Sergio Lessa - Ontologia Marxismo
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A ontologia de Lukcs e o marxismo
Apresentao
A enorme quantidade de vertentes tericas que se assumem enquanto
marxistas (desde os ortodoxos at os marxistas analticos), bem como a
fragmentao poltica que tem marcado a vida dos partidos, sindicatos,
entidades culturais etc. que se propem marxistas, a prpria evoluo dadiscusso acerca do lugar ocupado por Lukcs no marxismo do sculo XX --
aliadas nossas limitaes tericas e de tempo, faz com que o texto que se
segue tenha forma de um ensaio em tudo e por tudo provisrio.
A hiptese central deste ensaio poderia ser resumida em poucas
palavras: o esgotamento tanto das correntes tericas que se articulam na
trajetria que conecta o marxismo oficial a Althusser, como daquelas que
compuseram a Escola de Frankfurt at o ltimo Habermas, deixou como trincheira
menos devassada aos assaltos das correntes tericas conservadoras o marxismo
ontolgico, em especial a ontologia lukcsiana.
Uma vez mais, o quanto esta posio polmica e questionvel, algo
que no pode ser exagerado. Na difcil situao em que se encontra o marxismo,
a afirmao desta hiptese ou assume ares de dogmatismo (com o que deixa de
ser teoricamente sria) ou ento tem que assumir com radicalidade sua
provisoriedade e suas fragilidades. O que no significa, em absoluto, cair no
ecletismo.
Pensamos ser hoje to necessrio quanto no passado, quando as coisas
eram mais claras ao menos para os revolucionrios, enfrentar a polmica tendo
em vista dois aspectos. Em primeiro lugar, que a crise to profunda que,
seguramente, nossas posies tendero a se alterar ao longo do tempo com
alguma profundidade. Em segundo lugar, que esta mesma crise requer que
enfrentemos a polmica com posies to bem delineadas quanto possvel e que
sejam, ao mesmo tempo, consistentes e passveis de crtica. Consistentes, para
que possam elevar o rigor da anlise e do debate. Passveis de crtica para
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que se acautelem dos traos de religiosidade e dogmatismo que tantos estragos
causaram ao marxismo.
Nossa afirmao de um posio deseja assumir por inteiro estes
pressupostos. uma afirmao radical porque se prope a levar at s ltimas
consequncias a defesa das teses aqui expostas, contudo tendo em vista a sua
inevitvel provisoriedade.
Como o tema nos apaixonante, e como em algumas passagens mesmo uma
reviso cuidadosa no conseguiu eliminar por completo traos dessa paixo,
estes esclarecimento preliminares se fazem necessrios. Todavia, uma vez
esclarecido o sentido da provisoriedade do texto, podemos passar ao textopropriamente dito.
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Introduo
Sob a enorme presso da evoluo histrica, da chamada "sobrevida" do
capital no mundo contemporneo, de um lado; e de outro da carncia de acmulo
terico que possibilite a compreenso dos nexos e das conexes da forma de ser
da sociabilidade contempornea, o marxismo no sculo XX deu origem a trs
vertentes fundamentais: 1) o marxismo estruturalista (composto no apenas pelo
marxismo vulgar, mas tambm por elaboraes tericas sofisticadas como as de
Althusser e Cohen) que realiza, ao menos em parte, um retorno s concepes
ontolgicas materialista-mecaniscistas; 2) o idealismo marxista , que postula
o deslocamento e substituio do trabalho, enquanto categoria fundante do ser
social, pela linguagem, pelos valores, etc. Pensamos, fundamentalmente, na
Escola de Frankfurt; e 3) o marxismo ontolgico, que busca em Marx os
elementos de uma nova ontologia que d conta das especificidades do mundo dos
homens enquanto esfera de ser distinta e articulada natureza. Pensamos aqui
em Korsch, Gramsci, Lukcs, Mszaros, Tertulian, MacCarney, entre outros.1
Sinteticamente, passaremos anlise de cada uma destas vertentes.
1 - Esta classificao exibe duas debilidades bsicas. A primeira: ela no dconta da riqueza, matizes e enorme variedade das correntes tericasque se postulam marxistas no podendo, por isso, deixar de seresquemtica e provisria. O segundo limite ser ela orientada por umaperspectiva lukcsiana; ou seja, ela portadora da hiptese de que aontologia de Lukcs constitui, hoje, o solo mais frtil para odesenvolvimento e a superao da crise por que passa o marxismo.Explicitados estes pressupostos, e novamente sublinhado carter
provisrio deste ensaio, esperamos que a exposio justifique, aomenos em parte, este nosso procedimento.
O marxismo estruturalista e alguns dos seus desdobramentos
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Das trs vertentes, o marxismo estruturalista foi o que maior
influncia exerceu ao longo deste sculo. No apenas o mais antigo e de
linhagem "mais nobre" (sua origem pode ser tracejada mesmo no velho Engels1,
Kautsky e outros tericos do incio do sculo), como tambm foi a vertente que
mais rapidamente percebeu a mudana por que passava a sociabilidade
contempornea: a reproduo do capital, ao invs da sua ruptura, seria o trao
ontologicamente marcante da histria do sculo XX.
O marxismo estruturalista se caracteriza, em primeiro lugar, por
compreender a reproduo e a produo no sentido restrito e exclusivo de
"prticas econmicas de produo"2. Esta exclusividade da produo e
reproduo social enquanto momento meramente econmico est associada disjuno entre o "materialismo histrico e o dialtico", to caracterstico
deste universo terico, e construo de um enorme fosso entre a esfera
econmica e a subjetividade humana que, tambm caracteristicamente, superado
pela postulao de uma relao de determinao mecnica do pensado pelo
objetivado.
1 - Paul Kellog, em 1991, publicou um belo a apaixonado artigo em defesa deEngels ( "Engels and the roots of `Revisionism`: a re-evaluation",Science and Society, 55:2, 19910). Com toda justia, a nosso ver,busca recuperar o revolucionrio que foi Engels atravs,principalmente, da denncia das posies de Lucio Colletti queapresentou o velho Engels como uma das razes do reformismo (Cf., porexemplo, Colleti, L. Bernstein and the Marxismo of the Second
International. In From Rousseau do Lenin: Studies in Ideology andSociety. Monthly Review Press, 1972.). O eixo da argumentao deKellog o conhecido fato de Liebkenecht ter censurado o "testamentopoltico" de Engels, de modo a converter a ambiguidade de algumas desuas passagens numa posio tipicamente reformista. Protesta Kellogpelo fato de Colletti desconhecer este fato, bem como os indignadosprotestos de Engels contra a falsificao de seu texto, ao tomar parasua anlise das posio polticas do velho Engels o texto censurado, eno o texto original. Ainda que Kellog tenha razo nesse particular, epor mais equivocado que esteja Colletti, permanece o fato, que Kellogno aborda, que o pensamento engelsiano , por vezes, atravessado porum mecanicismo e um determinismo que, ao menos em parte, podem tersido uma antecipao do reformismo da II Internacional.
2 - Balibar, E., Sur les concepts fondamentaux du materialismo historique,Maspero, pg. 189.
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Paradigmtico, nesse universo terico, so as consideraes de Louis
Althusser em "De El Capital a la filosofa de Marx", texto que serviu de
prefcio de Para leer El Capital3.
Argumenta Althusser4 que, no jovem Marx,
"conhecer a essncia das coisas, a essncia do mundohistrico humano, de suas produes econmicas, polticas, estticase religiosas, verdadeiramente ler (lesen, herauslesen) em cadaletra a presena da essncia 'abstrata' na transparncia de suaexistncia 'concreta'. Nessa leitura imediata(negrito nosso -SL) daessncia na existncia se expressa o modelo religioso do saberabsoluto hegeliano, esse Fim da Histria, no qual o conceito por fimse faz visvel a cu aberto, presente em pessoa entre ns, tangvel
em sua existncia sensvel, onde este po, este corpo, este rosto eeste homem so o prprio Esprito."(21)
Marx estaria possudo "por uma certa idia do ler, que faz de um
discurso escrito a transferncia imediata(negrito nosso - SL) do verdadeiro, e
do real, o discurso de uma voz."(21)
Althusser continua apontando que
3 - Althusser se prope a "dar essa existncia prtica da filosofia marxista-- que existe em pessoa em estado prtico na prtica cientfica daanlise do modo de produo capitalista que O Capital e na prticaeconmica e poltica da histria do movimento operrio -- sua forma deexistncia terica /.../" atravs de "um trabalho de investigao eelucidao crtica que analise /.../ os diferentes graus dessaexistncia /.../" prtica e terica da filosofia marxista. Althusser,L., Balibar, E. Para leer El Capital, Siglo XXI Editores, Argentina,1973, pg. 37. Ainda que esta edio no seja exatamente igual edio
francesa original, ela possui a vantagem, para nosso estudo, deincluir alguns textos indito de Althusser e de Balibar, alm de ter atraduo revista pelo prprio Althusser, que tambm autorizou asalteraes em relao edio francesa.
4 - A publicao de sua autobiografia, L'Avenir Dure Longtemps, com arevelao de sua loucura, tem contribudo para descaracterizarAlthusser enquanto interlocutor significativo nesse debate. (Cf., porexemplo, Contat, M. "As mortes de Althusser", Novos Estudos CEBRAP,33, julho 1992). Esta postura nos parece equivocada por duas razes.Em primeiro lugar, porque a obra althusseriana -- com sua enormeinfluncia -- se converteu em um fenmeno que transcende os limites daproblemtica individualidade do seu criador. Em segundo lugar, chamarpara o debate a "loucura" de Althusser no constitui um argumento
terico de qualquer relevncia para a soluo das questes tericascolocadas pelos althusserianos.
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"/.../ Marx s pde chegar a ser Marx fundando uma teoria dahistria e uma filosofia da distino histrica entre a ideologia ea cincia e, em ltima anlise, a que essa fundao se tenhaconsumado na dissipao do mito religioso da leitura. Ali onde ojovem Marx dos Manuscritos de 1844 lia a livro aberto,imediatamente(negrito nosso - SL), a essncia humana natransparncia de sua alienao, O Capital toma, pelo contrrio, aexata medida de uma distncia, de um deslocamento interior do real,ambos escritos em sua estrutura, e de tal modo que tornam ilegveisseus prprios efeitos e fazem da iluso de sua leitura imediata oltimo e o pice dos seus efeitos: o fetichismo. /.../ descobrindoque a verdade da histria no se l em seu discurso manifesto,porque o texto da histria no um texto no qual fale uma voz (oLogos), mas a anotao inaudvel e ilegvel dos efeitos de umaestrutura de estruturas."(21/2)
Por motivo de espao, deixaremos de acompanhar os meandros daargumentao althusseriana (e eles no so poucos!) acerca do ato da leitura,
do desvelamento do sentido oculto de um texto atravs de respostas a questes
que apenas sub-repticiamente perpassam-no -- e no mais das vezes sem a
conscincia do autor --, as quais permitiriam, a um leitor atento, o acesso
estrutura significante mais ntima de um escrito. Nem nos deteremos, tambm,
nas consideraes acerca do olhar, e de como este ato confere o significado ao
objeto.
Apenas chamaremos a ateno para o fato de que, ao afirmar que Marx
estaria possudo "por uma certa idia do ler, que faz de um discurso escrito a
transferncia imediata do verdadeiro, e do real, o discurso de uma voz", a
transferncia imediata entra sub-repticiamente, conferindo concepo
marxiana de (concedamos a Althusser em funo da brevidade) "leitura" do real
uma imediaticidade que ela, em nenhum momento exibe5. Inserida esta
"imediaticidade", est lanada a ponte para aproximar Marx das concepes que
entendem a atuao da conscincia enquanto manifestao de um Logos que funda
tanto a subjetividade quanto a objetividade, possibilitando assim a"transferncia" sem mediaes das determinaes do real para a conscincia.
Por uma via original, Marx jovem se converteu no portador da teoria hegeliana
da identidade sujeito/objeto.
5 - A relao sugere, at mesmo, uma correspondncia biunvoca entre sujeito eobjeto em Marx! (Cf. Althusser, op. cit., pg. 53)
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Construdo este boneco de palha, fcil colocar fogo no jovem Marx --
e se apoiando no prprio Marx da "maturidade", fundamentalmente no Marx de O
Capital, argumentar que objeto real e objeto do conhecimento so duas coisas
distintas e que, portanto, o objeto de que se trata, na teoria, no o objeto
real, mas o objeto do conhecimento.
"Creio que obtivemos um ponto de partida. Se no h leiturainocente porque toda leitura no faz seno refletir em suaslies, em suas regras ao verdadeiro responsvel: a concepo do
conhecimento que sustentando seu objeto, o faz o que ."6
Nos deteremos to-s em um nico movimento desta argumentao
althusseriana. Aps imputar ao empirismo a concepo de que o conhecimento faz
parte do objeto realmente existente (cf. pgs. 42 e ss.), colocando num mesmo
campo do debate gnosiolgico, o da identidade sujeito/objeto, no apenas Hegel
e o jovem Marx, mas tambm o empirismo (sem citar um nico texto ou autor
emprico que autorize este procedimento) passa o filsofo francs a argumentar
que
"/.../ Marx defende a distino entre o objeto real (oconcreto-real, a totalidade que `subsiste em sua independncia forada cabea [Kopf], antes como depois`, da produo do seu
conhecimento)7 e o objeto do conhecimento, produto do conhecimentoque o produz em si mesmo como concreto-de-pensamento(Gedankenkonkretun), como totalidade-de-pensamento(Gedenkentotalitt), absolutamente distinto do objeto-real, doconcreto-real, da totalidade-real, da qual o concreto-de-pensamento,a totalidade-de-pensamento, proporciona precisamente o conhecimento./.../ o processo de produo do objeto do conhecimento ocorre porcompleto no conhecimento /.../. "(47)
Salientamos que, analogamente a como, anteriormente, fora
contrabandeada a imediaticidade na transferncia entre sujeito/objeto em Marx,
agora a distino entre sujeito e objeto posta como uma distino
"absoluta". Isto abre espao para Althusser desconhecer que, para Marx, a
objetividade humana o resultado da objetivao de posies teleolgicas -- e
que portanto, sem em nada diminuir a distino ontolgica entre sujeito e
objeto, em nada atenuar a objetividade primria do ser, este "absoluto" deve
6 - Op. cit., pg. 40.
7 Althusser cita a Contribuio Crtica da Economia Poltica, pg 166 daedio francesa de 1917 da Editions Sociales.
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ser tomado num sentido muito preciso. Caso contrrio, regrediramos
antinomia esprito/matria tpica, por exemplo, de Feuerbach.
Ora, se o objeto do conhecimento produo exclusiva da subjetividade,
do pensamento, terminamos no puro idealismo? A sada de Althusser, aps
postular a absoluta distino entre objetividade e subjetividade, postular
que o pensamento no pura subjetividade.
"Quando Marx nos diz que o processo de produo doconhecimento /.../ ocorre por completo no conhecimento, na `cabea`ou no pensamento, no cai, nem por um segundo, em um idealismo daconscincia /.../ Este pensamento o sistema historicamenteconstitudo de uma aparato de pensamento, baseado e articulado na
realidade natural e social. O pensamento definido pelo sistema dascondies reais que fazem dele /.../ um modo de produo determinadode conhecimentos."(47 e ss.)
Em outras palavras, para Althusser, o objeto do conhecimento produto
exclusivo do pensamento desde que por pensamento compreendamos toda a malha
real que articula subjetividade e individualidade. H uma subjetividade que
absolutamente distinta do mundo objetivo e h o pensamento que definido
pelas "condies reais". Que subjetividade essa que no pensamento
Althusser no esclarece! Com o que ficamos com uma estrutura conceitual em sicontraditria: uma subjetividade que , ao mesmo tempo, "absolutamente"
distinta do real ( e to distinta que, o que conhecemos, no o real mas o
"objeto do conhecimento") e "definida" pelas "condies reais".(47-8)
Prximo passo: mostrar que o real, a "realidade natural e social" na
qual se baseia o "aparato de pensamento", funciona como uma matria-prima que
historicamente condicionada, socialmente construda: "h uma grande
distncia entre, por exemplo, a matria-prima que trabalhou Aristteles e a
matria-prima que trabalharam Galileu, Newton ou Einstein/.../"(48-9). Para
no nos alongarmos, iremos direto ao corao do argumento althusseriano: o
objeto
"no tem, evidentemente, j nada a ver com a `pura` intuiosensvel ou a simples `representao` /.../ mas com uma matria-prima sempre-j complexa, com uma estrutura de `intuio` /.../ oconhecimento no se encontra jamais /.../ ante um objeto puro queento seria idntico ao objeto real/.../. O conhecimento, aotrabalhar sobre seu "objeto", no trabalha, pois sobre o objetoreal, mas sobre sua prpria matria-prima, que constitui, -- no
sentido rigoroso do termo -- seu objeto (de conhecimento) que ,
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desde as formas mais rudimentares do conhecimento, distinto doobjeto real /.../"(49)
Esta , para Althusser "o simples conceito formal da estrutura da
prtica terica"(49).
Althusser continua argumentando que, com isto temos uma revoluo na
histria da cincia, pois fica evidente que antes de fazermos tal histria,
assim como antes de escrevermos tal histria, deveremos construir um conceito
que nos permita, por mais provisoriamente, nos debruar sobre esta empreitada.
O conceito que dirige o olhar passa a ser o ponto de partida fundante da
reflexo (pgs 49-52).
O estruturalismo althusseriano, caracteristicamente, termina por
retornar senda do kantismo depois de "ler" no jovem Marx um hegeliano. A
incapacidade em articular as "estruturas", os "mecanismos", que operam tanto
na subjetividade como na objetividade humanas, levou dicotomia absoluta
realidade/pensamento e, da, a um universo tipicamente kantiano: pensamos o
que pensamos, e no conhecemos o ser-precisamente-assim existente, o objeto
'fundado pelo olhar.
Correlativamente, a individualidade -- e a conscincia que participa de
seu ser -- reduzida a agente de um aparato de pensamento que definido pelo
complexo de relaes sociais que determina o modo de produo de
conhecimentos. Misteriosamente, a objetividade inacessvel ideao, e a
subjetividade reduzida a determinaes scio-genricas materiais. Essa dupla
reduo caracteriza o estruturalismo althusseriano.8
8 - Vale assinalar, para encerrar nossos comentrios sobre o pensador francs,que ele recusa explicitamente ser um estruturalista. Sua argumentao,fundamentalmente, se reduz a que, para ele, ao contrrio do que ocorrepara os estruturalistas clssicos, o conceito de combinao(Verbindung) no uma mera combinatria formalista. A nosso ver, estaargumentao de Althusser no passa de uma recusa "estruturalista" de
ser um estruturalista. Todavia, j nos alongamos em demasia paraentrarmos nesse debate. Cf. Althusser, op. cit., pg. 3-4.
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Com a dmarche althusseriana est perdida a unidade intrnseca da obra
marxiana, e esta tem que ser reinterpretada para ser elevada cincia. Toda a
problemtica do corte epistemolgico faz sua entrada em cena. Do mesmo modo,
"o conceito de histria" se transforma numa questo dramtica, pois como
explica-la se as aes humanas, que sempre contm elementos volitivos,
valorativos, teleolgicas, so meros reflexos mecnicos, suportes ou
decorrncias, do movimento objetivo das estruturas?
A proximidade de Bourdieu e Passeron com o fundamental desta postura
considervel.9 Tambm estes autores marxistas postulam a disjuno radical
entre o que determinam infra-estrutura e a superestrutura e, a partir de
ento, afirmam a necessidade de um construto terico cuja elaboraointrnseca independe do objeto, e que servir como padro na organizao do
real pela subjetividade. Denominam este construto de arbitrrio cultural e, a
partir dele, afirmam que a reproduo humana apresenta uma determinabilidade e
uma relao causal semelhante quela em que o cdigo gentico exibe na
reproduo biolgica10.
Nos anos 1970/80 o marxismo estruturalista entra em profunda crise.
Novas correntes de pensamento no-marxistas se desenvolvem e colocam
problemas, normalmente centrados sobre os fenmenos da subjetividade humana,
que o marxismo estruturalista no consegue enfrentar com sucesso. Ao mesmo
tempo no interior do prprio marxismo, se desenvolvem crticas severas ao
carter mecanicista e ingenuamente materialista do marxismo estruturalista.
Significativa do alcance e debilidades dessas crticas so as consideraes do
historiador ingls E. P. Thompson.11
A tese central de Thompson acerca de Althusser que este representa o
estado acabado do stalinismo, do ponto de vista terico (140/2 e 181-192). Ao
fim e ao cabo, o pensador francs teria negado o papel ativo dos homens na
9 - Bourdieu, P. e Passeron, J.C. La Reproduction, Paris, 1970.10 - Bourdieu, P. e Passeron, J.C., op. cit., pgs. 44 e ss..11 - Thompson, E. P. The Poverty of Theory and Other Essays, Monthly Review
Press, 1978. As citaes sero feita no prprio texto, com nmerosentre parnteses.
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histria, transformando-a em mero desdobramento das estruturas, no interior da
qual os homens no passariam de Trger (suporte) das determinaes objetivas.
Ao faz-lo, Althusser reduziria toda problemtica dos valores a mero
epifenmeno do processo de desdobramento das estruturas objetivas.
Segundo Thompson, Althusser enfrenta o crucial problema do fato de
sermos ao mesmo tempo sujeito e objetos da histria, afirmando, em primeiro
lugar, que a histria o desdobramento das estruturas e que, portanto, no
tem sujeito.12 As necessidades dos indivduos e os prprios indivduos so
definidas pelas relaes de produo; e, como "estas so relao, elas no
podem ser pensadas na categoria de sujeito."13
Aponta Thompson, a nosso ver com acerto, que com as colocaes de
Althusser no apenas a dialtica fica restrita ao interior das estruturas
(91/2 e 112)14, como ainda um atributo secundrio das mesmas.(93/4 e 159) De
movimento do real a dialtica se restringe construto terico-racional a
priori e, conseqentemente, as categorias deixam de ser radicalmente
histricas.(95 e ss.) O objeto deixa de ser o real, o ser-precisamente-assim
existente, para ser um construto da subjetividade.
E a argumentao de Thompson conclui:
"A absurdidade de Althusser consiste no modo idealista desuas construes tericas. Seu pensamento rebento do determinismoeconmico carregado pelo idealismo terico." "No parece sernecessrio insistir que este procedimento completamente auto-confirmante. Ele se move no interior do crculo no apenas de suaprpria problemtica mas de seus prprios procedimentos de auto-perpetuao e auto-elaborao." E, enfim: "Esta ode ao pensamento exatamente o que usualmente tem sido designado, na tradiomarxista, de idealismo. Tal idealismo consisti no em afirmar ounegar um mundo material ulterior, mas num universo conceitual auto-gerador que impe sua prpria idealidade sobre os fenmenos daexistncia material e social, a invs de se engajar num contnuodilogo com elas. /.../". "A categoria obteve uma primazia sobre areferncia material; a estrutura conceitual paira sobre e domina oser social."(13. Cf., tb., pgs. 12, 95-6)
12- Cf. tb., Thompson op. cit. 153 quem joga o jogo, os jogadores ou asregras? Se as regras definem os jogadores, como podem eles jogar?
13 - Althusser, L. Reading Capital, pg. 180, aps Thompson, op. cit., pg. 16.
14 - Os nmeros entre parnteses indicam as pginas de Thompson, op. cit.,salvo indicao ao contrrio.
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Os limites da crtica de Thompson j foram muito exploradas, e no nos
deteremos agora em sua anlise. Desde a publicao por Perry Anderson de
Arguments Within English Marxism15, o "elo dbil" de Thompson vem sendo
escrutinado nos mnimos detalhes: o papel que confere conscincia na gnese
e desenvolvimento das classes sociais.
O "Marxismo Analtico"
A crise do althusserianismo teve uma curiosa conseqncia no
desenvolvimento do marxismo estruturalista, principalmente nos pases de
lngua inglesa: levou ao extremo a sua tendncia a um formalismo lgico-
abstrato. A mais acabada expresso desta tendncia o Marxismo Analtico.
Em um artigo na revista Science and Society intitulado In defense of
Analytical Marxism16, as motivaes imediatamente polticas desta vertente
so explicitadas em todas as letras. Nele Mayer afirma, refutando as crticas
de W. H. Locke Anderson e Frank W. Thompson que, no nmero imediatamente
anterior da mesma revista, haviam criticado o Marxismo Analtico como umacorrente terica anti-marxista17, que
Os marxistas nas sociedades capitalistas avanas tm, comsucesso, chamado o povo para as barricadas? Conseguimos ns sequerantecipar quais setores da sociedades participariam de movimentospor mudanas sociais progressivas? Nossas teorias nos auxiliaram aentender porque este povo se sente explorado e quais so suasdemandas? O Marxismo Analtico parcialmente uma resposta a estasfalhas da prtica poltica marxista. /.../ Se algo debilitar ateoria marxista o excessivo orgulho de seus seguidores: adesoteimosa e infundada a formulaes marxistas tradicionais, aliada
relutncia em reconhecer, quanto mais se voltar aos graves defeitosde concepo.(437-8)
15 - Anderson, P. Arguments Within English Marxism. NLB and Verso Editions,Londres, 1980. Ainda que as crticas ao clssico The Making of theEnglish Working Class sejam, em geral, pertinentes, a nosso ver atentativa de defesa de Althusser contra Thompson, por P. Anderson, insuficiente.
16 - Mayer, T. F. "In defense of Analytical Marxism", Science and Society,53:4, 1989-90.
17 - Anderson, W.H.L, Thompson, F.W., "Neoclassical Marxism", Science andSociety, 52:2, 1988.
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E, logo a seguir:
"Alternativamente, os marxistas podem se reconciliar com umstatus prazeroso, doutrinariamente puro mas impotente para influirno processo histrico. Se formos sortudos, este status prazerosopode continuar at que o marxismo seja oficialmente conduzido aomuseu das curiosidades intelectuais antigas."(438)
Muitos dos seus aderentes, entre os quais Roemer e Elster, reconhecem
em Gabriel Cohen o fundador dessa nova vertente do pensamento marxista18. O
que nos obriga a uma anlise, com algum detalhe, do seu mais influente livro
Karl Marx's Theory of History -- a defense19.
Tal como Althusser, Cohen tambm se prope a uma reconstruo do
"materialismo histrico" no apenas para torna-lo mais "atrativo" e menos
"ambguo", mas tambm para dota-lo de maior preciso visando aproxima-lo de um
construto cientfico.20
A dmarche de Cohen curiosa. Tem incio pela busca de um paralelo
entre a histria em Hegel e em Marx, mas de tal maneira que Marx se transforma
num hegeliano materialista. O esprito se transubstancia em classe operria, a
identidade sujeito-objeto no comunismo, o tempo hegeliano no tempo da luta declasses de Marx. Este paralelo conhecido e as crticas a ele sero resumidas
mais abaixo, ao tratarmos do marxismo ontolgico. Deste ponto de partida,
Cohen evolui rapidamente para a seguinte afirmao:
"Para Hegel os homens tm histria porque a conscinciaprecisa de tempo e ao para conhecer a si prpria, para Marx,porque os homens precisam de tempo e ao para prevalecer sobre anatureza."
E, ento:
"Segue-se que no h histria quando a natureza forexcepcionalmente generosa (23)/.../ histria uma substituta danatureza."(24)
18 - Cf., por exemplo, o artigo de Thomas F. Mayer, op. cit., pg. 418.19 - Cohen, G. Karl Marx's Theory of History -- a defense, USA, 1978.20 - Idem, ibidem, pg. IX-X e 27. As citaes desta obra de Cohen sero feitas
no prprio texto, o nmero da pgina entre parnteses, at indicaoem contrrio.
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O fundamento da histria, agora, natural, e no mais as aes
humanas! Com esta base natural, o marxismo rapidamente ganha acentos de
teleologia e de mecanicismo(pgs. 25 e 26/7).
Isto posto, Cohen assinala, a partir do conhecido prefcio Crtica da
Economia Poltica, que:
"A estrutura econmica (ou `base real`) /.../ composta dasrelaes de produo. Nada mais dito / por Marx / que participeda sua composio. Ns conclumos, ex silentio, que apenas asrelaes de produo servem como constituintes da estruturaeconmica. Isto significa que as foras produtivas no so parte daestrutura econmica."(28)
A anlise de Cohen, a partir de ento, tem que excluir fora de
trabalho da categoria de foras produtivas(32/3), caracterizar as estruturas a
partir das relaes de propriedade (35/6); "corrigir" Marx no sentido de
substituir "sociedade" por "estrutura social"(37) e afirmar que a estrutura
econmica "forma", presumivelmente por oposio a "contedo"(37).
O que nos interessa mais de perto, nesta investigao, no entanto, o
carter da oposio que Cohen afirma existir entre o "material" e o "social".
Segundo ele, Marx aponta que "Povo e foras produtivas compem seu
contedo material, um contedo dotado pelas relaes de produo com forma
social."(89) Aps "demonstrar" como Marx apresenta contradies em alguns
aspectos centrais desta problemtica, argumenta que:
"Eles / homens e foras produtivas / tm caractersticasmateriais e sociais, mas nenhuma caracterstica social pode serdeduzida das suas caractersticas materiais, no mais do que a formada esttua pode ser deduzida do seu material." E, em seguida, "Nsestamos argumentando que a distino familiar entre foras erelaes de produo , em Marx, um conjunto de contrastes entre anatureza e a sociedade."(98)
Certamente nenhuma caracterstica social pode ser derivada do cdigo
gentico, por exemplo. Mas, no menos certamente, as determinaes sociais ou
so materiais ou no so nada. Que elas so materiais de uma forma distinta da
materialidade de uma pedra nada mais significa seno reconhecer que o ser
social uma esfera ontolgica distinta das esferas naturais.
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A sada de Cohen para este conjunto de questes, dado seus
pressupostos, assume a seguinte forma: "Nem todas as relaes entre os homens
so sociais" ("Not all relations between men are social")(93), mas derivadas
do mundo material. E, o que se segue com absoluta necessidade, Cohen postula a
possibilidade de uma descrio do mundo material "neutra", "da qual no
podemos deduzir sua forma social". Que de uma descrio da natureza no
podemos "deduzir" o ser social no h dvida, mas que tal descrio possa ser
neutra, no-social no dizer de Cohen, corresponde afirmao da neutralidade
das cincias naturais, posio esta muito mais prxima ao positivismo que
tradio marxista.(94)
Este tipo de "rigor analtico" postulado por Cohen considerado, no
artigo de Mayer acima citado, como momento fundante do Marxismo Analtico.
Todavia, o trao mais caracterstico21 desta nova tendncia, a nosso
ver, est no individualismo metodolgico, assim exposto por Elster22:
"todos os fenmenos sociais -- suas estruturas e suas
mudanas -- so por princpio explicveis por mtodos (ways) queapenas envolvam indivduos -- suas propriedades, suas finalidades,suas crenas e suas aes. O individualismo metodolgico assimconcebido uma forma de reducionismo."
O que nos imprescindvel salientar trs aspectos centrais da
relao entre marxismo estruturalista e marxismo analtico.
Em primeiro lugar, que a dissociao entre a esfera econmico-material
e a esfera da subjetividade humana, trao caracterstico do marxismo
estruturalista, terminou por levar a uma outra dissociao, no menos grave
nas suas conseqncias: a dissociao entre individualidade e sociabilidade.
Como a individualidade no tomada no seu processo histrico-gentico, se
21 - Mesmo quando autores que se alinham com o Marxismo Analtico recusam oindividualismo metodolgico, eles o fazem em termos tais quesignificam apenas a aceitao diferenciada dos postulados doindividualismo metodolgico. Cf, por exemplo, Mayer, op. cit., pg. pg.426 e ss.
22 - Elster, J. Making Sense of Marx, Cambridge University Press, Cambridge,1985, pg. 5.
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converte em algo dado, cuja fundao e desenvolvimento no se constituem em
problema. A forma e o contedo que assume esta dissociao, no Marxismo
Analtico, implica num retorno ao postulado clssico do pensamento moderno, de
Hobbes a Rousseau: a sociabilidade o resultado das aes de indivduos cuja
individualidade no constituda atravs de complexas mediaes scio-
genricas, mas dada de uma forma a-histrica23, por uma natureza humana que
permanece intocvel ao longo da histria e que corresponderia essncia
humana. Significa, tambm, um retorno ao pressuposto bsico da economia
poltica burguesa: o elemento fundante da economia seriam as aes de
indivduos "racionais" por natureza. Esta a forma concreta que assume a
peculiar recusa da categoria da totalidade pelo marxismo analtico.
H , ainda, um outro aspecto a ser eventualmente explorado. No raro
o uso, pelo marxismo analtico, de "modelos" sociais primitivos, abstratamente
elaborados, para justificar suas assero. Roemer, por exemplo, em General
Theory of Exploitation and Class, se baseia num modelo de comunidade de
pequenos produtores que, no essencial, est muito prximo dos modelos de
sociedades primitivas utilizados por Locke, Hobbes e Rousseau. Com uma
diferena significativa: enquanto na Idade Moderna os pensadores explicitavam
sua concepo de natureza humana, no marxismo analtico este esforo
considerado dispensvel. Na ausncia de uma teorizao acerca da natureza
humana, este procedimento no marxismo analtico pode resultar exatamente no
oposto do pretendido por seus autores, como argumentaram com muita acuidade
Anderson e Thompson em "Neoclassical Marxism".24
Esse retorno ao indivduo-mnada, no dizer de Marx25, o solo que
permite a Elster a aplicao da teoria dos jogos na anlise dos fenmenos
23 - Elster argumentaria, contra essa nossa afirmao, que pressupor "egosmo"ou "racionalidade" na esfera da ao individual "baseada emconsideraes puramente metodolgicas, e no em qualquer consideraoacerca da natureza humana."(6) Todavia, esta considerao metodolgicaganha acentos ontolgicos quando utilizada para "explicar" aprocessualidade social, j que, para Elster, "Explicar oferecer omecanismo /.../" que articula o singular ao universal.(5) Em Marx Hoje(Paz e Terra, 1989, pg. 37) reconhece que "/.../ o suposto de que osindivduos sejam racionais e egostas no faz parte da doutrina,embora seja compatvel com ela."
24 - Anderson e Thompson. "Neo Classical Marxism". Science and Society, 52:2,
1988.25 - Marx, K. A questo Judica. Ed. Moraes, S/d, pgs. 13-52.
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sociais.26 Sem nos estendermos na sua refutao, apenas assinalaremos que a
teoria dos jogos pressupe uma estabilidade das regras e dos padres de
escolha (ditas "racionais") por parte dos indivduos que , ontologicamente,
incompatvel com a dinmica peculiar reproduo social. Tal teoria, antes de
ser "marxista" como querem Elster e Mayer, se encontra por inteiro no interior
da concepo de mundo tipicamente cartesiana do individualismo metodolgico: o
todo formado pela justaposio das partes, o complexo a justaposio do
simples27. Consideramos que a teoria dos jogos se aplica muito mais ao estudo
das microfundaes (microfoundations) da processualidade social requeridas
pelo universo terico tpico do individualismo metodolgico, que ao estudo dos
fundamentos scio-genricos da humanidade, como proposto por Marx.
Ainda que apresentando novidades, que fazem com que a crtica ao
althusserianismo no d conta das especificidades do marxismo analtico, no
limitado horizonte desse trabalho gostaramos de chamar ateno ao fato de a
dissociao individualidade/sociabilidade caracterstica dos escritos de
Elster, Roemer, etc., exibir uma continuidade com a dicotomia
indivduo/histria, subjetividade/estruturas objetivas, encontradas em
Althusser. E o elo que articula estes dois nveis de dicotomias a obra de
Cohen. Nesse sentido, curioso e significativo o entusiasmo que Cohen exibe
pelos primeiros escritos de Althusser e sua decepo com os livros
posteriores.28 Delimitar como Cohen realiza esta mediao entre Althusser e o
Marxismo Analtico, cai fora dos limites aceitveis a este trabalho. Apenas
citaremos, para mnima e provisoriamente autorizar esta nossa interpretao,
que tanto Elster, como Roemer e Mayer reconhecem no livro de Cohen Karl Marx's
26 - Cf. Elster, J. Marx Hoje, op. cit. pgs. 43-5. O exemplo dado por Elster,que demonstra a impossibilidade lgica, a partir dos pressupostos porele escolhidos, de uma greve, um falso silogismo muito mais que umparadoxo. Demonstra claramente a incapacidade desse arcabouo tericoem explicar at fenmenos sociais que no so dos mais complexos, comouma greve.
27 - Cf. Elster, J. Making Sense ..., op. cit., pgs. 14-5. E tb. Mayer, op.cit.. "De acordo com o individualismo metodolgico, /.../ quaisquer`leis de movimento e auto-regulao` do capitalismo devem serdeduzidas como teoremas de axiomas que especifiquem os motivos elimitaes de firmas, trabalhadores e consumidores."(Elster, Marx
Hoje, op. cit., pg. 38)28 - Cohen, op. cit., pgs. X-XI.
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Theory of History.... uma contribuio terica fundamental para o
desenvolvimento do marxismo analtico, e que Cohen, por sua vez, reconhece sua
dvida para com Althusser.29
Em segundo lugar, devemos chamar a ateno a que, tal como a dicotomia
objetividade/subjetividade conduziu Althusser ao terreno da gnosiologia
kantiana, o individualismo metodolgico, mutatis mutantis, reafirma a
validade, para o marxismo, do que Mayer denomina (pg. 438 do artigo acima
citado) de "mtodos da cincia social burguesa". Argumenta ele que
"O uso da metodologia cientfica social burguesa por vezesuma prtica honrada entre marxistas que se estende deste a adaptao
do prprio Marx da economia poltica inglesa. Esta prtica pareceser absolutamente essencial para que o marxismo possa disputar a
hegemonia intelectual no milieu cultural do capitalismo avanado."30
Corrigir Marx, de modo a torna-lo mais "cientfico", tendo por base a
concepo de que ele teria apenas "adaptado" - e no radicalmente subvertido,
superado no sentido hegeliano da expresso -- a metodologia burguesa, reduz o
marxismo a uma corrente do liberalismo clssico. Enquanto a "adaptao"
marxiana da economia clssica burguesa levou Marx a postular a necessidade,
inscrita no prprio ser social burgus, -- necessidade que no se confunde cominevitabilidade, ao menos em Marx -- da emancipao humana da submisso ao
capital; o individualismo metodolgico conduz revalorizao da "cincia
burguesa". Marx, assim "re-interpretado", no apenas deixa de ser
"cientfico", como ainda deixa de ser Marx!
Em terceiro lugar, devemos assinalar que essa migrao para o campo
epistemolgico e sociolgico burgus conduz reavaliao da explorao dos
homens pelos homens. Tanto Roemer31, como Elster32 terminam, cada um a sua
maneira, por afirmar que a questo da explorao do homem pelo homem no
29 - Elster, J. Making Sense of Marx, op. cit., p. XIV-V. Roemer, J. E. AGeneral Theory of Exploitation and Class. Cambridge, Massachussetts,1982. Cohen, G., op. cit., pg.. X.
30 - Mayer, op. cit., pg. 438.31 - Roemer, J. E. A general Theory of Exploitation and Class. Cambridge,
Massachussetts, 1982. E, do mesmo autor, Free to Lose: An Introductionto Marxist Economic Philosophy, Massachussetts Harvard University
Press, Cambridge, 1988.32 - Elster, J., Making Sense of Marx, op. cit. pgs. 216-233.
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meramente moral, e que portanto deve ser tratada como o que de fato : um
problema econmico33. A questo ento, se colocaria da seguinte maneira: h
uma melhor forma de relacionamento possvel entre os homens que o
relacionamento baseado na explorao? Se houver um outro relacionamento no
baseado na explorao e que seja -- realamos -- possvel, ento a explorao
condenvel. Caso contrrio, ser explorado pode ser a melhor alternativa,
tanto para o explorado quanto para o explorador. Nesse caso a explorao
poderia se basear numa relao de troca livre e voluntria34. A fertilidade
deste solo terico, na mar contra-revolucionria em que vivemos, para
justificar a explorao dos homens pelos homens como um mal necessrio,
evidentemente muito grande.
Nos artigos da Science and Society, j citados, de Lebowitz, Anderson e
Thompson, e Mayer, este aspecto da questo debatido exaustivamente, e no
valeria a pena, agora, se deter nos detalhes deste debate. Esperamos, contudo,
com os elementos aqui apresentados, ter garantida, ao menos, a legitimidade da
postulao da nossa hiptese acerca da evoluo do marxismo estruturalista.
Essencialmente, de que o esgotamento da vertente althusseriana tem alguma
repercusso no desenvolvimento posterior do autodenominado Marxismo Analtico.
Tal como, a nosso ver, a epistemologia althusseriana possui uma fundamentao
kantiana, o Marxismo Analtico exibe um forte parentesco com o pensamento
liberal. Entre um e outro, apesar da diferenas que no devem nem podem ser
desprezadas -- repetimos que a crtica de um no esgota a crtica do outro --
pensamos haver elementos de continuidade cujo elo articulatrio principal
possivelmente seriam as teorizao de Gabriel Cohen.
Uma outra vertente do marxismo estruturalista, muito menos expressiva,recusa a trajetria Althusser/Balibar/Cohen/Marxismo Analtico. Ela se
caracteriza por se apegar discusso dos problemas contemporneos a partir de
frmulas "clssicas" do marxismo da III Internacional. O debate da
33 - Nas palavras de Elster: "/.../ a explorao no um conceito moralfundamental. A explorao, quando censurvel, o por causa dascaractersticas especficas da situao /.../."(Marx Hoje, op. cit.,
pg. 116)34 - Elster, J. Marx Hoje, op. cit., pg 98 e ss.
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inverso simtrica desta determinao. A teoria dos jogos, a escolha racional
e o individualismo metodolgico seriam formas diversas de apresentao dessa
dicotomia entre estrutura e subjetividade;
2) disjuntar esfera econmica e totalidade social; quer conferindo-lhes
um carter de exterioridade estrutural(Althusser), quer conferindo s foras
produtivas uma materialidade distinta da social (como o faz Cohen), quer
desconsiderando a problemtica conexa afirmao marxiana da predominncia da
esfera econmica na determinao da reproduo social (Marxismo Analtico);
2a) esta disjuno, ao no conseguir dar conta dos complexos
processos que articulam subjetividade e objetividade no mundo dos homens,termina por afirmar, ao mesmo tempo, a radical separao destas duas esferas
e, no caso de Althusser, Balibar, Bourdieu e Passeron, uma relao mecnica
entre elas; em Cohen, esta disjuno assume a forma de uma contraposio entre
o material e o social; e, no marxismo analtico, esta disjuno
potencializada pelo individualismo metodolgico;
2b) esta disjuno est associada a uma postulao metodolgica de
fundo: a necessidade de um construto terico prvio que ordenar a realidade
em objetos e conhecimentos cientficos. Em se tratando do conjunto formado por
Althusser, Balibar, Passeron e Bourdieu, esta necessidade metodolgica possui
acentos claramente kantianos. No caso do Marxismo Analtico, este modelo
terico a priori se limita a admisso inconfessa da pressuposio da
existncia de uma natureza humana a-histrica;
2c) esta disjuno, ainda, implica em compreender a histria como
o movimento das estruturas, movimento do qual a esfera da subjetividade mera
decorrncia. Se isso evidente em Althusser e Balibar, mesmo nas formulaesde Bourdieu e Passeron, onde o arbitrrio cultural parece jogar o papel
predominante na histria, a esfera da subjetividade inevitavelmente
determinada pela base material. Os indivduos e as aes humanas no so mais
os elementos fundantes do ser social, mas sim Trger, suportes, dos movimentos
estruturais. No Marxismo Analtico, esta determinao mecnica da
subjetividade pela base material deu origem, numa aparente inverso crtica,
ao individualismo metodolgico. Se, no primeiro momento, as estruturas
determinavam as individualidades, agora so as aes imediatas dos indivduos
o nico momento fundante do ser social;
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2d) a teoria dos jogos e a escolha racional38 so resultados
imediatos desta ciso entre sociabilidade e individualidade. Nessas teorias,
tal como em Althusser, os indivduos so Trger das estruturas. Aqui a
aparncia da inverso que mencionamos em 2c) se evidencia por completo;
3) a crise da vertente do marxismo representada por este primeiro
conjunto de autores assume a forma de uma especializao formalista dos
conceitos que atinge nveis elevados de esterilidade (Balibar, mais que
Althusser, de um lado, e Cohen e o marxismo analtico de outro) medida em
que so discusses que se propem puramente lgicas, que no tomam o real como
esfera resolutiva das elaboraes tericas.
38- Cf. Elster, J. Marx Hoje, op. cit., pgs 40-1, onde exposta a relaoentre teoria dos jogos e escolha racional.
O idealismo marxista
O idealismo marxista nasce, tambm, como uma reao ao marxismo
oficial. Sua evoluo no pode ser corretamente compreendida, nos parece, se
no levarmos em conta que o marxismo associado III Internacional contava no
apenas com o suporte poltico dos PCs no mundo todo, mas tambm com recursos
para sua reproduo e para a represso das outras correntes tericas. Por
isso, ainda que muitos dos adeptos do nascente idealismo marxista, na dcada
de 1920 acima de tudo, politicamente se alinhassem com a defesa da revoluo
russa, o desdobramento desta corrente terica se deu do exterior e em oposio
ao "marxismo oficial".
Na raiz do idealismo marxista esto o jovem Lukcs, de Histria e
Conscincia de Classe e a Escola de Frankfurt.
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O que marca a primeira grande obra do filsofo hngaro a identidade
entre sujeito e objeto na construo da ordem comunista. Da a sua disjuno,
estranhamente hoje bastante citada, entre o mtodo e o contedo do pensamento
marxiano. Estas posies seriam mais tarde rejeitas pelo autor como
"idealistas" e "hegelianas".1
Apesar dos seus limites e das semelhanas com o messianismo e
teleologismo do marxismo vulgar nascente, este escrito de Lukcs, ao reclamar
a herana hegeliana de Marx, se constituiu em pea importante na gnese do
idealismo marxista.2
A Escola de Frankfurt, desde os seus primeiros momentos, foi marcadapela teoria crtica de Adorno, cujo desdobramento ltimo, mas de modo nenhum
linear ou "necessrio", possivelmente venha a ser a Teoria do Agir
Comunicativo de Habermas.
Segundo MacCarney3, Adorno o representante paradigmtico da doutrina
da crtica social da Escola de Frankfurt. Seu postulado central consiste em
afirmar que, para uma teoria ser dialtica, tem necessariamente que ser
imanente(17/19) no sentido de realizar a crtica do objeto do interior do
1 - Lukcs, G. Prefcio de 1967 a Histria e Conscincia de Classe.2 - A relao entre Lukcs, Korsch e a primeira Escola de Frankfurt bastante
conhecida. Por isso nos limitaremos, aqui, a esta referncia genrica,remetendo a trs ttulos que exploram de perspectivas distintas estarelao: Jay, M. La imaginacin Dialctica, Ed. Taurus, 1974, Madrid eArato, A. e Breines, P. El jven Lukcs e los origenes del marxismooccidental, Fondo de Cultura Economico, Mxico, 1986. Lowy, M. Parauma Sociologia dos Intelectuais Revolucionrios. Liv. Ed. CinciasHumanas, S. Paulo, 1979.
3
- MacCarney, J. Social Theory and the Crisis of Marxism, Ed. Verso, LondresNova Iorque, 1990. As citaes sero feitas no corpo do texto entreparnteses. Tanto quanto sabemos, o mais abrangente estudo acerca daevoluo da Escola de Frankfurt o de Martin Jay, A imaginacinDialctica (Ed. Taurus, Madrid, 1974). Todavia, nossa exposio seapoiar fundamentalmente no estudo de MacCarney, op. cit., por umanica razo. O estudo de Jay feito do interior do pensamentofrankfurtiano, de tal modo que as conexes e os aspectos do seudesenvolvimento privilegiados so orientados por uma angulao -- paraser breve -- construda como que por uma auto-reflexo da Escola deFrankfurt. Isto confere ao estudo de Jay um carter internamentefechado e sua utilizao, nesse ensaio, implicaria em retrabalhar oselementos que ele fornece, exigindo um tempo que no temos disponvel.
Por isso, ainda que muito mais restritas, as indicaes de MacCarneynos so mais teis nesse momento.
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prprio objeto.4 Assim, a crtica sociedade burguesa deve ter como eixo o
fato de esta sociedade no efetivar seus prprios valores. "Neste modelo, a
crtica imanente vive da distncia entre o que a sociedade professa e o que
ela realiza."(19)
A divergncia com a postura marxiana imediatamente perceptvel: Marx
nunca aceitou os limites da sociedade burguesa como seu horizonte de crtica
ordem capitalista. Os problemas daqui decorrentes, somados s dificuldades de
conceber uma teoria burguesa crtica que no fosse conservadora, levou a
Escola de Frankfurt a abandonar esta primeira postura terica. O elo de
passagem para a nova posio dada pela tese de que a crtica imanente da
ordem burguesa apenas seria possvel no capitalismo concorrencial, "Mas nomundo total, unidimensional do capitalismo administrado ("administered
capitalism") no surge tal possibilidade."(22)
A nova postura da Escola de Frankfurt tem como ndulo a afirmao de
que a crtica da sociedade burguesa pressupe um conjunto de valores que deve
servir de referencial. Como fundar estes valores? As iniciativas de Adorno,
Marcuse e Horkheimer vo no sentido de aproximao com a vertente hegeliana:
os valores so racionais porque a ordem racional a nica que pode fundar
tais valores. Esta identificao entre razo e valores, no entanto, leva a um
problema posterior. Como uma crtica assim posta pode ser imanente? Apenas e
to somente se a sociedade burguesa for portadora, em potencial, da nova
sociedade. Todavia, a idia de que a "gravidez" da velha sociedade poderia
fundar a crtica superadora da mesma traz embutidos problemas serssimos,
verdadeiramente insolveis no horizonte frankfurtiano. A dialtica
ato/potncia, como j compreendera Aristteles, apenas pode ser efetivamente
4 - Essa crtica em nada se aproxima de uma atitude "positivista". A nossover, a crtica do existente e a indicao de elementos para umaproposta de transformao da sociedade contempornea se contrapefrontalmente prtica positivista que recusa, por princpio, qualquervalorao do "dado". Nesse sentido, nos parece um exagero aaproximao entre a Teoria Crtica e o Positivismo como tentada por
Balaban, O. "The Positivist Nature of the Critical Theory." Scienceand Society, 53:4, 1989.
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constatada post festum, no servindo assim de base segura para a crtica
imanente superadora do objeto.5
Outro problema decisivo: como impedir que a potencialidade seja uma
mera projeo dos desejos e necessidades sobre o real? Como impedir a
arbitrariedade na avaliao do que seja potencialidade?
Segundo MacCarney, houve trs linhas mestras de tentativas de
constrangimento desta "arbitrariedade" perseguidas pela Escola de Frankfurt: a
primeira, originada diretamente do materialismo histrico, postula as
potencialidades como inscritas no real pelo desenvolvimento das foras
produtivas. A segunda, busca nas determinaes ontolgico-filosficas do enteem questo os limites de sua potencialidade. E, a terceira postula que deve
haver foras e tendncias reais, no interior da sociedade, que sustentem a
efetividade da potencialidade das transformaes.
Neste momento da evoluo da Escola de Frankfurt, as posies de Adorno
so novamente fundamentais. Argumenta ele que a dialtica histrica tem como
seu pressuposto a idia de que a razo governa o mundo, e que a histria
mundial portanto um processo racional. Tal como em Hegel, aqui tambm a
evoluo transformada em padro, critrio, para a crtica universal(29).
Este movimento de busca da identidade histria/razo, no interior do
universo da Escola de Frankfurt no se revela menos problemtico. Pois, para
a Escola de Frankfurt, o fator chave do desenvolvimento das foras produtivas
a tecnologia, e esta entendida como submetida a uma dialtica do
"iluminismo", pela qual o mundo "desencantado" pelo exerccio da razo. Com
isto a histria humana aparece como um processo unitrio de crescente
conquista da natureza.
Todavia, afirma Adorno,
"Aps as catstrofes que ocorreram, e em vista dascatstrofes por vir, seria cnico afirmar que um plano para um mundomelhor esteja manifesto na histria e a unifique /.../. Nenhuma
5 - H um estudo magnfico da dialtica ato/potncia em Aristteles em Heller,A. Aristteles y el Mundo Antiguo, Ed. Pennsula, Barcelona, 1983.
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histria universal conduz da selvageria ao humanitarismo, mas h uma
que conduz do estilingue bomba atmica." 6
Com isto, novamente a crtica e o reconhecimento da situao mundial -- na qual impera a continuidade do capital e no a ruptura da ordem burguesa -
-, no podem andar juntos. Civilizao e terror so tidas por inseparveis,
impossibilitando a potencialidade de um mundo humanamente emancipado inscrita
no mundo atual, que pudesse servir de base para a crtica.
Esta mesma tendncia, mutatis mutantis, pode ser encontrada, segundo
MacCarney, em outro representante da Escola de Frankfurt: Marcuse.(33)
Marcuse retira dos Manuscritos de 1844 a noo que pelo trabalho o
homem realiza a sua essncia, a liberdade. A partir de ento, segundo
MacCarney, o problema terico central com o qual se confronta pode ser posto
desta maneira: por um lado, busca na sociedade contempornea elementos que
fundamentariam a possibilidade de sua transformao; por outro lado,
identifica uma unidimensionalidade da realidade das sociedades industriais
avanadas que seria capaz de conter estes impulsos transformadores.
Se a segunda alternativa for afirmada, se a transformao forefetivamente impossvel, ento a teoria crtica no teria nenhuma razo de
ser, se limitaria a uma teoria carente de significado, sem qualquer apoio na
realidade.
Segundo MacCarney, Marcuse enfrenta esta ambigidade postulando que, na
ausncia de agentes sociais de mudana nitidamente identificveis, a teoria se
retira e se constrange aos nveis mais elevados de abstratividade. Embora no
refutada pela prtica, a teoria no capaz de indicar a sada emancipatria.
Se for assim, argumenta MacCarney, a teoria crtica est morta, pois sofre de
uma contradio insanvel: como fazer a crtica imanente e superadora de um
objeto que se perpetuar eternamente?(36)
O beco sem sada de Marcuse se expressa mais claramente no seu recurso
utopia. Ela surge como a nica sada possvel para este crculo de ferro em
6 - Adorno, T.W. Negative Dialectics. Routledge and Keagan Paul, Londres,1973, pg 320. Aps MacCarney, op. cit., pg. 30.
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que se colocou. No mundo unidimensional, argumenta ele, "as possibilidades
utpicas so inerentes s foras tcnicas e tecnolgicas do capitalismo
avanado e do socialismo", e no mais meras especulaes utpicas. Este passo
abre a possibilidade de um crtica com acentos morais e valorativos
descomprometida com as mediaes polticas. MacCarney: " Parece inevitvel a
concluso que isto exatamente o que a exposio sugere, uma verso do
socialismo utpico que foi amplamente (so roundly) condenado por Marx e
Engels."(40)
Tal como em Adorno, "A crtica imanente mais uma vez provou-se incapaz
de fincar um p na realidade"(41) e, conseqentemente, o projeto de renovar a
tradio hegelo-marxista atola na areia(42). A sada parece ser um abandono docampo hegelo-marxista, e neste sentido que se movimenta Habermas: com sua
teoria do agir comunicativo termina por retornar a Kant(43).
Habermas e a Centralidade do Mundo da Vida
Em "Para a Reconstruo do Materialismo Histrico"
7
, argumenta Habermasque o trabalho no a a categoria fundante do ser social, pois esta categoria
j se encontra presente nos primatas superiores e nos homindeos. O que
distingue o ser social da natureza, portanto, a articulao do trabalho com
a fala, esta sim uma exclusividade do ser social.
Tal articulao o fundamento do agir comunicativo, verdadeiro trao
distintivo dos homens frente ao ser natural.
"Podemos falar de reproduo da vida humana, a que se chegoucom o homo sapiens, somente quando a economia de caa complementada por uma estrutura familiar. Este processo /.../equivale a uma substituio /.../ do sistema animal de status /.../por um sistema de normas sociais que pressupe a linguagem."(116-7.Cf. tb. pgs. 118 e 121)
7 - Este ensaio foi publicado no Brasil na coletnea intitulada Para a
Reconstruo do materialismo histrico, So Paulo, 2a edio, 1990. Ascitaes sero feitas no corpo do texto, entre parnteses.
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No mesmo sentido:
"Podemos assumir que somente nas estruturas de trabalho elinguagem completaram-se os desenvolvimentos que levaram forma dereproduo da vida especificamente humana e, com isso, condioque serve como ponto de partida para a evoluo social. Trabalho elinguagem so anteriores ao homem e sociedade."(118)
A constituio da linguagem, de suas estruturas lgicas mais profundas,
passa a ser o componente fundamental do ser do homem.
"As estruturas da intersubjetividade produzidaslingisticamente, investigas de modo prototpico com base em aeslingsticas elementares, so to constitutivas para os sistemas de
sociedade quanto as estruturas da personalidade. As primeiras podemser entendidas como tecido de aes comunicativas; as segundas podemser consideradas sob o aspecto da capacidade de linguagem e deao."(14)
Ou seja:
"o gnero aprende no s na dimenso (decisiva para odesenvolvimento das foras produtivas) do saber tecnicamentevalorizvel, mas tambm na dimenso (determinante para as estruturasde interao) da conscincia prtico-moral. As regras do agir
comunicativo desenvolvem-se, certamente, em relao a mudanas nombito do agir instrumental e estratgico; mas ao faz-lo, seguemuma lgica prpria."(128)
A busca desta "lgica prpria" das "estruturas da intersubjetividade
produzidas lingisticamente" orientou as pesquisas de Habermas nos anos
imediatamente posteriores publicao de Para a Reconstruo do Materialismo
Histrico e terminou por conduzi-lo Teoria do Agir Comunicativo.
Em Theorie des kommunikativen Handelns8 o interesse e o objetivo de
Habermas fundamentar as cincias sociais em uma teoria da linguagem(9).
Nesse empreendimento, seu horizonte mais geral se relaciona conhecida
postulao, tpica da tradio frankfurtiana, da necessidade de se reviver a
tradio racional-iluminista colocada em questo pela crise do mundo
8 - Habermas, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Suharkamp Verlag,Frankfurt, 1981. Ns utilizaremos a traduo espanhola Teora de la
accin comunicativa, Ed. Taurus, Madrid, 1987. As citaes serofeitas ao longo do texto entre parnteses.
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contemporneo(12). Todavia, a dmarche habermasiana se inicia estabelecendo
uma relao entre racionalidade e saber que apenas com muito esforo poderia
ser considerada como direta continuao da trajetria crtica. Afirma que
Sempre que fazemos uso da expresso 'racional' supomos umaestreita relao entre racionalidade e saber.(24)
Nesta relao, o saber tem uma estrutura proposicional (pode ter a
forma de enunciados) e a racionalidade tem a ver menos com o contedo e mais
com a forma em que os sujeitos capazes de linguagem e ao fazem uso do
conhecimento.(24) A determinao decisiva dessa forma a sua a sua
confiabilidade:
A estreita relao que existe entre saber e racionalidadepermite suspeitar que a racionalidade de uma emisso ou de umamanifestao depende da confiabilidade (fiabilidad) do saber queencaram.(24)
Esta confiabilidade, por sua vez, est relacionada pretenso de
validade implcita em toda emisso comunicativa, pretenso esta que, por ser
racional e para ser racional, necessariamente deve ser passvel de crtica(24-
6). Habermas, explicitamente, reduz a racionalidade de uma emisso ou
manifestao a sua susceptibilidade de crtica ou de fundamentao(26),
abrindo espao para o reconhecimento de que
Um juzo s pode ser objetivo se faz pela via de umapretenso transubjetiva de validade que, para qualquer observador oudestinatrio tenha o mesmo significado que para o sujeito agente. Averdade ou a eficcia so pretenses deste tipo.(26 - grifo meu)
Em poucas palavras, j que o mundo apenas cobra objetividade pelo fato
de ser reconhecido e considerado como um e o mesmo mundo por uma comunidade de
sujeitos capazes de linguagem e de ao, a prtica comunicativa que d
sustentao ao conceito abstrato de mundo (mundo de vida) que torna
possvel a objetividade de um mundo.(30) Por sua vez, o mundo da vida
delimitado pela totalidade das interpretaes que so pressupostas pelos
participantes como um saber de fundo.(31)
Em suma:
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Segundo este modelo, as manifestaes racionais tm ocarter de aes plenas de sentido e inteligveis em seu contexto,com as que o ator se refere a algo no mundo objetivo.(31)
Portanto, para Habermas, uma pretenso transubjetiva de validade
que funda a objetividade de um mundo. E, na constituio dessa
transubjetividade, a esfera gnosiolgica (o reconhecimento e a considerao
subjetivos da validade objetiva de uma pretenso) o momento fundante. Isto
conduz Habermas anlise da prtica comunicativa que considera essencial
constituio da transubjetividade. Para ele, a prtica comunicativa requer o
acordo transubjetivo de pretenses de validade e deve se apoiar em
argumentos racionais expostos por via da argumentao(36). Ou seja,
o conceito de racionalidade comunicativa /.../ tem que seradequadamente desenvolvido por meio de uma teoria daargumentao.(36)
Vamos, pois, teoria da argumentao.
Denomino argumentao, afirma Habermas, ao tipo de fala emque os participantes tematizam as pretenses de validade que setornaram duvidosas e tratam de desempenha-las ou de recusa-las pormeio de argumentos. Uma argumentao contm razes que esto
conectadas de forma sistemtica com a pretenso de validade damanifestao ou emisso problematizadas. A fora de uma argumentaose mede em um contexto dado pela pertinncia das razes.(37)
Todavia, o recurso argumentao enquanto estrutura interna da
prtica comunicativa no resolve a questo de como se funda a
intersubjetividade. Permite, isto sim, o deslocamento para um novo terreno
desta questo crucial para a solidez do construto habermasiano. A pergunta
pelo fundamento ltimo da intersubjetividade se transforma no questionamento
acerca de
como podem as pretenses de validade, quando se tornamproblemticas, acabar respaldadas por boas razes? Como podem, porsua vez, estas razes serem objeto de crticas? O que que torna aalguns argumentos, e com eles as razes que resultam relevantes emrelao com alguma pretenso de validade, mais fortes ou mais dbeisque outros argumentos?(46)
Para enfrentar esta questo Habermas avana na classificao das formas
de ao social e as distingue em aes estratgicas e aes comunicativas.
Enquanto que as primeiras so portadoras da velada intencionalidade de
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utilizar o efeito da fala sobre o ouvinte, a ao comunicativa, que seria o
modo original(368) da fala, se efetivaria
quando os planos de ao dos atores implicados /.../ secoordenam /.../ mediante atos de entendimento. Na ao comunicativaos atores no se orientam primariamente para seus prprios xitos;antes perseguem seus fins individuais sob a condio de que seusrespectivos planos de ao possam se harmonizar entre si com base emuma definio compartilhada acerca da situao. Por isso que anegociao um componente essencial da tarefa interpretativa que aao comunicativa requer.(367)
Antes, e no mesmo sentido, afirmara Habermas que a ao comunicativa se
refere
experincia central da capacidade de unir sem coaes e degerar consenso que tem uma fala argumentativa em que diversosparticipantes superam a subjetividade inicial de seus respectivopontos de vista e merc a uma comunidade de convices racionalmentemotivada se asseguram, por sua vez, da unidade do mundo objetivo eda intersubjetividade do contexto em que desdobram suas vidas.(27)
Todavia, a hiptese do consenso comunicativo deixa ainda em aberto a
questo chave de como se funda a intersubjetividade da pretenso de validade
de uma opinio. A investigao acerca da ao comunicativa enquanto consensolingisticamente constitudo permite a Habermas, to somente, deslocar para um
novo terreno esta problemtica. Trata-se, agora, no mais de investigar a
estrutura da argumentao enquanto alicerce da prtica comunicativa, mas de
determinar o que o entendimento(368) Perseguir o fundamento do
entendimento significa, para o pensador alemo, buscar o saber pr-terico
dos falantes competentes(368), pelo qual ocorre um processo de obteno de
um acordo entre sujeitos lingustica e interativamente competentes.(368) Este
acordo no pode ser, por definio, mero acaso; ele se baseia em convices
comuns. /.../ Tanto o ego, que vincula a sua manifestao uma pretenso de
validade, como alter, que a reconhece ou rechaa, baseiam suas decises em
razes potenciais.(369)
Argumenta Habermas que O termo 'entendimento' tem o significado mnimo
de que (ao menos) dois sujeitos lingustica e interativamente competentes
entendem identicamente uma expresso lingustica . /.../ Neste sentido, /.../
se produz, entre (pelo menos) dois sujeitos capazes de linguagem e ao um
acordo(393) o qual
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gera uma comunidade intersubjetiva que cobre trs planosdistintos: o de um acordo normativo, o de um saber proposicionalcompartilhado, e o de um mtua confiana.(394) O acordo alcanadose mede justamente por estas trs pretenses de validade suscetveisde crtica, j que os atores, ao se entender entre eles sobre algo ese darem assim a entender a si mesmos, no podem seno inserir seusatos de fala precisamente nestas trs relaes com o mundo ereclamar para elas validade sob cada um destes aspectos.(394)
Deste complexo de relaes deduz Habermas que O entendimento
imanente como o telos linguagem humana. Todavia, s podemos explicar o
entendimento se somos capazes de precisar o que significa empregar aes com
inteno comunicativa. Os conceitos de falar e se entender se interpenetram um
ao outro.(369)
Em outras palavras, para explicar a ao comunicativa devemos recorrer
ao entendimento; este tem por base convices comuns que s podem surgir pela
interao lingustica com inteno comunicativa .... o que nos remete, de
volta, ao comunicativa! Sada de Habermas: buscar a distino entre
perlocuo e ilocuo de Austin para demonstrar esta ligao originria,
primria, do entendimento enquanto telos da fala -- de modo que todos os
outros modos da fala seriam decorrncias parasitrias deste modo
originrio(369-70).
Dada as limitaes de espao, no nos determos na discusso de Austin
por Habermas. Dela nos fundamental, no momento, apenas o fato de que
Habermas encontra elementos para concluir que
A ao comunicativa se distingue das interaes de tipoestratgico porque todos os participantes perseguem sem reserva fins
ilocucionrios9 com o propsito de chegar a um acordo que sirva debase a uma coordenao concertada dos planos de ao
individuais.(379)
O que Habermas se prope, agora, a explicar que condies um acordo
comunicativamente alcanado tem que satisfazer para cumprir tais funes de
9 - Atos locucionrios: expressa estados de coisa; diz algo (370),relaciona-se com as aes teleolgicas, o momento em que a fala serefere a uma coisa. Atos ilocucionrios: realiza uma ao dizendoalgo (afirmao, promessa, mandato, confisso, etc.), fazer
dizendo algo(370-1). O ato ilocucionrio autosuficiente, basta asi prprio, constituido pelo significado do dito.(371)
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coordenao(379). Em poucas palavras, Habermas prope o reconhecimento de um
xito ilocucionrio do falante pelo qual se estabelece um acordo tanto
acerca do contedo da emisso como tambm acerca das garantias imanentes do
ato da fala e acerca das obrigaes relevantes para a interao
posterior(379-80). Como reconhece Habermas, a questo que permanece em aberto
o que fundamentaria as garantias imanentes da fala, a questo de onde
obtm os atos de fala esta fora de coordenar a ao /.../?(380)
Percebamos que, uma vez mais, a questo central acerca da fundamentao
da intersubjetividade deslocada para uma nova base. Do estudo da
argumentao enquanto fundamento da prtica comunicativa, fomos conduzidos aos
processos de entendimento enquanto campo resolutivo da questo para, emseguida, nos encontrarmos na esfera da fala. De onde a fala obtm fora
para coordenar as subjetividades em uma intersubjetividade , agora, a nova
forma que assume a questo original acerca do fundamento da
intersubjetividade.
Para respond-la, Habermas recorre teoria do significado(380) e, o
primeiro passo, consiste na reduo da compreenso de uma emisso ao
conhecimento das condies sob as quais tal emisso pode ser aceita por um
ouvinte. Entendemos um ato de fala quando sabemos o que a faz aceitvel.(381-
2)
Certamente, continua Habermas, A aceitabilidade no se define em
sentido objetivista, desde a perspectiva de um observador, mas sim a partir da
atitude realizativa de um participante na comunicao.(382) E, no mesmo
sentido,
Estas condies /de aceitabilidade/ so antescondicionantes do reconhecimento intersubjetivo de uma pretensolingustica que, de forma tpica aos atos de fala, estabelece umacordo, especificado enquanto ao seu contedo sobre as obrigaesrelevantes para a interao posterior.(382)
Portanto, conclui Habermas,
Um ouvinte entende o significado de uma emisso quando /.../conhece aquelas condies essenciais sob as quais pode ser motivadopelo falante a tomar uma postura afirmativa.(382-3)
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Como vimos ao tratar do entendimento, este conhecimento acerca das
condies essenciais da ao comunicativa se desdobra em trs nveis (os
mundos subjetivo, social e objetivo) inerentes ao entendimento. Estas trs
relaes com o mundo permitem esclarecer, segundo Habermas, o saber
implcito que atua como pano de fundo nos processos cooperativos de
interpretao.
A ao comunicativa se desenvolve dentro de um mundo da vidaque permanece nas costas (por trs talvez seja uma traduo melhor)dos participantes na comunicao. A estes apenas se lhes apresentana forma pr-reflexiva de uns pressupostos de fundo que se do porassegurados e de umas habilidades que se dominam sem se fazerproblemas delas.(428-9)
, pois, nas estruturas implicitamente sabidas do mundo da vida /.../
(432) que devemos buscar o fundamento ltimo da ao comunicativa.
Com este passo, novamente, h um deslocamento da questo central para
uma nova esfera: trata-se de determinar o saber pr-terico que permanece
enquanto pano de fundo e que sustenta a intersubjetividade. Vamos, pois, ao
mundo da vida.
Minha inteno /.../ () construir sobre o j desenvolvido eexplorar a questo de como o mundo da vida, enquanto horizonte emque os agentes comunicativos se movem 'j sempre' termina por suavez delimitado em conjunto pelo cmbio estrutural da sociedade/.../. O conceito de mundo da vida /.../ Constitui um conceitocomplementar do da ao comunicativa.(169)
Para tanto, Habermas, aponta que
A ao comunicativa se baseia em um processo cooperativo deinterpretao no qual os participantes se referem simultaneamente a
algo no mundo objetivo, no mundo social e no mundo subjetivo, aindaque apenas sublinhem tematicamente um destes trs componentes.(171)
Nesse sentido, recordemos, Entendimento significa a 'obteno de um
acordo' entre os participantes na comunicao acerca da validade de uma
emisso; acordo, o reconhecimento intersubjetivo da pretenso da validade que
o falante vincula a ela( emisso - SL).
Isto posto, Habermas pode dar seu lance fundamental afirmando que
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O pano de fundo (trasfondo) de uma emisso comunicativa oconstituem, pois, definies da situao que devem se sobreporsuficientemente para cobrir a necessidade atual de entendimento. Seesta comunidade no pode ser pressuposta, os atores tm que tentarchegar a uma definio comum da situao recorrendo para ele a meiosde ao estratgica empregados com finalidade comunicativa, ou /.../negociar diretamente.(173)
A partir desta dinmica se desenvolveria, segundo Habermas, um
incessante processo de definies e redefinies que redesenhariam os
limites recprocos dos mundos objetivo, social e subjetivo, de modo a dar
conta da dinmica especfica da processualidade social. (173) Disto decorre
que as definies situacionais so articuladas por um tema e que as alteraes
deste tema implica em correlativas alteraes do horizonte dado. Nas palavras
de Habermas,
As situaes possuem sempre um horizonte que se desloca como tema. Uma situao apenas um fragmento dos temas, os fins e osplanos de ao realam e articulam em cada caso dentro dos plexosou urdidura de remisses que constituem o mundo da vida, e esses
plexos esto dispostos concentricamente10 e se tornam cada vez maisannimos e difusos ao aumentar a distncia espao-temporal e adistncia social.(174)
Isto permite a Habermas afirmar que,
De certo modo, o mundo da vida ao qual os participantes dainterao pertencem est sempre presente; porm apenas como pano defundo (trafondo) de uma cena atual. Enquanto tal plexo de remissespermanece includo numa situao, medida em que se converte emingrediente de uma situao, perde sua trivialidade e solidezinquestionada.(176)
Em outras palavras, segundo Habermas, podemos representar /ao mundo da
vida/ como um acervo de padres de interpretao transmitidos culturalmente e
organizados linguisticamente. Este acervo composto por
plexos semnticos que estabelecem uma mediao entre umaemisso comunicativa dada, seu contexto imediato e seu horizonte deconotaes semnticas. Os plexos de remisses derivam das relaes
10 - Cujo centro constitudo pela situao da ao que constitui a cadamomento o centro de seu mundo da vida; essa situao tem um
horizonte mvel, j que remete complexidade do mundo da vida.(175-6)
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gramaticalmente reguladas que ocorrem entre os elementos de umacervo de saber organizado lingisticamente.(176-7)
Por saber, Habermas entende este ou aquele elemento, determinadas
autovivncias mobilizadas, por terem se tornado relevantes para uma situao,
em forma de saber sobre o qual existe consenso e que por sua vez suscetvel
de problematizao.(176)
Este acervo de saber, para Habermas, prov aos participantesna comunicao de convices de fundo aproblemticas, de convicesde fundo que eles supem garantidas; e dessas convices de fundo seforma em cada caso o contexto dos procedimentos de entendimento, nosquais os participantes fazem uso de definies acreditadas dasituao ou negociam definies novas.(178)
Temos com isto, o conceito de mundo da vida de Habermas exposto no seu
ndulo mais fundamental:
A categoria do mundo da vida tem, pois, um status distintodos conceitos formais de mundo que falamos at aqui. /.../ O mundoda vida , por assim dizer, o lugar transcendental em que o falantee o ouvinte se saem ao encontro; em que podem colocar-sereciprocamente a pretenso de que suas emisses concordam com omundo (com o mundo objetivo, com o mundo social e com o mundosubjetivo); e que podem criticar e exibir os fundamentos dessas
pretenses de validade, resolver seus desentendimentos e chegar a umacordo.(178-9)
Refaamos o percurso habermasiano em a Teoria da Ao Comunicativa.
Inicia pelo estabelecimento de uma peculiar relao entre racionalidade e
saber, pela qual o primeiro diz respeito muito mais forma que ao contedo e,
o segundo, se caracteriza por possuir uma estrutura proposicional. A
caracterstica tanto do saber como da racionalidade estaria relacionada com a
confiabilidade de uma opinio, o que conduz Habermas busca do fundamento
desta confiabilidade enquanto elemento intersubjetivo. A questo decisiva,
neste momento, seria o estabelecimento dos fundamentos desta
intersubjetividade.
Esta questo ser sucessivamente deslocada. Num primeiro momento,
assume a forma de um estudo da argumentao enquanto estrutura interna da
prtica comunicativa que estaria na base do consenso intersubjetivo. Num
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segundo momento, se transforma na investigao acerca das diversas formas da
praxis social e na distino entre a ao estratgica e a ao comunicativa,
que ento afirmada a forma originria da fala. Esta distino permite
colocar no centro da ao comunicativa o consenso propiciado por um
entendimento intersubjetivo de uma situao dada. Deste modo, Habermas volta-
se para a investigao do entendimento, a qual revela o papel central da
fala neste processo. Este passo, por sua vez , permite recolocar a questo
acerca do fundamento da intersubjetividade investigando de onde a fala obteria
a fora necessria para coordenar as subjetividades em uma intersubjetividade.
A teoria do significado permite a Habermas encontrar num mundo da vida,
definido enquanto saber pr-temtico, o lugar transcendental em que se
apoiaria a intersubjetividade. Este seria o fundamento ltimo do consensointersubjetivo sem o qual no haveria, para Habermas, a articulao entre
trabalho e linguagem que caracterizaria o ser social.
A nosso ver, a debilidade fundamental do construto habermasiano estaria
no fato de que as articulaes que permitiram ao mundo da vida fundar a
intersubjetividade no so expostas, ainda que sejam afirmadas. Em um recente
artigo11, Giannotti critica esta debilidade afirmando que
"os agentes se entendem antes de estarem sob o empuxo dotelos comunicativo /.../ porquanto um mecanismo oculto (teria queestar) /../ funcionando para amparar o sentido de uma proposio,sem que essa armao transcendental aparea como condio depossibilidade da apreenso efetiva desse mesmo sentido."(15)
Esta debilidade faz com que a opinio se transforme em uma
"/.../ espcie de conhecimento no tematizado que, enquantotal, faz a passagem do contedo proposicional numa proposio desombra do mundo da vida para uma proposio perfeitamente
tematizada. Este fio de continuidade dado por um conhecimento quede acrtico passa a ser crtico. O diabo compreender o que venha aser este conhecimento independentemente de sua estruturaproposicional, mero conhecimento sem ser conhecido."(19)
E, preparado o caminho, Giannotti conclui:
11 - Giannotti, J. A. "Habermas: mo e contramo", Novos Estudos CEBRAP, 31,outubro 1991.
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" toda uma concepo de filosofia tran