O HOMEM; AS VIAGENS
O homem, bicho da Terra tão pequeno chateia-se na Terra Lugar de muita miséria e pouca diversão. Faz um foguete, uma cápsula, um módulo toca para a Lua desce cauteloso na Lua pisa na Lua planta bandeirola na Lua experimenta a Lua civiliza a Lua coloniza a Lua humaniza a Lua. Lua Humanizada: tão igual à Terra. O homem chateia-se na Lua. Vamos para Marte - ordena a suas máquinas. Elas obedecem, o homem desce em Marte pisa em Marte experimenta coloniza civiliza humaniza Marte com engenho e arte.
Marte humanizado, que lugar quadrado. Vamos a outra parte? Claro - diz o engenho sofisticado e dócil. Vamos a Vênus. O homem põe o pé em Vênus vê o visto - e isto? idem idem idem
O homem funde a cuca se não for a Júpiter proclamar justiça junto com injustiça repetir a fossa repetir o inquieto repetitório
Outros planetas restam para outras colônias. O espaço todo vira Terra-a-terra. O homem Chega ao sol ou dá uma volta só para tever? Não vê que ele inventa roupa insiderável de viver no Sol. Põe o pé e: eas que chato é o Sol, falso touro espanhol domado.
Restam outros sistemas fora do solar a col- Onizar. Ao acabarem todos só resta ao homem (estará equipado?) a difícil, dangerosíssima viagem de si a si mesmo: pôr o pé no chão Do seu coração experimentar colonizar civilizar humanizar o homem descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas a perene, insuspeitada alegria de con-viver
“O homem, bicho da Terra tão pequenochateia-se na Terralugar de muita miséria e pouca diversão”
Os primeiros versos desse poema em tudo impressionante deixam de pronto duas
coisas muito claras: o homem pertence à Terra e ele chateia-se nela. O homem tem sua
origem na Terra. Ele é um bicho da Terra. Com isso temos de dizer que entre ele e a
Terra há um copertença. Do mesmo modo que ele, por ter sua origem na Terra, pertence
a ela; ela, enquanto nascedouro do homem, pertence a ele. Ainda assim, a Terra não se
mostra o melhor lugar possível para o bicho homem, pois ele se chateia nela. Os
motivos para a chateação são também aí revelados: a Terra é “lugar de muita miséria e
pouca diversão”. Entendamos a palavra miséria em seu sentido mais lato e originário de
desgraça, desventura, infortúnio. O sentido de pobreza que essa palavra costuma tomar
é derivado. Diversão apresenta-se como oposta à miséria, portanto, graça, ventura,
fortuna e, também, riqueza. Devemos ter bem claro que tanto a terra enquanto lugar de
chateação, quanto de miséria e pouca diversão dizem respeito ao homem que não apenas
se chateia nela, mas que também a vê como lugar de muita miséria e pouca diversão: o
homem tão pequeno.
O homem tão pequeno, bicho da Terra, chateia-se na terra por ela ser um lugar
de muita miséria e pouca diversão. A pequenez desse homem pode ser compreendida de
dois modos interligados: ele é pequeno, pois é insignificante ante a própria Terra; ele é
pequeno, pois ante a miséria, ele apenas se chateia. Para tal homem, tão pequeno diante
da Terra, o único remédio é a diversão. Diversão é o que afasta, o que é diferente1.
Quem busca diversão, busca afastar-se, ser diferente. Mas afastar-se de quê? Ser
diferente de quê? Diversão é entendida como o remédio para o homem tão pequeno,
bicho da Terra, que se chateia na Terra. Portanto é o remédio para a chateação, não para
a miséria. A miséria ainda há. E continua havendo. A diversão afasta o homem do lugar
de muita miséria, a Terra; a diversão apresenta um lugar diferente daquela Terra.
Movido pela necessidade de diversão, de afastamento da Terra com suas misérias, o
homem “toca para Lua”. A ida para a lua representa o não querer ser o “bicho da Terra
tão pequeno”. Se não em se tornando num outro, então em se mudando da Terra. É o
que ele faz. Entretanto, na Lua, após “humanizar a Lua”, ela ganha as feições da Terra
que motivaram a viagem, “muita miséria e pouca diversão”, já que agora ela está “tão
igual à Terra”, em conseqüência, “o homem chateia-se na Lua”. Repete-se na Lua a
mesma chateação da Terra. Novamente o homem busca diversão. Agora parte ele para
marte, e o poeta revela que para isso, ele “ordena a suas máquinas”. Vemos que as
máquinas do homem estão a serviço do afastamento do Lugar de muita miséria que é a
Terra e do lugar de muita miséria em que a Lua se tornou.
Os artifícios puramente humanos, as máquinas, servem ao propósito da diversão.
O termo “máquinas” usado por Drummond não se entende a não ser como o conjunto de
desenvolvimento técnico-científico possibilitador de uma viajem ao espaço. Esse
conjunto é o produto final de uma evolução das ciências. No final dessa evolução,
podemos retroceder e entendê-la melhor desde seu fim buscando identificar em seus
momentos preparatórios o traço da intenção que ora se mostra de modo mais claro.
Apenas no fim podem-se descobrir as intenções de tal projeto científico, pois aí o seu
“passado foi como uma ‘strada / Iluminada pela frente, quando / O carro com lanternas
vira a curva / Do caminho e já a noite é toda humana” 2. A partir de nosso ponto,
podemos ver que o determinante oculto desde sempre das ciências é a diversão, a fuga
para a lua, ou para qualquer lugar onde não haja miséria e onde haja sim muita diversão.
A ciência em tentar descobrir o que somos tira o foco do que realmente somos, tal como
a religião que retira de nós nosso caráter sagrado ao delega-lo a um caminho que tem de
ser percorrido até um ponto este sim sagrado.
tudo o que afasta é diversão
ciência, filosofia , arte são diversões.1 HOUAISS, Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa, versão 1.0, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001.: do v.lat. divertère 'afastar-se, apartar-se, ser diferente, divergir'; 2 PESSOA, FERNANDO, Obra Poética. Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1995.