Che cos' e Iapoesia? · 2019-03-28 · Che cole Ia poesia? • P ARA RESPONDER auma tal pergunta -...

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]ACQUES DERRIDA Che cos' e Ia poesia? Tradução Osvaldo Manuel Silvestre Título original: Cb« cos' e Ia poesiai; in Points de Suspension, Paris, Galilée, 1992. Capa e concepção gráfica: Francisco Romáo Angelus Novus, Editora Rua do Peneireiro, nO 10, Quinra da Madalena 3040-716 Coimbra e-mail: [email protected] ISBN: 972-8115-94-6 Depósito Legal: 193130/03 ANGELUS Novus, Editora

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]ACQUES DERRIDA

Che cos' e Ia poesia?

TraduçãoOsvaldo Manuel Silvestre

Título original: Cb« cos' e Ia poesiai;in Points de Suspension, Paris, Galilée, 1992.

Capa e concepção gráfica: Francisco Romáo

Angelus Novus, EditoraRua do Peneireiro, nO 10, Quinra da Madalena3040-716 Coimbrae-mail: [email protected]

ISBN: 972-8115-94-6Depósito Legal: 193130/03 ANGELUS Novus, Editora

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Che cole Ia poesia? •

PARA RESPONDER a uma tal pergunta - em duas palavras,não é? - pedem-te que saibas renunciar ao saber. E queo saibas bem, sem nunca o esquecer: desmobiliza a

culrura, mas aquilo que sacrificas estrada fora, ao atravessar aestrada, não o esqueças nunca na rua doura ignorância.

Quem ousa pedir-me isso?Mesmo que de todo não pareça,pois desaparecer é a sua lei, a resposta vê-se ditada. Eu sou umditado, profere a poesia, aprende-me de cor, recopia-rne, vela-me e guarda-me, olha-me, ditada, sob os olhos: banda sonora,wake, traço de luz, fotografia da festa em luto.

Ela vê-se ditada, a resposta, sendo poética. E, por isso, tendode se dirigir a alguém, singularmente a ti, mas corno se sedirigisse ao ser perdido no anonimato, entre cidade e natureza,um segredo partilhado, a um tempo público e privado, absoluta-mente um e outro, absolvido de fora e de dentro, nem um nemoutro, °animal lançado na estrada, absoluto, solitário, enroladoem bola junto de si. Pode deixar-se esmagar, justamente, porisso mesmo, ° ouriço, istrice.

A tarefa dIJ tradutor depara-se, em casoscomo o de Che cos' e Ia poesia?,com alguns dos seus limites. Para que o enfrentamento de tais limites nãose revelasse demasiado acabrunbador muito contribuiu a tradução quedeste mesmo texto Tatiana Rios e Marcos Siscarpublicaram no nO10 deInimigo Rumor. Agradecimentos são ainda devidos a Abel BarrosBaptista, pela sua leitura e revisão atenta.

• [publicado inicialmenre em Poesia, 1.11. Novembro de 1988, depois emPoosie, 50. Outono de 1989. onde foi precedido pela seguinte nota:

.A. revista italiana Poesia, onde este texto foi publicado em Novembrode 1988 (traduzido por Maurizio Ferraris), abre cada um dos seus númeroscom a tentativa ou o simulacro de uma resposta, em algumas linhas, àpergunta cb« co/' Ia poesiai. Ela é feita a alguém vivo, estando a resposta àpergunta che cos'era Ia poesia? a cargo de um morto. neste caso ao Odradekde Kafka. No momento em que escreve, o vivo ignora a resposta do morto:ela vem no final da revista. de acordo com a escolha dos editores.

Destinada a aparecer em italiano, a presente «resposta» expõe-se àpassagem. por VeLeS literalmente, nas letras ou sílabas. da palavra e da coisaISTRICE (pronunciar ISTRICHE), o que terá resultado, numa correspon-dência francesa. htriS1on. ouriço.']

Ao longo de Che coi e Ia poesia?, [acques Derrida explora sistematica-mente as possibilidades e ambiguidades da coincidência entre «coeur» e«apprendre par coeur», Mantendo a língua portug,usa em uso, naexpressão «aprender de cor», a forma arcaica de coração (<<cor.),areprodução dIJ jogo que o autor explora em francês revela-se invidveLDevido ainda à acepçãopor ve= pejorativa de «decorar», optou-se pelaforma «aprender de cor. - e, num único caso, «reter de cor» -, tantomais que a .literalidade dIJ uocâbulo» !uma das questões em pauta notexto de Derrida.

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E se respondes de modo diverso, consoante os casos, toman-do em consideração o espaço e o tempo que te são dados comessa demanda (já começas a falar italiano), por si mesma,segundo essa economia- mas também na iminência de algumatravessia fora de casa, arriscada, na lingua do outro, tendo emvista uma tradução impossível ou recusada, necessária masdesejada como uma morte, o que é que tudo isso, a própriacoisa com que acabas de entrar em delírio, teria então que vercom a poesia? Ou antes, com o poético, pois pretendes falar deuma experiência, outra palavra para viagem, neste caso a incursãoaleatória num trajecto, a estrofe que dá voltas mas não reconduznunca ao discurso, nem regressa a casa, nunca em todo o casose reduz à poesia - escrita, falada, mesmo cantada.

Eis pois, sem demora, em duas palavras, para que se nãoesqueça.

1. A economia da memória: um poema deve ser breve,elípcico por vocação, qualquer que seja a sua extensão objeccivaou aparente. Douro inconsciente da Verdichtung e da rerracção.

2. O coração. Não o coração no meio das frasesque circulamsem correr riscos pelos cruzamentos e se deixam traduzir emtodas as línguas. Não apenas o coração dos arquivos cardio-gráficos, objecro de saberes ou de técnicas, de filosofias e dediscursos bio-écico-jurídicos. Talvez sequer o coração dasEscrituras ou de Pascal, provavelmente, nem mesmo, o que émenos cerco, aquele que Heidegger lhes prefere. Não, umahistória de «coração» poeticamente envolta no idioma «aprenderde cor», o da minha língua ou de uma outra, a inglesa (to learnby heart), ou ainda de uma outra, a arábe (hafiza a'n zahri kalb)- um trajecto único de múltiplas vias.

Dois em um: o segundo axioma enrola-se no primeiro.O poécico, digamos, seria aquilo que desejas aprender, mas dooutro, graças ao outro e sob ditado, de cor: imparare a memoria.Não é isso já o poema, quando uma garantia é dada, um eventoque vem, no momento em que a travessia da estrada chamada

tradução se toma tão improvável quanto um acidente, contudointensamente sonhada, solicitadanessepomo em que o que prome-te deixa sempre a desejar?Um reconhecimento vai nessesencido eprevine aqui o conhecimento: a tua benção antes do saber.

Fábula que poderias contar como o dom do poema, é umahistória emblemática: alguém te escreve, a ti, de ti, sobre ti.Não, uma marca a ti dirigida, confiada, é acompanhada deuma injunção, na verdade institui-se nessa ordem mesma que,por sua vez, te constitui, estabelecendo a tua origem ou dando-telugar: destrói-me, ou melhor, torna o meu suporte invisível doexterior, no mundo (eis que surge já o traço de todas asdissociações, a história das rranscendências), faz com que, emqualquer caso, a proveniência da marca permaneça de agoraem diante inencontrãvel ou irreconhecível. Promete-o: que elase desfigure, tansfigure ou indererrnine no seu porto, e ouvirásnessa palavra a margem da partida, assim como o referente nadirecção do qual uma translação se orienta. Come, bebe, engolea minha letra, porta-a, transporta-a em ti como lei de uma escritaem que o teu corpo se tornou: a escrita em si. A astúcia dainjunção pode inicialmenredeixar-se inspirar pela simples possi-bilidade da morte, pelo perigo em que um veículo faz incorrertodo o ser finito. Ouves a chegada da catástrofe. Desde então,impresso no próprio traço, vindo do coração, o desejo do mona!desperta em ti o movimento (contraditório, acompanha-me,dupla restrição, imposição aporética) de proteger do esquecimentoesta coisa que ao mesmo tempo se expõe à morte e se protege-numa palavra, o avanço, a retracção do ouriço, como na auto--estrada um animal enrolado em bola. Desejaríamos pegá-Io nasmãos, conhecê-Ioe compreendê-Io,guardá-Iopara nós,junto de nós.

Gostas - de guardar isso na sua forma singular, dir-se-iaque na insubstiruível literalidade do vocábulo, se falássemos dapoesia e não somente do poético em geral. Mas o nosso poemanão se acomoda no meio dos nomes, nem mesmo no meio daspalavras. Ele está, antes de mais, disperso por estradas c campos,

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coisa para além das línguas, ainda que lhe suceda lembrar-senelas no momento em que se recompõe, enrolado em bola juntode si, mais ameaçado do que nunca no seu retiro: é quando crêdefender-se que se perde.

Literalmente: gosrarias de reter de cor uma forma absoluta-mente única, um evento cuja intangível singularidade já nãoseparasse-a idealidade, o sentido ideal, como se diz, do corpoda letra. No desejo dessa inseparação absoluta, do não-absolutoabsoluro, respiras a origem do poético. Daí a resistência infinitaà transferência da letra que o animal, em seu nome, todaviareclama. É a aflição do ouriço. O que quer a aflição, o própriostress: Stricto sensu, pôr em guarda. Daí a profecia: traduz-me, vela--me, guarda-me um pouco mais, salva-te,deixemosa auto-estrada.

Assim desperta em ti o sonho de aprender de cor. De deixaresque o coração te seja atravessado pelo ditado. De uma só vez, eisso é o impossível, isso é a experiência poemática. Não conhe-cias ainda o coração, assim o aprendes. Por esta experiência e poresta expressão. Chamo poema àquilo que ensina o coração, queinventa o coração, enfim aquilo que a palavra coração parecequerer dizer e que na minha língua mal distingo da palavracoração. Coração, no poema «aprender de cor» (a ser aprendidode cor), já não nomeia apenas a pura inrerioridade, a esponta-neidade independente, a liberdade de se atingir activamente,reproduzindo o rastro amado. A memória do «de con. entrega--se como uma oração, é mais seguro, a uma cena exterioridadedo aurómato, às leis da rnncmorécnica, a essa liturgia que mimasuperficialmente a mecânica, ao automóvel que surpreende atua paixão e avança sobre ti como provindo do exterior:auswendig, «de COf» em alemão.

Logo: o coração bate-te, nascimento do ritmo, para lá dasoposições, do interior e do exterior. da representação conscientee do arquivo abandonado. Um coração rasteiro, entre os atalhosou as auto-estradas, livre da tua presença. humilde, próximoda terra, bem baixo. Reitera murmurando: nunca repete ... Num

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único algarismo, o poema (aprendê-lo de cor) sela juntamenteo sentido e a letra, como um ritmo espaçando o tempo.

Para responder em duas palavras, elipse, por exemplo, oueleição, coração ou ouriço, terás cido de desamparar a memória,desarmar a cultura, saber esquecer o saber, incendiar a bibliotecadas poéticas. A unicidade do poema depende dessa condição.Precisas de celebrar, tens de comemorar a amnésia, a selvajaria,até mesmo a burrice do «de cor»: o ouriço. Ele cega-se. Enroladoem bola, eriçado de espinhos, vulnerável e perigoso, calculistae inadaptado (ao pôr-se em bola, sentindo o perigo na auto--estrada, ele expõe-se ao acidente). Não há poema sem acidente,não há poema que não se abra como uma ferida, mas que nãoabra ferida também. Chamarás poema a uma encantação silen-ciosa, à ferida áfona que de ti desejo aprender de cor. Ele ocorre,então, no essencial, sem que tenhamos de o fazer: ele deixa-se

fazer, sem acrividade, sem trabalho, no mais sóbrio pathos,estranho a qualquer produção, sobretudo à criação. O poemachega-me, benção, vinda do outro. Ritmo mas dissimetria,Nunca há senão poema, antes de toda a poiese. Quando, aoinvés de «poesia», dissemos «poética», deveríamos ter espe-cificado: «poernãtica». Sobretudo, não deixes reconduzir oouriço ao circo ou ao carrocel da poiesis: nada a fazer (poiein),nem «poesia pura», nem retórica pura, nem reine Sprache, nem«concretização-da-verdade». Apenas uma contaminação, tal etal cruzamento, este acidente. Esta volta, a reviravolta desta catás-trofe. O dom do poema não cita nada, não tem nenhum título,não faz mais histrionices, ele sobrevém sem que tu o esperes,cortando o fôlego, cortando com a poesia discursiva e sobretudoliterária. Nas próprias cinzas desta genealogia. Não a fenix, não aáguia, o ouriço, muito baixo, bem baixo, próximo da terra. Nemsublime, nem incorpóreo, talvezangélico, temporariamente.

A partir de agora, chamarás poema a uma certa paixão damarca singular, a asssinatura que repete a sua dispersão, de cadavez além do Logos, ahumana, escassamente doméstica, nem

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reapropriãvcl na família do sujeira: um animal convertido,enrolado em bola, voltado para o outro e para si, uma coisa emsuma, e modesta, discreta, próxima da terra, a humildade quesobrenomeias, assim te transportando para o nome além donome, um ouriço catacrérico, rodas as flechas eriçadas, quandoeste cego sem idade ouve mas não vê chegar a morte.

O poema pode enrolar-se em bola, mas fá-Ia ainda paravoltar os seus signos agudos para fora. Ele pode, sem dúvida,reflecrir a língua ou dizer a poesia mas nunca se refere a simesmo, nunca se move por si como estes engenhos portadoresda morte. A sua ocorrência interrompe sempre, ou desvia, osaber absoluto, o ser junto de si na autotelia, Este «demônio docoração» jamais se congrega, antes se perde (delírio ou mania),expõe-se à sorte, preferiria deixar-se despedaçar por aquilo quesobre ele avança.

Sem sujeira: há talvez poema, e talvez de se deixe, mas nuncao escrevo. Um poema, nunca o assino. O outro assina. O euapenas existe em função da vinda desse desejo: aprender decor. Tendido para se resumir ao seu próprio supone, e portantosem suporte exterior, sem substância, sem sujeira, absoluto daescrita em si, o «de cor- deixa-se eleger além do corpo, do sexo,da boca e dos olhos, apaga os bordos, escapa às mãos, mal oconsegues ouvir mas ele ensina-nos o coração. Filiação, garantiade eleição confiada em herança, ele pode arer-se a qualquerpalavra, à coisa, viva ou não, ao nome do ouriço, por exemplo,entre vida e morre, ao cair da noite ou de madrugada, apocalipsedistraído, próprio e comum, público e secreto.

-- Mas o poema de que falas, tu divagas, nunca ninguémo nomeou assim, nem tão arbitrariamente.

-- Acabas de o dizer. Coisa que seria necessário demonstrar.Recorda a pergunta: «O que é ?» (ti esti, was ist.... , istoria,episteme, philosophia). «O que é ?» chora a desaparição dopoema -- uma outra catástrofe. Ao anunciar o que é tal comoé, uma pergunta saúda o nascimento da prosa .

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