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O SONO NORMAL THE NORMAL SLEEP Regina Maria França Fernandes Docente. Departamento de Neurologia, Psiquiatria e Psicologia Médica. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP. CORRESPONDÊNCIA: Disciplina de Neurologia. Departamento de Neurologia, Psiquiatria e Psicologia Médica. Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP. Avenida Bandeirantes, 3900. Campus Universitário Monte Alegre. CEP 14048-900 Ribeirão Preto, SP, Brasil. Fones: 016-36022546 / Fax: 016-36330866 / email: [email protected]. Fernandes RMF. O sono normal. Medicina (Ribeirão Preto) 2006; 39 (2): 157-168. RESUMO: O sono é um estado fisiológico cíclico, caracterizado no ser humano por 5 estágios fundamentais, que se diferenciam de acordo com o padrão do eletrencefalograma (EEG) e a presença ou ausência de movimentos oculares rápidos (rapid eye movements : REM), além de mudanças em diversas outras variáveis fisiológicas, como o tono muscular e o padrão cardio- respiratório. O EEG mostra alentecimento progressivo com o aprofundamento do sono sem movimentos oculares rápidos (Não-REM) e atividade rápida dominante de baixa voltagem, se- melhante à da vigília, durante o sono REM. Um ciclo noturno previsível de 90 minutos marca a variação entre os 4 estágios do sono Não-REM para o sono REM, descrevendo uma arquitetura característica, com proporções definidas de cada estágio, que variam segundo a faixa etária. Um bio-ritmo neuroquímico acompanha as variações circadianas do chamado ciclo vigília-sono, com mudanças específicas da temperatura corporal e da secreção de diversos hormônios e neurotransmissores, relacionados aos diferentes estágios do sono e da vigília. O conhecimento dos aspectos fisiológicos e das variações patológicas deste ciclo complexo deu margem ao desenvolvimento da Medicina do Sono e compõe as bases do estudo dos distúrbios do sono na prática clínica. Descritores: Sono; fisiologia. Fases do Sono. Sono REM. Ritmo Circadiano. Movimentos Oculares. 157 Medicina, Ribeirão Preto, Simpósio: DISTÚRBIOS RESPIRATÓRIOS DO SONO 39 (2): 157-168, abr./jun. 2006 Capítulo I 1– INTRODUÇÃO O sono é um estado fisiológico especial que ocorre de maneira cíclica em uma grande variedade de seres vivos do reino animal, tendo sido observados comportamentos de repouso e atividade, compondo um ciclo vigília-sono rudimentar, em animais tão infe- riores na escala zoológica como os insetos. Mas, a caracterização do sono por parâmetros eletrofisioló- gicos já foi feita em anfíbios, répteis e mamíferos, além do ser humano. Definir o sono não é tarefa simples, seja sob o ponto de vista fisiológico, seja com base na descrição comportamental do indivíduo que dorme. Assim, como veremos adiante, algumas fases do sono mostram ca- racterísticas eletrofisiológicas semelhantes às da vigí- lia (no eletrencefalograma, no padrão respiratório, na presença de movimentos oculares e de alguns movi- mentos corporais), diferindo de outras etapas do sono, em que há completa quietude e elevado teor de ondas lentas no eletrencefalograma (EEG). Isto evidencia a natureza não homogênea de diferentes etapas do sono, quando avaliado por registros poligráficos, dificultan- do uma definição simplista deste estado. Do mesmo modo, podemos dizer que, em sono, os indivíduos apresentam-se imóveis, ou com um re-

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O SONO NORMAL

THE NORMAL SLEEP

Regina Maria França Fernandes

Docente. Departamento de Neurologia, Psiquiatria e Psicologia Médica. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP.CORRESPONDÊNCIA: Disciplina de Neurologia. Departamento de Neurologia, Psiquiatria e Psicologia Médica. Hospital das Clínicas daFaculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP.Avenida Bandeirantes, 3900. Campus Universitário Monte Alegre. CEP 14048-900 Ribeirão Preto, SP, Brasil.Fones: 016-36022546 / Fax: 016-36330866 / email: [email protected].

Fernandes RMF. O sono normal. Medicina (Ribeirão Preto) 2006; 39 (2): 157-168.

RESUMO: O sono é um estado fisiológico cíclico, caracterizado no ser humano por 5 estágiosfundamentais, que se diferenciam de acordo com o padrão do eletrencefalograma (EEG) e apresença ou ausência de movimentos oculares rápidos (rapid eye movements : REM), além demudanças em diversas outras variáveis fisiológicas, como o tono muscular e o padrão cardio-respiratório. O EEG mostra alentecimento progressivo com o aprofundamento do sono semmovimentos oculares rápidos (Não-REM) e atividade rápida dominante de baixa voltagem, se-melhante à da vigília, durante o sono REM. Um ciclo noturno previsível de 90 minutos marca avariação entre os 4 estágios do sono Não-REM para o sono REM, descrevendo uma arquiteturacaracterística, com proporções definidas de cada estágio, que variam segundo a faixa etária. Umbio-ritmo neuroquímico acompanha as variações circadianas do chamado ciclo vigília-sono,com mudanças específicas da temperatura corporal e da secreção de diversos hormônios eneurotransmissores, relacionados aos diferentes estágios do sono e da vigília. O conhecimentodos aspectos fisiológicos e das variações patológicas deste ciclo complexo deu margem aodesenvolvimento da Medicina do Sono e compõe as bases do estudo dos distúrbios do sono naprática clínica.

Descritores: Sono; fisiologia. Fases do Sono. Sono REM. Ritmo Circadiano. MovimentosOculares.

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Medicina, Ribeirão Preto, Simpósio: DISTÚRBIOS RESPIRATÓRIOS DO SONO39 (2): 157-168, abr./jun. 2006 Capítulo I

1– INTRODUÇÃO

O sono é um estado fisiológico especial queocorre de maneira cíclica em uma grande variedadede seres vivos do reino animal, tendo sido observadoscomportamentos de repouso e atividade, compondoum ciclo vigília-sono rudimentar, em animais tão infe-riores na escala zoológica como os insetos. Mas, acaracterização do sono por parâmetros eletrofisioló-gicos já foi feita em anfíbios, répteis e mamíferos, alémdo ser humano.

Definir o sono não é tarefa simples, seja sob oponto de vista fisiológico, seja com base na descrição

comportamental do indivíduo que dorme. Assim, comoveremos adiante, algumas fases do sono mostram ca-racterísticas eletrofisiológicas semelhantes às da vigí-lia (no eletrencefalograma, no padrão respiratório, napresença de movimentos oculares e de alguns movi-mentos corporais), diferindo de outras etapas do sono,em que há completa quietude e elevado teor de ondaslentas no eletrencefalograma (EEG). Isto evidencia anatureza não homogênea de diferentes etapas do sono,quando avaliado por registros poligráficos, dificultan-do uma definição simplista deste estado.

Do mesmo modo, podemos dizer que, em sono,os indivíduos apresentam-se imóveis, ou com um re-

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pertório limitado de movimentos, os quais são de natu-reza involuntária, automática, sem propósitos defini-dos. A reatividade a estímulos auditivos, visuais, tác-teis e dolorosos é reduzida ou abolida em relação àvigília, particularmente em fases de sono profundo,sendo necessário o aumento da intensidade do estí-mulo para trazer o indivíduo de volta à vigília, o quenem sempre é observado, mesmo sob estimulação in-tensa, particularmente nas crianças. Durante o sono,o indivíduo mantém-se de olhos fechados ou entrea-bertos e não mostra interação produtiva com o ambi-ente. Nestes termos, o sono pode ser visto como umestado similar ao coma, especialmente nos casos decoma de menor profundidade, em que não há com-prometimento das funções cardio-respiratórias. Assim,o grande diferencial entre tais estados, à simples ob-servação do ser que dorme, é a característica de re-versão espontânea e mais ou menos programada aolongo do tempo do estado de sono para a vigília, o quenão é o caso do coma.

A evolução do conhecimento sobre o sono, tan-to em âmbito experimental, quanto na prática clínica,foi possível a partir do domínio sobre o registro dasondas cerebrais através do EEG, o que permitiu a dis-criminação objetiva entre vigília relaxada e sono, bemcomo, entre os seus diferentes estágios. Tal conheci-mento culminou, ao longo do século XX, com o desen-volvimento de registros poligráficos, valendo-se deoutras variáveis funcionais além do EEG, para a docu-mentação da fisiologia do sono e a melhor caracteri-zação dos seus distúrbios, com o nascimento da Me-dicina do Sono.

2- DADOS HISTÓRICOS

O primeiro registro das ondas cerebrais na su-perfície do crânio foi obtido pelo neuropsiquiatra ale-mão, Hans Berger, em 1929 (apud Niedermeyer E,2005)1, marcando o início da eletrencefalografia, quefoi incorporada à prática clínica à partir de 1930.Berger já havia ressaltado as diferenças entre as on-das cerebrais registradas na vigília e durante o sono,no qual dominavam ondas lentas e de amplitude cres-cente, conforme se dava seu aprofundamento. Assim,do ponto de vista do EEG, o sono era vinculado a umaatividade elétrica cerebral mais lenta e de padrão sin-cronizado, em comparação com a atividade maisdessincronizada e de baixa voltagem da vigília. Estesdados foram reforçados pelos trabalhos básicos de-senvolvidos em gatos por Frederick Bremer, em 1935

e 19362. O autor fez duas preparações nestes ani-mais, uma com secção da parte inferior do bulbo, de-nominada encéphale isolé, e outra com secção emnível mesencefálico, logo acima da origem dos nervosoculomotores, a que denominou cerveau isolé. Naprimeira preparação, foi observada manutenção de umaatividade elétrica cortical dessincronizada, com ritmosrápidos e irregulares, em resposta a estímulos visuais,olfativos, vestibulares, auditivos e músculo-cutâneos.No cerveau isolé, os estímulos ficaram restritos àsesferas olfativa e visual, não sendo suficientes paraelicitar um padrão de vigília no EEG, que mostravaatividade lenta sincronizada, como num sono profun-do. Assim, o autor postulou que o sono seria a repro-dução de um estado de deaferentação cortical rever-sível. Ao mesmo tempo, estudos em controles nor-mais e pacientes com queixas diversas relativas aosono estavam sendo realizados por Kleitman e cola-boradores, na Universidade de Chicago, desde o anode 19382. Estes autores faziam diversas tomadas doEEG durante a noite, na tentativa de avaliar os pa-drões encontrados no decorrer da mesma, em associ-ação com o comportamento observado do indivíduo.Kleitman passou a se interessar pelo registro dos mo-vimentos oculares, juntamente com o EEG, buscandoum outro marcador de profundidade do sono. A razãodisto era o grande campo elétrico produzido no escalpopelos movimentos dos globos oculares, muito superiora qualquer atividade motora detectável na superfíciedo crânio. Em 1951, Kleitman designou a função deobservar os movimentos corporais e oculares duranteo sono a seu aluno de graduação, Eugene Aserinsky.Estes pesquisadores observaram a presença de movi-mentos oculares em momentos nos quais o pacienteparecia dormir profundamente, em associação commovimentos corporais e irregularidade respiratória,inferindo a possível associação de tais episódios coma ocorrência de sonhos. Posteriormente, esta obser-vação foi comprovada através do registro dos movi-mentos oculares pelo eletro-oculograma (EOG) e dotono muscular na região submentoniana, o qual semostrava extremamente reduzido, ou abolido, nestesperíodos em que o indivíduo freqüentemente referiaestar sonhando, caso fosse despertado. Assim,Aserinsky e Kleitman caracterizaram pela primeiravez a ocorrência de um estágio particular durante osono em que ocorriam os sonhos, sendo marcado pelapresença de movimentos oculares, além de atonia ouhipotonia muscular, o que foi documentado na revistaScience, em 19533. Somente dois anos mais tarde, tais

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autores estabeleceram diferenciação entre movimen-tos oculares do sono, numa publicação de 19554, dis-criminando os movimentos oculares rápidos (do In-glês: Rapid Eye Movements, ou REM), associadoscom o estágio de sono em que ocorriam sonhos, dosmovimentos oculares lentos, registrados no início dosono, ou fase I, não-REM. A publicação de 1953 su-gerindo a existência do sono REM não mereceu cré-dito do mundo científico, uma vez que o sono era clas-sicamente associado à presença de atividade lenta esincronizada no EEG e a idéia de um sono profundode padrão eletrográfico rápido, dessincronizado, pare-cia inconcebível. Aserinsky e Kleitman, associados aDement, persistiram em sua pesquisa, desenvolvendoestudos poligráficos sistemáticos do sono, com regis-tro contínuo durante a noite. Demonstraram a marcadahipotonia do sono REM, documentando a ausência doreflexo H nesta fase e diferenciando-a definitivamen-te da vigília, do ponto de vista eletroneuromiográfico.Em 1957, Dement, Aserinsky e Kleitman descreve-ram a existência de um ciclo básico de sono noturno,caracterizado pela ocorrência de sono REM a cada90 minutos, após uma seqüência dos estágios do sonoNão-REM, repetindo-se 5 a 6 vezes durante a noite, oque resultou na publicação do trabalho seminal destesautores com a clássica descrição do sono REM5.

O estudo poligráfico do sono, batizado de polis-sonografia, foi inicialmente aplicado a quadros de so-nolência excessiva diurna vinculada especialmenteà hipótese de Narcolepsia. Entretanto, em 1965, adescrição da síndrome da Apnéia Obstrutiva do Sono,por dois grupos independentes, (Gastaut, Tassinari eDuron, na França6; Jung e Kuhlo, na Alemanha)7,abriu um campo vasto no conceito de Medicina doSono, sendo este um dos distúrbios do sono maisprevalentes, ainda na atualidade. Na verdade, esta sín-drome foi caracterizada em pacientes com quadrosclínicos já de longa data conhecidos pelos pneumolo-gistas e genéricamente citados como Síndrome dePickwick. O conhecimento sobre os distúrbios do sonolevou à formação de sociedades médicas internacio-nais, devotadas à Medicina do Sono e à elaboraçãodas classificações internacionais dos distúrbios do sono,surgindo a primeira em 19908, seguida por outra em19979 e, finalmente, pela mais atual classificação, pro-posta no ano de 200510. Com esta breve história sobrea evolução do conhecimento referente ao sono e suaaplicação na Medicina, passaremos a uma descriçãomais objetiva de aspectos relevantes sobre a fisiologiado sono no ser humano.

3- ESTÁGIOS DO SONO

A caracterização das fases do sono pode serfeita com base em 3 variáveis fisiológicas que com-preendem o EEG, o EOG e o eletromiograma (EMG)submentoniano (Figura 1). Através delas são caracte-rizados 2 padrões fundamentais de sono: sem movi-mentos oculares rápidos (NREM) e com movimentosoculares rápidos (REM). O sono NREM é compostopor 4 etapas em grau crescente de profundidade, osestágios I, II, III e IV. No sono NREM, há relaxamen-to muscular comparativamente à vigília, porém, man-tém-se sempre alguma tonicidade basal. O EEG exibeaumento progressivo de ondas lentas, conforme seavança do estágio I para o estágio IV do sono NREM.

Figura 1 : Parâmetros essenciais para o estadiamento dosono. EEG: eletrencefalograma; EOG: eletro-oculograma:EMG: eletromiograma submentoniano.

Durante a vigília, predomina o ritmo alfa, uma ativida-de elétrica cerebral em freqüência de 8 a 13 ciclospor segundo (Figura 2), que passa a se fragmentar,surgindo em menos de 50% dos trechos analisados,conforme se inicia a sonolência superficial, a qual jáse caracteriza como estágio I do sono NREM. Emseguida, o ritmo alfa desaparece, dando lugar a umaatividade mista nas faixas de freqüência teta (4 a 7ciclos por segundo) e beta (acima de 13 ciclos porsegundo), com poucos componentes delta de médiaamplitude, surgindo as Ondas Agudas do Vértex, quemarcam a sonolência profunda, ainda designada deestágio I do sono NREM (Figura 3). Com o aprofun-damento para o estágio II, além de um certo aumento

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IV compõem o chamado sono delta ou de ondas len-tas, devido ao elevado teor de ondas na faixa de fre-qüência delta (0,5 a 3,5 ciclos por segundo) de altopotencial (> 70 microvolts). No estágio III, o EEG éocupado por 20 a 50% destas ondas (Figura 5), quepassam a se registrar em mais de 50% do traçado noestágio IV (Figura 6), sendo esta a fase mais profun-da do sono NREM. As características gerais do sonoNREM são resumidas no Quadro I. Mais detalhes so-bre estes componentes podem ser vistos no capítulodeste simpósio referente à Polissonografia.

Figura 2 : Trecho de 30 segundos de vigília em traçado polissonográfico. Observe o predomínio de ritmo alfa nos canais de EEG.EOG-1 = Eletro-oculograma do olho esquerdo; EOG-2 = Eletro-oculograma do olho direito; EMG = eletromiograma submentoniano;EEG = canais de eletrencefalograma

Figura 3 : Trecho de derivações EEGráficas (EEG1 e EEG2) em estágio I do sono NREM. EOG-1 e EOG-2= Eletro-oculograma do olhoesquerdo e direito; EMG = eletromiograma submentoniano; Seta = Ondas Agudas do Vértex.

no componente de ondas delta no traçado, surgem osFusos de Sono (surtos de atividade rítmica de 12 a 14ciclos por segundos, com duração média entre 1 e 5segundos) e os Complexos K (ondas lentas bifásicasde alta amplitude, acompanhadas, ou não, de fusos dosono, ambos registrados na região do vértex e frontalsagital) (Figura 4). Outros grafoelementos de desta-que são os chamados POSTS (do inglês, PositiveOccipital Sharp Transients of Sleep: elementostransientes positivos agudos occipitais do sono), quepodem se manter em todos os estágios. As fases III e

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Figura 4 : Trecho de derivações EEGráficas (EEG1 e EEG2) em estágio II do sono NREM. EOG-1 e EOG-2 =Eletro-oculograma do olho esquerdo e direito; EMG = eletromiograma submentoniano; Seta escura = ComplexoK; Seta clara = fuso de sono.

Figura 5 : Trecho de derivações EEGráficas (EEG1 e EEG2) em estágio III do sono NREM. EOG-1 e EOG-2 =Eletro-oculograma do olho esquerdo e direito; EMG = eletromiograma submentoniano. A atividade do EEG geraondas amplas em 20% a 50% de traçado.

Figura 6 : Trecho de derivações EEGráficas (EEG1 e EEG2) em estágio IV do sono NREM. EOG-1 e EOG-2 =Eletro-oculograma do olho esquerdo e direito; EMG = eletromiograma submentoniano. A atividade do EEG geraondas amplas em mais de 50% do traçado.

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O sono REM recebe também as denominaçõesde sono paradoxal e de sono dessincronizado. Apesarde ser um estágio profundo no tocante à dificuldadede se despertar o indivíduo nesta fase, exibe padrãoeletrencefalográfico que se assemelha ao da vigília comolhos abertos, ou mesmo do sono NREM superficial(estágio I), sendo este um dos seus aparentes parado-xos. Além disto, apesar da atonia muscular que acom-panha este estágio, observam-se movimentos corpo-rais fásicos e erráticos, de diversos grupamentos mus-culares, principalmente na face e nos membros, bemcomo, emissão de sons. Ou seja, mesmo em meio ainibição motora, há liberação fásica de atividade mus-cular de localização multifocal, outro aparente para-doxo. O padrão predominantemente rápido e de baixavoltagem das ondas cerebrais neste sono justifica o

termo dessincronizado para o mesmo (Figura 7). En-contram-se nesta fase as chamadas ondas em dentede serra, atividade rítmica na faixa delta a teta (habi-tualmente, 2 a 5 ciclos/segundo) de aspecto serrilhado,que são uma das marcas do EEG no sono REM. Ascaracterísticas gerais do sono REM são descritas noQuadro II. No sono REM, a atividade metabólica, ava-liada por métodos funcionais e de medida de fluxo san-güíneo cerebral encontra-se aumentada em compara-ção com a da vigília, em diversas áreas do encéfalo.Isto demonstra que o sono não pode ser entendidonecessáriamente como um estado de repouso, paraeconomia energética, em comparação com a vigília,como se postulava inicialmente.

Figura 7 : Trecho de derivações EEGráficas (EEG1 e EEG2) em sono REM. EOG-1 = Eletro-oculograma do olho esquerdo; EOG-2 = Eletro-oculograma do olho direito; EMG = eletromiograma submentoniano. A atividade elétrica no EEG é constituida por ondas de baixa voltagem.Seta = movimentos oculares rápidos.

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4- ARQUITETURA DO SONO

Em condições normais, um indivíduo inicia o sononoturno pelo estágio I do sono NREM, após um tempode latência aproximada de 10 minutos. Uma latênciamuito baixa para início do sono NREM pode ocorrernos indivíduos privados de sono, ou muito cansados,sendo também encontrada em síndromes que cursamcom sono não reparador, como os distúrbios respirató-rios do mesmo. Após uns poucos minutos em sono I,há o aprofundamento para o sono II, em que se tornamais difícil o despertar do indivíduo. Após 30 a 60 mi-nutos, instala-se o sono de ondas lentas, respectiva-mente, os estágios III e IV, com interpenetrações deambos no decorrer desta etapa mais profunda do sonoNREM. Passados aproximadamente 90 minutos, acon-tece o primeiro sono REM, que costuma ter curta du-ração no início da noite (5 a 10 minutos), completan-do-se o primeiro ciclo NREM-REM do sono noturno(Figura 8). A saída do sono REM pode se fazer comintrusão de microdespertares (3 a 15 segundos de du-ração), sem um despertar completo do paciente, mu-dando-se para o estágio I e, em seguida, o estágio IIdo sono NREM, ou passando diretamente para esteúltimo estágio e, em seguida, aprofundando-se nova-mente nos estágios III e IV. Desta forma, cumprem-se cerca de 5 a 6 ciclos de sono NREM-REM, duran-te uma noite de 8 horas de sono. Os despertares po-dem ocorrer a qualquer momento durante o sono, apartir de qualquer estágio, seja de forma espontânea,ou eventualmente provocada por fatores extrínsecos

Movimentos oculares de padrão lento e ondu-lante marcam o estágio I do sono NREM (Figura 3),enquanto os movimentos rápidos do sono REM sãosalvas de abalos amplos e multidirecionais dos globosoculares (Figura 7). A respiração é regular à partir dafase II do sono NREM, atingindo-se máxima regulari-dade cardio-respiratória no sono profundo de ondaslentas, fase IV. Por outro lado, o sono REM é marca-do por irregularidades do padrão respiratório, comepisódios de bradipnéia, alternados com taquipnéia epausas centrais, inferiores a 10 segundos, em que háinterrupção transitória do esforço respiratório. Umairregularidade fisiológica na freqüência cardíaca co-mumente acompanha a variabilidade respiratória dosono REM. Neste, ocorre também tumescência pe-niana e clitoriana, que não são documentadas em re-gistros polissonográficos de rotina.

Os sonhos são uma manifestação de conteúdovisual, auditivo, verbal, somestésico e emocional, emgeral, com enredo seqüencial, passível de rememora-ção pelo paciente e de ativação autonômica, relacio-nada ao seu conteúdo (Exemplo: ativação simpáticaem sonhos que elicitam sensações de medo ou apre-ensão). Pode haver emissão de sons ou de fala duran-te os mesmos e a possibilidade de recapitulação dossonhos é variável, dependendo da duração do períodoREM em que ocorrem (maior quanto mais longo operíodo), ou de seu significado do ponto de vista afeti-vo, referente a memórias relevantes do indivíduo e,ainda, na dependência de ocorrer um despertar cons-ciente no decorrer ou no final do período REM em queo sonho se manifesta.

A exata função e significa-do dos sonhos ainda não pôde serexplicada de forma objetiva pelamedicina, havendo, contudo, evi-dências de que ele seja importantena reorganização sináptica e pro-cessamento de funções plásticas,referentes à homeostase em áreascerebrais relacionadas com memó-ria, aprendizado e funções psíqui-cas. A interpretação dos sonhos,baseada nas relações causais en-tre determinantes internos e exter-nos da vida psíquica do indivíduo edo chamado inconsciente, foi e ain-da é motivo de grandes especula-ções e pesquisa clínica na área dePsiquiatria. Porém, tal aprofunda-mento foge ao escopo deste texto. Figura 8 : Hipnograma do sono noturno

Fase I

Fase II

Fase III

Fase IV

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Figura 9 : Curva de variação da temperatura corporal ao longo das 24 horas do dia.

(exemplo: ruído) ou eventos patológicos (como apnéi-as, conforme citado em capítulos seguintes). É comumque o indivíduo não tenha consciência destes desper-tares, especialmente quando de curta duração e nãorelacionados com eventos anormais (pesadelos, qua-dros respiratórios, etc...).

Na primeira metade da noite, ocorre sono deondas lentas, estágios III e IV, em alternância com osdemais estágios, como se pode observar no hipnogramada Figura 9. Porém, o sono delta, III e IV, tende a nãomais ocorrer na segunda metade da noite e no ama-nhecer, quando há alternância entre os estágios I, II eREM, especialmente nos adultos. Em crianças até operíodo escolar, é comum a ocorrência de sono deondas lentas ainda no final da madrugada, em geral,de menores duração e profundidade do que na primei-ra metade da noite. Nos idosos, pode haver mudançasna arquitetura do sono, de tal forma que o sono IV nãomais se registra, havendo redução de sono III e au-mento do número de despertares noturnos. Isto expli-ca em parte porque alguns idosos são mais sonolentosdurante o dia, em vista de mudanças na fisiologia dosono com a idade, sem relação necessária com pato-logia definida. Por outro lado, esta não é uma regrageral e muitos idosos podem manter uma arquiteturarelativamente preservada como no padrão do adulto.Além disto, a avaliação cuidadosa costuma identificara presença de alterações psíquicas (depressão, ansie-dade), físicas (dores, distúrbios respiratórios do sono,

problemas urinários, quadros neurológicos) provocan-do a fragmentação do sono do idoso, com aumentodos despertares e superficialização do sono. Assim,este conceito geral sobre mudanças do hipnogramacom o envelhecimento deve ser aceito com ressalvas.

As proporções de cada estágio do sono duran-te uma noite típica, sem fenômenos anormais e comduração compatível com as necessidades do indivíduosão: 5 a 10% de estágio I, 50 a 60% de estágio II, 20a 25% de estágios III e IV, em conjunto, e 20 a 25%de estágio REM. A chamada eficiência de sono com-preende a proporção do tempo em que um indivíduodorme, em relação ao tempo total e que se mantevena cama para o sono noturno. É considerada normal apartir de 85%. Entretanto, uma eficiência de 100% érara, considerando-se a presença de despertares no-turnos, mesmo que inconscientes.

A necessidade diária de sono varia de acordocom a idade e de forma individual. O recém-nascidoprematuro, até a idade pós-concepcional de 32 sema-nas, apresenta apenas o sono REM. Ao nascer, esteainda predomina sobre o NREM, que aumenta pro-gressivamente em proporções no decorrer dos primei-ros meses de vida, até atingir as proporções do adulto,por volta do segundo ano. O neonato dorme cerca de80% do período das 24 horas de um dia, intercalandoa vigília de acordo com seu ciclo alimentar, mais oumenos a cada 3 ou 4 horas. No decorrer do primeiroano, há aumento no tempo de vigília durante o dia e do

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período de sono sustentado à noite. O lactente dorme13 a 15 horas por dia, contando com uma média dedois períodos de sono diurno; o pré-escolar dormeentre 12 e 13 horas, habitualmente com um período desono diurno. A necessidade diária de sono da criançaescolar situa-se entre 10 e 12 horas, no período no-turno, havendo grande resistência ao sono no decor-rer do dia, nesta faixa etária. Isto resulta em difi-culdade de se observar sonolência excessiva diurnaem crianças escolares com distúrbios que reduzem aquantidade total de sono. Nestes contextos, mais co-mumente elas manifestarão irritabilidade, déficits deatenção e de aprendizado do que franca sonolênciadiurna. A necessidade diária de sono do adolescentesitua-se em torno de 8 e 10 horas, sendo este maispropenso ao sono no período da tarde do que o esco-lar. Entre os adultos, a necessidade diária de sono va-ria de 5 a 8 horas, em média. A maioria dos adultosnão se sente completamente refeito de sua necessi-dade de sono com menos de 7 horas por dia, emboraas demandas socio-culturais habitualmente o impinjama dormir menos do que sua necessidade endógena.Pessoas com necessidade de sono muito reduzidacomo 3 horas/dia, sem qualquer comprometimento fí-sico, mental ou intelectual, são raras.

A privação total do sono em uma noite leva aofenômeno de rebote de sono, nas duas noites seguin-tes: assim, há tendência a aumento nas proporções desono REM, na noite seguinte à privação, e aumentodo sono NREM na segunda noite, voltando-se à ar-quitetura normal do sono noturno somente na terceiranoite. Isto é algo problemático para trabalhadores no-turnos, que mudam de turno freqüentemente, sem umesquema fixo. Eles podem exibir uma arquitetura desono sempre conturbada, além de sintomas de cansa-ço, irritabilidade, alterações de intelecto e sonolênciaexcessiva diurna, alternada com insônia.

5- CRONOBIOLOGIA E CICLO CIRCADIANO

A capacidade do indivíduo de adequar seu ci-clo de sono e vigília ao ciclo noite-dia da terra é guia-da por diversos elementos externos e internos que in-teragem para a manutenção de um ciclo circadiano(do latim: circa = em torno de; dies = do dia). Assim,a luminosidade e o calor do dia, a escuridão e a redu-ção da temperatura ambiental à noite, as variações deincidência de luz no decorrer do dia, os relógios, ossons das cidades e de animais (galo, pássaros, etc...)são elementos que nos condicionam a manter um rit-

mo de atividade alternada com repouso e intercaladacom funções de ingestão e eliminação, dentro do pa-drão circadiano.

Experimentos com voluntários humanos emambientes dos quais são retirados todos estes elementosindicadores do ciclo dia-noite mostram que, no serhumano, o ciclo endógeno situa-se em torno de 25horas, não obedecendo necessariamente as 24 horasdo dia geológico. Tais ambientes experimentais eraminicialmente cavernas com acampamento improvisa-do com luz artificial, ou, mais modernamente, aparta-mentos fechados e isolados de qualquer som ou luzexternos, bem como, desprovidos de relógio, TV ouInternet, que possam dar pistas ao indivíduo sobre oshorários do dia. Nesta situação, observa-se que ossujeitos começam a organizar suas atividades de modoa iniciar seu sono noturno com atraso de uma hora acada dia, em relação ao dia anterior, perfazendo umperíodo de 25 horas, a contar do momento do desper-tar após período de sono sustentado, correspondenteao sono noturno, até o próximo despertar. No final deum período de 25 dias, o sujeito entra novamente nohorário em que começou o experimento. Este é o cha-mado ciclo livre ou free running cycle, como é cita-do na literatura em Inglês. Algumas pessoas têm difi-culdades de sincronizar seu ciclo circadiano de repou-so-atividade, ou vigília-sono com o ciclo geológico esocial, mesmo diante de todos os parâmetros de con-dicionamento encontrados no ambiente. Assim, têmum período de sono irregular, com tendência a sempreatrasar uma hora a cada dia em relação ao momentodo início do sono noturno. Tal dificuldade, quandoendógena e não provocada por má-higiene do sono,tem sido classificada como um distúrbio do ciclocircadiano, designado “ciclo diferente de 24 horas”.

Do ponto de vista endógeno, o organismo hu-mano apresenta ciclos complexos de secreção hor-monal e de neurotransmissores, bem como, padrõesde atividade de determinados centros encefálicos, quese acoplam aos sincronizadores externos para permi-tir uma variação do bio-ritmo de repouso e atividade,em sintonia com o ciclo circadiano da terra. Um doscentros encefálicos mais importantes nesta sincroni-zação é o núcleo supra-óptico, no hipotálamo anterior,que recebe impulsos luminosos carreados pelo nervoóptico, tendo a luz como um dos elementos que con-trolam o funcionamento deste centro. Os estímulosluminosos também atuam sobre a glândula pineal, quesecreta a melatonina, um neuro-hormônio implicadona cronobiologia do ciclo vigília-sono. A secreção de

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melatonina segue um padrão programado, influencia-do pela luminosidade ambiental, com seu pico máximonas primeiras horas da noite, participando da tendên-cia do indivíduo a conciliar o sono. Este pico é consi-derado um dos “portões” de entrada no sono. Assim,se um indivíduo força o estado de vigília, lutando con-tra o sono neste momento propício, perde a entradaatravés deste portão determinado pelo pico de secre-ção de melatonina, tendo dificuldades de conciliaçãodo sono após. Obviamente, a melatonina não é o únicoelemento determinante desta periodicidade do ciclo vi-gília-sono no ser humano, mas certamente é reconhe-cida como um dos neuro-hormônios mais importantes.

Alguns hormônios e neurotransmissores têm suasecreção vinculada ao ciclo vigília-sono, facilitando oestado de vigília ou o estado de sono. Assim, nas pri-meiras horas da manhã, há aumento da secreção dohormônio tireoideano, de cortisol e de insulina, que sãofacilitadores da vigília, seja por aumento da taxa me-tabólica para a iniciação das atividades do dia, ou indi-retamente pelo aumento da glicemia e da utilização deglicose pelas células11.

O hormônio do crescimento tem seu pico desecreção durante o sono NREM de ondas lentas, as-sim como a testosterona. Distúrbios que levam à frag-mentação do sono em crianças (como asma brônqui-ca e distúrbios respiratórios do sono) podem ter re-percussões negativas no crescimento pondo-estaturaldas mesmas. Também, os sintomas de disfunção erétilmasculina encontrados no contexto da Síndrome daApnéia Obstrutiva do Sono, embora de fisiopatogeniacomplexa, que também envolve ativação simpáticarepetitiva durante as apnéias e fatores psicogênicos,podem ter em parte relação com déficit de testosteronadecorrente de privação crônica de sono. O hormônioantidiurético também tem seu pico de secreção notur-na, o que, numa visão teleológica, pode se relacionarcom a necessidade de se reduzir a produção de urinadurante a noite, evitando-se o despertar causado pelaplenitude vesical. Especula-se que crianças com enu-rese noturna idiopática possam ter imaturidade nestecontrole da secreção noturna do hormônio antidiuréti-co. Alguns peptídeos produzidos no trato gastro-intes-tinal, durante o processo de digestão, como a colecis-tocinina e a bombesina, atingem a circulação sangüí-nea e são comprovadamente indutores do sono NREM.Isto explica em parte a sonolência pós-prandial, alémda maré alcalina do sangue provocada pelo aumentoda secreção gástrica.

Outros neuro-transmissores são importantes naindução do sono, como a hipocretina, ou orexina, a

beta-endorfina, a encefalina, a dinorfina e a prosta-glandina D2, e da vigília, como a substância P, o fatorde liberação da corticotrofina (CRF), o fator de libe-ração da tireotrofina (TRF) e o peptídeo intestinalvasoativo (VIP). Maior aprofundamento neste temafoge aos objetivos deste texto11.

Dentre tantos mecanismos endógenos sincro-nizadores do ciclo vigília-sono, destaca-se a curva devariação da temperatura corporal interna. Esta sofremudanças em torno de meio grau centígrado nas 24horas, o que é suficiente para facilitar ou dificultar aocorrência de sono, conforme se observa na Figura 9.Nas primeiras horas da manhã, a curva começa a as-cender, facilitando a manutenção da vigília. A tempe-ratura interna máxima é atingida no período da tarde,entre as 16:00 e 18:00 horas, começando a decair len-tamente à partir do início da noite. Esta queda éfacilitadora da conciliação do sono. Na madrugada, oindivíduo atinge a temperatura corporal interna maisbaixa, o que é favorecedor do sono REM. Esta quedatérmica ocorrerá mesmo que a pessoa se mantenhaacordada em determinada noite. A seguir, à partir das6:00 horas da manhã, a temperatura começa a ascen-der, facilitando o despertar matinal11.

Um indivíduo que mude subitamente para umfuso horário muito diferente terá que se ajustar do pontode vista neuroquímico e da curva térmica a um novobio-ritmo. Enquanto isto, tenderá a sentir sonolênciaexcessiva em horários em que deveria estar despertoe insônia no período destinado ao sono. Um exemplobanal é a ocorrência de despertar, com sensação decalor, por volta das 2:00 da manhã, em indivíduos queviajaram de São Paulo para a Califórnia nos meses deverão do Brasil, quando há diferença de 6 horas entreos dois locais. Mesmo cansados do processo de via-gem e atividades diárias, tais indivíduos tendem a des-pertar por volta das 2:00 horas da manhã, que cor-responderia às 8:00 horas de seu horário original, emdecorrência de elevação de temperatura corporal, picode cortisol, de hormônio tireoideano e insulina nestehorário. Por outro lado, existe grande chance destaspessoas sentirem sonolência insuportável por volta das16:00 horas, que corresponderiam às 22:00 horas doseu horário original. Os sintomas decorrentes dosdesajustes de fusos horários são considerados aindamais intensos em viagens no sentido do leste. Isto ilustrao fato de que o ciclo vigília-sono é regido por bio-ritmoneuroquímico e funcional complexo, que não toleradesajustes abruptos e requer um tempo de adaptaçãoàs mudanças impostas por novos hábitos ou por gran-des mudanças de fusos horários.

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O sono normal

6- CENTROS ENCEFÁLICOS GERADORESDO SONO

Em linhas gerais, o estado de vigília é promovi-do pela ativação constante do sistema reticular ascen-dente do tronco encefálico, em decorrência de estí-mulos diversos que adentram a formação reticular.Todos os estímulos somato-sensoriais, como o própriofato do indivíduo estar em posição ereta, com a esti-mulação proprioceptiva característica, bem como, osestímulos visuais, auditivos, olfativos, gustativos e ves-tibulares, são carreados ao tálamo e ao córtex cere-bral, promovendo a vigília. Outros centros que condu-zem estimulação ao córtex promotora da vigília são: -o hipotálamo posterior, que contém neurônios histami-nérgicos, cuja inibição pelos anti-histamínicos induz aosono; -o núcleo basal de Meynert e o núcleo septal,nas porções basais e anteriores do diencéfalo. A ativi-dade tônica de neurônios catecolaminérgicos e coli-nérgicos da substância reticular ativadora ascendentemodula a ativação de neurônios destes centros sub-corticais e do córtex cerebral, promovendo a vigília.

O sono NREM, ou sincronizado, é iniciado pelaativação de neurônios serotoninérgicos da rafe no tron-co encefálico, que inibem a transmissão de impulsossensoriais para o córtex cerebral, diretamente, ou atra-vés do tálamo, assim como inibem a atividade motora.A transmissão sináptica através do tálamo é obliteradadurante a sonolência e bloqueada no sono de ondaslentas. Neurotransmissores como a adenosina e oGABA (ácido gama-amino-butírico), os opióides en-dógenos, a somatostatina e o hormônio alfa-melanocí-tico-estimulante facilitam o sono NREM. Neurôniosque contêm adenosina, situados no hipotálamo, são

sensíveis a bloqueadores do receptor de adenosina,como a cafeína e as xantinas, que atuam inibindo osono. Os benzodiazepínicos ligam-se a receptoresgabaérgicos pós-sinápticos, facilitando o sono NREM.

O sono REM é caracterizado por uma cascatade fenômenos, desencadeados principalmente na por-ção lateral do núcleo reticular pontino oral, situadoventralmente ao locus ceruleus (área peri-locus-ceruleus). No sono REM, a inibição talâmica sobre ocórtex é revertida, como na vigília, gerando o padrãodessincronizado no EEG. Neurônios da área peri-locus-ceruleus estimulam células inibitórias do nú-cleo reticular magnocelular da ponte que, através dotrato tegmento-reticular, inibem os motoneurôniosmedulares, causando a atonia muscular. A rede deneurônios do tronco encefálico que promovem a inibi-ção do tono muscular no sono REM usa acetilcolina eglutamato como seus principais neurotransmissores.

A ativação de neurônios das porções dorso-la-terais da ponte, adjacentes ao braço conjuntivo, co-nhecida como área peribraqueal X, estimula a produ-ção de potenciais elétricos no corpo geniculado late-ral, relacionados com funções visuais, e no córtex ce-rebral, principalmente occipital. Este sistema, relacio-nado com a produção de potenciais elétricos conheci-dos como ondas ponto-geniculo-occipitais, parece es-tar envolvido na produção dos movimentos ocularesrápidos e na geração do conteúdo visual dos sonhos.

A complexidade dos sistemas encefálicos ge-radores da vigília e dos sonos NREM e REM aindavem sendo elucidada através de pesquisa básica e osdados acima citados fornecem apenas uma visãosimplista do conhecimento atual sobre os centrosencefálicos controladores do sono e da vigília11,12.

Fernandes RMF. The normal sleep. Medicina (Ribeirão Preto) 2006; 39 (2): 157-168.

ABSTRACT: Sleep is a cyclic state characterized in the human being by 5 fundamental stages,based on the electroencephalogram (EEG) pattern and the presence or absence of rapid eyemovements (REM), as well as changes in other physiologic variables, like muscle tonus andcardio-respiratory pattern. The EEG shows progressive slowing with the deepening of the sleepwithout rapid eye movements (Non-REM) which evolves into REM sleep each 90 minutes duringnight sleep, comprising a predictable nocturnal sleep architecture, with definite proportions ofeach sleep stage. A neurochemical bio-rhythm follows sleep-wake cycle, with changes in bodytemperature and variations in the secretion pattern of neurotransmitters and hormones, related todifferent stages of sleep and wakefulness. The knowledge about physiological features andpathological variations of this complex cycle has enabled the development of Sleep Medicine andhas given basis to the study of sleep disorders.

Keywords: Sleep; physiology. Sleep Stages. Sleep, REM. Circadian Rhythm. Eye Movements.

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