REVISTA REDAÇÃO 11 PROFESSOR: Lucas Rocha DISCIPLINA ...Para comprovar a influência e o estrago...

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REVISTA REDAÇÃO PROFESSOR: Lucas Rocha DISCIPLINA: Redação DATA: 07/04/2013 ————————————————————————————————————————————— 1 11 O trânsito na contemporaneidade (EDUARDO LUCAS e ALEXANDRE CHAVES) No trânsito, para realizar ou buscar um prazer, "quebramos" algumas regras, inclusive podendo chegar à morte. Parece nítido que, quando esse é o assunto, tendemos a priorizar a satisfação e o gozo, e não a vida ESTAMOS a par daquilo que Freud chamou de "futuro de uma ilusão". Entretanto, nossa ênfase aqui não é um construto fantasmagórico sobre o Desejo. E sim um Desejo na plataforma da Ciência, ou a Ciência na plataforma do Desejo, como queiram. A Ciência da Psicanálise destacada pela ética e pelo comprometimento. Devemos ousar e avançar com ética. É preciso traçar o caminho sobre o saber, teoria e prática já adquiridos pela Psicanálise, ao longo destes anos. Devemos nos propor a escutar o sujeito desejante em sua complexidade, dinamismo e multiplicidade. Devemos entendê-lo como um ser demandante, inserido em uma cultura, no caso deste artigo, inserido em um trânsito. Nele, por exemplo, devemos escutar além, não se escuta um acidente entre dois carros, e sim entre duas ou mais pessoas. Nesse ponto, cabe um aprofundamento reflexivo em que muitos percebem o próprio veículo como um corpo estendido ou, então, como uma nova funcionalidade adaptada às suas exigências e se esquecem que são seres humanos em fluente movimento. Veem-se os veículos como instrumentos extensivos de sua própria existência. Com isso, quando ocorrem os acidentes, voltam-se os olhares para os veículos. O próprio discurso cai sobre a matéria concreta que, ao mesmo tempo, é um representante das faculdades psíquicas investidas em si. Cada um o vê de uma forma. A Psicanálise nos chama a atenção para escutarmos as formas de linguagem a fim de atingir o inconsciente e as pulsões credenciadas ao Desejo. Dessa forma, pode-se intervir e fazer que (re)surja o insight que é a base da elaboração. A Psicanálise nasceu da metapsicologia dos estudos freudianos, nasceu da clínica e a partir daí ganhou desmedidos ares. Surgiu junto com as demandas, possibilidades e necessidades de aplicá-la em outros âmbitos. Porém, a clínica sempre esteve ali, mesmo que esquecida por muitos, sendo a base da teoria, o alicerce da prática e o Chapolin do conjunto, ou seja, ela é aquela que responde à grande pergunta: "E agora, quem poderá nos defender?" Para entendermos o contexto do trânsito devemos recorrer à clínica, à Psicanálise por excelência. Choque entre desejos Acontecimentos trágicos no trânsito encontram-se registrados desde a mitologia. Lembremo-nos que Édipo matou o próprio pai em uma encruzilhada. Dessa forma, definiremos, aqui, o que chamamos de trânsito, para que possamos prosseguir. "Segundo o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), trânsito é a movimentação e imobilização de veículos, pessoas e animais nas vias terrestres" (CTB, 1997). Nos últimos anos, o trânsito evoluiu e cresceu drasticamente e, no século atual, exerce enorme influência na sociedade brasileira e mundial. Dentre essas influências encontra-se o amplo mal-estar na civilização que está em um "perigoso" processo de desenvolvimento.

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REVISTA REDAÇÃO

PROFESSOR: Lucas Rocha

DISCIPLINA: Redação DATA: 07/04/2013

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O trânsito na contemporaneidade (EDUARDO LUCAS e ALEXANDRE CHAVES)

No trânsito, para realizar ou buscar um prazer, "quebramos" algumas regras,

inclusive podendo chegar à morte. Parece nítido que, quando esse é o assunto, tendemos a priorizar a satisfação e o

gozo, e não a vida

ESTAMOS a par daquilo que Freud chamou de "futuro de uma ilusão". Entretanto, nossa ênfase aqui não é um construto fantasmagórico sobre o Desejo. E sim um Desejo na plataforma da Ciência, ou a Ciência na plataforma do Desejo, como queiram. A Ciência da Psicanálise destacada pela ética e pelo comprometimento. Devemos ousar e avançar com ética.

É preciso traçar o caminho sobre o saber, teoria e prática já adquiridos pela Psicanálise, ao longo destes anos. Devemos nos propor a escutar o sujeito desejante em sua complexidade, dinamismo e multiplicidade. Devemos entendê-lo como um ser demandante, inserido em uma cultura, no caso deste artigo, inserido em um trânsito. Nele, por exemplo, devemos escutar além, não se escuta um acidente entre dois carros, e sim entre duas ou mais pessoas. Nesse ponto, cabe um aprofundamento reflexivo em que muitos percebem o próprio veículo como um corpo estendido ou, então, como uma nova funcionalidade adaptada às suas exigências e se esquecem que são seres humanos em fluente movimento. Veem-se os

veículos como instrumentos extensivos de sua própria existência. Com isso, quando ocorrem os acidentes, voltam-se os olhares para os veículos. O próprio discurso cai sobre a matéria concreta que, ao mesmo tempo, é um representante das faculdades psíquicas investidas em si. Cada um o vê de uma forma. A Psicanálise nos chama a atenção para escutarmos as formas de linguagem a fim de atingir o inconsciente e as pulsões credenciadas ao Desejo. Dessa forma, pode-se intervir e fazer que (re)surja o insight que é a base da elaboração.

A Psicanálise nasceu da metapsicologia dos estudos freudianos, nasceu da clínica e a partir daí ganhou desmedidos ares. Surgiu junto com as demandas, possibilidades e necessidades de aplicá-la em outros âmbitos. Porém, a clínica sempre esteve ali, mesmo que esquecida por muitos, sendo a base da teoria, o alicerce da prática e o Chapolin do conjunto, ou seja, ela é aquela que responde à grande pergunta: "E agora, quem poderá nos defender?" Para entendermos o contexto do trânsito devemos recorrer à clínica, à Psicanálise por excelência.

Choque entre desejos

Acontecimentos trágicos no trânsito encontram-se registrados desde a mitologia. Lembremo-nos que Édipo matou o próprio pai em uma encruzilhada. Dessa forma, definiremos, aqui, o que chamamos de trânsito, para que possamos prosseguir. "Segundo o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), trânsito é a movimentação e imobilização de veículos, pessoas e animais nas vias terrestres" (CTB, 1997). Nos últimos anos, o trânsito evoluiu e cresceu drasticamente e, no século atual, exerce enorme influência na sociedade brasileira e mundial. Dentre essas influências encontra-se o amplo mal-estar na civilização que está em um "perigoso" processo de desenvolvimento.

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Devemos nos propor a escutar o sujeito desejante em sua complexidade, dinamismo e multiplicidade

Buscamos, enquanto militantes da Psicanálise, adaptar-nos, ou melhor, acompanharmos a demanda contemporânea que nos cerca e que gera o mal-estar da atualidade. O trânsito é uma delas. Falta-nos algo e é exatamente por faltar que buscamos. É preciso ter coragem e Desejo, ou seja, algo que nos impulsione para além da falta. Coragem e Desejo para encarar esses novos desafios ao qual estamos condenados a vê-los. Não devemos fugir, e sim saber manejá-los frente a frente. A Psicanálise tem sido chamada para suprir exigências típicas do mundo capitalista. No entanto, esse mundo se destaca pela brevidade e rapidez em seus processos de desenvolvimento. Não se sabe ao certo qual rumo estamos tomando, sabe-se que cada vez mais rápido estamos tomando um rumo. Por vezes, acabamos nos perdendo, e a ancoragem ofertada, hoje, cai no campo do próprio sistema capitalista, onde se ofertam soluções rápidas que não promovem nem a saúde nem a vida, e sim, por vezes, criam tamponações e ilusões. Os usos que se fazem dos medicamentos são exemplos disso: soluções em apoios químicos, que desfazem o direito de elaboração, para acabar com o sofrimento, como se fôssemos proibidos de sofrer, como se isso fosse pactuado entre todos os adeptos dessa sociedade. O uso que se faz do trânsito também é outro exemplo disso - utiliza-se da potência do inconsciente e de seus princípios para atuar-se "narcisicamente" navegando no princípio de prazer. Economiza-se assim tempo, e mostram-se as máscaras da alegria em rostos e vidas tristes.

A Psicanálise tem que aprofundar e descobrir o que mais o social esconde, o que mais o trânsito esconde. Essa é uma perspectiva, ir na

contramão do capitalismo utilizando novas estratégias para atuar com eficácia, sem sair do capitalismo. Difícil, né? Pois é, o capitalismo existirá, compete-nos saber utilizá-lo em prol do ser humano. Aprender a viver em sociedade demanda exigências que não podem ser alcançadas através do emprego da força. O impacto com o outro, humaniza. Mas quando representa perigo aos demais, propõe-se uma tentativa de conciliar Desejos, e isto não é nada afável. Uma das atuais intervenções das "forças maiores" é dentro do capitalismo. Na Lei Seca, por exemplo, multa-se e apreendem-se as carteiras podendo até mesmo prender o sujeito. A sociedade está pedindo ajuda. Mas essa mesma sociedade que ofusca é a que pulsa no trânsito, o trânsito pulsa. Será que essa é a solução? Prender gentes, carros e carteiras junto de uma multa? Um preço pelo Desejo deve ser pago. Sabe-se que misturar bebida ao volante é perigo constante e pagar com vidas pode sair mais caro. Aqui temos o pulsar do Desejo contra o enigma da morte, ou seja, a eterna luta de Eros contra Tânatos se presentifica no trânsito escancaradamente, será que a potencialidade de Eros nos levará ao encontro de Tânatos? Retornaremos mais adiante neste ponto.

A contemporaneidade

Estamos em uma transição, não só em modelos topográficos como ocupações estranhas às sociedades anteriores, formas e lugares ocupados ineditamente. Estamos conhecendo o novo, e quando este novo vai se tornar conhecido e mais velho, nasce um novo "novo". Uma nova subjetividade, novas formas de sintomas, novas estratégias de vida, novas saídas, novas buscas, novas ilusões de promessas e novas aplicações do Desejo. Novos carros e novas formas de se transitar; novas formas de nos tornarmos civilizados, afinal, o trânsito pulsa na civilização, no encontro com o outro. O Desejo promove o encontro, o vínculo, o relacionar-se, lembremo-nos disso.

O sistema capitalista oferece soluções rápidas que não promovem nem a saúde nem a vida, e sim, por vezes, criam tamponações e ilusões, como os usos que se fazem dos medicamentos para acabar com o sofrimento

� As fases de Eros �

Eros: na mitologia grega é o deus do Desejo. Eros na filosofia é o Eros do provei, gostei e quero mais. Na poesia é o Eros do erotismo, do amor de um desejo voltado para a paixão, muitas vezes de cunho sexual. Já na Psicanálise Eros é pulsão de vida, isto é, energia psíquica daquela que preserva, dá continuidade, que faz liga, que faz a união acontecer, um vínculo entre as coisas, entre os Outros. Diz-se, portanto, que o objetivo triunfal de Eros é estabelecer a preservação.

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A civilização das últimas décadas tem como uma das características a evolução desmedida e a transformação gigantesca de suas relações com o meio, apresentando algumas dificuldades inerentes a isso, tais como a adaptação, inserção e controle do contexto de evolução, que se expande em todo o social. Um descompasso do Desejo que balança o corpo e a vida cotidiana, que afinal acontece em grande parcela no trânsito.

A Psicanálise tem que aprofundar e descobrir o que mais o social esconde, com especial análise ao

trânsito,utilizando novas estratégias em prol do ser humano

Muitos percebem o próprio veículo como um corpo estendido ou, então, como uma nova funcionalidade adaptada às suas exigências

Dessa forma, no trânsito não é diferente: nele, deparamo-nos com relações intrapessoais e também com altas tecnologias voltadas para essa evolução que, por sua vez, exige-nos rapidez e agilidade perante as variadas opções de escolhas oferecidas por essas transformações. O que elegemos daquilo que nos é ofertado? Essa oferta toca na necessidade de economia de tempo que é um dos inúmeros problemas encontrados no trânsito, tendo seus reflexos muitas vezes em estresse e outros sintomas, gerados por "inesperados" atrasos em congestionamentos.

A economia existe nos princípios do aparelho psíquico, mas o tempo não. O aparelho psíquico é atemporal e econômico. Outro refl exo disso, dessa economia de tempo, relaciona-se aos limites de velocidade, que por repetidas vezes não são respeitados, resultando em inúmeros acidentes com mortes, deficiências, traumas, abalos e transtornos psíquicos que se perpassam, não só em quem está diretamente envolvido no acidente, como também em famílias e amigos dos envolvidos.

A necessidade de manipular e persuadir a população se tornou essencial para que o marketing consiga vender, e isso no trânsito tornou-se "perigoso", pois tem influência em alguns acidentes, incômodos ou acontecimentos trágicos. Considerando a alta velocidade desenvolvida pelos carros, e a velocidade máxima permitida nas rodovias (que é por volta de 110 km/h, 80 km/h e em alguns trechos menor que esses valores), para que existem veículos com o potencial de chegar a mais de 200, 300 km/h? A não ser pelo marketing e sua persuasão, não vejo outra explicação para o mesmo. Essa persuasão cai como ilusão assim como explicita Freud: "Uma ilusão não é a mesma coisa de um erro, tampouco é necessariamente um erro"; ela é fruto de um Desejo.

Na Lei Seca multa-se e apreendem-se as carteiras. É um sinal inequívoco de que a sociedade, a mesma que ofusca e que pulsa no trânsito, está pedindo ajuda

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O mal-estar causado no trânsito atinge todas as fases da vida, a começar pela infância

Para comprovar a influência e o estrago causados pelo trânsito, destacam- se aqui algumas estatísticas no Brasil. De acordo com a seguradora que administra o DPVAT ou, como é mais conhecido, seguro obrigatório, em uma estatística de abril de 2011, o trânsito deixou em média 160 mortos por dia no país. Já o Portal do Trânsito, em uma estatística de 2010, diz que as formas das notificações e dos relatos comprometem o resultado final das estatísticas que afirmam não passar das 35 mil mortes causadas pelo trânsito em um ano, porém contabilizam só as pessoas que morrem no local do acidente. Mesmo que a vítima morra na ambulância não será contabilizada. Os especialistas acreditam que esses números ultrapassam 50 mil mortes ao ano. De acordo com as estatísticas de 2005, segundo o Detran e BHTRANS, o total de vítimas deste ano, em Belo Horizonte, foi de 17.636. Em outra estatística disponibilizada pelo site do jornal Gazeta do Povo, o número de mortes de motociclistas aumentou 754% em 10 anos no Brasil.

PARA SABER MAIS

O Desejo e o trânsito

Enfatiza-se aqui a potencialidade do Desejo, grande descoberta freudiana. Freud, em seu talvez mais genial texto, "O inconsciente",

postula que "o núcleo do Ics é composto de representantes pulsionais (triebrepräsentanzen) desejosos de escoar sua carga de investimento - em outras palavras, é composto de impulsos de Desejo (Wunschregungen)". Assim, o inconsciente freudiano, ao meu ver, é estruturado como energia, como Desejos e pulsões, energias psíquicas que pulsam por toda a vida. Na frase que tem a

palavra Desejo, só tem espaço para um sujeito, o eu. É eu Desejo, e não ele, ela Desejo. Quando se passa ao outro, o grande Desejo perde o seu espaço, desloca-se, desdobra-se e transforma-se semanticamente em pequena representação da classe do Desejo, tornando-se não mais o grande Desejo, e sim meros figurantes da família do mesmo. Surge o ela deseja, o ele deseja, nós

desejamos e por aí vai, mas não reaparece, senão por via de si mesmo, o grande Desejo. A própria semântica nos apresenta a intimidade do desejo com cada um de nós. O que nos demonstra que aquele que é nosso grande Desejo é para o outro uma representação sem maior importância. Nesse sentido, uma das funções sociais do Desejo é o encontro, o vincular-se. O desejo

promove o encontro. O encontro de dois Desejos no trânsito, cada qual com o seu, lutando pela afirmação, que provoca desencontros. A clínica da Psicanálise é aquilo que se ajusta, já que nasce da escuta do inconsciente do ser humano. Ela é única para cada um, é aplicável na transferência. Já o Desejo é aquilo que não se ajusta, é o pulsar por excelência. O Desejo está sempre

nos colocando em movimento, em uma incessante busca e deixando o corpo ofegante. Por faces do Desejo, entende-se as manifestações transvestidas de seus conteúdos, de suas ideias (vorstellung), suas representações, pois o Desejo nunca se entrega como conteúdo completo e cristalino, ele se manifesta por faces. Compete à escuta clínica e suas pedras angulares acessá-lo e possibilitar o sujeito. O sujeito procura análise para encontrar-se consigo mesmo, ou melhor, para encontrar com o seu Desejo. Se

o Édipo nos condena à pergunta: "quem sou eu?", já a clínica da Psicanálise nos coloca defronte da seguinte suscitação: "qual é o meu Desejo?". Interroguemo-nos; e no trânsito como este Desejo pulsa, ou, ainda, por qual Desejo somos guiados no trânsito? O Desejo, por ser íntimo ao sujeito, é por excelência narcísico, podendo gerar no campo do pensamento e da consciência

representantes ou faces egocêntricas, assim como o sonho é do sonhador o Desejo é do desejante. Afinal, não é o sonho a realização alucinada de um Desejo? E o trânsito não seria a realização acelerada desse Desejo?

A necessidade de manipular e persuadir a população se tornou essencial para que o marketing consiga vender, e

isso no trânsito tornou-se "perigoso"

O mal-estar causado no trânsito atinge todas as fases da vida, a começar pelas crianças. Estas, para sua segurança, devem ser colocadas em cadeirinhas apropriadas presas aos bancos traseiros. A utilização da cadeirinha pode causar um desprazer na criança, pois algumas vezes ela perde a visão do pai ou familiar, podendo ter a sensação de estar isolada dentro do veículo ou "perda dos pais". Além disso, a situação pode promover um incômodo por terem de ficar mais quietas, pois a cadeira impõe limites de espaço e locomoção. Os pais devem ensinar as crianças desde pequenas para que estas não aprendam a burlar a lei do trânsito, e sim segui-las. Já na adolescência, o desprazer no trânsito volta a aparecer quando jovens dirigem sem habilitação ou, mesmo que a tenham, dirigem embriagados. Nos feriados, os números supracitados tendem a aumentar, o que confirma um pulsar do príncipio de prazer utilizado em desmedido grau sobre uma máquina com potencialidade mortífera sem considerar o princípio de realidade. Toda educação é castradora e criadora do desprazer. De acordo com Freud, "buscamos realizar um desejo que jamais será realizado". Ainda de acordo com a Psicanálise freudiana, temos desejos inconscientes e conscientes. Alguns podem ser realizados, outros enveredam por distintas vicissitudes possibilitadas pelo ato de pulsar. No trânsito, para realizar ou buscar um prazer, "quebramos" algumas regras, inclusive podendo chegar à morte. Parece nítido que, quando o assunto é trânsito, tendemos a priorizar a satisfação e o gozo, e não a vida.

O excesso de oferta de veículos é uma tentativa de economizar tempo, considerado um dos inúmeros problemas da atualidade, tendo seus reflexos muitas vezes em estresse e outros sintomas

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Agressividade no ar

A pulsão (trieb), termo empregado por Sigmund Freud a partir de 1905, tornou-se um grande conceito da doutrina psicanalítica. A pulsão está em todos os momentos ativos na vida do sujeito: pulsão de vida (EROS), pulsão de morte (TÂNATOS). As pulsões são de origem inconsciente do sujeito e difíceis de controlar; já as pulsões de morte (TÂNATOS) levam o sujeito a se colocar repetitivamente em situações dolorosas. No trânsito, percebem-se as pulsões de morte (TÂNATOS), que são pulsões agressivas, se não em todos os momentos, pelo menos na maioria deles, quando os motoristas e até mesmo pedestres apresentam grande nível de hesitação com ira e cólera.

Ambas as pulsões supracitadas andam sempre de mãos dadas, "amigas" íntimas, ora uma pulsa com maior intensidade, ora outra. Um dos protótipos da pulsão de morte é a repetição, uma quebra de continuidade de algo, uma destruição de uma busca incessante do desejo. No entanto, mais uma vez, temos Eros com uma participação discreta, repete-se, mas nunca o mesmo, damos uma continuidade mais estreita, quando ocorre a repetição o pulsar psíquico já é outro.

A Psicanálise deve ir na contramão do capitalismo, utilizando novas estratégias para atuar com

eficácia, sem sair do capitalismo

Com isso, o poder da evolução das "máquinas" criadas pelo homem junto às pulsões de morte acarreta e favorece ainda mais acontecimentos trágicos. E quando se diz de pulsões, a questão da tentativa de controle e de precaução complica-se, ainda mais inseridas na velocidade ímpar em que o trânsito as colocam. Pulsares sobre um corpo de pulsões inquietantes. Enquanto Eros favorece o encontro, Tânatos mune a destruição. Isso me remete a pensar nos acidentes, que em geral são encontros (Eros) entre seres desejantes que resultam em destruição (Tânatos) corpórea, de vida, dentre outras. A questão que fica é: até quando EROS perderá adiantada essa "batalha" para TÂNATOS e o que fazer para aniquilar essa complexa situação?

Estamos numa sociedade em transição, com novas formas de sintomas, novas estratégias de vida, novas saídas, novas buscas, novas ilusões de promessas e novas aplicações do Desejo. São novas formas de nos tornarmos civilizados

REFERÊNCIAS

Roudinesco E. e Plon M. Dicionário de Psicanálise. Jorge Zahar Editor. S. Freud. Obras completas. Editora Imago. S. Freud. Obras completas, volume XXI, O mal-estar na civilização e o futuro de uma ilusão. Editora Imago. S. Freud. Obras completas, volume XVIII, Além do princípio de prazer, Psicologia de Grupo e outros trabalhos. Editora Imago. S. Freud. Obras completas. Editora Imago.

EDUARDO LUCAS, escritor, palestrante e aluno de Psicologia na Faculdade Presidente Antonio Carlos; e de Psicanálise no Estúdio Ato de Psicanálise (Bom Despacho). Email: [email protected]. ALEXANDRE CHAVES, psicólogo, professor da Faculdade

Presidente Antônio Carlos de Bom Despacho, membro do NDE do curso de Psicologia da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Bom Despacho. Revista SOCIOLOGIA, Abril de 2013.

� Pulsão de morte �

Tânatos - a pulsão de morte, ou de destruição, como queiram - é derivado da Filosofia do deus da morte, alhures, tomou outros ares na Psicanálise. Tânatos é muitas vezes injustiçado. Na Psicanálise seu entendimento dá-se como a energia, pulsão de destruição e agressividade, porém, vale destacar e explicitar sua importante participação para a vida. Ao alimentar-se, por exemplo, tritura-se o alimento. Eis, aí, uma das inúmeras participações para a vida da pulsão de morte. Por isso digo que a pulsão de morte não morra!

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O gozo da pulsão de morte (LUIZ FELIPE PONDÉ)

PENSE na Dinamarca. País perfeito, que, junto de Suécia, Noruega e Islândia (um dos lugares mais fascinantes em que já estive justamente porque é no fim do mundo e ninguém normal vai para lá), forma o paraíso na Terra para essa gente do "queremos um mundo melhor".

A chave para entender esses belos países não é o que gente mal informada acha que é, a saber, seu altíssimo grau de civilização e "consciência social" (em mil anos, termos como esse soarão como hoje soa "raça ariana superior"), mas, sim, seu altíssimo grau de prazer em reprimir tudo que não seja norma e de torturar todos que parecerem estar fora dela (dito de modo psicanalítico, um enorme gozo da pulsão de morte a serviço da repressão e humilhação moral).

O luteranismo puritano do passado escandinavo se transformou na repressão terrível em nome de "sua santidade" o politicamente correto, seja ele ecológico, social, sexual, cultural, ou que diabo for. O que está em jogo é torturar quem não parece estar enquadrado no jogo da pureza moral. O cinema de Ingmar Bergman, Lars von Trier e Thomas Vinterberg, por exemplo, é um testemunho claro desse gozo mórbido pela hipocrisia do amor à norma. Mas seria injusto passar a conta para os escandinavos. Nós todos gozamos em torturar quem cai na desgraça de ser um herege. O ódio nos move mais do que o amor, e, antes de tudo, odeio o racista mais do que amo sua vítima de racismo.

Adoramos humilhar, perseguir, destruir homens e mulheres, porque supostamente feriram códigos. Mas a maioria de nós não está nem aí para os códigos. Gosta, sim, de ver o desgraçado reduzido a lixo. Somos inquisidores natos, prontos a babar em cima da primeira vítima que surgir, principalmente a "moçadinha" por um mundo melhor. Por isso, na Idade Média levavam as crianças para o programa de domingo, que era ver infelizes arderem. E você, caro leitor, que talvez se ache o máximo, provavelmente levaria o seu filho também para cuspir no herege. Quer ver: o que você acha do pastor Feliciano? Ou de algum machista nojento?

Ou de padre pedófilo? Merecem um xingamento básico? Quem sabe, ovo podre? Bruxa e gay hoje não são mais hereges, são parte do status quo "cabecinha". Por falar em Vinterberg, veja o maravilhoso "A Caça", com o excelente Mads Mikkelsen (o mesmo do "Amante da Rainha") no papel principal de um professor de jardim de infância injustamente acusado de pedofilia por uma aluna. O filme deveria ser passado nas escolas de magistratura, nas faculdades de psicologia, pedagogia, serviço social e outros quebrantos.

Tudo nele é sofisticado e a serviço de desmascarar o inquisidor que existe em nós. O erro da "moçadinha" para um mundo melhor é não entender que, para descobrir o inquisidor babão em si mesmo, a chave não é pensar em "vítimas oficiais de preconceito", mas sim em quem você odeia por razões que você considera justas. A questão do filme não é negar o horror da pedofilia (vamos esclarecer antes que algum inquisidor comece a babar em cima de mim), mas, sim, mostrar como funciona nossa velha natureza humana em seus novos objetos de gozo mórbido moral.

A menina, Klara, tendo sido "recusada" em seu amor pelo professor Lucas (Mikkelsen) - ela o beija na boca -, vinga-se dizendo para a diretora da escola (esse ser quase sempre pronto para abraçar qualquer moda, mesmo as modas de horror como a pedofilia) que ele tinha mostrado seu órgão sexual para ela. Daí, claro, segue-se o "normal": um especialista acaba por dar a bênção "científica" para a acusação de pedofilia contra o inocente Lucas. Ele segue a cartilha de que as crianças nunca mentem e quando negam o suposto abuso é porque estão envergonhadas. De repente, todas as crianças dizem terem sido abusadas.

Por isso, de nada adianta o arrependimento de Klara, que tenta negar o que disse mil vezes (e ela o faz várias vezes, mas nenhum adulto acredita nela). Todos "cospem" em Lucas: amigos e suas mulheres, colegas de trabalho, ex-mulher, quitandeiros. Teste sua alma de inquisidor: o que você faria se acusassem o professor de sua filhinha de pedofilia?

LUIZ FELIPE PONDÉ, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, autor de vários títulos, entre eles, "Contra um mundo melhor" (Ed.

LeYa). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2013.

Medo que dá medo (ROSELY SAYÃO)

MUITAS mães estão com medo de que os seus filhos sintam medo. Pedem para a escola não contar determinadas histórias e para trocar a indicação do livro que o filho deve ler. Elas também não deixam que as crianças assistam a filmes que, seja qual for o motivo, provoquem medo. Basta que o filme veicule uma ideia: nem precisa conter cenas aterrorizantes.

Essa reação dos pais leva a crer que o medo é necessariamente provocado por um motivo externo à criança e que é uma emoção negativa que os pequenos não devem experimentar. Vamos pensar a esse respeito. Primeiramente, vamos lembrar que toda criança pequena sentirá medo de algo em algum momento de sua vida. Medo do escuro, medo de perder a mãe e medo de monstro são alguns exemplos. E esses medos não serão originados necessariamente por causa de uma história, de uma situação experimentada ou de um mito. Esses elementos servirão apenas de isca para que o medo surja.

Tomemos como exemplo o medo do escuro. De fato, é na imaginação da criança que reside o que nela lhe dá medo; o escuro apenas oferece campo para que essas imagens de sua imaginação ganhem formato, concretude. É que, no escuro e em suas sombras, a criança pode "ver" monstros se movimentando e até "ouvir" os rugidos ameaçadores dessas figuras. No

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ambiente iluminado, tudo volta a ser a realidade conhecida porque a imaginação deixa de ter seu pano de fundo. Os rugidos dos monstros voltam a ser os sons naturais do ambiente. E as monstruosas imagens são diluídas pela claridade. E por que é bom a criança experimentar o medo desde cedo? Porque essa é uma emoção que pode surgir em qualquer momento da sua vida e é melhor ela aprender a reconhecê-la logo na infância para, assim, começar a desenvolver mecanismos pessoais de reação.

A criança precisa reconhecer, por exemplo, o medo que protege, ou seja, aquele que a ajudará a se desviar de situações de risco. Paralelamente, precisa reconhecer o medo exagerado que a congela, aquele que impede o movimento da vida e que exige superação. É experimentando os mais variados medos que a criança vai perceber e aprender que alguns medos precisam ser respeitados pelo aviso de perigo que dão, enquanto outros medos exigem uma estratégia de enfrentamento que se consegue com coragem. A coragem, portanto, nasce do medo. E quem não quer que o seu filho desenvolva tal virtude?

Por fim, é bom lembrar que, muitas vezes, a criança procura sentir medo por gostar de viver uma situação que, apesar de difícil, ela pode superar. Cito como exemplo um mito urbano que provoca medo em muitas crianças na escola: "a loira do banheiro". Para quem não a conhece, é a imagem de uma mulher que assusta as crianças quando elas vão ao banheiro. Uma escola decidiu acabar com esse mito. Por meio de várias estratégias conseguiu convencer os alunos de que isso não existia. Alguns meses depois, as crianças construíram outro mito para que pudessem sentir o mesmo medo que experimentavam quando se viam perseguidos pela "loira do banheiro".

E quantas crianças não choram de medo depois de ouvir uma história e, no dia seguinte, pedem aos pais que a contem novamente? Conclusão: o que pode atrapalhar a criança não é o medo que ela sente, e sim o medo que os pais sentem de que ela sinta medo. Isso porque a criança pode entender que os pais a consideram desprovida de recursos para enfrentar os medos que a vida lhe apresenta.

ROSELY SAYÃO, psicóloga e consultora em educação, fala sobre as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no ato

de educar e dialoga sobre o dia-a-dia dessa relação. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2013.

As vidas que deixamos de viver (CONTARDO CALLIGARIS)

Quase sempre, quando encontramos alguém que nos encanta, começamos por lhe contar nossa vida e expor nossos projetos - pois é possível que, para um casal, compartilhar planos seja mais importante do que cada um conhecer e entender o passado do outro. Em suma, a gente se apresenta ao outro como numa entrevista de emprego, dizendo o que fizemos e o que esperamos. Afinal, somos uma mistura da vida vivida com o futuro sonhado, não é?

Acabo de ler o último livro de Adam Phillips, psicanalista inglês que é um dos autores que mais me estimulam a pensar: "Missing out: In Praise of the Unlived Life", (Farrar, Straus and Giroux) (perder: elogio da vida não vivida - "missing out" é perder no sentido em que você chega atrasado na festa e pergunta: perdi alguma coisa?). Justamente, à história passada e aos sonhos Phillips acrescenta mais um ingrediente que nos define: o conjunto das vidas que deixamos de viver - porque não foi possível, porque alguém nos impediu, porque ficamos com medo, porque escolhemos outro caminho, porque a sorte não quis.

Algumas vidas não vividas são alternativas descartadas pela inércia da nossa história ou porque o desejo da gente é dividido, e escolher implica perder o que não escolhemos. Outras são acasos que não aconteceram (é possível passar pela vida sem encontrar ninguém ou encontrando muitos, mas todos na hora errada). Também, mais dolorosamente, as vidas não vividas são caminhos pelos quais não ousamos nos enveredar (na inscrição para o vestibular, na decisão de voltar de um lugar onde teríamos começado outra vida, nos conformismos de cada dia).

Essas vidas não vividas podem nos enriquecer ou nos empobrecer. Elas nos enriquecem quando integram nossa história como tramas alternativas de um romance, incluídas no rodapé da edição crítica. Melhor ainda, como tramas alternativas às quais o autor renunciou, mas que ele se esqueceu de apagar inteiramente: o herói não vai mais para África no capítulo dois, mas eis que, no capítulo sete, aparece um africano que ele conheceu antes, mas que não se entende de onde vem, a não ser que a gente leia aquela parte do dois que foi abandonada.

Aqui, um conselho: é útil frequentar as vidas não vividas de nossos parceiros (para evitar surpresas desnecessárias, como a chegada de personagens que não fazem parte nem do passado nem dos sonhos do outro, mas das vidas às quais ele achava ter renunciado). Agora, as vidas não vividas podem sobretudo nos empobrecer, levando-nos a viver num eterno lamento por algo que não nos foi dado, que perdemos ou do qual desistimos. Esse, aliás, é o futuro que estamos preparando para nossas crianças.

Uma das razões pelas quais as vidas não vividas condenarão as crianças de hoje à sensação de desperdício é a popularidade do mito do potencial. Alguém não está se tornando tudo o que esperávamos? Que pena, com o potencial que ele tinha... De onde vem a ideia de que nossas crianças seriam dotadas de disposições milagrosas e que o maior risco seria o de elas desperdiçarem o que já é seu patrimônio?

O potencial das crianças modernas tem duas propriedades: ele é genérico (ou seja, não é fundado em nenhuma observação específica, é uma espécie de a priori: criança tem grande potencial, em tudo) e ele deve dar seus frutos espontaneamente, sem esforço algum da parte da criança. Nossos rebentos são dotadíssimos para esporte, desenho,

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criação, música, ciência, estudo, línguas estrangeiras etc. E, se os resultados escolares forem péssimos, as crianças nunca são preguiçosas, elas só estão desperdiçando seu "incrível potencial". Há uma cumplicidade de todos ao redor dessa ideia.

Os pais querem que as crianças sejam tudo o que eles não conseguiram ser na vida. Pior, eles querem que as crianças cumpram essa missão sem esforços, por milagre (o milagre do "potencial"). Os professores acham no potencial uma maneira maravilhosa de assinalar que fulano é medíocre sem atrapalhar o sonho dos pais da criança, os quais podem seguir pensando que seu filho leva notas infernais, mas vale a pena insistir (e pagar a escola mais cara) porque ele tem um potencial extraordinário.

Quanto aos filhos, acreditar em seu próprio "potencial" é uma maneira barata para se sentir especial, apesar de resultados pífios. Problema: na hora, inevitável, do fracasso, quem aposta no seu potencial conhece a sensação especialmente dolorosa de ter traído a si mesmo (ou seja, ao seu "potencial").

CONTARDO CALLIGARIS, italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2013.

Indiferença inexplicável (DRAUZIO VARELLA)

PARA quem está habituado a genocídios, que diferença faz um crime a mais? Em 2010, a Anvisa realizou uma série de consultas públicas sobre a conveniência de proibir a adição de aromatizantes e edulcorantes ao fumo. Na época, escrevi nesta coluna que a medida conseguia a proeza circense de ser a um só tempo corajosa e covarde.

Corajosa porque finalmente o governo federal tomava a iniciativa de enfrentar a ganância criminosa dos que adicionam ao cigarro uma parafernália de substâncias químicas, para tornar a fumaça menos aversiva ao paladar infantojuvenil. Covarde porque não tem cabimento uma agência governamental legalmente encarregada de proteger a saúde dos brasileiros ser obrigada a consultar o público para coibir uma prática adotada com a finalidade exclusiva de induzir crianças e adolescentes à mais escravizadora das dependências de droga.

Apesar desses pesares, em março de 2012, a Anvisa publicou a resolução RDC nº 14, segundo a qual continuavam permitidos os aditivos essenciais ao processo de fabricação de cigarros, mas seriam vetados aqueles introduzidos para deixá-lo mais palatável. Para a adaptação às novas regras foram fixados prazos generosos: 18 meses para os fabricantes e 24 meses para os comerciantes. Essa questão é da maior relevância. Até a década de 1970 o emprego de aditivos era muito restrito; hoje são acrescentados mais de 600 deles. Perto de 10% do peso de um cigarro é composto por aditivos de efeitos mal estudados e imprevisíveis para o organismo.

Pertencem a essa categoria produtos que conferem gosto de maçã, chocolate, cravo, morango, canela, baunilha ou menta. Outros, provocam broncodilatação para que a fumaça penetre mais fundo nos pulmões. Há, ainda, os que aumentam a afinidade dos neurônios à nicotina, para viciar com mais eficiência. O mentol, especificamente, adicionado para anestesiar as vias aéreas e diminuir a irritação causada pela fumaça, além de aumentar a permeabilidade da mucosa oral às nitrosaminas cancerígenas liberadas na combustão, é o preferido por mais de 50% das meninas e meninos que começam a fumar. A resolução da Anvisa foi contestada pelo deputado Luiz Carlos Heinz, por meio do PDC 3034/2010, que está para ser votado em Brasília. Em síntese, o nobre representante do povo contesta a autoridade da Anvisa para legislar sobre o tema. A alegação é a ladainha de sempre: como o fumo gera riquezas para o país, qualquer tentativa de reduzir seu consumo levaria à miséria milhares de famílias empregadas no plantio.

A Advocacia Geral da União já se pronunciou a favor da legalidade constitucional do papel da Anvisa nessa questão. Em relação ao famigerado argumento das riquezas geradas pelo fumo, vamos lembrar que o Brasil gasta mais de R$ 20 bilhões por ano apenas com o tratamento das doenças causadas por ele, enquanto arrecada em impostos menos de um terço desse valor. Já em relação ao desemprego dos pobres lavradores - bandeira que a bancada do fumo no Congresso desfraldou até para justificar sua posição contrária à proibição de fumar em ambientes fechados -, quero dizer que, se todos os brasileiros deixassem de fumar, seriam eles os menos prejudicados, uma vez que somos o segundo maior exportador mundial.

Mais desemprego haveria entre cancerologistas, cardiologistas, pneumologistas, cirurgiões, enfermeiras, atendentes, acompanhantes de inválidos, fabricantes de respiradores, balões de oxigênio, cadeiras de rodas, motoristas de ambulâncias, coveiros e demais envolvidos nas tragédias provocadas pelo cigarro. Reconheço que consigo entender o papel desprezível dos parlamentares que se prestam a defender os interesses da indústria. Eles o fazem por questões práticas, como os financiamentos de campanhas eleitorais ou seja lá que outro nome tenham. O que é inadmissível é a inércia do poder Executivo.

Por que o Ministério da Saúde e a própria Anvisa sequer acompanham as sessões da Câmara em que o assunto está para ser votado? Por que razão a Casa Civil se abstém de convocar a maioria que detém no Legislativo, para impedir essa afronta à saúde dos brasileiros? Além das barganhas por ministérios, qual a serventia da base aliada?

DRAUZIO VARELLA é médico cancerologista. Por 20 anos dirigiu o serviço de Imunologia do Hospital do Câncer. Foi um dos pioneiros no tratamento da Aids no Brasil e do trabalho em presídios, ao qual se dedica ainda hoje. É autor do livro "Estação Carandiru" (Companhia das Letras). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2013.

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PARA QUEM, INGENUAMENTE, ACREDITA QUE ESTAS SITUAÇÕES NÃO EXISTEM MAIS...

O fundo de verdade na ‘brincadeira’ do trote na Faculdade de Direito da UFMG (MATHEUS MACHADO)

NO ÚLTIMO mês, as fotos do trote racista e com apologia ao nazismo na Faculdade de Direito da UFMG rodaram as redes sociais e provocaram reações até mesmo da ministra Maria do Rosário, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. As denúncias relativas às fotos acabaram por abrir as portas para outras denúncias ganharem a mídia, incluindo a crítica ao conteúdo machista das músicas da Charanga da mesma Faculdade (você pode ver algumas letras aqui). Uma comissão da UFMG foi criada para apurar as denúncias e deve apresentar seus resultados até o próximo dia 19.

Para completar a situação um estudante dessa faculdade deu uma entrevista para a Record na porta da escola afirmando que não havia intenção racista quando ―pintaram a caloura de escrava‖ (sic), que lá eles ―tem amigos negros‖ e que o símbolo da Associação Atlética dos estudantes era um ―macacão‖ (sic), acrescentando depois que se houvesse alguma intenção racista teriam usado o símbolo para isso (duvida? veja o vídeo aqui ou aqui). Alguns dias depois, o estudante ainda escreveu uma nota explicativa em seu perfil no Facebook alegando que ―Não estamos preparados para discutir o racismo com a seriedade que o tema merece‖. Considerando que ele é provavelmente dono da pior frase, no pior momento da história dos debates raciais, há que se convir que ele deve estar sendo sincero.

Eu não acho que a Faculdade de Direito seja um lugar especial, a idiotia é uma das coisas mais bem distribuídas do mundo, e gente assim existe em toda parte. No entanto, isso aconteceu ali e eles terão de lidar com isso. E por enquanto a coisa não vai nada bem. O Centro Acadêmico Afonso Pena (CAAP), dos estudante de Direito da UFMG, soltou uma nota na qual dizia ser contra o racismo, mas também criticava as pessoas que divulgaram as fotos nas redes sociais, como se fosse possível equivaler um abuso à sua denúncia. Considerando que o CAAP já conhecia os abusos, mas que não os havia denunciado, fica a impressão de que a intenção do centro acadêmico era abafar o caso, ao invés de combater abertamente os abusos. Aliás, não fosse o fato das fotos terem vazado nas redes sociais, provavelmente não saberíamos de mais esse abuso. Diga-se de passagem: as fotos foram postadas pelos próprios envolvidos e tiradas em lugares abertos, com direito a pose e sorriso orgulhoso dos veteranos.

Foto: Reprodução/Facebook

Alguns estudantes tem repetido o discurso padrão após casos semelhantes: ―foi só uma brincadeira‖, ―não era a intenção‖, ―está fora de contexto‖. O estudante que citou o ―macacão‖ chegou a culpar quem ―sempre enxerga as pessoas como más‖, e afirmou que prefere ―ver o lado bom das pessoas‖. Como bem lembrou a professora Ana Lúcia Modesto em uma excelente entrevista sobre o tema, o trote em si já ―é uma prática arbitrária, historicamente construída, mas que foi naturalizada‖. A professora ainda comenta magistralmente o discurso da ―brincadeira‖: ―Em séculos passados, considerava-se brincadeira durante determinada época do ano promover corridas nas ruas com judeus, deficientes físicos, anões, loucos, o que era uma forma de submetê-los a um vexame público. Para os que estavam assistindo, aquilo era só brincadeira, o que é uma categorização perigosa.‖

Mas fiquei curioso. Qual era, afinal, o contexto que justifica amarrar um calouro pintado de marrom e fazer a saudação nazista

ao seu lado? Um dos problemas de procurar coisas é que você acaba encontrando. Uma pesquisa básica sobre o tal contexto do trote me deixou boquiaberto. O perfil nas redes sociais de um dos estudantes, o que estava com um bigode de Hitler pintado, é uma sequência interminável de propagandas abertamente fascistas. O Centro de Mídia Independente publicou esta semana uma seleção do pior, confira aqui. Um dos comentários da publicação afirma ainda que o material teria sido enviado a alguns jornais locais, mas que não havia sido publicado por força da família do rapaz.

Uma das fotos divulgadas é do site PicBadges, uma ferramenta para incluir em avatares de redes sociais os broches digitais das suas causas de interesse. O rapaz usava a ferramenta para defender o partido neo-nazista alemão NPD, a

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perigosa ATB/C18, Brigada Ariana de Terror (C18 é um código para Combat Adolf Hitler), e o Movimento Pátria Nostra, seção de um movimento fascista italiano. Em outra foto, o rapaz exibe um visual skinhead, movimento musical que foi sequestrado pelo White Power nos anos 80. Em uma quarta imagem, podemos ver uma publicação no Facebook do rapaz defendendoOswald Mosley, líder do fascismo britânico e amigo de Adolf Hitler, e em seguida elogiando Nigel Farage, liderança conservadora britânica, e Nick Griffin, líder do British National Party, movimento neofascista que apóia, entre outras coisas, a expulsão da Inglaterra dos imigrantes não brancos e seus descendentes.

A quinta e a sexta imagem, no entanto, foram as que mais me impressionaram. Se trata de uma defesa de Eugene Ney Terre’ Blanche, um dos maiores nomes em defesa do regime de Apartheid na África do Sul. Terre’Blanche foi o líder da AWB, o Movimento de Resistência Afrikâner, um movimento paramilitar nacionalista e racista cujo símbolo também é uma clara alusão à suástica nazista. Nos comentários, o estudante afirma claramente que apóia a segregação racial, diz que o Holocausto foi uma mentira e defende a ―luta pelos direitos dos brancos‖. Na sétima imagem, vemos o rapaz inverter uma imagem famosa com esqueletos para afirmar que há sim uma diferença entre gêneros e raças. Na oitava imagem, o estudante da Faculdade Direito ataca a Teoria da Evolução, defende o criacionismo e o cristianismo fundamentalista. Na nona imagem, por fim, encerramos o show de horrores com rastros de homofobia e obscurantismo.

Encerramos? Quem me dera. A cereja do bolo fica por conta do vídeo da reunião internacional do tal Movimento Pátria Nostra (os brasileiros aparecem por volta dos 6 minutos aqui). O que primeiro chama a atenção é: se é um movimento nacionalista, por que prestar contas a um movimento estrangeiro? No vídeo, um certo Marcelo Botelho, que também é advogado, aparece ao lado do estudante da UFMG contando aos seus companheiros como está estabelecendo contato com ninguém mais ninguém menos que o ex-capitão e atualmente deputado Jair Bolsonaro. Botelho, que é ex-militar, tem também um perfil público com praticamente todos os símbolos nazistas conhecidos, incluindo aí o símbolo da S.S. nazista, acruz celta e a runa odal nas cores do partido nazista alemão.

Em tempos como esse, onde figuras como Feliciano e Bolsonaro comandam até mesmo a Comissão de Direitos Humanos, não existe espaço para ingenuidade e aqueles que repetem a ladainha do ―é brincadeira‖, ou ―que exagero!‖, acabam por proteger figuras que claramente não estavam brincando e, sim, propagando sua ideologia de ódio e autoritarismo. Cabe esperar que a Comissão designada pela Reitoria saiba fazer sua parte.

MATHEUS MACHADO é formado em História, especialista em Gestão Educacional e Fake amador (@coalacroata). Escreve no Bhaz às terças-feiras. http://www.bhaz.com.br/o-fundo-de-verdade-na-brincadeira-do-trote-na-faculdade-de-direito-da-ufmg/. Abril de 2013.

Skinhead posta foto enforcando morador de Rua na Savassi (em BH) e revolta internautas (AGÊNCIA O TEMPO)

Donato Di Mauro, skinhead assumido, já foi preso duas vezes por outros crimes de violência

UMA IMAGEM que está circulando nas redes sociais nesta sexta-feira (5) indigna os internautas. Na foto, Donato di Mauro, 25, aparece enforcando um morador de rua com uma corrente na praça da Savassi, na região Centro-Sul da capital. O próprio Donato foi quem postou a imagem em seu perfil, com a legenda: "quer fumar crackinho, quer? em meio a praça pública cheia de criança? acho que não".

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Segundo a denúncia de um internauta - que pediu para não ser identificado, Donato apagou a postagem, mas ela foi disseminada após uma outra pessoa salvar a foto e compartilhá-la nas redes sociais. Ainda segundo o internauta, o agressor, que é assumidamente skinhead (conhecidos por sua intolerância com minorias), já foi denunciado diversas vezes por esta e outras atitudes preconceituosas. Ele também seria amigo dos estudantes de direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) responsáveis pelo trote em que amarraram os caulouros e utilizaram símbolos racistas e nazistas, em março deste ano.

No perfil de Donato no Facebook, que ele cancelou nesta sexta-feira (5) logo após a repeurcussão na mídia, era possível visualizar diversas imagens e postagens de conotação racista e preconceituosa. Em uma delas, uma criança que está em seus ombros faz o símbolo de exaltação do nazismo. Ele já foi preso uma vez, por ter esfaqueado um homossexual na Praça da Liberdade, e outra vez em São Paulo, quando fazia parte de um grupo que agrediu skatistas na avenida Paulista. Nas duas vezes ele foi liberado após a prisão. Após ser questionado pela reportagem, Donato postou em sua página na rede social a seguinte mensagem: "Não tenho NADA a dizer a vocês da mídia, aonde claro, sempre vão distorcer tudo. Não me procurem mais, não terão a entrevista para vender suas mentiras com seus jornaizinhos baratos cheios de sangue."

Em outra imagem do seu perfil no facebook, um menino aparece nos ombros de Donato fazendo o símbolo de exaltação nazista

Essa tribo urbana, da qual Donato diz fazer parte, não é pequena e tem agido com frequência na capital. Um jovem estudante da UFMG, que pediu para não ter sua identidade revelada por medo de represália, contou à reportagem que já foi vítima de um desses grupos. No final de 2011, o rapaz, que é homossexual, andava com um amigo negro pelas ruas do centro da capital, por volta das 22h em um domingo, quando foi espancado. "Eles chegam de repente, batem e depois saem gritando que são skinheads", narrou. O jovem chegou a registrar um Boletim de Ocorrência (B.O.), mas até o momento nenhuma providência foi tomada.

Disponível em: <http://www.otempo.com.br/noticias/ultimas/skin-head-posta-foto-enforcando-morador-de-rua-na-savassi-e-revolta-internautas>. Abril de 2013.

Os problemas do sistema eleitoral (JÂNIO QUADROS NETO)

TEMOS acompanhado pela imprensa quase incontáveis operações policiais e escândalos envolvendo a classe política e governamental. Temos visto espetáculos do Poder Judiciário e do Ministério Público atacando a praga da corrupção. A política se tornou insuportável.

Surpreende que dificilmente as autoridades discutam as causas e tentem prevenir a corrupção. Por que não buscar eliminá-las ou no mínimo enfraquecê-las? Corrupção é uma doença e devemos procurar uma vacina. A solução não se encontra em ações policiais, julgamentos e espetáculos na televisão. Muitos aplaudiram a aprovação da Lei da Ficha Limpa. Pode parecer insanidade, mas eu não o fiz. A lei é uma tentativa de perfumar adubo. O cheiro pode melhorar, mas a essência permanece a mesma.

Se é necessário ter uma lei que impeça pessoas condenadas por crimes de se candidatarem, podemos presumir que o eleitorado goste de eleger bandidos. Seguindo essa presunção, podemos então desconfiar de que falte razão ao eleitor. Mas qualquer pesquisa eleitoral indica que a maioria da sociedade não confia nos políticos e despreza o processo eleitoral. Por que, então, alguns candidatos com muita rejeição conseguem se eleger? É o sistema que é furado!

Um sistema eleitoral e partidário como o nosso é uma receita para a desgraça. O voto desproporcional e não distrital e o excesso de partidos políticos fazem com que a corrupção seja uma questão de sobrevivência política e eleitoral. Os 30 partidos hoje existentes no país não representam nenhuma ideologia ou proposta concreta. Em 2010, São Paulo teve 1.275

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candidatos a deputado federal. Isso é patético. Como um eleitor inteligente e consciente terá tempo ou paciência para analisar 1.275 currículos? Aquele que for correto e bem-intencionado dificilmente se elegerá e mais dificilmente ainda sobreviverá.

O Brasil está entre os países que têm as eleições mais caras do mundo. Para se eleger, um candidato precisa de uma máquina política, gastar milhões ou ser artista. Isso não atende ao melhor interesse do eleitorado nem da sociedade. Por que não ter o voto proporcional e distrital com poucos partidos políticos? Talvez cinco, no máximo. Por que todos os candidato não têm o mesmo tempo e espaço na televisão? Por que donos de veículos de comunicação podem se candidatar? Não é coincidência que quase todo coronel político é dono de veículos de comunicação. Alguns defendem o financiamento público de campanhas políticas. Isso só seria viável se o voto fosse proporcional, distrital e com poucos partidos. Com essas regras, seria muito difícil comprar uma eleição. Quem tivesse um índice alto de rejeição não se elegeria. Não precisaríamos de uma Lei da Ficha Limpa. O eleitor e as urnas naturalmente eliminariam fichas sujas.

Partidos devem ter uma identidade ideológica forte e um manifesto político. No Brasil, muitas legendas só existem para desfrutar do fundo partidário e negociar cargos e tempo de televisão. Raramente servem aos interesses da sociedade, mas com frequência atendem aos objetivos de caciques partidários. Apesar de tanta gente ruim conseguir se eleger, não é ao eleitor que falta razão - é o sistema que é falho. Montesquieu teorizou que "Todo povo tem o governo que merece." O Brasil merece bem mais. Temos que mudar o sistema eleitoral.

JÂNIO QUADROS NETO (PSD), 40, é mestre em economia pela Universidade de Londres. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2013.

Construir uma sociedade inclusiva (MARIA GABRIELA MENEZES)

Hoje, Dia Mundial de Conscientização do Autismo, várias manifestações estão programadas com o intuito de tirar o véu da invisibilidade que pesa sobre os ombros de milhões de famílias no mundo. Um passo importante foi dado com a sanção da Lei Berenice Piana, segundo a qual portadores do transtorno do espectro autista devem ser considerados deficientes para fins legais.

A lei também propõe a realização de um censo para saber quantos autistas, afinal, há no Brasil. Existe um parâmetro: estudo divulgado em meados de março de 2013 pelo "National Health Statistics Report" sugere a impressionante prevalência, nos Estados Unidos, de uma criança afetada a cada 50. Esses números indicam a necessidade de uma séria avaliação dos profissionais da área da saúde e da comunidade em geral. Mas como o diagnóstico não respeita classe social, etnia nem geografia, é razoável pensar que também no Brasil possamos estar diante de uma questão de saúde pública infelizmente ainda não detectada.

Além do espectro autista, o número de deficientes em geral no mundo é muito alto. Por isso, em setembro, ocorre a Reunião de Altas Autoridades das Nações Unidas sobre Deficiência e Desenvolvimento, cujo tema principal é a inclusão de deficientes. A justificativa é simples: estima-se que pelo menos um bilhão de pessoas sejam deficientes e excluídas da possibilidade de acesso em igualdade de condições à educação, trabalho e assistências médica, social e legal. A situação causa um empobrecimento desproporcionalmente maior de deficientes em relação a seus concidadãos.

Para preparar essa reunião, cujas deliberações e conclusões deverão ter repercussão mundial, houve há alguns dias uma consulta pública sobre quais ações devem ser tomadas para para garantir a inclusão social de pessoas com deficiência. Para mim, mãe de um garoto no espectro autista, é fundamental preparar a sociedade para os receber. Para isso, é preciso fornecer o conhecimento da existência e da perspectiva do outro. Se, como dizem, os autistas têm dificuldades nesse quesito, o que tornaria a integração deles mais difícil, o que pensar de uma sociedade cujos cidadãos, em princípio, são, de fato, capazes de se por no lugar do outro, desde que semelhante, mas excluem o diferente?

Esse ponto desmascara a dificuldade de se colocar em um lugar desconhecido. O exercício da cidadania também se manifesta no esforço para entender, tolerar e não discriminar. Ao mesmo tempo, instituir políticas públicas para, educando os cidadãos, dar-lhes novos referenciais para o entendimento e a inclusão completam esse esforço. As perspectivas das pessoas com transtorno do espectro autista e as dos outros são muito diferentes, como se estivessem em lados opostos de uma porta fechada. Por isso, insisto muito na questão da inclusão nas escolas regulares desde pequenos e mediada por profissionais habilitados para promover a saudável interação entre todas as crianças.

Quando saber conviver com o deficiente se transformar em um hábito simples e comum, a sociedade será de fato inclusiva. Alguns autistas têm a sorte de já viver em um microambiente assim. É pouco. O essencial é realizar campanhas públicas para esclarecer e educar o conjunto da população desde já. Parafraseando o slogan da reunião das Nações Unidas sobre deficiência e desenvolvimento: quebrem-se as barreiras e abram-se as portas do isolamento social por meio do conhecimento.

MARIA GABRIELA MENEZES DE OLIVEIRA, 50, professora de psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), é

mãe de um adolescente com síndrome de Asperger. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2013.

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Autismo: por dentro do banco de cérebros (AMELIA GENTLEMAN)

DO "THE GUARDIAN"

UMA GRAVE escassez de cérebros está afetando pesquisas potencialmente importantes sobre as causas e a natureza do autismo. Embora haja verbas da entidade Austistica para pesquisas, é extremamente difícil convencer as pessoas a doarem seus cérebros depois da morte. E, embora muita gente fique feliz em aderir ao cadastro nacional de doadores de órgãos, comprometer-se em doar o cérebro é um processo à parte, que enfrenta resistências. O Banco de Cérebros do Reino Unido para o Autismo fez há quatro anos um apelo pela doação de cérebros, mas até agora apenas 22 foram doados, o que reduz o ritmo das pesquisas num momento de crescente interesse em torno de uma condição que afeta até uma em cada cem pessoas.

Marlene Bergamo/Folhapress

Fernanda Raquel Santana, 19, mostra desenho de dragão quE fez durante a entrevista para a Folha

É de se lamentar que não consigamos fazer isso mais rapidamente", disse a professora Margaret Esiri, diretora da iniciativa. Ela está otimista de que uma compreensão mais clara do que acontece no cérebro dos autistas levará a um desenvolvimento mais rápido de intervenções que possam melhorar a qualidade de vida dos afetados pela condição. "Essa é uma coisa muito positiva a se fazer, para ajudar as futuras gerações. As famílias que já fizeram isso apreciaram a oportunidade. Deu algo significativo à terrível experiência de perder alguém que elas amavam", diz Esiri. "Também precisamos que o máximo possível de pessoas que não tem autismo considere doar, porque precisamos de tecidos para controle. As pessoas não percebem que um cérebro normal pode ser realmente valioso para as pesquisas."

Doações para fins de pesquisa não estão incluídas no programa de doações de órgãos do NHS [serviço britânico de saúde], que existe apenas para organizar transplantes que mantenham pessoas vivas, e o banco de cérebros, com sede em Oxford, tem dificuldades em informar as pessoas sobre o esquema. Isso se deve em parte a tabus culturais acerca da morte, e da relutância de cuidadores e profissionais da saúde em abordar o tema. "Não é uma conversa muito fácil de ter, porque envolve olhar para a morte de uma criança, por exemplo, quando todos os esforços por parte da profissão médica são em olhar para o futuro da criança, não para sua morte", diz Esiri. "O cérebro é em grande parte a essência de quem alguém é; a ideia de abrir mão da própria pessoa é difícil."

Embora apelos por doações de pessoas com demência para outro projeto de pesquisa, no hospital John Radcliffe, em Oxford, tenham sido produtivos, encontrar famílias dispostas a apoiar a doação para pesquisas sobre o autismo tem sido algo problemático. "Cuidar de pessoas com demência é uma carga tremenda, então os parentes ficam desesperados para que haja uma forma de tornar isso mais fácil", diz Esiri. "O autismo nem sempre é visto como algo que devesse idealmente ser erradicado, da mesma forma como outras doenças."

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Há também hostilidade de algumas organizações do autismo a qualquer pesquisa que possa levar a um exame intrauterino de diagnóstico, o que poderia induzir a abortos, ou a que se fale em cura. "Há resistência às pesquisas cerebrais sobre o autismo por parte do movimento da neurodiversidade - que vê o autismo como algo a ser valorizado e até celebrado", diz Brenda Nally, funcionária de divulgação da entidade, que se reúne com todos os possíveis doadores. Nos EUA, uma pauta da "cura do autismo agora" criou "muita antipatia e levou as pessoas suporem que os propósitos dessa pesquisa são a erradicação ou a cura do autismo", diz ela.

No entanto, o objetivo do banco de cérebros não é encontrar uma cura, e sim melhorar a compreensão sobre a condição. "Poderemos talvez ser capazes de oferecer uma melhoria de alguns aspectos do autismo, como por exemplo a ansiedade social severa", diz Esiri.

FUTURO

O cérebro em desenvolvimento é alterado em casos de autismo, mas os cientistas não sabem ainda como ou por quê. Pesquisas de DNA em amostras sanguíneas de pacientes autistas revelaram alguns genes variantes, particularmente os que são sabidamente importantes para o desenvolvimento das conexões entre as células nervosas cerebrais. Análises de cérebros permitiriam uma melhor compreensão sobre se isso tem um efeito estrutural ou químico.

No futuro, caso se descubra, por exemplo, que há uma escassez de determinado tipo de fator do crescimento que permita o desenvolvimento das células nervosas, os cientistas poderiam encontrar uma molécula que mimetize seus efeitos, e lhe dar a forma de um comprimido. O historiador e arqueólogo Nicholas Riall, que tem autismo e foi também diagnosticado com um câncer incurável, prometeu seu cérebro ao projeto. "Conversei com a minha esposa depois do diagnóstico sobre tentar encontrar algo positivo para tirar disso", diz ele. Ele não espera uma cura, mas deseja ajudar a promover uma melhor compreensão. "Eu ficaria fascinado de descobrir o que desencadeia isso", diz ele.

"O que me faz pensar de formas que são radicalmente diferentes de outras pessoas? Por que meu cérebro pulsa de um jeito diferente da norma? Isso provavelmente sido útil para mim se eu tivesse tido um diagnóstico anterior do meu autismo", diz ele. Sua condição só foi formalmente diagnosticada quando ele já tinha mais de 50 anos, e o fato de isso não ter sido reconhecido nele quando criança lhe causou uma real infelicidade.

"Eu tenho uma inteligência-gangorra. Sou um caso perdido para a matemática, mas muito brilhante em disciplinas artísticas. Isso foi a maldição da minha vida escolar. Nas décadas de 1950 e 60, se você não tirasse nota boa, lhe batiam; eu apanhei muito porque não conseguia aprender matemática e ciências. Eles achavam que podiam enfiar essas coisas em você na base da pancada. Não consigo decorar um texto; simplesmente não consigo, então não conseguia aprender poesia de cor. Como um menininho autista, isso tornou a escola absolutamente infernal", diz ele.

Esiri está esperançosa de que, quando as pessoas souberem do trabalho da sua equipe, mais indivíduos com autismo irão aderir ao cadastro, ou que suas famílias irão se inscrever em nome delas. Ela espera que os parentes dessas pessoas também queiram doar seus cérebros, assim como pessoas sem conexão familiar com a condição. "Se conseguíssemos 20 a 30 cérebros por ano, seria fantástico. Seria possível fazer muito mais", diz Esiri. "Há muita coisa que precisa ser aprendida."

AMELIA GENTLEMAN é Jornalista da publicação internacional THE GUARDIAN. Tradução RODRIGO LEITE. Abril de 2013.

Mais educação e menos mortes no trânsito (RICARDO VIVEIROS)

ANTES era apenas nos feriadões. Agora é a mesma coisa em qualquer época. As estatísticas fortalecem o noticiário, repleto de graves acidentes de trânsito, muitos dos quais envolvendo motoristas alcoolizados. A falta de educação, reforçada pela imprudência e sensação de impunidade, rouba muitas vidas e deixa um rastro de sangue nas estradas e cicatrizes nos corações e mentes dos que sobrevivem à perda de parentes e amigos.

Essa dura realidade se agrava cada vez mais. Dados oficiais divulgados regularmente indicam que as mortes de jovens em acidentes de trânsito, nos últimos dez anos, cresceram mais de 30%. O progressivo agravamento da violência no tráfego das vias públicas levou à Organização das Nações Unidas (ONU) a proclamar 2011-2020 como a década de ação pela segurança no trânsito. Há 17 anos, perdi um filho e uma neta em desastre de carro na cidade de São Paulo. Ele, 25 anos; ela seis meses. Ricardo, ilustrador e cartunista, era casado e tinha três filhos. Mariana, que morreu com ele, a caçula.

Naquela madrugada de 1996, um lacônico telefonema anunciou: morreu Ricardo Filho, morreu Mariana. O irresponsável que avançou o semáforo vermelho e os matou fugiu, desapareceu. Enterrei filho e neta juntos - um ato contra a lei da natureza. Passados longos 15 anos, após uma luta sem trégua marcada apenas pela busca de justiça, jamais de vingança ou reparação financeira, o criminoso foi encontrado e julgado. Respondeu em liberdade à condenação de apenas um ano e nove meses. Jamais aceitei a condição de vítima. Sofri tudo o que era possível. Cheguei ao fundo do poço e voltei, sobrevivente, para seguir o meu destino.

Mas, cabe mudar a realidade que vivemos neste país. O investimento em educação precisa ser de no mínimo 10% do PIB (produto interno bruto). As leis de trânsito precisam ser mais rigorosas. As penas precisam ser maiores e realmente cumpridas. O número oficial de mortos no Brasil vítimas de acidentes de trânsito é de cerca de 40 mil por ano. Porém, sabe-se que são contabilizados apenas aqueles que morrem no local do acidente. Muitos acreditam que esse número passe dos

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50 mil mortos anuais. A irresponsabilidade dos motoristas não deve nem pode ser tratada pela lei como simples acidente, quando, na verdade, é crime.

Muitos perguntam-me o porquê de relembrar a tragédia que vitimou a nossa família. A resposta é simples: para não acontecer de novo com outras pessoas. Cabe à sociedade, em sua legítima defesa, lutar por mais educação e pelo cumprimento de procedimentos que garantam os meios de provar a culpa dos motoristas alcoolizados e dos que dirigem de maneira insana. É preciso que as penas sejam mais rigorosas e de fato cumpridas. Por você, por nós, pelo futuro do Brasil.

RICARDO VIVEIROS, 63, jornalista e escritor, é autor de 30 livros, entre os quais "O Poeta e o Passarinho" (Editora Biruta).

Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2013.

Marco Feliciano é a bola da vez (SILAS MALAFAIA)

POR QUE tanta pressão para que Marco Feliciano não continue na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados? Discordar é um direito, porém não podemos ser contra alguém em tudo só porque não gostamos dessa pessoa.

Eu mesmo tenho divergências com Feliciano, mas não permito que as diferenças se sobreponham ao meu senso de justiça e caráter. E, por trás dessa perseguição que mobilizou a opinião pública e a imprensa, sei que existe um sórdido jogo político para esconder questões sérias. Após 16 anos, o PT abriu mão da direção da CDHM e coube ao PSC definir quem seria o novo presidente. Quando os ativistas gays, o PT e os partidos de esquerda descobriram que o novo líder do colegiado seria Marco Feliciano, eles reagiram para não ter nessa comissão alguém que tem lutado contra seus ideais.

Como não conseguiram vencer no grito, deputados do PT, PSOL e de outras legendas criaram a Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos Humanos, a fim de garantir na Câmara a defesa de projetos como o casamento gay e a descriminalização do aborto. Mas existe algo mais contraditório do que "defensores dos direitos humanos" serem a favor do aborto? Tem coisa mais terrível do que tirar a vida de um bebê no ventre da mãe?

Toda essa mobilização tinha um motivo maior: desviar os holofotes do PT. Afinal, enquanto se discutia a posse de Feliciano na CDHM, dois deputados condenados pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do mensalão, João Paulo Cunha (PT-SP) e José

Genoino (PT-SP), tornaram-se membros da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, a mais importante comissão da Câmara. No currículo desses parlamentares do PT constam condenações por corrupção. Mas, a imprensa se voltou apenas para o caso do deputado que fez declarações infelizes, as quais foram consideradas homofóbicas e racistas pelos ativistas gays e parlamentares de esquerda. Feliciano, porém, não pode ser julgado por tais acusações. Ele nunca bateu ou matou um gay, e sua origem é negra. Não contente com a repercussão desse episódio, a oposição passou a patrulhar as falas de Feliciano nos púlpitos das igrejas, acreditando que a forma como manipulam a informação seja capaz de condenar o direito de opinião do cidadão brasileiro. Não demorou muito para o pastor ver mais uma vez suas palavras repercutirem na imprensa. Desta vez porque comentou que a CDHM era "dominada por Satanás".

Independentemente de concordar ou não com as declarações de Feliciano, não posso esquecer que ele foi eleito pelo povo e que tem o direito de expressar a sua opinião, sendo resguardado pelo inciso IV, do artigo 5º da Constituição Federal. Mais do que isso, a Carta Magna lhe garante o direito à liberdade religiosa (incisos VI e VIII do mesmo artigo), uma vez que ele estava no púlpito falando na qualidade de pastor e não como deputado.

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Pergunto: se a oposição pode acusar os que discordam deles de homofóbicos e racistas, por que o povo evangélico não pode chamar essa perseguição de evangelicofobia? Dentro desse Estado democrático de direito, onde a maioria é cristã, a democracia só vale para a minoria? O fato é que os ativistas gays e seus defensores não suportam o debate. Pode-se falar mal do presidente da República, do Judiciário, dos católicos, dos evangélicos, mas, se criticarmos a prática homossexual, somos rotulados de homofóbicos.

O crime de opinião já foi extinto de nosso país com o fim da ditadura militar. Mas agora querem instaurar a ditadura gay, que, além de perseguir as ideologias políticas, também combate as crenças religiosas. Diante dessas manifestações, só podemos chegar a uma conclusão: PT e Dilma Rousseff estão sinalizando que abrem mão da comunidade evangélica nas próximas eleições.

SILAS MALAFAIA, 54, psicólogo, é pastor presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, presidente do Conselho

Interdenominacional de Ministros Evangélicos do Brasil (Cimeb) e apresentador do programa Vitória em Cristo. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2013.

Os novos tiranos (ÁLVARO OPPERMANN) Estudo traça perfil da (mimada) geração de chineses nascida após política estatal de filhos únicos

Na China, eles são chamados de ―os pequenos imperadores‖. É a geração nascida após junho de 1979, quando o governo chinês instituiu a política de um filho por casal para conter a ameaça de uma iminente explosão populacional. Desde então, quem tem um segundo filho é obrigado a abortá-lo. A estratégia evitou o nascimento de cerca de 250 milhões de chineses, segundo a fundação China Development Research. E a bomba demográfica foi desativada: em 1975, 73% dos casais do país tinham mais de um filho. Em 1983, esse índice já murchara para 9% — e isso porque o governo deu uma colher de chá nas regiões rurais, permitindo um segundo filho, às vezes. Mas o controle radical de natalidade teve um preço. Segundo a opinião pública local, a nova geração de chineses é mimada, egoísta e pouco chegada ao trabalho. Em janeiro, essa impressão foi confirmada pela primeira vez por uma pesquisa científica. O estudo australiano,

publicado na revista Science, já dá uma ideia de suas conclusões no título: Pequenos Imperadores. ―O contraste entre as gerações é grande, mesmo separadas por apenas dois anos‖, disse à GALILEU Lisa Cameron, economista da Monash University (Austrália) e coautora do estudo.

A pesquisa foi feita em Pequim com 421 chineses nascidos entre 1975 e 1983 — quatro anos antes e quatro depois da medida. Usando jogos, os pesquisadores mediram o grau de altruísmo, confiança, aversão ao risco e senso de competição dos jogadores. Num teste de aritmética, por exemplo, o jogador podia realizá-lo sozinho, com premiação modesta, ou em equipe, com um prêmio gordo. Os filhos únicos geralmente preferiam a primeira alternativa. ―Descobrimos que eles raramente falaram com os pais na infância sobre solidariedade e cooperação, ao contrário das gerações anteriores‖, diz Lisa, que, a propósito, tem duas irmãs.

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ÁLVARO OPPERMANN escreve para esta publicação. Revista GALILEU, Abril de 2013.

"Pelo bem de todos, temos de lutar pelo direito à diferença" (MARGARIDA TELLES)

O deputado federal Jean Wyllys alerta: o cidadão de bem que se afasta da política abre espaço para os adversários da liberdade

A CARREIRA política voltou a dar notoriedade ao ex-BBB Jean Wyllys em 2010, depois de cinco anos de sua vitória no reality show da Rede Globo. O apelo de subcelebridade, no entanto, não foi o que assegurou sua vaga na Câmara dos Deputados – mas, sim, o prestígio do colega de PSOL, Chico Alencar. Foram os votos de Alencar que suplantaram os 0,2% dos votos válidos recebidos por Wyllys e o alçaram ao posto de deputado federal, em 2010, pelo Rio de Janeiro. Mal sabia o partido que seria este o congressista a projetar a sigla. Wyllys foi eleito o melhor deputado do pais em 2012 em votação de eleitores no site do Congresso em Foco, e tem se tornando uma antítese ideológica do Pastor Marco Feliciano (PSC-SP) nas últimas semanas no que diz respeito aos direitos dos homossexuais.. Na edição desta semana de Época, ele fala sobre a importância do ato da cantora Daniela Mercury, que assumiu um relacionamento com outra mulher.

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O deputado Jean Wyllys (Foto: LUIS-MACEDO/Câmara dos Deputados)

ÉPOCA: Como o senhor acha que a decisão de Daniela Mercury de assumir seu relacionamento homoafetivo repercute na sociedade?

Jean Wyllys: É importante questionar: que contexto levou Daniela Mercury, que é mãe e teve relacionamentos héteros, a tornar pública a sua bissexualidade? O que fez com que Fernanda Montenegro, a primeira dama do teatro, que goza de tanto prestígio, desse um beijo em outra mulher? Isso acontece porque, como sociedade, estávamos dando as liberdades individuais como favas contadas. Temos uma Constituição cidadã, promulgada em 1988, e achamos nos últimos anos que as liberdades estavam protegidas. Nesse meio tempo, os homossexuais viraram um nicho de mercado, começaram a aparecer nas novelas. No entanto, descobrimos que as nossas liberdades não são favas contadas quando o fundamentalismo religioso veio à tona, na figura de Feliciano.

ÉPOCA: O senhor esperava uma reação tão forte da sociedade civil quando Feliciano foi eleito presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara?

Wyllys: Eu fiquei feliz e surpreso, porque acho que a sociedade se deu conta da importância das liberdades. As pessoas que defendem as liberdades individuais são maioria no país, mas até porque a política não goza de prestígio público, elas se afastaram da política, estavam cuidando das suas vidas. Então, um setor conservador reacionário se apoderou da política, e decidiu trazer à tona este discurso. Aí a sociedade reagiu, e isso é muito bom. Se por um lado é constrangedor e ofensivo ver as declarações grotescas de Marcos Feliciano, por outro lado a reação e o repúdio público mostram que as pessoas se importam com nossas liberdades.

ÉPOCA: Qual é a importância do posicionamento de Daniela Mercury para o movimento gay?

Wyllys: A saída da Daniela (do armário) foi maravilhosa, não apenas para a retomada da Comissão dos Direitos Humanos, mas para a autoestima da homossexualidade. É ótimo quando uma cantora com o prestígio e o talento dela vem a público e diz que tratou todas as suas relações afetivas, homossexuais e heterossexuais, com a mesma naturalidade. Pense em gays não das grandes cidades, mas de um Brasil profundo. Isso tem um efeito psicológico que vai além de toda a política do movimento. O movimento merece todo o respeito porque abre o caminho, mas é também muito importante quando alguém como ela, o Ricky Martin, o Marco Nanini tornam pública a sua vida íntima para defender as liberdades individuais.

ÉPOCA: Algumas pessoas defendem que seria mais estratégico para o movimento LGBT tratar a situação com mais naturalidade, de forma menos combativa. Você concorda?

Wyllys: Isso é uma falácia! É a velha injunção ao silêncio. As pessoas são capazes de vir com esse discurso de que, ―olha,

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não vamos tratar das especificidades porque somos todos iguais. Pra quê fazer barulho em torno da Daniela Mercury se todo mundo é igual?‖ Isso é uma injunção à visibilidade. Existe a igualdade formal, proclamada na Constituição, que diz que somos todos iguais perante a lei, e existe a igualdade material. Para que todas as pessoas sejam tratadas de forma igual perante a lei, mesmo com suas diferenças, é preciso lutar pelo direito à diferença. Não importa se é pelos direitos dos grupos negros, das mulheres, dos povos indígenas ou da comunidade gay, todos devem lutar pela igualdade. Ao lado do direito pela igualdade, lutamos pelo direito à diferença. Tem uma frase linda de Boaventura de Souza Santos [sociólogo português] que diz: ―Nós precisamos lutar pela igualdade quando a diferença nos priva do acesso ao direito e precisamos lutar pelas diferenças quando a igualdade nos descaracteriza‖. As pessoas dizem ―pra que fazer tanto escândalo se nós somos todos iguais?‖ Mas não somos todos iguais. Se fôssemos, as prisões não estariam cheias de meninos negros, a pobreza não teria cor e gênero e os homossexuais não seriam privados de mais de 70 direitos dos heterossexuais.

MARGARIDA TELLES é Jornalista e escreve para esta publicação. Revista ÉPOCA, Abril de 2013.

Pré-sal, Petrobras e o futuro do Brasil (JOSÉ SÉRGIO GABRIELLI)

MUITO MAIS rápido do que outras experiências internacionais, o desenvolvimento da produção do pré-sal é a prova da pujança, capacidade operacional, experiência e liderança da Petrobras. Sete anos após a descoberta, já são extraídos mais de 300 mil barris/dia e ela terá sete novas unidades de produção ainda em 2013.

Até 2020, apenas nas áreas já concedidas e da cessão onerosa, serão 2,1 milhões de barris/dia - marca que já supera toda a produção nacional atual. Só para comparar, para alcançar a marca dos 300 mil barris/dia, foram necessários 17 anos na porção americana do golfo do México e nove anos no mar do Norte. Os números superlativos do pré-sal só foram possíveis graças à experiência acumulada pela Petrobras na bacia de Campos, pelo extensivo conhecimento geológico das nossas bacias sedimentares e pela sua capacidade de utilizar as mais avançadas soluções tecnológicas em situações tão difíceis como no pré-sal.

O desafio agora é desenvolver mais eficientemente a capacidade de produção, apropriar-se socialmente de seus benefícios, minimizar os impactos negativos e gerar fluxos que permitam criar mais empregos e estimular outras áreas da economia. O investimento na cadeia produtiva de serviços, materiais e equipamentos de petróleo e derivados é parte fundamental para a expansão. Aí também o tamanho da Petrobras é fator decisivo. Hoje praticamente tudo é desenvolvido no Brasil - reafirmando a indústria nacional - e não existe mais limites de tecnologia. A empresa está pronta e atuando na plenitude do que uma petrolífera pode fazer, sempre priorizando o Brasil: 98% dos investimentos e 95% da produção da companhia estão no país.

Somente a Petrobras pode apresentar um plano com a instalação de 38 plataformas de 2013 a 2020 e US$ 107 bilhões em desenvolvimento da produção. Só ela tem 69 sondas flutuantes de perfuração em operação para a construção e manutenção de seus poços. Somente a Petrobras tem ainda força de trabalho treinada e capaz de dar respostas rápidas aos desafios do pré-sal. A empresa construiu nos últimos dez anos parcerias com mais de 120 universidades e centros de pesquisa no Brasil. Sem alta tecnologia - e uma rede com milhares de especialistas espalhada por todo o país -, não seria possível produzir com tamanha eficiência.

O novo marco regulatório também dá à Petrobras um papel estratégico fundamental: será a operadora única, investindo um mínimo de 30% dos novos campos do pré-sal e ficando responsável pela formulação dos projetos, gestão de implantação, operação dos empreendimentos e proposta de soluções técnicas. Investimentos, conhecimento e capacidade produtiva que se traduzem em resultados financeiros para seus acionistas nos últimos dez anos. O valor de mercado da companhia, mesmo depois da crise global de 2008 e a queda do preço internacional do barril de petróleo, é hoje mais de dez vezes maior se comparado com 2003.

O marco regulatório também foi sábio na utilização das parcelas de lucro-óleo que o governo receberá com o modelo de partilha. Os recursos serão alocados em um fundo social que investirá em projetos nas áreas de educação, cultura, ciência e tecnologia e ambiente. As novas regras foram aprovadas pelo Congresso depois de um amplo debate na sociedade. Foi objeto de grande resistência por parte daqueles que se beneficiavam do modelo das concessões. Agora esses interesses se reaglutinam e formam a base do ataque atual à empresa.

Dizem que a Petrobras não terá condições de ser operadora única no pré-sal. Querem desacreditar a liderança da companhia em conduzir o desenvolvimento da produção e fazem um feroz ataque político à companhia e à sua gestão nos últimos dez anos. É um claro sinal de miopia e defesa do interesse de poucos. Além de negar a realidade, em uma falsa transmutação de uma empresa pujante em uma empresa em crise, colocam em segundo plano o potencial que os 30 bilhões de barris descobertos até aqui representam para nossa sociedade: a capacidade de ajudar na melhoria da vida do brasileiro, o que tanto incomoda a oposição e a coloca em alerta com a proximidade das eleições de 2014.

JOSÉ SÉRGIO GABRIELLI DE AZEVEDO, 63, ex-presidente da Petrobras (2005-2012), é secretário de Planejamento da Bahia.

Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2013.

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Cultura da negligência (MÁRCIA TIBURI)

NO FAMOSO conto ―O veredicto‖, de Franz Kafka, o pai afirma ao filho após uma briga cheia das mais estranhas acusações: ―Você está condenado à morte por afogamento‖. O filho se dirige à ponte e se atira à água, mostrando que é impossível superar a sentença paterna. O pai e a sentença são metáfora da Lei, em si mesma inescapável. Não há para onde fugir quando se é condenado à morte. A sentença kafkiana pode ser adaptada às circunstâncias históricas e sociais do Brasil atual: ―você está condenado à morte por negligência‖. O clichê de que o Brasil é o país do ―jeitinho‖ e, mais recentemente, da ―gambiarra‖ acoberta o fato infinitamente mais perturbador da ―negligência‖ elevada a Razão de Estado. A teoria da Razão de Estado se refere aos usos e abusos que governantes fazem da Lei em nome da ―segurança‖ do Estado. Ocorre que, em nosso país, a corrupção tornou-se essa espécie de lei, a maior de todas, porque todos (políticos e cidadãos comuns) se fazem soberanos para praticá-

la. No mesmo país, o Estado foi reduzido a algo como um ―prostíbulo‖, um espaço em que a lei é a da exceção, ou do ―fora-da-lei‖ legalizado.

Neste quadro geral, persiste, no entanto, a ―cultura‖ como o modo de vida que desenvolvemos e repetimos diariamente enquanto somos uma sociedade. Certamente poderíamos questionar se ainda nos autorrepresentamos como ―sociedade‖, mas não há espaço neste artigo para isso. Já quando falamos de ―país‖ não estamos meramente generalizando, mas referindo-nos às condições da cultura partilhada por todos, cuja complexidade da conta a ser paga o será por todos e cada um.

Negligência e catástrofe

É neste cenário que é preciso introduzir a triste questão da negligência como característica da cultura contemporânea brasileira. Em seu significado essencial, ser negligente significa não saber ler. Descuido e desatenção derivam de que, na origem, quem não sabe ler não poderá ler justamente a Lei que se dá a conhecer aos cidadãos sempre por escrito. Alegar desconhecimento da lei é, portanto, desconhecer que sua implacabilidade pressupõe o saber acerca de si. Diante da Lei ninguém é analfabeto.

A negligência é a forma de ser do tonto. Nova conduta autorizada a ocupar a instância simbólica da Lei. Em nível de cultura, é como se estivéssemos todos autorizados à negligência, a não saber ler. Em resumo, a fazermo-nos de bobos não entendendo como as coisas deveriam ser feitas para o bem de todos. Ao mesmo tempo, em situações de catástrofe, a cultura da negligência espera que haja punidos individualmente. Se a Razão de Estado está em cena sustentando o Estado, nada melhor que haver um único culpado em situações de catástrofe. Se lembrarmos de crimes como o assassinato de Eloá por Lindemberg, da tragédia do Realengo e, por fim, o caso do da boate Kiss de Santa Maria transformada em campo de extermínio em janeiro deste ano, veremos que os poderes instaurados em torno do Estado se esforçam por acusar um indivíduo – ele mesmo culpado, é verdade, mas não o único culpado, não a origem de todo o mal que salva o Estado – e instituições em geral, como, por exemplo, a mídia, em sua responsabilidade com a sociedade. Na cultura da negligência não há esmero em ―ler‖ melhor o livro da sociedade que ajudamos a escrever todos os dias.

Seria fácil repetir o clichê de que ―a culpa é do governo‖, mas o clichê acobertaria o fato político mais profundo dos interesses individuais da classe governamental contra o povo. O fato biopolítico de que estamos todos condenados à morte, seja por falta de políticas para a educação, a saúde, o trabalho, é mais do que evidente. Como dizia Kafka no texto da Colônia penal, não é preciso conhecer a sentença a qual se é condenado porque ela será inscrita na própria pele. O analfabetismo político é a grande boca que pronuncia essa sentença.

MÁRCIA TIBURI é filósofa, autora de livros e professora universitária. Escreve mensalmente para esta publicação.

[email protected]. Revista CULT, Abril de 2013.

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Daniela Mercury e a saúde das mulheres (CRISTIANE SEGATTO)

As lésbicas e as bissexuais são invisíveis para os médicos. Como a declaração da cantora pode melhorar a qualidade de vida dessas brasileiras

UMA ONDA de anseio por respeito cresceu no Brasil nas últimas semanas. Sete estados passaram a aceitar o casamento homoafetivo sem necessidade de autorização judicial: São Paulo, Ceará, Alagoas, Bahia, Piauí, Mato Grosso do Sul, Paraná. Se esqueci de algum, por favor me corrijam. Na quarta-feira (3), a cantora Daniela Mercury assumiu o relacionamento com a jornalista baiana Malu Verçosa, por meio de uma foto publicada no Instagram. ―Malu agora é minha esposa, minha família, minha inspiração pra cantar", escreveu.

A cantora baiana, que se separou recentemente do empresário Marco Scabia, declarou ao portal G1: "Sou apaixonada por Malu, pelo Brasil, pelas liberdades individuais. Eu acho que conquistas a gente não pode esquecer. Não podemos andar para trás, como os 'felicianos' da vida!". O pastor Marco Feliciano, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, é alvo de protestos por causa de declarações consideradas racistas e homofóbicas. Apesar de afirmar não ser racista nem homofóbico, ele pretende por fim àquilo que chama de ―ditadura gay‖ no Parlamento brasileiro. É o homem errado, no lugar errado, na hora errada. No reconhecimento dos direitos dos homossexuais é uma medida civilizatória das mais básicas. Está atrasadíssimo no Brasil, mas será cumprido mais cedo ou mais tarde. A declaração de Daniela é mais uma contribuição no combate ao preconceito, mas o alcance dela vai além. Ao sair do armário, Daniela ajuda a melhorar a saúde das brasileiras.

Somos mais que um punhado de ossos, músculos e veias programados para durar uns 80 anos se o manual de conservação for respeitado. Para que o corpo funcione segundo a programação de fábrica, a mente precisa estar bem. Se os gays (homens ou mulheres) vivem sob o stress constante provocado pelo preconceito e pela desvalorização social, problemas de saúde não tardam a aparecer. No mês passado, o periódico científico American Journal of Public Health publicou um estudo sobre os benefícios da legalização das uniões homossexuais para a saúde. Gays, lésbicas e bissexuais participaram da pesquisa da Escola de Medicina da Universidade de Nova York. Os pesquisadores concluíram que os casais que vivem em relações legalizadas (femininas ou masculinas) apresentam menos distúrbios psíquicos. Respeitar direitos faz bem à saúde do país.

Não me parece difícil compreender que o preconceito vivido dia após dia aumenta o risco de distúrbios psíquicos, como nervosismo, tensão, cansaço, tristeza. Esses distúrbios, por sua vez, contribuem para a gênese de dores de cabeça, de

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estômago e de coisa muito pior. No caso específico das lésbicas e das bissexuais (ou, como preferem os pesquisadores, das mulheres que fazem sexo com mulheres), a situação é mais complexa. Dentro de sistema de saúde, essas mulheres são invisíveis. Um estudo sobre o acesso dessa população a cuidados relativos à saúde sexual, publicado em 2009 no revista Cadernos de Saúde Pública, investigou a questão num grupo de trinta mulheres de classe média ou baixa com idade entre 18 e 45 anos. Dezoito haviam estudado até o ensino médio. Doze tinham ensino superior completo. Apenas metade das entrevistadas relatou ir ao ginecologista uma vez por ano. Das trinta mulheres, sete nunca haviam realizado um exame papanicolaou em toda a vida. Cinco foram submetidas a ele apenas uma vez.

Por que isso acontece? As lésbicas ainda têm vergonha de revelar a intimidade a um ginecologista. Muitas das que procuram atendimento médico preferem não detalhar práticas sexuais. Saem dos consultórios com recomendações de uso de pílulas anticoncepcionais ou estimuladas a exigir que o parceiro masculino use camisinha. As pacientes que preferem a transparência muitas vezes não se sentem acolhidas pelos profissionais de saúde. Em 2011, o Ministério da Saúde instituiu no SUS a chamada Política Nacional de Saúde Integral LGBT. A iniciativa é louvável. A prática deixa a desejar. Apesar de algumas unidades de saúde do SUS usarem formulários para facilitar a abordagem de lésbicas e bissexuais, essa ainda não é regra na saúde pública. Menos ainda nos consultórios privados. As mulheres não falam. Os profissionais não perguntam.

O resultado desse pacto de silêncio é a deterioração da saúde. Um mito que precisa cair é o de que mulheres que se relacionam com outras mulheres não pegam DST. O HPV, a sífilis e, muito raramente, o HIV podem ser transmitidos na relação sexual entre mulheres. A secreção vaginal e o sangue são veículos da transmissão. Por isso, é importante usar preservativo quando o casal for compartilhar ―brinquedinhos‖ ou qualquer outro objeto para penetração. Ao mesmo tempo, não se deve descuidar da prevenção do câncer de mama. Nunca é demais lembrar que o risco de ter a doença é maior entre as mulheres que nunca engravidaram nem amamentaram. Desde a publicação do estudo, em 2009, a atenção à saúde das mulheres lésbicas ou bissexuais pouco se alterou no Brasil. Essa é a percepção de Regina Facchini, uma das autoras do trabalho e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp.

―A partir das eleições de 2010, cresceu a interferência do discurso político conservador no campo dos costumes‖, disse Regina à coluna. ―Houve uma diluição do debate sobre a saúde dessas mulheres, pelo menos no âmbito federal‖ Segundo ela, a mudança necessária tende a ser lenta. ―Trata-se de reconhecer que a sexualidade de todas as mulheres vai além da questão reprodutiva e pode ser diversificada‖, diz. Está mais do que na hora de os profissionais se mostrarem francamente abertos - e demonstrarem isso durante as consultas de rotina. Ainda hoje muitas mulheres (hetero ou homossexuais) têm

dificuldade de falar sobre sexualidade. Para muitas, o tabu não caiu. Ainda mais se algo na sexualidade é percebido por ela mesma como um desvio passível de reprovação social.

Se a função dos médicos e demais profissionais de saúde é melhorar a qualidade de vida das pessoas, o melhor que podem fazer ao atender essas mulheres é quebrar o ciclo de silêncio, medo e desconhecimento. Desde os anos 1970, as associações científicas internacionais e brasileiras reconhecem que a homossexualidade é uma simples variação da sexualidade humana. Não é uma patologia, como se acreditava no século XIX e início do século XX. Mulheres que fazem sexo com outras mulheres são mulheres como quaisquer outras. Elas podem ou não se reconhecer como lésbicas. Podem ou não ter práticas que envolvem penetração. Podem ou não ter sexo com homens. Podem ou não ter informações suficientes para cuidar da saúde. A única coisa que pode torná-las mais vulneráveis (no que diz respeito à saúde física ou mental) é o preconceito e o estigma.

Por tudo isso, Daniela merece aplausos. ―Cada mulher que tem uma imagem pública e que apresenta outra mulher do mesmo jeito que faria com um namorado do sexo oposto ajuda outras mulheres que têm relações homossexuais a encarar seus desejos e afetos com mais naturalidade‖, diz Regina. A falta de apoio dos profissionais de saúde para falar sobre orientação sexual produz nessas mulheres exclusão e violência simbólica, apesar dos programas governamentais preconizarem o contrário. Essa é a conclusão de um estudo publicado em 2011 por Rita de Cássia Valadão e Romeu Gomes

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na Revista de Saúde Coletiva. No cenário de 2013 há razão para otimismo, acredita Rita. ―Estamos avançando, ainda que lentamente. Ao sair do armário, uma pessoa famosa e querida como Daniela traz uma visibilidade positiva para as lésbicas e mulheres bissexuais‖, diz Rita, assistente social do Instituto Fernandes Figueira, da Fiocruz, no Rio.

Para isso, a formação profissional em saúde precisa melhorar. ―Muitas vezes, essa questão é evitada nos cursos de formação ou subliminarmente vista como desvio‖, diz Romeu Gomes, pesquisador da Fiocruz. ―A assistência prestada não pode se reduzir à doença. É preciso abranger as pessoas (homo, hetero ou bissexuais) e suas vivências sexuais em sua totalidade.‖ Celebridades não devem estimular preconceitos ou colaborar para agravar situações políticas, sociais e individuais de vulnerabilidade. O reflexo dessas atitudes no campo da saúde é notável. ―A epidemia de aids deveria ter nos ensinado uma lição: os preconceitos e os estigmas são determinantes sociais da saúde, para o bem e para o mal‖, diz Regina, da Unicamp. ―Atitudes como a de Daniela levam em conta a responsabilidade social no uso da imagem e do acesso ao público.‖ Saber com quem Daniela se deita é um assunto que extrapola os limites dos espaços tradicionalmente reservados às fofocas sobre a vida das celebridades. Daniela desperta uma discussão maior e presta um serviço ao país. Assim como fez Xuxa, em maio do ano passado, ao revelar ter sofrido abuso sexual na infância. Daniela e Xuxa nada tinham a ganhar com as declarações que fizeram. A não ser, mais do mesmo: linchamento moral por parte de alguns. Respeito e admiração por parte de outros.

Estou com o segundo grupo. Acredito que atitudes como a delas trarão avanços em várias esferas e, sobretudo, no campo da saúde. Será um ganho real e possivelmente mensurável daqui a alguns anos. A quem interessar possa, não sou lésbica. Sou casada com um homem e tenho uma filha. Sonho com o dia em que essa informação seja importante para o acompanhamento médico, mas irrelevante para a atribuição do valor de quem quer que seja.

CRISTIANE SEGATTO Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 17 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais e internacionais de jornalismo. Email: [email protected]. Revista ÉPOCA, Abril de 2013.

DIRETO DE SALVADOR

Racismo (SÍLVIO HUMBERTO DOS PASSOS CUNHA)

Vereador de Salvador faz tréplica sobre livro considerado racista

O POSICIONAMENTO político, ético e pedagógico de professoras e professores da Rede Municipal de Educação de Salvador, ao recusar a adoção do material do Programa AlfA e Beto, trouxe novamente à tona um importante debate para a sociedade brasileira, que é a questão da representação social da população negra, o combate ao racismo e a outras formas de discriminação. Tenho participado desse debate social ao longo dos últimos 30 anos, como militante do movimento negro, educador e um dos fundadores do Instituto Cultural Steve Biko, referencia educacional no acesso de afrodescendentes ao ensino superior e prêmio nacional de direitos humanos em 1998, e acompanhado a mobilização dos coletivos de educadores de Salvador como presidente da Comissão de Educação da Câmara Municipal, por reconhecer a centralidade das questões que motivam esse conjunto de educadores, tanto para a educação pública de qualidade para as crianças e jovens, atualmente nas escolas, quanto para a consolidação de uma sociedade democrática, onde todos possam exercer de forma plena seus direitos e deveres.

Críticas

As críticas ao material que integra o Programa Alfa e Beto, que inclui um texto do livro ―As bonecas de Fernanda‖, de Alexandre Azevedo, não se restringe a uma análise parcial,

descontextualizada ou descomprometida da pauta da educação local. Estão embasadas nos argumentos elencados pelas professoras/es, pedagogas/os, mestras/es e doutoras/es, que amparados em seus estudos, em suas vivências práticas de formação, no conhecimento das realidades concretas de vida dos estudantes e de suas famílias, bem como, na realidade das escolas da rede pública municipal.

Defendo que as ações públicas que visem a melhoria da prática docente, em quaisquer dos níveis de educação formal, devem levar em consideração o reconhecimento das competências pedagógicas e metodológicas das/os professores que

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vivem o ―chão das escolas‖, pois, são capazes de construir uma metodologia eficiente, capaz de educar uma criança, superando as barreiras impostas pelo sistema.

Avanços pela Igualdade

A sociedade brasileira tem avançado em seus esforços em prol da igualdade, e um dos principais avanços se deveu ao reconhecimento da existência do racismo. O que tornou necessário um conjunto de políticas públicas que visam o seu enfrentamento. A inclusão das pautas da Educação das Relações étnico-raciais, da implantação da lei federal 10.639/03 e 11.645/08, em suas múltiplas experiências pelo país, tem sido um sinalizador positivo para a mudança das práticas discriminatórias ainda existentes nas escolas.

Não me deterei em discutir ponto a ponto os argumentos apresentados pelo autor do texto ―As bonecas de Fernanda‖, pois vários deles além de acintosos são também infundados e de nada servem à causa da igualdade que é tão cara à sociedade brasileira, pois o nosso debate não se trata de posicionamentos pessoais relativos à crenças também pessoais, e sim, de um posicionamento político e comprometido diante da política pública de educação, tarefa da qual não posso prescindir, pela responsabilidade do lugar que me foi confiado.

Vivências

As/os educadoras/os que rejeitam o Programa Alfa e Beto, e consequentemente, recusam-se a trabalhar com o texto ―As bonecas de Fernanda‖ têm consciência que a interpretação de textos e a apropriação das mensagens neles contidas é algo subjetivo, e está diretamente associado às experiências e vivências individuais. Portanto, o entendimento que cada criança, cada jovem terá das referências ao bom, ao belo, ao valoroso, ao positivo, estará diretamente associado às suas percepções e experiências pessoais, de valorização ou negação, no imaginário infantil fértil, e muitas vezes, negativamente marcado. Se a boneca bonita é a branca e de olhos azuis, qual a referência positiva gerada na criança que nunca viu uma boneca negra, de olhos escuros e cabelos crespos, sua semelhança, ser também considerada a bonita?

A discriminação do negro e do índio no livro didático foi enfaticamente denunciada, e precisa ser enfrentada, não se admitindo que ainda sejam usados textos, posições e/ou práticas com qualquer possibilidade de representação negativa ou de agressão à autoestima desses povos. E aqui falamos do racismo, da naturalização da supremacia branca, o que gera o fato de que algumas pessoas tenham dificuldade de identificar os problemas contidos no material do programa Alfa e Beto. Essa naturalização manifesta no campo da estética, ―cega‖ tanto escritores como leitores, conduz à exclusão da diversidade e assim, da riqueza das diferenças.

Pacote Pronto

Qualificar os milhares de professores da Rede Municipal de Educação de Salvador, que se recusam a utilizar o material do Alfa e Beto como despreparados é um profundo desrespeito com a formação desses profissionais. A falta de diálogo entre a Secretaria Municipal de Educação e os professores no processo de escolha da metodologia proposta pelo Instituto Alfa e Beto é o maior responsável pela referida incompatibilidade. Daí o atributo de ―pacote pronto‖. A democracia e a participação não devem ser meras alegorias no processo educativo, elas são inerentes à construção de metodologias pedagógicas eficientes, uma vez que ao se respeitar o conhecimento dos professores e estudantes que estão na linha de frente da educação, evita-se gastos com a implantação de projetos educacionais inadequados.

Em 4 de março de 2013, a professora de prenome Regina, declarou o que pensa sobre o material no site da revista ―Caros Amigos‖: ―O texto pode parecer inocente - e talvez a intenção de seu autor não tenha sido discriminatória, mas quem está numa sala de aula com 99% de crianças extremamente pobres e negras, sabe que este texto provoca sensação de inferioridade em várias crianças. O estereótipo da boneca "feia" casa totalmente com o pobre: em várias passagens, as crianças se identificam com a boneca feia - ela não tem nada ("não tem corda", "tem pouco cabelo")!!! É o estereótipo do pobre em pessoa! Por que a boneca loira é a bonita?? Estas coisas reforçam o sentimento de inferioridade de nossos alunos. Estou em sala de aula e sei bem do que estou falando! Dentro da realidade escolar, vemos as crianças se dizerem feias, porque são "pretas"... Ou criticarem-se mutuamente por conta de sua condição social. Não sei como é o livro original de Alexandre Azevedo na íntegra, mas o texto que está no programa o qual tive acesso porque sou educadora da rede municipal de Salvador, afirmo, sim, que existem fortes estereótipos ali‖.

Arrogância Racista

Um elemento interessante a ser discutido é a arrogância gerada pelo racismo que nega aos vitimados a capacidade de discernimento, ou seja, se de fato sabem como identificar práticas discriminatórias. Não satisfeitos buscam desqualificar a denúncia como fruto de algum recalque na infância ou adolescência da vítima. ―Vocês enxergam racismo em tudo, vocês são complexados‖. Vale lembrar que face à complexidade do racismo e suas manifestações, ele está presente nos detalhes do cotidiano, sem tréguas, prescindindo do próprio conceito de raça, como ainda pensam alguns incautos. O racismo é mais do que manifestações preconceituosas de comportamento no âmbito das relações privadas, ele estrutura as relações de poder em nosso país. É contra isso que nos levantamos diariamente, sem recalques, complexos ou rancores, pois somos cônscios de quanto tem custado ao Brasil o desperdício de vidas, talentos, tempo e recursos, voltados para a manutenção

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dos privilégios raciais herdados da Casa Grande. Portanto, defendemos o avanço, o desapego às idiossincrasias pessoais, e ruptura com a zona de conforto gerada pelos privilégios raciais. Transformar, assim, a indignação arrogante, muitas vezes traduzida no questionamento ―ora, como podem me acusar de racismo?‖, em algo eficientemente pedagógico, sugiro começar com a leitura das obras de Petronilha Silva, Eliane Cavalleiro, Ana Célia Silva, Kabengele Munanga, dentre outros relevantes intelectuais.

Crianças Repetidoras

A nossa crítica, ao conjunto de materiais do Programa Alfa e Beto, é justamente porque eles formam crianças repetidoras, sem o desenvolvimento da capacidade de analisar o que está sendo explicado. Uma criança que reconhece palavras, mas não compreende o significado delas não pode ser considerada alfabetizada, muito menos, educada, junta-se em coro com as manifestações das/os professores/as de Salvador, e às críticas de educadores de outras cidades de Sergipe, no Rio de Janeiro, em São Gonçalo e Porto Alegre, que apresentaram ações junto ao Ministério Público desses estados demonstrando posição construtiva em um debate democrático e plausível na busca pela promoção da igualdade entre os povos.

Como bem disse a professora Maria Aparecida Bento, ―a escola é também o primeiro espaço de tensão racial. É onde a criança vai passar por suas primeiras experiências de decepção e de discriminação‖, todos os seres humanos têm as suas preferências e isso deve ser respeitado. Provocar a empatia natural é impossível, mas temos a obrigação de praticar o convívio respeitoso entre as diferenças.

Diálogo e Diversidade

Que bom que, diferentemente de Monteiro Lobato, que nada poderá fazer a respeito da revisão da sua obra, o autor, Alexandre Azevedo, está vivo e poderá dialogar, reconhecendo a igualdade presente na diversidade brasileira, atualizando assim, o seu discurso e posicionamento. Parafraseando o grande educador Paulo Freire, ―o professor não é aquele que ensina, mas o que possui uma enorme capacidade de aprender‖. Caminhemos assim, em prol da diversidade brasileira, aproveitando a ação ―oguniana‖ dos que lutaram e propuseram a Lei 10.639/03, que trata do ensino da história da África e afrodescendentes nas escolas, para conclamarmos as/os escritores para produzir livros que respeitem a diversidade a ponto, por exemplo, de tornar mais frequente o uso de bonecas negras e indígenas em contos destinados às crianças brasileiras, as quais, infelizmente, se acostumaram a não ter as suas diversas belezas retratadas nos livros e na mídia.

SÍLVIO HUMBERTO DOS PASSOS CUNHA é vereador pelo PSB em Salvador, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana, doutor em Economia pela Unicamp, conselheiro Estadual de Educação do Estado da Bahia e presidente da Comissão de Educação da Câmara Municipal de Salvador. Revista CAROS AMIGOS, Abril de 2013.