Artigo - Gisele Cittadino - Multiculturalismo - Importante!!!

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    Gisele Cittadino, Katarina Pitasse Fragoso

    Cosmopolitismo e multiculturalismo:avaliaes a partir de uma comunidade

    quilombola*

    Cosmopolitanism and Multiculturalism: considerationsfrom the Quilombola Community

    Gisele Cittadino**

    Katarina Pitasse Fragoso***

    Resumo

    O texto apresenta um estudo crtico sobre duas teorias da justia: acosmopolita, desenvolvida por Thomas Pogge, e a multicultural, por WillKymlicka. Do primeiro, investigam-se as vantagens de se ter uma preocupaomoral com os habitantes do mundo, destacando as desvantagens de seignorar as singularidades culturais. Do segundo, ressalta-se a prioritrialegitimidade das demandas culturais. Apresenta-se, assim, a importncia dos

    direitos diferenciados em prol das minorias nacionais e dos grupos tnico-culturais e, ao mesmo tempo, evidencia-se o limite dessas categorias culturaisque no costumam dar conta, por exemplo, do grupo negro que reivindicareconhecimento cultural. Por m, ser desenvolvido um exerccio prtico comas referidas teorias, propondo a aplicao dos conceitos apresentados diantedo caso concreto de uma comunidade de quilombolas de Linharinho, localizadana parte rural e pobre do municpio de Conceio da Barra, no Esprito Santo,que possui demandas relacionadas a direitos polticos, sociais e culturais.

    Palavras-chave: Justia social. Cosmopolitismo. Multiculturalismo.Comunidade de quilombolas de Linharinho.

    * O artigo est vinculado linha de pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Ordem Internacionaldo PPGD/PUC-Rio e ao projeto de pesquisa Multiculturalismo, Autonomia e Constituio,nanciado pelo CNPq

    ** Doutora em Cincia Poltica pelo Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro.Professora do Programa de Ps-Graduao em Direito da PUC-Rio. Rio de Janeiro RJ Brasil.E-mail: [email protected]

    *** Doutoranda em Filosoa da Universit Catholique de Louvain (Bolsista CAPES). Louvain-la-Neuve , Blgica. E-mail: [email protected]

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    Cosmopolitismo e multiculturalismo: avaliaes a partir de uma comunidade quilombola

    Abstract

    This article presents a critical study of two theories of justice: cosmopolitanism

    and multiculturalism as developed by Thomas Pogge and Will Kymlicka

    respectively. We rst investigate the advantages of having moral obligationstowards the inhabitants of the world, and we also highlight the disadvantages

    of leaving cultural particularities out. Second, we focus on the priority of the

    legitimacy of cultural demands. Bearing this in mind we discuss the importance

    of differential rights in favour of national minorities and of ethnic-cultural groups.

    But, at the same time, we expose the limitations of those cultural categories

    given that they usually neglect, for instance, the claims for cultural recognition

    made by black peoples. Lastly, in order to apply their concepts, we carry out an

    exercise with the two theories in light of one concrete case: the Quilombolas

    community in Linharinho. Located in the rural and poor municipality of Conceio

    da Barra, in Esprito Santo, this community has demands related to political,

    social, and cultural rights.

    Keywords: Social justice. Cosmopolitanism. Multiculturalism; the Quilombolas

    community in Linharinho.

    Introduo

    Um cenrio de pessoas desamparadas e segregadas, quevivem em ambientes cruis e so frequentemente desrespeitadas,pode ser encontrado em qualquer lugar do mundo. Algumas dessasimagens terrveis descortinam aquilo que costumamos designar comoinjustia. O que tais representaes provocam nos indivduos que

    as observam? H preocupao com o sofrimento de pessoas queenfrentam diculdades materiais? A representao da dor do outro geraobrigaes morais? Qual a legitimidade das polticas em prol dos grupossocialmente discriminados por conta de elementos tnico-culturais? Soessas as questes que costumam nortear os estudos sobre justia.

    H duas formas de avaliar moralmente os fatos que acontecemno mundo, de acordo com Thomas Pogge: interativamente, ou seja,

    pelas aes e efeitos realizados pelos agentes individuais e coletivos;

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    e institucionalmente, isto , atravs dos mecanismos de organizaoda sociedade, como as leis, as convenes e as instituies sociais.Segundo Pogge, John Rawls, na obra Uma Teoria da Justia, defendeu

    que as instituies sociais so uma esfera separada da valorao morale constituiu uma terminologia associando essa esfera aos conceitos dejustia e justia social (POGGE, 2008b, p. 101-102). Tais construesterminolgicas ganharam adeso, tanto que, contemporaneamente,de acordo com Pogge, os estudos de justia se concentram maisnas anlises das normas sociais, como leis, prticas, convenes einstituies sociais, do que na valorao do carter e comportamentodos agentes individuais e coletivos.

    Will Kymlicka, por sua vez, arma, em conformidade com Rawls,que as ideias de justia, liberdade, igualdade e comunidade normalmenteso invocadas para a avaliao de instituies e procedimentospolticos, determinando que todos os afetados por uma estrutura ouinstituio sejam sujeitos de justia (KYMLICKA, 2006, p. 1). Dessemodo, tanto Pogge quanto Kymlicka endossam as delimitaes deRawls, sustentando que a justia ser garantida por meio de arranjos

    institucionais que permitem a interao de todos como pares na vida emsociedade.

    Alm do apelo institucional, o modelo de justia tambm podeabarcar as dimenses econmica, cultural e poltica, como apontouNancy Fraser, ao considerar que a luta por justia social no mundoglobalizado deve ocorrer em trs frentes simultneas: contra a mdistribuio, a desigualdade de status e a falsa representao (FRASER,

    2009, p. 17). Neste texto, endossamos a hiptese de que essas trsdimenses podem ser ncleos de uma proposta de justia, visto queh casos concretos complexos que demandam um intercruzamento erecproca inuncia entre eles.

    Esta , por exemplo, a questo enfrentada pela comunidadede quilombolas de Linharinho: um agrupamento social composto porplantadores rurais, descendentes de escravos, com particularidades

    tnico-raciais e diculdades econmicas. Esses quilombolas lutam para

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    permanecer no local onde vivem, assegurando suas prticas culturais, ealmejam recursos materiais para sobreviver, ou seja, carecem tanto dedireitos sociopolticos, quanto de culturais.

    Trs momentos, portanto, estruturam este artigo. O primeiro estdirecionado ao problema de como defender uma preocupao moraldiante da construo terica da justia global. A apresentao do problemaser conduzida a partir da exposio dos argumentos de Thomas Poggedesenvolvidos, principalmente, na obra World Poverty and Human Rights(2008). O segundo pretende aventar uma hiptese que complemente amoldura global de combate desigualdade material com as discusses

    em torno da defesa das experincias culturais. Dessa maneira, vale-se do aporte multicultural desenvolvido por Will Kymlicka, exposto nasobras Multicultural odysseys, Navigating the New International PoliticsOf Diversity (2007) e Multicultural Citizenship: A liberal theory of minorityrights (1995). Em um terceiro momento, aps o debate conceitual,ser analisado o caso da comunidade de quilombolas de Linharinho,localizada na parte rural e pobre do municpio de Conceio da Barra,no Esprito Santo. Os integrantes do grupo so plantadores rurais com

    particularidades tnicas, que emergem, por exemplo, na dana detambores tradicional, no sincretismo religioso, na memria comum dediscriminao tnico-racial e, por m, na ideia de que a terra um lugarde pertencimento. Para manter essas singularidades, o grupo enfrentalutas dirias, agravadas pelas diculdades advindas da falta de recursosmateriais e da falsa representao poltica.

    1 Thomas Pogge e a justia global

    Thomas Pogge, em World Poverty and Human Rights, preocupa-se especialmente com a justia global ou cosmopolita, em face daextenso e severidade da fome e da pobreza extrema mundial. Busca,dessa maneira, um critrio de justia que avalie se as instituies de umsistema social tratam os indivduos de modo moralmente apropriado.Esse critrio seria encontrado nos direitos humanos.

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    A linguagem dos direitos humanos, segundo Pogge, incidediretamente nos arranjos sociais e indiretamente nas condutas dosagentes morais, tendo como m resguardar os direitos bsicos de todos.

    Os contedos dos direitos humanos estariam comprometidos com oreconhecimento de que h necessidades bsicas que circunscrevem osinteresses identicados por cada indivduo. Por essa razo, a pobrezaextrema seria uma violao dos direitos humanos.

    Pogge foca no seguinte problema: como os direitoshumanos poderiam ser concebidos? O que representa um direitohumano, especialmente no que diz respeito s suas correlativas

    responsabilidades? (POGGE, 2008a, p. 59). Tais questes no podemser respondidas se no procurarmos compreender os fundamentosdos direitos humanos. Segundo o autor, os direitos humanos tmcompromisso com certas reivindicaes bsicas que os indivduos, decontextos e culturas diferentes, possuem. Ao desenhar uma concepomoral desses direitos e reconstruir o signicado da seguinte expresso,eu pergunto o que ns dizemos, ou queremos dizer, quando armamosque algum tem um direito humano, POGGE, 2008a, p. 64), Pogge

    deseja encontrar o que seria moralmente aceitvel quando um direitohumano observado.

    O suporte moral do argumento de Pogge est expresso no artigo28 da Declarao Universal dos Direitos Humanos (DUDH), conformese l: toda pessoa tem o direito a uma ordem social e internacional emque os direitos e as liberdades estabelecidos na presente Declaraopossam ser plenamente realizados. A DUDH, portanto, explicitou uma

    demanda moral j existente na sociedade e, ainda, uma preocupaode que os direitos humanos morais no se concentram, no primeiromomento, nos aportes jurdicos, e sim no comprometimento emprico,ou seja, na garantia real de acesso ao seu contedo. Cumpre, agora,compreender as justicativas desse projeto poltico de justia global.

    Pogge anuncia trs causas para a permanncia da pobrezaextrema mundial, a saber: a existncia de uma ordem econmica global

    que benecia os pases ricos e agrava as desigualdades sociais, a

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    excluso no compensada do uso de uma base comum de recursosnaturais e, por ltimo, os efeitos de uma histria compartilhada e violenta.

    Em conformidade com a primeira causa, os desfavorecidos no

    mundo esto inseridos em contextos que foram determinados pelasredes de trocas mercadolgicas, traduzidas pelos acordos internacionais,blocos econmicos e contratos multilaterais. Tal conjuntura favoreceos pases ricos e, consequentemente, gera efeitos devastadores paraos pases pobres. Os cidados abastados e os pases ricos, sejapropositalmente ou no, sustentam uma ordem mundial que produza pobreza extrema e alarga a desigualdade social1. Dessa maneira,

    os famintos no acessam os contedos dos diretos humanos devidos atuaes dos arranjos institucionais internacionais que moldame delimitam suas vidas margem do sistema produtivo. Contudo, talconstatao no signica que todos sejam responsabilizados pelosefeitos injustos, e tampouco que a estrutura de interdependncia globaldeva ser desfeita. Por ora, importa o envolvimento e a responsabilidademoral, associados ao dever negativo de no perpetuar a desigualdadesocial e a misria de muitos.

    A segunda causa, por sua vez, diz respeito distribuio desigualda explorao dos recursos naturais, como petrleo, minerais e outrosbens, que favorecem as elites econmicas e polticas. SegundoPogge, os indivduos economicamente privilegiados se apropriam e sebeneciam dos recursos naturais, de tal forma que os demais no socompensados, nem o meio ambiente respeitado. Dessa maneira, osEstados e cidados dos pases ricos esto violando um dever negativo

    s vezes corroborados pelas elites dos pases pobres ao excluremimperativamente os desfavorecidos de uma parcela considervel dosrecursos naturais.

    1 A pobreza extrema diz respeito situao onde o indivduo no tem acesso seguro aos direitosbsicos, como alimento, vesturio, educao e sade, vivendo com (ou menos) de 2 dlares

    dirios. J a desigualdade a conjuntura em que h assimetria entre os ricos e pobres, de talforma que os primeiros so beneciados e os ltimos prejudicados. (POGGE, 2006, p. 34-41)

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    A ltima causa da pobreza mundial est atrelada aos efeitosdevastadores de uma histria comum e violenta. Pogge aqui alertapara o fato de que as posies sociais dos mais ricos e dos pobres

    surgiram de um mesmo processo histrico, marcado pela acentuadaconquista, colonizao e escravido. Esse argumento pode abarcarum mal entendido, porque no se trata de uma posio em prol dereparaes. Por isso, Pogge sustenta que no se deve imputar umaresponsabilidade restitutiva em funo de erros dos antepassados, mastorna-se necessrio reconhecer que as discrepncias foram geradaspor meios sociais injustos. Assim, no moralmente defensvel adesigualdade social existente, visto que est congurada por contextos

    histricos, nos quais os princpios morais e as crenas legais foramamplamente violados.

    H, ento, um cenrio mundial de sistemas interconectadosque justicam pensar a justia no mbito internacional. Esse contextoocasiona injustias e tem como efeito a pobreza extrema e a desigualdadesocial. Nas palavras de Pogge:

    Estima-se que 831 milhes de seres humanos socronicamente subnutridos, 1 bilho e 197 milhes no tmacesso gua potvel e 2 bilhes e 747 milhes no tmacesso ao saneamento bsico (Programa das NaesUnidas para o Desenvolvimento, UNDP 2004:129-30) [...].Aproximadamente um tero de todas as mortes humanas(cerca de 18 milhes anualmente) devido a causasrelacionadas a pobreza, as quais seriam facilmente evitveisatravs de melhor nutrio, gua potvel, alimentos

    hidratveis de baixo custo, vacinas, antibiticos, e outrosmedicamentos. (POGGE, 2006, p. 35)

    Os arranjos institucionais e as redes globais que circunscrevemas trocas econmicas nacionais e internacionais determinam, direta ouindiretamente, as causas que, em grande parte, agravam a incidnciae a profundidade da pobreza extrema no mundo. De acordo comPogge, essa situao alarmante, tornando-se foroso, primeiro,

    romper a separao entre as fronteiras, pois h o compartilhamento de

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    responsabilidades, e, em seguida, estender, de maneira imparcial, apreocupao moral para todos os indivduos do mundo.

    Contudo, mesmo considerando tais argumentos, ainda existem

    objees razoveis que poderiam ser oferecidas para rejeitar essaconcepo de justia social aplicada aos arranjos institucionaistransnacionais. De acordo com Pogge, duas construes so possveis,ambas defendidas por John Rawls2: a inviabilidade de um Estadomundial e a diculdade de estabelecer a justia social, distintamenteliberal, nas variadas culturas existentes3.

    Rawls no explicitou em seus escritos sobre justia internacional

    uma concepo cosmopolita ou global direcionada para todas as pessoas.Primeiro, o autor sustenta a manuteno das estruturas polticas dosEstados-nao, destacando a inviabilidade de um Estado mundial. Emseguida, pretende aplicar seus princpios de justia internacional apenaspara algumas sociedades, notadamente, as compostas por povosliberais e decentes. Segundo Pogge, a primeira objeo construdapor Rawls a da inviabilidade de um Estado mundial no apresenta

    bons fundamentos e escapa sua perspectiva de cosmopolitismo. Issoocorre porque se o Estado mundial estivesse associado concentraoda soberania, possivelmente redundando em grandes perigos, como odespotismo e a guerra civil, a concepo cosmopolita de justia social,por seu turno, poderia oferecer outro desenho institucional que melhorgarantisse os interesses fundamentais dos seres humanos, identicadocom a descentralizao da autoridade governamental e da soberanianacional. Nesse ltimo modelo, a autoridade poltica poderia dispersar-se

    em diferentes nveis interdependentes, algo parecido com o federalismoglobal da Unio Europeia ou com a liga das naes descrita por Kant,na obra A paz perpeta (POGGE, 2007a, p. 317).

    2 De acordo com Pogge (2007a), Rawls, na obra O Direitos dos Povos, rejeita essa interpretaocosmopolita de justia social, pois pretendia aplicar os seus princpios de justia poltica apenaspara algumas sociedades nacionais.

    3 Rawls no chega a reconhecer a existncia de responsabilidades morais entre os pases ricos e

    os pobres. Esse argumento foi desenvolvido por Francisco Corts Rodas e Thomas Pogge. Paramaiores informaes, consultar RODAS, 2010, p. 101 e POGGE, 2004, p. 38.

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    Com relao segunda objeo ao argumento de Rawls sobrea existncia de diversidade cultural que vai alm dos povos liberais edecentes, Pogge reconhece esta preocupao e defende que a sua

    concepo de justia social deve ser compartilhada por diferentesculturas, sem que elas sejam desrespeitadas. Sustenta, assim, que umaconcepo de justia social no precisa ser excessivamente ocidentalou liberal para que possa ser compartilhada por culturas diferentes;todavia, no h como ser realizada se no for satisfatria para todos.

    H, aqui, o reconhecimento de que a pobreza de um estranho,desconhecido ou estrangeiro ser objeto de preocupao moral. Da

    a preocupao do autor em garantir para todos o acesso seguro aocontedo dos direitos humanos (POGGE, 2008a). No entanto, aoconstituir um critrio de compartilhamento de valores e bens universaisde justia, Pogge permite o aparecimento de argumentos que podemser interpretados como imposies de um grupo social sobre outro oucomo falta de sensibilidade e dilogo com as singularidades locais. No por outra razo que precisamos trazer ao debate o reconhecimento dadiversidade cultural e as formas de lidar com as minorias, a partir das

    construes tericas de Will Kymlicka.

    2 Will Kymlicka e o multiculturalismo liberal

    Algumas minorias nacionais e tnicas podem estar insatisfeitascom as polticas individualistas dos direitos humanos. SegundoKymlicka, h trs exemplos centrais4 que poderiam demonstrar este

    ponto de vista e, consequentemente, os limites desse critrio normativo:as disposies sobre polticas de migrao/povoamento, as decisessobre as fronteiras e os poderes das unidades polticas internas e, porltimo, as questes sobre o estabelecimento de lnguas ociais.

    4 De acordo com Kymlicka (2011), outras prticas poderiam igualmente demonstrar a cultura

    dominante e a insucincia dos direitos humanos em garantir a justia cultural como osferiados pblicos, o currculo escolar, os smbolos nacionais e outros cdigos.

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    As polticas de migrao/povoamento, normalmente, soutilizadas contra as minorias nacionais, porque cerceiam o acesso aosrecursos naturais e restringem a atuao poltica desses grupos. Para

    Kymlicka, tais polticas de povoamento expem uma fonte de injustia ede violncia que os direitos humanos, mesmo sendo abrangentes, noso capazes de fornecer suporte normativo para solucion-la.

    J as fronteiras e os poderes das unidades polticas internasemergem como questes fundamentais de justia. Contudo, muitasdas demarcaes territoriais inventadas pelos pases dominantesdesmantelam o poder e a representao poltica das minorias nacionais.

    De acordo com Kymlicka, os direitos humanos tampouco ajudam aimpedir esta injustia.

    Por m, as polticas relativas s lnguas ociais, das escolas, dostribunais e das instituies nacionais, subsumem as prticas culturaisdas minorias nacionais, ao obrig-las a se enquadrar na lgica lingusticados grupos majoritrios. Da mesma forma que nos casos anteriores, osdireitos humanos no so capazes de relativizar essa poltica majoritria.

    Para Kymlicka, portanto, torna-se necessrio encontrar nosdireitos humanos a defesa dos direitos das minorias, ao garantir asua lngua, a representao poltica, a diversidade cultural e o acesso terra. A ssura est no s no reconhecimento das diferenas, mastambm na busca de como corrigir as desigualdades e como enquadrartais demandas culturais. Ao expor os limites dos direitos humanos,Kymlicka no pretende negar a importncia desse critrio de justia,

    mas assegurar que ele seja complementado

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    pelos direitos bsicos dasminorias nacionais e tnicas (KYMLICKA, 2011:37).

    Em um ambiente social e culturalmente heterogneo, Kymlicka,no livro Multicultural Citizenship: A liberal theory of minority rights,distingue as minorias nacionais, entendidas como sociedades distintas

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    Essa posio de Kymlicka perdura nos seus primeiros escritos; a partir de 2007, os direitoshumanos precisariam ser complementados pelos direitos culturais.

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    e potencialmente autogovernadas que foram incorporadas a um Estadomais amplo por meio de conquistas, colonizao ou federao, dosgrupos tnico-culturais, que so representados pelos imigrantes

    que deixam a sua comunidade originria para incorporarem-se aoutra. O primeiro grupo, denominado de minoria nacional, existenteanteriormente ao processo de formao do Estado-nao, foi a eleinvoluntariamente incorporado; o segundo, os grupos tnico-culturais,aderiram voluntariamente, renunciando a alguns direitos que fazemparte da sua origem nacional. De acordo com Kymlicka, estas so asduas fontes mais comuns de diversidade cultural nos Estados modernose, por isso, possibilitam a feitura de modelos de justia multicultural

    (KYMLICKA, 1995, p. 10-18, 2001, p. 57).

    As minorias nacionais e os grupos tnico-culturais aspiram aoreconhecimento cultural. De um lado, as minorias nacionais desejammanter suas peculiaridades lingusticas e simblicas, por meio dosdireitos de autogoverno; de outro, os grupos tnico-culturais almejamfazer parte da sociedade, como membros de pleno direito, desde quepossam manter as suas identidades, cujas demandas so representadas

    pelos direitos poli-tnicos. Torna-se evidente, assim, a luta por leis maispermeveis que sejam compatveis com as justas reivindicaes dosgrupos sociais que se encontram em desvantagem.

    Apesar dessa distino entre os grupos, h complexidadesque envolvem as polticas multiculturais e que transcendem qualquertentativa de simplicao ou categorizao. H outros grupos que nose ajustam claramente s categorias de minorias nacionais ou tnicas.

    Kymlicka admite a limitao dessas divises ao expor, por exemplo, ocaso dos negros, dos refugiados, dos ciganos e dos russos do Bltico,que no se enquadrariam nem como minorias nacionais, nem comominorias tnicas6.

    Dada a pluralidade de grupos e, consequentemente, das diferentesdemandas, toda poltica que busca implementar o multiculturalismo

    6 Para mais informaes sobre essa desvantagem, BARRY, 2001; VITA, 2002.

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    liberal a partir de uma nica perspectiva ou, ainda, por meio de direitosgenricos, ser insuciente. Esse o entendimento de Kymlicka,evidenciado na seguinte armao: a lgica do multiculturalismo

    liberal no pode ser capturada atravs das sentenas toda minoriatem direito a x ou toda pessoa que pertence a uma minoria tem direitoa x (KYMLICKA, 2007a, p. 7). Portanto, no possvel pensar empolticas voltadas para as minorias por meio de aportes institucionaismuito amplos que exijam generalizaes, pois isso denota ausncia desensibilidade local.

    Para dar conta dessa sensibilidade e comunicao com os laos

    de pertencimento, as alteridades e as perspectivas locais, Kymlicka,em seguida, apresenta trs mecanismos de direitos diferenciados7queserviriam para harmonizar as peculiaridades culturais existentes, sem,contudo, suprimi-las. So eles: os direitos de autogoverno8, os direitospoli-tnicos e os direitos especiais de representao.

    Os direitos de autogoverno esto garantidos, com ressalvas, pelaCarta das Naes Unidas e conferem poderes s unidades polticas

    controladas pelos membros dos grupos minoritrios. No documentointernacional, todos os povos tm o direito de autogoverno; para Kymlicka,no entanto, a declarao muito genrica, pois no dene quem so ospovos detentores de tal direito. Uma forma de desenvolvimento dessesdireitos, segundo ele, seria atravs da descentralizao do governo,como, por exemplo, pelo federalismo. Nesse cenrio, o poder repartidoentre o governo central e as subunidades regionais. No entanto, ofederalismo s pode servir como mecanismo de reconhecimento do

    autogoverno se, e somente se, a minoria nacional constituir uma maioriaem uma das subunidades federais, como ocorre em Quebec, no Canad.

    7 Kymlicka prefere o termo direitos diferenciados do que direitos coletivos. Para o lsofo, otermo direitos coletivos muito amplo, no distinguindo as formas de direitos que podem gerara opresso individual (KYMLICKA, 1995, p. 45).

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    Neste artigo, optou-se por traduzir self-government rights por direito de autogoverno e, assim,ser mais el ao uso do autor, mesmo sendo uma palavra pouco usada na literatura brasileira.

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    Os direitos politnicos objetivam assegurar a expresso dasparticularidades culturais dos grupos e, ao mesmo tempo, possibilitara sua integrao na sociedade. Assim, buscam proteger as tradies,

    religies e culturas, por meio de aes institucionais e projetos polticose evitar a submisso do grupo sociedade dominante.

    Por m, os direitos especiais de representao asseguram queum grupo minoritrio no ser desconsiderado diante das questesque afetam a sociedade. Desse modo, possuem a funo de garantiro espao deliberativo para os grupos politicamente alijados. Kymlicka,nesse tema, sugere a admisso das minorias em partidos polticos, a

    representao proporcional e as aes armativas.

    3 O desafo do caso concreto do Quilombo de Linharinho

    Uma vez apresentadas as construes conceituais de Pogge eKymlicka, a proposta utiliz-las a partir da seguinte questo: como ajustia institucional deve ser efetivada? Ao tomar como caso concretoum grupo da comunidade de quilombolas9, em que se verica a faltade reconhecimento cultural e a escassez de recursos econmicos,pretende-se observar de que maneira a injustia pode ser dissolvida.

    Os membros do grupo, a famlia Santos, so plantadores ruraiscom particularidades tnico-raciais que emergem, por exemplo, nadana de tambores tradicional chamada Jongo, no sincretismoreligioso, percebido na contemplao de Santa Brbara, nas oferendasdo Candombl, nas rezas da igreja Catlica, na memria comum dediscriminao tnico-racial e, por m, na ideia de que a terra um lugarde pertencimento. Alm dessas tradies, permanece a prtica da

    9 Os dados da pesquisa relacionados ao grupo quilombola foram baseados na tese de doutoradoe no artigo do antroplogo Sandro Dias. Paralelamente ao uso dessas fontes, a pesquisadoraKatarina Pitasse visitou a comunidade de Linharinho, no dia 26 de janeiro de 2014, e conversoucom o grupo, sobretudo com a Dona Mida, uma das lideranas locais. Optou-se em desenvolveruma conversa com a nalidade de manter um ambiente menos intimidador, portanto no foram

    feitos registros, como entrevista e questionrio. Para maiores informaes sobre o grupo, SILVA,2012; SILVA, 2013 .

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    fabricao de farinha de mandioca, que d origem tapioca e aos beijus.Todas essas atividades so familiares, e os mais jovens e mais velhosparticipam conjuntamente. Esse aspecto familiar do grupo possibilita a

    ajuda mtua, a unio e a cumplicidade entre os indivduos que vivem emLinharinho e se identicam como quilombolas.

    A invisibilidade e a tranquilidade dos moradores do quilombo deLinharinho duraram pouco, pois o comrcio de celulose se intensicou,comandando a lgica da poltica local e descortinando a comunidadeque l morava. As empresas exploradoras de celulose tinham comointeresse angariar mais terras para o cultivo do eucalipto e, para tanto,

    utilizaram a violncia, o desrespeito aos direitos humanos, alm deferirem a identidade cultural dos negros que ali viviam. As diculdades e osembates dirios enfrentados pelo grupo foram potencializados por duascausas: a diminuio das terras, que hoje pertencem, majoritariamente,aos exploradores de celulose, e a aspereza e a infertilidade do soloagravadas pelo monocultivo do eucalipto.

    No que concerne primeira causa, cabe destacar, segundo a

    histria oral e a memria coletiva10

    , que a comunidade existe h maisde 200 anos. Inicialmente, seus integrantes trabalhavam nas fazendasdo entorno e, ao mesmo tempo, construram suas vidas nas terras quesobravam, sem nunca terem regulamentado o territrio. Com o passardos anos, as fazendas desapareceram e cederam lugar s empresasexploradoras, como a Aracruz Celulose (hoje, Fibria). Desde a dcadade 1960, muitos dos conitos ocorreram nos territrios responsveispela sobrevivncia do grupo e pela identicao cultural e, por isso,

    os quilombolas lutam pela permanncia e manuteno de suastradies. Contudo, o poder ocial no repara e no se interessa pelassingularidades ali construdas, empregando artimanhas jurdicas comoa falta do ttulo de propriedade para beneciar as grandes empresase, em contrapartida, fragilizar o grupo. Essas aes polticas injustas

    10 Para as discusses sobre os conceitos de oralidade, histria oral e memria: FERREIRA, 1996;ALBERTI, 2004.

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    culminaram em perdas de muitas terras, diminuindo a capacidade deplantao dos quilombolas de Linharinho e aumentando o cultivo doeucalipto.

    J quanto segunda causa, um desdobramento da primeira, aprincipal atividade das famlias do quilombo de Linharinho se concentrana plantao de hortas para alimentao prpria e venda dos excedentes,como mandioca, cana-de-acar, caf, abbora, entre outros legumese frutas. Todavia, desde o nal da dcada de 1990, com pouca terrapara plantar e a intensicao da seca, o grupo passou a se dedicar produo de carvo feito por meio de resduos do eucalipto, conhecido

    como facho. Os quilombolas, no entanto, no guardam relaesculturais com a atividade realizada nos fornos de carvo, visto que elagera neles um sentimento de vergonha. O grupo reivindica formas dignasde viver na roa, obtidas, segundo eles, atravs das plantaes, e nona produo de carvo. Nesse cenrio, os quilombolas ressaltam comoprincipal entrave para o retorno de sua tranquilidade, a apropriaoindevida de seus territrios.

    O cenrio descrito pelos quilombolas vericado por qualquerobservador que visite a comunidade. Indo de So Mateus Conceioda Barra, avista-se da estrada o verde homogneo do monocultivodo eucalipto; mas tambm possvel enxergar a terra muito secae a pobreza social. Ao chegar rodoviria de Conceio da Barra,percorre-se mais 20 minutos de estrada de cho e, enm, encontra-se acomunidade quilombola de Linharinho. Lugar de muitas histrias, lutase unio, simbolicamente representadas pela disposio das casas, pois

    no h cercas e demarcaes de territrio, e, tambm, pela memriacomum e pelo sentimento de coletividade.

    Alguns fatores impostos, como a plantao do eucalipto e osmanejos das polticas locais, causaram temor ao grupo. A atividade deplantar cou prejudicada. Desse modo, enquanto o eucalipto crescee os lucros das empresas aumentam, cada vez mais o solo seca e acomunidade se retrai. Palavras de um dos quilombolas: acabou a gua,

    acabou o peixe, acabou a caa, acabou tudo; a empresa tirou tudo e

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    em troca tava dando cadeia, processo, tem vrios processados (SILVA,2013a, p. 22).

    Diante dessa situao alarmante, o Estado desaparece,

    negligenciando o suporte institucional s famlias dos quilombolas.Muitos foram expulsos ou tiveram seu direito de car restrito scalizaoda empresa exploradora de celulose que determina as regras quesubmetem a comunidade. Assim, os sujeitos que permaneceram,resistem e enfrentam lutas dirias para continuarem nas suas terras emanterem vivas suas tradies.

    No documentrio Raa, lanado em 2012, dirigido por Joel

    Zito Arajo e Megan Mylan, mostra-se, em determinado momento,uma manifestao poltica organizada pelos quilombolas do Sap doNorte, incluindo a famlia Santos, no ano de 2009. Nela, os quilombolasfecharam a BR 101 com pneus e tocos de eucalipto em chamas,impedindo o trco. Essa movimentao tinha por objetivo revelar suaprpria existncia e lanar um grito poltico por direitos socioculturais.

    Com a Constituio de 1988, os quilombos foram inseridos no

    debate das polticas nacionais atravs da previso do artigo 68 dos Atosdas Disposies Constitucionais Transitrias (ADCT)11, que buscoureconhecer a propriedade denitiva para estas comunidades. Em2003, o decreto federal n 4887 foi aprovado e passou a regulamentaro procedimento para identicao, reconhecimento, delimitao,demarcao e titulao das terras ocupadas pelas comunidades dosquilombolas de que trata o art. 68 do Ato das Disposies Constitucionais

    Transitrias (BRASIL, 2003). Por meio desses dispositivos normativos,novas expectativas so anunciadas, como a possibilidade de acesso aoreconhecimento cultural e a garantia da formalizao do territrio dosquilombolas.

    Ainda que exista um decreto especco para resguardar oterritrio, a cultura e as tradies dos quilombolas, na prtica o direito

    11 Art. 68 - Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras reconhecida a propriedade denitiva, devendo o Estado emitir-lhes os ttulos respectivos.

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    ocial no d conta das demandas do grupo. A instabilidade ocasionadapela possibilidade de serem retirados a qualquer momento de suasterras, seja por interesses polticos, seja por questes econmicas,

    esmaga, sob todos os aspectos, as famlias quilombolas. Muitas vezes,como j destacado, elas precisam deixar de lado uma prtica cultural,como o plantio das hortas, e so impelidas a se dedicarem produode carvo. Segundo as pesquisas apresentadas por Sandro Silva, 83%dos quilombolas se declaram pretos, 54% dos quilombolas recebemmenos de um salrio mnimo, 70% possuem como atividade principal aagricultura e 73% no terminaram o ensino fundamental (SILVA, 2013a,p. 6). Para alm das questes culturais e polticas, percebe-se que o

    grupo de quilombolas precisa de condies socioeconmicas parasobreviver.

    Diante de tal situao moralmente indefensvel, em que hpobreza e desconsiderao das construes culturais e polticas, faz-senecessrio pensar o conito pela lgica das teorias da justia analisadasnesse artigo. Antes de aplicar e revisitar tais conceitos, cabe destacar asdemandas do grupo, sintetizadas pelo antroplogo Sandro Silva:

    1. Titular os territrios quilombolas; 2. Criar o frum dajuventude quilombola no estado; 3. Aplicao dos recursosligados ao Fundo do Trabalhador nas comunidadesquilombolas; 4. Gerar trabalho e renda baseado naspotencialidades das comunidades quilombolas; 5. Construire fomentar redes nacionais e internacionais de organizaesde jovens; 6. Criar um programa de desenvolvimento sociale econmico local para a juventude nas comunidades

    quilombolas; 7. Criar um programa conjunto e dialogadoentre jovens e polticas municipais e estaduais paradesenvolvimento humano; 8. Desenvolver aes de garantiade desenvolvimento baseada nas diferenas de gnero egerao; 9. Desenvolver aes de promoo da educaoformal e sade dos jovens quilombolas e 10. Criar a escolaagrcola quilombola. (SILVA, 2013a, p. 27)

    Observando as reivindicaes acima, existem tanto demandasacerca da permanncia da comunidade no lugar onde vive e da

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    preservao da histria de seus antepassados quanto reivindicaesque s podem ser atendidas atravs de polticas socioeconmicas.

    3.1 O caso do quilombo de Linharinho: uma anlise a partir do pontode vista cosmopolita de Thomas Pogge

    Thomas Pogge se compromete com a ideia de que a ordeminstitucional internacional atual est diretamente ligada s gravesviolaes dos direitos humanos, desfavorecendo uma parcela dosindivduos do mundo.

    No caso do quilombo de Linharinho, um grupo constitudo porlaos culturais e problemas materiais, tais direitos esto sendo violados.De acordo com Pogge, no importa a nacionalidade, a tradio ea religio do indivduo, visto que todos sero tratados como iguais,independentemente de suas identicaes e liaes. Em outraspalavras, todos os seres humanos so unidades mnimas da moralidade.Justica-se, assim, o estudo da proposta de Pogge para dar conta dealgumas demandas feitas pelos quilombolas de Linharinho.

    Para Pogge, os negros, as mulheres e os muitos jovens soos mais afetados pela pobreza, ou seja, no acessam os direitossocioeconmicos com facilidade. Tais danos sociais cometidos pelaordem global so previsveis e, portanto, poderiam ser evitados sem umalto custo moral. A pobreza extrema contempornea foi gerada, segundoo autor, por trs fatores mundialmente compartilhados: a existncia deuma ordem econmica global que benecia os pases ricos e agrava as

    desigualdades sociais nos pases pobres; a excluso no compensadado uso de uma base comum de recursos naturais e, por ltimo, osefeitos de uma histria compartilhada e violenta. De acordo com esseraciocnio, a justia estaria relacionada ao dever negativo de no apoiaras instituies sociais que ajudam a manter a lgica da dominao e dosbenefcios econmicos voltados para uma minoria rica.

    Pogge argumenta que a pobreza global pode ser substancialmente

    reduzida atravs de reformas institucionais modestas que modiquem,

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    por exemplo, as regras que regulamentam o comrcio internacional,os emprstimos, os investimentos e o uso de recursos em um mbitouniversal. Essas medidas podem ser representadas pelo m das

    regras protecionistas como as realizadas pelos pases ricos contra aimportao dos bens e servios advindos dos pases pobres e pelotrmino dos emprstimos de fundos internacionais que prejudicam evinculam a economia dos pases pobres.

    Quando os pases mais ricos aceitarem essas reformasinstitucionais, seriam gerados custos de oportunidade e de compensaoque incidiriam em todas as transaes comerciais. Esses custos

    objetivam incentivar, supervisionar e condicionar os habitantes do mundoa serem mais justos ao redistribuir os recursos para os indivduos quese encontram em uma situao de desvantagem. Percebe-se, assim,que Pogge prope reformas para o cenrio econmico, no por meioda caridade, mas a partir de instrumentos que compensem os danosgerados pelos acordos institucionais injustos que causam o desrespeitoaos direitos humanos dos pobres no mundo. Tais reformas, segundo oautor, so modestas, pois no sacricariam aqueles que se encontram

    em uma situao vantajosa.

    A teoria da justia global de Pogge ampara-se no aportenormativo dos direitos humanos e em trs pressupostos: o indivduo,a universalidade e a generalidade. O primeiro busca resguardar o serhumano como unidade mnima da moral; o segundo, garantir que cadaunidade moral ser considerada igualmente; e, nalmente, o statusespecial de cada indivduo tem fora global. Pogge sustenta uma

    concepo de justia que respeite o cumprimento dos direitos humanospor meio de um ordenamento institucional justo. A existncia da pobrezano mundo moralmente indefensvel e a soluo no est concentradana responsabilidade de um grupo, mas de todos que compartilham asmesmas instituies sociais injustas.

    Expostos os arcabouos tericos, a possvel sada encontradapor Pogge para resolver os problemas da comunidade quilombola de

    Linharinho no decorreria dos direitos culturais em prol do grupo, mas dos

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    direitos sociais voltados para solucionar as questes socioeconmicas.Pogge, portanto, alertaria que os membros da comunidade sofrem deprivaes materiais, falta de oportunidade igualitria e de discriminao

    social. Para enfrentar tais problemas, o autor, potencialmente, proporiapolticas igualitrias e universais, como, por exemplo, a garantia de queos quilombolas tenham acesso aos programas sociais, aos direitos dealimentao, moradia, educao, emprego e sade, e, por m, medidasque evitassem a discriminao racial.

    No h necessidade de direitos diferenciados em funo dacomunidade, isto , por demandas culturais. O fato de um grupo

    compartilhar a mesma ascendncia, a mesma tradio e possuir limitesespeccos em outras palavras, ser ou no tnico um aspectosecundrio para a avaliao moral de Pogge. O autor no defende queum grupo tnico possa ser favorecido na distribuio dos direitos, j quetodos os grupos, ainda que existam particularidades entre eles, devemser considerados de forma igualitria e imparcial, pelo mesmo conjuntode direitos existentes.

    Articulando as demandas expostas pela comunidade quilombolade Linharinho e a teoria de Pogge, acredita-se que o autor daria contados seguintes pontos: 1) gerao de trabalho e renda; 2) construoe fomento das redes nacionais e internacionais sobre a organizaodos jovens; 3) criao de um programa de desenvolvimento social eeconmico local para a juventude quilombola; 4) concepo do programaconjunto e dialogado entre jovens e polticas municipais e estaduais paradesenvolvimento humano; e 5) desenvolvimento de aes de promoo

    da educao formal e sade dos jovens quilombolas.

    Esses pontos foram denidos e associados a Pogge, poispossuem uma relao intrnseca com os direitos sociais. A proposta dePogge, portanto, no seria capaz de dar conta das cinco reivindicaesapresentadas pelo grupo, que, circunscritas aos direitos culturais e ssingularidades identitrias, requerem um olhar atento e menos ampliado.Ao observar que algumas questes no foram vislumbradas por Pogge,

    faz-se necessrio, nesse momento, analisar a proposta de Kymlicka.

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    3.2 As questes culturais dos quilombolas de Linharinho e a proposta

    multicultural de Will Kymlicka

    Na teoria de justia de Kymlicka, h uma tentativa de fortalecimentocultural das minorias nacionais e tnico-culturais. As identidadestnicas e as suas respectivas singularidades so traos constantes queemergem nas sociedades contemporneas e podem ser vistas comouma importante fonte de cultura, status social, construo de signicadose aes polticas. Para resguardar essa pluralidade, Kymlicka propepolticas institucionais que protejam e promovam as culturas minoritrias.Enfatiza, assim, medidas de justia para o agrupamento social que

    possui uma cultura minoritria que no est sendo preservada, aindaque no ignore outros aspectos atrelados justia, pois a injustia querecai sobre os grupos tnicos se manifesta sob diversas dimenses raa, classe social e, notadamente, cultura (BANTING; KYMLICKA,2005, p. 122).

    O caso concreto dos quilombolas de Linharinho descortinou umgrupo de negros que possui tradies, religies e prticas simblicas que

    merecem ser resguardadas. Ainda que Kymlicka no trate diretamentedo caso dos afrodescendentes que possuem formas de vidas singularese uma cultura especca, no h dvida de que eles seriam uma fontede interesse moral para o autor, porque a discriminao tnico-racialno envolve apenas um problema social, mas tambm cultural.

    Inicialmente, como visto, Kymlicka argumentava que os direitoshumanos seriam insucientes para garantir a justia multicultural;

    da a previso de uma espcie de suplemento dos direitos humanos,traduzido pelos direitos diferenciados em prol do grupo, sobretudodevido a existncia de poucos dispositivos para resguardar as minoriastnicas (KYMLICKA, 2011). Em seus estudos mais recentes, no entanto,Kymlicka defende que nos ltimos vinte anos o multiculturalismo ganhoumais espao no cenrio mundial, o que pode ser demonstrado tanto pelosdiscursos polticos, como pelos dispositivos normativos. Atualmente, oautor no prope mais uma suplementao, nem propriamente reformas

    institucionais globais, como Pogge, mas a construo de parmetros

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    institucionais para a observao e a aplicao dos direitos culturais(ARAUJO, 2006). Em seguida, demostra ser necessrio estabelecerpontos de partida comuns para a aplicao do multiculturalismo. So

    eles: 1) o repdio pela ideia moderna de que o Estado diz respeito aum nico grupo nacional; 2) a no aceitao da poltica nacional queexclui os membros de uma minoria ou de um grupo no dominante; 3) oreconhecimento da injustia histrica cometida contra as minorias e osgrupos no dominantes (KYMLICKA, 2007a, p. 65-66).

    De qualquer forma e apesar dos avanos do multiculturalismo, acompreenso desses pontos de partida comuns ainda muito precria,

    bastando perceber a vagueza da linguagem utilizada nos dispositivosnormativos em prol das minorias culturais, o que gera a inecincia e adiculdade de acessar os direitos. Esse o caso do decreto brasileiro n4887/03, que apesar de resguardar o direito de propriedade aos povosremanescentes de quilombolas, garantiu apenas o ttulo da terra a 17comunidades, de um total de 2.007 certicadas pela Fundao CulturalPalmares12.

    Alm disso, de acordo com Kymlicka, muitos polticos e tericosassumem uma postura contrria ao multiculturalismo, alegando queele fere os direitos humanos. Ao contestar, o autor destaca que osdireitos das minorias culturais fazem parte dos direitos humanos, comeles coexistindo e operando dentro dos seus limites. Por esta razo,sustenta que o multiculturalismo no endossa os arranjos institucionaisque potencialmente prejudicam os prprios membros do grupo, mas, defato, contribui para reforar a justia entre os grupos no Estado liberal.

    H, portanto, um compromisso com os princpios da liberdade individuale 13da igualdade.

    12 Para maiores informaes, acessar os relatrios da Fundao Cultural Palmares, no seguinteendereo: (acessado em 04/03/2014).

    13 O termo remanescente de quilombolas utilizado no decreto no pode ser interpretado de

    forma estrita, pois corre-se o risco de deixar muitas comunidades campesinas negras sem oreconhecimento.

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    Dadas essas consideraes, razovel supor que para Kymlickaa origem da desvantagem dos quilombolas de Linharinho de naturezacultural, e, por isso, a soluo deveria se concentrar no reconhecimento

    das identidades locais. Torna-se necessria a observao demecanismos normativos em prol do grupo, para fortalecer, notadamente,as tradies, as religies e as prticas culturais, com relevncia para osseguintes mecanismos: os direitos de autogoverno; os direitos especiaisde representao e os direitos poli-tnicos (KYMLICKA, 1995, p. 37-38).

    Por meio das pautas de reivindicaes dos quilombolas deLinharinho, Kymlicka certamente daria prioridade aos seguintes pontos:

    1) regularizao formal dos territrios quilombolas; 2) criao do frum dajuventude quilombola no Estado; 3) desenvolvimento de aes baseadasnas diferenas de gnero e gerao; 4) promoo da educao formale sade dos jovens quilombolas; e 5) construo da escola agrcolaquilombola. Tais tpicos foram associados a Kymlicka, tendo em vista ocontedo cultural dos interesses morais da teoria multicultural. Ressalte-se que o autor reivindica direitos e formas institucionais de incluso dasminorias em um cenrio sociopoltico, nacional e internacional. Nesse

    sentido, a m de combater as discriminaes tnicas e raciais sofridaspelos quilombolas de Linharinho, Kymlicka possivelmente legitimaria aspolticas de identidade ao resguardar os bens criados e herdados pelogrupo, ao garantir o acesso formal terra e aos espaos de discusso,alm de aes baseadas nas construes locais, como a escola agrcola.Portanto, a ferramenta terica do multiculturalismo liberal seria usadapara resguardar e dar voz s demandas locais.

    Concluso

    A concluso no poderia ser outra seno a de perceber que ThomasPogge enfrentaria o desao do caso dos quilombolas de Linharinho apartir do garantia dos direitos sociais, assegurando, assim, o acesso aosbens bsicos, como alimentao, educao, moradia, emprego e sade.A viabilidade de tal modelo ocorreria por meio do aporte normativo dosdireitos humanos e, posteriormente, atravs de uma reforma institucional

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    que redistribusse os recursos materiais. Esse modelo de justiaencontra amparo em mbito internacional, visto que todos os indivduosabastados do mundo so responsveis pelos danos causados queles

    que se encontram em uma situao de desvantagem. Estamos diante,portanto, do dever negativo de no sustentar as instituies que causama pobreza aos membros do quilombo de Linharinho, o que resulta nocompromisso mundial de solucionar as demandas sociais do grupo.

    Kymlicka, por seu turno, admitiria que os quilombolas deLinharinho sofrem injustias em funo da ausncia de reconhecimentocultural. Desse modo, seriam evocados, inicialmente, os mecanismos

    normativos que protegem a relevncia cultural das prticas locais, comoos direitos diferenciados destinados aos indivduos pertencentesao grupo e, em seguida, a elaborao dos meios para efetiv-los.A justia multicultural seria concretizada ao serem resguardadas asprticas locais do quilombo de Linharinho.

    Sustentou-se, ao longo desse texto, a hiptese de que as duasteorias observadas de forma isolada no conseguiriam dar conta dos

    problemas da justia de uma sociedade contempornea complexa quedemanda a redistribuio de recursos, o reconhecimento cultural e arepresentao poltica. Aps a anlise do caso concreto dos quilombolasde Linharinho, tornou-se ainda mais claro que apenas uma teoria dajustia no seria suciente para corrigir as desigualdades encontradas.A partir do mapeamento das reivindicaes do grupo, observa-seo entrelaamento simultneo das dimenses econmica, cultural epoltica. Para solucionar de forma satisfatria as questes complexas

    que foram relatadas e dizem respeito ao quilombo de Linharinho, seriaenm insuciente a aplicao isolada tanto da proposta de Pogge,quanto do modelo de Kymlicka.

    Mesmo no sendo uma tarefa simples, possvel observar umacerta convergncia entre as duas teorias de justia. Por ora, destaca-se,brevemente, que as duas utilizam os dispositivos normativos expostosna Declarao Universal dos Diretos Humanos, sustentam os princpios

    do liberalismo igualitrio e propem formas institucionais como garantia

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    da justia. Em contrapartida, h divergncias, como, por exemplo, acrtica de Pogge s distines conceituais entre os grupos tnicos e osno tnicos, de modo que estas referncias culturais no so relevantes

    para concretizao de direitos. Kymlicka, por sua vez, identica aimportncia dos direitos sociais, porque assume que a poltica cultural atravessada por relaes socioeconmicas; dicilmente, no entanto,abriria mo dos direitos diferenciados em favor destas demandas denatureza socioeconmicas.

    Por m, as duas propostas igualmente formulam modelos dejustia social. Tanto para Pogge como para Kymlicka, a justia ou

    seu oposto so questes de planejamento institucional. Os esforostericos desses autores esto atrelados a esta determinao; por isso,nenhum deles comprometeu-se com algum apelo tico, voltado paraa avaliao pessoal dos envolvidos, mas, ao contrrio, sustentaramuma justia alicerada na premissa de que os arranjos institucionaisso os responsveis pela disposio dos direitos e das oportunidades.H, sem dvida, muitas outras questes que necessitariam derespostas, endereadas, notadamente, s responsabilidades, reformas

    e obrigaes relativas aos modelos de justia, pois, anal, sabemosque os mecanismos de ordem institucional nem sempre so sucientespara, de fato, impedir a ocorrncia de injustias. Tais respostas, contudo,sero dadas em outra oportunidade.

    Referncias

    ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em histria oral. Rio de Janeiro:Editora FGV, 2004.

    ARAUJO, Marcelo de. Direitos individuais e direitos de minoriasnacionais: uma crtica poltica de suplementao dos direitoshumanos em contextos multiculturais. Revista de Direito constitucionale internacional, So Paulo, v.55, p. 89-127. 2006

    BANTING, Keith; KYMLICKA, WILL. Les politiques de multiculturalisme

    nuisent-elles ltat-providence? Lien social et Politiques, Montreal,n. 53, p. 119-127, 2005.

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    Recebido em: 26/03/2015Aprovado em: 31/03/2015