KANT, Immanuel - Conflito Das Faculdades

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Immanuel KANT O CONFLITO DAS FACULDADES Textos Filosóficos edições 70

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KANT, Immanuel - Conflito Das Faculdades

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  • Immanuel KANT

    O CONFLITO DAS FACULDADES

    Textos Filosficos edies 70

  • Textos Filosficos Director da Coleco:

    ARTUR MORAO Professor no Departamento de Filosofia da Faculdade de Cincias

    Humanas da Universidade Catlica Portuguesa 1. Critica da Razio Pratica

    Immanuel Kant 2. investigao sobre o Entendimento Humano

    David Hume 3. Crepsculo dos dolos

    Friedrich Nietzche 4. Discurso de Metafsica Gottfried Whilheim Leibniz

    5. Os Progressos da Metafsica Immanuel Kant

    6. Regras para a Direco do Esprito Ren Descartes

    7. Fundamentao da Metafsica dos Costumes Immanuel Kant

    8. A Ideia da Fenomenologia Edmund Husserl

    9. Discurso do Mtodo Ren Descartes

    10. Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra como Escritor Soren Kierkegaard

    11. A Filosofia na Idade Trgica dos Gregos Friedrich Nietzche

    12. Carta sobre Tolerncia John Locke

    13. Prolegmenos a Toda a Metafsica Pura Immanuel Kant

    14. Tratado da Reforma do Entendimento Bento de Espinosa

    15. Simbolismo: Seu Significado e Efeito Alfred North Whitehead

    16. Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Conscincia Henri Bergson

    17. Enciclopdia das Cincias Filosficas em Epitome (vol. I) Georg Wilhelm Friedrich Hegel

    18. A Paz Perptua e Outros Opsculos Immanuel Kant

    19. Dilogo sobre a Felicidade Santo Agostinho

    20. Princpios sobre a Felicidade Ludwig Feurbach

    21. Enciclopdia das Cincias Filosficas em Epitome (vol. Ill Georg Wilhelm Friedrich Hegel

    22. Manuscritos Econmico-FUosficos Karl Marx

    23. Propedutica Filosfica Georg Wilhelm Friedrich Hegel

    24. O Anticristo Friedrich Nietzche

    25. Discurso sobre a Dignidade do Homem Giovanni Pico delia Mirandola

    26. EcceHomo Friedrich Nietzche

    27. O Materialismo Racionai Gaston Bachelard

    28. Princpios Metafsicos da Cincia da Natureza Immanuel Kant

    29. Dilogo de um Filsofo Cristo edeum Filsofo Chins Nicolas Malebranche

    30. O Sistema da Vida tica Georg Wilhelm Friedrich Hegel

    31. Introduo Histria da Filosofia Oeorg Wilhelm Friedrich Hegel 32. As Conferncias de Paris

    Edmund Husserl 33. Teoria das Concepes do Mundo

    Wilhelm Dilthey 34. A Religio nos Limites da Simples Razo

    Immanuel Kant 35. Enciclopdia das Cincias Filosficas em Epitome (vol. Ill)

    Georg Wilhelm Friedrich Hegel 36. Investigaes Filosficas Sobre a Essncia da Liberdade Humana

    F.W.J. Schilling

    O CONFLITO DAS FACULDADES

  • Titulo original: Der Streit der Fakultten

    desta traduo: Artur Moro e Edies 70, 1993

    Traduo: Artur Moro

    Capa de Edies 70

    Reviso tipogrfica dos servios de Edies 70

    Depsito Legal n? 67101/93

    ISBN 972-44-0883-3

    Todos os direitos reservados para lingua portuguesa por Edies 70, Lda., Lisboa PORTUGAL

    EDIES 70, LDA. Rua Luciano Cordeiro, 123-2? 1000 Lisboa Telefs.: 315 87 52 / 315 87 53

    Fax: 315 84 29

    Esta obra est protegida pela Lei. No pode ser reproduzida, no todo ou em parte,

    qualquer que seja o modo utilizado, incluindo fotocpia e xerocpia, sem prvia autorizao do Editor. Qualquer transgresso Lei dos Direitos de Autor ser

    passvel de procedimento judicial.

    Immanuel KANT

    O CONFLITO DAS FACULDADES

    edies 70

  • Titulo original: Der Streit der Fakultten

    desta traduo: Artur Moro e Edies 70, 1993

    Traduo: Artur Moro

    Capa de Edies 70

    Reviso tipogrfica dos servios de Edies 70

    Depsito Legal n? 67101/93

    ISBN 972-44-0883-3

    Todos os direitos reservados para lingua portuguesa por Edies 70, Lda., Lisboa PORTUGAL

    EDIES 70, LDA. Rua Luciano Cordeiro, 123-2? 1000 Lisboa Telefs.: 315 87 52 / 315 87 53

    Fax: 315 84 29

    Esta obra est protegida pela Lei. No pode ser reproduzida, no todo ou em parte,

    qualquer que seja o modo utilizado, incluindo fotocpia e xerocpia, sem prvia autorizao do Editor. Qualquer transgresso Lei dos Direitos de Autor ser

    passvel de procedimento judicial.

    Immanuel KANT

    O CONFLITO DAS FACULDADES

    edies 70

  • Dedicado pelo autor ao Senhor Cari Friedrich Studlin

    Doutor e Professor em Gotinga

    PREFCIO

    Que as pginas presentes, a que um governo ilus-trado, libertando o esprito humano das suas cadeias e, justamente graas a esta liberdade de pensar, quali-ficado para suscitar uma obedincia tanto mais pron-ta, possam tambm justificar ao mesmo tempo a liberdade, que o autor para si toma, de as fazer pre-ceder por um curto relato do que lhe diz respeito nesta alterao das coisas.

    O rei Frederico Guilherme II, soberano corajoso, honesto, filantropo e abstraindo de certas proprie-dades temperamentais de todo excelente, que tam-bm conhecia pessoalmente e me fazia chegar de tempos a tempos manifestaes da sua benevolncia, tinha publicado em 1788, por sugesto de um eclesis-tico promovido ulteriormente a ministro no mbito religioso, a quem no h em toda a justia nenhuma razo para atribuir outras intenes a no ser boas, fundadas na sua convico interior, um edito de reli-gio e, logo a seguir, um edito de censura que em geral limitava muito a actividade literria e, por con-seguinte, reforava tambm aquele. No pode negar-se que certos sinais precursores, que precederam a exploso ocorrida em seguida, devem ter recomendado ao governo a necessidade de uma reforma naquele

    9

  • NDICE

    Prefcio 9

    Primeira Parte

    O CONFLITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA COM A TEOLGICA Introduo 19 Diviso das Faculdades em geral 21

    I. Da Condio das Faculdades 23

    Seco I Conceito e Diviso das Faculdades superiores 23

    A. Peculiaridade da Faculdade teolgica 26 B. Peculiaridade da Faculdade de Direito 27 C. Peculiaridade da Faculdade de Medicina 29

    Seco II Conceito e Diviso da Faculdade inferior 30

    Seco III Do Conflito ilegal das Faculdades superiores com a inferior 33

    Seco IV Do Conflito legal das Faculdades superiores com a Faculdade inferior 37 Resultado 41

    Apndice: Elucidao do Conflito das Faculdades mediante o exemplo do Conflito entre a Faculdade de Teologia e a filosfica 43

    I. Matria do Conflito 43 II. Princpios filosficos da interpretao

    da Escritura para a resoluo do conflito 46 III. Objeces e respectiva resposta acerca dos

    princpios da interpretao da Escritura 54

    Observao geral 59 Das Seitas religiosas 59 Concluso da Paz e Resoluo da disputa das Faculdades 74

  • Apndice: Questes histrico-biblicas sobre o uso prtico e o tempo presumvel da durao deste Livro sagrado 83

    Apndice: De uma pura mistica na religio 85

    Segunda Parte

    O CONFLITO DA FACULDADE FILOSFICA COM A FACULDADE DE DIREITO Questo renovada: Estar o gnero humano em constante progresso para o melhor? 95

    1. Que se quer aqui saber? 95 2. Como que tal se pode saber? 95 3. Diviso do conceito do que se pretende conhecer pre-

    viamente como futuro 97 a. Da concepo terrorista da histria dos homens . . 97 b. Da concepo eudemonista da histria dos ho-

    mens 98 c. Da hiptese do abderitismo do gnero humano so-

    bre a predeterminao da sua histria 98 4. Pela experincia no possvel resolver imediatamen-

    te o problema do progresso 99 5. Importa, todavia, associar a qualquer experincia a

    histria proftica do gnero humano 100 6. De um acontecimento do nosso tempo que prova esta

    tendncia moral do gnero humano 101 7. Histria proftica da humanidade 104 8. Da dificuldade das mximas respeitantes progres-

    so para o melhor universal quanto sua publicidade 106

    9. Que lucro trar ao gnero humano o progresso para o melhor? 109

    10. Em que ordem apenas se pode esperar o progresso para o melhor? . . : . : . . . . . . . . 110

    Concluso 111

    Terceira Parte

    O CONFLITO DA FACULDADE FILOSFICA COM A FACULDADE DE MEDICINA Do poder que o nimo tem, pelo simples propsito, de ser senhor dos seus sentimentos mrbidos v 115 Uma carta de resposta ao Senhor Conselheiro ulico e Professor Ufeland 115

    Princpio da Diettica 119 1. Da hipocondria 122 2. Do sono 124 3. Do comer e do beber 127 4. Do sentimento mrbido derivado do pensamento em

    tempo inoportuno 129 5. Da supresso e do impedimento de acidentes doentios

    pela resoluo de interferir na respirao 130 6. Das consequncias do hbito de respirar com os lbios

    fechados 132 Concluso 133 Posfcio 135

  • Apndice: Questes histrico-biblicas sobre o uso prtico e o tempo presumvel da durao deste Livro sagrado 83

    Apndice: De uma pura mistica na religio 85

    Segunda Parte

    O CONFLITO DA FACULDADE FILOSFICA COM A FACULDADE DE DIREITO Questo renovada: Estar o gnero humano em constante progresso para o melhor? 95

    1. Que se quer aqui saber? 95 2. Como que tal se pode saber? 95 3. Diviso do conceito do que se pretende conhecer pre-

    viamente como futuro 97 a. Da concepo terrorista da histria dos homens . . 97 b. Da concepo eudemonista da histria dos ho-

    mens 98 c. Da hiptese do abderitismo do gnero humano so-

    bre a predeterminao da sua histria 98 4. Pela experincia no possvel resolver imediatamen-

    te o problema do progresso 99 5. Importa, todavia, associar a qualquer experincia a

    histria proftica do gnero humano 100 6. De um acontecimento do nosso tempo que prova esta

    tendncia moral do gnero humano 101 7. Histria proftica da humanidade 104 8. Da dificuldade das mximas respeitantes progres-

    so para o melhor universal quanto sua publicidade 106

    9. Que lucro trar ao gnero humano o progresso para o melhor? 109

    10. Em que ordem apenas se pode esperar o progresso para o melhor? . . : . : . . . . . . . . 110

    Concluso 111

    Terceira Parte

    O CONFLITO DA FACULDADE FILOSFICA COM A FACULDADE DE MEDICINA Do poder que o nimo tem, pelo simples propsito, de ser senhor dos seus sentimentos mrbidos v 115 Uma carta de resposta ao Senhor Conselheiro ulico e Professor Ufeland 115

    Princpio da Diettica 119 1. Da hipocondria 122 2. Do sono 124 3. Do comer e do beber 127 4. Do sentimento mrbido derivado do pensamento em

    tempo inoportuno 129 5. Da supresso e do impedimento de acidentes doentios

    pela resoluo de interferir na respirao 130 6. Das consequncias do hbito de respirar com os lbios

    fechados 132 Concluso 133 Posfcio 135

  • Dedicado pelo autor ao Senhor Cari Friedrich Studlin

    Doutor e Professor em Gotinga

    PREFCIO

    Que as pginas presentes, a que um governo ilus-trado, libertando o esprito humano das suas cadeias e, justamente graas a esta liberdade de pensar, quali-ficado para suscitar uma obedincia tanto mais pron-ta, possam tambm justificar ao mesmo tempo a liberdade, que o autor para si toma, de as fazer pre-ceder por um curto relato do que lhe diz respeito nesta alterao das coisas.

    O rei Frederico Guilherme II, soberano corajoso, honesto, filantropo e abstraindo de certas proprie-dades temperamentais de todo excelente, que tam-bm conhecia pessoalmente e me fazia chegar de tempos a tempos manifestaes da sua benevolncia, tinha publicado em 1788, por sugesto de um eclesis-tico promovido ulteriormente a ministro no mbito religioso, a quem no h em toda a justia nenhuma razo para atribuir outras intenes a no ser boas, fundadas na sua convico interior, um edito de reli-gio e, logo a seguir, um edito de censura que em geral limitava muito a actividade literria e, por con-seguinte, reforava tambm aquele. No pode negar-se que certos sinais precursores, que precederam a exploso ocorrida em seguida, devem ter recomendado ao governo a necessidade de uma reforma naquele

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  • campo; o que se deveria alcanar pela via pacfica da formao acadmica dos futuros mestres pblicos do povo, pois estes, como jovens eclesisticos, tinham elevado o seu discurso no plpito a um tom tal que quem compreende o chiste no se deixar decerto converter por semelhantes mestres.

    Ora no momento em que o edito de religio exercia uma viva influncia tanto sobre autores autctones como estrangeiros apareceu tambm o meu tratado intitulado A Religio nos Limites da Simples Ra-zox; e visto que eu, para no ser acusado de utilizar sendas secretas, ponho o meu nome em todos os meus escritos, foi-me dirigido, no ano de 1794, o seguinte rescrito real a cujo respeito estranho que, tendo eu feito conhecer a sua existncia apenas ao meu mais ntimo amigo, s agora, e no antes, foi conhecido do pblico.

    Frederico Guilherme, pela graa de Deus rei da Prssia, etc., etc. Antes de mais, a nossa graciosa saudao. Digno e muito erudito, caro sbdito! A nossa suprema pessoa constatou j h longo tempo com grande desgosto que fazeis um mau uso da vossa filosofia para deformar e degradar as doutrinas capi-tais e fundamentais da Sagrada Escritura e do cristia-nismo; que fizestes tal sobretudo no vosso livro A Religio nos Limites da Simples Razo, bem como noutros tratados mais pequenos. Espervamos melhor da Vossa parte; pois Vs mesmo deveis reconhecer de que modo irresponsvel agis assim contra o vosso dever, enquanto mestre da juventude, e contra as nossas intenes soberanas, que Vos so muito conhecidas.

    1 Este ttulo foi, pois, intencionalmente dado, para que o tratado no fosse interpretado como se houvesse de considerar a religio a partir da simples razo (sem revelao). Teria sido, de facto, uma pretenso dema-siada, porque poderia muito bem acontecer que as suas doutrinas ema-nassem de homens sobrenaturalmente inspirados; quis apenas apresentar numa conexo o que, no texto, da religio tida por revelada, a Bblia, po-de ser reconhecido tambm pela simples razo.

    10

    Exigimos quanto antes a mais escrupulosa justificao e esperamos de Vs, para evitar o nosso supremo desfa-vor, que no futuro no Vos torneis culpado de coisas semelhantes mas, ao invs, de harmonia com o vosso dever, utilizeis a vossa considerao e os vossos talentos para realizar cada vez mais a nossa inteno soberana; caso contrrio, e se persistirdes em ser refractrio, te-reis de esperar infalivelmente medidas desagradveis.

    Vosso afectuoso Rei. _ _, \J3H

    Berlim, 1 de Outubro de 1974 Por ordem especial muito graciosa de sua Majes-

    tade real: Wllner

    Ab extra Ao nosso digno e muito erudito Pro-fessor, o caro sbdito Kant, em Knigsberg na Prs-sia, praesentat. d. 12 de Outubro de 1794.

    A tal respeito enviei, da minha parte, a humlima resposta seguinte.

    Muito gracioso, etc., etc. A ordem suprema de Vossa Majestade real, que

    me foi dirigida a 1 de Outubro e me chegou a 12, im-pe-se como mais submisso dever, primeiro, fornecer uma justificao escrupulosa de ter utilizado abusi-vamente a minha filosofia para deformar e degradar muitas doutrinas capitais e fundamentais da Sagrada Escritura e do cristianismo, sobretudo no meu livro A Religio nos Limites da Simples Razo, bem como noutros tratados mais pequenos, e ainda da culpa em que teria incorrido por ter transgredido o meu dever, enquanto mestre da juventude, e contrariamente s intenes do soberano, de mim muito conhecidas.

    Em segundo lugar, tambm no incorrer no futuro em culpas semelhantes. Quanto aos dois

    11

  • campo; o que se deveria alcanar pela via pacfica da formao acadmica dos futuros mestres pblicos do povo, pois estes, como jovens eclesisticos, tinham elevado o seu discurso no plpito a um tom tal que quem compreende o chiste no se deixar decerto converter por semelhantes mestres.

    Ora no momento em que o edito de religio exercia uma viva influncia tanto sobre autores autctones como estrangeiros apareceu tambm o meu tratado intitulado A Religio nos Limites da Simples Ra-zox; e visto que eu, para no ser acusado de utilizar sendas secretas, ponho o meu nome em todos os meus escritos, foi-me dirigido, no ano de 1794, o seguinte rescrito real a cujo respeito estranho que, tendo eu feito conhecer a sua existncia apenas ao meu mais ntimo amigo, s agora, e no antes, foi conhecido do pblico.

    Frederico Guilherme, pela graa de Deus rei da Prssia, etc., etc. Antes de mais, a nossa graciosa saudao. Digno e muito erudito, caro sbdito! A nossa suprema pessoa constatou j h longo tempo com grande desgosto que fazeis um mau uso da vossa filosofia para deformar e degradar as doutrinas capi-tais e fundamentais da Sagrada Escritura e do cristia-nismo; que fizestes tal sobretudo no vosso livro A Religio nos Limites da Simples Razo, bem como noutros tratados mais pequenos. Espervamos melhor da Vossa parte; pois Vs mesmo deveis reconhecer de que modo irresponsvel agis assim contra o vosso dever, enquanto mestre da juventude, e contra as nossas intenes soberanas, que Vos so muito conhecidas.

    1 Este ttulo foi, pois, intencionalmente dado, para que o tratado no fosse interpretado como se houvesse de considerar a religio a partir da simples razo (sem revelao). Teria sido, de facto, uma pretenso dema-siada, porque poderia muito bem acontecer que as suas doutrinas ema-nassem de homens sobrenaturalmente inspirados; quis apenas apresentar numa conexo o que, no texto, da religio tida por revelada, a Bblia, po-de ser reconhecido tambm pela simples razo.

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    Exigimos quanto antes a mais escrupulosa justificao e esperamos de Vs, para evitar o nosso supremo desfa-vor, que no futuro no Vos torneis culpado de coisas semelhantes mas, ao invs, de harmonia com o vosso dever, utilizeis a vossa considerao e os vossos talentos para realizar cada vez mais a nossa inteno soberana; caso contrrio, e se persistirdes em ser refractrio, te-reis de esperar infalivelmente medidas desagradveis.

    Vosso afectuoso Rei. _ _, \J3H

    Berlim, 1 de Outubro de 1974 Por ordem especial muito graciosa de sua Majes-

    tade real: Wllner

    Ab extra Ao nosso digno e muito erudito Pro-fessor, o caro sbdito Kant, em Knigsberg na Prs-sia, praesentat. d. 12 de Outubro de 1794.

    A tal respeito enviei, da minha parte, a humlima resposta seguinte.

    Muito gracioso, etc., etc. A ordem suprema de Vossa Majestade real, que

    me foi dirigida a 1 de Outubro e me chegou a 12, im-pe-se como mais submisso dever, primeiro, fornecer uma justificao escrupulosa de ter utilizado abusi-vamente a minha filosofia para deformar e degradar muitas doutrinas capitais e fundamentais da Sagrada Escritura e do cristianismo, sobretudo no meu livro A Religio nos Limites da Simples Razo, bem como noutros tratados mais pequenos, e ainda da culpa em que teria incorrido por ter transgredido o meu dever, enquanto mestre da juventude, e contrariamente s intenes do soberano, de mim muito conhecidas.

    Em segundo lugar, tambm no incorrer no futuro em culpas semelhantes. Quanto aos dois

    11

  • pontos, no deixo de pr aos ps de Vossa Majestade a prova da minha mais humilde submisso na decla-rao seguinte:

    No tocante ao primeiro, a saber, a acusao contra mim levantada, eis a minha justificao escru-pulosa:

    Enquanto mestre da juventude, i.e., tanto quanto entendo, jamais interpolei ou me foi possvel interpo-lar, em lies acadmicas, uma apreciao da Sagrada Escritura e do cristianismo; o que j demons-tram os manuais de Baumgarten que tomei como base, os nicos que poderiam ter alguma relao com semelhante exposio. Neles no se inclui sequer um ttulo que se refira Bblia e ao cristianismo e, enquanto filosofia pura, tambm o no poderiam incluir; menos ainda me pode ser censurado o erro de divagar para l dos limites da cincia proposta, ou de os confundir, pois sempre o denunciei e contra ele admoestei.

    Como educador do povo, em escritos, sobretudo no livro A Religio nos Limites, etc., nunca fui con-tra as intenes supremas e soberanas, de mim muito conhecidas, i.e., no causei dano religio pblica do pas; o que j evidente em virtude de esse livro no ser para tal apropriado, antes um livro ininteli-gvel e ocluso para o pblico e representa somente uma disputa entre eruditos da Faculdade, disputa de que o povo nada sabe; mas, a este respeito, as pr-prias Faculdades permanecem livres para publicamen-te julgar, segundo o seu melhor saber e conscincia; e que s os mestres populares constitudos (nas escolas e nos plpitos) esto vinculados ao resultado destas discusses que a autoridade do pas sanciona em vista da exposio pblica; e, sem dvida, porque a ltima no inventou ela prpria a sua f religiosa peculiar, mas conseguiu obt-la apenas pelo mesmo caminho, a saber, o exame e a rectificao pelas Faculdades com-petentes (a teolgica e a filosfica), por conseguinte, o poder soberano no s est autorizado a admitir

    12

    estas, mas tambm a delas exigir que, pelos seus es-critos, tragam ao conhecimento do governo tudo o que elas acham benfico para uma religio pblica do pas.

    No livro supra mencionado, porque no contm qualquer apreciao do cristianismo, no, pude tor-nar-me culpado de uma sua depreciao: com efeito, ele s encerra, em vigor, a apreciao da religio na-tural. A semelhante falsa interpretao apenas pode ter dado aso a citao de algumas passagens bblicas, para confirmar certas doutrinas puramente racionais da religio. Mas o falecido Michaelis, que assim pro-cedia na sua moral filosfica, explicou-se j a este respeito, ao afirmar que de nenhum modo intentava introduzir assim algo de bblico na filosofia nem de extrair algo de filosfico da Bblia, mas conferir somente s suas proposies racionais claridade e cor-roborao mediante a consonncia verdadeira ou pre-tensa com outros juzos (talvez de poetas e oradores). Mas se a razo se expressa ento como se a si mesma se bastasse e a Revelao fosse, portanto, suprflua (o que a entender de modo objectivo se deveria realmente considerar como depreciao do cristianismo), tal nada mais seria do que a expresso da sua prpria valorao; no quanto ao seu poder, segundo o que ela prescreve fazer; mas enquanto dela apenas brota a universalidade, a unidade e a necessi-dade das doutrinas de f que constituem em geral o essencial de uma religio, a saber, o moralmente pr-tico (o que devemos fazer); em contrapartida, aquilo de que por argumentos histricos temos motivo para acreditar (pois no impera aqui qualquer dever), i.e., a Revelao enquanto doutrina de f em si contingen-te, considerado como no essencial, no porm, como desnecessrio e suprfluo; a Revelao , de facto, til para suprir a deficincia terica da pura f racional, carncia que esta no nega, por exemplo, nas questes sobre a origem do mal, a passagem deste ao bem, a certeza do homem de estar no derradeiro esta-

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  • pontos, no deixo de pr aos ps de Vossa Majestade a prova da minha mais humilde submisso na decla-rao seguinte:

    No tocante ao primeiro, a saber, a acusao contra mim levantada, eis a minha justificao escru-pulosa:

    Enquanto mestre da juventude, i.e., tanto quanto entendo, jamais interpolei ou me foi possvel interpo-lar, em lies acadmicas, uma apreciao da Sagrada Escritura e do cristianismo; o que j demons-tram os manuais de Baumgarten que tomei como base, os nicos que poderiam ter alguma relao com semelhante exposio. Neles no se inclui sequer um ttulo que se refira Bblia e ao cristianismo e, enquanto filosofia pura, tambm o no poderiam incluir; menos ainda me pode ser censurado o erro de divagar para l dos limites da cincia proposta, ou de os confundir, pois sempre o denunciei e contra ele admoestei.

    Como educador do povo, em escritos, sobretudo no livro A Religio nos Limites, etc., nunca fui con-tra as intenes supremas e soberanas, de mim muito conhecidas, i.e., no causei dano religio pblica do pas; o que j evidente em virtude de esse livro no ser para tal apropriado, antes um livro ininteli-gvel e ocluso para o pblico e representa somente uma disputa entre eruditos da Faculdade, disputa de que o povo nada sabe; mas, a este respeito, as pr-prias Faculdades permanecem livres para publicamen-te julgar, segundo o seu melhor saber e conscincia; e que s os mestres populares constitudos (nas escolas e nos plpitos) esto vinculados ao resultado destas discusses que a autoridade do pas sanciona em vista da exposio pblica; e, sem dvida, porque a ltima no inventou ela prpria a sua f religiosa peculiar, mas conseguiu obt-la apenas pelo mesmo caminho, a saber, o exame e a rectificao pelas Faculdades com-petentes (a teolgica e a filosfica), por conseguinte, o poder soberano no s est autorizado a admitir

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    estas, mas tambm a delas exigir que, pelos seus es-critos, tragam ao conhecimento do governo tudo o que elas acham benfico para uma religio pblica do pas.

    No livro supra mencionado, porque no contm qualquer apreciao do cristianismo, no, pude tor-nar-me culpado de uma sua depreciao: com efeito, ele s encerra, em vigor, a apreciao da religio na-tural. A semelhante falsa interpretao apenas pode ter dado aso a citao de algumas passagens bblicas, para confirmar certas doutrinas puramente racionais da religio. Mas o falecido Michaelis, que assim pro-cedia na sua moral filosfica, explicou-se j a este respeito, ao afirmar que de nenhum modo intentava introduzir assim algo de bblico na filosofia nem de extrair algo de filosfico da Bblia, mas conferir somente s suas proposies racionais claridade e cor-roborao mediante a consonncia verdadeira ou pre-tensa com outros juzos (talvez de poetas e oradores). Mas se a razo se expressa ento como se a si mesma se bastasse e a Revelao fosse, portanto, suprflua (o que a entender de modo objectivo se deveria realmente considerar como depreciao do cristianismo), tal nada mais seria do que a expresso da sua prpria valorao; no quanto ao seu poder, segundo o que ela prescreve fazer; mas enquanto dela apenas brota a universalidade, a unidade e a necessi-dade das doutrinas de f que constituem em geral o essencial de uma religio, a saber, o moralmente pr-tico (o que devemos fazer); em contrapartida, aquilo de que por argumentos histricos temos motivo para acreditar (pois no impera aqui qualquer dever), i.e., a Revelao enquanto doutrina de f em si contingen-te, considerado como no essencial, no porm, como desnecessrio e suprfluo; a Revelao , de facto, til para suprir a deficincia terica da pura f racional, carncia que esta no nega, por exemplo, nas questes sobre a origem do mal, a passagem deste ao bem, a certeza do homem de estar no derradeiro esta-

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  • do, etc., e porque contribui mais ou menos, de acor-do com a diversidade das circunstncias de tempo e de pessoas, enquanto satisfao de uma necessidade da razo.

    Demonstrei, ademais, a minha grande e elevada estima pelas doutrinas bblicas de f no cristianismo entre outras coisas tambm pela declarao, no livro supra mencionado, de que a Bblia por mim louva-da como o melhor guia da instruo religiosa pblica, til para a fundao e a conservao, por tempos incontveis, de uma religio nacional verdadeiramente restauradora das almas, e onde censuro e considero prejudicial a presuno de levantar objeces e dvi-das contra as suas doutrinas, que encerram mistrios, nas escolas ou nos plpitos ou em escritos populares (pois tal deve ser permitido nas Faculdades); no en-tanto, no se trata ainda da maior demonstrao de reverncia pelo cristianismo. Com efeito, a sua con-sonncia aqui aduzida, com a mais pura f moral da razo constitui o seu melhor e mais duradoiro enc-mio; porque justamente assim, e no pela erudio histrica, que o cristianismo, tantas vezes degenera-do, sempre de novo se restabelece em fadrios seme-lhantes, que no deixaro no futuro de surgir.

    Por fim, como sempre e acima de tudo recomendei a outros adeptos da f uma sinceridade escrupulosa, para no asserir e impor a outros como artigos de f mais do que aquilo de que eles esto certos, sempre imaginei em mim mesmo, na redaco dos meus escri-tos, este juiz como estando a meu lado para me desviar no s de todo o erro prejudicial alma, mas at de to-do o mpeto que gerasse imprudncia no estilo; por is-so, agora nos meus 71 anos de idade, em que facilmente desponta o pensamento de que pode muito bem aconte-cer ter eu de responder em breve por tudo isto perante um juiz do mundo como perscrutador dos coraes, posso entregar a presente justificao de mim exigida a propsito da minha doutrina, como redigida candida-mente com toda a rectido.

    14

    No tocante ao segundo ponto, de no futuro no vir a ser inculpado de semelhante deformao e de-preciao (incriminada) do cristianismo tenho por mais seguro, para prevenir a tal respeito tambm a mnima suspeita, declarar aqui do modo mais solene, como o mais fiel sbdito de Vossa Majestade2, que doravante me absterei inteiramente de toda a exposi-o pblica concernente religio, quer a natural quer a revelada, tanto nas lies como nos escritos.

    Na mais profunda devoo esmoreo, etc.

    conhecida a ulterior histria do impulso cont-nuo para uma f que se afasta sempre mais da razo.

    O exame dos candidatos aos empregos eclesisti-cos foi doravante confiado a uma comisso de f, que se apoiava num schema examination^ de recorte pietista, comisso que afugentou em chusma srios candidatos em teologia dos empregos eclesisticos e sobrepovoou a Faculdade de direito; uma espcie de emigrao que, por acaso, tambm conseguiu ter a sua utilidade. Para dar uma pequena ideia do esp-rito desta comisso, aps a exigncia de uma contri-o que precedia necessariamente o perdo, requeria--se ainda uma profunda dor compungida (maeror animi), e perguntava-se ento a seu respeito se o homem tambm a si mesmo a poderia proporcionar. Quod negandum ac pernegandum era a resposta; o pecador arrependido deve suplicar em especial ao cu este arrependimento. Mas salta aos olhos que quem tem de implorar o arrependimento (pela sua transgresso) no se arrepende verdadeiramente do seu acto; o que parece to contraditrio como quando se diz da orao que, para ser ouvida, deve ter lugar na f. De facto, se o orante tem f, ento no precisa de a pedir; mas se a no tem, no pode orar de modo a ser ouvido.

    2 Escolhi cuidadosamente esta expresso a fim de no renunciar para sempre liberdade do meu juzo neste processo de religio, mas apenas enquanto Sua Majestade vivesse.

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  • do, etc., e porque contribui mais ou menos, de acor-do com a diversidade das circunstncias de tempo e de pessoas, enquanto satisfao de uma necessidade da razo.

    Demonstrei, ademais, a minha grande e elevada estima pelas doutrinas bblicas de f no cristianismo entre outras coisas tambm pela declarao, no livro supra mencionado, de que a Bblia por mim louva-da como o melhor guia da instruo religiosa pblica, til para a fundao e a conservao, por tempos incontveis, de uma religio nacional verdadeiramente restauradora das almas, e onde censuro e considero prejudicial a presuno de levantar objeces e dvi-das contra as suas doutrinas, que encerram mistrios, nas escolas ou nos plpitos ou em escritos populares (pois tal deve ser permitido nas Faculdades); no en-tanto, no se trata ainda da maior demonstrao de reverncia pelo cristianismo. Com efeito, a sua con-sonncia aqui aduzida, com a mais pura f moral da razo constitui o seu melhor e mais duradoiro enc-mio; porque justamente assim, e no pela erudio histrica, que o cristianismo, tantas vezes degenera-do, sempre de novo se restabelece em fadrios seme-lhantes, que no deixaro no futuro de surgir.

    Por fim, como sempre e acima de tudo recomendei a outros adeptos da f uma sinceridade escrupulosa, para no asserir e impor a outros como artigos de f mais do que aquilo de que eles esto certos, sempre imaginei em mim mesmo, na redaco dos meus escri-tos, este juiz como estando a meu lado para me desviar no s de todo o erro prejudicial alma, mas at de to-do o mpeto que gerasse imprudncia no estilo; por is-so, agora nos meus 71 anos de idade, em que facilmente desponta o pensamento de que pode muito bem aconte-cer ter eu de responder em breve por tudo isto perante um juiz do mundo como perscrutador dos coraes, posso entregar a presente justificao de mim exigida a propsito da minha doutrina, como redigida candida-mente com toda a rectido.

    14

    No tocante ao segundo ponto, de no futuro no vir a ser inculpado de semelhante deformao e de-preciao (incriminada) do cristianismo tenho por mais seguro, para prevenir a tal respeito tambm a mnima suspeita, declarar aqui do modo mais solene, como o mais fiel sbdito de Vossa Majestade2, que doravante me absterei inteiramente de toda a exposi-o pblica concernente religio, quer a natural quer a revelada, tanto nas lies como nos escritos.

    Na mais profunda devoo esmoreo, etc.

    conhecida a ulterior histria do impulso cont-nuo para uma f que se afasta sempre mais da razo.

    O exame dos candidatos aos empregos eclesisti-cos foi doravante confiado a uma comisso de f, que se apoiava num schema examination^ de recorte pietista, comisso que afugentou em chusma srios candidatos em teologia dos empregos eclesisticos e sobrepovoou a Faculdade de direito; uma espcie de emigrao que, por acaso, tambm conseguiu ter a sua utilidade. Para dar uma pequena ideia do esp-rito desta comisso, aps a exigncia de uma contri-o que precedia necessariamente o perdo, requeria--se ainda uma profunda dor compungida (maeror animi), e perguntava-se ento a seu respeito se o homem tambm a si mesmo a poderia proporcionar. Quod negandum ac pernegandum era a resposta; o pecador arrependido deve suplicar em especial ao cu este arrependimento. Mas salta aos olhos que quem tem de implorar o arrependimento (pela sua transgresso) no se arrepende verdadeiramente do seu acto; o que parece to contraditrio como quando se diz da orao que, para ser ouvida, deve ter lugar na f. De facto, se o orante tem f, ento no precisa de a pedir; mas se a no tem, no pode orar de modo a ser ouvido.

    2 Escolhi cuidadosamente esta expresso a fim de no renunciar para sempre liberdade do meu juzo neste processo de religio, mas apenas enquanto Sua Majestade vivesse.

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  • Presentemente, j se ps cobro a este dislate. Com efeito, no s para o bem cvico da coisa pbli-ca em geral, para o qual a religio uma necessidade pblica muito importante, mas sobretudo para vanta-gem das cincias, graas a uma comisso superior das escolas instituda para o seu fomento produziu-se h pouco o evento feliz de a escolha de um sbio go-verno ter incidido num homem de Estado ilustrado que possui a vocao, o talento e a vontade, no em virtude de uma preferncia exclusiva por uma disci-plina particular (a teologia), mas em vista do interes-se geral de todo o corpo docente, para seu respectivo fomento, e assegurar assim o desenvolvimento da cultura no campo das cincias contra todos os novos ataques dos obscurantistas.

    Sob o ttulo geral O Conflito das Faculdades aparecem aqui trs dissertaes por mim redigidas com propsito diverso, e tambm em pocas diferen-tes; so, no entanto, graas sua reunio numa obra, apropriadas para formar uma unidade sistemtica. S mais tarde me dei conta de que elas, enquanto dispu-ta da Faculdade inferior com as trs Faculdades supe-riores, se poderiam muito bem reunir (a fim de evitar a disperso) num s volume.

    16

    PRIMEIRA PARTE

    O Conflito da Faculdade de Filosofia com a Teolgica

  • Presentemente, j se ps cobro a este dislate. Com efeito, no s para o bem cvico da coisa pbli-ca em geral, para o qual a religio uma necessidade pblica muito importante, mas sobretudo para vanta-gem das cincias, graas a uma comisso superior das escolas instituda para o seu fomento produziu-se h pouco o evento feliz de a escolha de um sbio go-verno ter incidido num homem de Estado ilustrado que possui a vocao, o talento e a vontade, no em virtude de uma preferncia exclusiva por uma disci-plina particular (a teologia), mas em vista do interes-se geral de todo o corpo docente, para seu respectivo fomento, e assegurar assim o desenvolvimento da cultura no campo das cincias contra todos os novos ataques dos obscurantistas.

    Sob o ttulo geral O Conflito das Faculdades aparecem aqui trs dissertaes por mim redigidas com propsito diverso, e tambm em pocas diferen-tes; so, no entanto, graas sua reunio numa obra, apropriadas para formar uma unidade sistemtica. S mais tarde me dei conta de que elas, enquanto dispu-ta da Faculdade inferior com as trs Faculdades supe-riores, se poderiam muito bem reunir (a fim de evitar a disperso) num s volume.

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    PRIMEIRA PARTE

    O Conflito da Faculdade de Filosofia com a Teolgica

  • INTRODUO

    No foi uma inspirao calamitosa a de quem pri-meiro concebeu o pensamento e o props realizao pblica de tratar todo o conjunto do saber (em rigor, das cabeas a ele votadas) por assim dizer industrial-mente em que, graas diviso do trabalho, se no-meariam tantos mestres pblicos, professores, quan-tos os ramos das cincias; seriam eles como os seus depositrios, formariam em conjunto uma espcie de entidade colectiva erudita, chamada universidade (ou escola superior), que teria a sua autonomia (pois s eruditos podem, enquanto tais, julgar eruditos); por conseguinte, a universidade, graas s suas Faculda-des3 (pequenas sociedades diferentes, segundo a di-versidade dos principais ramos da erudio em que se dividem os outros universitrios), autorizada quer a admitir os alunos das escolas inferiores que a ela aspiram, quer a fornecer mestres livres (que no consti-

    3 Cada uma delas tem o seu Decano, como director da Faculdade. Este titulo, tirado da astrologia, que designava originariamente um dos trs gnios astrais que presidiam a um signo do Zodaco (de 30?), cada um dos quais governa 10 graus, foi transportado, primeiro, dos astros para os acampamentos (ab astris ad castra). Ver Salmasius, De annis climacteriis, p. S61) e, por fim, at para as universidades; sem se ter em conta o nmero 10 (dos professores), no h que levar a mal aos eruditos por de tal no se terem esquecido, eles que foram os primeiros a imaginar quase todos os titulos honorficos com que se adornam hoje os homens de Estado.

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  • INTRODUO

    No foi uma inspirao calamitosa a de quem pri-meiro concebeu o pensamento e o props realizao pblica de tratar todo o conjunto do saber (em rigor, das cabeas a ele votadas) por assim dizer industrial-mente em que, graas diviso do trabalho, se no-meariam tantos mestres pblicos, professores, quan-tos os ramos das cincias; seriam eles como os seus depositrios, formariam em conjunto uma espcie de entidade colectiva erudita, chamada universidade (ou escola superior), que teria a sua autonomia (pois s eruditos podem, enquanto tais, julgar eruditos); por conseguinte, a universidade, graas s suas Faculda-des3 (pequenas sociedades diferentes, segundo a di-versidade dos principais ramos da erudio em que se dividem os outros universitrios), autorizada quer a admitir os alunos das escolas inferiores que a ela aspiram, quer a fornecer mestres livres (que no consti-

    3 Cada uma delas tem o seu Decano, como director da Faculdade. Este titulo, tirado da astrologia, que designava originariamente um dos trs gnios astrais que presidiam a um signo do Zodaco (de 30?), cada um dos quais governa 10 graus, foi transportado, primeiro, dos astros para os acampamentos (ab astris ad castra). Ver Salmasius, De annis climacteriis, p. S61) e, por fim, at para as universidades; sem se ter em conta o nmero 10 (dos professores), no h que levar a mal aos eruditos por de tal no se terem esquecido, eles que foram os primeiros a imaginar quase todos os titulos honorficos com que se adornam hoje os homens de Estado.

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  • tuem membros seus), chamados doutores, aps exa-me prvio e por poder prprio, com uma categoria universalmente reconhecida (para lhes conferir um grau), i.e., os criar.

    Alm destes eruditos corporativos, pode ainda ha-ver independentes, que no pertencem universidade; mas, ao cultivarem simplesmente uma parte do gran-de conjunto do saber, constituem certas corporaes livres (chamadas Academias, e tambm Sociedades das Cincias) como outras tantas oficinas ou vivem, por assim dizer, no estado de natureza da erudio, ocupando-se cada qual por si, sem prescrio e regu-lamento pblicos, do seu aumento ou difuso, como amador.

    Importa ainda distinguir dos autnticos eruditos os letrados (pessoas que fizeram estudos), os quais, como instrumentos do governo, por este investidos num cargo pblico para um fim peculiar seu (no precisamente para o maior bem da cincia), devem decerto ter estudado na universidade mas, em todo o caso, podem igualmente j muito ter esquecido (no tocante teoria); basta-lhes ter retido o que neces-srio para cumprir uma funo pblica que, segundo os seus princpios fundamentais, pode emanar apenas dos sbios, a saber, o conhecimento emprico dos es-tatutos da sua funo (portanto, no tocante prti-ca); podem, pois, denominar homens de afazeres ou tcnicos do saber. Enquanto instrumento do governo (eclesisticos, magistrados e mdicos) tm uma influn-cia legal sobre o pblico e formam uma classe parti-cular de letrados que no so livres de fazer um uso pblico do saber, de acordo com a sua sabedoria peculiar, mas apenas sob a censura das Faculdades; porque se dirigem directamente ao povo, composto de ignorantes (como, porventura, o clero aos leigos) e detm em parte, na sua especialidade, o poder executi-vo, se no legislativo, devem ser muito rigorosamente mantidos na ordem pelo governo, a fim de no descura-rem o poder judicial, que cabe s Faculdades.

    20

    DIVISO DAS FACULDADES EM GERAL

    Segundo o uso adoptado, elas dividem-se em duas classes: a das trs Faculdades superiores e a da Facul-dade inferior. V-se bem que, nesta diviso e denomi-nao, no foi consultada a ordem dos eruditos, mas o governo. Com efeito, entre as Faculdades superio-res contam-se somente aquelas em cujas doutrinas o governo est interessado, se elas devem ser constitu-das assim ou assado ou publicamente expostas; pelo contrrio, aquela que unicamente tem de velar pelo interesse da cincia diz-se inferior, porque pode lidar com as suas proposies como lhe aprouver. O que mais interessa ao governo o meio de ele manter a mais forte e duradoira influncia sobre o povo.e desta natureza so os objectos das Faculdades superiores. Por isso, reserva-se o direito de ele prprio sancio-nar as doutrinas das Faculdades superiores; quanto s da Faculdade inferior, deixa-as para a razo peculiar do povo erudito. Embora sancione tais dou-trinas, ele (o governo) no ensina, mas pretende ape-nas que certas doutrinas sejam acolhidas pelas respec-tivas Faculdades na sua exposio pblica, com excluso das doutrinas contrrias. De facto, ele no ensina, mas ordena somente aos que ensinam (lide-se com que verdade se quiser), porque, ao tomar posse do seu cargo4, concordaram com isso mediante um contrato com o governo. Um governo que se

    4 preciso confessar que o principio do Parlamento britnico de considerar o discurso do trono do rei como uma obra do seu ministro (pois seria contrario dignidade de um monarca deixar-se censurar pe-los erros, pela ignorncia ou falsidade, embora a Cmara deva ter, por seu lado, o direito de julgar o contedo do discurso, de o examinar e contestar), que este principio, digo eu, est excogitado com muita fine-za e correco. A seleco de certas doutrinas que o governo sanciona exclusivamente para a exposio pblica deve tambm permanecer su-jeita ao exame dos peritos, porque no se deve considerar como o pro-duto do monarca, mas de um funcionrio para tal indigitado, acerca do qual se supe que poderia muito bem no ter entendido correcta-mente, ou at teria deturpado, a vontade do seu senhor.

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  • tuem membros seus), chamados doutores, aps exa-me prvio e por poder prprio, com uma categoria universalmente reconhecida (para lhes conferir um grau), i.e., os criar.

    Alm destes eruditos corporativos, pode ainda ha-ver independentes, que no pertencem universidade; mas, ao cultivarem simplesmente uma parte do gran-de conjunto do saber, constituem certas corporaes livres (chamadas Academias, e tambm Sociedades das Cincias) como outras tantas oficinas ou vivem, por assim dizer, no estado de natureza da erudio, ocupando-se cada qual por si, sem prescrio e regu-lamento pblicos, do seu aumento ou difuso, como amador.

    Importa ainda distinguir dos autnticos eruditos os letrados (pessoas que fizeram estudos), os quais, como instrumentos do governo, por este investidos num cargo pblico para um fim peculiar seu (no precisamente para o maior bem da cincia), devem decerto ter estudado na universidade mas, em todo o caso, podem igualmente j muito ter esquecido (no tocante teoria); basta-lhes ter retido o que neces-srio para cumprir uma funo pblica que, segundo os seus princpios fundamentais, pode emanar apenas dos sbios, a saber, o conhecimento emprico dos es-tatutos da sua funo (portanto, no tocante prti-ca); podem, pois, denominar homens de afazeres ou tcnicos do saber. Enquanto instrumento do governo (eclesisticos, magistrados e mdicos) tm uma influn-cia legal sobre o pblico e formam uma classe parti-cular de letrados que no so livres de fazer um uso pblico do saber, de acordo com a sua sabedoria peculiar, mas apenas sob a censura das Faculdades; porque se dirigem directamente ao povo, composto de ignorantes (como, porventura, o clero aos leigos) e detm em parte, na sua especialidade, o poder executi-vo, se no legislativo, devem ser muito rigorosamente mantidos na ordem pelo governo, a fim de no descura-rem o poder judicial, que cabe s Faculdades.

    20

    DIVISO DAS FACULDADES EM GERAL

    Segundo o uso adoptado, elas dividem-se em duas classes: a das trs Faculdades superiores e a da Facul-dade inferior. V-se bem que, nesta diviso e denomi-nao, no foi consultada a ordem dos eruditos, mas o governo. Com efeito, entre as Faculdades superio-res contam-se somente aquelas em cujas doutrinas o governo est interessado, se elas devem ser constitu-das assim ou assado ou publicamente expostas; pelo contrrio, aquela que unicamente tem de velar pelo interesse da cincia diz-se inferior, porque pode lidar com as suas proposies como lhe aprouver. O que mais interessa ao governo o meio de ele manter a mais forte e duradoira influncia sobre o povo.e desta natureza so os objectos das Faculdades superiores. Por isso, reserva-se o direito de ele prprio sancio-nar as doutrinas das Faculdades superiores; quanto s da Faculdade inferior, deixa-as para a razo peculiar do povo erudito. Embora sancione tais dou-trinas, ele (o governo) no ensina, mas pretende ape-nas que certas doutrinas sejam acolhidas pelas respec-tivas Faculdades na sua exposio pblica, com excluso das doutrinas contrrias. De facto, ele no ensina, mas ordena somente aos que ensinam (lide-se com que verdade se quiser), porque, ao tomar posse do seu cargo4, concordaram com isso mediante um contrato com o governo. Um governo que se

    4 preciso confessar que o principio do Parlamento britnico de considerar o discurso do trono do rei como uma obra do seu ministro (pois seria contrario dignidade de um monarca deixar-se censurar pe-los erros, pela ignorncia ou falsidade, embora a Cmara deva ter, por seu lado, o direito de julgar o contedo do discurso, de o examinar e contestar), que este principio, digo eu, est excogitado com muita fine-za e correco. A seleco de certas doutrinas que o governo sanciona exclusivamente para a exposio pblica deve tambm permanecer su-jeita ao exame dos peritos, porque no se deve considerar como o pro-duto do monarca, mas de um funcionrio para tal indigitado, acerca do qual se supe que poderia muito bem no ter entendido correcta-mente, ou at teria deturpado, a vontade do seu senhor.

    21

  • ocupasse das doutrinas, portanto, da ampliao ou melhoria das cincias, por conseguinte, ele prprio, na suprema pessoa, pretendesse brincar aos sbios, per-deria apenas, graas a tal pedantismo, o respeito que lhe devido, e est abaixo da sua dignidade tornar-se ntimo do povo (com a sua classe de eruditos) que no compreende nenhum chiste e trata de modo an-logo todos os que se ocupam de cincia.

    Importa absolutamente que, na universidade, se d ainda comunidade erudita uma Faculdade que, independente das ordens do governo quanto s suas doutrinas5, tenha a liberdade, no de proferir ordens, mas pelo menos de julgar todas as que tm a ver com o interesse cientfico, i.e., com o da verdade, em que a razo deve estar autorizada a publicamente falar; porque, sem semelhante liberdade, a verdade no viria luz (para dano do prprio governo), mas a razo livre por sua natureza e no acolhe nenhuma ordem para aceitar algo como verdadeiro (nenhum crede, mas apenas um credo livre). Reside, porm, na natureza do homem a causa por que semelhante Faculdade, no obstante esta grande vantagem (da li-berdade), denominada inferior; com efeito, quem pode mandar embora seja um humilde servo de ou-trem, imagina-se superior a outro que , sem dvida, livre, mas a ningum tem de dar ordens.

    5 Um ministro francs mandou vir junto de si alguns dos mais conceituados comerciantes e pediu-lhes sugestes sobre a maneira de promover o comrcio, como se delas pretendesse escolher a melhor. Aps um ter proposto isto, e outro aquilo, um velho comerciante que estivera calado durante muito tempo disse: Criai boas estradas, cunhai boa moeda, institui um pronto direito cambial, e coisas semelhantes. Quanto ao mais, porm, deixai-nos a ns fazer. Seria esta, mais ou menos, a resposta que a Faculdade filosfica teria para dar, se o Governo a consultasse sobre as doutrinas que em geral haveria de pres-crever aos eruditos: unicamente no impedir o progresso dos conheci-mentos e das cincias.

    22

    I Da Condio das Faculdades

    Seco I

    CONCEITO E DIVISO DAS FACULDADES SUPERIORES

    Pode supor-se que todas as instituies artificiais que tm por fundamento uma ideia da razo (como a de um governo) que se deve demonstrar praticamente num objecto da experincia (como, por exemplo, todo o campo actual do saber) foram testadas, no pela acu-mulao simplesmente casual e pela justaposio arbi-trria dos factos ocorridos, mas segundo um qualquer princpio nsito, ainda que s de modo obscuro, na ra-zo e de acordo com um plano nele fundado, que torna necessria uma certa espcie de diviso.

    Por este motivo, pode admitir-se que a organizao de uma universidade, quanto s suas classes e Faculda-des, no dependeu de todo do acaso, mas que o gover-no, sem lhe atribuir justamente por isso uma sabedoria e um saber precoces, j em virtude da sua peculiar ne-cessidade sentida (de agir sobre o povo mediante certas doutrinas), conseguiu chegar a priori a um princpio de diviso que, alis, parece ser de origem emprica, prin-cpio que afortunadamente se harmoniza com o princ-pio agora adoptado; se bem que eu nem por isso preten-da defend-la, como se estivesse isenta de defeitos.

    23

  • ocupasse das doutrinas, portanto, da ampliao ou melhoria das cincias, por conseguinte, ele prprio, na suprema pessoa, pretendesse brincar aos sbios, per-deria apenas, graas a tal pedantismo, o respeito que lhe devido, e est abaixo da sua dignidade tornar-se ntimo do povo (com a sua classe de eruditos) que no compreende nenhum chiste e trata de modo an-logo todos os que se ocupam de cincia.

    Importa absolutamente que, na universidade, se d ainda comunidade erudita uma Faculdade que, independente das ordens do governo quanto s suas doutrinas5, tenha a liberdade, no de proferir ordens, mas pelo menos de julgar todas as que tm a ver com o interesse cientfico, i.e., com o da verdade, em que a razo deve estar autorizada a publicamente falar; porque, sem semelhante liberdade, a verdade no viria luz (para dano do prprio governo), mas a razo livre por sua natureza e no acolhe nenhuma ordem para aceitar algo como verdadeiro (nenhum crede, mas apenas um credo livre). Reside, porm, na natureza do homem a causa por que semelhante Faculdade, no obstante esta grande vantagem (da li-berdade), denominada inferior; com efeito, quem pode mandar embora seja um humilde servo de ou-trem, imagina-se superior a outro que , sem dvida, livre, mas a ningum tem de dar ordens.

    5 Um ministro francs mandou vir junto de si alguns dos mais conceituados comerciantes e pediu-lhes sugestes sobre a maneira de promover o comrcio, como se delas pretendesse escolher a melhor. Aps um ter proposto isto, e outro aquilo, um velho comerciante que estivera calado durante muito tempo disse: Criai boas estradas, cunhai boa moeda, institui um pronto direito cambial, e coisas semelhantes. Quanto ao mais, porm, deixai-nos a ns fazer. Seria esta, mais ou menos, a resposta que a Faculdade filosfica teria para dar, se o Governo a consultasse sobre as doutrinas que em geral haveria de pres-crever aos eruditos: unicamente no impedir o progresso dos conheci-mentos e das cincias.

    22

    I Da Condio das Faculdades

    Seco I

    CONCEITO E DIVISO DAS FACULDADES SUPERIORES

    Pode supor-se que todas as instituies artificiais que tm por fundamento uma ideia da razo (como a de um governo) que se deve demonstrar praticamente num objecto da experincia (como, por exemplo, todo o campo actual do saber) foram testadas, no pela acu-mulao simplesmente casual e pela justaposio arbi-trria dos factos ocorridos, mas segundo um qualquer princpio nsito, ainda que s de modo obscuro, na ra-zo e de acordo com um plano nele fundado, que torna necessria uma certa espcie de diviso.

    Por este motivo, pode admitir-se que a organizao de uma universidade, quanto s suas classes e Faculda-des, no dependeu de todo do acaso, mas que o gover-no, sem lhe atribuir justamente por isso uma sabedoria e um saber precoces, j em virtude da sua peculiar ne-cessidade sentida (de agir sobre o povo mediante certas doutrinas), conseguiu chegar a priori a um princpio de diviso que, alis, parece ser de origem emprica, prin-cpio que afortunadamente se harmoniza com o princ-pio agora adoptado; se bem que eu nem por isso preten-da defend-la, como se estivesse isenta de defeitos.

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  • Segundo a razo (i.e., objectivamente), os moti-vos que o governo pode utilizar para o seu fim (ter influncia sobre o povo) encontram-se na ordem seguinte: em primeiro lugar, o bem eterno de cada um; em seguida, o bem civil como membro da sociedade; por fim, o bem corporal (viver longamente e ter sa-de). Mediante as doutrinas pblicas em relao ao primeiro, o prprio governo pode ter a mxima in-fluncia sobre o intimo dos pensamentos e os mais recnditos desgnios da vontade dos seus sbditos, a fim de descobrir aqueles e dirigir estes; graas s que se referem ao segundo, pode manter o seu comporta-mento externo sob o freio das leis pblicas; por meio do terceiro, assegurar a existncia de um povo forte e numeroso que achar utilizvel para os seus propsi-tos. Segundo a razo, pois, descobrir-se-ia, sem dvida, a ordem de precedncia habitualmente adop-tada entre as Faculdades superiores; a saber, primeiro, a Faculdade teolgica, a seguir, a dos Juristas e, em ltimo lugar, a Faculdade de medicina. Pelo con-trrio, de acordo com o instinto natural, o mdico seria para o homem o de maior importncia, porque lhe conserva a sua vida; em seguida, o jurista, que promete preservar-lhe os seus bens contingentes, e s em ltimo lugar (quase s beira da morte) se iria buscar o eclesistico, embora se lide decerto com a beatitude; porque tambm este, por mais que celebre a felicidade do mundo futuro, deseja ardentemente, j que nada divisa de tal felicidade, conservar-se sem-pre ainda algum tempo, graas ao mdico, neste vale de lgrimas.

    * * *

    Todas as trs Faculdades superiores baseiam na escrita o ensino que lhes confiado pelo governo o que no pode ser de outro modo na situao de um

    24

    povo orientado pelo saber porque, sem ela, no poderia haver nenhuma forma permanente, acessvel a todos, pela qual se poderia orientar. evidente que semelhante escrito (Ou livro) deve conter estatutos, i.e., doutrinas que emanam do arbtrio de um supe-rior (no promanando por si da razo); de outro modo, no poderia exigir simplesmente a obedincia como sancionada pelo governo, e isto vale tambm para o prprio cdigo, no tocante s doutrinas a expor publicamente, as quais se poderiam ao mesmo tempo deduzir da razo, mas no tem por esta qualquer considerao e toma por fundamento a ordem de um legislador externo. Do cdigo enquanto cnon so de todo diferentes os livros redigidos pelas Faculda-des como epitome (pretensamente) completa do esp-rito do cdigo em vista da noo mais compreensvel e do uso mais seguro da coisa pblica (pelos eruditos e iletrados); assim, por exemplo, os livros simblicos. Eles podem apenas exigir ser olhados como rganon para facilitar o acesso ao cdigo e no tm autorida-de alguma; nem sequer em virtude de os principais eruditos, num certo ramo, terem concordado em con-siderar semelhante livro como norma para a sua Fa-culdade, coisa para que no so competentes, mas para os introduzir interinamente como mtodo de ensino que permanece mutvel segundo as circuns-tncias temporais e pode em geral concernir apenas forma da exposio, porm, sem valor algum na substncia da legislao.

    Por isso, o telogo bblico (como adscrito Fa-culdade superior) no vai buscar os seus ensinamen-tos razo, mas Bblia', o professor de Direito no vai beber ao direito natural, mas ao direito consuetu-dinrio', e o perito em medicina no vai buscar o seu mtodo teraputico destinado ao pblico fsica do corpo humano, mas ao ordenamento mdico. Lo-go que uma destas Faculdades ousa introduzir algo como derivado da razo, ofende a autoridade do governo que por ela ordena e entra na cerca da filos-

    25

  • Segundo a razo (i.e., objectivamente), os moti-vos que o governo pode utilizar para o seu fim (ter influncia sobre o povo) encontram-se na ordem seguinte: em primeiro lugar, o bem eterno de cada um; em seguida, o bem civil como membro da sociedade; por fim, o bem corporal (viver longamente e ter sa-de). Mediante as doutrinas pblicas em relao ao primeiro, o prprio governo pode ter a mxima in-fluncia sobre o intimo dos pensamentos e os mais recnditos desgnios da vontade dos seus sbditos, a fim de descobrir aqueles e dirigir estes; graas s que se referem ao segundo, pode manter o seu comporta-mento externo sob o freio das leis pblicas; por meio do terceiro, assegurar a existncia de um povo forte e numeroso que achar utilizvel para os seus propsi-tos. Segundo a razo, pois, descobrir-se-ia, sem dvida, a ordem de precedncia habitualmente adop-tada entre as Faculdades superiores; a saber, primeiro, a Faculdade teolgica, a seguir, a dos Juristas e, em ltimo lugar, a Faculdade de medicina. Pelo con-trrio, de acordo com o instinto natural, o mdico seria para o homem o de maior importncia, porque lhe conserva a sua vida; em seguida, o jurista, que promete preservar-lhe os seus bens contingentes, e s em ltimo lugar (quase s beira da morte) se iria buscar o eclesistico, embora se lide decerto com a beatitude; porque tambm este, por mais que celebre a felicidade do mundo futuro, deseja ardentemente, j que nada divisa de tal felicidade, conservar-se sem-pre ainda algum tempo, graas ao mdico, neste vale de lgrimas.

    * * *

    Todas as trs Faculdades superiores baseiam na escrita o ensino que lhes confiado pelo governo o que no pode ser de outro modo na situao de um

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    povo orientado pelo saber porque, sem ela, no poderia haver nenhuma forma permanente, acessvel a todos, pela qual se poderia orientar. evidente que semelhante escrito (Ou livro) deve conter estatutos, i.e., doutrinas que emanam do arbtrio de um supe-rior (no promanando por si da razo); de outro modo, no poderia exigir simplesmente a obedincia como sancionada pelo governo, e isto vale tambm para o prprio cdigo, no tocante s doutrinas a expor publicamente, as quais se poderiam ao mesmo tempo deduzir da razo, mas no tem por esta qualquer considerao e toma por fundamento a ordem de um legislador externo. Do cdigo enquanto cnon so de todo diferentes os livros redigidos pelas Faculda-des como epitome (pretensamente) completa do esp-rito do cdigo em vista da noo mais compreensvel e do uso mais seguro da coisa pblica (pelos eruditos e iletrados); assim, por exemplo, os livros simblicos. Eles podem apenas exigir ser olhados como rganon para facilitar o acesso ao cdigo e no tm autorida-de alguma; nem sequer em virtude de os principais eruditos, num certo ramo, terem concordado em con-siderar semelhante livro como norma para a sua Fa-culdade, coisa para que no so competentes, mas para os introduzir interinamente como mtodo de ensino que permanece mutvel segundo as circuns-tncias temporais e pode em geral concernir apenas forma da exposio, porm, sem valor algum na substncia da legislao.

    Por isso, o telogo bblico (como adscrito Fa-culdade superior) no vai buscar os seus ensinamen-tos razo, mas Bblia', o professor de Direito no vai beber ao direito natural, mas ao direito consuetu-dinrio', e o perito em medicina no vai buscar o seu mtodo teraputico destinado ao pblico fsica do corpo humano, mas ao ordenamento mdico. Lo-go que uma destas Faculdades ousa introduzir algo como derivado da razo, ofende a autoridade do governo que por ela ordena e entra na cerca da filos-

    25

  • fica, a qual lhe tira sem piedade toda a brilhante plu-magem por aquele resguardada, procedendo como ela num p de igualdade e de liberdade. Eis porque as Faculdades superiores devem sobretudo cuidar de no contrair um casamento desigual com a Faculdade in-ferior, mas de habilmente a manter a uma distncia respeitosa de si, para que a considerao dos seus estatutos no sofra qualquer dano por meio do livre sofismar da ltima.

    A. Peculiaridade da Faculdade Teolgica

    O telogo bblico prova que Deus existe por Ele se ter expressado na Bblia, na qual tambm fala da sua natureza (mesmo at onde a razo com a Escritura no pode manter o passo, por exemplo, a propsito do mistrio inacessvel da trplice personalidade). Mas que o prprio Deus tenha falado por meio da Bblia, eis o que o telogo bblico no pode nem deve como tal demonstrar, porque se trata de um afazer histrico; com efeito, tal incumbe Faculdade filosfica. Fund-lo-, pois, como matria de f num certo sentimento da divindade desta, mesmo para o erudito (sentimento, sem dvida, indemonstrvel ou inexplicvel), mas de nenhum modo poder, na expo-sio pblica ao povo, levantar a questo desta ori-gem divina (tomada em sentido literal); pois o povo nada a entende enquanto matria de erudio e enre-dar-se-ia unicamente em indiscretos devaneios e dvi-das; pelo contrrio, pode aqui contar-se muito mais seguramente com a confiana que o povo tem nos seus mestres. No pode igualmente ser autorizado a atribuir s sentenas da Escritura um sentido que no concorde exactamente com a expresso, por exemplo, um sentido moral, e como no h nenhum exegeta humano autorizado por Deus, o telogo b-blico deve mais contar com a abertura sobrenatural da compreenso por um Esprito que conduz a toda a

    26

    verdade do que admitir que a razo se imiscua e faa valer a sua interpretao (carente de toda a suprema autoridade). Por fim, no tocante ao cumprimento dos mandamentos divinos quanto nossa vontade, o telogo bblico no deve sequer confiar na natureza, i.e., no prprio poder moral do homem (a virtude), mas na graa (influncia sobrenatural, se bem que simultaneamente moral) que o homem s pode parti-lhar mediante uma f que transforme intimamente o corao; esta f, por seu turno, s a pode esperar de graa. Se o telogo bblico, no tocante a qualquer uma destas proposies, no se intromete na razo, supondo que esta gravita com a maior sinceridade e a mxima seriedade em torno da mesma meta, salta (como o irmo de Rmulo) o muro da f eclesial, a nica beatificante, e perde-se no campo raso do juzo prprio e da sua filosofia, onde, subtrado discipli-na eclesistica, se encontra exposto a todos os perigos da anarquia. Importa, porm, notar que no falo aqui do telogo bblico puro (purus, putus), ainda no contaminado pelo mal afamado esprito de liber-dade da razo e da filosofia. Com efeito, logo que misturamos e deixamos que dois assuntos de ndole diversa se confundam entre si, no conseguimos ela-borar um conceito exacto da especificidade de cada qual.

    B. Peculiaridade da Faculdade de Direito

    O jurista erudito no busca as leis que garantem o meu e o teu (se, como deve, proceder como funcion-rio do governo) na sua razo, mas no cdigo oficial-mente promulgado e sancionado pela autoridade suprema. No pode justamente exigir-se dele a demons-trao da sua verdade e legitimidade, nem a sua defesa contra a objeco antagnica da razo. De facto, os decretos que primeiramente fazem que algo seja justo, e indagar se tambm os prprios decretos so

    27

  • fica, a qual lhe tira sem piedade toda a brilhante plu-magem por aquele resguardada, procedendo como ela num p de igualdade e de liberdade. Eis porque as Faculdades superiores devem sobretudo cuidar de no contrair um casamento desigual com a Faculdade in-ferior, mas de habilmente a manter a uma distncia respeitosa de si, para que a considerao dos seus estatutos no sofra qualquer dano por meio do livre sofismar da ltima.

    A. Peculiaridade da Faculdade Teolgica

    O telogo bblico prova que Deus existe por Ele se ter expressado na Bblia, na qual tambm fala da sua natureza (mesmo at onde a razo com a Escritura no pode manter o passo, por exemplo, a propsito do mistrio inacessvel da trplice personalidade). Mas que o prprio Deus tenha falado por meio da Bblia, eis o que o telogo bblico no pode nem deve como tal demonstrar, porque se trata de um afazer histrico; com efeito, tal incumbe Faculdade filosfica. Fund-lo-, pois, como matria de f num certo sentimento da divindade desta, mesmo para o erudito (sentimento, sem dvida, indemonstrvel ou inexplicvel), mas de nenhum modo poder, na expo-sio pblica ao povo, levantar a questo desta ori-gem divina (tomada em sentido literal); pois o povo nada a entende enquanto matria de erudio e enre-dar-se-ia unicamente em indiscretos devaneios e dvi-das; pelo contrrio, pode aqui contar-se muito mais seguramente com a confiana que o povo tem nos seus mestres. No pode igualmente ser autorizado a atribuir s sentenas da Escritura um sentido que no concorde exactamente com a expresso, por exemplo, um sentido moral, e como no h nenhum exegeta humano autorizado por Deus, o telogo b-blico deve mais contar com a abertura sobrenatural da compreenso por um Esprito que conduz a toda a

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    verdade do que admitir que a razo se imiscua e faa valer a sua interpretao (carente de toda a suprema autoridade). Por fim, no tocante ao cumprimento dos mandamentos divinos quanto nossa vontade, o telogo bblico no deve sequer confiar na natureza, i.e., no prprio poder moral do homem (a virtude), mas na graa (influncia sobrenatural, se bem que simultaneamente moral) que o homem s pode parti-lhar mediante uma f que transforme intimamente o corao; esta f, por seu turno, s a pode esperar de graa. Se o telogo bblico, no tocante a qualquer uma destas proposies, no se intromete na razo, supondo que esta gravita com a maior sinceridade e a mxima seriedade em torno da mesma meta, salta (como o irmo de Rmulo) o muro da f eclesial, a nica beatificante, e perde-se no campo raso do juzo prprio e da sua filosofia, onde, subtrado discipli-na eclesistica, se encontra exposto a todos os perigos da anarquia. Importa, porm, notar que no falo aqui do telogo bblico puro (purus, putus), ainda no contaminado pelo mal afamado esprito de liber-dade da razo e da filosofia. Com efeito, logo que misturamos e deixamos que dois assuntos de ndole diversa se confundam entre si, no conseguimos ela-borar um conceito exacto da especificidade de cada qual.

    B. Peculiaridade da Faculdade de Direito

    O jurista erudito no busca as leis que garantem o meu e o teu (se, como deve, proceder como funcion-rio do governo) na sua razo, mas no cdigo oficial-mente promulgado e sancionado pela autoridade suprema. No pode justamente exigir-se dele a demons-trao da sua verdade e legitimidade, nem a sua defesa contra a objeco antagnica da razo. De facto, os decretos que primeiramente fazem que algo seja justo, e indagar se tambm os prprios decretos so

    27

  • justos algo que os juristas tm de rejeitar como absurdo. Seria ridculo pretender subtrair-se obedin-cia perante uma vontade externa e suprema sob o pretexto de que esta no se harmoniza com a razo. Com efeito, o respeito devido ao governo consiste precisamente em que ele no permite aos sbditos a liberdade de julgar sobre o justo e o injusto, segundo os seus conceitos prprios, mas de acordo com a prescrio do poder legislativo.

    Num ponto, porm, a situao da Faculdade de direito , na prtica, melhor do que a teolgica; pos-sui, de facto, um intrprete visvel das leis, a saber, ou num juiz ou, na apelao por ele, numa comisso jurdica e (em ltima instncia) no prprio legislador o que no se passa to bem na Faculdade de teo-logia, quanto interpretao das sentenas de um livro sagrado. Contudo, esta vantagem , por outro lado, contrabalanada por um no menor inconvenien-te, a saber, que os cdigos mundanos devem perma-necer sujeitos a modificao, conforme a experincia fornece mais ou melhores ideias, ao passo que o livro sagrado no ordena qualquer mudana (diminuio ou ampliao) e assere estar para sempre fechado. A queixa dos juristas de que quase impossvel espe-rar uma norma exactamente determinada da adminis-trao do direito (ius certum) no tem lugar no telogo bblico. Com efeito, este no se deixa privar da pretenso de que a sua dogmtica no contenha semelhante norma clara e determinada para todos os casos. Se, alm disso, os peritos do direito (advoga-dos ou comissrios da justia) que aconselharam mal o cliente, causando-lhe assim dano, no querem, no entanto, ser a tal respeito responsveis (ob consilium nemo tenetur), ento os telogos prticos (pregadores e directores espirituais) assumem sem reserva a res-ponsabilidade e asseveram, a saber, enfaticamente, que tudo ser julgado no mundo futuro como eles neste decidiram; embora se viessem provavelmente a desculpar, se fossem intimados a explicar-se de modo

    28

    formal se se arriscam a proporcionar a garantia da verdade de tudo o que eles querem que, pela auto-ridade bblica, seja objecto de f. No entanto, prprio da natureza dos princpios destes mestres populares no pr de modo algum em dvida a exactido das suas afirmaes; o que podem decerto fazer com tanto maior segurana quanto no tm de recear nesta vida qualquer refutao sua, mediante a experincia.

    C. Peculiaridade da Faculdade de Medicina

    O mdico um artista que, no entanto, em virtu-de de a sua arte no ser directamente extrada da natureza e ter, por isso, de se derivar de uma cincia da natureza, est subordinado, como perito, a qualquer faculdade em que teve de fazer os seus estudos e per-manecer sujeito ao seu juzo. Mas visto que o governo tem necessariamente grande interesse no modo como o mdico trata a sade do povo, tem a autori-dade para, graas a uma assembleia de agentes esco-lhidos desta Faculdade (mdicos prticos), velar pelo processo pblico dos mdicos mediante uma comisso superior da sade e prescries medicinais. As lti-mas, porm, por causa da caracterstica particular desta Faculdade que no deve ir buscar as suas regras de conduta, como as duas precedentes Faculdades superiores, s ordens de um chefe, mas prpria natu-reza das coisas as suas doutrinas deveriam, por isso, depender tambm originariamente da Faculdade filosfica, tomada em acepo mais ampla no consistem tanto no que os mdicos devem fazer quanto no que tm de omitir: primeiro, deve em geral haver mdicos para o pblico; em segundo lugar, no haver pseudo-mdicos (nenhum ius impune occidendi, segundo o princpio: fiat experimentum in corpore vili). Por conseguinte, visto que o governo, segundo o primeiro princpio, vela pelo conforto pblico, de

    29

  • justos algo que os juristas tm de rejeitar como absurdo. Seria ridculo pretender subtrair-se obedin-cia perante uma vontade externa e suprema sob o pretexto de que esta no se harmoniza com a razo. Com efeito, o respeito devido ao governo consiste precisamente em que ele no permite aos sbditos a liberdade de julgar sobre o justo e o injusto, segundo os seus conceitos prprios, mas de acordo com a prescrio do poder legislativo.

    Num ponto, porm, a situao da Faculdade de direito , na prtica, melhor do que a teolgica; pos-sui, de facto, um intrprete visvel das leis, a saber, ou num juiz ou, na apelao por ele, numa comisso jurdica e (em ltima instncia) no prprio legislador o que no se passa to bem na Faculdade de teo-logia, quanto interpretao das sentenas de um livro sagrado. Contudo, esta vantagem , por outro lado, contrabalanada por um no menor inconvenien-te, a saber, que os cdigos mundanos devem perma-necer sujeitos a modificao, conforme a experincia fornece mais ou melhores ideias, ao passo que o livro sagrado no ordena qualquer mudana (diminuio ou ampliao) e assere estar para sempre fechado. A queixa dos juristas de que quase impossvel espe-rar uma norma exactamente determinada da adminis-trao do direito (ius certum) no tem lugar no telogo bblico. Com efeito, este no se deixa privar da pretenso de que a sua dogmtica no contenha semelhante norma clara e determinada para todos os casos. Se, alm disso, os peritos do direito (advoga-dos ou comissrios da justia) que aconselharam mal o cliente, causando-lhe assim dano, no querem, no entanto, ser a tal respeito responsveis (ob consilium nemo tenetur), ento os telogos prticos (pregadores e directores espirituais) assumem sem reserva a res-ponsabilidade e asseveram, a saber, enfaticamente, que tudo ser julgado no mundo futuro como eles neste decidiram; embora se viessem provavelmente a desculpar, se fossem intimados a explicar-se de modo

    28

    formal se se arriscam a proporcionar a garantia da verdade de tudo o que eles querem que, pela auto-ridade bblica, seja objecto de f. No entanto, prprio da natureza dos princpios destes mestres populares no pr de modo algum em dvida a exactido das suas afirmaes; o que podem decerto fazer com tanto maior segurana quanto no tm de recear nesta vida qualquer refutao sua, mediante a experincia.

    C. Peculiaridade da Faculdade de Medicina

    O mdico um artista que, no entanto, em virtu-de de a sua arte no ser directamente extrada da natureza e ter, por isso, de se derivar de uma cincia da natureza, est subordinado, como perito, a qualquer faculdade em que teve de fazer os seus estudos e per-manecer sujeito ao seu juzo. Mas visto que o governo tem necessariamente grande interesse no modo como o mdico trata a sade do povo, tem a autori-dade para, graas a uma assembleia de agentes esco-lhidos desta Faculdade (mdicos prticos), velar pelo processo pblico dos mdicos mediante uma comisso superior da sade e prescries medicinais. As lti-mas, porm, por causa da caracterstica particular desta Faculdade que no deve ir buscar as suas regras de conduta, como as duas precedentes Faculdades superiores, s ordens de um chefe, mas prpria natu-reza das coisas as suas doutrinas deveriam, por isso, depender tambm originariamente da Faculdade filosfica, tomada em acepo mais ampla no consistem tanto no que os mdicos devem fazer quanto no que tm de omitir: primeiro, deve em geral haver mdicos para o pblico; em segundo lugar, no haver pseudo-mdicos (nenhum ius impune occidendi, segundo o princpio: fiat experimentum in corpore vili). Por conseguinte, visto que o governo, segundo o primeiro princpio, vela pelo conforto pblico, de

    29

  • acordo com o segundo, pela segurana pblica (no tocante sade do povo), mas estes dois pontos constituem uma polcia, ento toda a regulao mdica diz, em rigor, apenas respeito polcia mdica.

    Esta Faculdade , pois, muito mais livre do que as duas primeiras entre as superiores, e tem uma afini-dade muito grande com a filosfica; mais ainda, no tocante s suas doutrinas, destinadas a formar mdi-cos, inteiramente livre, porque no pode haver para ela livros sancionados pela autoridade suprema, mas somente livros extrados da natureza; nem tambm qualquer lei genuna (se por tal se entender a vontade inflexvel do legislador), mas apenas prescries (di-tos), cujo conhecimento no constitui um saber; para tal exige-se um complexo sistemtico de doutrinas que decerto a Faculdade possui, mas para cuja san-o (enquanto no contida em cdigo algum) o governo no tem competncia, mas a ela a deve deixar; pensar, no entanto, somente em fomentar a prtica dos versados no uso pblico, mediante dispensrios e instituies hospitalares. Porm, estes homens ver-sados (os mdicos) permanecem sujeitos ao juzo da sua Faculdade nos casos que, enquanto concernentes polcia mdica, interessam ao governo.

    Seco II

    CONCEITO E DIVISO DA FACULDADE INFERIOR

    Pode denominar-se Faculdade inferior a classe da universidade que s, ou enquanto, se ocupa de dou-trinas que no so aceites como princpio regulador ordem de um superior. Ora pode certamente aconte-cer que se siga por obedincia uma doutrina prtica,

    30

    mas t-la por verdadeira porque ordenada (de par de Roi) de todo impossvel, no s objectivamente (como um juzo que no deveria ser), mas tambm subjectivamente (como juzo que nenhum homem pode declinar). Com efeito, quem quer enganar-se, como ele diz, efectivamente no se engana e no aceita como, de facto, verdadeiro o juzo falso, mas alega apenas falsamente um assentimento que, no entanto, nele no de encontrar. Por conseguinte, quando se fala da verdade de certas doutrinas que devem ser expostas em pblico, o mestre no pode aqui apelar para uma ordem suprema, nem o aprendiz pretextar ter acreditado por ordem, mas s quando se fala de aco. Deve ento reconhecer por um juzo livre que recebeu verdadeiramente semelhante ordem, e que igualmente obrigado ou, pelo menos, autorizado a obedecer-lhe, de outro modo a sua suposio um vo pretexto e uma mentira. Ora ao poder de jul-gar com autonomia, i.e., livremente (segundo princ-pios do pensar em geral), d-se o nome de razo. H, pois, que conceber-se a Faculdade filosfica, porque deve responder pela verdade das doutrinas que tem de acolher ou at s admitir e, nesta medida, como livre e unicamente sob a legislao da razo, no sob a do governo.

    Mas importa instituir tambm semelhante departa-mento numa universidade, i.e., deve haver uma facul-dade filosfica. Quanto s trs Faculdades superiores, ela serve para as controlar e lhes ser til, porque tudo depende da verdade (a essencial e primeira condio do saber em geral); mas a utilidade que as Faculdades superiores prometem em prol do governo apenas um momento de segunda classe. Pode, sem dvi-da, conceder-se ainda Faculdade teolgica a orgu-lhosa pretenso de ver na filosfica a sua serva (mas ento subsiste sempre a questo de saber se esta precede com a tocha a sua graciosa dama ou pega na cauda do seu vestido); se apenas a no expulsar ou no lhe fechar a boca. Com efeito, a modstia de ser

    31

  • acordo com o segundo, pela segurana pblica (no tocante sade do povo), mas estes dois pontos constituem uma polcia, ento toda a regulao mdica diz, em rigor, apenas respeito polcia mdica.

    Esta Faculdade , pois, muito mais livre do que as duas primeiras entre as superiores, e tem uma afini-dade muito grande com a filosfica; mais ainda, no tocante s suas doutrinas, destinadas a formar mdi-cos, inteiramente livre, porque no pode haver para ela livros sancionados pela autoridade suprema, mas somente livros extrados da natureza; nem tambm qualquer lei genuna (se por tal se entender a vontade inflexvel do legislador), mas apenas prescries (di-tos), cujo conhecimento no constitui um saber; para tal exige-se um complexo sistemtico de doutrinas que decerto a Faculdade possui, mas para cuja san-o (enquanto no contida em cdigo algum) o governo no tem competncia, mas a ela a deve deixar; pensar, no entanto, somente em fomentar a prtica dos versados no uso pblico, mediante dispensrios e instituies hospitalares. Porm, estes homens ver-sados (os mdicos) permanecem sujeitos ao juzo da sua Faculdade nos casos que, enquanto concernentes polcia mdica, interessam ao governo.

    Seco II

    CONCEITO E DIVISO DA FACULDADE INFERIOR

    Pode denominar-se Faculdade inferior a classe da universidade que s, ou enquanto, se ocupa de dou-trinas que no so aceites como princpio regulador ordem de um superior. Ora pode certamente aconte-cer que se siga por obedincia uma doutrina prtica,

    30

    mas t-la por verdadeira porque ordenada (de par de Roi) de todo impossvel, no s objectivamente (como um juzo que no deveria ser), mas tambm subjectivamente (como juzo que nenhum homem pode declinar). Com efeito, quem quer enganar-se, como ele diz, efectivamente no se engana e no aceita como, de facto, verdadeiro o juzo falso, mas alega apenas falsamente um assentimento que, no entanto, nele no de encontrar. Por conseguinte, quando se fala da verdade de certas doutrinas que devem ser expostas em pblico, o mestre no pode aqui apelar para uma ordem suprema, nem o aprendiz pretextar ter acreditado por ordem, mas s quando se fala de aco. Deve ento reconhecer por um juzo livre que recebeu verdadeiramente semelhante ordem, e que igualmente obrigado ou, pelo menos, autorizado a obedecer-lhe, de outro modo a sua suposio um vo pretexto e uma mentira. Ora ao poder de jul-gar com autonomia, i.e., livremente (segundo princ-pios do pensar em geral), d-se o nome de razo. H, pois, que conceber-se a Faculdade filosfica, porque deve responder pela verdade das doutrinas que tem de acolher ou at s admitir e, nesta medida, como livre e unicamente sob a legislao da razo, no sob a do governo.

    Mas importa instituir tambm semelhante departa-mento numa universidade, i.e., deve haver uma facul-dade filosfica. Quanto s trs Faculdades superiores, ela serve para as controlar e lhes ser til, porque tudo depende da verdade (a essencial e primeira condio do saber em geral); mas a utilidade que as Faculdades superiores prometem em prol do governo apenas um momento de segunda classe. Pode, sem dvi-da, conceder-se ainda Faculdade teolgica a orgu-lhosa pretenso de ver na filosfica a sua serva (mas ento subsiste sempre a questo de saber se esta precede com a tocha a sua graciosa dama ou pega na cauda do seu vestido); se apenas a no expulsar ou no lhe fechar a boca. Com efeito, a modstia de ser

    31

  • simplesmente livre, e tambm de deixar livre, de descobrir apenas a verdade para vantagem de cada cincia e de a pr livre disposio das Faculdades superiores, deve justamente recomend-la ao prprio governo como insuspeita, mais ainda, como indispen-svel.

    Ora a Faculdade filosfica compreende dois departamentos: um do conhecimento histrico (a que pertence a Histria, a Geografia, o conhecimento erudito da lngua, a Humanstica com tudo o que a cincia natural apresenta de conhecimento emprico); o outro, dos conhecimentos racionais puros (Matem-tica pura, Filosofia pura, Metafsica da natureza e dos costumes), e as duas partes do saber na sua refe-rncia recproca. Estende-se a todas as partes do saber humano (por conseguinte, do ponto de vista his-trico, tambm s Faculdades superiores), s que no faz de todas elas (a saber, das doutrinas ou manda-mentos peculiares das Faculdades superiores) o con-tedo, mas o objecto do seu exame e da sua crtica, na mira do benefcio das cincias.

    A Faculdade de filosofia pode, pois, reivindicar todas as disciplinas para submeter a exame a sua ver-dade. No pode ser afectada de interdito pelo gover-no sem que este actue contra o seu propsito genuno essencial, e as Faculdades superiores devem aceitar as suas objeces e dvidas, que ela publicamente expe o que decerto elas poderiam achar oneroso por-que, sem semelhante crtico, teriam podido permane-cer sem perturbao no seu domnio uma vez adquirido, seja sob que ttulo for e, no obstante, imperar a de modo desptico. S os prticos das Faculdades su-periores eclesisticos, funcionrios da justia e mdi-cos) que, sem dvida, podem ser impedidos de con-tradizer publicamente doutrinas cuja exposio, no desempenho da sua respectiva funo, o governo lhes confiou, e de presumir brincar aos filsofos; com efeito, tal s pode ser permitido s Faculdades, e no aos agentes nomeados pelo governo; porque estes

    32

    tm daquelas o seu saber. Os ltimos, por exemplo, os pregadores e os funcionrios da justia, se cedes-sem tentao de dirigir ao povo as suas objeces e dvidas contra a legislao eclesistica ou civil, insti-g-lo-iam assim contra o governo; pelo contrrio, as Faculdades apenas as opem entre si, como eruditos, coisa de que o povo praticamente no tem notcia alguma, mesmo se elas chegassem ao seu conhecimento, porque se resigna a pensar que sofismar no afazer seu e, por isso, se considera obrigado a ater-se apenas ao que lhe anunciado pelos funcionrios para tal nomeados pelo governo. Mas esta liberdade da Fa-culdade inferior, que lhe no deve ser restringida, suscita o resultado de que as Faculdades superiores (mais bem instrudas elas prprias) trazem os funcio-nrios sempre mais para a senda da verdade, os quais, por seu lado, mais bem elucidados tambm quanto ao seu dever, no encontraro escndalo algum na modificao da sua exposio, pois apenas uma me-lhor compreenso dos meios para o mesmo fim; e tal pode muito bem acontecer sem ataques polmicos e apenas causadores de perturbao, dos mtodos de ensino at ento em vigor, com a mais ntegra persis-tncia da sua substncia.

    Seco III

    DO CONFLITO ILEGAL DAS FACULDADES SUPERIORES

    COM A INFERIOR

    Ilegal uma disputa pblica das opinies, por conseguinte, um conflito erudito ou quanto subs-tncia, se no fosse sequer permitido impugnar uma proposio pblica, porque no permitido proferir

    33

  • simplesmente livre, e tambm de deixar livre, de descobrir apenas a verdade para vantagem de cada cincia e de a pr livre disposio das Faculdades superiores, deve justamente recomend-la ao prprio governo como insuspeita, mais ainda, como indispen-svel.

    Ora a Faculdade filosfica compreende dois departamentos: um do conhecimento histrico (a que pertence a Histria, a Geografia, o conhecimento erudito da lngua, a Humanstica com tudo o que a cincia natural apresenta de conhecimento emprico); o outro, dos conhecimentos racionais puros (Matem-tica pura, Filosofia pura, Metafsica da natureza e dos costumes), e as duas partes do saber na sua refe-rncia recproca. Estende-se a todas as partes do saber humano (por conseguinte, do ponto de vista his-trico, tambm s Faculdades superiores), s que no faz de todas elas (a saber, das doutrinas ou manda-mentos peculiares das Faculdades superiores) o con-tedo, mas o objecto do seu exame e da sua crtica, na mira do benefcio das cincias.

    A Faculdade de filosofia pode, pois, reivindicar todas as disciplinas para submeter a exame a sua ver-dade. No pode ser afectada de interdito pelo gover-no sem que este actue contra o seu propsito genuno essencial, e as Faculdades superiores devem aceitar as suas objeces e dvidas, que ela publicamente expe o que decerto elas poderiam achar oneroso por-que, sem semelhante crtico, teriam podido permane-cer sem perturbao no seu domnio uma vez adquirido, seja sob que ttulo for e, no obstante, imperar a de modo desptico. S os prticos das Faculdades su-periores eclesisticos, funcionrios da justia e mdi-cos) que, sem dvida, podem ser impedidos de con-tradizer publicamente doutrinas cuja exposio, no desempenho da sua respectiva funo, o governo lhes confiou, e de presumir brincar aos filsofos; com efeito, tal s pode ser permitido s Faculdades, e no aos agentes nomeados pelo governo; porque estes

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    tm daquelas o seu saber. Os ltimos, por exemplo, os pregadores e os funcionrios da justia, se cedes-sem tentao de dirigir ao povo as suas objeces e dvidas contra a legislao eclesistica ou civil, insti-g-lo-iam assim contra o governo; pelo contrrio, as Faculdades apenas as opem entre si, como eruditos, coisa de que o povo praticamente no tem notcia alguma, mesmo se elas chegassem ao seu conhecimento, porque se resigna a pensar que sofismar no afazer seu e, por isso, se considera obrigado a ater-se apenas ao que lhe anunciado pelos funcionrios para tal nomeados pelo governo. Mas esta liberdade da Fa-culdade inferior, que lhe no deve ser restringida, suscita o resultado de que as Faculdades superiores (mais bem instrudas elas prprias) trazem os funcio-nrios sempre mais para a senda da verdade, os quais, por seu lado, mais bem elucidados tambm quanto ao seu dever, no encontraro escndalo algum na modificao da sua exposio, pois apenas uma me-lhor compreenso dos meios para o mesmo fim; e tal pode muito bem acontecer sem ataques polmicos e apenas causadores de perturbao, dos mtodos de ensino at ento em vigor, com a mais ntegra persis-tncia da sua substncia.

    Seco III

    DO CONFLITO ILEGAL DAS FACULDADES SUPERIORES

    COM A INFERIOR

    Ilegal uma disputa pblica das opinies, por conseguinte, um conflito erudito ou quanto subs-tncia, se no fosse sequer permitido impugnar uma proposio pblica, porque no permitido proferir

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  • um juzo pblico sobre ela e o seu contrrio; ou sim-plesmente quanto forma, se o modo como condu-zida a discusso no assenta em argumentos objecti-vos