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    Moambique: educaoe desenvolvimento rural

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    Moambique: educao e desenvolvimento rural

    Lavinia Gasperini

    Edizioni Lavoro/Iscos

    Iscos 8Coleco do Instituto dos sindicatos para a cooperaocom os pases em vias de desenvolvimento

    copyright 1989Edizioni Lavoro Roma

    via Boncompagni 19

    capa de Aldo Gagliardiacabado de imprimir em Maro de 1989tipografia Union Printing,ss Cassia nord km 87, Viterbo

    A fotografia da capa de Lavinia Gasperini.Traduo de Cristina Castro

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    Sumrio

    Introduo de Nino Sergi p. 4

    Prefcio p. 7

    Prlogo p. 9

    Abreviaturas p. 10

    Captulo 1Direco cultural colonial e sistema educativo p. 11

    a) O antagonismo entre escola e no-escola na formao social colonial p. 11b) A contradio no sistema escolar colonial entre escolas de no-trabalho e escolas de trabalho p. 12c) O retrato dos colonizados feito pelos colonos p. 13d) O Estatuto missionrio e a Concordata p. 15e) O trabalho manual nas escolas missionrias p. 19f) Algumas consideraes p. 21

    Captulo 2A educao nas zonas libertadas pela Frelimo antes da independncia p. 22

    a) A unio estudo-trabalho na ideologia da Frelimo e a concepo educativa de Samora Machel p. 22b) As escolas primrias das zonas libertadas p. 26c) As escolas secundrias p. 27d) Algumas consideraes p. 28

    Captulo 3Continuidade e ruptura com a experincia das zonas libertadas: a independncia p. 31

    a) As mudanas no sistema p. 32b) A democratizao das escolas: a OPAE p. 33c) A escola primria p. 35d) Educao secundria p. 37e) O ltimo ciclo (10 e 11 classes) p. 39

    Captulo 4Algumas experincias p. 40

    a) Centro Piloto Janurio Pedro p. 40b) Escola Filipe Elija Magaia: actividades nos meses de frias p. 41c) e outras escolas primrias p. 42d) Escola secundria da Frelimo de Mariri p. 42e) Escola secundria da Frelimo da Namahacha p. 45f) Gcua p. 46

    Captulo 5Dois ns cruciais p. 50

    a) A formao dos professores primrios p. 50

    b) A mudana de sistema: o sistema nacional de educao p. 64Captulo 6A Universidade p. 67

    a) Antes e depois da independncia p. 67b) As actividades de Julho p. 68c) A Faculdade de Educao: os cursos de formao de professores p. 70

    Captulo 7Educao e desenvolvimento p. 87

    a) Educao e desenvolvimento rural p. 87b) Tentativa de formular o princpio da unio estudo-trabalho com base na realidade

    educativa de Moambique p. 89

    Notas p. 93

    Bibliografia p. 98

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    IntroduoDe Nino Sergi(director do Iscos-Cisl)

    A educao a estrada mestra para a preparao dos recursos humanos necessrios ao crescimentode um pas e ao seu desenvolvimento. Em Moambique, infelizmente, os programas educativosrealizados aps a independncia esto hoje seriamente ameaados por factores externos ao sistemaeducativo.Ao declnio econmico que se acentuou a partir de 1981, e s calamidades naturais como a seca e ascheias, juntaram-se os efeitos de uma guerra conduzida contra o governo por bandos armados pelaRenamo, apoiados pela frica do Sul e por ex-colonos portugueses.As situaes de emergncia e as necessidades de defesa trouxeram graves cortes despesa pblicadestinada educao, e determinaram a estagnao do sistema educativo em termos quantitativos equalitativos. As escolas foram um alvo privilegiado das aces de destruio e saque da Renamo, emilhares de estudantes e professores foram assassinados, raptados, mutilados.Segundo o ministrio da Eucao, na sequncia das aces dos bandidos armados, s 3.828 das

    5.682 escolas primrias em actividade em 1981 ainda funcionavam em 1987, e cerca de meiomilho de alunos e 5 mil professores abandonaram a escola, em xodo quer no interior quer noexterior do pas. Foram fechadas 25% das escolas secundrias, atingindo 20% dos alunos e 12% dosprofessores.No campo da educao, h ainda os custos humanos da guerra que, apesar de menos visveis que adestruio dos edifcios escolares, so muito mais graves. As atrocidades que centenas de milharesde jovens sofreram e os traumas que da vieram aumentam as responsabilidades do sistema deeducao, que procura hoje responder s novas necessidades dos jovens atravs de aces especiaisde reabilitao.Estagnao, destruio fsica, qualidade de ensino baixa, falta de meios e uma juventudetraumatizada vo precisar de recursos adicionais e mudanas profundas no sistema. Foi feito um

    apelo Itlia que de resto j est presente sobretudo na formao universitria e profissional e aoutros pases para que intensifiquem a sua interveno de cooperao no sector da educao, edediquem ateno especial componente formativa dos projectos de cooperao.A deteriorao do sistema de educao torna mais difcil a soluo dos problemas sociais eeconmicos e cria um crculo vicioso que compromete o futuro do pas. Para sair desta situao necessrio encontrar polticas que revitalizem o ensino e os programas de formao, tendo em contaquer a situao actual quer os progressos e os limites das experincias do passado.Muitas escolas analisadas neste volume foram teatro de atrocidades por parte da Renamo nosltimos anos. Inmeras experincias inovativas foram abortadas nascena, e a memria delascorre o risco de se perder. Trata-se de preservar o patrimnio de experincias que, apesar dos seuslimites e erros, foram conduzidas nos anos em que o pas pde viver uma situao de relativa paz,

    de modo a constituirem inspirao e encorajamento para se prosseguir na procura de um caminhonacional original. O contributo deste volume deve ser visto neste sentido.Aqui analisa-se em especial a forma como o sistema de educao construdo depois daindependncia pode preparar os jovens que acabam a escola a inserirem-se nos trabalhosprodutivos, sobretudo na agricultura, de modo a garantir a satisfao das necessidades primrias dapopulao, e como pode contribuir para travar a tendncia ao xodo do campo para a cidade. Comopode, por outras palavras, contribuir para promover o desenvolvimento.Moambique, pas nas prioridades da cooperao italiana 405 bilies de liras nos ltimos 7 anos ecerca de mil bilies em compromissos faz parte do grupo dos 28 pases mais pobres do mundo. Aanlise da realidade educativa moambicana mostra de que maneira a situao nos pases em viasde desenvolvimento articulada e complexa, rica de histria e de cultura, de especificidades epotencialidades prprias, e como a mesma pode dar indicaes teis a intervenes de cooperao,sobretudo no campo da formao e da educao para o desenvolvimento.

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    Este volume descreve como o sistema de educao herdado do perodo colonial era inadequado aosobjectivos de autogoverno e de crescimento econmico do novo pas independente (cap. 1). Aindaantes da independncia, nas zonas libertadas, e logo a seguir, pelo menos nos oito primeiros anos, aexpanso quantitativa do sistema de educao de Moambique consolidou-se gradualmente mas deforma consistente (cap.s 2 e 3) e foi acompanhada por um processo inovativo que, apesar de nemsempre ter sido linear e unvoco, atingiu todos os nveis do sistema (cap.s 4, 5 e 6).Este estudo, realizado no mbito da educao comparada, procura indicar na histria do sistema de

    educao as possveis identidades sob as aparentes diferenciaes e contradies, e as substanciaisdiversidades sob as aparentes semelhanas.Depois de ter sido procurado o aspecto recorrente e geral dos factos que aproximam a realidadeespecfica de Moambique aos traos mais caractersticos dos sistemas educativos dos numerosospases em vias de desenvolvimento, foram formulados alguns princpios (cap. 7) com o objectivo decontribuir para a reflexo que decorre em Moambique cerca da relao entre sistema educativo eexigncias de desenvolvimento.A educao e o desenvolvimento rural representam para Moambique, como de resto para muitosoutros pases, o fecho de abbada num caminho para uma maior autonomia, liberdade maisverdadeira, desenvolvimento mais real que, ao assumir o novo, tutele e enriquea ao mesmotempo o patrimnio cultural e a viso da sociedade e das relaes humanas.Ligado a Moambique por uma estreita, sincera e profcua colaborao h muitos anos, o Iscosacolhe com interesse este estudo na sua coleco de publicaes. Trata-se de uma tese dedoutoramento de pesquisa apresentada Sorbonne em 1987 pela autora, que pde acompanhar deperto em Moambique os primeiros anos aps a independncia, colaborando activamente naexpanso do sistema de educao.

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    Lavinia GasperiniMoambique: educao e desenvolvimento rural

    em memria de Nathaniel

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    Prefcio

    Uma hiptese e algumas interrogaes

    Moambique um pas independente desde 1975. Durante quase cinco sculos foi uma colniaportuguesa. A Frente de Libertao de Moambique (Frelimo) passou a governar o pas aps uma

    guerra de libertao de 10 anos.Tal como na maioria dos pases do Terceiro Mundo, aqui desenvolvimento significa essencialmentedesenvolvimento rural. A agricultura fornece cerca de 45% do Pib e ocupa 84% da populaoactiva, a indstria 7% e o sector tercirio 4%. Grande parte da produo agrcola de tipofamiliar, baseada sobretudo em tcnicas de produo tradicionais, de baixo rendimento. A polticada Frelimo definiu a agricultura como o eixo central do desenvolvimento e a indstria como oelemento de dinamizao.Aps a independncia, factores de natureza diversa como a conjuntura internacional desfavorvel,as calamidades naturais e algumas escolhas na poltica econmica determinaram uma progressivaflexo da produo agrcola. Esta situao, j de si difcil, foi agravada pela desestabilizao porparte da resistncia nacional moambicana, Renamo. Na nossa tradio ocidental o termo

    resistncia tem, a priori, uma conotao positiva. Mas em Moambique no, pois significaresistncia mudana trazida pela independncia, resistncia ao novo governo; a mesma financiada por ex-colonos portugueses e pela frica do Sul e age contra toda a regio da fricaAustral.Hoje o conjunto da produo alimentar satisfaz menos de metade das necessidades mnimas dapopulao, e centenas de milhares de pessoas encontram-se em constante perigo de vida. Por essemotivo o pas recorre massivamente s ajudas internacionais, mas as potencialidades agrcolas sotantas que se acredita numa recuperao e desenvolvimento centrados nas mesmas. Basta recordarque a Frelimo, que nos primeiros anos depois da independncia tinha privilegiado o sector estatalem prejuzo dos sectores familiar e cooperativo, voltou a dar ateno a estes dois. O primeirofornece grande parte da produo alimentar actual, sendo por isso considerado um sector prioritrio.

    Prev-se o desenvolvimento a longo prazo da produo cooperativa, envolvendo a produofamiliar. A Frente considera que a organizao dos pequenos agricultores em associaes vaieconomizar substancialmente recursos e esforos, para alm de introduzir inovaes tecnolgicasnecessrias ao aumento da produtividade no trabalho.As cooperativas devero passar a ser o fulcro da vida produtiva nasAldeias Comunais. Estas aldeiascomunitrias, que em 1983 no passavam de 300, vo reunir a populao que vive espalhada, demodo a proporcionar ao maior nmero possvel de pessoas os benefcios da aco do Estado,melhorando a qualidade de vida nas zonas rurais, concretamente no que se refere a servios desade, escolas, transportes, comrcio e fornecimento hdrico.A Frelimo definiu o seu programa de desenvolvimento socialista sem basear-se em modelos ouprincpios abstractos mas com o objectivo de transformar a organizao social do campo e aumentar

    a produtividade do trabalho, em funo das necessidades do pas e da participao da populao.A avaliao da eficcia do sistema de educao deve ter em ateno estes programas dedesenvolvimento. O sistema de educao contribuir para a transformao auspiciada pela Frelimose forem identificadas e resolvidas as contradies principais entre as exigncias dodesenvolvimento, a herana educativa colonial e algumas tendncias surgidas aps a independnciaque se mostraram resistentes mudana. Trata-se de analisar se o novo sistema educativo preparaou no os jovens a inserirem-se em trabalhos produtivos depois de acabarem a escola, sobretudo naagricultura, trabalhos esses que garantam a satisfao das necessidades primrias da populao ouse, pelo contrrio, os leva para o sector tercirio e a urbanizao. Em suma, se o sistema impede oupromove a transformao.A hiptese desta pesquisa pode ser assim formulada:

    A presena sistemtica no sistema de educao da relao estudo-trabalho determina a eficcia e acoerncia entre o prprio sistema e os programas de desenvolvimento.

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    A relao pode exprimir-se nos seguintes termos: eficcia do sistema de educao = f (presenasistemtica da relao estudo-trabalho no sistema). Nesta relao foi destacada a ligao estudo-trabalho como varivel independente, porque vista como a principal caracterstica da educaopara o desenvolvimento em Moambique. Com efeito, considera-se que as alteraes da variveldependente (eficcia do sistema educativo) estejam associadas s de outras variveis independentescomo por exemplo a formao de professores, a rede escolar, os materiais didcticos, etc que,contudo, vo ser aqui tomados em considerao s na sua relao com as duas variveis destacadas

    anteriormente.Para verificar a hiptese oportuno responder a algumas questes.Trata-se de analisar:

    - como eram o estudo e o trabalho na formao social moambicana antes da independncia,na escola colonial e nas zonas libertadas;

    - em que medida, depois da independncia, a vontade de renovao expressa na legislao enas declaraes oficiais se concretizou em experincias orgnicas e generalizadas;

    - se a integrao do estudo com o trabalho caracteriza o sistema educativo no seu conjunto ouse constitui essencialmente um tributo formal a um dogma;

    - se as experincias de produo escolar difundiram-se por todo o sistema ou so excepo;- se o trabalho produtivo na escola forneceu o fundamento de uma cultura que exprima uma

    nova maneira de pensar e de agir, ou se ficou reduzido a uma resposta contingente anecessidades imediatas ou a um ritual sem nenhum significado pedaggico;

    - se os professores, nos diferentes nveis do sistema educativo, foram preparados pararesponder s necessidades do desenvolvimento rural atravs de aces de formaoapropriadas;

    - se os currculos, os meios didcticos e o calendrio escolar foram elaborados de maneira ainterligar de forma coerente o estudo e o trabalho;

    - se os conhecimentos, as habilidades e as atitudes que os jovens aprendem na escolaprojectam as suas aspiraes para o mundo rural ou a urbanizao;

    - se o trabalho na escola um instrumento de integrao das regies urbanas e rurais, dos

    diferentes estratos sociais e dos dois sexos ou se continua a agir como elemento dediferenciao.Nem todas estas interrogaes encontraro uma resposta exaustiva e definitiva na presentepesquisa. Contudo, espera-se que ela possa trazer novos estudos que analisem com umaprofundidade cada vez maior as diversas variveis nas suas mltiplas relaes.Sucessos e insucessos do sistema educativo de Moambique independente no vo seranalisados com base num metro absoluto e abstracto, ou num modelo de sistema escolarsocialista ideal, a cuja legitimidade conceptual voltaremos mais adiante. Sero analisadoscomo parte de uma experincia que teve de ser actuada improvisamente, em condies deextraordinria dificuldade, com recursos materiais e humanos desesperadamente inadequados,com uma guerra em curso junto fronteira com a Rodsia no incio e mais tarde em muitas

    zonas onde opera a Renamo, no interior do pas.

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    Prlogo

    A autora procurou sistematizar experincias e reflexes relacionadas com o trabalho de campo nosector da formao em Moambique entre 1977 e 1985, em diversos ramos e nveis do sistemaeducativo. Estas circunstncias levaram-na a estudar o passado, a conhecer as experincias

    educativas de diversas regies do pas, a participar em debates, a formular hipteses e propostas. Naqualidade de jornalista, pde tambm obter autorizaes para viajar e conhecer realidadeseducativas em zonas muito diversas. A pouco e pouco amadureceu uma exigncia deaprofundamento que a levou a analisar de forma explcita de que maneira se realizava a relaoentre sistema educativo e necessidade de desenvolvimento.Estabeleceu como limite temporal 1983, ano em qual foi introduzido o Sistema Nacional deEducao, cuja entrada em vigor foi feita gradualmente ao longo de dez anos. Qualquer avaliaoseria, portanto, prematura.Atravs de uma abordagem comparativa, estudou a histria da educao de Moambique paraobservar como que se apresentou a relao estudo-trabalho nas diferentes formaes sociais.A primeira parte do volume um estudo diacrnico centrado sobretudo na educao colonial e na

    experincia conduzida pela Frelimo durante a guerra de libertao nacional. A educaotradicional as manifestaes educativas de origem pr-colonial que se mantiveram at hoje apenas mencionada, uma vez que ainda no existe um conhecimento sistemtico e aprofundadosobre a mesma.Na segunda parte analisa-se a educao depois da independncia.A pesquisa baseia-se em:

    a. sistematizao da experincia da autora em Moambique no campo da formao;b. elaborao dos dados colhidos a partir de documentos orais, escritos e fotografados,

    provenientes do trabalho de campo;c. estudo de documentao pedaggica relacionada com a experincia de diversos pases;d. documentao produzida para a pesquisa, constituda por:

    - entrevistas individuais e de grupo a estudantes, professores e responsveis do sistema deeducao a vrios nveis (nacional, regional, provincial e de localidade);

    - pesquisas cognitivas em 32 escolas de diferentes ramos e nveis do sistema de educao, em9 das 11 regies de Moambique;

    - debates e inquritos realizados com alunos e docentes da universidade Eduardo Mondlanede Maputo, em especial da Faculdade de Cincias da Educao;

    - documentao produzida no decorrer das actividades realizadas na FCE como jornalista;- imagens (slidese fotografias).

    Outras informaes foram recolhidas nas bibliotecas da universidade Eduardo Mondlane deMaputo, nos arquivos dos rgos de informao, no Centro nacional de documentao (Cedimo), noMinistrio da Educao, no Arquivo Histrico de Moambique, na biblioteca do Instituto para o

    Desenvolvimento da Educao (Inde) e no Ministrio do Plano.

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    Abreviaturas

    A.c. Aldeias comunaisAjus Actividades de JulhoCedimo Centro de documentao e de informao de Moambique

    Cea Centro de estudos africanosCfp Curso de formao de professoresCfpp Curso de formao de professores primriosFrelimo Frente de Libertao de MoambiqueInde Instituto nacional de desenvolvimento da educaoMce Movimento de cooperao educativaMec Ministrio da Educao e CulturaMpla Movimento Popular de Libertao de AngolaOjm Organizao da juventude moambicanaOpae Organizao poltica e administrativa das escolasRenamo Resistncia nacional moambicana

    Sne Sistema nacional de educaoUem Universidade Eduardo Mondlane

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    Captulo 1

    Direco cultural colonial e sistema educativo

    Os graves problemas que afligem hoje Moambique tm razes profundas nos cinco sculos decolonizao portuguesa. Tal como no resto de frica, neste pas a presena europeia significou

    distoro e destruio de processos delicados scio-econmicos e culturais locais e obstculo a umdesenvolvimento posterior ligado s necessidades da populao(1). A diviso social do trabalhoencarnou-se na diviso entre raas, contraps colonizados e colonizadores e fez com que odesenvolvimento de uns se transformasse na negao do desenvolvimento de outros. A mesmadinmica caracterizou a histria poltica, econmica, social e cultural do pas.O estudo do perodo colonial fornece os elementos necessrios compreenso das escolhasefectuadas pelo governo moambicano depois da independncia, e da Frelimo nos anos da luta delibertao nacional. Ajuda a compreender o carcter inovador de algumas experincias e os seuslimites.A origem da mudana e da resistncia s transformaes pode ser compreendida melhor seanalisarmos como que a contradio entre colonizadores e colonizados se revelou no campo da

    educao. O antagonismo entre educao atravs do trabalhoe educao atravs do no-trabalho apresentado num primeiro momento como contradio entre no-escola e escola (2) esucessivamente entre escola de trabalhoe escola de no-trabalho.

    a) O antagonismo entre escola e no-escola na formao social e colonial

    Ao contrrio do que aconteceu nas reas de influncia de outros pases europeus, o sistema escolarcolonial constituu em Moambique uma possibilidade formativa s para uma mnima parte dapopulao. Durante quatro sculos o colonialismo portugus, caracterizado pelo trfico de escravose pela explorao indiscriminada de matrias primas, manteve-se exclusivamente atravs da fora.Os ideologistas daquele perodo apresentaram a colonizao como uma obra iniciada no sculo XV,eminentemente cultural:. (3)

    So muitos os textos deste teor escritos por economistas, histricos ou educadores. Manuel FerreiraRosa, director-geral da educao no Ultramar, escrevia:

    . (4)

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    Os actos desmentiram as palavras. Existem muitos estudos histricos, polticos e scio-econmicosque mostram os objectivos reais da colonizao portuguesa e os seus efeitos. (5)Na realidade, s na fase de transformao do pas, no sentido capitalista da economia, que surgiu anecessidade de lanar as bases de um aparelho escolar que formasse a classe dirigente portuguesa edifundisse entre colonizadores e colonizados uma cultura de legitimao da dominao. Assim, em1974, momento da sua expanso mxima, o sistema educativo cobria pouco mais de meio milho dealunos para uma populao de dez milhes de habitantes. por essa razo que na altura da

    independncia a taxa de analfabetismo rondava os 94%. A percentagem do Pib que o governocolonial reservava educao era a mais baixa de frica segundo Eicher e Orivel, em 1974 era de0,95% enquanto o de Angola era de 2,29%, da Tanzania 5,16%, da Nigria 4,27%, de Portugal2,38%, da Frana 5,09% e da Itlia 5,23% (6) e destinava-se sobretudo s reas de fixao decolonos, zonas urbanas e costeiras. O resto do pas estava quase completamente desprovido deescolas.Tal como tinha acontecido no Ocidente na poca da grande indstria, em Moambique a escolacomo instituio educativa, separada da produo no espao e no tempo, nasceu em funo danecessidade de formao de uma elite, num contexto caracterizado pela oposio entre trabalhomanual e intelectual. O sistema escolar colonial nasceu entre finais do sc. XIX e as primeirasdcadas do sc. XX para preparar os colonos direco poltica e econmica do pas, em parte nasequncia das resolues da conferncia de Berlim que, em 1884-85, reconhecia as possesses daspotncias europeias s dos territrios efectivamente ocupados.O projecto colonial pedia a homogeneidade e a coeso ideolgica dos seus protagonistas, quetinham uma provenincia scio-econmica e cultural bastante heterognea. Nasceu assim a escola,baseada numa educao atravs do no-trabalho, separada da sociedade e da produo, com vista reproduo da classe dominante.Os moambicanos, na sua maioria destinados a fornecer trabalho manual a baixo custo nas minasdos pases vizinhos, explorao agrcola do pas e construo de infraestruturas necessrias aoprojecto colonial, vinculados ao trabalho forado e s culturas obrigatrias e excludos da escola,continuaram a viver o processo educativo nas modalidades tradicionais. Na educao tradicional a

    formao dos jovens, com a excepo do breve perodo dos ritos de iniciao, encontrava-se ligada vida da comunidade e dos adultos. No havia um espao e um tempo destinados exclusivamente transmisso cultural ou produo, nem havia adultos qualificados unicamente para uma ou outradestas tarefas.Quer se tratasse de bens quer de cultura, a produo e o usufruto eram inseparveis. Esta no-escola era caracterizada pela unio entre educao e trabalho, jovens e velhos, sociedade eformao, exactamente ao contrrio da escola dos colonos, caracterizada pela sua separao.No vou aqui fazer a anlise da educao tradicional em Moambique porque sobre este tema aindano existe um estudo sistemtico e aprofundado. Se o governo moambicano quiser criar umsistema educativo que responda s caractersticas e s necessidades da sua populao deverenfrentar seriamente o estudo desta realidade que, ainda que se tenha modificado com o tempo,

    ficou viva at hoje.

    b) contradio no sistema escolar colonialentre escola de no-trabalho e escola de trabalho

    A colonizao do ultramar portugus teve lugar essencialmente atravs da coero estatal, ouseja, da interveno do exrcito e da administrao colonial. Na sequncia das chamadascampanhas militares de pacificao, entre os sc. XIX e XX a administrao expulsou oscamponeses das melhores terras, obrigando-os ao pagamento de um imposto individual em

    dinheiro. Imps-lhes o trabalho forado nas plantaes das companhias monopolistas instaladas noterritrio e a monocultura, e nas regies do Sul eles eram recrutados para as minas da frica do Sul

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    e da Rodsia. Em tudo isto o estado colonial tinha um papel de intermedirio entre a fora detrabalho moambicana e o capital portugus e internacional.Nesta realidade, os camponeses, que constituam a grande maioria da populao, deixavam de ter apossibilidade de organizar a sua prpria produo, sendo obrigados a realizar uma actividade alheias suas necessidades. Perdiam o produto do seu trabalho mas tambm a cultura rural que lhes tinhasido transmitida atravs dos sculos, formada por conhecimentos sobre o ambiente, o ciclo agrcola,a organizao tcnica da produo e as habilidades que lhes tinham permitido dominar o ciclo

    produtivo e garantir a sobrevivncia at aquela altura.As autoridades coloniais viam com desconfiana a escolarizao dos moambicanos. Podiasignificar dar-lhes a possibilidade de planificarem a produo para seu prprio benefcio e atcriarem embries de revolta. Era tambm considerado perigoso fornecer-lhes qualificaes que oscolocassem em concorrncia com os europeus. Sobre esta questo, as autoridades exprimiam-seassim:

    De entre os indgenas certamente haver muitos com uma marcada tendncia para as artes e osofcios. Apesar disso no seria conveniente encoraj-los a dedicarem-se a estas ocupaes porqueh o risco de conden-los a uma vida de dificuldades e de misria, uma vez que no tero apossibilidade de exercitar actividades no ramo artstico e industrial. Nestas condies poder-se-iacriar um esprito de revolta acentuado. [] A colonizao inglesa colheu resultados muitoperniciosos desta posio. Favoreceu de forma exagerada a formao de um nmero grande depessoas com preparao e conhecimentos superiores s necessidades do seu ambiente, e chegou aoponto de coloc-las politicamente no mesmo plano dos cidados da metrpole. [] Muito pelocontrrio, convm educar o indgena de maneira a torn-lo colaborador til e consciente da obracolonial. (7)

    S quando nos anos trinta o salazarismo se dedicou defesa e consolidao do capital portugus nascolnias que o sistema educativo se voltou, ainda que de modo bastante reduzido, aos indgenas.A coaco estatal tinha-se revelado muito dispendiosa e ineficaz na manuteno do domnio das

    colnias. A imposio da hegemonia cultural da metrpole era vista como um complementoindispensvel da interveno estatal. A escola para os moambicanos destinava-se mais submissoideolgica e cultural da mo-de-obra do que sua formao tcnica e profissional. Custava menosimpor o chibalo(ou seja, o trabalho forado, fonte de acumulao de mais-valia absoluta) a umafora de trabalho tornada dcil e resignada por uma ideologia de legitimao da dominao do queimp-lo s com a coero. O ensino da leitura, escrita e rudimentos de uma profisso tornavam-seveculo de uma cultura de submisso, que ensinava o desprezo pelas tradies locais e a aceitaoacrtica de tudo o que viesse da metrpole.

    c) o retrato dos colonizados feito pelos colonos

    A escola criava nos colonizados uma imagem de si funcional em relao ao papel que ocupavam nadiviso do trabalho. Ensinava-lhes que a hierarquia social era o resultado de uma vontadesobrenatural e hereditariedade biolgica, e o poder poltico a manifestao de uma ordemmetafsica. Segundo a doutrina de Salazar e Caetano, cada classe devia respeitar a sua hierarquiainterna onde contava o mrito. Pretender superar esses limites era um esforo contra a natureza econtra Deus, que criava instabilidade na vida de cada um, anarquia e sofrimento social. (8) Aresignao e a aceitao da prpria posio social indicavam um comportamento de bom cristo ede bom cidado. A revolta era sinnimo de desobedincia vontade divina que o Estado, suamanifestao terrena, tinha o dever de mandar respeitar.

    Esta ideologia totalitria, no muito distante da filosofia que inspirou os regimes totalitrios daEuropa entre as duas grandes guerras, identificava hierarquia social e racial. A quem detivesse o

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    poder, ela atribua as capacidades de direco, criatividade, iniciativa, organizao eresponsabilidade. Estas qualidades legitimavam o domnio.A passividade, a preguia, a incapacidade de raciocnio cientfico e abstracto e a incapacidade deautogoverno eram, pelo contrrio, as caractersticas atribudas aos africanos, legitimavam a suasubmisso.O preto, por definio, era considerado pueril:

    As crianas e os selvagens tm uma inteligncia prtica, mais de homo faber do que de homosapiens. Quer as crianas quer os no civilizados tm mais tendncia para o concreto, o malevel, ointuitivo, o assistemtico. Revelam limites enormes no pensamento abstracto, lgico, especulativo.[] Nesta inteligncia prtica, o pensamento, impregnado de elementos mgicos, est dissociadoda aco []. Para eles a escola deve ser baseada quase exclusivamente no uso das mos. (9)

    Nos anos cinquenta foram introduzidos em Moambique os testes de inteligncia geral. Ascaractersticas psicolgicas e culturais do grupo social dominante eram tomadas como unidade demedida do comportamento inteligente. Tal como em muitas outras ocasies, os testes tambmforam aqui usados para justificar a discriminao social e racial. Forneciam argumentao pseudo-cientfica para a defesa da tese de que a posio subordinada dos pretos na sociedade era umaconsequncia inevitvel da sua inferioridade intelectual, de natureza hereditria.Antnio Augusto, chefe dos Servios de psicotecnia de Moambique, afirmava, num congressorealizado em 1956 em Coimbra, ter verificado a partir da aplicao de testes que o nvel intelectualmdio das crianas indgenas era muito inferior ao das crianas europeias. Com base nos testes eleconstruu um grfico que aqui apresento (ver figura 1). (10)

    Segundo o grfico, um indgena de 11 anos teria um nvel intelectual inferior ao de um menino deLisboa de 8 anos. Baseando-se nos testes, o autor sentia-se autorizado a afirmar que:

    Considerando o estado selvagem dos indgenas cuja civilizao tem de obedecer s leis da

    evoluo, e tendo em conta que no conhecem a lngua portuguesa, impunha-se a necessidade deuma organizao especial do ensino primrio para o indgena que o levasse civilizao e lnguaportuguesa []. A frequncia simultnea de crianas europeias e indgenas seria prejudicial paratodas.

    O sistema escolar discriminatrio era apresentado como uma resposta natural e inevitvel anecessidades, tradies e capacidades desiguais. A escola para o homo sapiens era branca, urbana,laica, cultivava o pensamento, as cincias, o saber dizer em prejuzo do saber fazer".A escola para o homo faber, preto, trabalhador manual, rural, era religiosa e prtica. Ambasmutilavam a personalidade dos seus alunos privando-os de um desenvolvimento completo queintegrasse pensamento e aco, saber pensar e saber fazer, saber dizer e saber ser, cincia e

    tcnica.

    A teorizao da inferioridade do preto, expresso de uma ideologia racista, era um instrumento dedominao. O colonizado era definido ser de segunda categoria em funo da cor da sua pele.Com base nisto, o processo de alienao era conduzido de maneira aos moambicanos, reduzidos passividade, no conseguirem ver nenhuma possibilidade de libertao, e passarem eles prprios aser difusores da teoria da resignao e instrumento do sistema colonial. (11)

    O empenho dedicado pelo governo colonial destruio da cultura local era ratificadojuridicamente atravs da instituio da figura do assimilado, ou seja, aquele que mostrava tercortado com a tradio e seguido a lngua e cultura portuguesas. Ele poderia aceder a determinados

    lugares da administrao e gozar de alguns direitos civis, ao contrrio do resto da populao, osindgenas, a quem no era reconhecido nenhum direito.

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    Em 1950, de cerca de 5,7 milhes de pretos, apenas 4.349 tinham o estatuto de assimilado. S osfilhos dos assimilados eram admitidos nas escolas coloniais. Com base no artigo 60 do Estatutomissionrio, o ensino para os indgenas consistia num curso elementar de 3 anos, aps o qual,depois de um exame, era concedido um diploma, indispensvel para ser considerado assimilado.

    Figura 1. Nvel intelectual mdio das crianas indgenas e europeias.

    Fonte: M. D. Belchior, Evoluo poltica do ensino em Moambique, in Moambique, Curso de extenso universitaria,Universidade tcnica, Instituto superior de cincias sociais e poltica ultramarina, Lisboa 1964-65.

    d) O Estatuto missionrio e a Concordata

    Na procura de complementaridade entre dominao coerciva e direco cultural, o Estado colonialplasmava um sistema educativo dualstico que exprimia e reproduzia as contradies da formaosocial moambicana.O governo mantinha a formao da classe dominante atravs da gesto de escolas oficiais, laicas,estatais, concentradas exclusivamente onde a fixao branca o justificasse. Eram escolas urbanas,escolas de no-trabalho que tinham pessoal, meios e edifcios bastante melhores do que as escolasrurais destinadas populao preta.Uma vez que o sistema oficial tinha como objectivo a formao da classe dirigente, o currculo daescola primria era concebido em funo da continuao dos estudos no liceu. Tinha um carctergeral e desinteressado de preparao aos ciclos sucessivos. Todo o ensino era pensado em funode estudantes de lngua materna portuguesa que vivessem num ambiente scio-econmico e culturalestimulante e abastado.Os liceus localizavam-se nas zonas com maior fixao de colonos, mas as escolas tcnicas, queformavam os quadros mdios para a administrao e o aparelho produtivo, encontravam-sedistribudas de forma mais homognea por todo o pas, pois tambm aceitavam, ainda que de formareduzida, estudantes pretos. A rede escolar dos liceus e das escolas tcnicas na altura daindependncia vem ilustrada nos dois mapas (figuras 2 e 3).

    Em relao aos colonizados, o Estado mantinha para si a funo de dominao directa e exercitava-a atravs da fora, mas delegava a direco cultural igreja catlica. A unidade e acomplementaridade entre dominao directa e direco cultural foi sancionada em 1940 pelaConcordata entre Estado e Igreja, e em 1941 pelo Estatuto Missionrio. Este estabelecia que a

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    partir daquele momento o ensino indgena criado em 1930 fosse entregue exclusivamente areligiosos, ratificando assim uma praxe consolidada.Com a legislao escolar de 1941, o governo portugus pr-fixava a nacionalizao perfeita (12), amoralizao dos indgenas e a aquisio (por parte deles) de hbitos e atitudes de trabalho, deacordo com o sexo, condies e convenincia das economias regionais; [] a moralizao, oabandono do cio e a preparao dos futuros trabalhadores rurais []. Por consequncia, oensino indgena devia ser essencialmente nacionalista e prtico. (13)

    No ensino indgena a religio era o contedo de ensino principal. Tal como M.F.Monica mostrouno seu estudo, uma das caractersticas do salazarismo foi considerar que quer na metrpole quer nascolnias a escola para as classes subalternas tinha que inculcar virtudes em lugar de fornecer umapreparao profissional. (14) Foi por este motivo que o ensino religioso foi considerado o maisapropriado.Se para os brancos, filhos dos colonos, o percurso escolar era de 11 anos (4 de escola primria e 7de liceu), para o pretos era de 14. Estes deviam frequentar, antes do ciclo primrio, 3 anos deensino de adaptao (tambm chamado ensino rudimentar). Na verdade, o processo constituamais um obstculo sua escolarizao. Mondlane descreveu como isto se verificava.

    Figura 2. Liceus (1973-74)

    Fonte: J. Moure, O professor em Moambique no tempo colonial, in Jornal do Professor, Ministrio da Educao eCultura, Maputo, ano II, Set-Out 1982.

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    Figura 3. Escolas industriais e comerciais

    Fonte: idem.

    O ensino de adaptao, equivalente ao jardim de infncia, est destinado, em teoria, a familiarizaras crians africanas com a lngua portuguesa e com os rudimentos da literatura, escrita e clculopara poder lev-los, no incio da escola primria, ao nvel dos meninos portugueses. Mas em muitasregies os filhos dos mulatos e dos asiticos so obrigados a frequentar o ensino rudimentarapesar de terem crescido num ambiente de lngua portuguesa e de poderem ser considerados aomesmo nvel lingustico dos meninos portugueses. [] Dado que os 13 anos so o limite mximopara se poder ser admitido na escola primria, um grande nmero de crianas fica de fora. (15)

    Ainda segundo Mondlane, a entrada para a escola primria das crianas africanas tinha um atrasodevido a duas ordens de factores. A primeira ligava-se organizao do trabalho na agriculturafamiliar: na tradio, as crianas dos 7 aos 12 anos dedicavam-se pastorcia. Geralmente por voltados 12 anos eram subtitudos por um irmo mais novo, e assim o mais velho podia comear afrequentar a escola.O segundo factor era o elevado nmero de reprovaes sobretudo nos primeiros anos de escola,devido ao facto de o ensino ser em portugus, uma lngua estranha experincia da maior parte dos

    meninos moambicanos. Segundo Belchior, todos os africanos durante o primeiro ciclo escolarrepetiam pelo menos uma vez. (16) Assim, normalmente no conseguiam concluir o ensino deadaptao antes dos 12 ou 14 anos, e desta forma j no podiam ter acesso escola primrianormal.

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    O dualismo do sistema escolar colonial mantinha-se tambm nos nveis seguintes do ensinoprimrio. Das escolas oficiais os filhos dos colonos transitavam directamente para o liceu e dalipara a universidade. A maior parte dos moambicanos que fequentavam as escolas indgenas nosuperava os primeiros trs ou quatro anos de escolaridade. Os poucos que prosseguiam os estudoscontinuavam a frequentar um sistema escolar de segunda categoria, constitudo sobretudo porescolas profissionais e por seminrios. Em 1966-67, 70% dos africanos que frequentavam as escolassecundrias estudava nas escolas tcnico-profissionais.

    Para reforar a dominao ideolgica nos territrios do ultramar, o governo portugus servia-setambm dos seminrios catlicos. Os sacerdotes pretos, de origem camponesa, eram usados comomediadores entre os outros africanos e o colono. O mesmo sucedia com os professores formadosnas escolas do magistrio primrio para pretos. Sem o saberem, uns e outros assumiam o papel defuncionrios do estado colonial e de mediadores da economia.A concepo do mundo difundida pela Igreja atravs do clero local no contacto com os simplestraduzia-se assim em resignao e passividade. O governo portugus manipulava as convicespopulares para obter, com custos muito inferiores, os mesmos efeitos que teria usando a fora.

    Os seminrios constituam uma forte atraco para os jovens moambicanos porque representavampara eles a nica possibilidade de continuar os estudos depois da escola primria. Ao contrrio dosistema escolar laico, onde a discriminao era defendida por lei, eles mostravam-se como umorganismo democrtico, ainda que paternalista. No seu interior, o filho de um campons ou de umarteso se inteligente e capaz, se suficientemente malevelpara ser assimilado pela estruturaeclesistica, para sentir o esprito de pertena e a validade dos interesses presentes e futuros doEstado aos quais a Igreja se tinha aliado atravs da Concordata podia, teoricamente, continuar osestudos na universidade de Teologia, e chegar a cardeal e at a papa.Foi exactamente nos seminrios que se formou a maior parte dos dirigentes actuais de Moambiquee nasceu o ncleo que nos anos sessenta deu origem Frelimo. A juventude instruda pde dispordos instrumentos culturais que lhe permitiu tomar conscincia das situaes de injustia e pr emcausa a realidade que a rodeava. Verificou-se assim tambm no campo educativo um processo

    dialctico que produziu resultados contrrios aos objectivos da instituio escolar. O sistemaeducativo, que devia manter e reproduzir o sistema social, acabava por formar aqueles que o iriamcontestar.Dos anos Trinta at indipendncia o sistema educativo colonial foi objecto de vrias reformas.Porm, nenhuma delas mudou substancialmente a sua natureza discriminatria. A prpria aboliolegislativa da distino entre escola para brancos e escola para pretos de 1964, contempornea auma srie de outras iniciativas destinadas a melhorar a imagem da colonizao portuguesa, quer nointerior quer no exterior do pas, para contrabalanar a influncia ideolgica dos movimentos delibertao nacional incipientes e as crticas expressas pelas Naes Unidas, era apenas umamudana de fachada.Tal como j tinha sucedido aquando da abolio formal do trabalho forado, do estatuto jurdico do

    indgena e do assimilado, a reforma educativa no teria trazido mudanas substanciais ao dualismodo sistema que, abolido juridicamente, era reproduzido por mecanismos de carcter scio-econmico e cultural. Mesmo depois da reforma, os mesmos factores que bloqueavam o acesso dospretos escola impediam o prosseguimento dos estudos a quem tivesse conseguido acabar ainstruo primria.Em 1966-67, numa populao de 444.983 africanos escolarizados em Moambique 439.979frequentavam a escola primria. Na escola secundria os pretos representavam apenas 1,1%, como

    j referido, 705 frequentavam escolas tcnicas, profissionais e seminrios, e apenas 29,8% o liceu.Com estas premissas, no de admirar que os pretos que frequentavam a universidade pudessemcontar-se literalmente pelos dedos das mos: de um nmero total de 614 estudantes, apenas 9 erampretos (figura 4). (17)

    Foi portanto afirmado, e com razo, (18) que apesar da expanso do ensino primrio e tcnicoverificada nos anos Sessenta e a africanizao dos manuais, os objectivos e a estrutura do sistema

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    no diferiam substancialmente daqueles auspiciados em 1881 por uma das figuras principais dacolonizao portuguesa, Mouzinho de Albuquerque, para a educao dos indgenas:O melhor que podemos fazer para educar e civilizar o indgena desenvolver em termos prticosas suas atitudes para o trabalho manual colhendo vantagens na explorao da provncia. (19)

    e) O trabalho manual nas escolas missionrias

    As escolas frequentadas pelos moambicanos dedicavam uma boa parte do tempo ao trabalhomanual. A documentao e os testemunhos que pude recolher mostram que a produo eraorganizada, abundante e variada. Trago aqui os passos de algumas entrevistas que recolhi junto depessoas que estudaram nas misses antes da independncia:

    Figura 4. Pirmide de idades: populao total e populao escolarizada (urbana e rural).Recenseamento de 1980

    Fonte: Conselho coordenador do recenseamento, Educao, populao e escolarizao, I Recenseamento geral dapopulao de 1980, Ccr/Dne, Maputo 1984.

    Estudei entre 1956 e 1959 em Namarroi, at terceira classe rudimentar. Enquanto uma classeestava a estudar, a outra ia para o campo. Havia um mandador que orientava o nosso trabalho,ajudado por um monitor. Nessa altura a colheita era grande: amendoim, feijo, couve, arroz,bananas. Tnhamos tambm 20 cabritos. Ns que pilvamos a comida e cozinhvamos. Mas haviaum chefe que controlava tudo. Metade daquilo que produzamos era vendida.

    Eu estudei no centro de Mitcue de 1956 a 1961. O monitor distribua o trabalho e as enxadas everificava se as devolvamos at ao fim do dia. Produzamos milho, feijo, mandioca, ervilhas,mexoeira e arroz. Ns no sabamos quanto dinheiro ganhvamos com a nossa produo. Tnhamos

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    um moinho que nos poupava trabalho, no tnhamos que pilar. Nos dias de festa davam mais umsaco de arroz, que era distribudo pelos rapazes e raparigas. Havia muitos animais, nem sei quantos,porcos, cabritos, animais de pequena espcie. Ns que tnhamos que comprar o material escolar,mas davam-nos roupa e uma manta. Na misso os estudantes tinham que limpar a pocilga e osanimais e trabalhar no campo. Para a construo havia um pedreiro que preparava os tijolos e astelhas, e os alunos trabalhavam com ele. (20)

    Dores, uma estudante que frequentava a universidade de Maputo em 1982, contou-me que naMisso de Gcua, onde esteve de 1970 a 1974, os alunos estavam divididos em dois grupos: os quepagavam e os que no pagavam o colgio. Viviam separados quer no refeitrio quer nosdormitrios. A produo era praticada s por aqueles que no pagavam, como forma de retribuir misso aquilo que consumiam. Enquanto estes alunos trabalhavam no campo, os outros jogavam ouestudavam. No existia convvio entre os dois grupos. S se viam durante as lies. Dos 500 alunosinternos, cerca de 200 participavam na produo.

    A produo dos estudantes nas misses destinava-se sua prpria alimentao e do pessoal. Oexcedente era vendido e contribua para as finanas da instituio. A roupa dos estudantes, omaterial didctico e os salrios dos professores eram pagos com a venda dos excedentes daproduo. O apoio financeiro do Estado s escolas missionrias era quase nulo. A produo escolarera organizada como numa verdaderia empresa agrcola, e os lucros serviam para o seufuncionamento e para os novos investimentos. A obra de catequizao e a multiplicao de missestraziam um contributo financeiro considervel.

    A estes testemunhos que mostram sobretudo os resultados produtivos do trabalho nas escolasmissionrias contrapem-se outros que o apresentam como algo semelhante ao trabalho forado aque eram submetidos os adultos. (21)Uma reconstruo deste perodo devia tomar em considerao os dois pontos de vista.Depois da independncia, o desejo de superar rapidamente um passado de sofrimento levou a

    combater os aspectos mais deletrios do sistema escolar colonial. Mas por vezes tambm impediuque se analisasse a realidade na sua complexidade, que se compreendesse a sua naturezacontraditria e que se destacasse, juntamente com os elementos negativos, aqueles positivos.Tambm impediu que se fizesse uma distino entre produtividade do trabalho e finalidades.A produo nas escolas missionrias expandiu-se bastante, garantindo muitas vezes aautosuficincia s misses e escolas, at com margens de lucro. O critrio para avaliar o trabalhodos estudantes no pode ser quanto era produzido mas porqu, para quem e em que condiesomesmo era realizado. A produtividade do trabalho e o aspecto pedaggico de ter introduzido otrabalho nas escolas no constituem um valor em si, independente das finalidades da produo.Aparentemente nas escolas missionrias os jovens trabalhavam para financiar os seus prpriosestudos; comiam e dormiam na misso, recebiam livros, cadernos e aulas. Podia parecer que o

    trabalho produtivo se destinasse ao benefcio deles, mas era s aparncia. Na verdade servia paralibertar o Estado das despesas de formao de uma classe social intermdia necessria reproduodo aparelho colonial.Recaam assim nos moambicanos os custos de formao dos funcionrios do aparelho destinado asufocar a sua prpria independncia, expropriando-os da sua identidade scio-cultural. Apesar dasua origem e interesses, eles acabaram por trabalhar para o projecto colonial. Os filhos decamponeses e artesos, depois de terem estudado e pago com o seu trabalho os anos de estudo, iamtrabalhar como pides (informadores da polcia poltica), capatazes (supervisores de produo),administradores, sipaios (auxiliares da polcia), intrpretes, padres ou professores.Como agentes da administrao colonial tinham a tarefa de fazer respeitar as leis. Comosupervisores de produo controlavam a fora de trabalho. Como funcionrios da ideologia,

    legitimavam o regime. Para assegurar coero e consenso faziam de intermedirios entre osestrangeiros e os seus compatriotas. Os jovens moambicanos que estudavam e produziam aomesmo tempo estavam perdidos para a sua gente. O assimilado assemelhava-se ao colono

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    porque dele tinha absorvido a cultura e tornara-se funcionrio do estado e da ideologia colonial, quedefendia a cultura dominante contra a cultura subalterna.Com a Concordata, a Igreja tornava-se instrumento deste projecto. Pode dizer-se, segundo aspalavras de um dos muitos missionrios que estavam em desacordo com o compromisso entre ahierarquia eclesistica e o regime portugus, a Igreja foi a melhor realizadora por conta do governoda Lusitanizao e integrao das colnias. (22)H que reconhecer que a escola missionria teve o mrito de introduzir a produo na escola. Mas

    esta medida agia como elemento de discriminao, uma vez que dizia respeito s populao preta.Era portanto um dos principais elementos de diferenciao em relao s escolas laicas, destinadasexclusivamente aos brancos. A produo revelava-se tambm um elemento de discriminao nointerior do prprio ensino missionrio, entre os estudantes que pagavam as propinas e os que nopagavam. No sistema escolar colonial s produziam os alunos pretos e, de entre estes, s os pretosmais pobres. verdade que nas escolas missionrias o trabalho era organizado de modo eficaz e tinha altaprodutividade, mas as entrevistas mostraram que os estudantes no tinham algum controlo dautilizao dos produtos e proventos da sua actividade. Beneficiavam s de uma parte da produorecebendo alimentao, alojamento e, s vezes, roupa e material didctico. Em todo o caso, estasvantagens no devem ser confundidas com a finalidade global da produo escolar.Para alm do mais, dos testemunhos recolhidos transparece a ausncia de uma valncia pedaggicana deciso de introduzir a produo nas escolas. A finalidade principal era sobretudo de carctereconmico e scio-poltico.

    f) Algumas consideraes

    Esta descrio sumria da educao colonial leva-me a formular algumas consideraes.O sistema educativo, instrumento de direco cultural estatal, teve uma relao de

    complementaridade com a dominao poltica portuguesa.A contradio entre burguesia colonial e camponeses moambicanos manifestou-se inicialmentecomo oposio entre escola e no-escola. A escola dos colonos era sinnimo de no-trabalho,enquanto a educao dos moambicanos pretos, atravs do trabalho e no contexto tradicional, erasinnimo de no-escola. Se inicialmente o colonialismo se recusava a educar os colonizadosdeixando-os aos influxos educativos tradicionais, com o salazarismo passou a delegar ao clero aeducao dos indgenas, mantendo-a contudo bastante limitada. A oposio inicial entre escola eno-escola era assim reforada pelas contradies, internas ao sistema educativo, entre escolasoficiais e escolas indgenas, escolas laicas e escolas missionrias, liceu e escolas profissionais.Cincia e tcnica, pensamento e aco, teoria e prtica, cio e trabalho, produo e consumoestavam divididos entre escolas para brancos e escolas para pretos. Quer a contradio entre escola

    e no-escola quer aquela entre escola para brancos e escola para pretos expressaram o antagonismoentre educao atravs do no-trabalho, para os colonos, e educao atravs do trabalho, para oscolonizados. A primeira destinava-se a formar as classes dirigentes e intermdias com vista transformao das colnias portuguesas no sentido capitalista. A segunda devia retardar odesenvolvimento dos moambicanos no campo econmico, poltico, social e cultural, e ajudar aimpedir o nascimento de uma pequena burguesia rural africana que fizesse concorrncia quelaportuguesa.O carcter supersticioso de muitas das crenas tradicionais, a estranheza da escola ao tecido scio-econmico e cultural do pas, o ensino metafsico e a excluso do ensino cientfico nas escolasmissionrias impediam o desenvolvimento das foras produtivas no sector agrcola familiar e naesfera cultural, social e poltica.

    A aleana entre Estado e Igreja realizou a unidade entre sistemas educativos opostos. Apesar daaparente contradio entre escola e no-escola, as escolas oficiaise as escolas indgenastiveramum papel complementar na organizao, reforo e reproduo do colonialismo em Moambique.

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    Captulo 2

    A educao nas zonas libertadas pela Frelimo antes da independncia

    Se por um lado a escola colonial defendia o projecto de dominao com a difuso de uma culturaestranha realidade local e a criao de um estrato de assimilados, por outro ela produzia as

    contradies que a levariam sua destruio. Juntamente a uma conscincia alienada ia-seformando o embrio de uma nova conscincia. A cultura colonial e a organizao poltica,econmica e social dos territrios do ultramar efectivamente entravam em contraste com asnecessidades, os interesses e as aspiraes dos jovens aculturados. Alguns deles, mais sensveis,comeavam a aperceber-se do contraste irremedivel entre as promessas de igualdade e dedemocratizao, com as quais o regime procurava ganhar credibilidade nas colnias e noestrangeiro, e as condies de discriminao em que vivia a populao. Criavam-se assim, no inciodos anos 50, as premissas para o nascimento, em 1962, da frente de Libertao de Moambique.Em 1964 a Frente iniciava uma guerra de libertao nacional tirando dominao portuguesa, deforma progressiva, vrias regies. Com o alastramento destes territrios, chamados zonaslibertadas, iam-se definindo tambm no seio da Frente duas linhas antagnicas quanto ao

    significado a ser atribuido libertao. Quem iria gerir o novo poder? Com que finaldade e com quemtodos? Nos finais dos anos 60 a linha chamada revolucionria, representada entre outros peloprimeiro presidente da Frelimo, Eduardo Mondlane, e por Samora Machel, prevalecia sobre aneocolonial, defendendo uma concepo segundo a qual a guerra de libertao era parte de umaestratgia total de emancipao social.No seu programa, a Frelimo propunha uma revoluo democrtica e popular no campo poltico emilitar mas tambm na transformao da economia e da sociedade civil. A destruio da hegemoniaestatal colonial na sua dupla expresso de dominao coerciva e direco cultural era consideradauma condio necessria transformao das relaes de produo e ao desenvolvimento das forasprodutivas. A Frente defendia, ao contrrio de outros movimentos ou partidos polticos africanos,que a opresso colonial seria substituda por novas formas de explorao se a libertao poltica emilitar no fosse acompanhada por uma libertao econmica e cultural. desta concepo quederiva a importncia atribuda elaborao de uma nova cultura e realizao de um novo sistemade educao.

    a) A unio entre estudo e trabalho na ideologia da Frelimo e a concepo educativa deSamora Machel

    A concepo educativa elaborada pela Frelimo no perodo da guerra de libertao vem

    documentada numa srie de discursos de Samora Machel. (1) A revoluo concebida como umprocesso com razes na contradio entre foras produtivas e relaes de produo (2) mas tambm,e sobretudo, na relao entre direco poltica, militar e ideolgica de uma vanguarda e conscinciae aco das massas. O desenvolvimento visto como o resultado de uma luta em diversos planos econmico, poltico, militar, social e cultural necessria quer antes quer depois da tomada dopoder.Segundo a Frelimo, o processo de libertao nacional e social e de desenvolvimento econmico ecultural podia ter incio e crescer se a oposio do povo ao colonialismo a nvel econmico epoltico se tornasse consciente atravs da ofensiva ideolgica e organizativa de uma vanguarda.Uma nova ideologia, como parte de uma nova cultura e portanto de uma nova maneira de agir, depensar e de sentir (3) realizada pelas massas tornar-se-ia uma fora material imensa, capaz de

    levar o povo a derrubar a ordem antiga e construir uma nova sociedade enfrentando qualqueragresso. (4)

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    Sem teoria no h prtica revolucionria. Machel retomava as palavras de Lenin e considerava arenovao das conscincias imprescindvel para um projecto de desenvolvimento. Todo e qualqueresforo corria o risco de falir se no tivesse como base uma transformao cultural. (5)Por outro lado, as foras produtivas no podiam desenvolver-se sem a transformao do homem,responsvel pela mudana das relaes de produo. Segundo a Frelimo, o subdesenvolvimento,expresso da oposio entre trabalho e propriedade privada dos meios de produo, devia serenfrentado atravs de uma estratgia global, uma revoluo ao mesmo tempo estrutural e super-

    estrutural. A conscincia alienada devia ser substituda por uma nova cultura. No caminho para odesenvolvimento e independncia, ela poderia identificar as solues favorveis aos interessespopulares e contradies, expresso do antagonismo entre exploradores e explorados.Mas apareceram outras contradies que camuflavam aquela fundamental: entre raas, tribos eregies, entre polticos e militares, entre intelectuais e produtores, entre trabalho manual eintelectual, estudo e trabalho, professor e aluno, prepotncia e passividade, homem e mulher,mdico e enfermeiro, e assim por diante.Samora Machel insistia na necessidade de enfrentar estes problemas sem ter que esperar pelaindependncia para os resolver, porque se fossem descurados poderiam vir a consolidar-se e destruiro novo poder. Ele defendia que era necessrio vencer o crocodilo quando ele era ainda pequeno, namargem do rio, porque com a espera ele ficaria grande e iria refugiar-se nas guas profundas, o quesignificaria ter que enfrentar dificuldades e sacrifcios inteis. (6)Para alm da guerra contra a potncia colonial e da luta poltica e cultural no interior da frentecontra a linha neocolonial, era necessrio abrir um conflito no interior de cada indivduo. Umconflito cultural para destruir as trincheiras mais perigosas do inimigo, as posies reacionrias nasnossas cabeas. (7)

    Samora Machel propunha que os aparelhos polticos e militares da Frelimo fossem culturais e queos aparelhos culturais fossem tambm polticos e militares. No exrcito devia-se combater mastambm educar e produzir. Na escola das zonas libertadas devia-se educar mas tambm produzire combater. O exrcito, vanguarda da Frente num momento histrico em que o partido ainda no

    existia, devia assumir a funo educativa do povo, libert-lo da hegemonia cultural colonial e tribale ao mesmo tempo combater atravs da fora a dominao poltica e militar. O prprio educadordevia fazer uma luta interior para superar as laceraes que exprimiam a velha hegemonia, juntandoo empenho poltico ao empenho militar, a actividade produtiva cultural.A escola era a base a partir da qual o povo toma o poder, e propunha a superao das brechascriadas pela diviso capitalista do trabalho, ligando o estudo produo e integrando-se nacomunidade.Pedia-se aos professores e aos alunos das escolas das zonas libertadas para serem ao mesmotempo produtores, combatentes e militantes empenhados na concretizao da democracia no ensino.O ensino e a ajuda mtua, a cooperao entre professores e alunos, a gesto colectiva e democrticada escola, a luta contra o autoritarismo e a burocracia, a ligao teoria-prtica eram os temas

    habituais que Machel enfrentava nos encontros com os estudantes e professores. Ele falava daexigncia de uma contradio entre objectividade e subjectividade: A luta e a instaurao do poderpopular desenvolvem-se mais rapidamente do que a conscincia e a capacidade dos quadros.(8)Afirmava tambm que quer antes quer depois da libertao, o manter ou perder o poder dependia dacapacidade de transformar uma conscincia atrasada (em relao s transformaes polticas eexprimindo ainda a sobrevivncia da hegemonia cultural colonial em contraste com a novadireco).A educao pedia que se acelerasse a transformao das conscincias de maneira a pr em aco oprojecto da Frelimo.A ideologia da Frelimo coloca-se no interior da tradio filosfica do materialismo histrico edialctico, e considera o trabalho como actividade criativa e essncia da natureza humana. Desde a

    origem da Frente, houve membros que tomaram como ponto de referncia o marxismo. Durante aluta de libertao nacional eles estudavam os textos de Lenin, de Mao e dos vietnamitas, mas

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    insistiam no facto de os conceitos e anlises marxistas terem passado a assumir relevncia para elesa partir do contraste com as exigncias do pas.O primeiro presidente da Frente, Eduardo Mondlane, escrevia a este propsito:

    O marxismo-leninismo implantou-se entre ns como produto da nossa luta e do debate no interiorda prpria Frelimo. Subestimar isto significa priv-lo da fora vital que possui em Moambique,reduzi-lo a slogans e estereotipos abstractos, a cpias fracas das realidades exteriores. O

    materialismo histrico deve ser estudado relacionando-o com a sociedade moambicana e ascircunstncias especficas da sua evoluo histrica[]. Estes estudos no devem ser feitos deforma abstracta, independentemente da realidade moambicana.

    Samora Machel dizia:Os africanos devem usar o marxismo, no o marxismo usar os africanos. (9)Quer para Mondlane quer para Machel a filosofia da praxis devia fornecer uma indicao demtodo, no de princpios absolutos. Esta tomada de posio foi recentemente lembrada num textoproduzido pela universidade de Maputo. Nas concluses do volume lia-se, entre outras coisas:No h uma somente uma linha justa na tradio marxista, o marxismo uma cincia que cresce,como todas as cincias, e o debate continua []. O marxismo-leninismo nalguns casos tornou-se,por obra dos que detinham o poder, mais uma racionalizao hegemnica das suas posies queuma verdadeira cincia e instrumento de libertao. O ndice mais revelador deste tipo de marximocongelado a perda de importncia da relao dialctica entre os elementos. (10)

    Os conceitos de trabalho e de interligao entre estudo e trabalho, e por consequncia tambm aconcepo educativa da Frelimo, desenvolveram-se durante o perodo da guerra de libertaonacional a partir do encontro entre a anlise da situao concreta do pas e a filosofia da praxis. Omaterialismo dialctico era um mtodo para enfrentar a especificidade de Moambique.Na proposta poltica da Frente, sintetizada nos discursos de Machel, o trabalho ocupou um lugarcentral. Machel comeava sempre por mostrar o carcter negativo que o trabalho tinha assumido emMoambique no perodo colonial: no incio trabalho de escravos, depois trabalho forado, trabalho

    nas minas em troca de salrios de fome, trabalho tornado propriedade de outros, estranha aotrabalhador, e por isso mesmo prejudicial e funesto. A realizao do trabalho representava privaoe enfraquecimento do trabalhador.A este propsito, mostro aqui algumas das passagens mais significativas de um discurso de Machelantes da independncia:

    Para muitos o trabalho surge como um rito, uma necessidade, alguma coisa que somos obrigados afazer para comermos e vestir-nos. evidente que a produo deve satisfazer as nossas necessidadesbiolgicas fundamentais, mas ela necessria para nos libertarmos da misria, necessria paraconhecermos, dominarmos e utilizarmos a natureza []. A produo na zona do inimigo significaexplorao, enquanto a produo na nossa zona liberta o homem. Estamos a falar da mesma enxada,

    do mesmo homem, do mesmo gesto de abrir a terra. Porqu, ento, esta diferena? []Um campons produz arroz na regio de Gaza, mas para que serve a sua produo? Para dar decomer e satisfazer as necessidades da sua famlia? Talvez, numa certa medida. Com a sua produoele sobretudo paga os impostos coloniais, impostos esses que financiam a polcia que o prende, osalrio do administrador que o oprime, impostos para comprar as armas dos soldados que amanhvo expulsar esse mesmo campons da sua terra, impostos para pagar os transportes e a instalaode colonos que vo ocupar a terra do campons. O campons produz para pagar impostos e assim oseu trabalho financia a opresso da qual vtima. [] Ele necessita de muitas coisas que tem que ircomprar loja. Para as poder comprar ele precisa de dinheiro e o dinheiro no cai do cu. []Portanto vende os seus produtos por preos baixos e compra artigos por preos quatro ou cincovezes mais altos. Com um saco de algodo podem ser fabricados muitos metros de tecido, muitas

    camisetes. Mas quando ele vende um saco de algodo, o dinheiro que recebe no chega paracomprar uma camisete. O nosso suor s traz benefcios ao comerciante, no a ns. []

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    Estas so as formas menos cruis de explorao. H outras piores. H a venda de trabalhadores nasminas []. Quem beneficia do trabalho no quem trabalha, quem est a suar na terra, quemarrisca a vida nas minas []. (11)

    Para a Frelimo, o colonialismo tinha reduzido o trabalho manifestao da vida a umaexpropriao da vida. Tinha retirado o seu carcter de actividade livre e consciente. Ao mais-trabalhode uns era contraposto o menos-trabalho, trabalho no produtivo, cio dos outros:

    Na zona do inimigo, o trabalhador com o seu trabalho d riqueza a quem no trabalha e ganha parasi a misria. Na zona do inimigo, o trabalho manual, o trabalho que cria todas as coisas dospobres, dos feios, dos selvagens, dos analfabetos. Quanto menos se trabalhar mais educadossomos. Quanto menos se trabalhar mais civilizados somos []. Em todo o lado se ensina odesprezo pelo trabalho manual []. (12)

    Para a Frelimo os moambicanos s iriam eliminar esta situao de renncia sua actividade vitalse superassem as relaes de produo que caracterizavam o colonialismo. Poderiam satisfazer assuas prprias exigncia econmicas, sociais e culturais se pusessem fim diviso do trabalho quetorna cada homem incompleto, e se se apropriassem dos instrumentos de produo e das forasprodutivas. A Frente propunha a recomposio do trabalho e da riqueza, da direco e daactividade, da propriedade dos meios de produo e dos produtores atravs de um programa decooperativizao do campo.A tese de Samora da unio entre estudo e trabalho no se reduz portanto s habituais hipteses deum trabalho com um objectivo meramente profissional, com uma funo didctica de aquisio everificao das noes tericas, com fins morais de educao e formao de uma atitude de respeitopelo trabalho e por quem trabalha. Compreende o conjunto destes aspectos e vai muito alm.

    Por vezes alguns admiram-se pelo facto de nas nossas escolas (das zonas libertadas) os alunosdedicarem muitas horas produo. [] Talvez considerem isso absurdo e achem que teria sido

    melhor os alunos dedicarem esse tempo leitura de livros ou a aulas. [] Mas ns tambmaprendemos atravs da produo. [] As nossas ideias no caem do cu como a chuva. []Podemos estudar muito, ler muito, mas para que servem todas estas toneladas de conhecimentos seno as levarmos s massas, se no produzirmos? Se mantivermos as sementes de milho na gavetapodemos colher a maaroca? [] Um gravador poder repetir muitos passos de obras cientficas, deobras revolucionrias, mas ao longo de toda a sua vida no cria nem uma pgina nova. [] A suainteligncia permanece estril como a semente fechada na gaveta. Para desenvolver as nossasconscincias e fazer com que o trabalho e a produo progridam temos que as aplicarcontinuamente. [] E no chega aplicar. Tambm preciso estudar. A inteligncia sem a prticafica estril. A poa sem inteligncia, sem conhecimento, fica cega. Um elefante mais forte do queum homem, mas dado que o homem mais inteligente pode construir uma mquina que transporta

    mais do que um elefante. (13)

    Em muitas outras ocasies Machel retomou o tema do trabalho e da conscincia, da teoria e daprtica. Por exemplo, em 1976, ou seja pouco tempo depois da independncia, num discurso nauniversidade dizia:

    O trabalho produz um crescimento permamente dos conhecimentos humanos que se incorporam noprprio homem e assim, atravs de uma acumulao de conhecimentos, substituem a cincia. [] Acincia a soma do saber proveniente da prtica e do desenvolvimento atravs do trabalho noprocesso de produo. [] Recusamos a diviso artificial da filosofia burguesa entre teoria eprtica. Ela fruto de uma concepo que despreza o trabalho manual, destinando-o aos explorados,

    e sobrevaloriza o trabalho intelectual, que o capitalismo destina a uma casta considerada superior.(14)

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    Machel considerava o trabalho como base de toda a questo da emancipao do homem e do seupovo, e dizia que era necessrio superar as condies histricas que faziam com que se tornasse umelemento negativo. No seria certamente a escola por si s ou a ligao entre estudo e trabalho nointerior da escola que fariam alcanar a meta do homem plenamente desenvolvido, ultrapassar aalienao. Contudo, dada a relao dialctica entre escola e sociedade, a ligao entre estudo etrabalho iria permitir um processo mais amplo de recomposio do trabalho e da riqueza.Mondlane e Machel, e muitos outros membros da Frente que se identificavam com as posies dos

    dois, viam como consolidado que o marxismo iria fornecer indicaes de mtodo e no princpiosabsolutos. Por outro lado, nem em Marx nem em Engels podemos encontrar esquemas e modelos deuma nova sociedade.Durante a luta de libertao nacional, a Frelimo adoptou esta posio tambm para a educao.Considerava que, no havendo leis econmicas universais mas sim leis caractersticas dos diversosmodos de produo, tambm no existiam princpios pedaggicos universais. As experincias, osmodelos, as teorizaes elaboradas em perodos ou pases diferentes forneciam sem dvida umelemento til de comparao e de reflexo, mas no respostas s exigncia especficas do pas.A principal indicao de mtodo que a Frente colhia do materialismo dialctico era a de deduzir aexigncia de ligar estudo e trabalho a partir das mesmas contradies da produo social da suapoca. Nem sempre este programa adoptado pela Frelimo na primeira fase da sua existncia setraduziu em prtica. Em algumas ocasies, sobretudo depois da independncia, a escolhaprogramtica de uma educao integral surgiu mais de uma exigncia abstracta, utpica, dereproduzir modelos estrangeiros do que uma anlise atenta das necessidades do pas e do projectode um sistema educativo com essas bases.

    b) As escolas primrias das zonas libertadas (15)

    A abertura de novas escolas primrias e a organizao da alfabetizao e da educao de adultos

    eram duas das primeiras aces da Frelimo quando libertava uma nova zona do pas. Quando foifundada em 1962 a Frelimo, atravs do seu programa, empenhou-se em liquidar a educao e acultura colonialista e imperialista para desenvolver a instruo, a educao e a cultura ao servio dalibertao do povo moambicano.(16)Nas zonas libertadas assistia-se a uma transformao qualitativa das instituies formativas e ao seucrescimento numrico. As escolas nasciam devido a duas necessidades, uma de carcter estrutural eoutra super-estrutural. Uma nova maneira de pensar, sentir e agir era necessria para reorganizar aproduo e o consumo e melhorar as condies de existncia. Os hbitos e as concepestradicionais, que bloqueavam a iniciativa e a criatividade, eram postas em discusso pela primeiravez. A difuso dos conhecimentos cientficos, ainda que elementares, permitia a introduo denovos mtodos de trabalho para aumentar a produo e tambm responder s necessidades

    crescentes da situao de guerra.Por outro lado, a expanso e a agudizao do conflito militar criavam a necessidade de dotar oexrcito popular de instrumentos como a leitura, a escrita e o clculo, indispensveis na utilizaode armamento moderno e na adopo de uma estratgia complexa. Para responder a estasexigncias, nasceram algumas centenas de escolas debaixo de rvores. Esta caracterstica era aconsequncia da falta de meios e da necessidade de adaptar-se situao de guerra, onde asconstrues fixas seriam um alvo fcil para o inimigo.

    Quando havia um ataque contou-me um professor tnhamos que evacuar a escola com todo omaterial, at os quadros, para podermos continuar as aulas sem perder tempo, em qualquer parteonde estivssemos refugiados.

    Nestas escolas, chamadas Centros pilotos, para alm do estudo, os alunos dedicavam vrias horasdo dia produo agrcola e artesanal, construo de abrigos anti-areos, alfabetizao de

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    adultos. A carne para a sua alimentao vinha da criao de pequenos animais ou da caa. Entre aescola e os habitantes da zona havia uma relao de ajuda mtua atravs de trocas de produtos e deservios. Os professores e os alunos recebiam treino militar, segundo a idade, que os preparava paraenfrentar as situaes criadas pela guerra. Os professores tinham, em muitos casos, apenas mais umano de escolaridade do que os seus alunos. Com a necessidade crescente de instruo, a Frelimoaplicava o princpio de que quem tinha estudado devia ensinar aquilo que sabia a quem ainda o notivesse podido fazer.

    Trabalhava-se em condies difceis. At 1968, por exemplo, os professores no tinham manuais deorientao. Com os breves cursos de formao e os encontros frequentes de preparao resolvia-se,em parte, esta situao. Nas reunies de provncia ou de distrito, os que tinham maior experinciadavam esclarecimentos aos outros quanto a objectivos, contedos e mtodos de cada lio do msseguinte, e juntos discutiam os problemas polticos, sociais e militares que cada um tinhaencontrado.Os alunos tambm no tinham nem livros nem cadernos. A iniciativa criadora era chamada emcausa para enfrentar as dificuldades. Em lugar do quadro usava-se um pedao de madeira escura. Amandioca seca substitua o giz e desenhavam-se mapas geogrficos no cho de areia.

    c) As escolas secundrias

    Tal como no campo militar, no campo da educao a Frelimo contava com o apoio dos pasesamigos na formao dos seus quadros, nomeadamente da Arglia, China e Tanzania, atravs debolsas de estudo em vrios pases da Europa ocidental e pases socialistas, bem como no Institutomoambicano criado em Dar Es Salam, na Tanzania, em 1963.Este instituto pretendia cobrir a diferena que existia entre a formao dos jovens moambicanos eo nvel exigido pelos liceus tanzanianos e pelos cursos mdios e superiores de outros pases. Pordeciso da Frelimo, os estudantes do Instituto iam um ms por ano para as zonas libertadas e aqui

    participavam nos diferentes momentos da vida das comunidades camponesas. Trabalhavam naproduo, transportavam material blico e alimentos, alfabetizavam os adultos, participavam naguerra. Para a Frelimo, o objectivo era impedir que os estudantes se alheassem da realidade do seupas, da produo e da luta de libertao. O mesmo princpio foi mantido a seguir para os estudantesda escola secundria de Bagamoio, criada para substituir o Instituto moambicano um ano e meioaps o seu fecho, que teve lugar em 1968.Gabriel Afonso Nhacuembe contou-me em 1982 um episdio significativo daquele perodo:

    Quando chegaram eram 30, no dia 21 de novembro de 1972, de Bagamoio ao centro piloto deNangade. Vinham para trabalhar na alfabetizao de adultos. No dia seguinte alguns deles pedirampara ir tomar banho ao rio Mtambe. Depois estenderam a sua roupa ao ar livre. No tinham

    nenhuma experincia de guerra. No sabiam que para no serem descobertos pelo inimigo tinhamque estender a roupa debaixo das rvores para que no fosse vista do alto. s 11 chegaram deNangade dois bombardeiros directos a Moeda. Viram a roupa junto do rio. Comearam a voar auma altura de 50 metros, procurando saber de que lado do mato tinham vindo os jovens. Nstnhamos ido para os abrigos. A seguir chegaram helicpteros. Foram chamados pelos caas atravsda rdio. Os alunos do Centro piloto fugiram para os abrigos no mato. assim que se deve fazernestas situaes. Mas os de Bagamoio no estavam habituados guerra e demoraram-se. Osportugueses comearam a disparar, queimaram as nossas coisas e trouxeram ces treinados paraprocurar as pessoas. Um rapaz de 16 anos de Bagamoio morreu quando tentava fugir do abrigo parao mato. Chamava-se Janurio Pedro. (17)

    Nhacuembe comentava o episdio de Janurio Pedro criticando a separao entre teoria e prtica naformao dos jovens das escolas secundrias. A teoria tornava-se estril e a prtica inadequada. O

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    momento em que os estudantes tinham que enfrentar a realidade sentiam-se perdidos. As mesmasconsideraes eram vlidas quer para a produo quer para a guerra.Nos centros educativos da Frelimo a relao de foras nem sempre foi a favor da inovao e dademocratizao. Em algumas ocasies prevaleceram concepes, valores e comportamentos queconstituram obstculo consolidao do projecto da Frente. De entre as diversas crises que severificaram nas instituies educativas, a que teve lugar em 1968 no Instituto moambicano de DarEs Salam, envolvendo 160 estudantes da escola secundria, pode ser considerada a mais grave. Os

    jovens opunham-se orientao de participarem durante as frias escolares nas actividadesprodutivas, militares e educativas das zonas libertadas. Para alm disso manifestavam atitudesracistas em relao aos professores brancos. Consideravam natural que os camponeses tivessem queproduzir e combater e eles apenas estudar. Pensavam que, em troca, os estudantes um dia guiariamo pas independente. A Frelimo achava que, pelo contrrio, se se formassem distantes da sua genteter-se-iam tornado dirigentes contra o seu prprio pas e no a favor dele.O ponto de vista dos jovens no oferecia nenhuma garantia. A posio dos estudantes coincidia comuma linha minoritria que no interior da Frente defendia a separao entre quadros polticos equadros militares, entre dirigentes e dirigidos. Segundo esta faco os camponeses,analfabetos, deviam combater e os estudantes deviam ser os seus dirigentes. Para acabar com estatendncia, a direco da Frente decidiu fechar o Instituto em 1968. Um ano e meio depois foi abertaem Bagamoio uma nova escola secundria, centrada na ligao entre estudo e produo, assimcomo na ligao entre escola e vida do pas.O comit central da Frente comentava a propsito do episdio do Instituto moambicano:

    Alguns moambicanos querem privilgios agora e depois da independncia. [] isto, hoje, oque est na origem da atitude da maioria dos estudantes secundrios do Instituto moambicano.Querem estudar e ao mesmo tempo querem a independncia sem ter que participar na luta parapoder alcanar este objectivo. Acham que depois da independncia no vo ser os que combateramque iro governar mas os que estiveram a estudar. Os chamados intelectuais. (18)

    Em 1982 Patrcia Saul e Rui Fonseca, pesquisadores do Instituto nacional de desenvolvimento daeducao (Inde), num estudo retrospectivo, consideraram a crise do Instituto como o resultado dasobrevalorizao do aspecto quantitativo da formao em relao ao qualitativo. Os programaseram importados sobretudo do Brasil. Os objectivos e os contedos do ensino no eramquestionados. Os princpios da Frente no tinham sido interiorizados pelos estudantes, apesar declaramente definidos no primeiro congresso. Por estas razes subsistia ainda uma perspectivaneocolonial da qual um professor da escola, padre Gwengere, era expresso. Saul e Fonsecaconsideravam que da experincia do Instituto moambicano poder-se-iam colher ensinamentos teispara o presente. O primeiro era que a nfase excessiva dada ao aspecto quantitativo da formaodesfavorecia a qualidade. O segundo era que os objectivos da democratizao da Frelimo podiamser destrudos se o princpio da ligao estudo-trabalho no fosse interiorizado e concretizado.

    d) Algumas consideraes

    Depois da independncia, o governo de Moambique usou muitas vezes a experincia da luta delibertao nacional como ponto de referncia e de inspirao para o novo sistema de educao. Sque havia a tendncia de realar os aspectos positivos daquele perodo esquecendo as crisessurgidas e os ensinamentos que da se podiam tirar.Durante o perodo da luta de libertao nacional a Frelimo no negava a existncia de contradiesque depois, na prtica, vieram a dar origem a problemas, nem justificava o que acontecia. Pelo

    contrrio, procurava acelerar a transformao atravs das oposies, guiando-as para uma superaodas mesmas. A teoria poltica e educativa no era nem enftica nem propagandstica. Ao opor-se a

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    tradio do colonialismo, mostrava ser essencialmente crtica. Os textos escritos por SamoraMachel atestam esta perspectiva.A teoria pedaggica do movimento de libertao surgia da sua prtica e propunha melhor-laconstantemente, transformando-a. Machel tinha sublinhado muitas vezes que conhecer acontradio dos factos significava abrir caminho para a sua transformao, e que no era negandoum dos dois polos da contradio da realidade educativa que se dava origem a uma inovaogenuna e consistente, mas assumindo-a e ultrapassando-a.

    Escreveu, por exemplo: a existncia de contradies um fenmeno natural e inevitvel para oprogresso. (19)A sua posio estava, por outro lado, de acordo com a filosofia da praxis segundo a qual o quecaracteriza o movimento dialctico precisamente a coexistncia dos dois lados da contradio, aluta entre ambos e a sua fuso numa nova categoria. Se for eliminado o lado negativo dacontradio, elimina-se o movimento dialctico.Quem faz uma anlise da realidade educativa das zonas libertadas, raramente toma em consideraoa interaco dos elementos positivo e negativo. Se por um lado tende-se a omitir os lados positivosda educao colonial, ainda que poucos, por outro frequente ignorar os momentos de crise daeducao nas zonas libertadas.De uma anlise dos factos sabe-se que nas zonas libertadas estavam tambm presentes as duastendncias. Uma propunha escolhas educativas que respondessem s exigncias de uma pequenaelite urbana. Outra queria interpretar as exigncias de toda a populao atravs de uma intervenoformativa indita. Os que pertenciam ao segundo grupo achavam que os problemas no deviam sernegados mas enfrentados imediatamente, antes que a sua presso pudesse destruir as conquistas domovimento.A luta entre a velha e a nova direco cultural trouxe, quer nas zonas libertadas quer na Tanzania,episdios de recusa do trabalho produtivo, manifestaes de racismo ou de tribalismo e aprevalncia do centralismo burocrtico sobre uma real democracia na escola. O individualismo, aconcorrncia, os complexos de superioridade e de inferioridade, a passividade dos alunos eprofessores eram atitudes que representavam para a Frelimo uma fora destrutiva moral to nociva

    quanto a destruio fsica realizada pelo exrcito colonial. O atraso da transformao culturalcomparado com a transformao poltica e econmica era considerado fatal para o desenvolvimentoquer naquele momento quer num futuro estado independente. (20)Nas zonas libertadas, a relao da Frelimo com a populao pode ser considerada pedaggica, deconfrontao permanente, que tendia a unir teoria e prtica, conscincia e realidade, estudo etrabalho. Nem uma descolarizao e retorno puro e simples s origens, nem a adopo do modeloescolar colonial eram consideradas respostas adequadas s novas necessidades da populao. NosCentros pilotos a educao passava a ser um processo intencional, sistemtico, organizado eentrelaado com a vida. Entre transformao e trabalho, entre educadores e comunidadeinstaurava-se uma relao de unidade e no identidade que substitua quer a identidadecaracterstica entre os dois termos da educao tradicional quer a oposio que a educao colonial

    tinha criado entre ambos. A participao nas actividades produtivas era considerada um factor deeducao e um meio para contribuir para a produo de bens sociais.As transformaes realizadas no terreno da formao eram vistas como uma consequncia de umprocesso exterior ao mesmo, mas tambm como condio de um seu desenvolvimento futuro. Aestratgia da Frente consistia em preceder com uma interveno poltico-educativa a ofensivamilitar nas zonas onde seria aberta uma nova frente de combate. A guerrilha s comeava a agirquando a Frente tivesse a certeza de ter conseguido o apoio da populao. A experincia tinhamostrado que o exrcito popular crescia e conseguia sucessos onde a populao compreendesse anecessidade de uma guerra.Os dirigentes da Frelimo afirmavam que o xito poltico e militar poderia consolidar-se e alargar-sea novas zonas se o movimento de libertao, tornado dominante, se tivesse preocupado em

    aprofundar a sua hegemonia cultural. Isto explica a ateno dedicada escola.A alfabetizao dos adultos, que no existia no perodo colonial, comeou com o movimento delibertao. Durante o perodo da luta de libertao nacional a Frente criou mais de duzentos

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    centros de educao primria em zonas nunca antes cobertas pela rede escolar colonial. Da intenode abolir o dualismo escola de trabalho e escola de no-trabalho, caracterstica do sistemaeducativo nas regies governadas por Portugal, nascia um novo tipo de formao, unitria,integrada na vida e confiada responsabilidade da comunidade, caracterizada por uma interligaoentre estudo e trabalho. A nova direco cultural defendia a laicizao do ensino e opunha-se discriminao racial, tribal e sexual.A educao tradicional tinha sido um processo informal. (21) Salvo alguns momentos de excepo,

    como o caso dos ritos de iniciao, era caracterizada por uma relao de transmisso e apropriaocultural no organizada intencionalmente. As identidades educao-trabalho, educadores-comunidade tinham sido uma sua peculiaridade.O sistema de formao colonial tinha dado relao pedaggica um carcter intencional,organizado e sistemtico. Tinha criado para uma elite um espao e um tempo educativo especfico,separado do trabalho. Quando o ensino missionrio, ainda que em medida reduzida, foi aberto aosmoambicanos, separou-se no seu interior o estudo da produo assim como no seu exterior se opsa escolarizao ao trabalho. O sistema tinha isolado o processo de formao da vida, contrapondoassim o professor, considerado o nico detentor de cultura, aos alunos e comunidade educativa,que vinham desresponsabilizados e puerilizados.As escolas das zonas libertadas constituam a superao da educao tradicional e colonial, no asua destruio. Nas escolas da Frelimo verificava-se a sntese das caractersticas que opunham osdois caminhos de formao. Os espaos e os tempos educativos apresentavam-se ao lado dosprodutivos, j no separados ou contrapostos. Cada aluno dedicava-se quer ao estudo quer aotrabalho. A escola inseria-se na vida da comunidade e na dos adultos, e mantinha com ela umarelao de troca e de solidariedade de carcter econmico, social, cultural, poltico e militar. Aresponsabilidade da interveno formativa era ao mesmo tempo do pessoal especificamentedestinado mesma e da colectividade.O que era principalmente ensinado naquele perodo, em minha opinio, era a capacidade deconstruir o novo a partir da superao dialctica do passado (no da sua negao), ou seja, a partirda sntese dos aspectos positivos e da rejeio dos negativos.

    A anlise desta experincia leva-me a formular uma questo qual tentarei dar uma resposta noscaptulos seguintes:Quando um movimento passa a partido no poder num estado independente, continua a manter acontradio entre teoria e prtica, caracterstica da experincia do movimento de libertao? Ateoria e os princpios nascem da experincia ou so impostos? Constituem estmulo inovao ouso dogma e travo?

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    Captulo 3

    Continuidade e ruptura com a experinciadas zonas libertadas: a independncia

    A 7 de setembro de 1974 os acordos de Lusaka punham fim guerra. A 25 de Junho de 1975

    Moambique tornava-se independente. A Frelimo estendia a sua hegemonia poltica a todo o pas. Opresidente da Repblica, Samora Machel, no discurso de tomada do poder, indicava a experinciadas zonas libertadas como fonte de inspirao para a estratgia de desenvolvimento do novo Estado.Ao definirmos uma estratgia de desenvolvimento, devemos valorizar o que constitui a nossa foraprincipal, ou seja, a mobilizao e a organizao da populao. Por este motivo temos que olharpara a nossa prpria experincia, especialmente para a experincia das zonas libertadas. [] Nodevemos procurar solues para os nossos problemas em paleativos milagrosos vindos doestran