) nãoé tratado aqui, pois o vocábulo

8EÒÇ é, visivelmente, uma correção de õç.í,w,Em Ap 19.11 s. o cavaleiro é chamado "Logos", "Fiel", "Verdadeiro", mas tem um

"nome que ninguém conhece senão ele mesmo". Seria este o nome de Deus?Aí '1 A leitura Kupíoi) é, também, muito bem atestada. No entanto é difícil reconhecer

qual é a lectio difficilior. A maioria dos comentaristas parece inclinar-se por fleoíi,

pois èKKXr|C>ía xov  KVpíoi) para qehal lahweh  é mais corrente (embora Ne 13.1também fala de qehal ha-elolúm). E. HAENCHEN, Die Apostelgeschichte,  1956,p. 531, nota 1, fornece uma explicação plausível acercada transferência ulterior de8EO\) para ícupíoti: havendo sido considerado o  TOÚ  iôtou como adjetivo qualiííca-tivo de aupctToÇ, se teria substituído 6eou porK\)píoi), a fim de evitar a aparência depatripacionismo.

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4") (}  Oscar Cullmann

esta qualificação se liga, por um lado, a sua elevação à dignidadede Kyrios (Epístolas de Paulo, 2 Pedro), e por outro, à ideia de ser,

ele mesmo, a revelação (escritos joaninos, Hebreus). De modo queesta qualificação no fundo não soma nada aos demais títulosdados a Jesus e estudados nos capítulos precedentes.

Em troca, a maneira em que Inácio de Antioquia dá mais frequentemente o título de 0eóç a Jesus, (cf.  E&tn.  1.1; Ef 1.1; 7.2; 15.3;19.3) anuncia já as discussões cristológicas ulteriores. No entanto, eletambém faz distinção entre o Pai c o Filho (Cf.  Esm. 8.1; Magn. 13.2).

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CONCLUSÃO

PERSPECTIVAS DA CRISTOLOGIADO NOVO TESTAMENTO

Ao finalizarmos nosso estudo, o plano que adotamos puraexpor a cristologia do Novo Testamento se revela. O exame sucessivo dos diferentes títulos fez ressãk&ras grandes linhas e, em pa.r-ticular, a grande linha mestra, regida pela história da salvação e darevelação. Evitando impor um esquema dogmático à cristologia

do Novo Testamento e estudando, em cada caso, os títulos atravésde todos os seus livros, cremos haver seguido o método mais adequado à finalidade perseguida. Pois em si, o Novo Testamento nãonos oferece uma síntese; porém, quer abranger o objeto da revelaçãopartindo de diversos pontos e sempre de um ângulo novo. O resultado, contudo, não é um mosaico esburacado desprovido de coerência e unidade. Pois cada concepção particular tende para urnacompreensão geral da pessoa e obra de Jesus; por outro lado, oestudo das relações recíprocas destes diversos conceitos nos permitiu - segundo cremos - escapar ao risco - que poderia resultardo plano adotado - de alinhar uma série de monografias independentes entre si. Ao contrário, demonstramos - esperamos que defornia convincente - que a complexidade da cristologia do NovoTestamento não impede sua unidade essencial.

Ademais, esta é a forma em que os próprios cristãos primitivos apresentam a síntese da revelação cristológica, ou seja, pç]aanálise dos diversos conceitos. Seu intento é responder à pergunta: Quem é Jesus? Seguindo os caminhos indicados pela variedadedos títulos cristológicos.

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412 Oscar Cullmann

De maneira que se nos impõem dois métodos se quisermosconstruir uma "Cristologia do Novo Testamento". Por um lado o

método cíclico; partindo de cada conceito estudado, se estendemlinhas para todos os elementos da história da salvação, mesmo quecada um desses conceitos não esclareça em princípio, senão só umdesses elementos ou um fragmento deles. Por outro, o método histórico e cronológico que unimos ao primeiro: cada título foi examinado sucessivamente a partir da história das religiões e de seuenraizamento no judaísmo, depois, quando o tema assim o exigia,

partindo das palavras e reações de Jesus e, finalmente, a partir doensinamento particular de cada autor do cristianismo primitivo.O emprego simultâneo de ambos os métodos, fez aparecer o eloque une as diversas soluções cristológicas.

Se, nestas últimas páginas, nos propomos falar brevemente doelemento comum para o qual temos chamado, em cada caso, a atenção, não é para proporcionar, apesar de tudo, uma síntese e fazer,

assim, o que os autores do Novo Testamento justamente não fizeram. A rigor, a verdadeira síntese, tal como cremos vê-la, não poderevelar-se senão a quem, com paciência, examina e estuda, separadamente cada um dos títulos cristológicos contidos no Novo Testamento.662 Se, com tal clara reserva pomos, no entanto, em relevoduas ideias principais que achamos a cada passo neste estudo,fizemo-lo para confirmar que o princípio adotado para a classifi

cação dos diversos títulos -  o Cristo encarnado, o Cristo que volta,o Cristo presente, o Cristo preexistente - não é um esquema imposto de fora, mas que corresponde efetivamente à própria essênciade toda a cristologia neotestamentária, ao princípio da história dasalvação. Apesar do método cíclico ou, melhor dizendo, graças aele (talvez por esta mesma razão devêssemos falar antes de umaespiral) se pôs em evidência uma linha diretriz, um movimento

2Também teremos de sublinhar, unia vez mais, que este livro não é, em primeir;»instância, uma obra de referência que se possa consultar sobre tal ou qual ponto tiacristologia do Novo Testamento. Não se deveria utilizá-lo assim, com efeito, senãona condição de havê-lo lido inteira e atentamente antes.

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CRISTOLOGIA DO NOVO TILSTAMHNTO 413

A variedade devida à multiplicidade tle títuloso do soluçõescristológicas, o constatar que os diferentes títulos crisioló^icos

são função da encarnação, do regresso, do senhorio pivsenU* ouda preexistência de Jesus e que não podem, poruinto, si* jtmiarsem inscrevermos todos eles em uma história  da salvação, piovam que o cristianismo nascente não respondeu à pergunta aivrca de quem seja Jesus por um mito já feito; mas baseado 1*111certo número de acontecimentos do primeiro século de nossa era,cujo alcance aqueles que então "faziam história" não chegaram a

discernir e que podem hoje ainda ser interpretados diversamente,sem ser por isto menos históricos: a vida, a obra e a morte deJesus de Nazaré e a experiência de sua presença e da continuação de sua obra para além de sua morte, no seio da comunidadede seus discípulos.

Fundada nestes acontecimentos, a cristologia do Novo Testamento foi concebida na perspectiva da salvação. Esta cristologia

não é um mito que teria sido imposto de fora a um Kerygma alheioà história da salvação. A forma em que os primeiros cristãos elaboraram as diversas concepções cristológicas, seu desenvolvimentoe sua significação teológica, coisa que temos estudado, prova ocontrário. Os muitos, já o constatamos, elementos tomados do meioambiente helenístico para expor a história cristológica da salvaçãonada muda disto: a cristologia, entendida como uma obra de sal

vação que se desenvolve desde a criação até a nova criaçãoescatológica e que tem por centro a vida de Jesus, em si, não pertence a ditos elementos helenísticos. E sendo que é em relação aestes acontecimentos do primeiro século, tidos por fundamentais,que o cristianismo nascente chega a sua compreensão cristológica,podemos até dizer que o próprio desenvolvimento desta elaboração cristológica faz parte da história da salvação.

Se reconhecermos que o conhecimento cristológico se desenvolveu de forma paulatina, principalmente seguindo certos acontecimentos históricos, compreenderemos melhor que a própriacristologia também tenha sido entendida como um acontecimento, como uma história.

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4 H Oscar Cullmami

Baseando-nos nos resultados de nossos estudos, intentaremosprimeiramente esquematizar, em grandes traços, uma história da

formação das crenças cristológicas dos primeiros cristãos; depoisda qual, faremos ressaltar os caracteres essenciais que lhes sãocomuns.60

* * *

O fundamento de toda cristologia é a vida de Jesus. Isto pode

parecer uma verdade banal; e, no entanto, não só é necessárioafirmá-la diante daqueles que negam a existência histórica deJesus, como também diante de certas tendências da teologia atual.O problema de se saber quem é Jesus, não se formula unicamentea partir da experiência pascal da primeira igreja. A vida de Jesus jáé o ponto de partida de todo pensamento cristológico; por um lado,em razão da consciência "messiânica" de Jesus e, por outro, em

razão das reações que sua pessoa e sua obra suscitaram em seusdiscípulos e no povo.

Desde o seu batismo, Jesus teve consciência de ter de executar o plano de Deus. Isto é, de oferecer sua vida para o perdãodos pecados alheios, conforme a pregação referente ao  Ebed

 Iahweh; consciência também de ter que antecipar já em vida estefim, mediante sua pregação e suas curas; consciência, ademais, de

inaugurar o reino de Deus como o "Filho do Homem", que certoscírculos judaicos esperavam do céu (mesmo que ele o fizesse provisoriamente, na humilhação de sua humanidade); consciência,enfim, de cumprir esta dupla função de "Servo de Deus" e de "Filhodo Homem", em uma unidade perfeita, constante e única com Deus,na qualidade de "Filho".

Não foram na verdade algumas palavras que ele pronunciou aeste respeito com voluntária discrição, o que fez com que seus

Teremos de sublinhar, por precaução, que se trata necessariamente de uma visão deconjunto sumária; para quem não tenha lido os capítulos que precedem, este esquema não pode significar grande coisa.

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CRISTOLOGIA DO NOVO  T  INSTAMENTO 415

discípulos já formulassem, durante sua vida, a questão cristológica.Nem o povo, nem os discípulos compreenderam, a princípio, as

alusões mais ou menos veladas de Jesus. Foram, antes, as relaçõescotidianas com ele, o ensino e a ação dos quais foram testemunhas, o que lhes incitou a perguntarem-se quem era Jesus e qual osentido de sua ação. Isto é, que o problema cristológico devianecessariamente  impor-se a seus espíritos, se não quisessem terJesus como um alienado, como o tinham os membros de sua família e outros. Com clareza os evangelistas expressaram o que era

que lhes forçava a formular a questão cristológica quando declararam que as pessoas que ouviam a Jesus estavam "assombradas",664

assombro misturado com temor diante de sua "autoridade", suaè^ovaia: "ensinava, com efeito, com autoridade e não como osescribas" (Mt 7.29).

Quanto à resposta, não podiam no primeiro momento encontrá-la sem apelar às concepções correntes acerca da esperança judaica

do "Profeta do fim dos tempos" ou do Messias-rei político, concepções que não correspondiam à consciência que Jesus tinha desi mesmo. Só em raras ocasiões os discípulos intuíam uma resposta mais válida, mais exata, que não lhes havia sido revelada "porsangue e carne", como diz o Evangelho de Mateus. Acontecimentos extraordinários como, por exemplo, aquele do relato da transfiguração, podem ter dado uma referência histórica a estas revela

ções imediatas; porém, à parte tais indícios, seguia sendo para eles,todavia, incompreensível, o que Jesus queria significar quando sedesignava como o "Filho do Homem".

É só à luz de novos acontecimentos, a morte na cruz e, doisdias depois, o encontro com o Ressuscitado, que o problema deJesus assume teologicamente sua plena significação. Estes acontecimentos confirmaram e explicaram aquelas esporádicas ilumi-

Cf.  èxJtXíjcFcrecíTai:  Mt 7.28; 13.54;  22.33;  Mc 1.22; 6.2; 7.37; 11.18; Lc 4.32:9.43. Ganhei cocei: Mc 1.27; 10.24; 10.32; Lc 5.9. è^íotao9o(t: Mt 12.23; Mc 2.12:5.42; 6.51; Lc 2.47; 8.56. 6cconáÇeiv: Mt 8.27; 9.33;  15.31; 21.20; 22.22; Mc 5.20;Lc 4.22; 9.43; 11.14. (poPeTa6aa: Mt 9.8;  10.31; Mc 4.41; 5.15.

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'416 Oscar Culbnann

nações produzidas durante a vida terrena de Jesus, e alguns discípulos, ao menos, alcançaram, então, a compreensão destas suas

alusões que, durante sua vida, lhes pareciam tão obscuras.Sem dúvida, como o era para o próprio Jesus, a esperança doque ele haveria de ser no futuro  continuava objeto do interessecristológico, no sentido de que a aparição do "Filho do Homem"nas nuvens seria, doravante, esperada concretamente como umretomo de Jesus. Ademais, as concepções messiânicas correntes,aplicadas, até então equivocadamente a Jesus, podiam agora ser

retomadas: a cruz e a ressurreição, ao mostrar a pessoa de Jesusem uma luz totalmente diferente, haviam purificado estas ideiaselevando-as a um nível superior de verdade, sem que por isso oideal messiânico, recusado por Jesus, deixasse, no entanto, de desempenhar certa função.

Porém, o essencial era ver como a esperança na segunda vinda de Jesus poderia relacionar-se com uma explicação acerca de

sua primeira vinda. Já na igreja primitiva, o verdadeiro problemacristológico era constituído pela primeira vinda de Jesus e não tantopela segunda; e é falso, portanto, repetir constantemente nas exposições da teologia do Novo Testamento, que a igreja primitivapalestina se interessava unicamente pelo Filho do Homem ou peloMessias que vem; como se não houvesse diferença entre a doutrina judaica e a doutrina judaico-cristã acercado Messias; como se

a reflexão cristológica dos cristãos palestinos não tivesse absolutamente sido condicionada pela primeira vinda de Jesus, por suavida e por sua morte; como se só posteriormente, na igreja pagã-cristã e com Paulo, se tivesse começado a perguntar-se o que significavam a vida terrena e a morte de Jesus. Já é hora de não atribuir à igreja hierosolimitana semelhante incapacidade ingénua dever os problemas.

Na realidade, desde o momento em que se falava da parusia, aquestão acerca de sua relação com a primeira vinda de Jesus haviade formular-se forçosamente. Isto é, que a cristologia já se inscrevia, então, em uma reflexão sobre a história da salvação: Cristonão somente era aquele que vem mas também aquele que já veio;

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CRISTOLOGIA DO NOVO TKSTAMI-NTO 417

agora, o fato de que o mesmo que havia de vir em glória e tinhasofrido antes a morte, devia ter um sentido que era questão de se

descobrir.É assim que, baseada na lembrança de certas palavras decisivas de Jesus, constitui-se, então, uma cristologia do Ebed Iahwehque interpreta a morte de Jesus dentro da perspectiva cristológica.Ela parece ter adquirido, depois da Páscoa, uma importância particular, ao menos para Pedro, o qual, durante a vida de Jesus, haviase levantado contra a ideia da necessidade do sofrimento e da mor

te de seu mestre. Nos outros meios e, sem dúvida, nos dos "hele-nistas" palestinos (At 6-8) que, quiçá, tenham tido alguma relaçãocom círculos esotéricos judaicos, aos quais o autor do quarto Evangelho, talvez, pertencera, se buscou a solução de preferência nareflexão sobre o título de "Filho do Homem", que Jesus se atribuíaa si mesmo. Pois este título permitia precisamente ligar a segundavinda de Jesus à primeira. Os conceitos aí associados, não tinham

somente um caráter escatológico no sentido de Dn 7; podiam, também, por influência de especulações judaico-orientais relativas aoprimeiro homem e a Adão, ter levado a considerar Jesus como osegundo Adão, o homem celestial, a autêntica "imagem de Deus",concepção que, aliás, acharemos plenamente desenvolvida só emPaulo.

Porém, para que todas estas tentativas de explicação cristoló

gica encontrem seu equilíbrio verdadeiro e, ao mesmo tempo, todoo seu alcance, foi necessária a certeza inquebrantável, dominante,de que Jesus, como Senhor presente, reina sobre a igreja, o mundoe a vida de cada um. Foi unicamente a experiência com o Kyriosque deu o impulso determinante para o desenvolvimento de umacristologia orientada resolutamente para a história da salvação.

No culto, muito particularmente no momento do partir do pão,

é que este conhecimento do senhorio atual de Cristo foi dado aosprimeiros cristãos e confirmado em todos os demais domínios desua vida fraternal. Ao lado da vida terrestre de Jesus e da experiência pascal, é este regozijo litúrgico onde o Senhor faz sentir suapresença, ali onde é invocado (maranatha), e confessado (Kyrios

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418 Oscar CuUmann

christos), que é a raiz principal da cristologia do Novo Testamento. Daí se podia tirar as linhas e efetuar as conexões, pois esta

nova revelação, dada aos primeiros cristãos no culto, certificavaque este Senhor presente era o mesmo Jesus de Nazaré aparecidosobre a terra, crucificado e ressuscitado, e também o mesmoFilho do Homem que devia vir nas nuvens do céu. Assim, a féno Senhor a quem "todo poder é dado nos céus e na terra" - féadquirida no culto e na vida eclesial cotidiana - devia incitarnovas reflexões.

Por referência ao SI 110, citado pelo próprio Jesus, vimos arelação entre o Senhor vivo e o Jesus terreno na "elevação" doRessuscitado "à destra de Deus". A frequência com que se citavaeste texto mostra quão importante era, para os primeiros cristãos,ver garantida desta maneira a identidade do Senhor presente e doCristo encarnado. A função do Cristo na história da salvação seapresenta com clareza cada vez maior. Toda teologia se convertia

em cristologia. Se Jesus era o Kyrios, isso haveria de influenciartodos os demais títulos: a cada qual, portanto, ligou-se, tácita ouconscientemente, a perspectiva geral da história da salvação. QueJesus tivesse cumprido a missão do  Ebed Iahweh,  que fosse oMessias prometido a Israel, que houvesse vindo e devesse voltarcomo "Filho do Homem", tudo isto conservava seu valor, porém,aparecia em uma luz completamente distinta.

Porém, esta reflexão cristológica acerca do "Senhor", permanentemente regida pela experiência de sua presença e compreendida, desde então, como inspirada pelo Espírito Santo, tinha aindaoutra consequência: ele, a quem todo poder havia sido dado, aquem todas as passagens do Antigo testamento que falam de Deuspodiam ser aplicadas, devia estar agindo mesmo antes de sua vidaterrena. Do momento em que se considerava sua vida como a

revelação decisiva da vontade divina de salvação, haveria de seprolongar a linha da história da salvação em direção ao passado,para além da aparição de Jesus. Jesus foi reconhecido como o revelador por excelência: onde quer que Deus houvesse se reveladoCristo também estava presente; e assim surgiu, sempre na pers-

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CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 419

pectiva da história da salvação, a questão da relação entre o Cristoencarnado e o Cristo preexistente; a lembrança de certas palavrasde Jesus sobre o caráter único de sua filiação se desperta.

A obra terrestre de Jesus, considerada como o acontecimentocentral, foi assim colocada cronologicamente no meio de umalinha da salvação que aponta para frente e para trás.665 Como elarepresenta o centro da revelação de Deus, todas as demais revelações divinas devem estar-lhe relacionadas, pois não poderia haverrevelação divina que diferisse fundamentalmente da revelação dadaem Cristo. É assim que a cristologia se aproxima, por diversos

caminhos, do que a dogmática posterior haverá de chamar (em umsentido que não é, aliás, sempre o do Novo Testamento), a "divindade" de Cristo. Os caminhos que aí conduzem são: a consciênciaque Jesus teria de ser o Filho de Deus; a presença viva do Kyriosno culto, e a reflexão sobre o  Logos  no pensamento teológico.O Evangelho de João, as epístolas de Paulo e a Epístola aosHebreus, a despeito de todas as suas diferenças, não estão muito

afastados entre si no que toca a esta concepção cristológica fundamental.666  Ademais, noções cristológicas que à primeira vistaparecem situar-se em outra perspectiva, por exemplo, a de "Filhodo Homem", conduzem, também, à ideia de Jesus "imagem deDeus" e "existindo em forma (p.op(pr\) de Deus" (Fl 2.6).

Todo este processo de reflexão cristológica se desenvolve juntocom a ação missionária da cristandade primitiva. Ele era pois seri

amente ameaçado pelo contato com o pensamento helenístico esincrético do mundo ambiente, tanto mais pelo fato de que parafazer-se compreender necessitava estabelecer um vínculo com estepensamento; tomam-se assim dele certas concepções e até certostraços mitológicos. A própria fé no Kyrios adquire um relevo particular, porquanto o paganismo tinha uma concepção bem definida do Kyrios e também porque o imperador se fazia adorar como

SS5O que H. CONZELMANN,  Dei Mitte der Zeit,  1954, demonstra a propósito deLucas não é válido somente para este autor.

66(1 Cf.V/. BAUER,  "Das Johannesevangelium" (Hdb. z. NT), 3a ed., 1933, p. 6.

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420 Oscar  Cullmcmn

Kyrios. A ideia de Filho do Homem, que também tem suas raízesem antigas concepções de um primeiro homem divino, já havia sedesenvolvido em terrenos judaico e pagão, embora num sentidomuito diverso. Proliferavam por toda parte as especulações sobrea "Palavra" de Deus nas religiões pagãs e especialmente na filosofia religiosa do helenismo. Tudo isto teve influência no desenvolvimento da cristologia. Porém, insistir que a cristologia do NovoTestamento repousa em um mito gnóstico é condenar-se a nãocompreender nem os motivos profundos de sua formação, nemsua própria natureza. Abordar os textos com tais premissas - comose costuma fazer hoje com tanta desenvoltura - é inevitavelmenteimpedir-se de ver os motivos cristãos imanentes, a significação deacontecimentos tais como a vida, morte, ressurreição e presençalitúrgica de Jesus para a reflexão teológica; é, sobretudo, condenar-se a desconhecer totalmente as verdadeiras relações entre acristologia e a história das religiões. Elementos sincréticos e atémíticos foram, por certo, adotados. Porém, foram submetidos aum esquema cristológico que, precisamente, não está regido pelosincretismo, ou pelo helenismo ou pela mitologia, mas, pela história da salvação e por fim submetidos a um esquema, cujo caráteressencial consiste em ter por centro, desde o começo, uma história real.

Os principais temas da cristologia do Novo Testamento estão já formados e presentes no seio da igreja nascente. É aí, onde,vinculados aos acontecimentos desencadeados depois da morte deJesus, nasceram todas as afirmações cristológicas importantes,como o provam as confissões de fé e os hinos que surgiram dacomunidade primitiva. É verdade que é sobretudo nas epístolas dePaulo, no Evangelho de João e na Epístola aos Hebreus (valedizer, nos escritos originados em ambientes do mundo helenístico)que as diversas concepções cristológicas se desenvolveram eaprofundaram. Porém, não esqueçamos que não somente fora daPalestina mas também, por intermédio do judaísmo, nela ohelenismo exercia certa influência sobre a igreja primitiva. Os textos judaicos recentemente descobertos de Qumran que apontam

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CRISTOLOGIA DO NOVO  TESTAMENTO 421

elementos nitidamente sincretistas e fazem aparecer, por outro lado,pontos de contato importantes com o pensamento do Novo Testamento, mostram como certos grupos do cristianismo palestino primitivo - podemos pensar, por exemplo, nos "helenistas" de quefala Atos dosApóstolos -puderam, desde o começo, estar em contato com o pensamento helenístico. Cada vez mais se reconheceque o Evangelho de João pertencia a estes meios.

Mas então, há de se acabar com o esquema rígido: comunidade primitiva judaica - cristianismo helenístico. Não se pode esta

belecer entre a teologia da igreja pagã-cristã e a da igreja hiero-solimitana a distinção taxativa que se costuma fazer. Não somentecarecemos de textos que permitam uma delimitação precisa, comotambém se tem demonstrado, entrementes, que esta oposiçãotaxativa não existe. Fato este que também tem de ser levado emconta pela cristologia, sem desconhecer de modo algum, por outrolado,  que as concepções helenísticas influenciaram muito mais

poderosamente a igreja em ambiente pagão do que em ambientepalestino.Também temos de reconhecer que a compreensão cristológica

foi se formando por um processo. Porém, o essencial neste processo não é a passagem da igreja palestina à igreja congregada emterritório pagão, por importante que dita passagem seja. O essencial, antes, são as etapas seguintes: a vida e a morte de Jesus e as

alusões que ele faz à missão para a qual foi enviado; a experiênciapascal dos discípulos; a presença experimental e vivida do Senhorna vida e principalmente no culto cristão; enfim, a reflexão que sesente dirigida pelo Espírito Santo para com as relações que as funções do Cristo, por separadas que estejam no tempo, têm com aextensão inteira da história da salvação e da criação até a parusia.

Ligado como está ao fato central da vinda de Cristo, desdeeste ponto de vista, este desenvolvimento pode ser consideradocomo parte integrante da própria revelação.

* * *

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422 Oscar Cullmann

Se nos empenhamos agora em fazer ressaltai' os traços essenciais comuns a toda a cristologia do Novo Testamento temos que

mencionar, em primeiro lugar, esta visão de uma cristologia completa, regida pela história da salvação. Isto não se aplica, por certo,de forma igual a todas as concepções cristológicas. Costuma ocorrer que só uma das funções cristológicas seja esclarecida em todasas suas faces ou antes que a linha que devia religá-la às demais nãoseja traçada em toda sua extensão. Porém sempre, salvo o caso doProfeta escatológico, as demais funções cristológicas se apresen

tam de uma maneira ou outra. E sempre está aí, no fundo, implícita, a pressuposição de ser a encarnação - os sofrimentos, a morte ea ressurreição de Jesus - o momento decisivo, no curso do tempo,de toda a obra de Cristo. Qualquer que seja a função particular quese contemple, a identidade do Cristo preexistente, presente oufutura com Jesus de Nazaré, não está assegurada senão quando sereconhece que o Cristo é o centro de toda a revelação. Sem estareferência obrigatória à pessoa e à história de Jesus, se deslizariadiretamente para o docetismo ou o sincretismo. Jesus se converteria em um princípio filosófico-religioso; e sua vida histórica passaria a ser só um disfarce mitológico.

Por isso o docetismo, isto é, a solução cristológica para a quala obra histórica de Jesus não é o centro de toda a revelação deDeus, já é, para o Novo testamento, a heresia cristológica funda

mental: aquele que não confessa que Jesus Cristo veio em carne, otal é do Anticristo (1 Jo 4.2 ss.). Desde que o centro da revelaçãodeixou de ser o Encarnado, já não estamos mais no terreno dacristologia do Novo Testamento. O elo com a história da salvação,que é uma história real, temporal, nunca falta no Novo Testamento, inclusive ali onde se crê que ele está localizado no plano de umpensamento especulativo como, por exemplo, no prólogo do Evan

gelho de João. O quanto aí se diga acerca do "princípio", estásituado na perspectiva desta afirmação decisiva: "E o Verbo se fezcarne e habitou entre nós" (Jo  1.14). Quando este acontecimentotemporal é verdadeiramente o centro de toda a história do Cristo,pode-se falar também do Cristo preexistente e de sua relação com

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CRISTOLOGIA  DO NOVO TESTAMENTO 423

Deus, ou do "Senhor" invisível e presente, sem correr o risco decair nas especulações gnósticas e sincréticas. Por outro lado, estevínculo com o Cristo preexistente, com o Kyrios, com Deus, deveser estabelecido, já que toda a revelação de Deus está ligada a estecentro.

Esta visão de uma cristologia dirigida pela história da salvação que nos conduz da criação à plenitude, à realização de todas ascoisas na nova criação, passando pela reconciliação na cruz e oreino invisível e presente de Cristo, está dominada por dois aspectos essenciais que encontramos repetidamente ao estudarmos asdiversas soluções do problema cristológico: por um lado, o princípio de substituição, segundo o qual se desenvolve toda esta história; e por outro, a ideia de Deus que se comunica a si mesmo, aideia de revelação que reúne as diversas fases da históriada salvação, de sorte que o Cristo mediador da criação pode situar-se nomesmo plano que Jesus de Nazaré, reconciliando o mundo por suacruz.

Em Christ et le Temps expomos, em detalhe, como o princípio da substituição determina o movimento da história da salvação. Da multidão se passa, por redução progressiva, a um; e deste,que está no centro da marcha das coisas, se volta à multidão: pas-sa-se da criação à humanidade, da humanidade a Israel, de Israelao "remanescente", do "remanescente" ao Cristo encarnado; e emseguida se vai do Cristo encarnado aos apóstolos, dos apóstolos, àigreja, da igreja ao mundo e à nova criação. Porém, aquele que seencarna no coração mesmo do tempo, age também, de maneirasubstitutiva, antes e depois. Por isso achamos constantemente nostítulos cristológicos essenciais, esta ideia de substituição; quer setrate do  Ebed Iahweh,  ou do sumo sacerdote, ou do Filho doHomem, ou do Filho de Deus; porém, em cada caso, sob um ânguloparticular.

O Cristo é aquele em quem o próprio Deus se revela: tal é asegunda ideia principal que temos que pôr em relevo nesta breverecapitulação. Ela caracteriza especialmente as soluções cristoló-gicas estudadas nos últimos capítulos {Logos, Filho de Deus, Deus),

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424 Oscar Cullmann

porém, não se limita, de nenhuma maneira, a estes últimos. Em última análise, ela é subjacente a todas as concepções cristológicas:

principalmente naquelas que, como a de  Ebed, e em parte a deFilho do Homem, explicam o Cristo encarnado, a revelação deDeus tornada, por assim dizer, "palpável"; vimos sua. doxa queé adoxa do próprio Deus (Jo 1.14); pôde-se captá-la por todos os sentidos humanos (l Jo .ls  ss.). Se a vida humana e a morte expiatóriade Jesus, se estes acontecimentos que se podem datar historicamente, constituem a revelação de Deus em sua forma decisiva,

então, este conceito de revelação exige uma cristologia regida pelahistória da salvação; então todo o conjunto da revelação, antes edepois de Jesus Cristo, deve ter por centro a Jesus de Nazaré, crucificado e ressuscitado.

O Evangelho de João, Paulo e a Epístola aos Hebreus levamesta reflexão sobre a revelação até suas últimas consequências:Jesus Cristo é Deus, em sua auto-revelação. O Evangelho de João

tira esta última conclusão cristológica identificando Jesus com aPalavra pela qual Deus se revelou desde a hora da criação e pelaqual continua revelando-se ao longo da história da salvação; Paulo, considerando Jesus como o Kyrios que reina sobre o universo;e a Epístola aos Hebreus, dando a Jesus Cristo o nome de "Deus".Os primeiros cristãos não conhecem, quanto à revelação, o dualismoentre criação e redenção.

Considerar Jesus Cristo como "o revelador" por excelênciasupõe também uma afirmação acerca de sua pessoa, e não somente de sua obra; porém, no sentido de não poder falar-se de suapessoa senão em relação com sua obra A frase conhecida deMelanchton: Christum cognoscere est beneficia eius cognoscere,não significa certamente, se se quiser colocá-la na perspectiva doNovo Testamento, que a cristologia não trata também da pessoa de

Jesus. Os termos têm de poder ser invertidos: na obra pode-sereconhecer também a pessoa, isto é, sua relação única com Deus.Se no ápice do pensamento cristológico do Novo Testamento, Jesus Cristo é Deus enquanto aquele que se revela, então, não sepode falar de sua pessoa fazendo-se abstração de sua obra, como

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CRISTOLOGIA  oo  Novo  TESTAMENTO 425

não se pode, tampouco, falar de sua obra fazendo-se abstração desua pessoa. Desde o começo - e inclusive ali onde as consequên

cias finais não foram ainda tiradas - todacristologia une, de maneira absoluta, a pessoa e a obra; e o próprio Jesus tem consciência deassumir, enquanto Filho do Homem, os sofrimentos do Servo deDeus, e de ser precisamente assim o Filho único de Deus, uno como Pai.

Por verem em Jesus a revelação da salvação de Deus, os primeiros cristãos não podem reconhecê-lo como tal sem apoiarem-

se em sua obra, e fundamentalmente em sua obra central consumada por sua encarnação. Por isso, as especulações sobre as"naturezas" caem fora das perspectivas do Novo Testamento.A cristologia que este ensina trata das funções do Cristo.

Toda cristologia é, por conseguinte, história da salvação, etoda história da salvação é cristologia. Daí o fato de que a formulação estritamente cristocêntrica das mais antigas confissões de fé

nada sabe de uma distinção entre Deus como criador e Cristo comoRedentor, já que criação e redenção são inseparáveis, por seremambas atos pelos quais Deus se revela ao mundo. Se partirmos daobra humana de Jesus e formos até o fim da reflexão sobre o problema da revelação, fica impossível separar a redenção da criação.A morte expiatória de Cristo tem consequências cósmicas (Cl 1.20;Mt 27.51), e o Kyrios Christos presente não se manifesta somente

como Senhor da Igreja mas também como Senhor do universo.Por isso, do ponto de vista da revelação, não pode haver mais queum só Logos um só Kyrios um só Deus. Certamente, a distinçãoentre o Pai e o Filho se afirma no Novo Testamento, inclusive alionde se chegou até estas últimas consequências. Porém, não é umadistinção entre Criador e Redentor, mas entre a origem e o fim, deum lado (èí; e EÍÇ,  1 Co 8.6); e o mediador, por outro (ôiá,  1  Co

8.6); entre Deus e sua Palavra que, como tal, é ele mesmo e que,no entanto, não é ele mesmo, mas que está "com ele" (Jo 1.1) ou,como o dissemos mais acima, entre Deus, tal qual existe quandonão se volta para nós para revelar-nos sua vontade de salvação, eDeus tal qual se revela ao mundo. Só durante o tempo da revela-

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•426 Oscar Cullmaim

çao, neste tempo que começa com a criação do mundo e dura até oseu fim, tem sentido a distinção entre o Pai e o Filho. Onde não há

revelação, falar do  Logos,  isto é, da Palavra pela qual Deus serevela, carece de objeto. Os escritos dos primeiros cristãos nãofalam senão do Deus que se revela, do Deus voltado para o mundo; ou seja, da história que se desenvolve desde o "começo", de Jo1.1, até o''tudo em todos" de 1 Co 15.28; portanto, do instante emque a Palavra começou a surgir de Deus, como Palavra criadora,até o instante em que o Filho, a quem o Pai sujeitou todas as coisas, se sujeita, a si mesmo, ao Pai, depois de haver-lhe sido sujeitotudo o mais.

O Novo Testamento não pode, nem quer, instruir-nos sobre o"ser" de Deus, considerando-o à parte do ato pelo qual se revela;as investigações sobre o"ser", em sentido filosófico, lhe são totalmente alheias.667

Seu propósito é proclamar as magnalia Dei, as grandes obrasreveladoras de Deus feitas em Cristo. E se o Novo Testamento fazalgumas tímidas alusões a uma realidade situada além da revelação, é só para chamar nossa atenção ao mesmo tempo para a distinção e a unidade entre o Pai e o Filho, e para nos recordar quetoda cristologia é uma história de salvação.

* * *

É possível demonstrar aos homens de hoje a verdade destarevelação concedida aos primeiros cristãos? Pode-se provar logicamente que o centro de toda revelação divina reside na vida terrenae na morte de Jesus; e que a esta luz toda revelação há de ser considerada como uma história da salvação que, tendo começadoantes da encarnação, continua até o fim? Ainda hoje não há outro"método" de compreender a cristologia, senão aquele que está

exposto nos capítulos 5-8 do Evangelho de João. Pois para o

É o que desconheceu a maior parte daqueles que criticaram a maneira em que temosexposto as noções bíblicas acerca do tempo em Christ et le Temps.

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CRISTOLÍJGIA DO NOVO TESTAMENTO 427

homem de então era tão difícil, como é para nós, crer no que paraos judeus era um "escândalo" e para os gregos uma "loucura".

Não se pode repetir suficientemente que a dificuldade de crer nelanão se apoia na "concepção mitológica do mundo" já superada daBíblia, nem que o progresso tecnológico de nossa época, com aeletricidade, o rádio e a bomba atómica, tenham feito, de algumamaneira, que a fé em Jesus, centro da história divina da salvação,seja mais inacessível aos homens do século XX que ao homemantigo; pois o "escândalo", a "loucura" é que acontecimentos his

tóricos datados - "sob Pôncio Pilatos" - representem o centroindiscutível da revelação de Deus; e que dali tenha que se compreender todas as demais revelações. Isto era também tão difícil deadmitir para o homem de então, como o é para o atual.

Vimos que os primeiros cristãos chegaram a esta compreensão por um triplo caminho: primeiro aceitando o testemunho contido navida de Jesus, comos acontecimentos da Sexta Feini Sani;i

e da Páscoa; em seguida, pela grande experiência litúrgica e pessoal da.presença do Kyrios, Senhor da igreja, do mundo e tia vidade cada homem, sendo este  Kyrios  idêntico ao Jesus da história;enfim, pela reflexão, efetuada na fé no Senhor presente e no Filhodo Homem crucificado, acerca da relação entre este Jesus Cristo etodas as demais revelações de Deus. Tais são as fontes da convicção cristológica do cristianismo primitivo. Para o homem de hoje

não há outra. Mas todas as três, fecundando-se mutuamente, sãoindispensáveis para compreender quem é Jesus.

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ÍNDICE DE AUTORES CITADOS

A

Aall,A., 329, 336

Albright,W.  R,241Allegro, J. M,. 36Alio, E. B., 313Alt, A., 357Andrae, T., 74Anricíi, G., 314

B

Baldensperger, W., 50, 184Bali, C. J., 99, 100Bardtke, H., 39,40Bardy, G,,  116,247Banett, C. K., 94, 100, 388,403Barth, K., 20, 221 ss.Baudissin, W. v., 263Bauer,  W., 158, 170, 328, 333, 336, 355,

371,388,403,419Bauerfeind, O., 365Baumgartner, W., 39, 48Bell, G. K., 23Bentzen, A., 36, 43, 78, 152Bernard, J. H., 244Bieneck, J., 358, 362, 363, 366, 371Bietenhard, H., 179, 295Billerbeck, P., 36,44,56,92, 100,115,116,

220Black, M., 206Boismard, M. E., 37, 328, 349Bonnard, R, 229Bonnei', C , 358Bornhausei', K., 170Bomkamm, G., 25, 60, 62, 193Bousset,W., 184,189,193,225,358,363,367Braun F M 49 241 388

Bréhier, E., 336Brownlee, W. H., 40, 83Buber, M., 82

Bultmann,  R., 20, 25, 48, 62, 71, 87 8g92,98,102,114,120, 166, 174,193,203 ,206, 208, 212, 266, 270, 281, 303, 315318,319, 329, 330 s., 336 s., 343, 3<)5 s

354, 358, 361, 367, 372, 38l387 ss. 403

Burchard, Ch., 40Buri.R,  71,72Burney, C. F., 99,100, 337, 388, 403

Burrows, M., 83

C

Cerfaux, L., 96, 260, 263, 273, 2!Charles, R. H., 185, 246Chylraeus, 141Clarksori, E., 140Conrady, L., 387

Conzelman, H., 291, 309, 313, 316, 408~419Cremer, H., 340, 403,408Cullmann, O., 18, 20, 27, 37, 41, 47 ; 61,

65, 76, 84, 93, 94, 98, 99, 103, 106,129'133, 162, 170, 205, 217, 243, 248, 262^274, 289, 295, 298, 301, 305, 366, 370^372, 374, 379, 380, 381, 383, 392, 394

Cumont, f,, 259

D

Dalman, G., 85, 92,  171,265Davies, W. D., 81Debrunnei', A., 158, 334Deissmann, A., 23, 260, 314Delling G 371

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430 Oscar Cullinann

Dibelius, Fr., 54Dibelius, M., 313, 316, 375, 408Diels, H., 330Dinkler, E., 187Dittenberger, W., 261Dix, G. H., 81Dobschiitz, E. v., 270Dodd, C. H., 23,71, 100, 189,329, 332 336,

340, 344, 356, 358, 367, 388, 389Dõlger, F. J., 314, 319,381Dornseiff,  313Driver, 80

Dupont,  C, 184Dupont, J., 340, 349Dupont-Somtner, A., 39, 40,41,  83Díiir, L. 335

E

Ebeling, H. J., 88, 165Eissfeldt, O., 39, 152

Elliger, K., 40, 116Engnell, I., 36,43,78, 81 s.Euler, K. F., 81

F

Fascher, E., 32Festugière, A. J., 332Fiebig, P., 184Flemington, W. R, 33Fohrer, G., 33Fõrster, W., 260,261, 262,263,265 s., 285,

290, 302, 306 ss.Fridrichsen, A., 203, 233Friedlânder, M., 116, 117Friedrich, G., 140, 373Fuchs, E., 24

G

Gadd, C. J., 355Gall,A. v., 148, 184Gastei', Th. H., 40Goguel, M., 48, 169Grasser, E., 71Gressrnann, H., 36, 152, 184, 315

H

Haenchen, E., 189, 409

Hamp, V., 335Harlé, P.A., 100Harnack, A. v., 25, 76, 94, 129, 315, 327,

372,376Harris, J. R., 336, 345Hasse, K. v., 374Hegermann, H., 84, 85Heitiníiller, W., 267Hennecke, E., 60, 385Henniri",W„  189Henry, R, 233, 237Hepding, H., 189Héring, J., 47, 81,106, 129, 148, 152,158,

167,179,220,221,224,230,232,236,245Herrrnann, L., 37Hertzberg, H. W., 116Hirschberg, W., 73

Homrriel, E., 275Horovitz, J., 73Humbert, P., 84Huntress, E., 358

J

Jackson, F. J. Foakes, 150, 154, 217Jenni, E., 152

Jeremias, J., 36, 37, 43, 76, 81, 82, 84, 85,93,99,  102, 115, 117, 191Jerome, F J., 116Johnson, A. R., 79Johnson, S. E., 39Jonas, H., 332Jung, C. G., 189

K

Kaseman, E., 24, 116, 132, 230, 327Kattenbusch, F., 206, 260Kern, O., 332Kittel, G., 84, 205, 334, 340Kleinknecht, H., 334Klostermann, E., 61, 88

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C-RISTOLOGIA  DO  NO VO TESTAMENTO 431

Jímeling, C. H., 184Kroll, J., 332JGimmel, W. G., 71, 72, 88, 89, 90, 92, 95,

96,  210, 305, 367, 377

Kuppcrs, W., 152Kuhn,  G., 170Kuhn, K. G., 39, 44, 117, 155, 241

L

Lagrange, J., 89, 90, 186, 373, 407Lake, K., 150,  154,217Leenhardt, F. J., 91Leisegatig, H., 329

Lerch,  D., 382Leuba,  J. L., 178Lichtenstein, E., 55, 106Lidzbarski, M., 48, 333, 394Lietzmann, H,, 48, 183, 198, 200Ljungmann, H.,  94Lohmeyer, E., 23 ,37,55 ,58,76 , 80 s., 88s.,

94,  157,236,247,282,314,355,372,384Lohse, E.,  83,91,93Loisy, A., 94, 388

Liitgert, W., 388Lutlii, K,,  Ítí4

M

Maclien, J. G., 385, 387Manso ti, T. W., 24, 76, 202, 204, 206, 214,

376Manson, W., 150, 189, 202,  211,214Mariana, 37

Mai'iès, L., 143Masson,  Ch.,231Maurer,  Chr., 76, 93 , 98 s., 104, 338Medico, dei, 39Melanchton,  Ph., 424Merx, A., 38, 158Messel, N., 186, 206Metzinger,  A., 40Meyer,  E., 173, 314, 372Meyer,  R., 34Michaelis, W., 89,  186,358Michel, O., 116, 125, 129, 170, 235

Milik, J. T., 143Moc,  O., 140Molin, G.,40Morgenthaler,  R., 298

Moule, C. F. D., 208Mowinckel, S., 42, 152Munck,  J., 37, 60Murmelstein, B., 191, 195

N

Neubauer,  80Nikolainen, A. T„ 89Nock, A. D., 332North, C. R., 79Nyberg, H. S., 36

O

Odeberg, H.,  190,241Otto,  R., 184, 187Otto.W., 314

P

Percy, E., 165, 166,  207,212Peterson, E. 48, 275Pliilometiko, M., 83Pohlenz, M., 330Preisker,  H., 404Preiss, Th., 142, 203, 204, 207, 209, 211,

213,240Procksch, O., 334, 343Priimm, K.260, 314, 330, 332Puech, H. Cb,, 48, 189

Q

Quell, G., 263, 334Quispel, G., 189

R

Rabin, Ch., 38Rad, G. v,,  107,357Rawlinson,  A. E. J., 150, 175, 204, 280 s.Rehm, B.,61Reicke, B., 292Reitzenstein,  R., 189, 245, 332, 345

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432 Oscar Cuilfnann

Rengstorf,  K. H.,  259,315Resch,  A., 387Reisenfeld,  H., 37, 43, 82, 372Rissi, M., 125, 129Robinson,  J. A. T., 96, 209Robinson,  J. M., 159, 163Robinson, W., 33, 79Roscher,  W. H., 259Rost. L.,  38Rowley,  H. H., 32, 75,79, 82, 114Rudolph, W., 74

S

Sahlin,  H., 344Sanders, J. A., 83Schaeder,  H. H., 189, 245, 332, 345, 351Schechtei', S., 38,41Sc li i Me,  G.. 122Sclilatter, A., 89, 99, 265, 363, 375Schleiermacher,  D. F, 251Schlier, H., 48, 338

ScLimidt,  H., 114Schnackenburg,  R., 345Schneemelcher,  W., 385Scliniewind, J,,  89, 375Schoeps, H. J.,  36, 43, 62, 74, 172, 193Schrenk,  G., 334, 371Scliulz, S., 242Schweitzer,  A., 71, 72, 179, 375, 376Schweizer,  E„ 83, 90, 91, 99, 102

Seidel í ri, R, 84, 85, 89Sellin,  H.,  36Sevenster,  G., 24Simon,  M., 115Sjõberg, E., 184, 185, 186, 187, 190, 191Spicq,  C, 116, 125, 129, 140, 141, 337Spina,  F„  175Staerk, W.,  38,41,313Stamm,  J. J., 251

Stauffer,  E,,  117, 155, 167, 171, 308Steindorff,  37, 43Stier,  E, 358Stork,  H., 116Stuiber,  A., 177Sukenik,  E. L., 40

T

Taylor, V., 98,106,166,176,206,, 311,375 ,396

Teicher, 3, L., 40Thurian,  M., 400Tondriau,  J., 260Trench,  259Trever,  J. C, 40

U

Usener,  H., 355

V

Vaux, R. de, 39Veil, H., 61Vermes, G,,  39Vielliauei', Ph.,  46Violet,  B., 358Volz, R, 34,36,37, 152

WWagner,  W., 313Waitz, H., 61Weiser,  A., 114Weiss, J.,  171Wellhausen,  J.,183, 203, 372Wendland,  R, 260, 313 s., 355Wendt,  H. H., 244Wensinck,  A. J., 74

Werner,  M.,  186Wetter,  G. R, 355Wettstein,  J. J., 407Williger,  259Windisch,  H., 123, 125, 127, 129, 404Wobbermin,  G., 314Wolff,  H. W.,  76, 81, 92, 107, 108Wolfson,  H. A., 336Wrede, W., 165, 166, 365, 369, 384

Wuttke, G., 116

Z

Zahn, Th.,  172,363Zimmerli, W., 79

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ÍNDICE DE REFERENCIAS BÍBLICAS

ANTIGO TESTAMENTO

Génesis 32.15 -  312 34.3-3121 - 333, 343 42.7Í.  - 957.7 -329  JuizÊÍ 45.7s. -  306

1 ss. -  344 3.9; 75 -  313 67.3;  7-312,397,40426 - 228, 230 s. 64.6 -31227   -  197. 222 7  samuel 66.20 - 407

2 - 197 9.16 -  152 69.2 s.  - 952.7   - 197, 222 7019 -  312 74 ,i.  - 953 -  197 24.7-152 72 -  1533.5 -  233 74.9  -  346-193 /7  Samuel 7S.9-3126.2 -  358 7.12 ss. -  153 80.18 -  18314-  109, 122 74 -  152, 357 S2.6   -  15714.13 ss.  - 114 28 -  402 S9.3 s.  -153

7S  ss.  -  114  /   Reis 7 - 35879 -  115 18-39 -  402 27 - 35822  - 82, 404 s. 79.76-  152 102.25 -  306, 397, 4052S.72 -  243 107.20 - 335

77 Reis 110-114, 119, 120, 121,Êxodo 13.15 -  313 142,  168, 173, 207,4.22 ss. -  357 208,  210, 240, 267 s.í12  - 100  Neemias 292, 298 ,41 872.46   - 101 9.27   -  313 110.4 -  114, 123, 13579.5 -  409 73.7 -409 747.15-335

28.41 -  15229.9  .t.v. -  125  J rí Provérbios1.6-  358 1.28   ss.  -  337

 Levitico 2.7-358 8.22 ss.  - 3374.5 -  125 38.7   -  358

 Isaías Números S íi/nwí 1.2 -  3579.12-  101 2  - 153, 354,358 9.6-357

2.7-94,357,367,396 72.2-312 Deuteronômio 8   - 226 77 /0 -3 12

7.6 - 409 8.4 -  183, 246 79-20-313fi.J -214 24.5  - 312 30.7 -35774.2 - 409 27.7-312 40.3-34118.15-35,60,63 29.7 -  358 42.7 -93,94,95,101,370

7.5  «. - 38 33.6 -  335 7 ss. -  77

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434 Oscar Cullniaim

6 -92 12  1  77,  ,1, II1, 123 7 - 120, 190, 218,41743.2 - 95 55.10 s.  -335 7.13 -  184 ss., 205, 210,

3;  11 -  312 60.16   - 312 219, 245, 353

44.23 -  306 62.11  - 312 13 s. -  184,227

45.7-312 63.8 -312 15 ss.  -  184 / / -357 76 -  157 10.5 ss.  -40175.2/   - 312

49.1 ss. -  77  Jeremiíí7.í Oséias3199 3.22 -  357 11.1  -3576-36 M<¥  -  312S -92 30.5 ,v. -  153 7oe/

50.4 ss. -  77 31  -92 2.25 ss.  - 3352.13  -77', 102, 107, liI, 31.20  -  351

236 5<S. 7 7 4  402  Miquéias

53.49 ss.  - 77 7.7   -  31253.1 -  101 Ezequiel

1 ss. -  107 2.1 -  183  Habacuque2 - 8 4 28.2  .«. -  394 3.18   - 312

53.3 -  85 37.21 ss. -  1534 917  s. 2VíCíiníi.T

5-93  DOII/ÊÍ 9.9v. - 1546 -105 2.47   -  265 73.9 - 4027-100 3.79 - 231S -88 25, 28 - 358  Malaquias70-  II1 5.2.3 -  265 7.6-357 / /   -  102,107 6   - 394 4.5-36

ESCRITOS EXTRACANONICOS

1 macabeus 24.1 ss. -  337 4 Macabeus4.39  3  312 48.10 -  43 6.29 -  123

44 w . -  34 7 0 ss. - 3 614.41 -  34 57.7 - 312 SibUiims

5.256   ss. - 362  Macabeus Sabedoria de Salomão15.13 ss. -38 2.13 ss.  -93 Enoque (etíope)

7.26 -  337 37  ss.  -  185, 192 Judite 16.7-  312 46-  1869.11  -312 7& 75 - 335 48s. -  186

48.2, 6-186 Baruque Salinos de Salomão 3  ,M.  - 1994.22  - 312 13.9-  357 70 -  187

77j.  -  754 52-186Eclesiásiico 77.27 ÍÍ   - 154 52.4  -  1871.1 ss. -  337 27 -  157 62 - 1864.10  3  357 18.4  - 157, 389 62.7 - 199

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C -RlST l )! .<)(i | A  tJO N<>V<>  I  I-S"l'AMIÍN'|'<l 435

69  1  186 13.32 1191,  8 58 . /('.V /íí .3  .' K>70.1 -  199 37; 52 -  35871 -  186 14.9 -  358 l'/i/il  (/c .-Ir/iíC <• \Y<I

83 .«. - 192  I?  .(.V.  l'M  .  P'1!

90.31  - 37 Apocaiipse de Bariu/tie

105.2  3 358 13.1 ss.  7  37  Ptiflillirnli' Ji' l>tiiii,isi !•

29s. -  154 12.23  - M 7Enoque (Eslav.) 40  1 154 14.9 -  11730.11 ss. -  191, 195 72 ss.  - 155  /9./0  -  117

20. 7 - 117 Ascenção de Moisés Testamentos dos Doze9.1 ss.  - 42 Patriarcas Textos de Qumrtm

 fíub. 6.7 ss.  - 117 7 QpHab li: 1 s. - 414 Esdras Sim.  7.2- 117 8 ss. - 41 ,  117

6.58   - 389  Levi 8.ll ss.  -  l17 Vil:  1  s.; 5 - 417.2Ó u, - 155 75-42 X: 9-4125-191 76 -42 7 Qso 2; 72 ss.  -1172S   s.  -358 18   -  117 1 QS 4: 23 -187

77  JJ.  - 155  Naftúli 5  - 236 9.11-41,  44 , 117, 15575-155,185,315  Benj.  5.8- SI 11111-33%

NOVO TESTAMENTO

 Mate tis 77./   M  - 47  76.13  -2051.1 ss. -  170 ss., 385 5  - 47, 59 74-381.16   - 386 4s..  -210,212 7<5 -363,359,362 s., 380

27 -316,319 5- 7 0 76 ss. -  362,3732.2 -  289 8  ss .  - 44 17  - 3(>3 ss., 375,379,3905.11 -47 11  -54 17  ss.  -366

75-94 74-59 78 - 2964.3 ss. - 362, 364 78 Í.  - 55 17.10  ss.  -45

8s.  -  163 79 -2 14 72 - 43, 596.9-378 25 s. -  376 18.18 ss.  -2117.71 -215 27-363,367,373 s., 390 20-277

21 - 266,  268 72.6   -  118 79.77-  12628-415 77-93 28 - 29729-415 78 ss. - 77, 97 27.9  - 175

8.76 Í.  - 97 25  - 175, 415 701,  - 5820  - 203,213 28 - 71 , 110 75 - 17527-415 57 s. -  203 57-374

9.8-415 39 s. -  89 46 -52

27-  175 41 s. -  212 22.22-41533  -415 13.54-415 4-/   -  292

10.17   ss.  -287 14.33 -  362 s. 23.37 -5357-415 75.22 -75 24.27-20635 ss.  -212 57 -415 37   .I.I.  -  206

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436 Oscar Cuibnann

25.1 ss., 14 ss.  -208 8.27 ss.  -22, 156, 162 s., BI ss. -  209 s. 212,367,373

26.25 -  158 2S -58

28   - 91 29 -  162,36563 -  365 30  - 16264-  157,  292 Si  9  90, 11127.11  -31,289 32 -  102,341

37   -  289 33  - 128, 162 s.42 - 289 3S   - 205 s., 24043  - 365 9.2 ss. - 37, 37251 -  139, 425 7 - 354,36354 -  363 77 .t.t. - 45

28.18   - 290, 373 7 3 - 4 3 , 5 919 - 297 57 -90

70.78   - 126 jtZí /i tv j. í 24-4151.1  -327,365,384 52 -4 15

77 - 93  .!.,  361 33-90)2  s -  ^W 38  - W ,  í>22 -4 15 45 -9 2 21124  -  372 47   .i,  -  17527-4/5 11.3 -  269 s.

35  - 369 78 -4152.2 - 341 12.1  .t.t.  -377,383

7-369 6 -3747   .t.t.  -394 7- 9010- 111 75 - 12812-  415 35 ss.  -114, 119, 172 s.,

 /S  ,(.Í  -  88 268 s., 367, 38119 s-  312 36   - 29227 ,(.  -201 s. 13.22 -  43

3.//   -363,330 32 - 374, 37628   -  203 14.8   - 903/   .ç.v. - 175, 378 2 4 - 9 133 -  120 55 ss. -  93

4.14  • 341 55-1184/ -415 67 - 359, 362 s.

5.7-363  s,, 330 67 s.  - !S6, 159 / J -4-15 62 -  177, 206, 240,29220-415 75.2 - 28941 -  280 2  .t.t. -  156, 16142-415 9; 72 - 289

6.2-415 78.26   - 2894 - 5 2 29 ss. - 36214 .t.t.  - 53 s.,58 32 - 28975-57 34  - 281,37257-415 39-363,384

7.57-415 76.19-292

7.2-34177-46

32  - 359,37335 - 37347 -316,40976 -46

2.4  - 38677   - 316 s.47-41552 -  130

3.2 - 34, 4475-48,50

22-9423 -  38523  .t.t. -  170, 386

4.3 -  3625  .t.t. -  2989  - 36222,  32-415

5.9-4157.76 -  52<?,55 - 4159.8 -  57

7S-36543-415

70.18   - 7177.2 - 274

74-41572.70  - 204 s.

50 -  89, 9573.3/   .«. - 88

77.22 .t.t. - 20618.38   -  17520.42  - 29222.20  - 91

57-9067 -  365<57  ss.  - 15969-  241, 292

23.3 -  289

4  - 16137  s.  -28924.5  - 137

1,1  -20,73,237,243,307,342, 347, 401 s,, 404,425 s.

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CRISTOLOGIA  DO NOVo TESTAMENTO 437

1 ss.  -222, 327 ss., 341 6.14 599 13.13  3  269 J   - 18 14 s. - 43 57-2438-  50, 341 15 -  166 14.2  J".T.  -  14177-344 27-244 6-341

13 - 387 .Í2  - 60 12 - 30314-  245,3293351,424  s., 59 ss-  -208  13 2 282 ,303

389 53 - 244 16 -  142, 39214 ss.  - 245, 350 54 -  208 26 -  239, 37475  - 50 69  - 377, 390 28 -  3497 7 - 6 0 7.14 ss.  3  378 330 126

 IS   3  389,  202 16-  393 75, Jó  -2822 0 - 5 0 77-395 16.12-376,39027-34,50  IS - 126 24  JW.  -28225-51,341 27-389 28; 32 -  393

2 9 - 9 5 .  99 s., 318 59-296 77-14129xs.  -95 s. 47 ,i, -389 17.5 •  39856 -95,99  s. 8.1 ss.  -426 9-14145-389 72 ss. -  378 77   ss, -  14149-2.S9 í  i  ss . -  ViA !4 - 3AQ57 -243,350 76 -393 77-141 ,340

2.7   ss.  -98 2S-393 24-14179-118 57-340 7&7J-14019 ss. - 98,  350 42 -  393 33 -  28927-118 45-340 33 ss. -  28922-340 46 -126,142 Jó -101

.3.2-60 57 - 340 39 -  28913  - 242,38 7 53 -  394 79.5 - 28974 - 98, 243 56   - 394 8 -  34076   - 98, 389 56   Í Í .  - 393, 394 74  -  2897S-67 ,389 9.4-391 79 ss.  -28928,30, 31  -50, 51 55-244 25-140

4.79-38 70.S-84 .JO -12427-351 11 - 99 20.13  -303

23 - 279 72 - 84 28   - 303, 3902 5 - 3 8 77v. - 83, 992í> -166  IS -  84  /tw.r dos  Apóstolos54-391 24-390 1.7 -3775S -241 50-349,393  /O -29542-318 33  -395,394 2.54-292

5-394 56-141,393 56-237,268,2735 ,w. - 428 37   s.  -  395 46   -  2735.77-201,391 .55 3  395 .í. 13 -102

79,  20-393 11.41  -392 74-102

24-340 47-119 22-3627-208 ,243 72,13 -289 26-10250-394 25-243 4.25;  30-10230 ss.  -  394 38 -  101 5.31 - 292, 31757.w. -341 48   - 208 6 ss.  - 417

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438 Oscar Cullmann

7.37   - 34, 60 23 -  298  //   Coríntios52  - 102 29  - 135, 232 1.2 - 40055 -  292 32 -  382, 392 5-407

56 - 205, 208, 240 .JV  -  292 20  -  2828.4-341 9.5 -  177,408 22 - 298

4  ,(,i.  - 341 70.9  - 284 5.78-23126  ss.  -  102 72 - 290, 406 4.4-23134 199 76   - 105 5-30236 ss. -  379 72.2  - 231 5.5 -  298

9.14; 21  -270 75.7   - 297 70 -  20820 -  396 /   .(.(. -  300 79 - 342

10.36 - 290 74 -  228 27   - 105, 12642  - 208 14.10  2  207

11.57   - 40744 -341 15.21 -  105 72-S - 406Jj\ 2ó  -151 13.13 -19

27 .(.  -33 7  Coríntios

72.20 ss.  - 394 1.2 -  270,406 Gíí/cíM.Í

73.J -33 9 -  383 3.27 -  22833 - 396 78  -  342 4.4 -  382, 387

16.6 -341 2.8 ,(.  -  Jj7 4  j. i.  -  36077.7-288 4.5 -  208 6   - 274

29  - 348 8   - 30*. 6 js,  -  383

57 - 2(Ja 5.7 -  100, 1056.2 s. -  298 6.6 -34120.28 -  409 3 -  30227.70-33 8.5.!.  -  260 EfésiosíJ.l-f -  102 6-18, 222,307, 324,406 1.3 - 407

9.76   - 369  /<? -  299 /ff>/H<MK« 70.26   - 291 74 - 298J,j  -  170, 178 11.25 ss.  - 277 20 - 2927.5 s. - 273, 354,408 24-91 22 - 299

4 - 237, 307 25  - 132 s. 4.11  -33

8 -282 72.5 -  284, 286 75 - 299 /§  JM. -  328, 344 28   - 33 24 -  22825 - 427 13.7   - 279 5.23 -  318

3.5 -  207 15.3 -  106, 11025 -  107 5-103 Filipenses

4.25  - 105 72 ss. -  135 2.5 ss. -  2195.70-382 75.20 -  135 2.6-231 s„ 235,419

72 ss. -  106,110,134,219, 27   - 126,226 i a..  - 106,208,213,232,223,  224, 230, 24 - 295 233,237,250,283,235,  249 25 -  290, 292 284,350,371,406

74-218,234 26 -  130,295 7 -  106, 232,24679-235 28   - 324, 382, 426 8 - 130

7.25 -  282 35 ss.  -55,179, 298 9 - 269,  3068 -287 45  - 220 9 Í.  - 1308.11 -298 45ss.  - 222, 223 2.70  - 297

74 ss.  -360,383 49 -  232 10 s.  -  29775  - 274 76.22 -  274 3.5 -  171

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CRISTOLOGIA  DO NOVO  l i s  i AMI-,NTO *l  11*

20-312,318 Tito 70 -  141,  132, 14.'21  -  232 1.3 -  315,409 13 - 292

2.70-209,409 13 s.  - 136

Colossenses75-319,409 74  - 125, 132, 131,  I i /

1.13  2  294, 383 5.4-315,409 57   - 13714 s. -38 3 77.16   - 14114 ss. - 298  Hebreus 12.2  - 13175-223,231,406 1.1 s.  -68 ,3 97 5-1 3015 s. - 406 7 ss.  - 342 22  - 13716-  18, 307,349 2-349 24 -  121,  133

 IS -  135, 299 2 s.  - 349, 398 13.8-  137, 13920  -  425 5-292

2.2  s.  -  408 5  M .  -  395  /   Pedro

9-406 8-  395, 398 1.19-  100, 12710 - 299 S Í.  - 395, 296, 297 .1.21 xv. - 1033.1  -  292 70 -  IS, 131,  139.  3<)7 22 - 126

9  s.  - 228 10 ss.  -  324, 397, 405 5.  /5  •  30670-231 2.5 ss.  - 246  /.M  - 12677-282 6-226 .'. ' 126, 292, 293

4.5-341 70  -  125, 132 / /   - 125

•1. *>  ,?()8

 /   Tessalonicenses 17 s.  - 131 2  Pttho1.1O 3 319, 382 3.6 - 397  /./ 311, 'HW

5.72 - 282 72 - 137 .(  .148 J3-207 4.3 ss. -  391 y /   3124.15  ss.  -319 74 - 40, 397  /íi -  40'J

77-218 15  -  126, 127, 128 77-3965.7s,  - 125 2.20 - 312

2  Tesalonicenses 8-  130, 397 5.2, 75-312,4097.72-408 9 -  125, 134

2.6   ss.  - 60 6.20  -  125, 135 7  /«TO

3,2 M. - 282 7   -  115,  121, 122 7.7 -  2277.3 -  136, 398 1 ss.  -351,424