MARIA LÍLIAN DA COSTA SOUSA...pensamento no campo da biologia. Por fim, examinamos as...

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0 UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO MARIA LÍLIAN DA COSTA SOUSA O LIVRE COMÉRCIO E A PIRATARIA DO CONHECIMENTO TRADICIONAL FORTALEZA 2006

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

    FACULDADE DE DIREITO

    MARIA LÍLIAN DA COSTA SOUSA

    O LIVRE COMÉRCIO E A PIRATARIA DO CONHECIMENTO

    TRADICIONAL

    FORTALEZA

    2006

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    MARIA LÍLIAN DA COSTA SOUSA

    O LIVRE COMÉRCIO E A

    PIRATARIA DO CONHECIMENTO TRADICIONAL

    Monografia apresentada como requisito à

    conclusão do Curso de Graduação em Direito

    da Universidade Federal do Ceará.

    Orientadora: Prof.ª MS. Sheila Cavalcante

    Pitombeira

    FORTALEZA

    2006

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    AGRADECIMENTOS

    Aos meus pais, Célia e Francisco, cujo apoio inestimável me permite prosseguir

    em meus estudos.

    À professora e orientadora Sheila Cavalcante Pitombeira, pelo auxílio e boa

    vontade na realização deste trabalho.

    Ao professor Flávio José Moreira Gonçalves, por todos os ensinamentos

    transmitidos.

    Aos demais professores que, com seus conhecimentos e bom ânimo, nos

    ajudaram na conclusão deste trabalho.

    A todos os amigos e pessoas queridas, que, de alguma forma, mesmo que

    singela, nos deram alento e força.

  • 3

    “A mentira é o único privilégio que distingue o ser humano de todos os outros

    organismos”.

    Fiodor Mikhaïlovitch Dostoïevski

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    RESUMO

    Este trabalho tem como objetivo apresentar a relação existente entre livre comércio e

    pirataria do conhecimento tradicional. Utilizamos como base a obra Biopirataria: a

    pilhagem da natureza e do conhecimento, de Vandana Shiva, e dividimos o assunto em

    três capítulos. No primeiro, observamos aspectos relacionados à propriedade intelectual

    e ao modo de conhecimento reducionista. No segundo capítulo, analisamos o problema

    da biopirataria e destacamos a importância do conhecimento tradicional. No terceiro,

    apresentamos o contexto da globalização no qual se inserem o sistema de patentes e a

    biopirataria, e o relacionamos com a ideologia da colonização.

    Palavras-chaves: Biopirataria Conhecimento tradicional Propriedade intelectual Ciência

    reducionista Patentes Globalização Colonização

  • 5

    RÉSUMÉ

    Ce travail a pour but de présenter la relation entre le libre commerce et

    l´appropriation des connaissances traditionnelles communes. Nous avons basé notre

    analyse sur l´oeuvre La biopiraterie ou le pillage de la nature et de la connaissance, de

    Vandana Shiva, et avons divisé le sujet en trois chapitres. Dans le premier, nous

    observons des aspects liés à la propriété intellectuelle et à l'approche réductionniste de

    la connaissance. Dans le deuxième chapitre, nous analysons le problème du biopiratage

    et soulignons l´importance des connaissances traditionnelles. Dans le troisième, nous

    présentons le contexte de la globalization dans lequel se trouvent le système de brevets

    et le biopiratage, et le lions avec l´idéologie de la colonisation.

    Mots-clés: Biopiraterie Connaissances traditionnelles Propriété intelectuelle Science

    réductionniste Brevets Globalisation Colonisation

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    LISTA DE SIGLAS

    CDB - Convenção da Diversidade Biológica

    DPI - Direitos de Propriedade Intelectual

    EPA - Environmental Protection Agency

    GATT - General Agreement on Tariffs and Trade

    IPC - Intellectual Property Committee

    OGM - Organismo Geneticamente Modificado

    OIC - Organização Internacional do Comércio

    OMC - Organização Mundial do Comércio

    TRIPS - Trade Related Intellectual Property Rights

    UNCTAD - United Nations Conference on Trade and Development

    UNICE - Union of Industrial and Employers' Confederations of Europe

    VAR - Variedade de Alto Rendimento

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    SUMÁRIO

    Introdução.........................................................................................................................8

    1 Proteção da propriedade intelectual e ciência

    reducionista.....................................................................................................................12

    1.1 Proteção da propriedade intelectual relacionada ao comércio .................................13

    1.2 Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio ..................................................................16

    1.3 Ascensão do paradigma reducionista na biologia ....................................................17

    1.4 Conseqüências do pensamento reducionista ............................................................19

    2 Conhecimento tradicional............................................................................................23

    2.1 Rede do Terceiro Mundo ..........................................................................................23

    2.2 Importância do conhecimento tradicional e da sua preservação

    .........................................................................................................................................24

    2.3 Pirataria do conhecimento tradicional.......................................................................26

    2.4 Convenção da Diversidade Biológica.......................................................................30

    3 Globalização e colonização..........................................................................................33

    3.1 Mentalidade colonizadora ........................................................................................33

    3.2 Primeira globalização ...............................................................................................34

    3.3 Segunda globalização ...............................................................................................36

    3.4 Terceira globalização: Livre comércio .....................................................................39

    Considerações finais........................................................................................................43

    Referências......................................................................................................................46

  • 8

    Introdução

    O tema do presente trabalho foi escolhido tendo como base a obra Biopirataria: a

    pilhagem da natureza e do conhecimento, da autora indiana Vandana Shiva. Formada

    em física, posteriormente afastou-se da sua área de formação para dedicar-se à filosofia

    da ciência, que cursou em Londres. Sua atuação como intelectual mescla-se às suas

    polêmicas posições políticas, e é atualmente considerada uma das principais expoentes

    do mundo na defesa do conhecimento tradicional e na crítica aos efeitos maléficos dos

    transgênicos e do sistema de propriedade intelectual.

    Nesse sentido, destacam-se a sua liderança em protestos contra a Monsanto - que

    envolveram a queima de colheitas - sua dedicação às causas feminista e ecológica, sua

    identificação com os agricultores sem terra da Índia, a participação no Fórum Social

    Mundial e o radicalismo de suas opiniões contra a agrobiotecnologia, os transgênicos, a

    Revolução Verde, os direitos de propriedade intelectual e as patentes. A ativista e

    filósofa indiana dirige a Research Foundation for Science, Technology and Ecology, em

    Nova Déli, e é membro da Rede do Terceiro Mundo.

    Na obra que estudamos - ainda a única traduzida para o português - existem três

    conjuntos de teses, que são temas recorrentes nos livros e artigos publicados pela autora,

    quais sejam: a semente, a ciência reducionista e os modelos alternativos de agricultura.

    No que concerne à semente, a sua idéia central consiste na crítica de que, uma

    vez inserida no sistema da agricultura dominada pelo capital, ocorre a alteração da

    natureza da semente, a qual passa de recurso regenerativo a simples mercadoria.

    Os dois outros conjuntos de teses, intrinsecamente relacionados, são os que

    informam o presente trabalho. A crítica ao modo de pensar reducionista, o qual tem

    conduzido os modelos tecnológicos da agricultura, quer os da Revolução Verde, quer os

    da agrobiotecnologia, e que representa, na realidade, apenas um tipo de conhecimento

    científico. Em contrapartida, apresenta os modelos alternativos de agricultura, que vêm

    ilustrar um outro tipo de conhecimento, o conhecimento tradicional de comunidades

    locais, que o desenvolveram ao longo do tempo de acordo com as suas necessidades e as

    do meio em que vivem.

    No primeiro capítulo, faz-se uma explanação sobre o que se considera

    criatividade, seus conceitos distintos conforme o sistema de conhecimento em que esteja

    inserida e o que verdadeiramente significa quando se trata de direitos de propriedade

    http://www.vshiva.net/http://www.twnside.org.sg/

  • 9

    intelectual e, mais especificamente, de direitos de propriedade intelectual relacionados

    ao comércio.

    Após a menção da existência da criatividade inerente à natureza, concentramo-

    nos na criatividade das formas de conhecimento tradicional, cujas práticas são

    ecologicamente sustentáveis, por, principalmente, contemplar a natureza como um

    complexo de interações, essenciais umas às outras para o equilíbrio do todo, e nisso se

    opõe à criatividade dentro da concepção reducionista da vida, a qual considera os seres

    vivos, bem como as partes que o integram, de maneira isolada.

    Para uma melhor compreensão do tema, analisamos o Acordo sobre os Direitos

    de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trade Related Intellectual

    Property Rights - TRIPS) e a forma como foi engendrado para mostrar que o seu maior

    comprometimento é, de fato, com o mercado, e não com a proteção e o estímulo à

    criatividade. Ademais, observamos as restrições que importa ao conceito de criatividade

    livre e as conseqüências nocivas disso, sobretudo a marginalização e o prejuízo do

    conhecimento tradicional. Esclarecendo ainda mais este assunto, fazemos uma breve

    referência sobre em que consiste o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (General

    Agreement on Tariffs and Trade - GATT).

    Após estudar a perspectiva comercial da imposição de um determinado tipo de

    conhecimento, analisamos a sua faceta científica e as restrições que incutiu no conceito

    de criatividade, mencionando o dogma central da biologia molecular como a expressão

    máxima do reducionismo científico, bem como a influência do capital na ascensão desse

    pensamento no campo da biologia.

    Por fim, examinamos as conseqüências ecológicas e socioeconômicas do

    conhecimento reducionista e, especificamente, da aplicação de suas técnicas à

    agricultura, com a menção de estudos a respeito da modificação genética de plantas

    agrícolas e a sua liberação no meio ambiente.

    No segundo capítulo, a fim de abordar o modelo que se opõe ao que foi

    analisado no capítulo anterior, colocamo-nos na perspectiva das comunidades locais que

    têm o seu conhecimento menosprezado pelo sistema oficial de proteção intelectual e,

    concomitante a isso, utilizados indevidamente pelas multinacionais.

    Nesse sentido, mencionamos as duas vertentes que compõem o trabalho de

    Vandana Shiva como ativista: o Navdanya, uma rede nacional para estabelecer bancos

    comunitários de sementes na Índia, e o Satyagraha da Semente, juntamente com a Rede

    do Terceiro Mundo, através dos quais se procura construir uma alternativa ao paradigma

  • 10

    do conhecimento relacionado ao meio ambiente, bem como preservar as chamadas

    terras comunitárias intelectuais.

    Concentramos a nossa atenção nesta última organização, já que diz respeito aos

    países em desenvolvimento como um todo, e apresentamos algumas de suas idéias e

    discussões acerca da importância da preservação do conhecimento tradicional para o

    desenvolvimento sustentável, tanto sob o ponto de vista ecológico quanto

    socioeconômico.

    Posteriormente, apresentamos três exemplos da violência que vem sendo

    praticada contra o conhecimento tradicional e as comunidades locais que o criaram e

    que, durante séculos, aperfeiçoaram-no e foram suas legítimas guardiãs: o caso do Nap-

    Hal e do nim, espécies vegetais tipicamente indianas, e de espécies de milho da

    América Central. Igualmente, expomos a fórmula empregada pelas grandes empresas a

    fim de roubar o conhecimento tradicional, os motivos que impedem que este seja

    protegido de forma eficaz pelo atual sistema de proteção à propriedade intelectual e

    algumas alternativas que têm sido criadas em diversas partes do mundo.

    Finalmente, fazemos uma breve menção à Convenção da Diversidade Biológica

    (CDB), acordo internacional pioneiro no debate da problemática do acesso indevido à

    biodiversidade e ao conhecimento tradicional dos países em desenvolvimento.

    No terceiro capítulo, estabelecemos uma relação entre o modelo de pensamento

    reducionista e o sistema atual de proteção à propriedade intelectual - que relegam outras

    formas de conhecimento e, desse modo, incitam à uniformização da cultura e da

    natureza - e a colonização, ou globalização - na qual povos auto-organizados têm suas

    terras e recursos roubados, bem como a sua cultura desprezada e oprimida pela

    imposição da cultura estrangeira invasora.

    Primeiramente, traçamos um histórico de colonizações, ou globalizações

    ocorridas, a primeira delas há mais de quinhentos anos, com a chegada de Cristóvão

    Colombo às terras que mais tarde viriam a chamar-se América, dando ênfase às idéias

    eurocêntricas que norteavam essas conquistas e que continuaram a guiar os processos de

    globalização subseqüentes.

    Em seguida, tratamos da segunda globalização, a qual surge a partir da ideologia

    do desenvolvimento imposto de fora para dentro, ao invés de auto-gerado, e mediante o

    auxílio de poderosas instituições financeiras internacionais, numa experiência em que,

    uma vez mais, valores de determinados países são incutidos em outros, através, neste

    caso, do poder econômico.

  • 11

    A fim de ilustrar tal paradigma do desenvolvimento, citamos a Revolução Verde,

    implementada na agricultura a partir de 1950 e por meio da qual foram impostos certos

    padrões e prioridades, gerando uniformização na natureza, com a extinção de espécies

    vegetais, e prejuízo ao conhecimento tradicional das comunidades locais, entre outras

    conseqüências.

    Com relação à terceira globalização, abordamos a sua expressão maior na

    atualidade, isto é, o livre comércio, de que maneira ele importa imposição de regras por

    parte de países economicamente poderosos e, por conseguinte, uniformização e prejuízo

    aos mais frágeis e o que realmente significa liberdade nesse contexto.

    Finalizando, apresentamos de que modo se tentou implantar o livre comércio

    ainda anteriormente ao Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, através dos programas

    de ajuste estrutural de instituições financeiras internacionais, e suas conseqüências para

    a economia de países pobres, como a Somália e Ruanda.

  • 12

    Capítulo 1

    Proteção da propriedade intelectual e ciência reducionista

    Os direitos de propriedade intelectual (DPI) visam a estimular e recompensar a

    criatividade. São, porém, direitos privados e por natureza implicam uma restrição do

    que é considerado criatividade e conhecimento. Os direitos de propriedade intelectual

    ligados ao comércio (Trade related intellectual property rights) são, por sua vez,

    comumente conhecidos pela sua sigla em inglês, qual seja, TRIPS. Visam, como foi

    mencionado acima, recompensar a criatividade, o esforço intelectual de uma invenção e

    tornar exclusivos do inventor os frutos de sua invenção. Mas, o que se considera

    criatividade, o que é tido como invenção e esforço intelectual, de acordo com o sistema

    de DPI?

    Poder-se-ia pensar que esse sistema tem como meta principal a proteção do

    conhecimento e da criatividade. Entretanto, uma análise mais profunda nos mostra que

    ele tem mais a ver com interesses comerciais. O conceito de criatividade torna-se, pois,

    fundamental para entendermos que o sistema de DPI tem mais a ver com interesses de

    mercado que com o conhecimento, além de ser, quanto a este, bastante discriminador.

    Qualquer que seja o conceito de criatividade, é preciso admitir-se que ela possui

    várias expressões. Não se pode limitar o ato criativo a determinado padrão, determinado

    processo estabelecido, pois a criatividade necessita de liberdade para fluir. Liberdade de

    aceitar que o processo criativo, o ato que cria, não se pauta por apenas um modelo, mas

    se desenvolve livre no campo das diferenças.

    Dessa forma, Shiva equipara ciência a criatividade e conceitua-as de acordo com

    a liberdade de que precisam dispor para se desenvolver e permitir ao intelecto humano

    total possibilidade de criar:

    A ciência é uma expressão da criatividade humana, tanto a individual como

    a coletiva. Uma vez que a criatividade tem diversas expressões, considero a

    ciência como uma iniciativa pluralista que engloba diferentes maneiras de

    conhecer. Para mim, ela não se restringe à ciência ocidental moderna, mas

    inclui os sistemas de conhecimento de diversas culturas em diferentes

    períodos da história. (SHIVA, 2001, p. 29-30, grifo da autora).

    Não somente o ser humano é capaz de criar, mas também a natureza. Esta exerce

    a sua criatividade ao reproduzir-se, multiplicar-se numa liberdade auto-organizada e ao

    adaptar-se às constantes necessidades de seu meio.

  • 13

    Existem, portanto, além da ciência ocidental, outros sistemas de conhecimento

    que devem ser respeitados, na medida em que geram maior proveito, tanto para o meio

    ambiente local e global, quanto para o sustento da comunidade que o cultivou e

    desenvolveu ao longo do tempo. Geralmente, esses sistemas de conhecimento nativo

    apresentam diversas vantagens em relação à ciência globalizada e mercantilizada. Por

    dependerem do ecossistema local, esse conhecimento é, em geral, ecológico, sustentável

    e leva em consideração a natureza como sistema integral, complexo, dependente de um

    conjunto de inter-relações em que cada parte desempenha importante papel - nenhum

    elemento é desprezado, ou considerado de menor valor.

    Assim, ao tratar especificamente das ciências da vida - ou do conhecimento cujo

    objeto são os seres vivos - a criatividade deve contemplar três níveis, segundo Shiva:

    A criatividade inerente aos seres vivos, que lhes permite evoluir, recriar-se e

    regenerar-se; a criatividade de comunidades locais (como algumas

    comunidades indígenas, por exemplo) que desenvolveram, ao longo dos

    séculos, sistemas de conhecimento para utilizar e conservar a biodiversidade

    local; e a criatividade dos cientistas modernos em laboratórios de poderosas

    empresas, que descobrem maneiras de utilizar os seres vivos segundo

    interesses comerciais, a fim de gerar lucro. (Ibid., p. 30 e 31).

    Reconhecer que o conhecimento e a criatividade podem surgir e expressar-se de

    diferentes modos é fundamental para que se respeite e preserve não só a diversidade de

    conhecimento, mas também a diversidade da vida.

    Mas, de que forma o regime dos DPI, mais especificamente, dos TRIPS, no

    GATT, sufoca a diversidade e conduz à colonização dos sistemas que se auto-

    organizam e se sustentam com base em outros princípios?

    1.1 Proteção da propriedade intelectual relacionada ao comércio

    Para entender isso, vejamos de que maneira foi engendrada a proteção da

    propriedade intelectual relacionada ao comércio no GATT. O acordo referente aos

    TRIPS foi concebido por três organizações, quais sejam, o Comitê de Propriedade

    Intelectual (Intellectual Property Committee - IPC), Keidanren e União das

    Confederações das Indústrias e dos Empregadores da Europa (Union of Industrial and

    Employers' Confederations of Europe - UNICE). O IPC é constituído de doze grandes

    empresas norte-americanas: Bristol Myers, Du Pont, General Electric, General Motors,

  • 14

    Hewlett Packard, IBM, Johnson & Johnson, Merck, Monsanto, Pfizer, Rockwell e

    Werner; Keidanren é um conjunto de organizações econômicas japonesas; e a UNICE é

    a representante oficial dos negócios e da indústria da Europa.

    Esses três grandes grupos trabalharam conjuntamente a fim de introduzir a

    proteção da propriedade intelectual no GATT. O IPC, um dos responsáveis pela feitura

    do acordo TRIPS, teve sua estratégia comentada por James Enyart, da Monsanto:

    Como nenhum grupo comercial se encaixava no projeto de lei, tivemos de

    criar outro [...]. Uma vez criado, a primeira tarefa do IPC foi repetir o

    trabalho que realizamos nos Estados Unidos nos velhos tempos, desta vez

    com as associações industriais da Europa e do Japão, a fim de convencê-los

    de que um código era possível. [...] Consultamos muitos grupos de interesse

    durante todo o processo. Não foi uma tarefa fácil, mas nosso grupo trilateral

    foi capaz de deduzir das leis dos países mais avançados os princípios

    fundamentais para a proteção de todas as formas de propriedade intelectual.

    [...] Além de divulgar nossos conceitos em casa, fomos até Genebra, onde

    apresentamos nosso documento aos membros da Secretaria do GATT.

    Aproveitamos igualmente a oportunidade para apresentá-lo a representantes

    de muitos países em Genebra. [...] O que descrevi a vocês não tem

    absolutamente nenhum precedente no GATT. A indústria identificou um

    grave problema no comércio internacional, elaborou uma solução, tornou-a

    uma proposta concreta e vendeu-a tanto ao nosso quanto a outros governos.

    [...] As indústrias e os operadores do mundo dos negócios desempenharam,

    simultaneamente, os papéis de paciente, diagnosticador e terapeuta.

    (ENYART, 1990, p. 54-56 apud SHIVA, 2001, p. 109).

    Vê-se, portanto, que o acordo TRIPS no GATT representa os interesses de

    apenas um setor. Não foi discutido por representantes dos vários segmentos da

    sociedade nem foi objeto de negociação entre países industrializados e países em

    desenvolvimento. Representa os anseios daqueles que o elaboraram, ou seja, os

    interesses e valores das empresas multinacionais. Sendo assim, é evidente que em tal

    documento os interesses comerciais se sobrepõem às preocupações éticas, ecológicas e

    sociais.

    Dessa forma, ao tentar recompensar a criatividade e, ao mesmo tempo e

    sobretudo, proteger os interesses das grandes empresas multinacionais, a proteção da

    propriedade intelectual inserida no GATT através do acordo TRIPS restringe o conceito

    de criatividade. O seu conceito de criatividade, assim limitado, desconsidera a

    criatividade da natureza, sistema auto-organizado capaz de reproduzir-se e regenerar-se,

    bem como as formas alternativas de conhecimento, oriundas das tradições de diversos

    povos, que criaram e recriaram ao longo do tempo de acordo com as suas necessidades.

    Desse modo, os TRIPS, ao universalizar o regime norte-americano de patentes,

    promovem uma espécie de monocultura do conhecimento, em que a homogeneização é

    necessária a fim de permitir um controle.

  • 15

    Nesse contexto, a diversidade, em especial a diversidade do conhecimento,

    representa um perigo, pois inviabiliza a maximização dos ganhos. No entanto, por outro

    lado, todos os demais perdem, já que a homogeneização leva a um empobrecimento

    intelectual e cultural, sem a possibilidade de troca de experiências diversas e adaptação

    às necessidades distintas de cada localidade. Além disso, restringe o intercâmbio de

    conhecimentos, o que embaraça ainda mais o processo do conhecimento como um todo.

    O acordo TRIPS restringe o conceito de inovação, de modo a favorecer as

    multinacionais. A primeira restrição diz respeito à transformação das idéias em direitos

    privados. Isso exclui do conceito de criatividade e inovação as idéias, as inovações e o

    conhecimento trocados livremente entre os indivíduos de uma determinada comunidade,

    isto é, exclui as idéias que circulam livremente nas “terras intelectuais comunitárias”,

    conforme a terminologia utilizada por Shiva. (Ibid., p. 32).

    A segunda restrição torna ainda mais evidente o real objetivo da proteção da

    propriedade intelectual ligada ao comércio. O artigo 27.1 do TRIPS estabelece que, para

    ser protegida, uma inovação deve ter, ainda que em potencial, uma aplicação industrial.

    Obviamente isso exclui, de plano, todos os setores que produzem e inovam fora do

    modo de organização industrial, valorizando, assim, apenas as inovações que geram

    lucro e dentro de um determinado modelo.

    Shiva critica esse sistema de proteção da propriedade intelectual, posto que

    oficializa a criatividade, negando as inovações tanto da natureza quanto das

    comunidades que se organizam fora desse sistema. Assim, segundo ela, nega-se a

    criatividade da natureza e de outras culturas, ainda quando essa mesma criatividade é a

    base utilizada para desenvolver alguma inovação e obter ganho comercial por parte de

    grandes empresas. Neste caso, os TRIPS seriam apenas um outro nome dado à

    biopirataria e à pirataria do conhecimento tradicional. Ao mesmo tempo, quando as

    comunidades locais são atingidas pelo roubo de seus recursos e tradições culturais -

    roubo esse legitimado através das patentes - e exigem seus direitos, vêem que se viram

    contra si os termos “roubo e pirataria”. (Ibid., p. 32).

    Por exemplo, a Comissão Internacional do Comércio dos Estados Unidos (U.S.

    Trade Commission) alegava que a indústria norte-americana perdia entre cem e

    trezentos milhões de dólares por ano devido à deficiente proteção da propriedade

    intelectual nos países em desenvolvimento. Entretanto, muitas das patentes, não só dos

    Estados Unidos, como também de outros países, estão baseadas na biodiversidade e no

    conhecimento dos países do terceiro mundo.

  • 16

    “Os movimentos contra os TRIPS e as patentes da vida são movimentos para

    proteger a criatividade da natureza e de outros sistemas de conhecimento. É da

    conservação dessa criatividade que depende nosso futuro.” (Ibid., p. 40).

    Antes de prosseguir e, uma vez que falamos de TRIPS, devemos explicitar o que

    é GATT, que ilustra o tipo de pensamento que protege a criatividade como algo privado

    e gerador de lucro.

    1.2 Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio

    O Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT) foi elaborado após a Segunda

    Guerra Mundial por vários países que decidiram regular as relações econômicas

    internacionais, ao dar-se conta de que os problemas econômicos influíam seriamente nas

    relações entre os diversos países. Para tentar dirimir esses problemas econômicos,

    discutia-se a criação de uma Organização Internacional do Comércio (OIC), a qual

    funcionaria como um órgão especializado das Nações Unidas.

    Em 1946, 23 países, chamados países fundadores, iniciaram negociações

    tarifárias, a fim de impulsionar a liberalização comercial e combater práticas

    protecionistas. O conjunto de normas e concessões tarifárias resultante dessas

    negociações foi denominado GATT.

    Os membros fundadores e alguns outros países elaboraram o projeto de criação

    da OIC, sendo que os Estados Unidos se destacaram pela sua atuação, defendendo a

    idéia do liberalismo comercial regulamentado de forma multilateral. As discussões

    sobre o projeto se estenderam de novembro de 1947 a março de 1948, em Havana,

    Cuba. O documento que previa a criação da OIC, além de estabelecer regras para o

    comércio internacional de bens, continha normas sobre emprego, investimentos

    estrangeiros e serviços.

    Apesar da sua atuação nas negociações para a criação da organização

    internacional acima mencionada, os Estados Unidos, devido a questões políticas

    internas, anunciaram, em 1950, que não encaminhariam o projeto ao Congresso a fim de

    que fosse ratificado. Sem a participação desse país, a criação da Organização

    Internacional do Comércio não foi levada a cabo, e foi assim como o GATT, um acordo

    surgido para regular provisoriamente o comércio internacional, regeu por mais de quatro

    décadas as relações comerciais entre os países.

  • 17

    Na história do GATT, a Rodada do Uruguai é considerada como a mais intensa

    rodada de negociações. No ano de 1994, foi firmado o Acordo Constitutivo da

    Organização Mundial do Comércio (OMC). A função desse organismo internacional

    seria a de administrar duas categorias de acordos: os Acordos Multilaterais e os Acordos

    Plurilaterais. Aqueles vinculam todos os países membros da organização, e isto foi um

    dos motivos pelos quais, quando de sua criação, nem todos os países quiseram filiar-se à

    OMC, posto que a adesão implicava a aceitação de todos esses Acordos Multilaterais,

    negociados durante a Rodada do Uruguai.

    Os Acordos Multilaterais são acordos e outros instrumentos jurídicos

    relacionados constantes dos anexos 1, 2 e 3, os quais fazem parte do Acordo

    Constitutivo da OMC e são de aceitação obrigatória para todos os países-membros. No

    Anexo 1 (Acordos multilaterais sobre o comércio de bens), encontra-se o Acordo Geral

    sobre Tarifas e Comércio de 1994 (GATT 1994); e o Anexo 1C consiste no Acordo

    sobre os Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (conhecido pela

    sua sigla em inglês - TRIPS).

    Os Acordos Plurilaterais, constantes do Anexo 4, são de adesão voluntária e,

    como não interessam diretamente ao nosso trabalho, serão deixados de lado.

    1.3 Ascensão do paradigma reducionista na biologia

    A restrição do conceito de criatividade também se relaciona com o reducionismo

    no campo da biologia. Pode-se dizer que a biologia reducionista é uma expressão do

    reducionismo cultural, que despreza outras formas de conhecimento e outros sistemas

    éticos, o que inclui todos os sistemas não-ocidentais de agricultura e medicina, bem

    como os ramos da biologia que não estão diretamente ligados ao reducionismo genético,

    apesar de serem necessários para a compreensão dos seres vivos e de um conseqüente

    relacionamento saudável com os mesmos.

    O reducionismo na biologia deve ser analisado sob alguns aspectos, de modo a

    entender o seu papel na restrição do conceito de criatividade e fomento à terceira onda

    de colonização. Na seara das espécies, o reducionismo atribui o maior valor a uma delas

    - a espécie humana, enquanto as demais dispõem de um valor apenas instrumental,

    relacionado, portanto, à sua utilidade. Isso pode levar ao desaparecimento de espécies

    de baixo valor instrumental, ou utilidade, para o ser humano, mas de grande importância

    no complexo de relações existente na natureza. A conseqüência do pensamento

  • 18

    reducionista é, portanto, a monocultura, não só do pensamento e do conhecimento, mas

    dos seres vivos - como na agricultura, por exemplo, com o extermínio de espécies

    selvagens parentes da espécie cultivada, bem como a perda de biodiversidade e o

    desequilíbrio ambiental. A autora chama a esse nível reducionista “reducionismo de

    primeira ordem” (Ibid., p. 48).

    E refere-se ao reducionismo de segunda ordem como aquele que trata de reduzir

    todo comportamento e/ou organismo vivo - incluindo o ser humano - aos genes. É o

    reducionismo na biologia, que vem ganhando espaço atualmente, e com sérios riscos ao

    equilíbrio do meio ambiente como um todo, já que observa cada espécie a partir do seu

    código genético, menosprezando as relações da espécie com o ecossistema e as

    conseqüências a longo prazo das experimentações genéticas.

    O dogma central da biologia molecular enfeixa todo esse pensamento

    reducionista, que coloca os genes, separados do todo, como o objetivo maior. Esse

    dogma consiste em que a informação flui dos genes para o corpo, que foi o que mostrou

    a biologia molecular, que a informação flui dos genes para as proteínas, mas não

    indicou, até recentemente, que existisse transferência de informação no sentido inverso.

    Essa inferência de que não poderia haver a transferência de informação no sentido

    contrário foi o que Francis Crick chamou de “dogma central da biologia molecular”.

    (CRICK, 1988 apud SHIVA, 2001, p. 49).

    Dessa forma, a ascensão do paradigma reducionista na biologia faz com que não

    só os organismos sejam vistos isolados do seu meio ambiente, mas que também os

    genes sejam vistos isolados do organismo do qual formam parte.

    Shiva defende que esse reducionismo não foi por acaso, mas sim

    cuidadosamente arquitetado com grande respaldo econômico e político, o que lhe

    conferiu grande poder ideológico. Na sua argumentação, cita Lily E. Kays (1993 apud

    SHIVA, 2001, p 50) quem, em The Molecular Vision of Life, afirma que a Fundação

    Rockefeller foi a grande patrocinadora da biologia molecular entre os anos de 1930 e

    1950. O próprio termo biologia molecular surgiu em 1938 por criação de Warren

    Weaver, então diretor da divisão de ciências naturais da referida fundação. Segundo

    Shiva, o termo deveria capturar a essência do programa da fundação, qual seja, sua

    ênfase nas dimensões finais e diminutas dos seres vivos. (Ibid., p. 50).

    O investimento financeiro realizado por essa poderosa fundação foi maciço.

    Entre os anos de 1932 e 1959, a Fundação Rockefeller investiu um montante em torno

    de 25 milhões de dólares em programas de biologia molecular nos Estados Unidos,

  • 19

    montante esse que representava mais de 25% dos gastos da fundação com ciências

    biológicas, excetuando-se a medicina. Dessa forma, essa reformulação do conhecimento

    e da estrutura da biologia, com base no paradigma reducionista, foi enormemente

    facilitada pela Rockefeller.

    Seus investimentos também foram decisivos na orientação das pesquisas em

    biologia. Nos doze anos subseqüentes a 1953 - ano da elucidação da estrutura do DNA -

    o Prêmio Nobel foi concedido a cientistas que se destacaram pela pesquisa em biologia

    molecular dos genes, e todos os ganhadores, com exceção de um, haviam tido suas

    pesquisas patrocinadas pela Fundação Rockefeller sob a direção de Weaver.

    1.4 Conseqüências do pensamento reducionista

    A consideração da vida como tendo um valor instrumental, e não intrínseco, tal

    como sugere o pensamento reducionista, possibilita a manipulação de seres vivos para

    determinados fins, relegando as conseqüências éticas, ecológicas e de saúde que tal

    forma de considerar a vida possa ocasionar.

    Uma das conseqüências de manipular-se, por exemplo, animais como se estes

    fossem instrumentos ou máquinas é que se expandam os limites éticos e se dissipe a

    preocupação em relação à maneira como são tratados. Essa forma de tratar os animais,

    visando à maximização da produtividade, acarreta estresses e doenças a esses seres

    vivos. Como exemplo, pode-se mencionar certos impactos na saúde de porcos em

    fazendas de gado de corte; aí, esses animais têm de ter rabos e dentes removidos, pois

    ferem-se entre si. Têm ainda propensão a contrair doenças, como a “doença da banana”,

    com a qual os animais acometidos apresentam o dorso arqueado, em formato de banana

    (Ibid., p. 56).

    Alterações no bem-estar e na saúde desses animais são já o resultado do impacto

    ecológico das novas tecnologias de cunho reducionista; são impactos sobre a capacidade

    de auto-regulação e regeneração dos seres vivos. Quando passam a ser tratados como

    meros instrumentos, com uma utilização específica dirigida a um fim, as capacidades de

    auto-regulação e restauração dos seres vivos entram em colapso, e eles passam a

    precisar de insumos e controles externos cada vez maiores a fim de que possam se

    manter.

    O pensamento reducionista pelo qual se pauta a engenharia genética também tem

    grande impacto ecológico. Dois estudos detalhados explicam a respeito do impacto

  • 20

    causado ao meio ambiente pela liberação, em larga escala, de Organismos

    Geneticamente Modificados (OGM) na seara da agricultura:

    Num encontro, em 1994, da Ecological Society of America (Sociedade de

    Ecologia dos Estados Unidos), pesquisadores da Universidade Estadual do Oregon

    informaram sobre testes que haviam sido realizados para avaliar os efeitos causados

    numa cultura pela introdução de uma bactéria geneticamente modificada, desenvolvida

    para converter restos de colheitas em etanol.

    As técnicas de engenharia genética modificaram Klebsiella planticola, uma

    bactéria típica da zona radicular do solo, a fim de que ela adquirisse a capacidade de

    produzir etanol. Nos testes, a bactéria geneticamente modificada foi depositada em

    compartimentos fechados contendo solo e uma planta de trigo em crescimento, em cada

    compartimento. Num determinado tipo de solo, todas as plantas dos compartimentos

    nos quais havia sido introduzida a bactéria geneticamente modificada morreram, ao

    passo que todas as plantas de trigo que se desenvolviam em solo não tratado

    mantiveram-se saudáveis.

    Em todos os casos, porém, os fungos micorrízicos - presentes nas raízes das

    plantas - reduziram-se a menos da metade, fato esse que destruiu o sistema de captação

    de nutrientes e, por conseguinte, o desenvolvimento desses vegetais. Este resultado

    específico não era previsto quando da modificação genética realizada em Klebsiella

    planticola e da sua introdução nas mencionadas plantas. É sabido que a redução desses

    fungos micorrízicos afeta os vegetais e traz como conseqüência plantas pouco aptas a

    competir com espécies daninhas e mais suscetíveis a doenças. Além disso, obtiveram

    como resultado que: a) em solo arenoso com baixo teor de matéria orgânica, as plantas

    morreram devido ao álcool produzido pela bactéria Klebsiella planticola modificada

    geneticamente e inserida no sistema radicular daquelas; e b) por outro lado, em solo

    arenoso ou argiloso com alto teor de matéria orgânica, ocorreram alterações na

    quantidade e composição de espécies de nematódeos, o que ocasionou um prejuízo

    significante ao crescimento vegetal.

    A pesquisadora-chefe e co-autora de A note on recent findings on genetic

    engineering and soil organisms, Dra Elaine Ingham (1995 apud SHIVA, 2001, p. 59),

    concluiu que esses resultados indicam a possibilidade de significativos e sérios impactos

    provocados pela introdução no solo de microorganismos geneticamente modificados.

    Segunda ela, os testes realizados utilizaram um novo sistema, mais abrangente, e

  • 21

    refutaram indicações anteriores de que não existiam conseqüências ecológicas

    expressivas a partir da liberação de OGM no meio ambiente.

    O outro estudo sobre o impacto da introdução de OGM no meio ambiente e,

    mais especificamente, no campo da agricultura, foi levado a cabo em 1994 por

    pesquisadores dinamarqueses. Estes indicaram que, de acordo com suas pesquisas,

    havia forte evidência de que a colza - uma planta de cuja semente se extrai óleo e que

    tinha sido geneticamente modificada, a fim de que se tornasse tolerante a herbicidas -

    havia transmitido o seu transgene a uma parente natural daninha, Brassica campestris

    ssp. campestris. Essa transferência poderia ocorrer em não mais que duas gerações de

    plantas.

    Na Dinamarca, Brassica campestris é uma planta daninha comum nos campos

    de cultivo da colza; a parente selvagem dessa planta daninha existe em várias partes do

    mundo. Uma das formas, pois, de avaliar-se o risco de liberar colza transgênica,

    tolerante a herbicidas, é medir a taxa de hibridização natural de Brassica campestris,

    pois certos transgenes da colza poderiam migrar para a parente selvagem da planta e

    transformá-la numa planta daninha ainda mais agressiva e difícil de controlar. Os

    estudos da equipe dinamarquesa indicaram a possibilidade de altos níveis de

    hibridização no campo (ANDERSON e JORGENSEN, 1994 apud SHIVA, 2001, p. 60).

    A transferência dos genes de tolerância a herbicidas para as espécies aparentadas

    selvagens e daninhas de plantas cultivadas na agricultura poderia dar origem a

    superplantas daninhas, tolerantes aos herbicidas e, portanto, muito difíceis de controlar,

    o que ameaçaria seriamente os campos de cultivo. Assim, quando a engenharia genética

    modifica uma espécie agrícola de modo a torná-la resistente aos herbicidas, ao mesmo

    tempo gera o risco de surgirem superplantas daninhas, devido à hibridização e

    transferência dos genes da tolerância. Por sua vez, a tolerância surgida nas espécies

    daninhas gera a necessidade de herbicidas cada vez mais agressivos e plantas agrícolas

    novamente modificadas, num ciclo que, sem dúvida, favorece a indústria da engenharia

    genética, mas de grave impacto no meio ambiente.

    Um terceiro exemplo nos mostra, além do impacto ecológico, as conseqüências

    socioeconômicas da aplicação à prática do pensamento reducionista e do conhecimento

    utilizado como forma de auferir lucro. Vejamos:

    Em 1996, nos Estados Unidos, em aproximadamente dois milhões de acres, foi

    cultivada a Bollgard, uma variedade de algodão geneticamente modificado da

    Monsanto. Esta variedade transgênica foi construída com DNA de um microorganismo

  • 22

    do solo, chamado Bacillus thurengesis (Bt), de forma a produzir proteínas tóxicas a

    certas lagartas que constituem pragas do algodão. À época, a Monsanto cobrou dos

    agricultores uma espécie de tarifa de tecnologia de 79 dólares por hectare e ainda o

    valor da semente, em troca da promessa de controle de pragas e de boa colheita na

    estação. Estima-se que, somente com a tarifa de tecnologia, a Monsanto haja

    arrecadado, em um ano, o montante de 51 milhões de dólares. Além dessa tarifa e do

    preço da semente, a Monsanto impunha, respaldada na proteção aos seus direitos de

    propriedade intelectual, estritas regras àqueles que adquirissem as suas sementes. Num

    comunicado da própria empresa, advertia:

    A Monsanto concede aos agricultores licença de uso das sementes que

    contêm o gene patenteado Bollgard por apenas uma safra. Guardar ou

    vender a semente para replantio violará a licença concedida e transgredirá os

    direitos de patente da Monsanto, o que sujeitará o transgressor a processo

    sob lei federal. (RURAL DEVELOPMENT FOUNDATION, 1996 apud

    SHIVA, 2001, p. 62).

    No entanto, a tecnologia fracassou para os agricultores, já que a infestação por

    lagartas nas áreas cultivadas com o algodão geneticamente modificado foi entre vinte a

    cinqüenta vezes superior ao usual. Assim, observam-se não só as conseqüências para o

    meio ambiente, que se vê subitamente alterado, mas também os prejuízos para os

    agricultores na hipótese de fracasso da cultura transgênica.

    O monopólio das inovações, possível graças ao sistema de proteção dos direitos

    de propriedade intelectual, justifica-se, socialmente, com base na alegação de que ele é

    concedido às grandes empresas para que a sociedade possa se beneficiar dessas

    inovações e avanços tecnológicos, já que são as grandes empresas que possuem capital

    suficiente para investir nesses projetos arrojados. Porém, casos como os que foram

    apresentados mostram-nos que essa tecnologia cara - e lucrativa - nem sempre traz

    benefícios, seja para o meio ambiente, seja para os agricultores. Esse monopólio

    embaraça o desenvolvimento e a manutenção de práticas ecologicamente seguras e

    socialmente mais justas, ao mesmo tempo em que impõe um sistema agrícola que

    ameaça o meio ambiente e cujos impactos na saúde humana são ainda incertos.

  • 23

    Capítulo 2

    Conhecimento tradicional

    Ao longo do primeiro capítulo, realizamos uma crítica ao modo de pensamento

    reducionista, que se foca em elementos isolados e cada vez mais diminutos e cujo

    expoente, no tocante à biodiversidade e à vida de maneira geral, é a engenharia

    genética. Por sua vez, o sistema de patentes respalda essa forma de conhecimento,

    permitindo que este seja privatizado e protegido contra a utilização por parte de

    terceiros.

    Neste capítulo, vamos abordar um sistema que se opõe a essa monopolização da

    vida e, em especial, do conhecimento. A autora menciona-o como parte importante do

    trabalho que empreende como ativista ambiental:

    Existem duas vertentes no meu trabalho atual que respondem à manipulação

    e monopolização da vida. Por meio da Navdanya, uma rede nacional para

    estabelecer bancos de sementes comunitários a fim de proteger a diversidade

    das sementes nativas, estamos tentando criar uma alternativa à visão

    transgênica da vida. E por meio do trabalho para proteger as terras

    comunitárias intelectuais, seja na forma do Satyagraha da Semente, lançada

    por um movimento de lavradores, seja na forma do movimento pela defesa

    dos direitos intelectuais coletivos, o qual iniciamos com a Rede do Terceiro

    Mundo, tentamos construir uma alternativa ao paradigma do conhecimento,

    e da própria vida, como propriedade privada. (Ibid., p. 65, grifo da autora).

    2.1 Rede do Terceiro Mundo

    A Rede do Terceiro Mundo consiste num agrupamento internacional de

    organizações e indivíduos empenhados na defesa dos direitos e necessidades dos povos

    do terceiro mundo, em favor de uma distribuição justa dos recursos do planeta e de

    formas de desenvolvimento ecológica e socialmente sustentáveis.

    Foi criada em Penang, na Malásia, em novembro de 1984, durante uma

    conferência internacional denominada O terceiro mundo: desenvolvimento ou crise,

    organizada pela Associação de Consumidores de Penang. A Rede do Terceiro Mundo

    dedica-se a estabelecer vínculos e a cooperar com pessoas e grupos preocupados com os

    temas do desenvolvimento e meio ambiente.

    É coordenada por um Comitê formado por membros da Ásia, África e América

    Latina e conta com três Secretarias, localizadas na Malásia, em Gana e no Uruguai.

  • 24

    Dedicamo-nos, agora, à análise de idéias e dados fornecidos por essa

    organização e que dizem respeito à proteção do conhecimento tradicional de

    comunidades dos países em desenvolvimento.

    2.2 Importância do conhecimento tradicional e da sua preservação

    A Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento

    (United Nations Conference on Trade and Development - UNCTAD) estima que 80%

    da população mundial dependam dos produtos e serviços derivados do conhecimento e

    das práticas tradicionais para satisfazer necessidades cotidianas, tais como alimentação

    e saúde.

    Para a sobrevivência dos segmentos mais pobres da sociedade, principalmente

    indígenas e habitantes do campo dos países menos desenvolvidos, o conhecimento

    tradicional é indispensável. De acordo com essa agência da Organização das Nações

    Unidas, mais de 90% dos alimentos da África subsaariana são produzidos mediante

    práticas agrícolas tradicionais. É também essencial para o manejo dos ecossistemas

    pelas comunidades locais.

    De modo semelhante, o conhecimento tradicional vem sendo utilizado como

    insumo por modernas indústrias para a produção de fármacos, cosméticos, produtos

    agrícolas, aditivos de alimentos, pesticidas biológicos, entre outros, sendo que a maior

    parte do valor agregado fica nas mãos de empresas com sede em países industrializados.

    O desafio no que tange a esse tema, seria, portanto, assegurar que os benefícios

    gerados pelas inovações derivadas do conhecimento tradicional cheguem às suas

    legítimas fontes e promovam o seu desenvolvimento socioeconômico. Porém, o que

    ocorre, com freqüência, é que o conhecimento tradicional é utilizado e apropriado sem o

    prévio conhecimento e consentimento por parte de suas fontes.

    São várias as razões pelas quais proteger o conhecimento tradicional é tão

    importante. A sua efetiva proteção permitiria melhorar o sustento dos seus legítimos

    guardiães, beneficiaria as economias nacionais, dificultaria a biopirataria e asseguraria a

    sustentabilidade dos ecossistemas.

    Vários estudos têm apontado que os atuais regimes de propriedade intelectual,

    com as suas patentes e meios de proteção de obtenções genéticas, marcas, desenhos e

    direitos de autor, não são capazes de proteger o conhecimento tradicional da maneira

    eficaz.

  • 25

    Os regimes atuais protegem direitos individuais de propriedade, enquanto a

    propriedade do conhecimento tradicional é, em geral, coletiva. O conhecimento

    tradicional se desenvolve e evoluciona através do tempo e está registrado em textos

    antigos, ou retido na tradição oral, transmitida de geração a geração, e, portanto, não se

    reveste dos atributos da inovação, necessários para a concessão das patentes. Além da

    impossibilidade de comprovar a inovação, os detentores de conhecimentos tradicionais

    enfrentam outras dificuldades para proteger os seus direitos através dos sistemas de

    propriedade intelectual, como a falta de recursos financeiros para cobrir o alto custo das

    solicitações de patentes.

    Diante disso, existe atualmente um consenso sobre a necessidade de desenvolver

    novos critérios e medidas, tais como sistemas sui generis que combinem, de maneira

    apropriada, instrumentos para a proteção do conhecimento tradicional a nível nacional e

    internacional, e que sejam criados com a efetiva participação das comunidades

    indígenas e locais relacionadas.

    No campo da saúde, o conhecimento tradicional desempenha um papel

    fundamental no que diz respeito ao atendimento básico nos países em desenvolvimento.

    Xiaorui Zhang (apud RAJA, 2004), especialista da Organização Mundial de Saúde,

    assinala que, no ano de 2000, o montante gerado pelo mercado mundial de

    medicamentos e produtos baseados em ervas foi estimado em 60 bilhões de dólares.

    Zhang destacou as dificuldades de proteger os remédios tradicionais utilizando

    os instrumentos convencionais dos sistemas de proteção dos direitos de propriedade

    intelectual, uma vez que as ervas medicinais são simples plantas sobre as quais não se

    pode reivindicar novos elementos químicos nem inovações.

    Atualmente, são realizados esforços na América Latina, África e Ásia, no

    sentido de aplicar atuais instrumentos de propriedade intelectual e de desenvolver

    sistemas sui generis para a proteção do conhecimento tradicional, juntamente com

    iniciativas relacionadas ao acesso, ao registro e à distribuição dos benefícios desse tipo

    de conhecimento. Em países como a Índia, o Panamá, Peru e a Venezuela, documenta-

    se o conhecimento tradicional utilizando-se bases de dados e registros com objetivos

    diversos, desde preservar esse conhecimento dentro das comunidades locais, até

    estabelecer direitos para produzir e vender artesanato a nível nacional.

    A UNCTAD observa ainda que a Organização Mundial do Comércio e, em

    particular, o TRIPS não mencionam o conhecimento tradicional. Por isso, alguns dos

    países em desenvolvimento propõem que, nas solicitações de patentes, seja exigido

  • 26

    revelar a fonte dos recursos genéticos e do conhecimento tradicional utilizado na

    invenção, bem como anexar provas do consentimento prévio e distribuir os benefícios

    dela resultantes.

    Enquanto medidas efetivas não são postas em prática, empresas transnacionais

    continuam fazendo numerosos registros de patentes, cujas supostas inovações têm por

    base o conhecimento tradicional utilizado em comunidades locais durante séculos.

    2.3 Pirataria do conhecimento tradicional

    Um dos inúmeros casos que ilustram a pirataria do conhecimento tradicional

    consiste na patente obtida pela Monsanto sobre uma variedade de trigo oriunda da Índia

    e conhecida como Nap-Hal. Trata-se de uma variedade indiana de cultivo tradicional

    que apresenta características únicas. Em 1988, uma revista científica publicou um artigo

    sobre as propriedades do trigo Nap-Hal para a culinária. Os pesquisadores descobriram

    que a farinha obtida a partir dessa planta faz com que as massas, principalmente as de

    biscoitos, fiquem mais crocantes.

    Esse tipo de trigo foi desenvolvido originalmente na Índia pelos próprios

    agricultores para a sua subsistência. No entanto, em 21 de maio de 2003, a Oficina

    Européia de Patentes de Munique outorgou uma patente à Monsanto, sob a inscrição EP

    445 929 e sob o título Plantas. Com essa patente, a Monsanto tornou-se a detentora

    exclusiva dos direitos sobre o Nap-Hal e depois o cruzou com outros tipos de trigo,

    mais comuns. A patente aplica-se agora aos biscoitos e à massa produzidos a partir

    dessa espécie de trigo e também às plantas em questão.

    Esse caso ilustra o tipo de raciocínio monopolista pelo qual se guiam certas

    empresas e que não se detém diante das variedades tradicionais, cultivadas mediante

    técnicas convencionais. No futuro, a companhia que tenha essa patente poderá iniciar

    ações legais não só contra os agricultores, mas também contra as padarias, confeitarias e

    os supermercados que produzam ou vendam biscoitos ou bolos fabricados com o trigo

    patenteado, prejudicando lavradores e produtores locais.

    Para conseguir a patente, a Monsanto recorreu a uma reserva de germoplasma na

    Grã-Bretanha, onde há armazenado o Nap-Hal. Não é tão incomum que exista essa

    semente armazenada em bancos de genes fora da Índia. De fato, podem ser encontradas

    amostras dela em coleções das autoridades agrícolas de países como Estados Unidos,

  • 27

    Japão e também na Europa. As empresas multinacionais têm acesso irrestrito a esses

    bancos de sementes.

    Uma vez que se tenha acesso à variedade específica, deve-se determinar o

    genótipo da característica cobiçada. No caso do Nap-Hal, trata-se das qualidades

    especiais para a crocância de massas de biscoitos, pães e bolos. Depois de traçada a

    seqüência genética, a Monsanto cruzou essa planta com outra variedade, utilizando

    técnicas tradicionais, e o resultado - uma combinação natural de genes - é finalmente

    patenteado pela multinacional. Desse modo, a Monsanto tem o monopólio das plantas

    de Nap-Hal, bem como das plantas de trigo cruzadas com a variedade indiana.

    Outro caso que exemplifica a pirataria do conhecimento tradicional deu-se em

    agosto de 2000, quando a companhia Du Pont obteve da Oficina Européia de Patentes a

    patente EP 744 888, que cobre todas as plantas de milho, cultivadas de forma natural ou

    convencional, com uma determinada proporção de óleo e ácidos graxos. A Du Pont

    reclamou a patente de toda a cadeia de produção.

    No entanto, alguns pedidos dessa transnacional foram rejeitados numa audiência

    realizada em fevereiro de 2003, pois pesquisas revelaram que já existiam outras

    variedades naturais de milho com alto teor de óleo e ácidos graxos e que podiam ser

    igualmente produzidas por métodos convencionais de cultivo.

    Os institutos de pesquisa mostraram que esse tipo de milho já era cultivado. Nas

    Américas Central e do Sul, onde esse produto tem uma importância fundamental tanto

    para a economia quanto para a alimentação diária da população e onde existe uma

    enorme diversidade de plantas, há sinais claros de que este tipo de milho já era cultivado

    e utilizado há muito tempo.

    Para uma grande empresa, a fórmula para obter êxito com o registro de uma

    patente é simples. Deve identificar uma característica presente numa variedade

    tradicional, desenvolvida durante séculos por agricultores. Em seguida, deve buscar o

    genótipo, ou seja, o conjunto de genes que define essa qualidade peculiar. E, por fim,

    cruzá-lo com a variedade de que se dispõe, a qual, por sua vez, é derivada de alguma

    planta desenvolvida por métodos antigos ou tradicionais. O resultado obtido é

    propriedade de quem seguiu esses passos, só falta patenteá-lo.

    Um outro exemplo nos mostra o conhecimento tradicional livre, desenvolvido ao

    longo dos séculos pelas comunidades locais e por elas utilizado livremente - já que

    constitui um conhecimento pertencente a todos - seguido, porém, do patenteamento por

    parte de multinacionais. Trata-se do nim, Azadirachta indica, uma árvore nativa da

  • 28

    Índia, que há séculos constitui uma fonte de biopesticidas e remédios. Em determinadas

    regiões desse país, as pessoas consomem, na alimentação, os brotos do nim; em outras,

    essa árvore é considerada sagrada; e, por todo o território, utiliza-se o datun, uma

    escova de dentes feita com o nim, a qual contém propriedades medicinais e bactericidas.

    Vários outros produtos baseados nessa planta são fabricados há décadas na Índia. A

    Organização Khadi, das indústrias artesanais da Índia, bem como a Comissão de

    Indústrias dos Povoados usam e vendem produtos derivados do nim há quarenta anos.

    Também foram lançados por outros empreendedores biopesticidas fabricados a partir

    dessa planta, como o Indiara. Já a Calcutta Chemicals, empresa química local, há

    décadas fabrica, com o princípio ativo dessa planta, uma pasta de dentes.

    Assim, durante aproximadamente dois mil anos, biopesticidas e remédios à base

    de nim têm sido fabricados na Índia. O conhecimento dessa planta e de que maneiras

    poderia ser aproveitada foi sendo desenvolvido ao longo de todo este tempo; dessa

    forma, diversos e complexos processos foram desenvolvidos a fim de utilizar a planta

    para vários fins, muito embora os seus ingredientes ativos não tenham sido batizados

    com nomes científicos derivados do latim.

    O Comitê Central de Inseticidas da Índia, com apoio na Lei sobre inseticidas, de

    1968, não registra produtos confeccionados à base de nim, independentemente do

    processo utilizado, pois considera o conhecimento e o uso dessa planta como algo

    comunitário. E alega que os materiais provenientes da planta tem sido largamente

    utilizados, para diversos fins, na Índia, desde tempos imemoriais.

    Desse modo, a biodiversidade oferece ao ser humano diversos recursos e

    propriedades que ele pode utilizar a fim de satisfazer as suas necessidades, ao mesmo

    tempo em que ele se encarrega de criar e aperfeiçoar os processos necessários à eficaz

    utilização do recurso natural. No caso do nim, o conhecimento de que a árvore tem

    propriedades medicinais e biopesticidas constitui, conforme a terminologia empregada

    por Shiva, um “metaconhecimento”, ou seja, um conhecimento de determinados

    princípios ao alcance de todos os indivíduos de uma comunidade. A partir desse

    conhecimento, diversos processos e técnicas são desenvolvidos e empregados para

    preparar produtos à base de nim. Isto é o que a autora chama de “microconhecimento”,

    o conhecimento relacionado com a modificação de processos e técnicas para a feitura de

    um produto. (SHIVA, 2001, p. 97).

    O que acontece por vezes, entretanto, é que esse conhecimento livre,

    desenvolvido ao longo do tempo de acordo com as necessidades de um povo e com os

  • 29

    recursos de que dispõe, é utilizado por grandes empresas estrangeiras, que o privatizam,

    com o respaldo dos direitos de propriedade intelectual, e dele auferem lucro, ao passo

    que excluem os demais, inclusive os seus legítimos criadores, de sua utilização. É então

    que se dá a biopirataria, forma de usurpação dos recursos e da cultura de um povo.

    Foi assim que, nos últimos anos, o nim também foi objeto do interesse de

    empresas americanas e japonesas, as quais, desde 1985, obtiveram, nos Estados Unidos,

    mais de doze patentes para soluções e emulsões à base de nim. Ao menos quatro dessas

    patentes pertenciam à W.R. Grace Corporation, três à Native Plant Institute, ambas dos

    Estados Unidos, e duas à Terumo Corporation, do Japão.

    A W.R. Grace, de posse de suas patentes e com a perspectiva de uma licença a

    ser concedida pela Environmental Protection Agency (EPA), começou a fabricar e

    comercializar seus produtos à base de nim, estabelecendo uma sede na Índia. Esta

    empresa procurou vários fabricantes locais, propondo a compra de sua tecnologia e

    tentando convencê-los a cessar a produção de produtos manufaturados e a, em vez

    disso, apenas fornecer matéria-prima.

    A justificativa da W. R. Grace para a obtenção de suas patentes baseava-se na

    tese de que o seu processo de extração do nim constituía uma autêntica inovação:

    Embora o conhecimento tradicional tenha inspirado a pesquisa e o

    desenvolvimento que levaram às composições e processos patenteados, estes

    foram considerados suficientemente novos e diferentes do produto original

    da natureza e do método de uso tradicional para permitir o patenteamento.

    (W. R. GRACE CORPORATION apud SHIVA, 2001, p. 97).

    Portanto, a empresa, com a finalidade de patentear, estabelecendo exclusividade

    sobre a exploração de um produto, alega que suas técnicas são novas e que constituem

    um avanço em relação às já existentes, criadas pela comunidade local, que são então

    consideradas rudimentares. No entanto, a concessão da patente é ilegítima, pois a

    empresa estrangeira não faz mais que se apropriar da criatividade da natureza e da

    cultura de outro povo. As inovações que realizou são meras modificações de detalhes, e

    não criação de algo verdadeiramente novo. São as espécies vivas, no caso, o nim, a

    fonte criadora das propriedades específicas, e são as comunidades locais a fonte

    criadora do conhecimento que permitiu o uso dessas propriedades.

    Essa questão se relaciona ainda com a noção de valor. Se o valor é reconhecido

    apenas quando associado ao capital, a modificação de técnicas e processos agrega valor,

    em vista do investimento realizado - com o propósito de ser ressarcido depois e gerar

    lucro. É nesse sentido que se menospreza o valor das fontes - recursos biológicos e

  • 30

    conhecimento nativo - muito embora o valor do produto dependa muito mais da fonte

    do que da técnica utilizada.

    Os direitos de propriedade intelectual, por sua vez, legalizam essa privatização

    da biodiversidade e do conhecimento pertencente às terras comunitárias intelectuais,

    além de criar obstáculos ao acesso de recursos genéticos no mundo inteiro, uma vez que

    encarece as sementes e as torna inacessíveis aos agricultores do mundo em

    desenvolvimento. O conceito atual de inovação, que justifica o sistema de patentes,

    impede que a criatividade dos agricultores e das comunidades locais, que desenvolvem

    variedades de plantas e outros produtos e técnicas, seja protegida contra a pirataria.

    2.4 Convenção da Diversidade Biológica

    No que concerne ao tratamento da questão da biopirataria no plano internacional,

    mencionaremos um acordo, o qual foi o resultado de debates realizados acerca do

    acesso à biodiversidade. Trata-se da Convenção da Diversidade Biológica (CDB),

    elaborada pela comunidade internacional após dois anos de intensos debates a respeito

    do problema do acesso à biodiversidade e que foi assinada por mais de 140 países

    quando de sua apresentação na Convenção das Nações Unidas para o Meio Ambiente e

    Desenvolvimento, a Eco-92, realizada no Rio de Janeiro. Atualmente, a CDB encontra-

    se ratificada por 180 países, incluído o Brasil.

    Alguns de seus dispositivos tratam especificamente da questão da pirataria do

    conhecimento tradicional, pelo que julgamos necessária uma menção a esse intento de

    vários países de discutir e elaborar soluções para o problema que ora nos ocupa.

    A fim de que seja desenvolvido - e patenteado - um produto a partir de quaisquer

    recursos biológicos, é preciso um estudo prévio acerca da planta ou animal que

    disponibilizará o princípio ativo útil à confecção deste produto. São necessárias,

    portanto, investigações para que se descubra um ser vivo portador de algum princípio

    ativo interessante. Ao conjunto de pesquisas que tenham essa finalidade dá-se o nome

    de bioprospeccção.

    Nesta tarefa, obter-se-á maior ou menor êxito conforme a metodologia utilizada,

    a qual pode ser a bioprospecção aleatória, bioprospecção racional, ou a

    etnobioprospecção. A primeira delas consiste na coleta ao acaso de plantas, método esse

    que apresenta reduzido grau de êxito, em torno de 1/10.000. A bioprospecção racional

    proporciona melhores resultados ao adotar critérios como a pertinência a um

  • 31

    determinado grupo de espécies cujas propriedades já são conhecidas, comparando-se

    suas características, como o formato das folhas, por exemplo.

    No entanto, o método que oferece o maior grau de êxito e reduz

    consideravelmente o custo e o tempo das pesquisas científicas para o desenvolvimento

    de um determinado produto, é a etnobioprospecção, ou seja, o conhecimento das

    propriedades de plantas e animais obtido a partir das comunidades locais.

    Nesse sentido, a CDB adquire relevância pelo pioneirismo no tratamento da

    questão do acesso à diversidade biológica e, conseqüentemente, do combate às

    atividades ilegítimas de bioprospecção.

    No seu preâmbulo, a CDB reconhece o valor da biodiversidade e de seus vários

    componentes - ecológicos, genéticos, sociais, científicos, educativos, culturais,

    recreativos e estéticos - e preconiza-os como essenciais ao desenvolvimento

    socioeconômico dos países periféricos e à erradicação da pobreza.

    O artigo 1º, sobre o qual repousam todos os demais princípios da convenção,

    estabelece a conservação da diversidade biológica, a utilização sustentável de seus

    componentes e a repartição justa e eqüitativa dos benefícios oriundos da utilização

    sustentável dos recursos genéticos, mediante o adequado acesso a estes e a transferência

    de tecnologia por parte dos países desenvolvidos.

    No que se refere especificamente à pirataria do conhecimento tradicional, o

    artigo 8j determina que, em conformidade com a legislação nacional, deve-se respeitar,

    preservar e manter o conhecimento, as inovações e práticas das comunidades locais e

    populações indígenas com estilos de vida tradicionais, relevantes à conservação e

    utilização sustentável da diversidade biológica; deve-se, ainda, incentivá-las mais

    amplamente, através da exigência de sua aprovação e participação para a utilização

    desse conhecimento, inovações e práticas; e, finalmente, deve-se encorajar a repartição

    eqüitativa dos benefícios provenientes dessa utilização.

    Portanto, no que tange ao combate à pirataria do conhecimento tradicional, as

    diretrizes da CDB implicam um compromisso dos países signatários no sentido de

    envidar esforços para a implementação de duas medidas básicas quando da utilização

    desse tipo de conhecimento, quais sejam, a aprovação prévia por parte das comunidades

    tradicionais e o seu direito à participação nos benefícios daí advindos.

    No mais, tem sido criticada a forma como foi tratada pela CDB a questão das

    patentes e da proteção aos direitos de propriedade intelectual, dada a pouca precisão

  • 32

    com que o acordo internacional trata este assunto, ensejando uma multiplicidade de

    interpretações por vezes conflitantes.

    Num âmbito mais geral, existe a dificuldade de concretização dos princípios

    contidos na convenção, devido ao seu caráter de mero compromisso entre os signatários,

    sem a possibilidade de aplicação de sanções.

    Ademais, a disparidade de condições e interesses entre os países e a ausência de

    uma maior união e cooperação entre os países em desenvolvimento constituem grandes

    empecilhos no combate à bioprospecção ilegítima. De fato, parecem ser mais vantajosas

    para as nações desenvolvidas a prática da pirataria de recursos biológicos e a indevida

    utilização do conhecimento tradicional, e um bom exemplo disso é o fato de que os

    Estados Unidos não figuram como signatários do tratado.

    Nessa conjuntura, torna-se imprescindível a cooperação internacional a que

    alude a CDB em seus artigos 23 a 25, e a junção de esforços por parte dos países do sul,

    a fim de terem maior relevância no cenário internacional e fazerem valer a sua vontade.

  • 33

    Capítulo 3

    Globalização e colonização

    O modelo por nós criticado no primeiro capítulo - o qual reduz a criatividade

    bem como o conhecimento a um modelo oficial, digno de proteção por meio dos

    direitos de propriedade intelectual e que tende a considerar os componentes mínimos

    dos seres vivos, destacando-os do todo, ao excluir outras formas de conhecimento e

    interferir tanto na natureza, a ponto de homogeneizar culturas, engendra o que se

    poderia denominar terceira onda de globalização.

    No entanto, antes de abordar o que se poderia considerar a colonização vivida

    nos tempos de hoje, façamos um histórico de outros modos de colonização que foram

    praticados ao longo da história. Todos eles refletem, mais ou menos, o mesmo

    pensamento, o qual continua, entretanto, sendo concretizado, através de práticas

    diversas ao longo do tempo.

    3.1 Mentalidade colonizadora

    Segundo Shiva, as noções eurocêntricas de propriedade e pirataria são as bases

    sobre as quais as leis de DPI do GATT e da Organização Mundial do Comércio foram

    formuladas. Quando os europeus colonizaram o resto do mundo pela primeira vez,

    acreditavam que era seu dever descobrir, ocupar, subjugar e possuir. Ao que parece, é

    ainda esse impulso colonizador de descobrir, conquistar e possuir todas as culturas o

    que move os poderes ocidentais. “As colônias foram agora estendidas aos espaços

    interiores, aos códigos genéticos do seres vivos, desde micróbios e plantas, até animais,

    incluindo seres humanos.” (Ibid., p. 25 e 26).

    Vejamos, primeiro, quais são essas noções eurocêntricas. Sua origem é antiga,

    remonta a mais de quinhentos anos atrás, quando da primeira colonização empreendida

    pelo velho continente. Em 17 de abril de 1492, os reis católicos Isabel de Castilha e

    Fernando de Aragão concediam, com o respaldo da Igreja Católica, os direitos de

    descoberta e conquista a Cristóvão Colombo. O papa, investido de caráter cristão-

    divino, era a autoridade idônea para conceder aos monarcas católicos os privilégios de

    conquista de novas terras e povos. Em 4 de maio de 1493, o papa Alexandre VI, através

  • 34

    da Bula de Doação, concedia aos reis de Espanha todas as ilhas e territórios firmes,

    descobertos e por descobrir, cem léguas a oeste e ao sul dos Açores, em direção à Índia

    e ainda não ocupadas ou controladas por algum rei ou príncipe cristão até o final de

    1492.

    Assim, tanto o papa, como os monarcas católicos, respaldados por aquele,

    consideravam o mundo como sua propriedade, algo a que tinham direito e de que

    podiam dispor, usufruir como lhes aprouvesse. O fato de ser europeu - e, por

    conseguinte, civilizado - assim como cristão legitimava o domínio e a exploração de

    outros povos e territórios, nem que para isso fossem necessários o seu extermínio e

    espoliação.

    Naquela época, o instrumento formal para essa legitimação eram as bulas papais,

    cartas dogmáticas que concediam privilégios. Hoje em dia, a espoliação de outros povos

    também tem o seu instrumento formal legitimador, qual seja, os direitos de propriedade

    intelectual. Poder-se-ia então fazer uma comparação entre a colonização implementada

    há mais de quinhentos anos e a situação que está sendo forjada atualmente. A ocupação

    pelos monarcas foi substituída pela ocupação realizada por empresas transnacionais,

    tolerada pelos governantes. A suposta vacância dos territórios foi substituída pela

    vacância de espécies vivas modificadas pela biotecnologia, o dever de converter os

    selvagens ao cristianismo foi substituído pelo dever de incorporar economias locais e

    nacionais ao mercado globalizado, bem como substituir sistemas alternativos de

    conhecimento pela ciência e tecnologia mercantilizadas.

    3.2 Primeira globalização

    A primeira globalização, levada a cabo pela Europa no continente que passou a

    chamar-se América, além de uma colonização de terras e culturas, foi também uma

    colonização da natureza. Esta passou a ser percebida de outra forma pela mente

    européia: de sistema vivo e auto-organizado passou a representar simplesmente matéria-

    prima, objeto de exploração e controle, inerte e manipulável, para a fabricação de

    mercadorias e para o comércio.

    Com esse mesmo pensamento, as culturas não-européias eram alvo de controle.

    À natureza negava-se a sua capacidade de auto-organização e a sua necessidade de

    regeneração ao tratá-la como matéria inerte, a ser explorada e manipulada segundo os

  • 35

    fins estabelecidos pela mentalidade colonizadora. Essa mesma violência usada contra a

    natureza foi aplicada contra os povos nativos: tanto estes quanto aquela, possuidores de

    uma organização que lhes era própria, representavam uma ameaça; eram, pois,

    considerados selvagens, ou fora de controle. O diferente era, assim, visto como ameaça

    a ser expurgada, e, ao mesmo tempo, como indigno de existir; a auto-organização de

    outros sistemas era percebida como caos, ao qual os europeus tinham praticamente a

    obrigação de impor a sua própria ordem, ainda que de maneira coerciva e violenta, a fim

    de possibilitar o aperfeiçoamento e a civilização do outro. A ordem intrínseca deste era,

    então, perturbada e, finalmente, destruída.

    Foi dessa forma que, à medida que os europeus descobriam os nativos da

    América, África e Ásia, identificavam-nos como selvagens, desprovidos de uma

    organização idônea e que, portanto, necessitavam ser redimidos pela raça superior

    européia. A adoção de seu modelo como o único correto, em meio a tantos outros,

    justificava atos como a dominação, a invasão e a escravidão.

    O medo do que é selvagem e da diversidade que lhe é característica relaciona-se

    estreitamente, portanto, com a necessidade de subjugação não somente do mundo

    natural, mas também das sociedades que se regem por outros princípios e se organizam

    de outros modos. Nessa linha, por exemplo, Robert Boyle, um famoso cientista e diretor

    da New England Company por volta de 1760, via a ascensão da filosofia mecanicista

    como uma forma de poder sobre a natureza e os habitantes originais da América.

    Declarava suas idéias de que urgia livrar os índios da Nova Inglaterra, nos Estados

    Unidos, de suas noções absurdas a respeito dos fenômenos da natureza, assim como

    atacava a concepção indígena da natureza considerada como uma deusa e afirmava: “a

    veneração de que estão imbuídos os homens por aquilo a que chamam natureza é um

    obstáculo ao império do homem sobre as criaturas inferiores de Deus.” (BOYLE apud

    SHIVA, 2001, p. 132). Ou seja, o que se buscava era o império do homem e a

    conseguinte subjugação da natureza, em substituição a um sistema em que os seres

    humanos eram incluídos na dinâmica do pluralismo e da diversidade natural.

    Com base nisso, justificava-se a colonização. A negação da autonomia da

    natureza e da legitimidade das sociedades que a respeitavam e reverenciavam como algo

    sagrado facilitava a exploração desmedida e a dominação com o fim de auferir lucro.

    Em todo esse processo, ocorrido há mais de quinhentos anos, a Igreja Católica

    desempenhou um importante papel, autorizando os monarcas europeus a atacarem e

  • 36

    subjugarem os pagãos e a apropriarem-se de seus bens e territórios. Ajuntava-se, pois, a

    conivência divina como mais uma relevante justificativa para a dominação. Dessa

    forma, milhões de seres humanos e várias outras espécies vivas perderam o direito de

    existir durante a primeira onda de globalização.

    3.3 Segunda globalização

    A segunda onda de globalização surgiu a partir da ideologia do desenvolvimento

    como impreterível necessidade. O processo de desenvolvimento - apesar dessa palavra

    sugerir evolução de dentro para fora (de fato, até meados do século XX foi sinônimo de

    evolução a partir de auto-organização) - passou a ser imposto, em vez de auto-gerado;

    passou a ser guiado de fora, ao invés de surgir de dentro. Com a ajuda oferecida por

    poderosas instituições financeiras, tais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário

    Internacional, foram também impostas prioridades e padrões dos países do norte, como

    meio supostamente hábil a fomentar o desenvolvimento dos países do sul, o que

    contribuiu, uma vez mais, para a homogeneização e a uniformidade.

    Um exemplo cabal desse paradigma do desenvolvimento homogeneizador é a

    Revolução Verde. Esta consistiu numa transformação operada na agricultura, a partir

    dos anos de 1950, por meio da introdução de tecnologia básica e de um conjunto de

    práticas e insumos agrícolas, de modo que ficasse assegurada a alta produtividade no

    campo. Assim, tiveram origem as sementes de Variedades de Alto Rendimento (VAR),

    as quais substituíram as sementes crioulas, até então bastante utilizadas na agricultura

    tradicional. Com a substituição das sementes crioulas, diminuiu drasticamente a

    diversidade de espécies agrícolas em todo o mundo e, especialmente, nos países do

    terceiro mundo, onde se encontra a maior parte da biodiversidade do planeta. Diversos

    sistemas agrícolas de subsistência, adaptados aos diferentes ecossistemas, foram, dessa

    forma, destruídos ou prejudicados, globalizaram-se a cultura e a economia numa

    agricultura industrial e eliminaram-se culturas e variedades de plantas agrícolas, as

    quais foram substituídas por monoculturas. Os insumos internos e mecanismos de auto-

    controle e regeneração foram substituídos por insumos externos cada vez mais custosos,

    o que gerou dívidas para os agricultores e empobrecimento de ecossistemas, devido à

    extinção de espécies.

    Do ponto de vista histórico, pode-se explicar o desenvolvimento rural em geral

    e, em particular, a Revolução Verde - planejados por especialistas estrangeiros e

  • 37

    assistidos pelo capital estrangeiro - como um meio de estabilizar politicamente áreas

    rurais e de impedir que áreas de fora da China ficassem sob a influência da Revolução

    Vermelha.

    Pouco mais de duas décadas depois, essa homogeneização cultural e agrícola

    deixou à mostra danos ecológicos, políticos e culturais. No plano ecológico, a alta

    produtividade das monoculturas de cereais importou escassez aos ecossistemas; no nível

    político, novos conflitos surgiram; e, no plano cultural, em vez de render-se e deixar-se

    submergir no processo uniformizador da Revolução Verde, diversos grupos locais

    trataram de buscar o fortalecimento de sua identidade étnica. A Revolução Verde

    desencadeou, portanto, não apenas uma forma de violência contra a natureza, cuja

    diversidade é indispensável, mas, ao criar uma agricultura administrada de fora e

    controlada globalmente, também agiu com violência contra as comunidades locais.

    Assim, crises ecológicas e étnicas no terceiro mundo podem ser analisadas como

    emergindo de um conflito básico, gerado pela globalização: a necessidade local de

    diversidade, descentralização e democracia versus a imposição e exigência globais de

    centralização e uniformidade. A estratégia da Revolução Verde era centralizadora e

    implicava o controle da natureza e de povos; as suas conseqüências foram o colapso

    ecológico e político nas sociedades por ela oprimidas.

    O impacto ecológico causado pela Revolução Verde pode ser esclarecido pelo

    pressuposto em que se baseou essa transformação da agricultura, isto é, o pressuposto

    de que a tecnologia é capaz de substituir e suplantar os mecanismos de que dispõe a

    natureza e gerar resultados superiores em quantidade e qualidade; de que é uma forma

    de produzir mais e melhor, sem as limitações naturais.

    Entretanto, essa forma de encarar a natureza como fonte escassa e a tecnologia

    como fonte abundante leva à sucessiva criação de novas tecnologias, as quais, por sua

    vez, provocam escassez na natureza, devido à predação indiscriminada de seus recursos.

    As práticas da Revolução Verde dão exemplo disso, já que reduziram a variedade

    genética das culturas, o que resultou numa grande perda para a biodiversidade.

    As conseqüências nocivas da Revolução Verde como meio de se fomentar o

    desenvolvimento de fora para dentro não foram somente de cunho ecológico. A

    transição de sistemas agrícolas baseados em diversidade e insumos internos para

    sistemas de cultivo baseados em uniformidade e insumos externos alterou também a

    estrutura social e as relações políticas nos locais onde foi implantada. Antes, estas

    tinham por base as obrigações mútuas entre os indivíduos dentro dos povoados; após a

  • 38

    Revolução Verde, deram lugar às relações entre lavradores isolados e os seus bancos,

    agências de sementes e de fertilizantes. Os agricultores terminaram, assim, por

    enfraquecer normas e práticas culturais. Além disso, a escassez dos insumos fornecidos

    externamente ocasionou também conflitos e acirrou disputas entre regiões.

    A rápida e ampla introdução das tecnologias da Revolução Verde provocou o

    desajuste de estruturas sociais e políticas na Índia, por exemplo. Foi surgindo uma

    disparidade entre classes, ao passo que foi aumentando o mercantilismo das relações

    sociais. Houve, em função da Revolução Verde e de seus processos, a corrosão das

    normas sociais que regiam as sociedades tradicionais.

    A desestabilização social causada pelo desenvolvimento da Revolução Verde

    foi, inicialmente, encarada como um conflito de classes. Porém, à medida que os

    processos dessa transformação da agricultura se instalavam, as aspectos comunitários e

    étnicos adquiriam maior relevância nos conflitos que surgiam. Temos o exemplo do

    Punjab, onde, em 1984, dois extremistas sikhs assassinaram Indira Gandhi; como

    retaliação, dois mil sikhs foram massacrados em Nova Déli. Em 1986, 598 pessoas

    foram mortas no Punjab; um ano após, 1.544 pessoas foram assassinadas. Em 1988,

    mais três mil pessoas perderam a vida nesse conflito no Punjab. A modernização e o

    desenvolvimento impostos de fora às comunidades locais, perturbando a sua

    organização própria, podem, como no caso do Punjab, motivar o desejo de

    fortalecimento das identidades étnicas, tendo como conseqüência conflitos de ordem