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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
FACULDADE DE DIREITO
MARIA LÍLIAN DA COSTA SOUSA
O LIVRE COMÉRCIO E A PIRATARIA DO CONHECIMENTO
TRADICIONAL
FORTALEZA
2006
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MARIA LÍLIAN DA COSTA SOUSA
O LIVRE COMÉRCIO E A
PIRATARIA DO CONHECIMENTO TRADICIONAL
Monografia apresentada como requisito à
conclusão do Curso de Graduação em Direito
da Universidade Federal do Ceará.
Orientadora: Prof.ª MS. Sheila Cavalcante
Pitombeira
FORTALEZA
2006
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AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Célia e Francisco, cujo apoio inestimável me permite prosseguir
em meus estudos.
À professora e orientadora Sheila Cavalcante Pitombeira, pelo auxílio e boa
vontade na realização deste trabalho.
Ao professor Flávio José Moreira Gonçalves, por todos os ensinamentos
transmitidos.
Aos demais professores que, com seus conhecimentos e bom ânimo, nos
ajudaram na conclusão deste trabalho.
A todos os amigos e pessoas queridas, que, de alguma forma, mesmo que
singela, nos deram alento e força.
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“A mentira é o único privilégio que distingue o ser humano de todos os outros
organismos”.
Fiodor Mikhaïlovitch Dostoïevski
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RESUMO
Este trabalho tem como objetivo apresentar a relação existente entre livre comércio e
pirataria do conhecimento tradicional. Utilizamos como base a obra Biopirataria: a
pilhagem da natureza e do conhecimento, de Vandana Shiva, e dividimos o assunto em
três capítulos. No primeiro, observamos aspectos relacionados à propriedade intelectual
e ao modo de conhecimento reducionista. No segundo capítulo, analisamos o problema
da biopirataria e destacamos a importância do conhecimento tradicional. No terceiro,
apresentamos o contexto da globalização no qual se inserem o sistema de patentes e a
biopirataria, e o relacionamos com a ideologia da colonização.
Palavras-chaves: Biopirataria Conhecimento tradicional Propriedade intelectual Ciência
reducionista Patentes Globalização Colonização
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RÉSUMÉ
Ce travail a pour but de présenter la relation entre le libre commerce et
l´appropriation des connaissances traditionnelles communes. Nous avons basé notre
analyse sur l´oeuvre La biopiraterie ou le pillage de la nature et de la connaissance, de
Vandana Shiva, et avons divisé le sujet en trois chapitres. Dans le premier, nous
observons des aspects liés à la propriété intellectuelle et à l'approche réductionniste de
la connaissance. Dans le deuxième chapitre, nous analysons le problème du biopiratage
et soulignons l´importance des connaissances traditionnelles. Dans le troisième, nous
présentons le contexte de la globalization dans lequel se trouvent le système de brevets
et le biopiratage, et le lions avec l´idéologie de la colonisation.
Mots-clés: Biopiraterie Connaissances traditionnelles Propriété intelectuelle Science
réductionniste Brevets Globalisation Colonisation
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LISTA DE SIGLAS
CDB - Convenção da Diversidade Biológica
DPI - Direitos de Propriedade Intelectual
EPA - Environmental Protection Agency
GATT - General Agreement on Tariffs and Trade
IPC - Intellectual Property Committee
OGM - Organismo Geneticamente Modificado
OIC - Organização Internacional do Comércio
OMC - Organização Mundial do Comércio
TRIPS - Trade Related Intellectual Property Rights
UNCTAD - United Nations Conference on Trade and Development
UNICE - Union of Industrial and Employers' Confederations of Europe
VAR - Variedade de Alto Rendimento
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SUMÁRIO
Introdução.........................................................................................................................8
1 Proteção da propriedade intelectual e ciência
reducionista.....................................................................................................................12
1.1 Proteção da propriedade intelectual relacionada ao comércio .................................13
1.2 Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio ..................................................................16
1.3 Ascensão do paradigma reducionista na biologia ....................................................17
1.4 Conseqüências do pensamento reducionista ............................................................19
2 Conhecimento tradicional............................................................................................23
2.1 Rede do Terceiro Mundo ..........................................................................................23
2.2 Importância do conhecimento tradicional e da sua preservação
.........................................................................................................................................24
2.3 Pirataria do conhecimento tradicional.......................................................................26
2.4 Convenção da Diversidade Biológica.......................................................................30
3 Globalização e colonização..........................................................................................33
3.1 Mentalidade colonizadora ........................................................................................33
3.2 Primeira globalização ...............................................................................................34
3.3 Segunda globalização ...............................................................................................36
3.4 Terceira globalização: Livre comércio .....................................................................39
Considerações finais........................................................................................................43
Referências......................................................................................................................46
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Introdução
O tema do presente trabalho foi escolhido tendo como base a obra Biopirataria: a
pilhagem da natureza e do conhecimento, da autora indiana Vandana Shiva. Formada
em física, posteriormente afastou-se da sua área de formação para dedicar-se à filosofia
da ciência, que cursou em Londres. Sua atuação como intelectual mescla-se às suas
polêmicas posições políticas, e é atualmente considerada uma das principais expoentes
do mundo na defesa do conhecimento tradicional e na crítica aos efeitos maléficos dos
transgênicos e do sistema de propriedade intelectual.
Nesse sentido, destacam-se a sua liderança em protestos contra a Monsanto - que
envolveram a queima de colheitas - sua dedicação às causas feminista e ecológica, sua
identificação com os agricultores sem terra da Índia, a participação no Fórum Social
Mundial e o radicalismo de suas opiniões contra a agrobiotecnologia, os transgênicos, a
Revolução Verde, os direitos de propriedade intelectual e as patentes. A ativista e
filósofa indiana dirige a Research Foundation for Science, Technology and Ecology, em
Nova Déli, e é membro da Rede do Terceiro Mundo.
Na obra que estudamos - ainda a única traduzida para o português - existem três
conjuntos de teses, que são temas recorrentes nos livros e artigos publicados pela autora,
quais sejam: a semente, a ciência reducionista e os modelos alternativos de agricultura.
No que concerne à semente, a sua idéia central consiste na crítica de que, uma
vez inserida no sistema da agricultura dominada pelo capital, ocorre a alteração da
natureza da semente, a qual passa de recurso regenerativo a simples mercadoria.
Os dois outros conjuntos de teses, intrinsecamente relacionados, são os que
informam o presente trabalho. A crítica ao modo de pensar reducionista, o qual tem
conduzido os modelos tecnológicos da agricultura, quer os da Revolução Verde, quer os
da agrobiotecnologia, e que representa, na realidade, apenas um tipo de conhecimento
científico. Em contrapartida, apresenta os modelos alternativos de agricultura, que vêm
ilustrar um outro tipo de conhecimento, o conhecimento tradicional de comunidades
locais, que o desenvolveram ao longo do tempo de acordo com as suas necessidades e as
do meio em que vivem.
No primeiro capítulo, faz-se uma explanação sobre o que se considera
criatividade, seus conceitos distintos conforme o sistema de conhecimento em que esteja
inserida e o que verdadeiramente significa quando se trata de direitos de propriedade
http://www.vshiva.net/http://www.twnside.org.sg/
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intelectual e, mais especificamente, de direitos de propriedade intelectual relacionados
ao comércio.
Após a menção da existência da criatividade inerente à natureza, concentramo-
nos na criatividade das formas de conhecimento tradicional, cujas práticas são
ecologicamente sustentáveis, por, principalmente, contemplar a natureza como um
complexo de interações, essenciais umas às outras para o equilíbrio do todo, e nisso se
opõe à criatividade dentro da concepção reducionista da vida, a qual considera os seres
vivos, bem como as partes que o integram, de maneira isolada.
Para uma melhor compreensão do tema, analisamos o Acordo sobre os Direitos
de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trade Related Intellectual
Property Rights - TRIPS) e a forma como foi engendrado para mostrar que o seu maior
comprometimento é, de fato, com o mercado, e não com a proteção e o estímulo à
criatividade. Ademais, observamos as restrições que importa ao conceito de criatividade
livre e as conseqüências nocivas disso, sobretudo a marginalização e o prejuízo do
conhecimento tradicional. Esclarecendo ainda mais este assunto, fazemos uma breve
referência sobre em que consiste o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (General
Agreement on Tariffs and Trade - GATT).
Após estudar a perspectiva comercial da imposição de um determinado tipo de
conhecimento, analisamos a sua faceta científica e as restrições que incutiu no conceito
de criatividade, mencionando o dogma central da biologia molecular como a expressão
máxima do reducionismo científico, bem como a influência do capital na ascensão desse
pensamento no campo da biologia.
Por fim, examinamos as conseqüências ecológicas e socioeconômicas do
conhecimento reducionista e, especificamente, da aplicação de suas técnicas à
agricultura, com a menção de estudos a respeito da modificação genética de plantas
agrícolas e a sua liberação no meio ambiente.
No segundo capítulo, a fim de abordar o modelo que se opõe ao que foi
analisado no capítulo anterior, colocamo-nos na perspectiva das comunidades locais que
têm o seu conhecimento menosprezado pelo sistema oficial de proteção intelectual e,
concomitante a isso, utilizados indevidamente pelas multinacionais.
Nesse sentido, mencionamos as duas vertentes que compõem o trabalho de
Vandana Shiva como ativista: o Navdanya, uma rede nacional para estabelecer bancos
comunitários de sementes na Índia, e o Satyagraha da Semente, juntamente com a Rede
do Terceiro Mundo, através dos quais se procura construir uma alternativa ao paradigma
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do conhecimento relacionado ao meio ambiente, bem como preservar as chamadas
terras comunitárias intelectuais.
Concentramos a nossa atenção nesta última organização, já que diz respeito aos
países em desenvolvimento como um todo, e apresentamos algumas de suas idéias e
discussões acerca da importância da preservação do conhecimento tradicional para o
desenvolvimento sustentável, tanto sob o ponto de vista ecológico quanto
socioeconômico.
Posteriormente, apresentamos três exemplos da violência que vem sendo
praticada contra o conhecimento tradicional e as comunidades locais que o criaram e
que, durante séculos, aperfeiçoaram-no e foram suas legítimas guardiãs: o caso do Nap-
Hal e do nim, espécies vegetais tipicamente indianas, e de espécies de milho da
América Central. Igualmente, expomos a fórmula empregada pelas grandes empresas a
fim de roubar o conhecimento tradicional, os motivos que impedem que este seja
protegido de forma eficaz pelo atual sistema de proteção à propriedade intelectual e
algumas alternativas que têm sido criadas em diversas partes do mundo.
Finalmente, fazemos uma breve menção à Convenção da Diversidade Biológica
(CDB), acordo internacional pioneiro no debate da problemática do acesso indevido à
biodiversidade e ao conhecimento tradicional dos países em desenvolvimento.
No terceiro capítulo, estabelecemos uma relação entre o modelo de pensamento
reducionista e o sistema atual de proteção à propriedade intelectual - que relegam outras
formas de conhecimento e, desse modo, incitam à uniformização da cultura e da
natureza - e a colonização, ou globalização - na qual povos auto-organizados têm suas
terras e recursos roubados, bem como a sua cultura desprezada e oprimida pela
imposição da cultura estrangeira invasora.
Primeiramente, traçamos um histórico de colonizações, ou globalizações
ocorridas, a primeira delas há mais de quinhentos anos, com a chegada de Cristóvão
Colombo às terras que mais tarde viriam a chamar-se América, dando ênfase às idéias
eurocêntricas que norteavam essas conquistas e que continuaram a guiar os processos de
globalização subseqüentes.
Em seguida, tratamos da segunda globalização, a qual surge a partir da ideologia
do desenvolvimento imposto de fora para dentro, ao invés de auto-gerado, e mediante o
auxílio de poderosas instituições financeiras internacionais, numa experiência em que,
uma vez mais, valores de determinados países são incutidos em outros, através, neste
caso, do poder econômico.
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A fim de ilustrar tal paradigma do desenvolvimento, citamos a Revolução Verde,
implementada na agricultura a partir de 1950 e por meio da qual foram impostos certos
padrões e prioridades, gerando uniformização na natureza, com a extinção de espécies
vegetais, e prejuízo ao conhecimento tradicional das comunidades locais, entre outras
conseqüências.
Com relação à terceira globalização, abordamos a sua expressão maior na
atualidade, isto é, o livre comércio, de que maneira ele importa imposição de regras por
parte de países economicamente poderosos e, por conseguinte, uniformização e prejuízo
aos mais frágeis e o que realmente significa liberdade nesse contexto.
Finalizando, apresentamos de que modo se tentou implantar o livre comércio
ainda anteriormente ao Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, através dos programas
de ajuste estrutural de instituições financeiras internacionais, e suas conseqüências para
a economia de países pobres, como a Somália e Ruanda.
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Capítulo 1
Proteção da propriedade intelectual e ciência reducionista
Os direitos de propriedade intelectual (DPI) visam a estimular e recompensar a
criatividade. São, porém, direitos privados e por natureza implicam uma restrição do
que é considerado criatividade e conhecimento. Os direitos de propriedade intelectual
ligados ao comércio (Trade related intellectual property rights) são, por sua vez,
comumente conhecidos pela sua sigla em inglês, qual seja, TRIPS. Visam, como foi
mencionado acima, recompensar a criatividade, o esforço intelectual de uma invenção e
tornar exclusivos do inventor os frutos de sua invenção. Mas, o que se considera
criatividade, o que é tido como invenção e esforço intelectual, de acordo com o sistema
de DPI?
Poder-se-ia pensar que esse sistema tem como meta principal a proteção do
conhecimento e da criatividade. Entretanto, uma análise mais profunda nos mostra que
ele tem mais a ver com interesses comerciais. O conceito de criatividade torna-se, pois,
fundamental para entendermos que o sistema de DPI tem mais a ver com interesses de
mercado que com o conhecimento, além de ser, quanto a este, bastante discriminador.
Qualquer que seja o conceito de criatividade, é preciso admitir-se que ela possui
várias expressões. Não se pode limitar o ato criativo a determinado padrão, determinado
processo estabelecido, pois a criatividade necessita de liberdade para fluir. Liberdade de
aceitar que o processo criativo, o ato que cria, não se pauta por apenas um modelo, mas
se desenvolve livre no campo das diferenças.
Dessa forma, Shiva equipara ciência a criatividade e conceitua-as de acordo com
a liberdade de que precisam dispor para se desenvolver e permitir ao intelecto humano
total possibilidade de criar:
A ciência é uma expressão da criatividade humana, tanto a individual como
a coletiva. Uma vez que a criatividade tem diversas expressões, considero a
ciência como uma iniciativa pluralista que engloba diferentes maneiras de
conhecer. Para mim, ela não se restringe à ciência ocidental moderna, mas
inclui os sistemas de conhecimento de diversas culturas em diferentes
períodos da história. (SHIVA, 2001, p. 29-30, grifo da autora).
Não somente o ser humano é capaz de criar, mas também a natureza. Esta exerce
a sua criatividade ao reproduzir-se, multiplicar-se numa liberdade auto-organizada e ao
adaptar-se às constantes necessidades de seu meio.
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Existem, portanto, além da ciência ocidental, outros sistemas de conhecimento
que devem ser respeitados, na medida em que geram maior proveito, tanto para o meio
ambiente local e global, quanto para o sustento da comunidade que o cultivou e
desenvolveu ao longo do tempo. Geralmente, esses sistemas de conhecimento nativo
apresentam diversas vantagens em relação à ciência globalizada e mercantilizada. Por
dependerem do ecossistema local, esse conhecimento é, em geral, ecológico, sustentável
e leva em consideração a natureza como sistema integral, complexo, dependente de um
conjunto de inter-relações em que cada parte desempenha importante papel - nenhum
elemento é desprezado, ou considerado de menor valor.
Assim, ao tratar especificamente das ciências da vida - ou do conhecimento cujo
objeto são os seres vivos - a criatividade deve contemplar três níveis, segundo Shiva:
A criatividade inerente aos seres vivos, que lhes permite evoluir, recriar-se e
regenerar-se; a criatividade de comunidades locais (como algumas
comunidades indígenas, por exemplo) que desenvolveram, ao longo dos
séculos, sistemas de conhecimento para utilizar e conservar a biodiversidade
local; e a criatividade dos cientistas modernos em laboratórios de poderosas
empresas, que descobrem maneiras de utilizar os seres vivos segundo
interesses comerciais, a fim de gerar lucro. (Ibid., p. 30 e 31).
Reconhecer que o conhecimento e a criatividade podem surgir e expressar-se de
diferentes modos é fundamental para que se respeite e preserve não só a diversidade de
conhecimento, mas também a diversidade da vida.
Mas, de que forma o regime dos DPI, mais especificamente, dos TRIPS, no
GATT, sufoca a diversidade e conduz à colonização dos sistemas que se auto-
organizam e se sustentam com base em outros princípios?
1.1 Proteção da propriedade intelectual relacionada ao comércio
Para entender isso, vejamos de que maneira foi engendrada a proteção da
propriedade intelectual relacionada ao comércio no GATT. O acordo referente aos
TRIPS foi concebido por três organizações, quais sejam, o Comitê de Propriedade
Intelectual (Intellectual Property Committee - IPC), Keidanren e União das
Confederações das Indústrias e dos Empregadores da Europa (Union of Industrial and
Employers' Confederations of Europe - UNICE). O IPC é constituído de doze grandes
empresas norte-americanas: Bristol Myers, Du Pont, General Electric, General Motors,
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Hewlett Packard, IBM, Johnson & Johnson, Merck, Monsanto, Pfizer, Rockwell e
Werner; Keidanren é um conjunto de organizações econômicas japonesas; e a UNICE é
a representante oficial dos negócios e da indústria da Europa.
Esses três grandes grupos trabalharam conjuntamente a fim de introduzir a
proteção da propriedade intelectual no GATT. O IPC, um dos responsáveis pela feitura
do acordo TRIPS, teve sua estratégia comentada por James Enyart, da Monsanto:
Como nenhum grupo comercial se encaixava no projeto de lei, tivemos de
criar outro [...]. Uma vez criado, a primeira tarefa do IPC foi repetir o
trabalho que realizamos nos Estados Unidos nos velhos tempos, desta vez
com as associações industriais da Europa e do Japão, a fim de convencê-los
de que um código era possível. [...] Consultamos muitos grupos de interesse
durante todo o processo. Não foi uma tarefa fácil, mas nosso grupo trilateral
foi capaz de deduzir das leis dos países mais avançados os princípios
fundamentais para a proteção de todas as formas de propriedade intelectual.
[...] Além de divulgar nossos conceitos em casa, fomos até Genebra, onde
apresentamos nosso documento aos membros da Secretaria do GATT.
Aproveitamos igualmente a oportunidade para apresentá-lo a representantes
de muitos países em Genebra. [...] O que descrevi a vocês não tem
absolutamente nenhum precedente no GATT. A indústria identificou um
grave problema no comércio internacional, elaborou uma solução, tornou-a
uma proposta concreta e vendeu-a tanto ao nosso quanto a outros governos.
[...] As indústrias e os operadores do mundo dos negócios desempenharam,
simultaneamente, os papéis de paciente, diagnosticador e terapeuta.
(ENYART, 1990, p. 54-56 apud SHIVA, 2001, p. 109).
Vê-se, portanto, que o acordo TRIPS no GATT representa os interesses de
apenas um setor. Não foi discutido por representantes dos vários segmentos da
sociedade nem foi objeto de negociação entre países industrializados e países em
desenvolvimento. Representa os anseios daqueles que o elaboraram, ou seja, os
interesses e valores das empresas multinacionais. Sendo assim, é evidente que em tal
documento os interesses comerciais se sobrepõem às preocupações éticas, ecológicas e
sociais.
Dessa forma, ao tentar recompensar a criatividade e, ao mesmo tempo e
sobretudo, proteger os interesses das grandes empresas multinacionais, a proteção da
propriedade intelectual inserida no GATT através do acordo TRIPS restringe o conceito
de criatividade. O seu conceito de criatividade, assim limitado, desconsidera a
criatividade da natureza, sistema auto-organizado capaz de reproduzir-se e regenerar-se,
bem como as formas alternativas de conhecimento, oriundas das tradições de diversos
povos, que criaram e recriaram ao longo do tempo de acordo com as suas necessidades.
Desse modo, os TRIPS, ao universalizar o regime norte-americano de patentes,
promovem uma espécie de monocultura do conhecimento, em que a homogeneização é
necessária a fim de permitir um controle.
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Nesse contexto, a diversidade, em especial a diversidade do conhecimento,
representa um perigo, pois inviabiliza a maximização dos ganhos. No entanto, por outro
lado, todos os demais perdem, já que a homogeneização leva a um empobrecimento
intelectual e cultural, sem a possibilidade de troca de experiências diversas e adaptação
às necessidades distintas de cada localidade. Além disso, restringe o intercâmbio de
conhecimentos, o que embaraça ainda mais o processo do conhecimento como um todo.
O acordo TRIPS restringe o conceito de inovação, de modo a favorecer as
multinacionais. A primeira restrição diz respeito à transformação das idéias em direitos
privados. Isso exclui do conceito de criatividade e inovação as idéias, as inovações e o
conhecimento trocados livremente entre os indivíduos de uma determinada comunidade,
isto é, exclui as idéias que circulam livremente nas “terras intelectuais comunitárias”,
conforme a terminologia utilizada por Shiva. (Ibid., p. 32).
A segunda restrição torna ainda mais evidente o real objetivo da proteção da
propriedade intelectual ligada ao comércio. O artigo 27.1 do TRIPS estabelece que, para
ser protegida, uma inovação deve ter, ainda que em potencial, uma aplicação industrial.
Obviamente isso exclui, de plano, todos os setores que produzem e inovam fora do
modo de organização industrial, valorizando, assim, apenas as inovações que geram
lucro e dentro de um determinado modelo.
Shiva critica esse sistema de proteção da propriedade intelectual, posto que
oficializa a criatividade, negando as inovações tanto da natureza quanto das
comunidades que se organizam fora desse sistema. Assim, segundo ela, nega-se a
criatividade da natureza e de outras culturas, ainda quando essa mesma criatividade é a
base utilizada para desenvolver alguma inovação e obter ganho comercial por parte de
grandes empresas. Neste caso, os TRIPS seriam apenas um outro nome dado à
biopirataria e à pirataria do conhecimento tradicional. Ao mesmo tempo, quando as
comunidades locais são atingidas pelo roubo de seus recursos e tradições culturais -
roubo esse legitimado através das patentes - e exigem seus direitos, vêem que se viram
contra si os termos “roubo e pirataria”. (Ibid., p. 32).
Por exemplo, a Comissão Internacional do Comércio dos Estados Unidos (U.S.
Trade Commission) alegava que a indústria norte-americana perdia entre cem e
trezentos milhões de dólares por ano devido à deficiente proteção da propriedade
intelectual nos países em desenvolvimento. Entretanto, muitas das patentes, não só dos
Estados Unidos, como também de outros países, estão baseadas na biodiversidade e no
conhecimento dos países do terceiro mundo.
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“Os movimentos contra os TRIPS e as patentes da vida são movimentos para
proteger a criatividade da natureza e de outros sistemas de conhecimento. É da
conservação dessa criatividade que depende nosso futuro.” (Ibid., p. 40).
Antes de prosseguir e, uma vez que falamos de TRIPS, devemos explicitar o que
é GATT, que ilustra o tipo de pensamento que protege a criatividade como algo privado
e gerador de lucro.
1.2 Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio
O Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT) foi elaborado após a Segunda
Guerra Mundial por vários países que decidiram regular as relações econômicas
internacionais, ao dar-se conta de que os problemas econômicos influíam seriamente nas
relações entre os diversos países. Para tentar dirimir esses problemas econômicos,
discutia-se a criação de uma Organização Internacional do Comércio (OIC), a qual
funcionaria como um órgão especializado das Nações Unidas.
Em 1946, 23 países, chamados países fundadores, iniciaram negociações
tarifárias, a fim de impulsionar a liberalização comercial e combater práticas
protecionistas. O conjunto de normas e concessões tarifárias resultante dessas
negociações foi denominado GATT.
Os membros fundadores e alguns outros países elaboraram o projeto de criação
da OIC, sendo que os Estados Unidos se destacaram pela sua atuação, defendendo a
idéia do liberalismo comercial regulamentado de forma multilateral. As discussões
sobre o projeto se estenderam de novembro de 1947 a março de 1948, em Havana,
Cuba. O documento que previa a criação da OIC, além de estabelecer regras para o
comércio internacional de bens, continha normas sobre emprego, investimentos
estrangeiros e serviços.
Apesar da sua atuação nas negociações para a criação da organização
internacional acima mencionada, os Estados Unidos, devido a questões políticas
internas, anunciaram, em 1950, que não encaminhariam o projeto ao Congresso a fim de
que fosse ratificado. Sem a participação desse país, a criação da Organização
Internacional do Comércio não foi levada a cabo, e foi assim como o GATT, um acordo
surgido para regular provisoriamente o comércio internacional, regeu por mais de quatro
décadas as relações comerciais entre os países.
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Na história do GATT, a Rodada do Uruguai é considerada como a mais intensa
rodada de negociações. No ano de 1994, foi firmado o Acordo Constitutivo da
Organização Mundial do Comércio (OMC). A função desse organismo internacional
seria a de administrar duas categorias de acordos: os Acordos Multilaterais e os Acordos
Plurilaterais. Aqueles vinculam todos os países membros da organização, e isto foi um
dos motivos pelos quais, quando de sua criação, nem todos os países quiseram filiar-se à
OMC, posto que a adesão implicava a aceitação de todos esses Acordos Multilaterais,
negociados durante a Rodada do Uruguai.
Os Acordos Multilaterais são acordos e outros instrumentos jurídicos
relacionados constantes dos anexos 1, 2 e 3, os quais fazem parte do Acordo
Constitutivo da OMC e são de aceitação obrigatória para todos os países-membros. No
Anexo 1 (Acordos multilaterais sobre o comércio de bens), encontra-se o Acordo Geral
sobre Tarifas e Comércio de 1994 (GATT 1994); e o Anexo 1C consiste no Acordo
sobre os Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (conhecido pela
sua sigla em inglês - TRIPS).
Os Acordos Plurilaterais, constantes do Anexo 4, são de adesão voluntária e,
como não interessam diretamente ao nosso trabalho, serão deixados de lado.
1.3 Ascensão do paradigma reducionista na biologia
A restrição do conceito de criatividade também se relaciona com o reducionismo
no campo da biologia. Pode-se dizer que a biologia reducionista é uma expressão do
reducionismo cultural, que despreza outras formas de conhecimento e outros sistemas
éticos, o que inclui todos os sistemas não-ocidentais de agricultura e medicina, bem
como os ramos da biologia que não estão diretamente ligados ao reducionismo genético,
apesar de serem necessários para a compreensão dos seres vivos e de um conseqüente
relacionamento saudável com os mesmos.
O reducionismo na biologia deve ser analisado sob alguns aspectos, de modo a
entender o seu papel na restrição do conceito de criatividade e fomento à terceira onda
de colonização. Na seara das espécies, o reducionismo atribui o maior valor a uma delas
- a espécie humana, enquanto as demais dispõem de um valor apenas instrumental,
relacionado, portanto, à sua utilidade. Isso pode levar ao desaparecimento de espécies
de baixo valor instrumental, ou utilidade, para o ser humano, mas de grande importância
no complexo de relações existente na natureza. A conseqüência do pensamento
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reducionista é, portanto, a monocultura, não só do pensamento e do conhecimento, mas
dos seres vivos - como na agricultura, por exemplo, com o extermínio de espécies
selvagens parentes da espécie cultivada, bem como a perda de biodiversidade e o
desequilíbrio ambiental. A autora chama a esse nível reducionista “reducionismo de
primeira ordem” (Ibid., p. 48).
E refere-se ao reducionismo de segunda ordem como aquele que trata de reduzir
todo comportamento e/ou organismo vivo - incluindo o ser humano - aos genes. É o
reducionismo na biologia, que vem ganhando espaço atualmente, e com sérios riscos ao
equilíbrio do meio ambiente como um todo, já que observa cada espécie a partir do seu
código genético, menosprezando as relações da espécie com o ecossistema e as
conseqüências a longo prazo das experimentações genéticas.
O dogma central da biologia molecular enfeixa todo esse pensamento
reducionista, que coloca os genes, separados do todo, como o objetivo maior. Esse
dogma consiste em que a informação flui dos genes para o corpo, que foi o que mostrou
a biologia molecular, que a informação flui dos genes para as proteínas, mas não
indicou, até recentemente, que existisse transferência de informação no sentido inverso.
Essa inferência de que não poderia haver a transferência de informação no sentido
contrário foi o que Francis Crick chamou de “dogma central da biologia molecular”.
(CRICK, 1988 apud SHIVA, 2001, p. 49).
Dessa forma, a ascensão do paradigma reducionista na biologia faz com que não
só os organismos sejam vistos isolados do seu meio ambiente, mas que também os
genes sejam vistos isolados do organismo do qual formam parte.
Shiva defende que esse reducionismo não foi por acaso, mas sim
cuidadosamente arquitetado com grande respaldo econômico e político, o que lhe
conferiu grande poder ideológico. Na sua argumentação, cita Lily E. Kays (1993 apud
SHIVA, 2001, p 50) quem, em The Molecular Vision of Life, afirma que a Fundação
Rockefeller foi a grande patrocinadora da biologia molecular entre os anos de 1930 e
1950. O próprio termo biologia molecular surgiu em 1938 por criação de Warren
Weaver, então diretor da divisão de ciências naturais da referida fundação. Segundo
Shiva, o termo deveria capturar a essência do programa da fundação, qual seja, sua
ênfase nas dimensões finais e diminutas dos seres vivos. (Ibid., p. 50).
O investimento financeiro realizado por essa poderosa fundação foi maciço.
Entre os anos de 1932 e 1959, a Fundação Rockefeller investiu um montante em torno
de 25 milhões de dólares em programas de biologia molecular nos Estados Unidos,
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montante esse que representava mais de 25% dos gastos da fundação com ciências
biológicas, excetuando-se a medicina. Dessa forma, essa reformulação do conhecimento
e da estrutura da biologia, com base no paradigma reducionista, foi enormemente
facilitada pela Rockefeller.
Seus investimentos também foram decisivos na orientação das pesquisas em
biologia. Nos doze anos subseqüentes a 1953 - ano da elucidação da estrutura do DNA -
o Prêmio Nobel foi concedido a cientistas que se destacaram pela pesquisa em biologia
molecular dos genes, e todos os ganhadores, com exceção de um, haviam tido suas
pesquisas patrocinadas pela Fundação Rockefeller sob a direção de Weaver.
1.4 Conseqüências do pensamento reducionista
A consideração da vida como tendo um valor instrumental, e não intrínseco, tal
como sugere o pensamento reducionista, possibilita a manipulação de seres vivos para
determinados fins, relegando as conseqüências éticas, ecológicas e de saúde que tal
forma de considerar a vida possa ocasionar.
Uma das conseqüências de manipular-se, por exemplo, animais como se estes
fossem instrumentos ou máquinas é que se expandam os limites éticos e se dissipe a
preocupação em relação à maneira como são tratados. Essa forma de tratar os animais,
visando à maximização da produtividade, acarreta estresses e doenças a esses seres
vivos. Como exemplo, pode-se mencionar certos impactos na saúde de porcos em
fazendas de gado de corte; aí, esses animais têm de ter rabos e dentes removidos, pois
ferem-se entre si. Têm ainda propensão a contrair doenças, como a “doença da banana”,
com a qual os animais acometidos apresentam o dorso arqueado, em formato de banana
(Ibid., p. 56).
Alterações no bem-estar e na saúde desses animais são já o resultado do impacto
ecológico das novas tecnologias de cunho reducionista; são impactos sobre a capacidade
de auto-regulação e regeneração dos seres vivos. Quando passam a ser tratados como
meros instrumentos, com uma utilização específica dirigida a um fim, as capacidades de
auto-regulação e restauração dos seres vivos entram em colapso, e eles passam a
precisar de insumos e controles externos cada vez maiores a fim de que possam se
manter.
O pensamento reducionista pelo qual se pauta a engenharia genética também tem
grande impacto ecológico. Dois estudos detalhados explicam a respeito do impacto
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causado ao meio ambiente pela liberação, em larga escala, de Organismos
Geneticamente Modificados (OGM) na seara da agricultura:
Num encontro, em 1994, da Ecological Society of America (Sociedade de
Ecologia dos Estados Unidos), pesquisadores da Universidade Estadual do Oregon
informaram sobre testes que haviam sido realizados para avaliar os efeitos causados
numa cultura pela introdução de uma bactéria geneticamente modificada, desenvolvida
para converter restos de colheitas em etanol.
As técnicas de engenharia genética modificaram Klebsiella planticola, uma
bactéria típica da zona radicular do solo, a fim de que ela adquirisse a capacidade de
produzir etanol. Nos testes, a bactéria geneticamente modificada foi depositada em
compartimentos fechados contendo solo e uma planta de trigo em crescimento, em cada
compartimento. Num determinado tipo de solo, todas as plantas dos compartimentos
nos quais havia sido introduzida a bactéria geneticamente modificada morreram, ao
passo que todas as plantas de trigo que se desenvolviam em solo não tratado
mantiveram-se saudáveis.
Em todos os casos, porém, os fungos micorrízicos - presentes nas raízes das
plantas - reduziram-se a menos da metade, fato esse que destruiu o sistema de captação
de nutrientes e, por conseguinte, o desenvolvimento desses vegetais. Este resultado
específico não era previsto quando da modificação genética realizada em Klebsiella
planticola e da sua introdução nas mencionadas plantas. É sabido que a redução desses
fungos micorrízicos afeta os vegetais e traz como conseqüência plantas pouco aptas a
competir com espécies daninhas e mais suscetíveis a doenças. Além disso, obtiveram
como resultado que: a) em solo arenoso com baixo teor de matéria orgânica, as plantas
morreram devido ao álcool produzido pela bactéria Klebsiella planticola modificada
geneticamente e inserida no sistema radicular daquelas; e b) por outro lado, em solo
arenoso ou argiloso com alto teor de matéria orgânica, ocorreram alterações na
quantidade e composição de espécies de nematódeos, o que ocasionou um prejuízo
significante ao crescimento vegetal.
A pesquisadora-chefe e co-autora de A note on recent findings on genetic
engineering and soil organisms, Dra Elaine Ingham (1995 apud SHIVA, 2001, p. 59),
concluiu que esses resultados indicam a possibilidade de significativos e sérios impactos
provocados pela introdução no solo de microorganismos geneticamente modificados.
Segunda ela, os testes realizados utilizaram um novo sistema, mais abrangente, e
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21
refutaram indicações anteriores de que não existiam conseqüências ecológicas
expressivas a partir da liberação de OGM no meio ambiente.
O outro estudo sobre o impacto da introdução de OGM no meio ambiente e,
mais especificamente, no campo da agricultura, foi levado a cabo em 1994 por
pesquisadores dinamarqueses. Estes indicaram que, de acordo com suas pesquisas,
havia forte evidência de que a colza - uma planta de cuja semente se extrai óleo e que
tinha sido geneticamente modificada, a fim de que se tornasse tolerante a herbicidas -
havia transmitido o seu transgene a uma parente natural daninha, Brassica campestris
ssp. campestris. Essa transferência poderia ocorrer em não mais que duas gerações de
plantas.
Na Dinamarca, Brassica campestris é uma planta daninha comum nos campos
de cultivo da colza; a parente selvagem dessa planta daninha existe em várias partes do
mundo. Uma das formas, pois, de avaliar-se o risco de liberar colza transgênica,
tolerante a herbicidas, é medir a taxa de hibridização natural de Brassica campestris,
pois certos transgenes da colza poderiam migrar para a parente selvagem da planta e
transformá-la numa planta daninha ainda mais agressiva e difícil de controlar. Os
estudos da equipe dinamarquesa indicaram a possibilidade de altos níveis de
hibridização no campo (ANDERSON e JORGENSEN, 1994 apud SHIVA, 2001, p. 60).
A transferência dos genes de tolerância a herbicidas para as espécies aparentadas
selvagens e daninhas de plantas cultivadas na agricultura poderia dar origem a
superplantas daninhas, tolerantes aos herbicidas e, portanto, muito difíceis de controlar,
o que ameaçaria seriamente os campos de cultivo. Assim, quando a engenharia genética
modifica uma espécie agrícola de modo a torná-la resistente aos herbicidas, ao mesmo
tempo gera o risco de surgirem superplantas daninhas, devido à hibridização e
transferência dos genes da tolerância. Por sua vez, a tolerância surgida nas espécies
daninhas gera a necessidade de herbicidas cada vez mais agressivos e plantas agrícolas
novamente modificadas, num ciclo que, sem dúvida, favorece a indústria da engenharia
genética, mas de grave impacto no meio ambiente.
Um terceiro exemplo nos mostra, além do impacto ecológico, as conseqüências
socioeconômicas da aplicação à prática do pensamento reducionista e do conhecimento
utilizado como forma de auferir lucro. Vejamos:
Em 1996, nos Estados Unidos, em aproximadamente dois milhões de acres, foi
cultivada a Bollgard, uma variedade de algodão geneticamente modificado da
Monsanto. Esta variedade transgênica foi construída com DNA de um microorganismo
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do solo, chamado Bacillus thurengesis (Bt), de forma a produzir proteínas tóxicas a
certas lagartas que constituem pragas do algodão. À época, a Monsanto cobrou dos
agricultores uma espécie de tarifa de tecnologia de 79 dólares por hectare e ainda o
valor da semente, em troca da promessa de controle de pragas e de boa colheita na
estação. Estima-se que, somente com a tarifa de tecnologia, a Monsanto haja
arrecadado, em um ano, o montante de 51 milhões de dólares. Além dessa tarifa e do
preço da semente, a Monsanto impunha, respaldada na proteção aos seus direitos de
propriedade intelectual, estritas regras àqueles que adquirissem as suas sementes. Num
comunicado da própria empresa, advertia:
A Monsanto concede aos agricultores licença de uso das sementes que
contêm o gene patenteado Bollgard por apenas uma safra. Guardar ou
vender a semente para replantio violará a licença concedida e transgredirá os
direitos de patente da Monsanto, o que sujeitará o transgressor a processo
sob lei federal. (RURAL DEVELOPMENT FOUNDATION, 1996 apud
SHIVA, 2001, p. 62).
No entanto, a tecnologia fracassou para os agricultores, já que a infestação por
lagartas nas áreas cultivadas com o algodão geneticamente modificado foi entre vinte a
cinqüenta vezes superior ao usual. Assim, observam-se não só as conseqüências para o
meio ambiente, que se vê subitamente alterado, mas também os prejuízos para os
agricultores na hipótese de fracasso da cultura transgênica.
O monopólio das inovações, possível graças ao sistema de proteção dos direitos
de propriedade intelectual, justifica-se, socialmente, com base na alegação de que ele é
concedido às grandes empresas para que a sociedade possa se beneficiar dessas
inovações e avanços tecnológicos, já que são as grandes empresas que possuem capital
suficiente para investir nesses projetos arrojados. Porém, casos como os que foram
apresentados mostram-nos que essa tecnologia cara - e lucrativa - nem sempre traz
benefícios, seja para o meio ambiente, seja para os agricultores. Esse monopólio
embaraça o desenvolvimento e a manutenção de práticas ecologicamente seguras e
socialmente mais justas, ao mesmo tempo em que impõe um sistema agrícola que
ameaça o meio ambiente e cujos impactos na saúde humana são ainda incertos.
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Capítulo 2
Conhecimento tradicional
Ao longo do primeiro capítulo, realizamos uma crítica ao modo de pensamento
reducionista, que se foca em elementos isolados e cada vez mais diminutos e cujo
expoente, no tocante à biodiversidade e à vida de maneira geral, é a engenharia
genética. Por sua vez, o sistema de patentes respalda essa forma de conhecimento,
permitindo que este seja privatizado e protegido contra a utilização por parte de
terceiros.
Neste capítulo, vamos abordar um sistema que se opõe a essa monopolização da
vida e, em especial, do conhecimento. A autora menciona-o como parte importante do
trabalho que empreende como ativista ambiental:
Existem duas vertentes no meu trabalho atual que respondem à manipulação
e monopolização da vida. Por meio da Navdanya, uma rede nacional para
estabelecer bancos de sementes comunitários a fim de proteger a diversidade
das sementes nativas, estamos tentando criar uma alternativa à visão
transgênica da vida. E por meio do trabalho para proteger as terras
comunitárias intelectuais, seja na forma do Satyagraha da Semente, lançada
por um movimento de lavradores, seja na forma do movimento pela defesa
dos direitos intelectuais coletivos, o qual iniciamos com a Rede do Terceiro
Mundo, tentamos construir uma alternativa ao paradigma do conhecimento,
e da própria vida, como propriedade privada. (Ibid., p. 65, grifo da autora).
2.1 Rede do Terceiro Mundo
A Rede do Terceiro Mundo consiste num agrupamento internacional de
organizações e indivíduos empenhados na defesa dos direitos e necessidades dos povos
do terceiro mundo, em favor de uma distribuição justa dos recursos do planeta e de
formas de desenvolvimento ecológica e socialmente sustentáveis.
Foi criada em Penang, na Malásia, em novembro de 1984, durante uma
conferência internacional denominada O terceiro mundo: desenvolvimento ou crise,
organizada pela Associação de Consumidores de Penang. A Rede do Terceiro Mundo
dedica-se a estabelecer vínculos e a cooperar com pessoas e grupos preocupados com os
temas do desenvolvimento e meio ambiente.
É coordenada por um Comitê formado por membros da Ásia, África e América
Latina e conta com três Secretarias, localizadas na Malásia, em Gana e no Uruguai.
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Dedicamo-nos, agora, à análise de idéias e dados fornecidos por essa
organização e que dizem respeito à proteção do conhecimento tradicional de
comunidades dos países em desenvolvimento.
2.2 Importância do conhecimento tradicional e da sua preservação
A Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento
(United Nations Conference on Trade and Development - UNCTAD) estima que 80%
da população mundial dependam dos produtos e serviços derivados do conhecimento e
das práticas tradicionais para satisfazer necessidades cotidianas, tais como alimentação
e saúde.
Para a sobrevivência dos segmentos mais pobres da sociedade, principalmente
indígenas e habitantes do campo dos países menos desenvolvidos, o conhecimento
tradicional é indispensável. De acordo com essa agência da Organização das Nações
Unidas, mais de 90% dos alimentos da África subsaariana são produzidos mediante
práticas agrícolas tradicionais. É também essencial para o manejo dos ecossistemas
pelas comunidades locais.
De modo semelhante, o conhecimento tradicional vem sendo utilizado como
insumo por modernas indústrias para a produção de fármacos, cosméticos, produtos
agrícolas, aditivos de alimentos, pesticidas biológicos, entre outros, sendo que a maior
parte do valor agregado fica nas mãos de empresas com sede em países industrializados.
O desafio no que tange a esse tema, seria, portanto, assegurar que os benefícios
gerados pelas inovações derivadas do conhecimento tradicional cheguem às suas
legítimas fontes e promovam o seu desenvolvimento socioeconômico. Porém, o que
ocorre, com freqüência, é que o conhecimento tradicional é utilizado e apropriado sem o
prévio conhecimento e consentimento por parte de suas fontes.
São várias as razões pelas quais proteger o conhecimento tradicional é tão
importante. A sua efetiva proteção permitiria melhorar o sustento dos seus legítimos
guardiães, beneficiaria as economias nacionais, dificultaria a biopirataria e asseguraria a
sustentabilidade dos ecossistemas.
Vários estudos têm apontado que os atuais regimes de propriedade intelectual,
com as suas patentes e meios de proteção de obtenções genéticas, marcas, desenhos e
direitos de autor, não são capazes de proteger o conhecimento tradicional da maneira
eficaz.
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Os regimes atuais protegem direitos individuais de propriedade, enquanto a
propriedade do conhecimento tradicional é, em geral, coletiva. O conhecimento
tradicional se desenvolve e evoluciona através do tempo e está registrado em textos
antigos, ou retido na tradição oral, transmitida de geração a geração, e, portanto, não se
reveste dos atributos da inovação, necessários para a concessão das patentes. Além da
impossibilidade de comprovar a inovação, os detentores de conhecimentos tradicionais
enfrentam outras dificuldades para proteger os seus direitos através dos sistemas de
propriedade intelectual, como a falta de recursos financeiros para cobrir o alto custo das
solicitações de patentes.
Diante disso, existe atualmente um consenso sobre a necessidade de desenvolver
novos critérios e medidas, tais como sistemas sui generis que combinem, de maneira
apropriada, instrumentos para a proteção do conhecimento tradicional a nível nacional e
internacional, e que sejam criados com a efetiva participação das comunidades
indígenas e locais relacionadas.
No campo da saúde, o conhecimento tradicional desempenha um papel
fundamental no que diz respeito ao atendimento básico nos países em desenvolvimento.
Xiaorui Zhang (apud RAJA, 2004), especialista da Organização Mundial de Saúde,
assinala que, no ano de 2000, o montante gerado pelo mercado mundial de
medicamentos e produtos baseados em ervas foi estimado em 60 bilhões de dólares.
Zhang destacou as dificuldades de proteger os remédios tradicionais utilizando
os instrumentos convencionais dos sistemas de proteção dos direitos de propriedade
intelectual, uma vez que as ervas medicinais são simples plantas sobre as quais não se
pode reivindicar novos elementos químicos nem inovações.
Atualmente, são realizados esforços na América Latina, África e Ásia, no
sentido de aplicar atuais instrumentos de propriedade intelectual e de desenvolver
sistemas sui generis para a proteção do conhecimento tradicional, juntamente com
iniciativas relacionadas ao acesso, ao registro e à distribuição dos benefícios desse tipo
de conhecimento. Em países como a Índia, o Panamá, Peru e a Venezuela, documenta-
se o conhecimento tradicional utilizando-se bases de dados e registros com objetivos
diversos, desde preservar esse conhecimento dentro das comunidades locais, até
estabelecer direitos para produzir e vender artesanato a nível nacional.
A UNCTAD observa ainda que a Organização Mundial do Comércio e, em
particular, o TRIPS não mencionam o conhecimento tradicional. Por isso, alguns dos
países em desenvolvimento propõem que, nas solicitações de patentes, seja exigido
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revelar a fonte dos recursos genéticos e do conhecimento tradicional utilizado na
invenção, bem como anexar provas do consentimento prévio e distribuir os benefícios
dela resultantes.
Enquanto medidas efetivas não são postas em prática, empresas transnacionais
continuam fazendo numerosos registros de patentes, cujas supostas inovações têm por
base o conhecimento tradicional utilizado em comunidades locais durante séculos.
2.3 Pirataria do conhecimento tradicional
Um dos inúmeros casos que ilustram a pirataria do conhecimento tradicional
consiste na patente obtida pela Monsanto sobre uma variedade de trigo oriunda da Índia
e conhecida como Nap-Hal. Trata-se de uma variedade indiana de cultivo tradicional
que apresenta características únicas. Em 1988, uma revista científica publicou um artigo
sobre as propriedades do trigo Nap-Hal para a culinária. Os pesquisadores descobriram
que a farinha obtida a partir dessa planta faz com que as massas, principalmente as de
biscoitos, fiquem mais crocantes.
Esse tipo de trigo foi desenvolvido originalmente na Índia pelos próprios
agricultores para a sua subsistência. No entanto, em 21 de maio de 2003, a Oficina
Européia de Patentes de Munique outorgou uma patente à Monsanto, sob a inscrição EP
445 929 e sob o título Plantas. Com essa patente, a Monsanto tornou-se a detentora
exclusiva dos direitos sobre o Nap-Hal e depois o cruzou com outros tipos de trigo,
mais comuns. A patente aplica-se agora aos biscoitos e à massa produzidos a partir
dessa espécie de trigo e também às plantas em questão.
Esse caso ilustra o tipo de raciocínio monopolista pelo qual se guiam certas
empresas e que não se detém diante das variedades tradicionais, cultivadas mediante
técnicas convencionais. No futuro, a companhia que tenha essa patente poderá iniciar
ações legais não só contra os agricultores, mas também contra as padarias, confeitarias e
os supermercados que produzam ou vendam biscoitos ou bolos fabricados com o trigo
patenteado, prejudicando lavradores e produtores locais.
Para conseguir a patente, a Monsanto recorreu a uma reserva de germoplasma na
Grã-Bretanha, onde há armazenado o Nap-Hal. Não é tão incomum que exista essa
semente armazenada em bancos de genes fora da Índia. De fato, podem ser encontradas
amostras dela em coleções das autoridades agrícolas de países como Estados Unidos,
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Japão e também na Europa. As empresas multinacionais têm acesso irrestrito a esses
bancos de sementes.
Uma vez que se tenha acesso à variedade específica, deve-se determinar o
genótipo da característica cobiçada. No caso do Nap-Hal, trata-se das qualidades
especiais para a crocância de massas de biscoitos, pães e bolos. Depois de traçada a
seqüência genética, a Monsanto cruzou essa planta com outra variedade, utilizando
técnicas tradicionais, e o resultado - uma combinação natural de genes - é finalmente
patenteado pela multinacional. Desse modo, a Monsanto tem o monopólio das plantas
de Nap-Hal, bem como das plantas de trigo cruzadas com a variedade indiana.
Outro caso que exemplifica a pirataria do conhecimento tradicional deu-se em
agosto de 2000, quando a companhia Du Pont obteve da Oficina Européia de Patentes a
patente EP 744 888, que cobre todas as plantas de milho, cultivadas de forma natural ou
convencional, com uma determinada proporção de óleo e ácidos graxos. A Du Pont
reclamou a patente de toda a cadeia de produção.
No entanto, alguns pedidos dessa transnacional foram rejeitados numa audiência
realizada em fevereiro de 2003, pois pesquisas revelaram que já existiam outras
variedades naturais de milho com alto teor de óleo e ácidos graxos e que podiam ser
igualmente produzidas por métodos convencionais de cultivo.
Os institutos de pesquisa mostraram que esse tipo de milho já era cultivado. Nas
Américas Central e do Sul, onde esse produto tem uma importância fundamental tanto
para a economia quanto para a alimentação diária da população e onde existe uma
enorme diversidade de plantas, há sinais claros de que este tipo de milho já era cultivado
e utilizado há muito tempo.
Para uma grande empresa, a fórmula para obter êxito com o registro de uma
patente é simples. Deve identificar uma característica presente numa variedade
tradicional, desenvolvida durante séculos por agricultores. Em seguida, deve buscar o
genótipo, ou seja, o conjunto de genes que define essa qualidade peculiar. E, por fim,
cruzá-lo com a variedade de que se dispõe, a qual, por sua vez, é derivada de alguma
planta desenvolvida por métodos antigos ou tradicionais. O resultado obtido é
propriedade de quem seguiu esses passos, só falta patenteá-lo.
Um outro exemplo nos mostra o conhecimento tradicional livre, desenvolvido ao
longo dos séculos pelas comunidades locais e por elas utilizado livremente - já que
constitui um conhecimento pertencente a todos - seguido, porém, do patenteamento por
parte de multinacionais. Trata-se do nim, Azadirachta indica, uma árvore nativa da
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Índia, que há séculos constitui uma fonte de biopesticidas e remédios. Em determinadas
regiões desse país, as pessoas consomem, na alimentação, os brotos do nim; em outras,
essa árvore é considerada sagrada; e, por todo o território, utiliza-se o datun, uma
escova de dentes feita com o nim, a qual contém propriedades medicinais e bactericidas.
Vários outros produtos baseados nessa planta são fabricados há décadas na Índia. A
Organização Khadi, das indústrias artesanais da Índia, bem como a Comissão de
Indústrias dos Povoados usam e vendem produtos derivados do nim há quarenta anos.
Também foram lançados por outros empreendedores biopesticidas fabricados a partir
dessa planta, como o Indiara. Já a Calcutta Chemicals, empresa química local, há
décadas fabrica, com o princípio ativo dessa planta, uma pasta de dentes.
Assim, durante aproximadamente dois mil anos, biopesticidas e remédios à base
de nim têm sido fabricados na Índia. O conhecimento dessa planta e de que maneiras
poderia ser aproveitada foi sendo desenvolvido ao longo de todo este tempo; dessa
forma, diversos e complexos processos foram desenvolvidos a fim de utilizar a planta
para vários fins, muito embora os seus ingredientes ativos não tenham sido batizados
com nomes científicos derivados do latim.
O Comitê Central de Inseticidas da Índia, com apoio na Lei sobre inseticidas, de
1968, não registra produtos confeccionados à base de nim, independentemente do
processo utilizado, pois considera o conhecimento e o uso dessa planta como algo
comunitário. E alega que os materiais provenientes da planta tem sido largamente
utilizados, para diversos fins, na Índia, desde tempos imemoriais.
Desse modo, a biodiversidade oferece ao ser humano diversos recursos e
propriedades que ele pode utilizar a fim de satisfazer as suas necessidades, ao mesmo
tempo em que ele se encarrega de criar e aperfeiçoar os processos necessários à eficaz
utilização do recurso natural. No caso do nim, o conhecimento de que a árvore tem
propriedades medicinais e biopesticidas constitui, conforme a terminologia empregada
por Shiva, um “metaconhecimento”, ou seja, um conhecimento de determinados
princípios ao alcance de todos os indivíduos de uma comunidade. A partir desse
conhecimento, diversos processos e técnicas são desenvolvidos e empregados para
preparar produtos à base de nim. Isto é o que a autora chama de “microconhecimento”,
o conhecimento relacionado com a modificação de processos e técnicas para a feitura de
um produto. (SHIVA, 2001, p. 97).
O que acontece por vezes, entretanto, é que esse conhecimento livre,
desenvolvido ao longo do tempo de acordo com as necessidades de um povo e com os
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recursos de que dispõe, é utilizado por grandes empresas estrangeiras, que o privatizam,
com o respaldo dos direitos de propriedade intelectual, e dele auferem lucro, ao passo
que excluem os demais, inclusive os seus legítimos criadores, de sua utilização. É então
que se dá a biopirataria, forma de usurpação dos recursos e da cultura de um povo.
Foi assim que, nos últimos anos, o nim também foi objeto do interesse de
empresas americanas e japonesas, as quais, desde 1985, obtiveram, nos Estados Unidos,
mais de doze patentes para soluções e emulsões à base de nim. Ao menos quatro dessas
patentes pertenciam à W.R. Grace Corporation, três à Native Plant Institute, ambas dos
Estados Unidos, e duas à Terumo Corporation, do Japão.
A W.R. Grace, de posse de suas patentes e com a perspectiva de uma licença a
ser concedida pela Environmental Protection Agency (EPA), começou a fabricar e
comercializar seus produtos à base de nim, estabelecendo uma sede na Índia. Esta
empresa procurou vários fabricantes locais, propondo a compra de sua tecnologia e
tentando convencê-los a cessar a produção de produtos manufaturados e a, em vez
disso, apenas fornecer matéria-prima.
A justificativa da W. R. Grace para a obtenção de suas patentes baseava-se na
tese de que o seu processo de extração do nim constituía uma autêntica inovação:
Embora o conhecimento tradicional tenha inspirado a pesquisa e o
desenvolvimento que levaram às composições e processos patenteados, estes
foram considerados suficientemente novos e diferentes do produto original
da natureza e do método de uso tradicional para permitir o patenteamento.
(W. R. GRACE CORPORATION apud SHIVA, 2001, p. 97).
Portanto, a empresa, com a finalidade de patentear, estabelecendo exclusividade
sobre a exploração de um produto, alega que suas técnicas são novas e que constituem
um avanço em relação às já existentes, criadas pela comunidade local, que são então
consideradas rudimentares. No entanto, a concessão da patente é ilegítima, pois a
empresa estrangeira não faz mais que se apropriar da criatividade da natureza e da
cultura de outro povo. As inovações que realizou são meras modificações de detalhes, e
não criação de algo verdadeiramente novo. São as espécies vivas, no caso, o nim, a
fonte criadora das propriedades específicas, e são as comunidades locais a fonte
criadora do conhecimento que permitiu o uso dessas propriedades.
Essa questão se relaciona ainda com a noção de valor. Se o valor é reconhecido
apenas quando associado ao capital, a modificação de técnicas e processos agrega valor,
em vista do investimento realizado - com o propósito de ser ressarcido depois e gerar
lucro. É nesse sentido que se menospreza o valor das fontes - recursos biológicos e
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conhecimento nativo - muito embora o valor do produto dependa muito mais da fonte
do que da técnica utilizada.
Os direitos de propriedade intelectual, por sua vez, legalizam essa privatização
da biodiversidade e do conhecimento pertencente às terras comunitárias intelectuais,
além de criar obstáculos ao acesso de recursos genéticos no mundo inteiro, uma vez que
encarece as sementes e as torna inacessíveis aos agricultores do mundo em
desenvolvimento. O conceito atual de inovação, que justifica o sistema de patentes,
impede que a criatividade dos agricultores e das comunidades locais, que desenvolvem
variedades de plantas e outros produtos e técnicas, seja protegida contra a pirataria.
2.4 Convenção da Diversidade Biológica
No que concerne ao tratamento da questão da biopirataria no plano internacional,
mencionaremos um acordo, o qual foi o resultado de debates realizados acerca do
acesso à biodiversidade. Trata-se da Convenção da Diversidade Biológica (CDB),
elaborada pela comunidade internacional após dois anos de intensos debates a respeito
do problema do acesso à biodiversidade e que foi assinada por mais de 140 países
quando de sua apresentação na Convenção das Nações Unidas para o Meio Ambiente e
Desenvolvimento, a Eco-92, realizada no Rio de Janeiro. Atualmente, a CDB encontra-
se ratificada por 180 países, incluído o Brasil.
Alguns de seus dispositivos tratam especificamente da questão da pirataria do
conhecimento tradicional, pelo que julgamos necessária uma menção a esse intento de
vários países de discutir e elaborar soluções para o problema que ora nos ocupa.
A fim de que seja desenvolvido - e patenteado - um produto a partir de quaisquer
recursos biológicos, é preciso um estudo prévio acerca da planta ou animal que
disponibilizará o princípio ativo útil à confecção deste produto. São necessárias,
portanto, investigações para que se descubra um ser vivo portador de algum princípio
ativo interessante. Ao conjunto de pesquisas que tenham essa finalidade dá-se o nome
de bioprospeccção.
Nesta tarefa, obter-se-á maior ou menor êxito conforme a metodologia utilizada,
a qual pode ser a bioprospecção aleatória, bioprospecção racional, ou a
etnobioprospecção. A primeira delas consiste na coleta ao acaso de plantas, método esse
que apresenta reduzido grau de êxito, em torno de 1/10.000. A bioprospecção racional
proporciona melhores resultados ao adotar critérios como a pertinência a um
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determinado grupo de espécies cujas propriedades já são conhecidas, comparando-se
suas características, como o formato das folhas, por exemplo.
No entanto, o método que oferece o maior grau de êxito e reduz
consideravelmente o custo e o tempo das pesquisas científicas para o desenvolvimento
de um determinado produto, é a etnobioprospecção, ou seja, o conhecimento das
propriedades de plantas e animais obtido a partir das comunidades locais.
Nesse sentido, a CDB adquire relevância pelo pioneirismo no tratamento da
questão do acesso à diversidade biológica e, conseqüentemente, do combate às
atividades ilegítimas de bioprospecção.
No seu preâmbulo, a CDB reconhece o valor da biodiversidade e de seus vários
componentes - ecológicos, genéticos, sociais, científicos, educativos, culturais,
recreativos e estéticos - e preconiza-os como essenciais ao desenvolvimento
socioeconômico dos países periféricos e à erradicação da pobreza.
O artigo 1º, sobre o qual repousam todos os demais princípios da convenção,
estabelece a conservação da diversidade biológica, a utilização sustentável de seus
componentes e a repartição justa e eqüitativa dos benefícios oriundos da utilização
sustentável dos recursos genéticos, mediante o adequado acesso a estes e a transferência
de tecnologia por parte dos países desenvolvidos.
No que se refere especificamente à pirataria do conhecimento tradicional, o
artigo 8j determina que, em conformidade com a legislação nacional, deve-se respeitar,
preservar e manter o conhecimento, as inovações e práticas das comunidades locais e
populações indígenas com estilos de vida tradicionais, relevantes à conservação e
utilização sustentável da diversidade biológica; deve-se, ainda, incentivá-las mais
amplamente, através da exigência de sua aprovação e participação para a utilização
desse conhecimento, inovações e práticas; e, finalmente, deve-se encorajar a repartição
eqüitativa dos benefícios provenientes dessa utilização.
Portanto, no que tange ao combate à pirataria do conhecimento tradicional, as
diretrizes da CDB implicam um compromisso dos países signatários no sentido de
envidar esforços para a implementação de duas medidas básicas quando da utilização
desse tipo de conhecimento, quais sejam, a aprovação prévia por parte das comunidades
tradicionais e o seu direito à participação nos benefícios daí advindos.
No mais, tem sido criticada a forma como foi tratada pela CDB a questão das
patentes e da proteção aos direitos de propriedade intelectual, dada a pouca precisão
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com que o acordo internacional trata este assunto, ensejando uma multiplicidade de
interpretações por vezes conflitantes.
Num âmbito mais geral, existe a dificuldade de concretização dos princípios
contidos na convenção, devido ao seu caráter de mero compromisso entre os signatários,
sem a possibilidade de aplicação de sanções.
Ademais, a disparidade de condições e interesses entre os países e a ausência de
uma maior união e cooperação entre os países em desenvolvimento constituem grandes
empecilhos no combate à bioprospecção ilegítima. De fato, parecem ser mais vantajosas
para as nações desenvolvidas a prática da pirataria de recursos biológicos e a indevida
utilização do conhecimento tradicional, e um bom exemplo disso é o fato de que os
Estados Unidos não figuram como signatários do tratado.
Nessa conjuntura, torna-se imprescindível a cooperação internacional a que
alude a CDB em seus artigos 23 a 25, e a junção de esforços por parte dos países do sul,
a fim de terem maior relevância no cenário internacional e fazerem valer a sua vontade.
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Capítulo 3
Globalização e colonização
O modelo por nós criticado no primeiro capítulo - o qual reduz a criatividade
bem como o conhecimento a um modelo oficial, digno de proteção por meio dos
direitos de propriedade intelectual e que tende a considerar os componentes mínimos
dos seres vivos, destacando-os do todo, ao excluir outras formas de conhecimento e
interferir tanto na natureza, a ponto de homogeneizar culturas, engendra o que se
poderia denominar terceira onda de globalização.
No entanto, antes de abordar o que se poderia considerar a colonização vivida
nos tempos de hoje, façamos um histórico de outros modos de colonização que foram
praticados ao longo da história. Todos eles refletem, mais ou menos, o mesmo
pensamento, o qual continua, entretanto, sendo concretizado, através de práticas
diversas ao longo do tempo.
3.1 Mentalidade colonizadora
Segundo Shiva, as noções eurocêntricas de propriedade e pirataria são as bases
sobre as quais as leis de DPI do GATT e da Organização Mundial do Comércio foram
formuladas. Quando os europeus colonizaram o resto do mundo pela primeira vez,
acreditavam que era seu dever descobrir, ocupar, subjugar e possuir. Ao que parece, é
ainda esse impulso colonizador de descobrir, conquistar e possuir todas as culturas o
que move os poderes ocidentais. “As colônias foram agora estendidas aos espaços
interiores, aos códigos genéticos do seres vivos, desde micróbios e plantas, até animais,
incluindo seres humanos.” (Ibid., p. 25 e 26).
Vejamos, primeiro, quais são essas noções eurocêntricas. Sua origem é antiga,
remonta a mais de quinhentos anos atrás, quando da primeira colonização empreendida
pelo velho continente. Em 17 de abril de 1492, os reis católicos Isabel de Castilha e
Fernando de Aragão concediam, com o respaldo da Igreja Católica, os direitos de
descoberta e conquista a Cristóvão Colombo. O papa, investido de caráter cristão-
divino, era a autoridade idônea para conceder aos monarcas católicos os privilégios de
conquista de novas terras e povos. Em 4 de maio de 1493, o papa Alexandre VI, através
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da Bula de Doação, concedia aos reis de Espanha todas as ilhas e territórios firmes,
descobertos e por descobrir, cem léguas a oeste e ao sul dos Açores, em direção à Índia
e ainda não ocupadas ou controladas por algum rei ou príncipe cristão até o final de
1492.
Assim, tanto o papa, como os monarcas católicos, respaldados por aquele,
consideravam o mundo como sua propriedade, algo a que tinham direito e de que
podiam dispor, usufruir como lhes aprouvesse. O fato de ser europeu - e, por
conseguinte, civilizado - assim como cristão legitimava o domínio e a exploração de
outros povos e territórios, nem que para isso fossem necessários o seu extermínio e
espoliação.
Naquela época, o instrumento formal para essa legitimação eram as bulas papais,
cartas dogmáticas que concediam privilégios. Hoje em dia, a espoliação de outros povos
também tem o seu instrumento formal legitimador, qual seja, os direitos de propriedade
intelectual. Poder-se-ia então fazer uma comparação entre a colonização implementada
há mais de quinhentos anos e a situação que está sendo forjada atualmente. A ocupação
pelos monarcas foi substituída pela ocupação realizada por empresas transnacionais,
tolerada pelos governantes. A suposta vacância dos territórios foi substituída pela
vacância de espécies vivas modificadas pela biotecnologia, o dever de converter os
selvagens ao cristianismo foi substituído pelo dever de incorporar economias locais e
nacionais ao mercado globalizado, bem como substituir sistemas alternativos de
conhecimento pela ciência e tecnologia mercantilizadas.
3.2 Primeira globalização
A primeira globalização, levada a cabo pela Europa no continente que passou a
chamar-se América, além de uma colonização de terras e culturas, foi também uma
colonização da natureza. Esta passou a ser percebida de outra forma pela mente
européia: de sistema vivo e auto-organizado passou a representar simplesmente matéria-
prima, objeto de exploração e controle, inerte e manipulável, para a fabricação de
mercadorias e para o comércio.
Com esse mesmo pensamento, as culturas não-européias eram alvo de controle.
À natureza negava-se a sua capacidade de auto-organização e a sua necessidade de
regeneração ao tratá-la como matéria inerte, a ser explorada e manipulada segundo os
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fins estabelecidos pela mentalidade colonizadora. Essa mesma violência usada contra a
natureza foi aplicada contra os povos nativos: tanto estes quanto aquela, possuidores de
uma organização que lhes era própria, representavam uma ameaça; eram, pois,
considerados selvagens, ou fora de controle. O diferente era, assim, visto como ameaça
a ser expurgada, e, ao mesmo tempo, como indigno de existir; a auto-organização de
outros sistemas era percebida como caos, ao qual os europeus tinham praticamente a
obrigação de impor a sua própria ordem, ainda que de maneira coerciva e violenta, a fim
de possibilitar o aperfeiçoamento e a civilização do outro. A ordem intrínseca deste era,
então, perturbada e, finalmente, destruída.
Foi dessa forma que, à medida que os europeus descobriam os nativos da
América, África e Ásia, identificavam-nos como selvagens, desprovidos de uma
organização idônea e que, portanto, necessitavam ser redimidos pela raça superior
européia. A adoção de seu modelo como o único correto, em meio a tantos outros,
justificava atos como a dominação, a invasão e a escravidão.
O medo do que é selvagem e da diversidade que lhe é característica relaciona-se
estreitamente, portanto, com a necessidade de subjugação não somente do mundo
natural, mas também das sociedades que se regem por outros princípios e se organizam
de outros modos. Nessa linha, por exemplo, Robert Boyle, um famoso cientista e diretor
da New England Company por volta de 1760, via a ascensão da filosofia mecanicista
como uma forma de poder sobre a natureza e os habitantes originais da América.
Declarava suas idéias de que urgia livrar os índios da Nova Inglaterra, nos Estados
Unidos, de suas noções absurdas a respeito dos fenômenos da natureza, assim como
atacava a concepção indígena da natureza considerada como uma deusa e afirmava: “a
veneração de que estão imbuídos os homens por aquilo a que chamam natureza é um
obstáculo ao império do homem sobre as criaturas inferiores de Deus.” (BOYLE apud
SHIVA, 2001, p. 132). Ou seja, o que se buscava era o império do homem e a
conseguinte subjugação da natureza, em substituição a um sistema em que os seres
humanos eram incluídos na dinâmica do pluralismo e da diversidade natural.
Com base nisso, justificava-se a colonização. A negação da autonomia da
natureza e da legitimidade das sociedades que a respeitavam e reverenciavam como algo
sagrado facilitava a exploração desmedida e a dominação com o fim de auferir lucro.
Em todo esse processo, ocorrido há mais de quinhentos anos, a Igreja Católica
desempenhou um importante papel, autorizando os monarcas europeus a atacarem e
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subjugarem os pagãos e a apropriarem-se de seus bens e territórios. Ajuntava-se, pois, a
conivência divina como mais uma relevante justificativa para a dominação. Dessa
forma, milhões de seres humanos e várias outras espécies vivas perderam o direito de
existir durante a primeira onda de globalização.
3.3 Segunda globalização
A segunda onda de globalização surgiu a partir da ideologia do desenvolvimento
como impreterível necessidade. O processo de desenvolvimento - apesar dessa palavra
sugerir evolução de dentro para fora (de fato, até meados do século XX foi sinônimo de
evolução a partir de auto-organização) - passou a ser imposto, em vez de auto-gerado;
passou a ser guiado de fora, ao invés de surgir de dentro. Com a ajuda oferecida por
poderosas instituições financeiras, tais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário
Internacional, foram também impostas prioridades e padrões dos países do norte, como
meio supostamente hábil a fomentar o desenvolvimento dos países do sul, o que
contribuiu, uma vez mais, para a homogeneização e a uniformidade.
Um exemplo cabal desse paradigma do desenvolvimento homogeneizador é a
Revolução Verde. Esta consistiu numa transformação operada na agricultura, a partir
dos anos de 1950, por meio da introdução de tecnologia básica e de um conjunto de
práticas e insumos agrícolas, de modo que ficasse assegurada a alta produtividade no
campo. Assim, tiveram origem as sementes de Variedades de Alto Rendimento (VAR),
as quais substituíram as sementes crioulas, até então bastante utilizadas na agricultura
tradicional. Com a substituição das sementes crioulas, diminuiu drasticamente a
diversidade de espécies agrícolas em todo o mundo e, especialmente, nos países do
terceiro mundo, onde se encontra a maior parte da biodiversidade do planeta. Diversos
sistemas agrícolas de subsistência, adaptados aos diferentes ecossistemas, foram, dessa
forma, destruídos ou prejudicados, globalizaram-se a cultura e a economia numa
agricultura industrial e eliminaram-se culturas e variedades de plantas agrícolas, as
quais foram substituídas por monoculturas. Os insumos internos e mecanismos de auto-
controle e regeneração foram substituídos por insumos externos cada vez mais custosos,
o que gerou dívidas para os agricultores e empobrecimento de ecossistemas, devido à
extinção de espécies.
Do ponto de vista histórico, pode-se explicar o desenvolvimento rural em geral
e, em particular, a Revolução Verde - planejados por especialistas estrangeiros e
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assistidos pelo capital estrangeiro - como um meio de estabilizar politicamente áreas
rurais e de impedir que áreas de fora da China ficassem sob a influência da Revolução
Vermelha.
Pouco mais de duas décadas depois, essa homogeneização cultural e agrícola
deixou à mostra danos ecológicos, políticos e culturais. No plano ecológico, a alta
produtividade das monoculturas de cereais importou escassez aos ecossistemas; no nível
político, novos conflitos surgiram; e, no plano cultural, em vez de render-se e deixar-se
submergir no processo uniformizador da Revolução Verde, diversos grupos locais
trataram de buscar o fortalecimento de sua identidade étnica. A Revolução Verde
desencadeou, portanto, não apenas uma forma de violência contra a natureza, cuja
diversidade é indispensável, mas, ao criar uma agricultura administrada de fora e
controlada globalmente, também agiu com violência contra as comunidades locais.
Assim, crises ecológicas e étnicas no terceiro mundo podem ser analisadas como
emergindo de um conflito básico, gerado pela globalização: a necessidade local de
diversidade, descentralização e democracia versus a imposição e exigência globais de
centralização e uniformidade. A estratégia da Revolução Verde era centralizadora e
implicava o controle da natureza e de povos; as suas conseqüências foram o colapso
ecológico e político nas sociedades por ela oprimidas.
O impacto ecológico causado pela Revolução Verde pode ser esclarecido pelo
pressuposto em que se baseou essa transformação da agricultura, isto é, o pressuposto
de que a tecnologia é capaz de substituir e suplantar os mecanismos de que dispõe a
natureza e gerar resultados superiores em quantidade e qualidade; de que é uma forma
de produzir mais e melhor, sem as limitações naturais.
Entretanto, essa forma de encarar a natureza como fonte escassa e a tecnologia
como fonte abundante leva à sucessiva criação de novas tecnologias, as quais, por sua
vez, provocam escassez na natureza, devido à predação indiscriminada de seus recursos.
As práticas da Revolução Verde dão exemplo disso, já que reduziram a variedade
genética das culturas, o que resultou numa grande perda para a biodiversidade.
As conseqüências nocivas da Revolução Verde como meio de se fomentar o
desenvolvimento de fora para dentro não foram somente de cunho ecológico. A
transição de sistemas agrícolas baseados em diversidade e insumos internos para
sistemas de cultivo baseados em uniformidade e insumos externos alterou também a
estrutura social e as relações políticas nos locais onde foi implantada. Antes, estas
tinham por base as obrigações mútuas entre os indivíduos dentro dos povoados; após a
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Revolução Verde, deram lugar às relações entre lavradores isolados e os seus bancos,
agências de sementes e de fertilizantes. Os agricultores terminaram, assim, por
enfraquecer normas e práticas culturais. Além disso, a escassez dos insumos fornecidos
externamente ocasionou também conflitos e acirrou disputas entre regiões.
A rápida e ampla introdução das tecnologias da Revolução Verde provocou o
desajuste de estruturas sociais e políticas na Índia, por exemplo. Foi surgindo uma
disparidade entre classes, ao passo que foi aumentando o mercantilismo das relações
sociais. Houve, em função da Revolução Verde e de seus processos, a corrosão das
normas sociais que regiam as sociedades tradicionais.
A desestabilização social causada pelo desenvolvimento da Revolução Verde
foi, inicialmente, encarada como um conflito de classes. Porém, à medida que os
processos dessa transformação da agricultura se instalavam, as aspectos comunitários e
étnicos adquiriam maior relevância nos conflitos que surgiam. Temos o exemplo do
Punjab, onde, em 1984, dois extremistas sikhs assassinaram Indira Gandhi; como
retaliação, dois mil sikhs foram massacrados em Nova Déli. Em 1986, 598 pessoas
foram mortas no Punjab; um ano após, 1.544 pessoas foram assassinadas. Em 1988,
mais três mil pessoas perderam a vida nesse conflito no Punjab. A modernização e o
desenvolvimento impostos de fora às comunidades locais, perturbando a sua
organização própria, podem, como no caso do Punjab, motivar o desejo de
fortalecimento das identidades étnicas, tendo como conseqüência conflitos de ordem