Contra Corrente 4

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CONTRA CORRENTE para quem desafia o pensamento único Número 4 A farsa da “economia verde” explicita a captura corporativa do Estado, da ONU e dos demais espaços decisórios. Proposta central não tem nada a ver com a defesa do meio ambiente. O que interessa é somente o lucro. O novo papel das IFIs no marco do capitalismo verde A lei corresponsabiliza o BNDES pela violação de direitos Copa do Mundo: apropriação privada dos recursos públicos RIO + 20 = 0 VIDA

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REVISTA

Transcript of Contra Corrente 4

  • Editorial ndice

    Lobo em pele de cordeiro

    Contra Corrente uma publicao da Rede Brasil sobre Instituies Financeiras MultilateraisNmero 04, Junho de 2012

    Edio e Reviso: Patrcia BonilhaProjeto Grfico e Capa: Guilherme Resende - [email protected] da Contracapa: Verena Glass

    Os artigos assinados refletem a opinio de seus autores/as.E no, necessariamente, so questes consensuadas na Rede Brasil.

    SCS, Qd 01, Bloco L, Edifcio Mrcia, sala 904Braslia - DF, CEP 70307-900 * t + 5561 3321-6108www.rbrasil.org.br

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    preciso compreender a realidade - ou as diversas realidades - em que estamos inseridos para poder transform-la. Neste sentido, esta edio da Contra Corrente pretende contribuir para uma compreenso mais aprofundada sobre o tema do financiamento. Em tempos de apropriao da questo ambiental por parte das Instituies Financeiras Internacionais (IFIs) e da proposio de falsas solues para a crise ecolgica e climtica, fundamental refletir com cuidado sobre as polticas e os protagonistas da atual conjuntura. Tambm importante, nesse processo, perceber quem so, onde, como e por que lobos travestidos de cordeiros se empenham na construo de uma ordem mundial que no tem nada de nova.

    Em sua carta de posio sobre a Rio + 20, ao afirmar-se contra a mercantilizao da vida e a financeirizao da natureza, na defesa dos bens comuns e afirmao de direitos e demandar Banco Mundial fora do nosso mundo, a Rede Brasil d um recado claro de que, para alm de questionar o senso comum, posiciona-se de modo inequvoco contra a principal proposta de aprofundamento do capital na atualidade: a transformao da natureza em mercadoria. Estamos vivendo um momento na histria da humanidade que beira ao surrealismo ou, talvez, ao realismo fantstico. No este o caso quando se considera que a proposta de um dos mecanismos da economia verde, o Pagamento de Servios Ambientais (PSA), pretende precificar a polinizao das abelhas, considerando-as - desse modo - como trabalhadoras a servio do capital? Nem George Orwell, em sua incrvel e mirabolante obra 1984, conseguiu ser to ousado.

    Assim, com o propsito de abordar essas questes sob uma perspectiva crtica, os artigos aqui apresentam os seguintes temas: as mudanas na legislao brasileira para regulamentar os mecanismos da economia verde; os impactos desta e do atual modelo de desenvolvimento nos territrios; a reinveno das IFIs e o papel central que elas ocupam na definio das polticas no Brasil; a atuao dos BRICS no G20 e na Rio + 20; a corresponsabilidade do BNDES, expressa na Lei, sobre as violaes dos projetos que financia; a centralidade do Brasil na geopoltica mundial; o obscuro financiamento da Copa do Mundo; e a presena da dvida na vida do cidado comum.

    Lanada no ms em que acontece a Rio + 20, esta edio tem tambm como propsito subsidiar os membros da Rede no processo de preparao para os debates que sero realizados durante a IX Assemblia Geral da Rede Brasil, que acontecer entre os dias 15 e 17 de agosto, em Braslia. Esta Assemblia pretende ser mais um passo no sentido de acumular reflexo crtica para a necessria mudana do atual sistema de dominao do capital.

    Agradecemos a todos/as que, generosamente, colaboraram nesta edio. E, por ltimo, apresentamos abaixo os personagens das tiras que ilustram algumas matrias. Eles, por si, j do uma idia do contedo das prximas pginas.

    Boa leitura!

    Carta de posio da Rede Brasil sobre a Rio + 20

    Economia verde impe preo na natureza

    Espoliao na fronteira Brasil-Bolvia-Peru

    A histria se repete, agora como farsa

    Valorando o que no tem valor

    Esquizofrenia na sade pblica

    Cidades excludentes do BID

    BRICS: mais do mesmo

    Brasil em transe

    Caos generalizado

    Decifra-me ou te devoro

    A Copa como ela

    BNDES responsvel pela violao de direitos

    Copa: recursos pblicos, apropriao privada

    Banco Mundial: regularizar para controlar

    CONTRA CORRENTEpara quem desafia o pensamento nico

    Nmero 4

    A farsa da economia verde explicita a captura corporativa do Estado, da ONU e dos demais espaos decisrios. Proposta central no tem nada a ver com a defesa do meio ambiente. O que interessa somente o lucro.

    O novo papel das IFIs no marco do capitalismo verde

    A lei corresponsabiliza o BNDES pela violao de direitos

    Copa do Mundo: apropriao privada dos recursos pblicos

    RIO + 20 = 0 VIDA

  • Editorial ndice

    Lobo em pele de cordeiro

    Contra Corrente uma publicao da Rede Brasil sobre Instituies Financeiras MultilateraisNmero 04, Junho de 2012

    Edio e Reviso: Patrcia BonilhaProjeto Grfico e Capa: Guilherme Resende - [email protected] da Contracapa: Verena Glass

    Os artigos assinados refletem a opinio de seus autores/as.E no, necessariamente, so questes consensuadas na Rede Brasil.

    SCS, Qd 01, Bloco L, Edifcio Mrcia, sala 904Braslia - DF, CEP 70307-900 * t + 5561 3321-6108www.rbrasil.org.br

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    preciso compreender a realidade - ou as diversas realidades - em que estamos inseridos para poder transform-la. Neste sentido, esta edio da Contra Corrente pretende contribuir para uma compreenso mais aprofundada sobre o tema do financiamento. Em tempos de apropriao da questo ambiental por parte das Instituies Financeiras Internacionais (IFIs) e da proposio de falsas solues para a crise ecolgica e climtica, fundamental refletir com cuidado sobre as polticas e os protagonistas da atual conjuntura. Tambm importante, nesse processo, perceber quem so, onde, como e por que lobos travestidos de cordeiros se empenham na construo de uma ordem mundial que no tem nada de nova.

    Em sua carta de posio sobre a Rio + 20, ao afirmar-se contra a mercantilizao da vida e a financeirizao da natureza, na defesa dos bens comuns e afirmao de direitos e demandar Banco Mundial fora do nosso mundo, a Rede Brasil d um recado claro de que, para alm de questionar o senso comum, posiciona-se de modo inequvoco contra a principal proposta de aprofundamento do capital na atualidade: a transformao da natureza em mercadoria. Estamos vivendo um momento na histria da humanidade que beira ao surrealismo ou, talvez, ao realismo fantstico. No este o caso quando se considera que a proposta de um dos mecanismos da economia verde, o Pagamento de Servios Ambientais (PSA), pretende precificar a polinizao das abelhas, considerando-as - desse modo - como trabalhadoras a servio do capital? Nem George Orwell, em sua incrvel e mirabolante obra 1984, conseguiu ser to ousado.

    Assim, com o propsito de abordar essas questes sob uma perspectiva crtica, os artigos aqui apresentam os seguintes temas: as mudanas na legislao brasileira para regulamentar os mecanismos da economia verde; os impactos desta e do atual modelo de desenvolvimento nos territrios; a reinveno das IFIs e o papel central que elas ocupam na definio das polticas no Brasil; a atuao dos BRICS no G20 e na Rio + 20; a corresponsabilidade do BNDES, expressa na Lei, sobre as violaes dos projetos que financia; a centralidade do Brasil na geopoltica mundial; o obscuro financiamento da Copa do Mundo; e a presena da dvida na vida do cidado comum.

    Lanada no ms em que acontece a Rio + 20, esta edio tem tambm como propsito subsidiar os membros da Rede no processo de preparao para os debates que sero realizados durante a IX Assemblia Geral da Rede Brasil, que acontecer entre os dias 15 e 17 de agosto, em Braslia. Esta Assemblia pretende ser mais um passo no sentido de acumular reflexo crtica para a necessria mudana do atual sistema de dominao do capital.

    Agradecemos a todos/as que, generosamente, colaboraram nesta edio. E, por ltimo, apresentamos abaixo os personagens das tiras que ilustram algumas matrias. Eles, por si, j do uma idia do contedo das prximas pginas.

    Boa leitura!

    Carta de posio da Rede Brasil sobre a Rio + 20

    Economia verde impe preo na natureza

    Espoliao na fronteira Brasil-Bolvia-Peru

    A histria se repete, agora como farsa

    Valorando o que no tem valor

    Esquizofrenia na sade pblica

    Cidades excludentes do BID

    BRICS: mais do mesmo

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    Decifra-me ou te devoro

    A Copa como ela

    BNDES responsvel pela violao de direitos

    Copa: recursos pblicos, apropriao privada

    Banco Mundial: regularizar para controlar

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    Os artigos assinados refletem a opinio de seus autores/as.E no, necessariamente, so questes consensuadas na Rede Brasil.

    SCS, Qd 01, Bloco L, Edifcio Mrcia, sala 904Braslia - DF, CEP 70307-900 * t + 5561 3321-6108www.rbrasil.org.br

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    preciso compreender a realidade - ou as diversas realidades - em que estamos inseridos para poder transform-la. Neste sentido, esta edio da Contra Corrente pretende contribuir para uma compreenso mais aprofundada sobre o tema do financiamento. Em tempos de apropriao da questo ambiental por parte das Instituies Financeiras Internacionais (IFIs) e da proposio de falsas solues para a crise ecolgica e climtica, fundamental refletir com cuidado sobre as polticas e os protagonistas da atual conjuntura. Tambm importante, nesse processo, perceber quem so, onde, como e por que lobos travestidos de cordeiros se empenham na construo de uma ordem mundial que no tem nada de nova.

    Em sua carta de posio sobre a Rio + 20, ao afirmar-se contra a mercantilizao da vida e a financeirizao da natureza, na defesa dos bens comuns e afirmao de direitos e demandar Banco Mundial fora do nosso mundo, a Rede Brasil d um recado claro de que, para alm de questionar o senso comum, posiciona-se de modo inequvoco contra a principal proposta de aprofundamento do capital na atualidade: a transformao da natureza em mercadoria. Estamos vivendo um momento na histria da humanidade que beira ao surrealismo ou, talvez, ao realismo fantstico. No este o caso quando se considera que a proposta de um dos mecanismos da economia verde, o Pagamento de Servios Ambientais (PSA), pretende precificar a polinizao das abelhas, considerando-as - desse modo - como trabalhadoras a servio do capital? Nem George Orwell, em sua incrvel e mirabolante obra 1984, conseguiu ser to ousado.

    Assim, com o propsito de abordar essas questes sob uma perspectiva crtica, os artigos aqui apresentam os seguintes temas: as mudanas na legislao brasileira para regulamentar os mecanismos da economia verde; os impactos desta e do atual modelo de desenvolvimento nos territrios; a reinveno das IFIs e o papel central que elas ocupam na definio das polticas no Brasil; a atuao dos BRICS no G20 e na Rio + 20; a corresponsabilidade do BNDES, expressa na Lei, sobre as violaes dos projetos que financia; a centralidade do Brasil na geopoltica mundial; o obscuro financiamento da Copa do Mundo; e a presena da dvida na vida do cidado comum.

    Lanada no ms em que acontece a Rio + 20, esta edio tem tambm como propsito subsidiar os membros da Rede no processo de preparao para os debates que sero realizados durante a IX Assemblia Geral da Rede Brasil, que acontecer entre os dias 15 e 17 de agosto, em Braslia. Esta Assemblia pretende ser mais um passo no sentido de acumular reflexo crtica para a necessria mudana do atual sistema de dominao do capital.

    Agradecemos a todos/as que, generosamente, colaboraram nesta edio. E, por ltimo, apresentamos abaixo os personagens das tiras que ilustram algumas matrias. Eles, por si, j do uma idia do contedo das prximas pginas.

    Boa leitura!

    Carta de posio da Rede Brasil sobre a Rio + 20

    Economia verde impe preo na natureza

    Espoliao na fronteira Brasil-Bolvia-Peru

    A histria se repete, agora como farsa

    Valorando o que no tem valor

    Esquizofrenia na sade pblica

    Cidades excludentes do BID

    BRICS: mais do mesmo

    Brasil em transe

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    Decifra-me ou te devoro

    A Copa como ela

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    Copa: recursos pblicos, apropriao privada

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    Contra a mercantilizao da vida e a financeirizao da natureza!Na defesa dos bens comuns e afirmao dos direitos!Banco Mundial Fora do Nosso Mundo!

    Em junho de 2012, a cidade do Rio de Janeiro sediar a Rio+20, Conferncia das Naes Unidas sobre Desenvolvimento Sustentvel, cuja agenda de implementao da chamada economia verde ser o tema central. Instituies Financeiras Internacionais (IFis), como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social (BNDES), tm ocupado um papel central na conduo desta agenda, que promove a mercantilizao da vida e a financerizao da natureza. A Rede Brasil sobre Instituies Financeiras Multilaterais, fundamentada pelos seus 17 anos na luta contra hegemnica e no monitoramento crtico das polticas e projetos das instituies financeiras, vem a pblico posicionar-se frente ao processo da Rio+20.

    A consolidao e aceitao da economia verde via conferncia mundial de meio ambiente explicita a captura corporativa da ONU e demais espaos multilaterais. Ator central na imposio de ajustes estruturais nas dcadas de 1980 e 1990, o Banco Mundial, atualmente, emerge como promotor de um novo consenso liberal - agora verde - de incorporao das fronteiras da natureza ao mercado. Internacionalmente, desde 2007, o Banco Mundial investe na criao de fundos de preparao e expanso de mercados de carbono, com o claro objetivo de obter recursos exorbitantes a partir da transformao do ar em mercadoria. Alm disso, 56%

    Carta de Posio rumo Cpula dos Povos na Rio+20

    Diante do aprofundamento da expropriao capitalista, travestido de verde, resta aos povos: mobilizar e resistir

    Bank

    sy

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    ContRa CoRRente

    de seus investimentos para o setor de energia, e os lucros decorrentes dos juros dos emprstimos, esto concentrados em fontes de carbono intensivas. No Brasil, a estratgia do Banco Mundial no se limita ao financiamento de projetos. Ao longo das ltimas dcadas, o banco exerceu grande incidncia na formulao de polticas pblicas. Mais recentemente, focou seus esforos na flexibilizao da legislao ambiental e na poltica climtica, de modo a dar maior agilidade a grandes investimentos destruidores da natureza, como a implementao de empresas extrativas e mega projetos de infraestrutura, alm da expanso do agronegcio.

    O processo de financeirizao da natureza representa uma expanso das fronteiras de acumulaes do capital sobre tudo aquilo que at hoje ainda no havia sido transformado em mercadoria ou em papel moeda. A arquitetura financeira da economia verde, sendo construda com base no enfraquecimentos dos direitos nas polticas pblicas, visa permitir a especulao sobre o ar que respiramos e a gua que bebemos, por exemplo,

    medida que se tornam bens escassos. A mercantilizao da natureza um grande risco para a humanidade, pois significa um aprofundamento do processo de expropriao dos territrios e de explorao do trabalho e dos bens comuns. No Brasil, esse preocupante quadro tem sido ilustrado por muitos casos, que vo desde as lutas contra a construo da usina de Belo Monte, no Par, at as denncias e resistncia frente s violaes da siderrgica da TKCSA, no Rio de Janeiro, passando por um amplo espectro de embates sociais resultantes da imposio de um modelo centrado no lucro de poucos s custas do sofrimento da maioria. Na quase totalidade desses projetos, o BNDES o principal financiador.

    Este modelo de desenvolvimento, que aprofunda o capitalismo, ter na Rio+20 um importante momento de consolidao, ideolgica e jurdica/legal. Por tudo isso, a Rede Brasil entende ser fundamental resistir a tal processo, denunciar a captura coorporativa dos espaos multilaterais e exigir dos governos que sigam a agenda poltica dos povos e no a das corporaes, das

    a Rede Brasil entende ser fundamental resistir ao processo de mercantilizao da natureza, denunciar a captura coorporativa dos espaos multilaterais e exigir dos governos que sigam a agenda poltica dos povos, e no a das corporaes, das elites e instituies financeiras.

    elites e instituies financeiras.Assim, a Cpula dos Povos por

    Justia Social e Ambiental, contra a mercantilizao da natureza e pela defesa dos bens comuns dever ter o papel de mobilizar a sociedade contra os riscos, para os povos e para a natureza, decorrentes da implementao dessa economia verde neoliberal. A Rede Brasil, neste sentido, apia tambm o processo de mobilizao e construo da Assemblia Permanente dos Povos, a fim de dar voz e fora s populaes atingidas pelas mltiplas dimenses do atual modelo de desenvolvimento e pelas falsas solues e novas formas de reproduo do capitalismo promovidas pelas IFIs. So estas mesmas populaes que, alm de resistir, vivem e recriam as alternativas na construo de uma outra economia e de uma outra sociedade.

    Repr

    odu

    o

    Venha ocupar a Rio+20,

    hora de mudar o sistema!

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    Larissa Ambrosano Packer*

    economia verde impe preo na naturezaUma engenharia legal est sendo construda no Brasil para regulamentar mecanismos financeiros que premiam quem sempre desmatou e poluiu; o nus fica com os povos que, historicamente, conservaram a vida no planeta

    O Brasil possui atualmente 48,7 milhes de hectares de superfcie semeados, com uma colheita recorde em 2011 de 160 milhes de toneladas de cereais, gros e sementes oleaginosas. Na ltima safra, tornou-se o maior exportador de soja do mundo, com 38 milhes de toneladas1. Por isso,

    diante da crise alimentar e econmica mundial, tem o desafio de avanar em sua produo agrcola e alimentar e na gerao de emprego e renda. Por outro lado, o maior pas megadiverso do planeta, com 508 milhes de hectares de mata nativa e cerca de 13% da biodiversidade2 encontrada no planeta.

    Frente crise climtica e ambiental que mobiliza todas as naes do mundo, o Brasil tambm est diante do desafio de ressignificar o conceito de desenvolvimento sustentvel.

    A importncia estratgica do pas nesses dois campos se traduz pelos rgos-chave da Organizao das Naes Unidas (ONU) dirigidos por brasileiros atualmente: Jos Graziano da Silva, que em 2011 assumiu a direo-geral da Organizao das Naes Unidas para Agricultura e Alimentao (FAO), rgo encarregado dos recursos fitogenticos para alimentao e agricultura mundial; e Brulio Ferreira de Souza Dias, recm-empossado secretrio-executivo do Secretariado da Conveno sobre Diversidade Biolgica (CDB), responsvel por garantir as metas de conservao e uso sustentvel da diversidade biolgica do planeta.

    negcios, negcios e negcios - A estratgia brasileira visibilizar o valor econmico dos recursos naturais, assim como das externalidades ambientais produzidas pelas cadeias produtivas. Ao encontrar um valor expresso monetariamente para a gua ou a fertilidade dos solos, necessrios produo de gros para exportao das commodities agrcolas, por exemplo, pretende-se agregar valor s commodities agrcolas e minerais - atravs da cobrana

    Os mecanismos da economia verde recompensam quem desmata: tudo pelo dinheiro

    Nilo

    DA

    vila

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    ContRa CoRRente

    dos custos ambientais gerados -, assim como dar ao Brasil a chance de controlar o mercado de ativos ambientais e fixar o preo futuro das commodities ambientais. No por outro motivo que a Bolsa de Valores de So Paulo (Bovespa) j vem negociando os novos ativos verdes, resultantes de bnus ou crditos de carbono de projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) e do mercado de carbono voluntrio. Nesse sentido, tambm foi criada, em fins de 2011, a Bolsa Verde do Rio (BVRio), que pretende ser a primeira bolsa de valores a desenvolver um mercado de ativos ambientais com o objetivo de promover a economia verde no estado e no pas3.

    Ao regulamentar o marco nacional para estruturar este novo mercado sobre a biodiversidade e os servios ambientais, o Brasil pode controlar o custo de oportunidade entre avanar com soja sobre a Amaznia ou manter a floresta em p, jogando com o valor da commodity agrcola ou da commodity ambiental no mercado especulativo. O que se verifica no pas uma interdependncia ou atrelamento da chamada economia verde economia marrom. Quanto mais poluio e desmatamento gerado pela indstria ou pelo agronegcio, maior o valor dos ativos ambientais, valorizados com a escassez da mercadoria que representam - a biodiversidade.

    Propriedade privada sobre o ar Em 2009 foi aprovada a Poltica Nacional sobre Mudana do Clima (PNMC), a fim de cumprir com as metas voluntrias de reduo, entre 36,1% e 38,9% das emisses projetadas para 2020, ento assumidas pelo Brasil na Conveno Quadro das Naes Unidas sobre Mudanas do Clima. Para tanto a PNMC, elege cinco planos setoriais estratgicos para as redues: os planos de ao para preveno e controle do desmatamento e das queimadas na Amaznia e no Cerrado, que seriam

    responsveis, respectivamente por 80% e 40% dos cortes nacionais; o Plano Decenal de Expanso de Energia (PDE), responsvel por 6,1% a 7,7% dos cortes de emisses, com foco em centrais elicas, pequenas centrais hidroeltricas (PCHs) e bioeletricidade, na oferta de agrocombustveis e no incremento da eficincia energtica; o Plano Setorial de Mitigao e de Adaptao das Mudanas Climticas para a Consolidao de uma Economia de Baixa Emisso de Carbono na Agricultura (Plano ABC), que prev

    incentivos de at R$ 1 milho por produtor rural que opte por atividades tidas como menos poluentes, como o plantio direto4; e, ainda, o Plano de Reduo de Emisses da Siderurgia, atravs do incentivo para o uso de carvo vegetal originrio de florestas plantadas e a melhoria na eficincia do processo de carbonizao. A poltica de reduo de emisses ainda prev sua expanso para outras reas, como a indstria de transformao, qumica, papel e celulose, construo civil, minerao, transportes,

    Gui

    lher

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    Quanto mais poluio

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    gerado pela indstria

    ou pelo agronegcio,

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    ativos ambientais,

    valorizados com

    a escassez da

    mercadoria que

    representam - a

    biodiversidade.

    trabalho, tecnologia e sade.Estes planos setoriais de reduo esto autorizados a emitir e vender crditos de carbono no novo Mercado Brasileiro de Reduo de Emisses (MBRE), que ser operacionalizado em bolsas de mercadorias e futuros, bolsas de valores e entidades de balco organizado autorizadas pela Comisso de Valores Mobilirios (CVM)5, atravs da negociao de ttulos mobilirios representativos de emisses de gases de efeito estufa evitados. O Certificado de Reduo de Emisses por Desmatamento e Degradao Florestal (CREDD), ttulo mobilirio representativo de uma tonelada de dixido de carbono (CO2) equivalente evitada, est para ser regulamentado pelo Projeto de Lei n 195/2011), que tramita no Congresso Nacional, criando a propriedade privada sobre o ar e a possibilidade de circulao da nova mercadoria da chamada economia de baixo carbono.

    Quanto mais destri, mais lucra - Na prtica, a Poltica Nacional sobre Mudana do Clima cria a demanda de reduo das emisses nacionais e a delega ao mercado atravs da autorizao de emisso de bnus ou crditos de carbono por setores produtivos tidos como mais limpos. A instalao de mega projetos energticos na Amaznia, como a usina hidreltrica de Belo Monte ou o Complexo Tapajs, alm de impactar os territrios indgenas e de povos tradicionais amaznicos e gerar danos incomensurveis biodiversidade local, ainda podero negociar, na forma de ativo ambiental, seu bnus por deixar de emitir carbono, levantando dinheiro no mercado financeiro. Siderrgicas que substituam seu carvo mineral por carvo vegetal, vindo de monocultivos de rvores plantadas, tambm podero emitir crditos de carbono evitado, e capitalizar-se com os negcios verdes nas bolsas de valores. Do mesmo modo, o agronegcio e os monocultivos de soja, por exemplo, podero receber benefcios como iseno fiscal e financiamentos facilitados a

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    juros baixos para o plantio direto com aplicao de altas taxas de herbicidas, o que autoriza o setor agrcola industrial a continuar avanando sua fronteira agrcola com incentivos estatais, e ainda emitir crditos de carbono equivalente evitado.

    Por outro lado, os planos de reduo das emisses nos biomas amaznico e cerrado, de 80% e 40% das emisses nacionais respectivamente, no recaem sobre os setores que mais respondem pelas emisses e degradao, mas sobre as populaes tradicionais e suas prticas de manejo do territrio. Atravs de programas como o Bolsa Verde6, lanado pelo governo federal em outubro de 2011, os beneficirios7 ficam obrigados a desenvolver atividades de conservao e uso sustentvel. Isso significa que o nus para o cumprimento das metas de reduo das emisses acaba recaindo sobre aquelas populaes que sempre foram responsveis pela conservao e uso sustentvel. Caso as famlias no cumpram com os requisitos do termo de adeso, alm de perderem a bolsa, podem ser multadas, por exemplo, no caso de utilizarem formas de manejo tradicional, como as tcnicas de pousio para realizar os roados para sua subsistncia

    Ao invs de induzir boas prticas de uso e conservao das florestas, a PNMC pode criminalizar as formas de manejo dos povos que, historicamente, garantem o uso e conservao da floresta em p e, por outro lado, beneficiar os setores das cadeias produtivas que mais poluem e degradam, tanto com a autorizao da emisso de ativos ambientais, como tambm com polticas de incentivos fiscal e tarifrio.

    Florestas como mercadoria - Com o objetivo de cumprir as metas para a reduo da degradao e desmatamento da biodiversidade fixadas no Plano Estratgico para 2020 da Conveno da Diversidade Biolgica (CDB), o governo brasileiro se apressa para aprovar em tempo recorde uma Poltica Nacional de Biodiversidade, que tem como base a

    valorao econmica dos componentes da natureza; as parcerias pblico-privadas na gestao das Unidades de Conservao; e a concesso de florestas pblicas. Sua proposta se fundamenta em incentivos corporativos ou de mercado para a conservao e uso sustentvel da biodiversidade atravs da poltica de Pagamento por Servios Ambientais (PSA). O que pode gerar, a exemplo do que vem acontecendo no mbito das

    polticas sobre mudanas climticas, a regulamentao de um mercado nacional da biodiversidade.

    A fim de realizar essa valorao monetria da biodiversidade, a CDB recepcionou o estudo TEEB (sigla em ingls para The Economics of Ecosystems and Biodiversity, Economia dos Ecossitemas e da Biodiversidade)8, como ferramenta capaz de resolver a falha de mercado dos bens comuns, de modo a incorporar um preo aos componentes da biodiversidade, como qualquer outra mercadoria. O estudo foi

    traduzido no Brasil pela Confederao Nacional das Industrias (CNI), e o instrumento de convencimento do setor industrial e corporativo para fomentar a construo desse novo mercado sobre a biodiversidade e o mercado de pagamentos por servios ambientais.

    Tramitando tambm no Congresso Nacional, o Projeto de Lei n 792/07, e seus dez apensos, pretende estabelecer o Mercado Nacional de Pagamentos de Servios Ambientais, autorizando a comercializao de diversos componentes da biodiversidade atravs de contratos privados ou pblicos realizados entre comunidades fornecedoras de servios ambientais e empresas poluidoras-compradoras de autorizaes para continuar a gerar danos (compensaes ambientais). Enquanto isso, semelhana do ttulo de propriedade sobre o ar ou o carbono - a CREDD, a atual proposta de flexibilizao do Cdigo Florestal autoriza a emisso da CRA (Cota de Reserva Ambiental), ttulo de crdito representativo de um hectare de floresta nativa, que poder ser comprada e vendida tanto para compensar reas que no tenham Reserva Legal exigida por lei9, como para serem negociadas em bolsas de valores no mercado financeiro. dada a largada para a introduo das florestas tropicais no mercado financeiro.

    A compra e venda desses ttulos feita por agentes privados atravs da bolsa de valores. Eles adquirem esses ativos ambientais atravs de contratos de compra e venda de servios ambientais, firmados com fornecedores desses servios (principalmente agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais), em troca da emisso do ttulo em seu nome. O territrio e os recursos naturais, objeto do contrato de PSA, passam a ser o lastro, ou seja, a garantia do ttulo (CREDD ou CRA), e devem estar disposio do usurio-comprador.

    necessrio frisar que, para garantir o monitoramento e a fiscalizao do servio contratado, o artigo 6 do projeto de lei de PSA assegura, ao

    o lucro da dita

    economia marrom

    a possibilidade de

    lucros da chamada

    economia verde,

    o chamado win-win

    (ganha-ganha). o

    clculo estritamente

    econmico e nada

    tem a ver com meio

    ambiente.

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    ContRa CoRRente

    Larissa Ambrosano Packer Advogada da Terra de Direitos e Mestre em Filosofia do Direito pela Universidade Federal do Paran - [email protected]

    usurio-pagador do servio, pleno acesso rea objeto do contrato e a dados relativos s aes de manuteno e recuperao realizadas pelo provedor. O contrato de PSA vinculado matrcula do imvel por meio de servido ambiental, ou seja, da renncia do provedor do servio aos direitos de supresso ou explorao da vegetao por, no mnimo, 15 anos.

    De fato, os grupos que construram a flexibilizao do Cdigo Florestal e a regulamentao dos Pagamentos por Servios Ambientais pretendem induzir a demanda pelo mercado da biodiversidade e dos ecossistemas, ou seja, regularizar a compra do direito de poluir e degradar.

    ou ganha ou ganha - Ao vincular os pagamentos por servios ambientais ao mercado financeiro, com a autorizao de emisso de ttulos ou ativos que representam toneladas de carbono captadas (como o caso do mercado de carbono) ou com as florestas nativas (como previsto na atual proposta do Cdigo Florestal brasileiro flexibilizado), a proteo da biodiversidade e a regulao climtica tornam-se um negcio e a possibilidade de conservao ambiental se resume ao custo de oportunidade. Quanto maior a especulao sobre o humor do clima, quanto maior o risco sobre as florestas ou a quantidade de emisses, maior o valor dos ttulos ambientais e, por conseguinte, dos servios ambientais. O lucro da dita economia marrom a possibilidade de lucros da chamada economia verde, o chamado win-win (ganha-ganha). O clculo estritamente econmico e nada tem a ver com meio ambiente.

    Em linhas gerais, a proposta de transio para uma economia verde apresenta-se como legitimao do direito dos pases desenvolvidos de comprar a renovao de suas dvidas histricas que no sero pagas, transferindo este nus para os territrios das comunidades do Sul Global, que passam a ser as garantias ou lastro deste novo mercado sobre a natureza.

    NOTAS E rEfErNciAS bibliOgrficAS* Este texto parte de um artigo maior que integra a publicao Inside a Champion, an analyses of the Brazilian developing model, da Fundao Henrich Boell Brasil, disponvel em http://br.boell.org/

    1 Comunicao Social. Em 2012, IBGE prev safra 0,3% maior que em 2011. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), 10 de janeiro de 2012. Disponvel em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=2065&id_pagina=1. Acesso em 15 de fevereiro de 2012.

    2 Florestas do Brasil em Resumo 2010: dados de 2005-2010. Disponvel em: . Acesso em 10 de maro de 2012.

    3 A Bolsa Verde do Rio de Janeiro, que ser conhecida pela sigla BVRio, ter negociaes de produtos j conhecidos, como crditos de carbono, mas tambm ter novidades, como papis relacionados ao Cdigo Florestal brasileiro, que exige de fazendeiros manter certo espao de floresta dentro de sua propriedade. Crespo, Silvio G. FT: Com Bolsa Verde, Rio pode virar polo financeiro alternativo. Estado de So Paulo, 19 de dezembro de. 2011. Disponvel em: http://blogs.estadao.com.br/radar-economico/2011/12/19/ft-com-bolsa-verde-rio-pode-virar-centro-financeiro-alternativo/. Acesso em 20 de maro de 2012.

    4 O plantio direto um sistema diferenciado de manejo do solo que visa diminuir o impacto da agricultura e das mquinas agrcolas (tratores, arados, etc.) identificado como atividade agrcola menos emissora de GEE, constituindo-se como a principal tecnologia de uma agricultura de baixo carbono. No entanto, o plantio direto em uma agricultura industrial de larga escala, segue o padro tecnolgico altamente dependente de combustveis fsseis, com a aplicao de. Tal procedimento torna questionvel sua identificao como tecnologia verde, que deve ser incentivada atravs de pagamentos por servios ambientais como parte de uma agricultura de baixo carbono.

    5 A CVM um rgo pblico que tem como funo desenvolver, regular e fiscalizar o Mercado de Valores Mobilirios.

    6 O Bolsa Verde um programa de pagamento por servio ambiental pblico que consiste na doao de R$ 300 reais a cada trs meses, pelo prazo de dois anos, que poder ser renovado, s famlias que residam em Unidades de Conservao na Amaznia.

    7 So beneficirias do programa as famlias que se encontram em situao de extrema pobreza, equivalente renda per capita mensal de at R$ 70. Os estados abrangidos so Acre, Amap, Amazonas, Mato Grosso, Par, Rondnia, Roraima, Tocantins, e parte do estado do Maranho.

    8 Encomendada pelo G8+5 em 2007, a iniciativa sediada pelo Programa das Naes Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), coordenada pelo economista indiano Pavan Sukhdev, chefe da diviso de novos mercados globais do Deutsche Bank, e conta com o apoio da Comisso Europeia e de vrios ministrios nacionais de desenvolvimento na Europa.

    9 O Cdigo Florestal brasileiro, de 1965, exige um mnimo de cobertura vegetal nativa a qualquer propriedade privada no pas. Trata-se de uma interveno administrativa nos direitos de propriedade privada em nome do interesse pblico e social, a fim de garantir observncia dos ndices de produtividade e das legislaes ambiental e trabalhista. A Reserva Legal de, no mnimo, 20 % da posse ou propriedade no Sul do Brasil, de 35% no bioma Cerrado e de 80% na Amaznia Legal.

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    Elder Andrade de Paula*

    espoliao na fronteira Brasil - Bolvia - PeruA imposio da lgica mercantilista do capitalismo verde j agrava as condies de vida e os processos de resistncias dos povos nessa regio, cuja histria marcada pela expropriao

    La suposicin de que el problema indgena es un problema tnico se nutre del ms envejecido repertorio de ideas imperialistas. El concepto de las razas inferiores sirvi al Occidente blanco para su obra de expansin y conquista () La tendencia a considerar el problema indgena como un problema moral encarna una concepcin liberal, humanitaria, ochocentista, iluminista, que en el orden poltico de Occidente anima y motiva las ligas de los Derechos del Hombre() El concepto de que el problema del indio es un

    problema de educacin no aparece sufragado ni aun por un criterio estricta y autnomamente pedaggico () El nuevo planteamiento consiste en buscar el problema indgena en el problema de la tierra. (Maritegui)1

    A essncia do problema apontado pelo filsofo peruano Maritegui persiste em Nuestra Amrica no alvorecer do sculo XXI. Agora, todavia, as prticas imperialistas se mesclam com o colonialismo interno que engendra a espoliao tanto dos povos indgenas quanto das demais

    Povos resistem imposio da lgica hegemnica: contra o aprofundamento da espoliao

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    ContRa CoRRente

    espoliao na fronteira Brasil - Bolvia - Peru

    populaes que vivem em territrios cobiados pelo capital, como o caso da faixa territorial formada pela trplice fronteira Brasil-Bolvia-Peru. Nela, a implementao de grandes projetos de infraestrutura relacionados Iniciativa para Integrao da Infraestrutura Regional da Amrica do Sul (IIRSA) conjugados com o extrativismo em larga escala de todas las bondades de La naturaleza2 e outras formas de explorao predatria, como a pecuria extensiva de corte, tornaram uma faixa de 300 mil km2 de terras pequena demais para acomodar 900 mil pessoas. Particularmente para cerca de vinte povos indgenas e comunidades camponesas que vivem nos campos e florestas (aproximadamente 200 mil pessoas) e as populaes pobres que vivem precariamente nas zonas urbanas, em reas de risco - por falta de acesso a um pedacinho de cho para construrem suas moradas/vivendas.

    O mais dramtico de tudo isso que a re-territorializao do capital nessa trplice fronteira segue os cnones do capitalismo verde, apresentado com a simptica denominao de desenvolvimento sustentvel e nica alternativa a ser seguida. Graas formao de um monumental aparato de construo de hegemonia, logrou-se a obteno de forte consenso em torno da inexorabilidade da sujeio da vida e de las bondades de La naturaleza aos imperativos da mercantilizao do mundo. Sua dramaticidade deve-se ao fato de que agora nesses territrios tudo que est sob e sobre a terra, inclusive o ar que se respira, est venda. Mas, de que territrios estamos falando?

    Usurpao secular - A Amaznia continental constituiu-se desde o incio da colonizao europia como palco de intensas disputas por parte das principais potncias do continente. Com a perda do domnio colonial ibrico no sculo XIX, as disputas territoriais na Amaznia prosseguiram entre os diferentes Estados

    nacionais. Foi nesse contexto que o Brasil, a Bolvia e o Peru delimitaram os seus respectivos domnios territoriais.

    Esse processo de re-configurao territorial resultou de fortes disputas entre capitais externos pelo controle do fluxo da borracha natural (matria-prima bsica para a indstria sediada na Europa e nos Estados Unidos da Amrica) e das articulaes destes com oligarquias regionais. A espoliao foi levada a cabo via genocdio, expropriao dos territrios indgenas e super explorao do trabalho destes povos e de migrantes pobres de outras regies transladadas

    para Amaznia, como mostraram de formas singulares Euclides da Cunha, no alvorecer do sculo XX, e Mario Vargas Llosa, um sculo depois3.

    Passados os dois ciclos de boom da borracha natural, esses territrios foram gradativamente readaptados s dinmicas de acumulao interna e externa do capital. No caso peruano, a construo de estradas ligando Pilcopata-Shintuya e Quincemil-Mazuko-Puerto Maldonado, finalizadas na dcada de 1960, somada ao incremento da minerao de ouro no final da dcada de 1970, atraram fortes fluxos migratrios para o departamento de Madre de Dios, que conta atualmente com aproximadamente

    100 mil habitantes. Ainda hoje esta regio sofre com os infortnios da explorao florestal madeireira, de gs e de petrleo, com a pecuria de corte e a construo de barragens (financiadas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social - BNDES, e construdas por empreiteiras sediadas no Brasil). Recentemente, este quadro tem se agravado devido aos projetos vinculados financeirizao da natureza via Pagamento de Servios Ambientais (PSA) e Reduo de Emisses por Desmatamento e Degradao (REDD).

    O estado do Acre possui uma populao de 700 mil habitantes, dos quais 72,61% esto situados em zonas urbanas. Tambm passou por um processo de re-territorializao capitalista determinado pela poltica de integrao nacional adotada pela ditadura militar no ps 1964. A ligao rodoviria com o restante do pas e agora estendida at o Oceano Pacifico, tal como planejada pelos militares, foi seguida por um processo de modernizao do setor agrcola, pautada na expropriao dos povos indgenas e do campesinato, na concentrao da propriedade fundiria, na expanso da pecuria extensiva de corte e na explorao florestal madeireira. Atualmente, assim como na Bolvia, esto sendo implementados projetos de PSA e REDD4 e a explorao de petrleo no Parque Nacional da Serra do Divisor.

    Em Pando, extremo norte da Bolvia, vivem aproximadamente 78 mil habitantes, 70% desta populao est concentrada em Cobija, capital do departamento. As atividades produtivas esto ancoradas no extrativismo, especialmente na coleta de castanhas e explorao madeireira5. A exemplo do que ocorre no Acre e em Madre de Dios, a pecuria extensiva de corte vem se expandindo aceleradamente neste territrio. Outra atividade econmica que vem se expandindo a minerao de ouro. Os grandes projetos de infraestrutura vinculados IIRSA tambm afetam os povos de Pando.

    a dramaticidade

    deve-se ao fato de

    que, agora, nesses

    territrios tudo que

    est sob e sobre a

    terra, inclusive o

    ar que se respira,

    est venda.

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    o mesmo processo - Nos ltimos vinte anos os mapas das unidades sub nacionais situadas nessa trplice fronteira foram substancialmente modificados. O processo de re-territorializao que presidiu essas transformaes seguiu rigorosamente as polticas e estratgias imperiais voltadas para o esverdeamento do capitalismo e o controle dos territrios dotados de bens naturais estratgicos. Atravs da instrumentalizao da agenda conservacionista internacional, buscou-se legitimar o saque dos bens naturais em escala planetria. Para exemplificar, usaremos o mapa do departamento de Madre de Dios No entanto, as re-configuraes territoriais materializadas no departamento de Pando e no Acre seguem um padro similar a este representado no mapa. Elas foram

    karm

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    Fonte: Fleck, Leonardo et al (2010), Estrategias de conservacin a lo largo de la carretera Interocenica en Madre de Dios, Per: un anlisis econmico socio-espacial

    Departamento de Madre de Dios, Peru

    implementadas atravs de adaptaes no ordenamento jurdico institucional nos respectivos pases, visando adapt-las mercantilizao e financeirizao dos bens naturais, impostas pelos centros de poder mundial.

    A Usaid (sigla em ingls para Agncia Estadunidense para o Desenvolvimento Internacional)6 foi quem explicitou de forma mais clara os objetivos e estratgias

    utilizadas para levar a cabo essa re-territorializao. Segundo afirma essa agncia muitas das atividades apoiadas pela ABCI [sigla em ingls para Iniciativa para Conservao da Bacia Amaznica] esto concentradas no sudoeste da Amaznia, uma regio de excepcional biodiversidade que contm grandes parques nacionais, terras indgenas, e outras reas que permitem o uso

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    ContRa CoRRente

    * Elder Andrade de Paula Mestre e Doutor em Desenvolvimento Agrcola e Sociedade e, atualmente,

    Docente da Universidade Federal do Acre (UFAC) -

    [email protected]

    sustentvel de recursos naturais. Esse uso sustentvel, de acordo com a Usaid, requer empoderar organizaes locais e nacionais; (...) Aplicar processos competitivos para gerar estratgias inovadoras para a conservao da biodiversidade; (...) Promover parcerias eficazes entre a sociedade civil, os rgos pblicos e o setor privado; (...) Comunicar bem, com regularidade e criatividade; (...) Formar consenso em torno das metas regionais; (...) Respeitar os direitos e a diversidade cultural e integrar as questes de gnero, etnia (...).

    O tpico Comunicar bem, com regularidade e criatividade logrou tanto xito que formou um forte consenso em torno da virtuosidade desse re-ordenamento territorial e das polticas e estratgias de desenvolvimento sustentvel a ele associadas. A sua construo e manuteno deve-se formao de monumental aparato de construo de hegemonia integrado por grandes ONGs conservacionistas internacionais e ONGs locais e nacionais a elas subordinadas, representaes cooptadas de movimentos sociais, partidos polticos, organizaes religiosas e suas articulaes com os governos em diferentes nveis, independentemente de suas opes ideolgicas. Este o caso do ex governador do departamento de Pando, Leopoldo Fernandez, conhecido aliado das oligarquias golpistas do oriente boliviano. Atualmente, Fernandez est preso em La Paz sob a acusao de ter comandado o massacre de dezenas de camponeses em El Porvenir, em setembro de 2008.

    A expanso da explorao sustentvel de madeiras, nas suas diversas modalidades, e a adoo do PSA e do REDD tm resultado na multiplicao dos conflitos sociais tambm nesses territrios, situados nas denominadas reas protegidas.

    NOTAS E rEfErNciAS bibliOgrficAS 1 Maritegui, J. Carlos; 7 Ensayos de Interpretacin de la Realidad Peruana. Lima. Biblioteca Amauta (2005: 40;43;44)

    2 http://sitap.produccion.gob.bo/Atlas_Productivo_2009_web/PANDO.pdf

    3 Euclides da Cunha, Margem da histria. Porto. Lello & Irmo (1941); Mario Vargas Llosa; O sonho do celta. Rio de Janeiro. Objetiva (2011)

    4 http://sitap.produccion.gob.bo/Atlas_Productivo_2009_web/PANDO.pdf

    5 Para saber mais sobre PSA e REDD ver revista Contra Corrente n3 (www.rbrasil.org.br) e Boletim 175 WRM http://www.wrm.org.uy 6 Usaid, Iniciativa para Conservao da Bacia Amaznica: desenho, atividades propostas e resultados esperados (2007) http://www.usaid.gov/locations/latin_america_caribbean/environment/ acesso 04/2007

    Todavia, eles tm sido fortemente ocultados pelos defensores do capitalismo verde. Via de regra, procuram desqualificar as crticas e denncias, afirmando tratar-se de coisa dos aliados dos devastadores das florestas. De forma maniquesta, reduzem a realidade a um eterno confronto entre as foras do bem e do mal: de um lado estariam os defensores do desenvolvimento sustentvel (denominao mais palatvel para o capitalismo verde); de outro, os desmatadores. Parte substancial dos dilemas das lutas de resistncia dos povos que vivem nesses territrios reside nesta armadilha.

    Um mundo povoado de mundos Em realidade, trata-se do verso e reverso da mesma moeda: espoliao do capitalismo nas suas diferentes coloraes. As chamadas polticas mitigatrias, usadas tanto para compensar efeitos da explorao nas reas protegidas quanto os dos grandes projetos de infraestrutura (Programa de Acelerao do Crescimento - PAC e IIRSA) que as afetam, servem como salvo conduto verde. Nesse sentido, o quadro atual parece ainda mais dramtico do que aquele analisado por Maritegui. Isto : a aparente e enganosa soluo do problema da terra oculta outras formas de espoliao institudas sob a matriz do capitalismo verde. Por isso, os povos indgenas e o campesinato defrontam-se com outra ordem de dificuldades para mover-se nesse emaranhado. Todavia, esto em luta e havero de mover-se nessa complexa conjuntura com a mesma maestria que o fazem nas florestas que restam nesses territrios. Oxal encontrem em seus caminhos tantos outros hermanos en la lucha contra o capitalismo e insistam em sonhar com a construo de um mundo em que caibam muitos mundos para se bien viver.

    A expresso Las bondades de La naturalezaexplicita uma outra perspectiva: respeito vida

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    Diana Aguiar*

    a histria se repete; agora, como farsaUma das maiores lies da crise atual do sistema capitalista a de nunca decretar prematuramente a morte de instituies e ideologias: elas tm um poder assustador de se reiventarem.

    Primeiro, como tragdia - Antes do incio do colapso financeiro em 2008, o Fundo Monetrio Internacional (FMI) enfrentava a pior crise da sua histria. Muitos pases asiticos e latino-americanos que, nas dcadas de 1980 e 1990, foram prejudicados com os planos de estabilizao atrelados aos emprstimos do Fundo, descreviam como

    humilhante a atuao dos agentes do FMI. Estes economistas treinados dentro da ideologia neoliberal impunham a poltica econmica a ser adotada pelo pas contraindo o emprstimo, sem qualquer espao para discusso de alternativas ou mesmo sobre as condies do financiamento.

    Como resultado, estes pases fizeram

    todo o possvel para acumular reservas como um seguro contra futuras crises que pudessem significar a necessidade de novos emprstimos do FMI. Sem interessados em seus servios, o Fundo estava enfraquecido.

    Depois, como farsa - Tudo mudou no outono de 2008. Com o colapso financeiro, um aparente movimento na direo de reviso dos valores subjacentes ao chamado Consenso de Washington estava na ordem do dia inclusive nos discursos dos pases do G20 e das Instituies Financeiras Internacionais (IFIs), especialmente o FMI. importante lembrar que estas mesmas IFIs foram as que promoveram as polticas neoliberais de financeirizao, liberalizao e desregulao como panacia para a estabilidade econmica e o desenvolvimento.

    Entretanto, quase quatro anos depois da quebra do banco estadunidense Lehman Brothers, marco do colapso financeiro, a extenso com a qual o paradigma neoliberal vem sendo reinventado assustadora e representativa da captura da poltica pelos interesses do capital financeiro.

    apelando para o estado - As polticas de recuperao econmica ps-2008 no foram homogneas. Os pases que dependeram de emprstimos externos das IFIs ou de outros pases para

    A conta da especulao financeira custou caro aos povos de vrios pases: desemprego, retirada de direitos e corte de gastos pblicos

    EFE

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    ContRa CoRRente

    a execuo de seus programas de recuperao econmica sofreram a imposio de polticas de austeridade fiscal (especialmente cortes de gastos pblicos) como condio para os emprstimos. Neste sentido, a Grcia o caso mais emblemtico. Mas os povos da Islndia Ucrnia, Hungria, Nepal e Paquisto, logo aps a crise e, posteriormente, Portugal, Irlanda e Espanha, tambm sentem na pele o aprofundamento da recesso e a deteriorao das condies de vida. Este processo bastante conhecido dos povos latino-americanos, j que, por duas dcadas, seus governos se submeteram aos planos de estabilizao do FMI e aos programas de ajuste estrutural do Banco Mundial. Diversos estudos1 mostram que os programas atuais destas instituies pouco mudaram em termos do seu receiturio, exigindo como condies para os emprstimos, em larga medida, a no-interveno no cmbio e no fluxo de capitais, a reduo de gastos pblicos e o controle da inflao atravs dos juros. Por outro lado, pases como os Estados Unidos, que, por acmulo de reservas ou por emitirem moeda sistemicamente importante, tiveram relativa autonomia no desenho de seus programas de recuperao econmica, adotaram de forma diversificada: altssimos investimentos para salvar instituies, bancos e empresas que haviam investido na especulao; polticas de alvio quantitativo para desvalorizao cambiria (tornando suas exportaes mais competitivas); controles de capitais (como o Brasil, na tributao unilateral das transaes financeiras atravs do IOF2); e polticas fiscais contra-cclicas (diminuindo a arrecadao atravs de isenes de impostos direcionadas a setores especficos e aumentando o gasto pblico para aquecer a economia), dentre outras.

    A diferena no trato dos problemas

    enfrentados pelos pases, a partir do colapso de 2008, explicita a lgica do sistema de atuar com dois pesos e duas medidas.

    estado a servio das elites - Mesmo quando havia relativa autonomia em relao aos ditames de financiadores externos no caso especialmente das economias ditas avanadas, nas quais os mercados financeiros nacionais

    estavam altamente comprometidos pelos ativos txicos que vieram tona com o estouro de bolhas especulativas em 2008 , as perdas privadas dos mercados financeiros foram socializadas. Ou seja, elas foram assumidas amplamente pelos cofres pblicos atravs da compra de ativos financeiros txicos (sem real

    valor de mercado) e polticas de injeo de liquidez na economia. Esta vultosa transferncia de recursos pblicos para os bancos e outras corporaes financeiras privadas, premiando diretamente os agentes financeiros que criaram as bolhas especulativas, possivelmente uma das maiores subverses de valores da histria da economia mundial no ltimo sculo.

    De fato, algumas falncias parte, a elite financeira internacional conseguiu fazer com que os cidados pagassem a conta da crise causada pelos comportamentos de alto risco que lhes geraram lucros estratosfricos estes sempre protegidos pela santidade da propriedade privada. Atravs da opacidade de modelos matemticos complexos, essas elites financeiras conseguiram, em larga medida, disfarar os fatos mais simples. Principalmente, o fato de que cotidianamente e at diversas vezes em fraes de segundo elas atuam em um verdadeiro cassino financeiro, apostando sobre a rentabilidade da riqueza produzida pelo trabalho de bilhes de trabalhadoras e trabalhadores ao redor do mundo. Milhes dos quais perderam seus empregos por conta das recesses causadas pelas crises financeiras, consequncia direta deste cassino financeiro. Seria de se esperar que esta trama macabra fosse alvo de crticas generalizadas no sentido de, pelo menos, a reviso das atuais prticas. No entanto, em junho de 2012, a desregulao financeira continua amplamente praticada, os programas de austeridade fiscal marcam a tnica dos programas de recuperao econmica de uma Europa em recesso e com graves crises de dvidas soberanas e as IFIs passaram de moribundas a fortalecidas e re-capitalizadas.

    a reinveno das IFIs - A rapidez com que os idelogos do sistema que trouxe o mundo atual crise se reinventaram assustadora. Por um lado, corporaes financeiras privadas - como as agncias de avaliao de risco que, antes do colapso financeiro, recomendavam

    a transferncia de recursos pblicos para os bancos e

    outras corporaes financeiras

    privadas, premiando diretamente os

    agentes financeiros que criaram as

    bolhas especulativas, possivelmente uma das maiores

    subverses de valores da histria da economia mundial no

    ltimo sculo.

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    o investimento nos ativos que, mais tarde, se mostraram txicos - no perderam sua credibilidade. Ao contrrio, seguem avaliando o risco no s de ativos financeiros privados, como dos ttulos de dvida pblica uma boa parte dos quais foram emitidos para financiar a recuperao econmica e salvar os mercados financeiros. As demais corporaes financeiras continuam com seu comportamento especulativo, apostando no cassino financeiro, quase nada re-regulado desde 2008. De concreto, nenhuma iniciativa multilateral coordenada de peso no sentido da regulao vem sendo implementada pelas IFIs. Pelo contrrio, o FMI, por exemplo, tem resistido a apoiar o controle de capitais como medida necessria para conter a volatilidade dos fluxos financeiros, e tem - menos ainda - permitido tal poltica aos pases que recebem seus emprstimos. Outras IFIs, menos conhecidas, no tm agido de forma diferente, como o Comit de Basilia, o Conselho de Estabilidade Financeira (FSB, sigla em ingls), a Organizao Internacional das Comisses de Valores (Iosco, sigla em ingls) e o Banco de Compensaes Internacionais (BIS, sigla em ingls). Em termos de governana, elas nada mais fizeram do que, em alguns casos, incorporar os pases do G20 que no faziam parte de seus corpos diretivos, sem melhorar em nada a prestao de contas ao pblico. Assim como o caso do prprio G20, a incluso dos pases emergentes e grandes economias regionais nestas IFIs, longe de significar uma mudana de paradigma, tem servido como elemento fragmentador das perspectivas do Sul Global entre os que foram falsamente includos e os que ficaram de fora facilitando, acima de tudo, a manuteno do status quo no contedo poltico e forma de trabalho.

    O Comit de Basilia para a regulao bancria sistematizou os Acordos de Basilia III em teoria voluntrios,

    mas na prtica obrigatrios aos bancos que queiram manter a credibilidade no sistema. Este conjunto de propostas mantm uma falha fundamental dos Acordos anteriores: regula as instituies financeiras bancrias e no o sistema bancrio sombra, onde circulam os derivativos e ativos do mercado de balco, instrumentos financeiros que causaram o colapso financeiro de 2008.

    Por outro lado, apesar do mandato do G20 para a execuo de estudos sobre a regulao financeira, o FSB e a Iosco no tm capacidade legal de implementao de suas recomendaes. Estas IFIs, que junto com o FMI, saram fortalecidas como pilares da arquitetura financeira internacional, so representativas do nvel de captura das elites financeiras sobre as institucionalidades estabelecidas.

    novas fronteiras de acumulao As IFIs no tm sido instrumentais somente na manuteno do status quo da governana econmica global, da desregulao financeira e das polticas econmicas neoliberais. J de amplo conhecimento o efeito nefasto que a especulao financeira sobre as commodities agrcolas tem tido na elevao dos preos dos alimentos e, consequentemente, na segurana alimentar das populaes mais vulnerabilizadas. Agora, atravs de alguns de seus programas, as IFIs tm apoiado a criao de novas commodities, novas fronteiras de acumulao dos mercados financeiros via especulao desregulada.

    O Banco Mundial, por exemplo, atravs de seu programa Contabilidade de Riqueza e Valorao de Servios do Ecossistema (cuja sigla em ingls Waves), em parceria com o Programa das Naes Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), tem promovido a atribuio de valores monetrios aos recursos naturais para fins de contabilidade nas contas pblicas nacionais. Desse modo, favorece a

    criao de commodities a partir destes recursos e promove os mecanismos de mercado como a soluo para a crise ambiental. Estas novas commodities, baseadas na chamada indstria de servios ambientais, constituem uma nova fronteira de especulao para os mercados financeiros, uma verdadeira privatizao financeira dos bens comuns. Este somente um exemplo de como as IFIs representam os interesses das elites financeiras na agenda da chamada economia verde.

    ocupar a arquitetura financeira internacional - Desde 2008, diversas mobilizaes de massa, como a Primavera rabe, o movimento dos Indignados na Europa e os movimentos de Ocupao nos Estados Unidos, tm se organizado para resistir e denunciar a impunidade dos artfices da crise e dos impactos devastadores do colapso financeiro e econmico na vida dos povos em todo o mundo. No entanto, a euforia econmica dos pases emergentes, as mentiras da mdia corporativa e a captura das IFIs pelas elites financeiras tm mascarado a continuidade das instabilidades sistmicas e dificultado a globalizao das lutas na extenso necessria para a transformao. Denunciar estas contradies um dos passos fundamentais neste sentido.

    * Diana Aguiar Mestre em Relaes Internacionais pela PUC-Rio e facilitadora do Grupo de Trabalho sobre

    Arquitetura Econmica Internacional (GT-AEI) da Rede

    Brasileira pela Integrao dos Povos (Rebrip)

    [email protected]

    NOTAS E rEfErNciAS bibliOgrficAS 1 Nuria Molina-Gallart e Bhumika Muchhala. Strings Attached: How the IMFs Economic Conditions Foil Development-Oriented Policies for Loan-Borrowing Countries. Third World Network, 2010. 2 Bretton Woods Project. IMF policy recommendations: not enough change after the crisis. Bretton Woods Update, No 80, Maro/Abril, 2012.

    3 Imposto sobre Operaes Financeiras.

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    ContRa CoRRente

    O descaso das empresas e a falta de fiscalizao do governo causaram a mortede 40 mil peixes de criao: fim do sonho

    Lcia Ortiz e Winnie Overbeek*

    Valorando o que no tem valorAs IFIs, especialmente o Banco Mundial, tm um papel decisivo na construo da nova arquitetura financeira mundial que especula a natureza

    Quando o tema financeirizao e Instituies Financeiras Internacionais (IFIs), temos que voltar para o incio dos anos de 1970. Naquela poca, a economia capitalista entrou em crise e as taxas de lucros das grandes empresas caram. Em busca de encontrar novas formas de acumulao de capital e lucros, o governo dos Estados Unidos decidiu no mais aceitar a conversibilidade entre o dlar e o ouro, o que representou o fim do sistema monetrio internacional tendo o ouro como lastro. At ento, o dinheiro em circulao era, sobretudo, capital que resultava de atividades produtivas reais, por exemplo, da produo industrial. Mas a partir daquele momento, comeou a circular cada vez mais dinheiro na forma de diversos papis, o chamado capital especulativo. Hoje em dia, o valor do capital especulativo j supera em vrias vezes o valor do capital produtivo. a lgica de ganhar dinheiro sem fazer nada.

    Tambm nos anos de 1970 veio tona uma outra crise: a ecolgica. O grande capital afirmava, j naquela poca, que a maior causa da destruio da natureza era que ela no tinha valor; que se tivesse um preo e o capital natural fosse includo na economia, o que ainda restava da natureza poderia ser preservado; se no, o ser humano destruiria tudo. Nessa linha,

    foi desenvolvido o conceito de servios ambientais e o de pagamento por servios ambientais.

    Em ambos os casos, constatamos que, com o aval das IFIs (principalmente do Banco Mundial), as crises foram transformadas em oportunidades especulativas1. O Protocolo de Quioto obrigou, em 1997, pases industrializados do Norte Global a reduzirem suas emisses de gases de efeito estufa, principalmente o carbono. No entanto, a meta de reduo mdia de 5% em relao s suas emisses no ano de 1990 pode ser considerada irrisria. Mais grave ainda o fato do protocolo permitir formas de compensao pela continuada emisso de carbono se algum pas do Norte no conseguir cumprir com suas obrigaes. Uma das principais formas

    o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). Nascia ali o mercado de carbono, um mercado especulativo, virtual e, sobretudo, bastante lucrativo. O MDL criou como lastro projetos realizados nos pases do Sul, que no so decididos pelas comunidades diretamente impactadas e que, por sua vez, no tm nenhuma responsabilidade pelo problema da poluio da atmosfera, configurando mais uma situao de Injustia Ambiental.

    a falcia do aprendendo-fazendo O Banco Mundial quis ser pioneiro nesse novo mercado de carbono e ampli-lo para mercados voluntrios, para alm do MDL e, desde o final dos anos de 1990, criou vrios fundos, dentre eles

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    o Fundo Prottipo de Carbono (PCF, sigla em ingls). Segundo o Banco, sua misso explorar o mercado de redues de emisses de efeito estufa, baseado em projetos, enquanto promovendo desenvolvimento sustentvel e oferecendo uma oportunidade de aprendendo-fazendo para seus participantes. O Fundo conta com US$ 180 milhes de dezessete empresas e seis governos dos pases industrializados do Norte.2

    No Brasil, um dos principais projetos promovidos no mbito do MDL foi a plantao de eucalipto da empresa Plantar S/A, em Minas Gerais. Segundo esta proposta, as rvores armazenariam carbono da atmosfera que gerariam crditos de carbono. De fato, rvores fixam carbono. No entanto, essas rvores so cortadas aps sete anos, transformadas em carvo vegetal e queimadas nos fornos de ferro gusa da siderrgica da Plantar em Sete Lagoas, devolvendo todo o carbono de volta para a atmosfera. Portanto, no h

    contribuio positiva para o clima. E nem para o desenvolvimento local, j que a Plantar, h anos, concentra enormes reas de terras e espalha desertos verdes de monoculturas de rvores em regies que poderiam servir para produzir alimentos para milhares de famlias de agricultores e agricultoras.

    Em setembro de 2010, dezenas de organizaes e movimentos sociais do Brasil e do mundo entregaram mais uma carta ao Conselho Executivo de MDL da Organizao das Naes Unidas (ONU), apontando para os vrios impactos negativos sociais e ambientais das plantaes de eucalipto em larga escala e afirmando tambm que inaceitvel que o carbono armazenado nos eucaliptos justifique a emisso de uma quantidade equivalente de carbono da queima de combustveis fsseis por empresas poluidoras da Europa.3 De fato, o caso da Plantar exemplar no sentido de evidenciar que os projetos de MDL nunca conseguiro realizar uma reduo

    real de emisses de carbono. Mas o que de fato realizam, com o apoio do Banco Mundial, contribuir para a especulao financeira com a crise do clima, e sem contribuir para a soluo do problema climtico; portanto, trata-se de uma imensa fraude.

    nova forma de lucrar - Desde que estourou a ltima crise do capital especulativo em 2008, os mercados financeiros se dedicaram de vez aos servios ambientais, articulados com a Organizao das Naes Unidas (ONU), que realizou estudos sobre como definir o preo da natureza, uma tarefa logicamente impossvel. Nesse sentido, as IFIs continuaram no seu papel de catalisadoras, oferecendo fundos e pressionando, tambm por meios de emprstimos, para tornar a gesto ambiental mais eficiente e para que os pases montem a estrutura legal necessria para se adequarem s exigncias da economia verde.

    Em 2008, o Banco Mundial fez um emprstimo histri-co ao Brasil para o Desenvolvimento em Gesto Ambiental Sustentvel (SEM DPL, sigla em ingls) de US$ 1,3 bilho de dlares, a serem alocados no Banco Nacional de Desen-volvimento Econmico e Social (BNDES). Trata-se do maior emprstimo do BM ao Brasil. O recurso veio em um momento em que o BNDES estava turbinado e a economia crescente do pas no tinha qualquer necessidade de adquirir mais dvidas. Mas, com a crise financeira, o Banco Mundial tinha ainda mais interesse em expandir novos mercados e os seus fundos verdes, lanados no ano anterior. O emprstimo apresentou como con-dicionalidade a criao de uma poltica ambiental pelo BNDES. Na prtica, um cavalo de tria, pois o BNDES no deixou de concentrar o dinheiro pblico nas grandes corporaes, como a Vale (minerao), a Fibria (celulose) e a Cosan (agrocombust-veis, hoje pertencente a Shell). No entanto, paralelamente, criou os seguintes fundos e iniciativas verdes para lucrar com as crises do clima e da biodiversidade: Fundo Amaznia, Fundo Clima, Inicia-tiva BNDES Mata Atlntica, BNDES Florestal (destinado tambm ao reflorestamento com monocultura de espcies exticas comerciais), BNDES Project Finance (engenharia financeira suportada contratualmente pelo fluxo de caixa de um projeto, servindo como garantia os ativos e recebveis desse mesmo empreendimento),

    BNDES Compensao Florestal (de apoio regularizao do passivo de reserva legal em propriedades rurais destina-das ao agronegcio), BNDES Proplstico-Socioambien-tal (apoio a investimentos envolvendo a racionalizao do uso de recursos naturais, MDL, sistemas de gesto e

    recuperao de passivos ambientais e a projetos e pro-gramas de investimentos sociais realizados por empresas

    da cadeia produtiva do plstico), ECOO11 - iShares ndice de Carbono Eficiente Brasil (constitudo por aes de empresas

    brasileiras que divulgam suas emisses de CO2), BNDES Empresas Sustentveis na Amaznia, BNDES Fundo de Inovao em Meio Am-biente, FIP Brasil Sustentabilidade (foco em projetos de MDL e com potencial para gerar Redues Certificadas de Emisses), FIP Vale Florestar (em reas degradadas na regio de abrangncia de Ca-rajs). Vrias destas iniciativas tm como responsveis as mesmas corporaes que causam o problema climtico. O que parece contra-ditrio no . Somente a contnua poluio e degradao da nature-

    za pode tornar os bens comuns escassos e, assim, elevar seu preo nos mercados e nas bolsas de valores, ou seja, no mundo das ins-

    tituies financeiras que hoje controlam a poltica. Assim, o Banco Mundial, que est a anos-luz de ser um exemplo de sustentabilidade,

    influencia com sua agenda neoliberal a financeirizao da natureza e da poltica ambiental do Brasil. E o BNDES adota esta cartilha com gosto.

    FUnDos VeRDes e a ajUDInha Do BanCo MUnDIaL

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    ContRa CoRRente

    A possibilidade de gerar lucro vem da criao de novas commodities para serem comercializadas, como o carbono. No entanto, pretende-se tambm comercializar a biodiversidade, a gua, e at mesmo o que se considera os servios feitos pelos integrantes da natureza, como a polinizao que fazem as trabalhadoras abelhas, que agora tambm podem ser exploradas pelo capital. Especialistas dos mercados financeiros esto se dedicando agora tarefa de buscar formas para incorporar os servios ambientais a seus negcios, como uma alternativa bem-vinda de ampliar os lucros. Isso tudo significa mais privatizao de reas de uso comum das populaes rurais no mundo inteiro, sobretudo onde h muito capital natural como, por exemplo no Brasil, especialmente onde vivem as comunidades, tanto nas florestas como nas cidades. Portanto, pode-se definir a financeirizao da natureza como o processo pelo qual o capital especulativo se apropria de bens comuns e componentes da natureza, comercializando-os atravs de certificados, ttulos, ativos, etc, buscando, com a especulao financeira, a obteno do maior lucro possvel.

    o crucial PIB verde Para operacionalizar a venda e comercializao dos servios ambientais, o prprio Banco Mundial sugeriu nos anos de 1990 a ideia do PIB verde, argumentando que o PIB atual no representaria a verdadeira riqueza de um pas se no inclusse o capital natural como as florestas e os rios. Os defensores argumentam que, dessa forma, por exemplo, a extrao de minrio, poderia no resultar em crescimento econmico se os impactos ambientais, como o desmatamento e a contaminao dos rios, fossem includos.

    Mas por que s nos ltimos anos o debate do PIB verde passa a ganhar terreno? Isso se explica se olharmos para o principal objetivo da Conferncia

    Rio+20 por parte dos pases centrais do capitalismo global: que todos os pases adotem o caminho da economia verde, uma proposta que permite continuar poluindo e destruindo, mas dentro de certos limites para que possa haver compensao.

    Para que isso acontea, de suma importncia que haja uma regulamentao, uma legislao, em vrios nveis. Isso explica, por exemplo, o surgimento de vrios projetos de novas leis nos mais diferentes pases, como o Brasil. Aqui, dentre outras, foi feita a proposta do PIB Verde, Projeto de Lei 2900/2011, pelo deputado federal Srgio Leite (PSDB-RJ)1.

    Esta proposta do PIB Verde est sendo fortemente alavancada pelo Banco Mundial em diferentes regies, em consonncia com o fato de que a economia capitalista est em crise e desesperadamente em busca de alternativas para acumular lucros e gerar novos ambientes para investimento, como reza a letra do prprio rascunho da Declarao da Rio+20, chamada O Futuro que Queremos2. Segundo Rachel Kyte,

    vice-diretora do Banco Mundial para o desenvolvimento sustentvel em relao contabilizao do capital natural, temos conversado sobre isso h 30 ou mais anos. J est na hora de parar de conversar e comear a implementar.3

    O economista Glenn-Marie Lange, que atua na valorizao de Sistemas Ecossistmicos do Banco Mundial, afirma ainda que a falta de valorizao de recursos naturais no seu ambiente um dos principais motivos para o contnuo declnio dos ecossistemas.4

    os fatos falam por si - No entanto, as experincias-piloto postas em prtica desmentem esta afirmao e o principal argumento em defesa dos servios ambientais. Um exemplo o que ocorre no estado do Acre, considerado um estado referncia na questo da implementao de um sistema de pagamento e comercializao de servios ambientais. Enquanto em outros estados da Amaznia a explorao madeireira foi reduzida pela metade, no Acre, ao longo da ltima dcada, ela quadruplicou apesar da introduo do

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    urgente mudar radicalmente o sistema econmico mundial e excluir seu carter especulativo predatrio: Banco Mundial fora do planeta

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    manejo florestal sustentvel. O rebanho de gado que era de 800 mil em, 1998, passou para trs milhes em 2010, e novos projetos, como explorao de gs e petrleo, j so uma realidade. Na lgica de continuar destruindo e supostamente compensando pela destruio, ganham madeireiros, fazendeiros e empresas; perdem a populao e a natureza local.5

    No caso do Acre, o prprio Banco Mundial, atravs do seu brao privado IFC (sigla em ingls para Corporao Financeira Internacional), est intrinsicamente atrelado a essa lgica. Foi o IFC que, por exemplo, emprestou US$ 90 milhes empresa Bertin em 2007 para expandir suas atividades na Amaznia6. A atividade de expanso do negcio da carne na Amaznia , comprovadamente, a principal fora por trs da destruio das florestas naquela regio.

    Para alm do que no deveria ser Instituies financeiras pblicas, como o Banco Mundial, tm um papel que vai muito alm do emprstimo e gerao de dvidas para implementar projetos de desenvolvimento, ou da criao de novos produtos, fundos e mercados, que interessam a qualquer banco. O Banco Mundial, desde a sua criao no Ps Guerra mundial, atua como um thinktank (centro de desenvolvimento de pensamento), sendo uma pea chave na elaborao e difuso da ideologia do desenvolvimento. Aps os programas de ajuste estrutural, o receiturio e as condicionalidades para emprstimos com vistas implementao do projeto neoliberal de privatizao das estatais e dos servios pblicos, na dcada de 1990, eram explcitos nos documentos de pas preparados pelo Banco Mundial, como verdadeiros guias para o desenvolvimento desses pases, como escrutinado pela Rede Brasil naquele perodo.

    Duas dcadas mais tarde, o Banco continua com a mesma atuao intervencionista, tanto na perspectiva

    poltica como metodolgica. No entanto, agora, carrega muito mais na pintura verde. O Banco Mundial aconselha sobre as polticas de combate s mudanas de clima com enfoque nos mercados de carbono e criao de sistemas nacionais setoriais de compensaes (ou offsets). da que vem o nome do Programa Nacional ABC Agricultura de Baixo Carbono7, um dos planos setoriais da Poltica Nacional sobre Mudana do Clima que, em 2012, prev incentivos de R$ 3 bilhes, atravs do BNDES, para a expanso do bom agronegcio8. E na nova onda da economia verde, o papel central das instituies financeiras explcito no rascunho da declarao da Rio+20, j que elas so citadas vrias vezes nos documentos.

    Para quem tinha a iluso de que a tal transio para a economia verde, tal como um programa de dieta vegetariana para um tigre feroz, tivesse algo a ver com a reduo do apetite das indstrias extrativas, dos mega projetos de infraestrutura e dos combustveis fsseis, ou com a proposta de limpar as economias industriais sujas dos pases do Norte e parar com a poluio e degradao ambiental no Sul, melhor ler bem o que a Rio+20 est preparando.

    Nota-se que a ajuda das IFIs tem como destino sempre os pases (chamados) em desenvolvimento, historicamente menos responsveis pelas crises ambientais, segundo o princpio das responsabilidades comuns porm diferenciadas acordado na Rio 92, h 20 anos. Interessante observar que justamente nesses pases onde est o verde que resta e que, nesta nova arquitetura financeira mundial, precisa ir para as mos do mercado e salvar o capitalismo em crise. Quanto ao Planeta, no se conhece o plano B.

    Isso tudo posto, fica claro que a Terra e os povos no tm mais tempo para a proposta do aprender-fazendo, como sugerem as receitas

    1 WRM, 2012. Servios Ambientais. WRM boletim 175 (www.wrm.org.uy)

    2 http://wbcarbonfinance.org/Router.cfm?Page=PCF&ItemID=9707&FID=9707

    3 WRM, 2011. Brasil: O caso da Plantar - o FSC servindo para vender crditos de carbono. WRM bulletin 163 (www.wrm.org.uy)

    4 http://www.ecodesenvolvimento.org.br/posts/2012/fevereiro/projeto-de-lei-estabelece-o-pib-verde

    5 O Pargrafo 9 do rascunho da declarao O Futuro que Queremos, no final de maio de 2012, dizia Reconhecemos que a boa governana (...) assim como um ambiente propcio para investimentos so essenciais para o desenvolvimento sustentvel, incluindo o crescimento econmico sustentado e inclusivo e a erradicao da pobreza e da fome , em: http://cupuladospovos.org.br/wp-content/uploads/2012/05/O-futuro--que-queremos_22-maio-2012.pdf

    6 http://www.scientificamerican.com/article.cfm?id=world--bank-pushes-for-green-accounting-by-nations

    7 http://www.scientificamerican.com/article.cfm?id=world--bank-pushes-for-green-accounting-by-nations

    8 WRM, 2011. Brasil: Por trs da imagem verde: a mercantili-zao da floresta e impactos sobre as comunidades locais no estado do Acre. WRM Bulletin 172 (www.wrm.org.uy)

    9 http://www.regiaodosvales.com.br/noticia/noticia.php?id=12253

    10 http://www.ecodebate.com.br/2010/07/02/estudo-de-baixo-carbono-brasil-uma-reciclagem-do-discurso-dos-vel-hos-atores-entrevista-com-lucia-ortiz-e-camila-moreno/

    11 http://www.agricultura.gov.br/abc/

    Lcia Ortiz coordenadora do Amigos da Terra Internacional - [email protected] e Winnie Overbeek coordenador internacional do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM, sigla em ingls) e membro da Rede Alerta Contra o Deserto Verde. Ambos integram a Coordenao Nacional da Rede Brasil.

    das instituies financeiras. Muito menos para permitir que os mercados financeiros continuem especulando, agora com a natureza, com o aval do Banco Mundial. urgente que os governos decidam mudar radicalmente o sistema econmico mundial, excluir seu carter especulativo predatrio e comear a resolver, de fato, os graves problemas que a humanidade enfrenta como a fome, o desemprego, a crise climtica, a concentrao da riqueza e as injustias ambientais.

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    ContRa CoRRenteFabrina Furtado*

    Banco Mundial: regularizar para controlarBola da vez, a natureza foco da estratgia de apropriao privada concretizada antes com a terra e o trabalho; no alvo do Banco esto as reas de uso comum, principalmente da Amaznia

    O que faz o capitalismo quando se defronta com uma das suas crises? Aproveita, cria novas fronteiras de expanso capitalista. O produto do momento a natureza. Mas isso no feito de um dia para o outro. Trata-se de um processo de construo a partir do qual criam ou tentam se apropriar de conceitos, smbolos e prticas capazes de garantir a legitimidade do novo produto por grande parte da sociedade, sem que esta no s no questione o que est por trs das aparncias como

    passe a defender o novo mercado. Nesse sentido, so feitas tentativas de eliminar os conflitos e impe-se a iluso da cooperao e do consenso. isso o que faz o Banco Mundial. Sendo uma instituio que nega e rejeita qualquer possibilidade de coletividade e de relao de interdependncia entre os seres humanos e a natureza, para legitimar a ideia de capital natural, de precificao e mercantilizao da natureza, o Banco vem tentando se apropriar da ideia dos commons.

    Commons uma palavra difcil de ser traduzida sem a utilizao de um substantivo - recursos comuns, bens comuns, reas de uso comum, por exemplo. Ela expressa uma mudana na lgica do conceito e da ideia de relaes sociais para uma forma de organizao baseada na coletividade, na reciprocidade, na interdependncia, e no em mercadorias. A sua origem atribuda aos anglo-saxnicos no contexto do direito consuetudinrio, onde os costumes transformavam-se em leis sem precisarem ser escritos, sancionados ou promulgados. Outros argumentam que a origem latina, da Normandia, significando tanto presente quanto dever. Atualmente, com o aumento dos conflitos socioambientais, crises ecolgica e econmica, o debate sobre este tema volta com toda fora. Agora ele se d no contexto tanto da luta contra as relaes de dominao capitalistas, quanto, de forma totalmente distinta e conflitante, da necessidade dos capitalistas manterem essas relaes.

    o cmulo do absurdo - A manipulao capitalista do conceito de comuns comeou com o famoso artigo A Tragdia dos Comuns, do bilogo estadunidense Garret Hardin, em 1968. A teoria, adotada pelo Banco Mundial, centrada na ideia de que os recursos naturais, se mantidos O capitalismo verde prope transformar os povos da floresta em mo de obra assalariada: outra relao com a vida

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    em reas de uso comum, tendem a se esgotar como resultado da tendncia natural dos indivduos de sobre-explorar tais recursos. A sada clara: a privatizao. Este posicionamento esconde os conflitos em torno da apropriao da natureza e do seu significado, as relaes sociais de explorao que fundam a apropriao capitalista da natureza e a injustia ambiental. Nega a perspectiva de reciprocidade, de interdependncia e inter-relao de povos tradicionais com a natureza, com os seus comuns. Nega a luta das quebradeiras de coco de babau no Maranho, das coletoras de arum no Baixo Rio Negro, dos seringueiros, indgenas, pescadores e tantas outras populaes.

    Foi com base neste posicionamento que o Banco Mundial promoveu, a partir dos anos de 1980, a (contra) reforma agrria de mercado, baseada em quatro linhas de ao: a) estmulo a relaes de arrendamento; b) estmulo a relaes de compra e venda de terras; c) privatizao e individualizao de direitos de propriedade em fazendas coletivas ou estatais; e, d) privatizao de terras pblicas e comunais. A lgica: a terra uma mercadoria transacionvel como qualquer outra. Para tanto, era necessria a implementao de polticas compensatrias para o campo e o financiamento de compra de terras para pequenos agricultores, diminuindo o conflito de terra e disputando a adeso desses movimentos pelo mercado. Deste processo surgiram os projetos So Jos, no Cear, e o Cdula da Terra, em 1996, e o Fundo de Terras/Banco da Terra, em 1998. O resultado: privatizao e mercantilizao da terra e aprofundamento das relaes capitalistas no campo, aumentando a dependncia de agricultores e agricultoras ao mercado. Seguidos pelos conflitos entre a perspectiva do uso comum da terra e do trabalho coletivo da agricultura familiar camponesa com a lgica mercantil da propriedade privada (Pereira; Sauer, 2006).

    No satisfeito, o Banco inicia um processo de apropriao dos regimes de uso comum. Cria-se, em 1995, a Rede de Gesto de Recursos de Propriedade Comum (CPRNet, em ingls), com o objetivo de elaborar polticas em torno de direitos de propriedade e a gesto sustentvel de recursos naturais, incluindo: instituies e gesto de recursos naturais, gesto comunitria de recursos naturais, estratgias de reduo da pobreza e gesto do conhecimento, e relaes entre regimes de direitos de propriedade e conhecimento local/tradicional. Assim, o Banco Mundial passa a perceber o valor econmico e poltico dos sistemas comunais (BM, 1995).

    Como o Banco Mundial escolheu uma parcela dos empobrecidos como beneficirios das polticas sociais compensatrias, uma parte dos camponeses como beneficirios da sua poltica agrria, aqui, o Banco escolhe, caso a caso, os sistemas de uso comum com potencial de serem explorados econmica e politicamente. Espaos seguros e regulados, disciplinados e sem conflitos, permitem a entrada do setor privado e a insero da terra e de seus servios ambientais denominao do Banco para a natureza -, os comuns, no mercado.

    Despolitizando a luta - Assim, diversos projetos de disseminao de tecnologias de resoluo de conflitos foram implementados pelo Banco Mundial nos anos de 1990, como so vrios os casos de participao e incluso de comunidades em projetos da instituio

    que resultaram na despolitizao da luta, apaziguamento dos conflitos e a ampliao do controle do Estado sobre esses espaos. Afinal, o conflito afeta a competitividade, o bom funcionamento do mercado, a apropriao capitalista da natureza. No toa que o Banco realizou eventos como perspectivas alternativas gesto de conflito no uso de recursos naturais e publicou documentos como cultivando a paz e colaborao na gesto de recursos naturais (BM, 2002).

    A regularizao fundiria, a titulao de regimes comunais, obscurece os conflitos sociais de apropriao simblica e material da natureza e garante a sustentabilidade das reas de uso comum para a reproduo do capital. Torna-se uma forma eficiente de internalizar os custos ambientais externos. O Banco promove a privatizao da terra ao mesmo tempo em que cria as condies para transformar direitos tradicionais e consuentudinrios terra e aos comuns em ttulos de propriedade prontos para serem comercializados no mercado (Basto, 2012). Basta analisar alguns casos.

    A Estratgia de Parceria de Pas (EPP) 2012 2015 do Banco para o Brasil tem entre seus objetivos melhorar a gesto sustentvel de recursos naturais. Entre os projetos sendo avaliados esto os programas-piloto de pagamentos de servios ambientais para pensar a elaborao de novos programas. Promove-se a substituio de sujeitos de direitos por consumidores e fornecedores de servios

    Trabalhadores da obra na usina de Jirau revoltaram-se, em maro: violaes dos direitos humanos e trabalhistas

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    ContRa CoRRente

    ambientais - como foi no caso da terra, do trabalho, da sade e da educao - abrindo espao para a sua privatizao e comercializao (BM, 2011).

    Outro caso contemplado na EPP a assistncia tcnica para projetos de Reduo das Emisses por Desmatamento e Degradao (REDD) e mecanismos de compensao ambiental. Estes ltimos transformam os povos da floresta em mo de obra assalariada, perdendo o direito de se relacionar com a natureza, como tradicionalmente fizeram, para que empresas poluentes possam continuar poluindo em troca de crditos de REDD. Os protetores histricos da natureza so agora responsabilizados pela destruio ambiental; e os grandes responsveis, os protetores. Alm de ter seus direitos alimentao e habitao, por exemplo, violados e o meio ambiente e as relaes sociais tradicionais destrudas, se no se incorporam lgica mercantil, as populaes locais so expulsas dos seus territrios e criminalizadas.

    Vende-se a natureza - Um exemplo de sucesso na EPP a ser replicado para outras regies inclui o programa do Banco para a Amaznia que, para a instituio, enfatizou a conservao, a gesto sustentvel dos recursos naturais, a regulamentao de posse da terra e a agricultura de baixo impacto (...) (Ibid. p.45). O Acre um dos melhores exemplos por ter sido pioneiro na adoo do modelo de pagamento de servios ambientais, onde a concentrao de terra e a apropriao capitalista da natureza se torna cada vez mais fonte de graves conflitos ambientais. De acordo com o Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (Incra), entre 2003 e 2010, os pequenos agricultores no Acre tiveram sua ocupao do territrio reduzida de 27% para 17% das terras cadastradas. Ao mesmo tempo, a concentrao da terra aumentou. Em 2003, 444 proprietrios controlavam 2,8 milhes de ha de terras; em 2010, 583 proprietrios ocuparam 6,2 milhes de

    hectares de terras, o equivalente a 78,9% do total das terras cadastradas naquele ano (Overbeek, 2012).

    O relatrio Crescimento Verde Inclusivo: o caminho para o desenvolvimento sustentvel, recentemente divulgado pelo Banco, estabelece uma estrutura que inclui sistemas atmosfricos, terrestres e marinhos nos planos de crescimento econmico. Rachel Kyte, vice-presidente do Banco Mundial para o Desenvolvimento Sustentvel, afirmou: a determinao de valores s propriedades agrcolas, minrios, rios, oceanos, florestas e biodiversidade, bem como a concesso de direitos de propriedade oferecero aos governos, indstria e indivduos o incentivo suficiente para gerenci-los de forma eficiente, inclusiva e sustentvel. Assim, o Banco Mundial cria as bases para a incorporao do capital natural, ou seja, a natureza, nas contas nacionais buscando compromissos dos pases nesse sentido na Cpula Rio+20 das Naes Unidas (BM, 2012).

    Nesse contexto , no possvel confiar nos projetos financiados pelo Banco Mundial que do margem para um maior controle sobre a terra e as populaes locais. O BBB Rural, por exemplo, instala dezessete cmeras em trs localidades do Rio de Janeiro para mostrar o cotidiano do campo. A transmisso de imagens faz parte do programa Rio Rural, que conta com emprstimo do Banco Mundial de US$ 300 milhes at 2018 em 200 localidades (O Globo, 2012). Existe ainda a parceria do Banco com a Google, com o objetivo de empoderar os cidados cartgrafos de 150 pases do mundo, que abre espao para que o Banco e o Estado tenham acesso, controlem e se apropriem dos dados elaborados por cartgrafos populares para interesses econmicos (Meier, 2012).

    Assim sendo, quando o Banco Mundial fala de capital natural ou de reas de uso comum e regularizao,

    preciso lembrar o que ocorreu com a terra (e o trabalho), a sua privatizao, incluso no mercado atravs do apaziguamento do conflito e de projetos de empoderamento, participao e incluso social. Agora, a vez da natureza. O Banco Mundial tenta se apropriar do conceito de comuns, mudando radicalmente a sua lgica para garantir a sua insero no mercado. Para tanto, aprofundam-se as relaes de expropriao do sistema capitalista e a dependncia ao mercado. Como nos lembra Larry Lohman, a converso dos comuns em mercadorias a principal tarefa