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    Alngu

    a

    outra

    LucianaStegagnoPicchio

    Umafotobiografia

    or Alessandra Mauro

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    A lngua outra

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    A lngua outrauma fotobiografia

    por Alessandra Mauro

    comuma bibliografia temtica portuguesa e brasileira

    por Guia Boni

    Luciana Stegagno Picchio

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    Na capaA primeira vez em Portugal.

    Lisboa, Abril de 1956

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    ndice

    Introduo, Jorge Couto 7

    Luciana Stegagno Picchio A magia do conhecimento ou o conhecimento da magia,

    Maria Armandina Maia 9

    Antes de comear, Alessandra Mauro 11

    1. Em forma de biografia 13

    2. As origens. Alessandria della Paglia 16

    3. No princpio era a famlia 20

    4. Primeira mudana de cenrio: de Alessandria a Roma, em tempos de guerra 255. A vida colora-se de Portugal 28

    6. A famlia cresce 30

    7. A primeira vez em Portugal 32

    8. Portugueses de Portugal 34

    9. Portugal dos anos cinzentos e as primeiras tradues 36

    10. Coimbra e a amizade com Miguel Torga 39

    11. Segunda mudana de cenrio. Da Embaixada portuguesa Enciclopedia dello Spettacolo 40

    12. Acontece tudo ao mesmo tempo 42

    13. Sinais do Novo Mundo 43

    14. O Congresso da Bahia de 1959 45

    15. A primeira vez no Brasil 48

    16. Roma. Os anos de Murilo Mendes 50

    17. Novo cenrio: a Universidade de Pisa 55

    18. Amizades pisanas 57

    19. Os estudos sobre o teatro e a Histria do teatro portugus 59

    20. Intermezzo politico-trovadoresco 62

    21. Estudos medievistas e de lrica galego-portuguesa 64

    22. A experincia central. Roman Jakobson e o estruturalismo 67

    23. Fernando Pessoa na nossa vida 70

    24. Quaderni Portoghesi 73

    25. Califrnia. Terra de Lotfagos e de Jorge de Sena 7626. Os dias dos cravos 80

    27. O Brasil em primeiro plano 82

    28. Jorge Amado 84

    29. Casas, casa 86

    30. Mar aberto. Lus de Albuquerque e a literatura de viagens 89

    31. Livros e mais livros 91

    32. E os outros? 93

    33. Um Nobel para Portugal 95

    34. Africa lusfona 97

    35. Os verdadeiros protagonistas: os alunos 98

    36. Tantas ptrias, uma ptria 100

    37. Em forma de concluso 103

    Uma bibliografia temtica portuguesa e brasileira 107

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    Portugal o meu trabalho, o meu quotidiano, terra de escolha e lngua detodos os dias. Faz parte da minha aco no mundo. Muitas coisas ataprendi em portugus, afirmou um dia Luciana Stegagno Picchio.Esta sntese permite formular uma ideia aproximada do empenho e dedi-cao desta figura emblemtica da Lusitanstica que efectivamente adoptouas Culturas em Lngua Portuguesa como uma segunda ptria.

    A personalidade que o Instituto Cames homenageia uma lusitanista derenome internacional cuja obra, para alm de ter contribudo para consa-grar a literatura e a cultura portuguesas em Itlia, entrelaou Portugal, oBrasil e os PALOP, divulgando amplamente os contributos inovadores doscriadores literrios lusfonos atravs dos seus estudos crticos, que se distin-guem pelo rigor e erudio.

    A demonstr-lo esto os quase quinhentos ttulos que constituem a suabibliografia, mas tambm os mltiplos encontros que promoveu entre inte-lectuais de toda a parte com a finalidade de difundir as literaturas emLngua Portuguesa, iniciativas que lhe granjearam admirao e respeito emtrs continentes.Um trao que cumpre assinalar na sua biografia o importante papel queLuciana Stegagno Picchio desempenhou como cidad cuja postura perantea causa da liberdade pode considerar-se exemplar, pelas ligaes que esta-beleceu e manteve com as mais relevantes personalidades que em todo omundo lutaram pela liberdade e pela democracia.Figura de relevo e mrito internacionais, Luciana Stegagno Picchio dedicoua quase totalidade do seu trabalho lectivo, de investigao, edio,traduo e difuso cultural causa lusfona. Esta a protagonista dahomenagem do Instituto Cames que, deste modo, expressa o seu reconhe-cimento a uma personalidade que pioneiramente muito contribuiu paradesenvolver o conceito multicultural como elemento fundamental dacultura contempornea.

    Jorge CoutoPresidente do Instituto Cames

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    Em louvor de Luciana Stegagno Picchio

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    Tem uma voz de veludo, que acaricia as palavras quandas fala. Nas activi-dades solenes, afasta com naturalidade as cortinas dos grandes sales,olha em volta com ar desprendido, desarruma os protocolos e comea afalar, como se estivesse em casa, com amigos volta da mesa.De resto, a casa onde mora um testemunho vivo da cordialidade, nuncada condescendncia, com que deu cama, mesa e roupa lavada a muitos dos

    nomes que hoje enchem pginas de jornais. A sua escolha de vida foi clarae precoce: descobrir talentos, traduzi-los, estud-los nas universidades,promov-los nos seus artigos de jornal, falar deles a toda a gente e em todaa parte, como um imperativo tico. Entre os que conheceram a fama e osoutros, de quem no se fala, fechados num silncio imerecido, Luciana nodeixa vislumbrar uma orla, mnima que seja, de distino. Segue-os reli-giosamente, escreve prefcios, discursa para plateias a abarrotar ou parapequenssimos grupos, como uma adolescente em defesa de uma causa

    justa. Todos estes nomes moram com ela na casa onde vive, uma imensatapearia que se desdobra entre as estantes e o que resta das paredes,cobertas por gente que ali desaguou como numa foz.Espanto aquilo que nos liberta de tudo o que sabemos, quando encon-tramos uma coisa nova, escrevinhei um dia num canto da minha agenda.Luciana Stegagno Picchio representa exactamente esta formidvel energiade se espantar com o que v mas, e sobretudo, de ter feito disso uma pol-tica de vida.

    As suas comunicaes ou discursos tm sempre um ar solto, como se falassede cor. De vez em quando, muitas vezes, troca-lhe o ttulo em cima da hora,como se uma brisa tivesse chegado de repente e ela acorresse submissa aoseu apelo. Muda ento o texto todo, inventando um novo, como se estivesseescrito na folha de papel. E est mesmo, porque Luciana Stegagno Picchiofala mansamente de uma paixo antiga que tem por coordenadas os pontoscardeais e uma rota universal que se delineia em torno da cincia do

    humano.Foi alis esta simbiose que lhe permitiu entrelaar o lugar eterno, quasedivino, da arqueologia dos textos, com a procura insacivel de novas fontesdo saber, numa estratgia de bifurcao que lhe permitiu seguir duas rotasque raramente se cruzam neste nosso reino. Entre o efmero e o eterno,Luciana Stegagno Picchio tentou projectar at ao futuro, uma memria sema qual nada se constri e nada acontece entre os homens. Nem mesmo opresente, que aparentemente temos nas mos.Ser eu e portanto ser outro, do mesmo modo que a margem s se configuraem volta de um espao. Esta , a meu ver, a razo deste caso parte queLuciana Stegagno Picchio ocupa entre ns. Um ns, convm no esquecer,que corresponde a um territrio transcontinental, onde Luciana semeouamigos com a serenidade dos encontros inevitveis.

    A Itlia, onde vivi dez anos inarrveis com mestres que no vou aquimencionar, dado que o despudorado tom elogioso deste testemunho s se

    Luciana Stegagno PicchioA magia do conhecimentoou o conhecimento da magia

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    pode fazer no singular, foi para mim um destes encontros. Sa de l com umremorso inexplicvel, por no poder ser as duas coisas, por ter que escolherentre duas margens de mim, por no poder continuar a dividir-me entre obero e uma segunda ptria.

    Luciana, que to bem soube incarnar a figura de herona, neste espaoonde eu no pude ou no soube ser melhor, obrigada pelo exemplo.Maria Armandina Maia

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    Antes de comear

    Conheo Luciana Stegagno Picchio h muitos anos, desde os meus temposde Universidade e, apesar de ter passado muito tempo, o contacto entre nsmanteve-se slido ao longo dos anos, encontrando sempre novas formas,novos terrenos de confronto, novos entusiasmos.Penso que a nossa amizade uma das coisas mais belas que tenho e queconsegui construir ao longo do tempo e sempre um enorme privilgio

    para mim poder passar, nem que seja apenas alguns minutos, na sua compa-nhia e redescobrir um ar familiar entre os seus livros, na sua casa, reco-nhecer um cdigo de comunicao que nos pertence e que se alimenta derecordaes e de descobertas.

    A Luciana esteve sempre comigo nos momentos e decises no apenas deestudo, mas tambm em geral de vida. Como uma amiga mais experiente doque eu, s vezes mais sensata, soube sempre ouvir-me e apoiar-me. Foi porisso que, quando chegou a proposta de trabalhar com ela neste livro, apro-

    veitei logo a ocasio como a possibilidade ideal para fechar o crculo epara dar, desta vez eu com a minha experincia de anos de actividade edito-rial e fotogrfica, um contributo nossa amizade.Mas a tarefa no foi muito simples. Tratava-se de a convencer a falar de si,a compendiar a sua vida riqussima em poucas pginas cheias de fotogra-fias suas, dos seus familiares, das suas viagens. Tratava-se de compor ummosaico representativo para dar a ideia da variedade de encontros e depensamentos, equilibrando os acontecimentos externos com os familiares econservando, ao mesmo tempo, distncia, pudores e afectos.O material era enorme recordaes, curiosidades, cartas, fotografias, docu-mentos vrios e quando o tentava ordenar, descobria sempre alguma coisade que infelizmente nos tnhamos esquecido, e quando nos parecia ter dadouma forma plausvel e significativa aos tasselos coloridos, um novoelemento, at ento descurado, aparecia sabe-se l donde a fazer malograr,em pouco tempo, todo o trabalho que tinha feito, para nos obrigar a reco-

    mear tudo outra vez do princpio.Decidimos, portanto, criar um texto, um conto em forma de entrevista quefosse o fio condutor das recordaes, o eixo volta do qual ordenar estasbenditas tesselas do mosaico que no queriam de forma nenhuma ficar noseu lugar. E assim falmos enchendo horas e horas de fita magntica. Amaior parte das nossas gravaes, como muitas vezes acontece nestes casos,foram deitadas fora mas, apesar do texto final ser bastante mais trabalhadoe elaborado em relao nossa primitiva, espontnea e rudimentar entre-

    vista, aquelas horas passadas juntas, em frente do gravador a fazer afluir asrecordaes, foram, de qualquer modo, indispensveis para imprimir aonosso guia o carcter prprio da conversao feita de momentos intensos,de presenas por vezes obsessivas e de irremediveis esquecimentos.Um dilogo um momento privilegiado de contacto que toma forma naunicidade e no carcter incompleto do momento em que acontece: os empe-nhos precedentes, a pausa procurada, o lugar de encontro, o rudo externo,

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    so tudo factores que contribuem para lhe dar forma prpria e nica.Escolhe-se, naquele momento, mesmo casualmente, dizer uma coisa em vezde outra e o discurso vai numa direco. assim tambm este texto que,embora muito elaborado por Luciana, manteve a sua estrutura, com a suafrescura e as suas omisses por vezes imperdoveis. Aos que no se encon-trarem nas pginas que se seguem vo as minhas desculpas e o meu pedidopara serem compreensivos. Reconstrui o percurso dum conto, um dos muitoscontos possveis, com as suas personagens, com os seus cenrios, com assuas pausas e, obviamente, com as suas omisses, ai de mim, quase obriga-trias.Depois de construdo o texto voltei s imagens e escolhi-as, cataloguei-as,ordenei-as como ilustraes do texto e no vice-versa. Durante muitos diasmergulhei em gavetas transbordantes de fotografias de todo o tipo, lbunsde famlia, atestados e diplomas, textos cientficos, reunies de amigos,congressos internacionais. Tambm aqui as excluses foram tantas e dolo-rosas. Tinha que se escolher novamente e privilegiar alguns episdios em

    vez de outros, certas fotografias as melhores ou, em alguns casos, as maisrepresentativas. Tratava-se de seleccionar de novo as recordaes. Tarefano indiferente sobretudo para mim que, para poder terminar o trabalho,assumi o difcil papel de trazer sempre para um plano de realidade cadamergulho no passado da Luciana, cada emoo sobre uma fotografia, umrosto, uma situao cara que voltava novamente ao presente. Eu era ocensor sempre pronto a sacrificar sobre o altar da realidade de um objecto--livro a compor, com um nmero finito de pginas e uma quantidade limi-tada de imagens, as intermitncias do corao que, justamente, ela viviadurante a elaborao do nosso livro.Mas foram funes e papis necessrios, violncias a que me submeti muitas

    vezes contra a minha vontade tal era o desejo de ir atrs dela e, comonaqueles filmes americanos feitos de flashback, reconstruir com ela ashistrias de uma vida.Por fim o livro nasceu, est aqui. Testemunha bem, creio, o percurso deLuciana Stegagno Picchio e as fases da sua vida. Restitui a sua frescura, oseu sorriso sempre bonito, o seu olhar curioso. A sua incrvel capacidade deestar atenta e de participar nos testemunhos do passado mas tambm no quese est a viver hoje e naquilo que ser o nosso futuro. Esta sua vontade deno parar, de ir em frente, de fazer-se surpreender e de querer fazer-sesurpreender, uma filosofia de vida e um patrimnio nico e foi isto queaprendi durante estes meses.O tempo teve um efeito estranho em Luciana. Certamente passou e deixou-

    -lhe marcas, por vezes at muito profundas, mas no lhe apagou o entu-siasmo. Quanto muito deu-lhe um pouco mais de sabedoria, certamente noboa para enunciar mximas lapidrias mas perfeita para construir umapiada, para criar um dito divertido e descontrado com que enfrentar a vidacom o corao ligeiro mas consciente e vigilante. A Luciana assim, quema conhece sabe-o. Motivadora pelo seu entusiasmo, ligeira e profunda comos ela o sabe ser.Este livro foi uma belssima experincia que voltarei novamente a fazer, deolhos fechados, hoje mesmo. Construir um projecto ntimo e pessoal comoa sua fotobiografia, v-lo crescer dia aps dia, permitiu reforar a nossaamizade com novas cumplicidades e novas ligaes. Foram dias de trabalho

    intenso mas dias incrivelmente belos. Por fim, as suas recordaestornaram-se um pouco minhas e tambm elas me so queridas tal como o, e o ser sempre, a Luciana.

    Alessandra Mauro

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    A. M.Segundo as intenes dos amigos por-tugueses de quem partiu a iniciativadesta entrevista, do nosso dilogo de-veria resultar uma espcie de biografia.Tu tens dedicado uma grande parte datua vida lngua e, em geral, culturados pases de lngua portuguesa. Masser possvel reconstruir um itinerrio

    cultural prescindindo totalmente docontexto, da vida em que aquele per-curso foi efectuado? E at que pontoests disposta a colaborar? Vais aceitartambm perguntas sobre a vida privada,ou pensas que, por um lado, temos quenos movimentar no plano das ideias e,por outro, limitar-nos ao plano pblico,rigorosamente acadmico?

    Em forma de biografia

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    Retrato por Benedetto de Scarpis, Roma, 1984

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    L.S.P.

    No sei e penso que devers ser tu,maieuticamente, psicanaliticamente,a levar o discurso para onde te pare-cer mais oportuno. evidente que euno me considero uma personagemuniversalmente to interessante aoponto de ser apresentada sob todos osseus aspectos, vista desde a infnciapela objectiva do fotgrafo da aldeia.Penso que aquilo que aqui se pretende, pelo contrrio, indagar, reconstruir

    um percurso, mais do que uma car-reira, percurso esse que me levou a fa-zer algumas viagens, a escrever al-

    guns livros e a manifestar publica-

    mente algumas opinies, sempre re-lativas ao campo limitado da minhaexperincia, que essencialmente ade uma italiana, estudiosa de cultu-ras de lngua ou, se preferimos, de ex-presso portuguesa. Uma vida emportugus. Numa lngua outra.Quanto ao resto, no sei se interessaaos outros saber o que eu penso hojeda vida e da morte. Tanto mais quenem eu prpria o sei. Invejo aqueles

    que conseguem olhar para a sua vidacomo para um tudo acabado e fazerdela um juzo claro. Perturbam-me

    tanto o confesso que vivi, de Ne-ruda, quanto a vida a cinco porcento, de Montale.Claro que, se formos ao Registo Civil,

    tambm eu me vejo na lista de espera.E contudo, no consigo parar e olharpara trs. Muito menos decidir serealmente vivi, isto , se saturei todasas possibilidades que a vida me ofe-receu, ou se, por relutncia ou cobar-dia, utilizei s cinco por cento. Seique, sempre, a cada momento, mesmoagora, e sinto o absurdo e talvez o c-mico da confisso, recusei e recusoconsiderar definitiva a experincia vi-

    vida e me preparei e preparo para oamanh, convencida de poder fazerainda mais e melhor. Por isso, nuncadei muita importncia s coisas fei-tas, obras e aces. Parecia um actode modstia e talvez fosse uma ma-nifestao de inconfessvel orgulho.Como se eu pensasse ter maior valordo que realmente demonstrei at hoje,ou do que dizia ter realizado nos in-tervalos, depois de ter perdido todosos blocos de tempo. Ou talvez a ex-plicao seja outra. Um dia, umamigo psicanalista, ao ver-me viver etrabalhar afanosamente, sem nuncaacabar uma tarefa, fosse ela um livro,ou uma montanha de pratos, ao cons-tatar que, durante meses, eu tinhaconstrudo meticulosamente, pginapor pgina e nota por nota, um livroe me apressava repentinamente, nas

    ltimas linhas, a conclu-lo, ao repa-rar que eu tinha lavado muito bem to-dos os pratos deixando por fim, nolava-loias um ltimo tachinho sujo,diagnosticou: tens medo da morte.No sou particularmente religiosa,embora sinta, mais do que saiba, quetambm no sou totalmente laica,como era o meu marido, que, perfei-tamente lcido, pouco antes de mor-rer, me dizia: s questo de energia,

    entre a vida e a morte existe a mesmadiferena que entre uma lmpadaacesa e uma apagada, tm o mesmo

    Roma, 1948

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    peso. No ouso quase pensar no quepossa ser essa energia, mas no acre-dito suficientemente numa qualquersobrevivncia para a temer. Tenho

    medo de morrer? Talvez, como todos,tenha medo de sofrer. Na morte em si,no penso. Ou antes, talvez pensesempre nela, mas com alegria, comonuma meta capaz de reduzir s justaspropores tudo aquilo que todos osdias nos angustia, capaz de dissolver,com suavidade, todos os complexosde culpa com que adormecemos todasas noites. Penso na morte como numaabsolvio. Ainda ontem, ao assinar

    um improvvel contrato editorial alongo prazo, sorria comigo mesma,pensando: se entretanto eu morrer,

    vo ficar a ver navios.

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    Roma, 1957Roma, 1970

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    A.M. Nesta nossa Itlia europeia,est-se a voltar, e vmo-lo todos osdias, a uma certa forma de regiona-lismo, at mesmo de bairrismo. A par-tir da palavra negritude de Senghor,foi cunhado, por exemplo, um termo

    como sicilitude. O facto de teres nas-cido no Piemonte, de famlia pie-montesa, e de teres vivido no Pie-monte os teus primeiros anos, emboramuito cedo te tenhas transferido paraRoma, onde se desenrolou pratica-mente toda a tua vida, faz com quete consideres ainda piemontesa? Querecordaes, o que ficou da tua in-fncia e da primeira mocidade? Deque te lembras em modo particular?Como foram os teus primeiros anos deformao e quanto podem ter in-fluenciado a tua vida?

    L.S.P. Da minha infncia no me fi-cou muito. S algunsflashes, no seise em preto e branco ou se a cores.O resto so lembranas, s quais osanos foram dando corpo, acrescen-tando aqui e ali um pormenor, um

    rosto, uma data, um detalhe de rua:e, depois, sobretudo, sons, cantile-nas, vozes, sempre em dialecto, um

    vernculo que hoje j ningum falae que como a msica de fundo da-queles anos. Parla c'm t mangi,Fala como comes, U l riv Gaioudco la so vaca, Chegou Gagliaudo,com a sua vaca, Pelissier pi-m elnmer, Pelissier, anota o nmero,dizamos depois de alguma traqui-

    nice. E Pelissier era o guarda l dobairro, o nico e, ainda por cima,andava a p, e ns, crianas, volte-

    As origens.

    Alessandria della Paglia

    2

    O Imperador Frederico Barba-Ruivaque no conseguiu derrotar Alessandria

    Municpio de Alessandria ainda com a esttua de Urbano Rattazzi (Coleco Toni Frisina, Alessandria)

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    jvamos roda dele com as nossasbicicletas que evidentemente no ti-nham nmero nenhum.Disseram-me, e consta nos docu-mentos, que nasci em Alessandria,nos anos Vinte, filha primognita

    de Carlo Picchio, advogado, e deMaria Fontana, domstica, numa

    velha casa da via Bergamo, queagora foi demolida para se cons-truir ali um grande prdio. Fui bap-tizada na igreja da parquia, queera a de S. Giacomo della Vittoria,a poucos metros de casa. E tinhatalvez um destino e uma predes-tinao naquele nome, porqueS. Giacomo, o Santiago Matamorosda via Lctea e de Compostela, seriadepois um dos objectos e um dosresponsveis da minha futura

    Wanderung-carreira de hispanista.Mas nessa altura ningum o podiaprever. Quando falvamos da nossacidade natal, especificvamos logoque se tratava de Alessandria dellaPaglia, com uma espcie de deriso,

    de diminutio em relao outraAlexandria, a do Egipto e da Bi-blioteca. A nossa era a Alexandriacujos telhados tinham sido apres-sadamente cobertos de palha paraenfrentar o cerco que FredericoBarba-Ruiva impusera, por volta de1160, cidade recentemente fun-dada, e que ser salva in extremispor um vaqueiro, Gagliaudo, oqual, depois de ter feito devorar sua vaca o ltimo trigo que sobrarana cidade, a empurrara para ocampo adversrio, para desnortear

    e desencorajar as tropas de Frede-rico, tambm elas famintas.

    Amigo de Ungaretti, nascido emAlexandria do Egipto, o meu pai,mais tarde, nos anos Sessenta, emRoma, dir, ele tambm, a sorrir:

    Somos os dois de Alexandria. De-pois riam, ambos, divertindo-se empr no mesmo plano Gagliaudo, de

    Alessandria da Palha, e Marinetti, deAlexandria do Egipto, Umberto Eco,o nosso mais ilustre cidado da ac-tualidade, Frederico Barba-Ruiva, oinimigo exemplar, os fundadoresepnimos Alexandre Magno e opapa Alexandre III, a batalha de

    Azio e a de Legnano, o Nilo e o T-naro com a Brmida esposa, comodiz o poema de Carducci. E isto ape-sar de os Alessandrinos de hoje,

    O rio Tanaro em Alessandria della Paglia (Coleco Toni Frisina, Alessandria)

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    quando falam com pobres sobrevi-ventes de outras eras, como eu, sereferirem com afectao a um rioBrmida masculino. Alis, os Ales-

    sandrinos, raa dura e trocista, quese orgulham no seu braso de tudonivelar, Deprimit elatos, levat Ale-

    xandria stratos, nem sequer nuncaestimaram muito o seu grande rio, oTnaro, que desagua precisamenteali e bem mais imponente do queo P, no qual se lana logo depois.Tsei bas cme laqua dTani, sbaixo como a gua do Tnaro, ainjria preferida deles, quer para a

    gente da terra quer para os de fora.O meu pai tinha uma estranha rela-o de amor e dio com a sua ci-dade natal.Quando ramos crianas, conser-

    vava no seu escritrio de advogado

    A me, Maria Picchio Fontana (Mina),com 26 anos, em 1918

    Sanremo, 1930

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    um retrato de Frederico Barba--Ruiva, que no conseguira derrotara cidade. E quando uma revista lo-cal, anos depois (vivamos j emRoma), lhe solicitou um testemunho

    de patrcio emigrado, compusera so-bre a sua terra natal um soneto quesimplesmente dela dizia: Sorda del

    O pai, Carlo Picchio, com 32 anos, em 1920 Carlo Picchio, soneto sobre Alessandria della Paglia, 1948

    Frederico Barba-Ruiva e o vaqueiro Gagliaudocom a sua vaca

    bello ai nobili richiami, sarricchisce,simbestia e si compiace di far

    cappelli e di insaccar salami. Surdaaos nobres apelos da beleza,enriquece-se, embrutece e compraz--se a fazer chapus e enchidos.Chapus Borsalino, claro.

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    A.M. Conta-nos mais alguma coisasobre os teus pais, sobre a tua me,

    to bonita e com jias to bonitasneste retrato de Alberto Cafassi, so-bre o teu pai, que um dia definistecomo o personagem motor da tuavida. E tambm sobre o teu irmo,esse irmo talo-americano, eslavistailustre, de quem foste sempre muitoamiga.

    L.S.P. A infncia e a primeira ju-ventude alessandrinas, minhas e domeu irmo Riccardo, mais novo doque eu trs anos, foram serenas. So-bre Riccardo, teremos ocasio de fa-

    No princpio era a famlia

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    Mina, Luciana e Riccardo, Alessandria, 1924

    Na outra pginaMina Picchio, Luciana e Riccardo,no leo e nos pastis de Alberto Cafassi

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    lar depois, quando eu for ter com eleaos Estados Unidos, onde ele passoua parte central da sua vida, comoprofessor de Literaturas EslavasComparadas na Yale University deNew Haven. Mas gostaria de dizerdesde j como este irmo eslavista,e portanto com interesses especficosaparentemente muito distantes dosmeus, foi sempre para mim um in-terlocutor privilegiado, mesmo noplano cientfico. Nesta minha bio-

    grafia de lusitanista poder talvezparecer relegado para segundoplano. Mas nem ele prprio sabequanto foi determinante para mim,em todas as ocasies, o seu juzo se-reno, severo, e por isso mesmo soli-citado e temido: e quanto o seucredo poltico, democrtico e anti-fascista de sempre, me estimulou.Por enquanto, falemos daqueles pri-meiros anos com a famlia em Ales-

    sandria. Famlia culta, embora noparticularmente rica, de extracoburguesa, com muitos livros e ami-

    gos estranhos, escritores, italianose alemes, que vinham propositada-mente a uma cidade como Alessan-dria, em que no havia nada para

    ver, s para falar com o meu pai. Re-cordo, entre os primeiros e os maisntimos, um danunziano VincenzoErrante (ainda revejo o papel decarta em que escrevia, com a ep-grafe non giova lala a chi non ab-bia artigli, no serve a asa a quemno tiver garras), professor de ale-mo em Milo e tradutor do Faust deGoethe. Revejo Richard Wichterich,um escritor alemo que foi, duranteanos, interlocutor quotidiano, emalemo e em italiano, de meu pai eque meu pai definia como o seu acr-rimo amigo, pois bulharam sempre,pessoalmente e por carta. E ainda

    Alberto Cafassi, o amigo de famlia,

    que nos pintou a todos, o meu pai, aminha me, o meu irmo e a mimdesde a mais tenra infncia, e cujastelas com paisagens alexandrinas oudo nosso mar, a costa da Ligria, en-tre Gnova e Savona, adornamainda hoje as paredes da minha casade via Civitavecchia. Aprendi maistarde, aqui em Roma, a apreciar apintura de Cafassi, um retratista epaisagista de grande habilidade e

    cultura, formado no culto esttico--revolucionrio de Pellizza da Vol-pedo, com o seu divisionismo e a sua

    utopia do Quarto Estado. Muito domeu socialismo da maturidade tal-

    vez o tenha bebido, em criana, emAlberto Cafassi, que estimulava aminha paixo pelo desenho. Eu erahbil, sobretudo, nas coisas peque-ninas. Refazia as histrias de qua-drinhos dos jornais, os desenhos daGazzetta del Popolo e do Corrierinodei Piccoli. Mas no tinha um ver-dadeiro talento, como no o tinhapara a msica, no obstante as ine-

    vitveis aulas de piano com a Pro-fessora Boggiani. Por isso, depois demuito solfejo e frustrantes exibies base de uma saltitante Marchaturca, e de um Minuetto de Bocche-rini massacrado, depois dos ensaiosem cermica de menina prendada,de falsificadora de vasos gregos,como arqueloga aprendiz, abando-nei tudo. Embora tenha conservadouma grande paixo pela pintura.

    Mais do que por qualquer outra arte,ficou-me a inveja pelos pintoresque sentia congeniais, do Beato An-

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    glico ao Leonardo da Vinci da Vir-gem das Rochas, do Vermeer de Delfta Rembrandt, de Van Gogh a Kan-dinskij, Klee e Mir. E, ainda mais do

    que pela leitura, ficou-me o amorpela escrita. Leio trs linhas e vem--me uma ideia. Valha o que valer.E quando escrevo, hoje em dia e deh dez anos para c sempre com ocomputador, mesmo que estejadoente, triste, e ao escrever o queque seja, um artigo ou um ensaio,uma traduo ou uma inconfessadapoesia, sinto-me feliz, suspendo a

    vida. Ou, pelo menos, no me lem-

    bro mais do corpo e do tempo quepassa.No obstante a sua profisso de ad-

    vogado, o meu pai era sobretudo umgermanista. Filho de um funcion-rio dos Caminhos de Ferro que,desde quando ele tinha treze anos,lhe conseguira um passe para toda aEuropa, tinha partido muito novopara Munique, na Alemanha, com osseus cales curtos de couro, a suamochila e uma bagagem de Alemoaprendido szinho, numa gramticacomprada na papelaria perto decasa, e que se tornou depois numasua outra alma. O meu pai barafus-tava, blasfemava, talvez at mesmorezasse em alemo, recitava poesiase partes de poemas em alemo, man-tinha cerrada correspondncia comalemes e alems (No me preo-

    cupo, so todas feias, dizia a minhame, talvez como esconjuro) e Ric-cardo e eu absorvamos tudo. No sa lngua, mas os poemas, as frases,as blasfmias. Himmel-donnerwet-ter, Was blasen die Trompeten?Husaren, heraus!, junto a um goe-thiano Die Sonne tnt nach alter

    Weise. Ao lado deste alemo deeleio, o meu pai dominava tantasoutras lnguas, o francs, origem do

    patois, que tantas famlias piemon-tesas falavam em casa mas, sobre-tudo, o latim e o grego da sua for-mao clssica, mais tarde comple-tado com um neo-grego que o apro-ximaria de tantos poetas e escritoresda nova Grcia, por ele traduzidos

    em verso e numa bela e culta prosa,a comear por Gheorghios Seferis eNikos Kazantzakis. Meu pai escrevia.Escrevia sempre. Novo ou velho, sme lembro dele atrs da escrivani-nha, os cabelos ruivos ou brancos, assobrancelhas espessas sobre os lagosazuis dos olhos, os culos de pres-bita na ponta do nariz, o sorrisodoce, uma montanha de dicionriosao lado e, em frente, uma resma defolhas brancas sobre as quais, comuma belssima caligrafia (essas cali-grafias cultas dos nossos pais, lti-mos herdeiros dos humanistas, quehoje nem sequer podemos j imagi-nar), escrevia o artigo. Da sua pro-

    vncia alexandrina, comeara a co-

    laborar com vrios jornais. Entre osamigos de casa, inclua-se Giovanni

    Ansaldo, que o introduzira inicial-mente na Gazzetta del Popolo e de-pois no Telegrafo de Livorno, dosquais, na poca, e at ir para o jor-nal Mattino, de Npoles, fora o di-rector. Meu pai e Ansaldo escre-

    viam-se quase quotidianamente,sempre mo: tenho ainda diantedos olhos a caligrafia minscula e

    elegante de Ansaldo, sobre o avesso

    Os ensaios de cermica

    As lies de esgrima com o Mestre Bozzo

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    dos envelopes e sobre pedacinhos depapis. Ansaldo, alto, macio, comuma estranha cabea redonda e mo-dos distintos, de nobre dmod, era

    uma personagem inquietante e fas-cinante. Professava uma avareza ge-novesa de bom gosto, contra os des-perdcios de uma burguesia desma-zelada e mesquinha. E com Leo Lon-ganesi, fazia parte daquele grupo deoposio que se alimentava princi-palmente de anedotas e que tinha noConde Ciano o seu referente contraos vrtices do regime. A histria di-ria, da a pouco, se tinham razo, ou

    se seriam os primeiros a sucumbir.Ingnuo, fascinado pela personali-dade de Ansaldo, o meu pai colabo-rava com os jornais, principalmentecom artigos sobre escritores ale-mes. E, entretanto, traduzia, maisuma vez sobretudo do alemo, a pri-meira lngua de cultura que, junta-mente com o ritual francs, Riccardoe eu tnhamos aprendido. Mas tam-bm do holands, do sueco, do di-namarqus, do afrikaner. Quanto amim, penso que sem essa famlia,sem essa educao, sem esse climada minha primeira mocidade, eu noteria conseguido um dcimo sequerdo que acabei por fazer depois nomundo. E no me teria divertidotanto.O meu pai era um mestre incrvel,traduzia em latim todos os nomes

    dos objectos quotidianos, denomi-nava a bicicleta birota pedibuscompulsa. Nunca nos cansvamosde aprender. s seis da tarde,quando ele fechava o escritrio deadvogado, descamos os dois at l,com as duas grandes edies da Di-vina Comdia de Dor debaixo dobrao, e ele lia-nos um canto pordia, primeiro comentando linha porlinha e depois recitando de uma s

    vez, de cor, andando de um ladopara o outro, diante de ns. Con-tando todas as vezes em que a repe-timos, primeiro com os alemes emRoma, no inverno de 1944, fechadosem casa durante as longas horas emque vigorava o toque de recolher e

    ouvamos distantes, sufocados, osgolpes de canho dos americanossobre a estrada de Anzio, e depois,

    j adultos, com o meu filho Michelee os seus amigos, sentados em se-micrculo na relva, no jardim da casade Levanto, penso termos comple-tado sete ou oito vezes o inteiro ritoda Divina Comdia. E ainda hoje um nosso jogo cmplice, entre Ric-cardo e eu, ou com Michele: e caddicome luom chel sonno piglia,Ruppemi lalto sonno nella testa,Ma pi vi perderanno gli ammira-gli, Conobbi l tremolar della ma-rina, Poscia, pi chel dolor pot ldigiuno. Onde, rapidamente, semhesitar, se deveria dizer o nmero do

    canto, a sua colocao, o seu signi-ficado. Um dos ritos mais doces danossa vida. Quanto ao resto, a ju-

    ventude normal das famlias bur-guesas: a escola, as frias na praiaou nas montanhas, em Beaulard, ouno Sestrire, os cursos de piano e decermica, o tnis militar, as aulas deesgrima com o Mestre Bozzo. Paramim, duas extraordinrias viagens aRoma, uma das quais com a equipa

    do Mestre Bozzo, para participar,

    Mina e Carlo Picchio em Roma com Giovanni Ansaldo

    Enfermeira

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    como figurante no filme O CorsrioNegro. Retornarei ao set, se possousar esta expresso pomposa, umaoutra vez, em 1957, quando, j emRoma, o director de cinema EttoreGiannini me escolhe para o pequenopapel de uma enfermeira, no filmetalo-francs, Gli uomini sono ne-mici.Au carrefour des passions com

    Viviane Romance como actriz prin-cipal: um filme a preto e branco que

    me divertiu e envaideceu muito, masque no fim se revelaria uma desilu-so. Pensava ser uma loura extraor-dinria e, pelo contrrio, com osmeus cabelos ruivos, aparecia nofilme como uma moreninha inspidae normal. Aos quinze anos, os meuspais mandaram-me a Paris paraaprender bem o francs, na casa dotio Mario, que tinha emigradoquando era ainda um rapaz e que

    agora, cidado francs, pai de doisprimos um pouco mais velhos doque eu, Paulette e Octave, era repre-

    sentante da Casa de Tecidos MaisonDormeuil e realizava incrveis via-gens em pirscafo pela Amrica doSul. Do tio Mario, que tinha no Bra-sil uma perigosa e falada amiga por-tuguesa, recebi de presente o pri-meiro livro portugus da minha

    vida,Amor de perdio, de CamiloCastelo Branco, na edio monu-mental do Porto. Nem ele sabia que

    valor tinha, j na altura, aquele li-

    vro e que significado para mim vi-ria a adquirir mais tarde.

    Anos depois, j em Roma, tomeiconscincia das personagens queeram os nossos pais, ambos ruivos(como todos ns da famlia). Quefora e garra descobriramos nosanos da guerra e do ps-guerra, na-quela nossa bela me, sempre ele-gante, que do seu pai socialista eanrquico, o av Nino, morto ainda

    jovem, que eu no cheguei a conhe-cer, tinha absorvido um anticlerica-lismo que hoje nos parece ultrapas-

    sado, mas que sem dvida nos mar-cou e isolou, a Riccardo e a mim,numa cidade de tradies e sobre-tudo de fachada catlica como Ale-

    xandria. E que luz emanava dessepai poliglota, que sabia imitar osdialectos de todos os clientes dosseus escritrios de advocacia (em

    Alessandria, e Valenza P e em Tu-rim). Perguntas-me se, hoje, aindame considero uma piemontesa, ape-sar de ter vivido quase a toda a vidaem Roma, e de me ter casado comum verons, que nunca perdeu oprprio sotaque, e o meu filho e os

    meus netos serem romanos e a mi-nha nora siciliana. Talvez sim, a pri-meira formao nunca se apaga.Mas tambm verdade que a minhafamlia no possua completamenteo feitio da gente do norte, os tolospreconceitos ou at mesmo o ra-cismo em relao gente do sul(e, ento, para eles, o sul comeavalogo abaixo do Rio P, teoricamente,portanto, acima de Alessandria).Por isso, foi com enorme entusiasmoque em 1941, em plena guerra, nostransferimos para Roma.

    Carlo Picchio em 1968

    O primeiro livro portugus, Amor de Perdiode Camilo Castelo Branco

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    mente por Ansaldo, que apreciava assuas qualidades de erudio, mas so-bretudo a pena culta e leve, pen-sou que podia dar naquele momentoo grande salto da sua vida e estabe-lecer-se em Roma, como jornalista eescritor. No tinha contado com aguerra. Ns, os filhos, chegmos

    a Roma com os olhos arregalados,como se fosse Meca. O nosso paitinha vendido sem hesitao a belacasa de Alessandria e o automvel,mandara destruir os livros de leis(lembro-me do meu primo Vittorio,aprendiz no seu escritrio, que cor-ria atrs do carrinho cheio dos belos

    volumes da Lex, encadernados a ver-melho, e negociava afanosamentepara voltar a compr-los), enquanto

    a minha me, afectuosa e acritica-mente, participava do seu entu-siasmo. Uma das ltimas lembranas

    que conservo de Alessandria deuma carroa sobre a qual tinhamposto, com o brao erguido, mas jsem o pedestal, que a tornara mticapara ns, a esttua em bronze de Ur-bano Rattazzi, at ento orgulho esmbolo da praa central da cidade,condenada agora pela dura lei da

    guerra, a ser refundida para fabricarum improvvel canho. Para ns,italianos, Urbano Rattazzi tinha sidos um discutido poltico nascido em

    Alessandria, quando a poltica aindase fazia no Piemonte. Mas para osportugueses, sab-lo-ia mais tarde,fora o marido (um dos maridos) dafamigerada princesa Rattazzi, autorado irritante Portugal vol doiseau,contra o qual se insurgiria Camilo

    Castelo Branco.Alojmo-nos, em Roma, num beloapartamento de via Savoia, n.o 84,

    mais pequeno do que a casa de Ales-sandria, mas no qual os nossos m-

    veis e os nossos quadros ainda fica-vam bem. Cedo comearam, porm,as desiluses. No foi tanto a fome, qual, numa poca de duros racio-namentos de guerra, s quem tinhauma certa reserva de provises po-

    deria resistir. Ali, ns no conheca-mos ningum. Eu ia de bicicleta (de-pois, quando os alemes ocupantesproibiram as bicicletas com medodos atentados, a bicicleta passou aser um triciclo arranjado), para mepr numa bicha de cinco horas atconseguir um quilo de tomate. A mi-nha me, que nunca o fizera antes,esforava-se para lavar os lenis nabanheira de casa e, quando tinha de

    ergu-los e torc-los, chorava, pelafalta de jeito. Comamos castagnac-cio e uma ignbil pizza feita com ve-

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    Roma, em tempos de guerra (Foto Publifoto, Roma)

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    getina, uma espcie de sucedneo dafarinha de trigo. Emagrecamos. Omeu pai mais do que todos, porqueuma secreta dor o roa por dentro.

    Em Roma, tomara repentinamenteconscincia de que os seus alemeseram os inimigos, percebera queaquela guerra, que significava o ani-quilamento dos judeus e ainda mui-tos outros delitos, era a guerra er-rada. E comeou a escrever, sob opseudnimo de Gustavo Lanfranchi,uma espcie de palindia anti-ger-mnica, I fraticelli della verit (Osfradezinhos da verdade), que no pe-

    rodo do ps-guerra obteve umcerto sucesso. Como tambm um ou-tro livro seu, Scarla, uma bonitahistria da resistncia, para jovens,no qual ele revelava a sua simpatiae o grande conhecimento que tinhaadquirido dos bairros populares ro-manos. Foi ento que o meu pai, sobo signo dantesco do pi che il do-lor pot l digiuno, comeou a es-

    crever com os trs nomes do cantodo Conde Ugolino, Gualandi, Sis-mondi e Lanfranchi, que o acompa-nhariam toda a vida (qual heteron-

    mia, diria anos depois, ao descobrirFernando Pessoa e as suas msca-ras!). E comeou a traduzir, de todasas lnguas possveis, do alemo, doholands, do dinamarqus, do sueco,do afrikaner, mas tambm do in-gls, do espanhol, do francs e doneo-grego. Quando caiu o fascismo,foi uma festa em casa, apesar dasbombas americanas, que tinhamdesabado sobre So Loureno. E

    quando a guerra tomou outra direc-o, na Roma ocupada pelos nazis,comemos a esperar a chegada dos

    Aliados. Prisioneiros em casa, ater-rorizados por qualquer voz alemque pudesse ressoar no patamar dasescadas, porque podiam vir buscarRiccardo, que no s no se tinhaapresentado ao contingente nazi,como ainda entrava e saa com es-tranhos pacotes. Famintos, reco-lhamo-nos em volta de minha me,nas horas em que soava o toque derecolher e lhe dizamos: Conta-nosuma receita. E ela comeava:Pega-se em dez ovos E ns, queno vamos um ovo talvez h umms, fechvamos os olhos e sonh-

    vamos. Ou ento, desespervamo--nos pelas poucas notcias de deli-tos e extermnios que passavam as

    malhas da censura. O auge foi omassacre das Fossas Ardeatinas, doqual o meu pai fora imediatamenteinformado e pelo qual chorou umanoite inteira a morte de um amigo.Desde ento, no fui mais capaz dedizer uma frase inteira em alemo e,por muitos anos, quando ouvia fa-lar em alemo, o corao batia-meforte. Em poucos meses, abrira-me a

    uma cultura poltica de esquerda,que no renegarei nunca mais, at minha morte. Mas, entretanto, ti-nham entrado na minha vida os por-

    tugueses.

    Scarla, uma histria da resistnciade Carlo Picchio, Florena, 1954

    Em Roma, em tempos de guerra

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    A.M. verdade. J tinha ouvido falarnisso, contado por ti e por outros. Queforam uns jovens matemticos por-tugueses, conhecidos em Roma nosltimos anos da guerra, no s a en-sinar-te portugus mas tambm adar-te uma formao anti-salazarista,e a ajudar-te na elaborao da cons-cincia poltica que no tinhas tido

    tempo de formular antes da derru-bada do fascismo italiano. Como sedeu isto?

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    A vida colora-se de Portugal

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    Licenciatura em arqueologia, Roma

    Na pgina seguinte:Tinta da China e vasos gregos

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    L.S.P. Os portugueses em questoeram, no incio, apenas trs: trs jo-

    vens matemticos, Jos de Albu-querque, Jos Sebastio e Silva e

    Virglio Barroso, irmo de Maria deJesus Barroso que, a partir de ento,mesmo antes que eu comeasse afrequentar Portugal, entraria no ho-rizonte das minhas amizades, comMrio Soares, mais tarde presidenteda Repblica Portuguesa, seu ma-rido. Os trs tinham vindo a Romacom uma bolsa de estudos e o cm-bio favorvel do franco suo (napoca eu nem sabia o que era um

    franco suo) transformava-os, aosnossos olhos, em ricos estrangeiros(o que de facto no eram). Na ver-dade, os nossos portugueses eram, ostrs, e cada um no seu modo espe-cfico, intelectuais sensveis, politi-zados, anti-salazaristas, com osquais eu, que tivera o atrevimento deir propor-me como professora deitaliano, iria aprender no s portu-gus, mas o antifascismo. No duroinverno dos alemes, eles vinham anossa casa todas as tardes, a dividirconnosco os privilgios gastronmi-cos que lhes eram concedidos porserem estrangeiros neutrais (umpouquinho de caf, algumas latas decarne e vegetais que, depois da li-bertao, aprendemos a chamar v-mito de Roosevelt), mas sobretudolivros e livros. Eu lia tudo, o Que fa-

    zer?, de Lenin, e um dificlimo O Ca-pital, de Marx, onde o meu alemorepudiado encontrava o seu resgate,

    junto a livros clssicos e revolucio-

    nrios portugueses: O Primo Baslio,de Ea de Queirs, os Esteiros, deSoeiro Pereira Gomes, o Amor dePerdio, de Camilo, A Velhice doPadre Eterno, de Guerra Junqueiro,tudo ao mesmo tempo. Foi umaaculturao violenta e apaixonada,a qual, por um certo perodo, ofus-cou e submergiu at mesmo a slidacultura clssica que, entretanto, ti-

    vera uma abertura universitria,

    com a minha inscrio e, mais tarde,com a licenciatura em arqueologiagrega, opo de compromisso entreuma carreira de historiadora de arte,que eu queria seguir, e o desejo deno excluir um possvel futuro deprofessora de latim e grego nos li-ceus. Embora isso no me entusias-masse. O que mais me divertiu, nosmeus anos de estudo de arqueologia,que culminaram numa tese sobre a

    Amazonomaqua de Hrcules na ce-rmica clssica (tambm aqui umaespcie de predestinao, pois reen-contrarei as Amazonas, ao lado dosCanibais, muitos anos depois,quando me ocupei do Brasil e da

    Amaznia mtica), foi reproduzircom tinta-da-china, mo com aminha mo treinada a copiar as ban-das desenhadas, num momento em

    que conseguir fotografias dos mu-seus estrangeiros era impensvel centenas de vasos gregos, que me

    valeram a fama de razovel falsifi-

    cadora. Coisa que, ainda hoje, mediverte e da qual me orgulho. Foramos portugueses que me fizeram en-trar, quando terminou a guerra, naEmbaixada, no incio Legao dePortugal, como funcionria e tradu-tora, onde ficaria por mais de dezanos, enquanto que, sem saber, mepreparava para um futuro universi-trio nunca imaginado e muito me-nos almejado.

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    A.M. Porque, entretanto, tinhas ca-sado, muito jovem, no verdade, etinha nascido o Michele?

    L.S.P. Faz exactamente hoje, 17 de

    Junho de 2000, trs anos que mor-reu o meu marido e confesso-te que,at agora, foi como se eu tivesseafastado, apavorada, a ideia de con-

    versar acerca dele. Todos me diziamque so necessrios trs anos paranos curarmos de um luto e hoje sintoque, para alm de qualquer vitalismoe de afirmaes do tipo a vida con-tinua, no me curei de maneira ne-nhuma. Com o Nino, vivi pratica-mente a vida inteira. E quando sefica s, aps 53 anos de casamento,no h cura nem depois de trs, nem,

    penso, de muitos outros anos, tan-tos quantos me restem para viver.Quando nos conhecemos, na Mn-dola, onde meu pai nos levava nasfrias e onde a sua famlia possua

    uma casa, eu tinha dezanove anos eentrara para a universidade e ele ti-nha vinte e dois anos e frequentavao terceiro ano de medicina. Era r-fo de me e o pai era um simpticoprofessor de histria natural e tam-bm gelogo, viajante apaixonado emodelador de belssimas maquetasde cidades e regies. Ser ele, anosdepois, a ensinar-me a ler as pai-sagens, os anfiteatros mornicos, osestratos reversos de xistos e mica-xistos. Mas, ento, a guerra j tinhacomeado e ns em breve nos trans-

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    A famlia cresce

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    Com Nino, Verona, 1945

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    feriramos para Roma. Foi assimque, quando os acontecimentos seprecipitaram, tambm o Nino se mu-dou aventurosamente para Roma ecasmo-nos: no dia 20 de Abril de1944, com os alemes na cidade.Nessa manh, fomos igreja aqui

    perto de casa e Nino nem sequer ti-nha sapatos decentes. Foi meu ir-mo, Riccardo, nessa altura escon-dido dos alemes, que lhe emprestouos dele. Quando samos, porta daigreja voltaram rapidamente a troc--los. Havia, ento, o toque de reco-

    lher, e tarde ouvimos bater portae era de novo o Riccardo, com umramo de tlipas brancas. Cuidado,Luciana disse-me ele. Por baixoh uma garrafa de leite. O meu pre-sente para o Nino fora um quilo depo, s para ele. Mercado negro e

    tempo de fome. O Michele nasceu sem 1949. O Nino j era mdico pe-diatra, encaminhado para a carreirauniversitria, em Roma. Todas asmanhs ia ao Policlnico, enquantoque eu trabalhava na Legao dePortugal. tarde, frequentemente,

    ele recebia os clientes em casa. Eraeu que abria a porta e, sada, s ve-zes, enfiavam-me no bolso uma gor-

    jeta. Eu agradecia, sorrindo. Depois,quando ficvamos sozinhos, o Ninoprotestava. Eu tentava ento expli-car-lhe, inutilmente, que a gorjeta

    no se d a uma categoria diferenteda do mdico e da mulher dele, masa uma funo. E como eu exercia afuno de enfermeira, era justo queaceitasse as gorjetas.

    Nino e Luciana e os amigos psicanalistas, Eugenio e Renata Gaddini, em Palermo, Congresso Internacional de Pediatria, 1958

    esquerdaCom Michele na Mndola, 1949

    direitaNino e Michele, Roma, 1951

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    A.M. Mas quando viste Portugal pelaprimeira vez?

    L.S.P. Eu nunca tinha ido a Portugal.Naquela altura, j falava bem a ln-gua, traduzia, escrevia artigos, con-

    vidavam-me para a rdio e televiso,para falar de assuntos e temas por-tugueses e eu tinha uma certa ver-gonha, quando me perguntavam e

    eu era obrigada a confessar que ti-nha aprendido portugus aquimesmo em Roma, com uns amigos

    A primeira vez em Portugal

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    Lisboa, 1956(Foto de Grard Castello Lopes)

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    em que a situao poltica em Por-tugal se tornou insuportvel, se re-fugiou em Londres com o marido eram ambos de Leiria , para ser lo-

    cutora poltica na BBC. Reencontrei--a, com grande comoo, na pri-meira vez que voltei Inglaterra,nos anos Setenta (tinha estado lcom o Nino, logo depois da guerra,quando ainda trabalhava na Lega-o de Portugal e ele recebera umabolsa de estudos da Unicef). Quandol voltei de novo, nos anos Noventa,ela j tinha morrido.Mas voltemos minha primeira ida

    a Lisboa. O Nino e eu tnhamos co-nhecido em Roma o casal Jorge eSara Alarco e tornmo-nos gran-des amigos, vamo-nos quase todosos dias. Ele tambm era matemtico,emigrado por motivos polticos dePortugal, e estava como represen-tante da FAO em Itlia. Tinham doisfilhos, Hugo, que seria mais tardeum fsico brilhante nos Estados Uni-dos, morto porm prematuramenteanos depois, e Ana Maria, quase daidade do nosso Michele. Jorge eSara, como diplomticos, tinhamcomprado um automvel enorme, ofamoso carro amarelo das nossasrecordaes, e sonhavam com umretorno a Portugal, que esperavam

    vir a ser facilitado pela nova posi-o internacional dos dois. Partimosa sete, a famlia Alarco completa,

    inclusive o pai e a me do Jorge, euma bagagem enorme, em cima do

    carro amarelo. Quando estvamosprximos de Portugal, na fronteirade Vilar Formoso, num crepsculode Maio, a emoo de todos era tan-

    gvel. Pouco antes do posto de con-trolo da Alfndega, o Jorge pediu--me para descer do carro. Tu notens nada a ver com os nossos pro-blemas polticos. Pode ser que nonos deixem passar, que nos pren-dam. Atravessa a fronteira e espera--nos do outro lado. Passei a fron-teira a p, entre as duas balizas,atravs das quais transitavam sautomveis, com a minha pequena

    mala na mo, entre a indiferena di-vertida dos guardas. E, ao chegar l,sentei-me num marco de pedra eesperei. Passaram-se mais de duashoras, que, como soube depois, ti-nham sido gastas no controle dospassaportes e telefonemas para Lis-boa. Quando vi surgir de novo ocarro amarelo, o meu corao ba-teu forte. Ningum falava. Depoisda curva, parmos de novo e oJorge e a Sara desceram e atiraram--se ao cho, para beijar, chorando,o pas reencontrado. Poucas vezes,para l de toda a retrica, senti toprofundamente o que queria dizerptria. Eu tambm chorava e na-quele momento adoptava aquelaptria, que no era a minha, aquelalngua que no era a minha e aquelapaisagem que nos meus sonhos se

    ia sobrepor doravante da minhainfncia.

    matemticos e que nunca tinha vistoLisboa. Como se, com isso, perdessecredibilidade. Havia inclusivamentecoisas que eu no podia contar a

    ningum, que no dizia nem mesmo minha famlia. Logo depois dosmeus trs amigos terem voltado paraPortugal, apareceu aqui em casauma hospedeira da TAP. Disse-meque se chamava Margarida e pediu--me, em nome do Jos, do Virglio edo Jos Sebastio, se podia deixar--me, semanalmente, um pacote do

    Avante!, o jornal clandestino da es-querda portuguesa, para ser distri-

    budo em Itlia. Eu aceitei e todas assemanas, tera-feira, ia, inicial-mente de Cucciolo, uma bicicleta amotor, e depois de Lambretta, ao ae-roporto de Ciampino, onde Marga-rida, tendo que seguir com o aviopara Alexandria, no Egipto, me en-tregava o pacote de jornais (levssi-mos, em papel bblia), que depois eu,em Roma, levava ao Lucio Lom-bardo Radice, outro amigo matem-tico e pedagogo de grande valor,com quem criei uma amizade quedurou at morte dele. Ele morreuprematuramente, em 1983, como,alis, tambm os outros amigosmatemticos daquele perodo, pri-meiro Virglio, depois Lcio, a seguirJos Sebastio e, mais recente-mente, a Lena e o Jos Albuquerque.Faleceu prematuramente tambm

    Margarida, que, na realidade, se cha-mava Ana Fria e que, no momento

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    A.M. Disseste muitas vezes que na-quela primeira viagem a Portugal co-nheceste algumas personagens queseriam depois teus amigos para oresto da vida. E certo que, desdeento, aquele pas se tornou o cen-tro dos teus interesses cientficos ehumanos. Tentemos recordar e re-construir aquelas primeiras impres-ses e, sobretudo, aqueles teus pri-meiros encontros. Tu mesma dissesteque todo o princpio, toda a infn-cia, deixa um sinal indelvel naspessoas.

    L.S.P. Vi pela primeira vez Lisboa dacasa da Sara e do Jorge, uma mora-dia novssima de Alvalade, novatambm para eles, porque compradae construda durante a sua ausncia.Na outra metade da casa, vivia, coma famlia, o crtico e ensasta luso--brasileiro Fidelino de Figueiredo:para mim, que lera e estudara osseus livros e artigos, um mito da cul-tura e do antifascismo. Depois do

    seu retorno do exlio, tinha tido umatrombose cerebral. No seu quartomeio s escuras, falava com dificul-

    Portugueses de Portugal

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    Alexandre ONeill

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    dade e comunicava s por meio debilhetinhos. Lembro, como um pe-sadelo, mas tambm como um pri-

    vilgio, a tarde passada naquelacasa, dividida entre o d e a emoo.Sei que viveu ainda mais algunsanos, que escreveu outros livros lu-cidssimos e profundos e no ousosequer imaginar como tero sido

    aqueles seus lentos dias de homemmurado dentro de si mesmo.Naquela primeira viagem, em Abrilde 1956, conheci efectivamente al-gumas das personagens que seriamdepois amigos e interlocutores quasedirios. Todos anti-salazaristas, acomear pelos escritores: de UrbanoTavares Rodrigues, que era sempre oprimeiro a ser preso e espancado du-rante as manifestaes pblicas, a

    David Mouro Ferreira, que meconvidou para participar num pro-grama televisivo (uma italiana quese interessava por Portugal e falavaportugus era ainda, na altura, no-tcia) e me entrevistou afectuosa-mente, sempre a chupar o cachimbodo seu icone oficial, at AlexandreONeill, irreverente e genial, um dospoetas mais intrinsecamente poetas,isto inventivos, que encontrei ali:livre. Com Alexandre, como comDavid, ficmos amigos at ao mo-mento das suas mortes. O primeiro

    ser, em 1986, Alexandre, de quemrecordo sempre com emoo a dedi-catria do seu volume de poemas,Entre a Cortina e a Vidraa, de 1972:A Luciana S.P. com a promessa (l-rica!) de ela ainda vir a ter uma ruacom o seu nome em Lisboa Aoque eu respondera, rindo: Ad mul-tos annos. Lembro-me que David,

    que nos deixaria dez anos depois,em 1996, naquela primeira vez, pro-vocatoriamente, para ouvir na tele-viso do Estado uma voz que expri-misse oposio, me perguntou o que eu no gostava em Portugal. E eu,

    em vez de dar a resposta poltica queele esperava, respondi: Da falta depronomes. Hoje de manh, em casa,enquanto uma me italiana, usando

    o tu, teria dito, ti sei sporcata ilgrembiule, a minha amiga disse filha, A menina sujou o bibe, e amenina voltou-se para ver onde es-tava a menina. Daquela primeira

    viagem, recordo-me tambm destasperplexidades lingusticas. Discutiasobre isso com os amigos dos pri-meiros tempos, Lus Filipe LindleyCintra, uma espcie de heri univer-sitrio, doce e excessivo, adorado

    pelos alunos e, sobretudo, pelas alu-nas, Jacinto do Prado Coelho, umdos crticos mais lcidos de ento,precursor dos estudos sobre Fer-nando Pessoa. J eram professoresuniversitrios, todos contra, e ti-nham-me recebido na Universidadecomo a uma colega, embora napoca eu tivesse escrito apenas al-gumas recenses, artigos para enci-clopdias e sobretudo tradues.E com eles, que voltarei sempre aencontrar a cada nova viagem, iriamanter durante anos uma intensae afectuosa correspondncia. Hoje jno se usa escrever cartas compri-das, como ns escrevamos nessa al-tura, quase sempre mo. Emboraeu, contra toda a boa regra de edu-cao do tempo, utilizasse frequen-temente a mquina de escrever.

    E eles, eu sabia, no o apreciavammuito. No conservei nenhuma dasminhas cartas. S mais tarde,quando a epistolografia j quase de-saparecera, me veio o gosto peloarquivo. Mas as cartas deles, con-servo-as quase todas e talvez um diapossam servir para revelar episdiosdas suas vidas e aspectos das suaspersonalidades.

    O ser-vil de Alexandre ONeill

    A dedicatria do Entre a cortina e a vidraade Alexandre ONeill

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    L.S.P. Sim, muito antes daquela via-gem a Portugal, tinha publicado tra-dues a partir do portugus. O edi-tor Casini pedira-me colaboraespara uma grande antologia de con-tos do sculo XIX, alguns espanhise outros portugueses: o Bispo Negro,de Alexandre Herculano: oJos Ma-tias, de Ea Mas o primeiro livro

    mesmo foi, em 1951, o Romance daRaposa, de Aquilino Ribeiro. Mi-chele tinha dois anos e, traduzindoaquele maravilhoso livro para crian-as, parecia-me que participava domundo dele, que quase estava a tra-balhar para o meu filho. Ainda hojegosto daquela traduo, onde pro-curei conservar e recriar todas as ri-mas internas, os jogos de palavras,os diminutivos do original. E, de

    facto, o livro, publicado pela editoraMarzocco com o ttulo Le avventuredi Saltafossi, alcanaria algum su-

    Portugal dos anos cinzentos

    e as primeiras tradues

    9

    A.M. Mencionaste atrs as tradues.Quais foram os primeiros livros por-tugueses que traduziste?Foi antes da primeira viagem a Por-tugal?E que impresso te provocou o con-

    tacto directo, tambm em termos lin-gusticos, com aquele Portugal que jconhecias, mas de longe?

    Lisboa, 1999(Foto de Grard Castello Lopes)

    pgina seguinte

    Lisboa, 1956(Foto de Grard Castello Lopes)

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    cesso em Itlia, ao ponto de serempublicadas mais duas edies e o li-

    vro ser adoptado como texto de lei-tura nas escolas. No conheci pes-

    soalmente Aquilino, que me escre-veu belas cartas nessa altura. Dele,morto em 1963, entusiasmavam-me,ento, os livros expressionistas,como So Bonaboio, mas eu culti-

    vava sobretudo o mito humano defilho de padre e seminarista despa-drado, protagonista de fugas espec-taculares das prises portuguesas,sempre sob processo e literariamentesempre em busca de uma expresso

    e de uma linguagem novas. Numadas suas cartas, escrevera-me: eusou um escritor que nesse Portugalda hipocrisia e do mascaramento

    vocabular, quando necessrio, nohesito em dizer corno. E eu entorira, porque comeara a perceber quea conveno expressiva entre o ita-liano e o portugus corria em nveisdiversos, que o italiano era uma ln-gua racional, no como o francs,que at aboliu os diminutivos, mascertamente mais racional do que oportugus, lngua eminentementeexpressionista e afectiva. Que, se oitaliano era uma lngua escondidapelos verbos, o portugus se contor-cia em adjectivos e hipocorsticos,diminutivos aplicados at mesmoaos particpios e aos gerndios (quebelo ouvir dizer, por exemplo, es-

    ts metidinha no meu corao, queseria muito difcil de traduzir em ita-liano, ou ento o menino est dor-mindinho, tambm praticamenteintraduzvel). Que, enfim, a expres-so se fazia por matizes, que as pa-lavras pesavam como pedras, quemuitas coisas no se podiam dizer,

    j o sancionara alis, no seu LealConselheiro, o rei D. Duarte, no s-culo XV, falando de decncia da

    lngua, ou pelo menos que no sepodiam dizer de forma directa, comoem italiano. Ateno, portanto, s

    tradues, que eram um campo mi-nado. Qualquer expresso traduzida letra tornava-se logo violenta, in-conveniente, falsa. Toda essa apren-dizagem me serviu, anos depois,

    quando procurava ensinar aos meusalunos, no digo uma complexa teo-ria da traduo, ento muito na

    moda, mas apenas como traduzirbem do portugus para o italiano.Mas nessa altura, nessa primeira vez,o meu mundo lingustico e ambien-tal estava limitado a Portugal. Que

    me parecera desde logo diferente:internacional e provincialssimo,atlntico e isolado. Um isolamento

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    de rea marginal, onde as novidadesda Europa chegavam sempre comatraso e j transformadas por outrasnovidades que tinham vindo depois;mas que chegavam tambm doOceano e, atravs do Oceano, detodo aquele mundo para onde as ca-ravelas tinham levado e deixado umportugus. Eram diversas e tantas ascores dos rostos com os quais eu mecruzava, o azul cintilante do cu, omito das naus, o Tejo imenso comoum mar, os monumentos manueli-nos onde a Idade Mdia do flambo-

    yant e do gtico florido parecia j terdesembocado no barroco sem passarpelo arco de volta inteiro do nossoRenascimento. Mas, ao mesmotempo, havia nesse Portugal que seme revelava em 1956, um sentido deopresso e de excluso, que se per-cebia intensamente nas ruelas deuma Lisboa que se pendurava emforma de anfiteatro pelas suas setecolinas, como Roma, ou fixando os

    arabescos brancos e pretos das ave-nidas, aquelas ondas que, anos de-pois, em todos os continentes, iriam

    indicar-me a antiga presena dosportugueses. Os meus amigos fala-

    vam-me da censura, das pessoas nasprises. Havia ordem e havia flores,e havia uma grande profuso de uni-formes militares: no s os dos po-lcias, mas tambm os dos rapazes,dos grooms dos grandes hotis, em-brulhados em uniformes azuis oucastanhos, ascensoristas que se cha-mavam botes justamente pelaquantidade de botes dourados apli-cados aos seus absurdos casaqui-nhos. A imprensa diria, O Sculo, O

    Dirio de Notcias, com excepo dealgum sinal de tmida oposio, aquie ali, no Porto, no Fundo, era ps-sima, desoladora, sem notcias in-ternacionais, apenas desajeitadasapologias do regime e de um ditadorque no se via, no se exibia, no seexpunha nas varandas, mas quemantinha o pas sufocado numa es-pcie de sudrio. E, nesse tempo, notinha ainda comeado a guerra co-

    lonial. E no se viam as futuras, ter-rveis pginas de anncios mortu-rios, que nos anos Sessenta seriam o

    nico indcio da morte em frica detantas jovens vidas. Havia, depois,em Lisboa e em Coimbra, onde eu ti-nha ido logo aps a minha chegada,coisas que me pareciam como umretorno infncia. Nas famlias,convidavam-me com ritos antigos,

    volta de toalha de rendas e do pu-dim. Em certas ruas do centro deLisboa, descobria lojecas absurdas esimpticas, onde se expunham nasmontras, ao lado uns dos outros, osabo para a roupa e o po fresco, a

    vassoura e os figos. Como na via

    S. Giacomo della Vittoria da minhaAlessandria. Que saudades, hoje,dessa Lisboa de h trinta anos, todiferente da Lisboa do ano 2000, de-pois da Grande Exposio de 1998:hipermercados e metro, restaurantesrequintados e nouvelle cuisine, ouainda o bacalhau recuperado com ogosto ps-moderno da tradio.E que alvio que tudo, graas a Deus,seja diferente. Aquela primeira via-

    gem, ao todo, durou menos de umms.

    A dedicatria de Aquilino, 1949e a traduo italiana do Romance daRaposa, 1951

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    A.M. Conheceste naquela altura tam-bm Miguel Torga?

    L.S.P. Sim, em Coimbra, onde fui re-cebida como uma velha amiga nacasa deles, na Rua Fernando Pessoa,

    n.o 3: a casa do doutor Adolfo Rocha,para os leitores Miguel Torga, e daesposa, Andre Crabb Rocha. Re-cordo a primeira tarde com Torga, oseu perfil de ave de rapina, acomo-dado num nicho da sala, como sefosse um poleiro, enquanto a Andreservia o meu primeiro queijo da serrae ele lanava invectivas anti--acadmicas contra o rio de Coim-bra, o Mondego, um rio lente, em

    confronto com o rio macho, queera o Douro da sua origem trans-montana. E tenho ainda, na minha

    biblioteca, as edies dos seus ro-mances e do Dirio, que generosa-mente, durante anos, ele me deu depresente autografados, coisa que, se-gundo me disseram, no voltou a fa-zer no futuro. Considero o segundo

    dia da Criao do mundo de Torga,onde ele narra a sua experincia decriana pobre, emigrada no Brasil, aminha iniciao potica naquelepas, e uma das leituras que meacompanharam na minha iminentedescoberta do novo Continente. Eno foi por acaso que, anos depois,

    voltei quela casa com um poetabrasileiro, Murilo Mendes, que, co-movido com a viso da filha do

    Torga, uma jovem Clara adormecida,comps para ela, nessa mesma noite,o seu Murilograma a Clara Rocha.

    Coimbra e a amizade com Miguel Torga

    10

    O Murilograma de Murilo Mendes para ClaraRocha, Coimbra 1963

    Em cima: quatro dedicatrias de Miguel Torgaa LSP

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    A.M. No foi nesse perodo, logodepois da viagem a Portugal, quedeixaste a Legao Embaixada efoste trabalhar na Enciclopedia dello

    Spettacolo?

    L.S.P. Sim, foi uma deciso repen-tina, na primavera de 1956. Estavanessa altura em Roma um tristonho

    Antnio Ferro, que, depois de ter sidoum poderoso ministro de Salazar,

    vivia agora um melanclico fim decarreira (morreria dali a pouco, nessemesmo ano de 1956). Passava tardesinteiras a contar-me como, em 1915,

    sem ter ainda completado vinteanos, fora o editor do Orpheu. Eraum homem desiludido e gentil, co-nhecera DAnnunzio, Marinetti e Pi-randello e compunha, noite, osseus oximricos e nostalgicamentemodernistas Poemas Italianos. Elee seu filho, Antnio Quadros, tam-bm ele aberto modernisticamenteao dilogo das artes, contribuirampara revelar-me um mundo que dalia pouco seria tambm o meu. O Ninoagora j era professor, o Michele es-tava crescido, eu dominava j bemo portugus, escrevia de vez emquando artigos e tradues, reapro-ximara-me da Universidade, en-trando como assistente voluntriano Instituto de Filologia Romnica,do qual era Director o ilustre fillogo

    Angelo Monteverdi, e comeava a

    sentir como uma priso a ideia deser, para o resto da vida, uma fun-cionria, uma burocrata, mesmoque fosse num ambiente diplomticoprivilegiado. J tinha tido, como co-laboradora externa, uma experinciaenciclopdica, escrevendo verbetespara o Dicionrio das Obras e dos

    Autoresda Bompiani e o facto de sa-ber o portugus autorizava toda agente a pensar que soubesse igual-

    mente bem e, talvez at melhor, oespanhol. Foram necessrios muitosanos para que os italianos se con-

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    Segunda mudana de cenrio.

    Da Embaixada portuguesa

    Enciclopedia dello Spettacolo

    11

    Roma, 1957, na Enciclopedia dello Spettacolo

    Portoghesi Nella lingua di teatro, coloro cheentrano nel luogo dello spettacolo senzapagare il biglietto.L.S.P., Enciclopedia dello Spettacolo, 1961

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    vencessem de que em Portugal sefala portugus. Assim, quando sur-giu a oportunidade de trabalharcomo redactora interna da Enciclo-

    pedia dello Spettacolo, dirigida porSilvio DAmico, onde eu seria a res-ponsvel pelo sector do teatro emlnguas ibricas, ganhando metadedo que ganhava de manh na Em-baixada e trabalhando o dobro, ma-nhs e tardes, pareceu-me um bomnegcio e aceitei sem pensar duas

    vezes. Rejuvenesci dez anos, deixeias roupas diplomticas, vesti umasimples saia, uma camisola, e reco-

    mecei a estudar furiosamente. Tudo.Todas as lnguas. Todas as histriasliterrias. Da Espanha, dos vriospases hispano-americanos, da Cata-lunha, de Portugal e do Brasil. E, de-pois, todo o teatro, medieval, litr-gico e em latim vulgar, porque, en-tretanto, me tinham oferecido tam-bm o sector medieval e o dos

    verbetes de assunto geral. No exis-tia ainda o computador. E ns es-crevamos os nossos textos mo ou mquina, colando umas s outraspginas e mais pginas, at entregar redaco grossos rolos de papel.O ambiente era estimulante. ramostodos amigos, Sandro DAmico, Olga

    Apicella, Angelo Maria Ripellino,Nino Borsellino, Paolo Chiarini, Ce-sare Garboli, Boris Porena, VittoriaOttolenghi, Franca Angelini, Fran-

    cesco Savio, Andrea Camilleri, querecentemente irrompeu internacio-nalmente como escritor de livros po-liciais. Estimvamo-nos e, inven-tando regras que ningum nos dava,aprendamos uns com os outros. Sil-

    vio DAmico tinha morrido, coorde-nava-nos agora um jovem realiza-dor e dramaturgo, Luigi Squarzina;e ns, um entusiasta e teimoso grupoimprovisado, destinado a reencon-

    trar-se em bloco como corpo do-cente da Universidade, justamenteem virtude daquela experincia for-

    mativa, discutamos dias inteiros so-bre um verbete geral, que podia ser

    Farsa ou Exotismo, Libertates De-cembris ou Pblico, mas tambm so-bre verbetes biogrficos, definindo,primeiro entre ns e depois com aRedaco, os nossos respectivos es-paos: se para Brecht do tantas p-ginas, quantas me daro para Cal-dern? Na Itlia ainda sob a in-fluncia de Croce, da poesia e da nopoesia, do autor incomparvel, afi-

    vamos as unhas como comparatistas

    e, sobretudo, mantnhamos semprevivo o conceito de espectculo,mais amplo e bem mais produtivo do

    que o de texto ou de literatura dra-mtica. Fomos ns, os da Enciclope-

    dia, onze grandes volumes (1954--1964) de entradas originais, irrepe-tveis, a afirmar em Itlia aqueleconceito, agora aceite por toda aparte. O espectculo inclua tudo: oautor, o texto, o actor, o pblico, acircunstncia. Eu, pelo meu lado,aprendia, assimilava, modificava asminhas ideias, acumulava fichas emais fichas, lia dramas e comdiase, sem o confessar nem a mim pr-

    pria, comeava a projectar uma fu-tura, ainda inexistente, Histria doTeatro Portugus.

    Com Antnio Ferro e Antnio Quadros, Roma, 1956

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    A.M. No pensas que foi a viagem aPortugal, o encontro com tantas per-sonagens que, daquele momento emdiante, comearam a fazer parte datua vida de estudiosa e de lusitanista,que te levaram a deixar o emprego naEmbaixada por um trabalho de maior

    gratificao intelectual, como foi o daEnciclopedia dello Spettacolo?

    L.S.P. Sim, naquele perodo aconte-ceu tudo ao mesmo tempo: a ami-zade com os portugueses de Portu-gal, o novo mundo que se abriadiante de mim com a sua lngua, osseus afectos, as suas convenes; amudana de trabalho, a entrada na

    Enciclopedia dello Spettacolo e a es-pecializao teatral. E, ainda, a che-gada a Roma de Murilo Mendes e adescoberta do Brasil. Enfim, o incioda carreira universitria em Pisa.

    Acho que, por tudo isso, deveramosa partir de agora abandonar o crit-rio cronolgico, diacrnico, destaentrevista-biografia, para desenvol-

    ver separadamente cada um destescaptulos, que imagino seja o que

    mais interessa quando se quer re-construir um itinerrio cultural comoo meu.

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    Acontece tudo ao mesmo tempo

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    Com Angelo Monteverdi em Roma, 1958

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    A.M. Ao Brasil, como disseste, fostepela primeira vez em Agosto de 1959,convidada por iniciativa de MuriloMendes, para participar no famoso IIIColquio Internacional de EstudosPortugueses e Brasileiros, na Bahia,onde, segundo o que se diz e que j

    se tornou lenda, aconteceu de tudo.Antes de mais nada, houve a explo-so pblica do anti-salazarismo, coma adeso de muitos intelectuais, noapenas portugueses e brasileiros. Po-derias contar como foi este teu pri-meiro contacto com o pas que seriadepois, juntamente com Portugal, umdos plos do teu tropismo cultural ehumano?

    L.S.P. O primeiro sinal foi, de novo,uma traduo. Um editor italiano,para uma coleco de literatura bra-sileira recentemente lanada, pediu--me para traduzir o Fogo morto, deJos Lins do Rego. Era um livro fa-moso, que marcara todo um perodo

    da literatura brasileira. Mas isso euno sabia. Alm disso, pela primeira

    vez podia constatar o grande desvioque tomara, em relao ao Portu-gus de Portugal, a nova expressobrasileira. E como se justificava aafirmao que, parafraseando MarkTwain, os portugueses e os brasilei-ros repetiam: somos dois povos se-parados por uma mesma lngua. Na-quela altura, porm, no percebi

    imediatamente esse voluntrio ex-pressionismo de classe, que anteci-pava de alguns decnios o experi-

    Sinais do Novo Mundo

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    Murilo Mendes, Maria da Saudadee Joo Cabral de Melo Neto em 1956

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    mentalismo de Guimares Rosa e,escrupulosa e pedantemente, come-cei a corrigir, a fazer aderir normaitaliana culta, mutilando-a, a prosamodernista de Jos Lins do Rego.

    Aquela traduo, que absolutamenteno refaria hoje, foi muito elogiadae at pelo prprio autor, que entre-tanto eu conhecera aqui em Roma eque me ofereceu um exemplar do li-

    vro, com a seguinte dedicatria:Para Luciana que fez de Fogo mortoum livro vivo. Jos Lins foi o pri-meiro escritor brasileiro que entrouno universo das minhas amizades.

    Vinha a Roma periodicamente, por-

    que partia daqui para Atenas, ondetinha uma filha casada com um di-plomata: era uma personagem pito-resca e at comigo que, na altura,no percebia nada de futebol, faziapropaganda do Flamengo, enquantoo seu rosto largo, marcado pela va-rola, com o cintilar de dois olhos deinteligncia e sonolncia oriental,parecia o testemunho vivo da mis-tura de raas do Nordeste brasileiro.

    Lia nos jornais s os pequenosanncios, detendo-se nas expressescapazes de revelar-lhe algo sobre o

    mundo (Porqu procura-se criadaAltitlia?, Porque se pensa que ascriadas do Norte da Itlia sejam maistrabalhadoras. E voc, Luciana, deonde ?, Altitlia, Jos. E eis que,de Atenas, chegava um postal:Voc, Luciana, Altitlia, eu souum pobre caboclo). Tinha terror dasdoenas e dizia que em nossa casaestava muito bem, porque o Nino eramdico e sabia sempre qual era afarmcia aberta mais prxima. Semcontar que tambm ele era descen-dente de italianos: e ilustres, os Ca-

    valcanti do Nordeste. No Nordeste dizia quem no Cavalcante

    cavalgado. A ltima vez que o vi,pouco antes da sua morte, em 1957,tinham-no eleito para a AcademiaBrasileira de Letras e ele descrevia--nos , com entusiasmo, o fardo ara-bescado de ouro, que lhe prepara-

    vam no Rio. Desde ento, vivi mui-tas vezes com os amigos brasileiroseste rito acadmico do fardo: quealguns sonhavam cheio de ouros,como Jos Lins, outros, como Celso

    Cunha, ficavam felizes de receber,oferecido, da sua cidade natal, comosinal de pertena, outros ainda,

    como Guimares Rosa, temiam

    como um fardo para o qual se sen-tiam inadequados, e outros, enfim,se recusavam a cortejar, comoDrummond e Murilo Mendes.No sei se foi Lins do Rego que nosapresentou Srgio Buarque de Ho-landa, que viera a Roma como Pro-fessor de Cultura brasileira na nossaUniversidade e que um dia apareceuaqui em casa com trs ou quatro dosfilhos, bonitos jovens com pouca di-ferena de idade entre eles, para umaconsulta do Nino. Anos mais tarde,aos clientes brasileiros que visita-

    vam o seu consultrio, o Nino mos-traria com sorridente orgulho acama onde se deitara o famosssimofilho do Professor Srgio, o cantor,poeta, dramaturgo, Chico Buarquede Holanda: o Chico.Foi, em todo o caso, com uma carta

    de Srgio Buarque nas mos que umdia, no princpio de Janeiro de 1957,apareceu na nossa casa o MuriloMendes. Estava em Roma, ele tam-bm, para ensinar Cultura Brasileirana nossa Universidade. E vinhaacompanhado pela mulher, Maria daSaudade, portuguesa, filha de JaimeCorteso, grande opositor de Salazarque se refugiara no Brasil com a fa-mlia e se tinha tornado Director da

    Biblioteca Nacional do Rio. A nossavida, a minha vida, ia passar por ou-tra grande transformao.

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    A traduo de Fogo Mortode Jos Lins do Regoe a dedicatria de 1956

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    A.M. Porqu? Foste ao Brasil nesseano, no foi?

    L.S.P. Sim, fui. Uma das primeirascoisas que fez o Murilo Mendes, quese tornara tambm ele nosso amigoquotidiano desde que viera paraRoma, foi conseguir-me um convitepara participar no Congresso Inter-

    nacional de Estudos Portugueses eBrasileiros, que se deveria realizarem Salvador, na Bahia, em Agostode 1959. Foram quarenta dias ines-quecveis, que mudaram a minha ca-bea e a minha vida. Com as suastrezentas igrejas barrocas, douradasno interior, que galgavam ladeiras ecolinas, com o seu ngreme Pelouri-nho e a memria dos escravos ne-gros a cada canto do seu emara-

    nhado de ruas e becos, com a sua co-lorida e inesperada humanidade ne-gra, branca, amarela, com as suas

    baianas enormes e sorridentes, ves-tidas de branco, que vendiam comi-das at ento desconhecidas pelasesquinas, com o cintilar dos dentesbrancos sob o sol ou no escuro danoite, Salvador foi para mim a re-

    velao de um mundo, de uma ma-neira de viver e de ser, de falar e decantar, de tocar e de danar, que

    nunca suspeitara ou esperara. OCongresso era faranico. Eu conhe-cia muitos dos nomes dos presentes,que, para mim, at ento eram ape-nas capas de livros: eram bem pou-cos os crticos e especialistas emcarne e osso que alguma vez encon-trara. Os mais conceituados entre osbrasileiros, Celso Cunha, Guilher-mino Csar, Alexandre Eullio, An-tenor Nascentes, entre os portugue-

    ses, Jorge de Sena, Eduardo Lou-reno, Coimbra Martins, entre osfranceses, I. S. Rvah, Marcel Ba-

    O Congresso da Bahia de 1959

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    Com Hernni Cidade e Guilhermino Csar noCongresso da Bahia, Agosto, 1959

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    taillon, entre os espanhis, EugenioAsensio, e entre os romenos, Euge-nio Coseriu, estavam todos hospe-dados no Grand Hotel da Bahia, aopasso que eu fora instalada longedali, no convento de S. Francisco,fora da cidade. Mas mesmo assim, euestava feliz. Estava eu janela domeu quarto a admirar as centenas depapagaios que bisbilhotavam nosfios da luz, no claustro do convento,quando, empurrando a sua mala, se

    materializou na porta, com o seubelo rosto severo, a minha futuraamiga de uma vida inteira, Maria deLourdes Belchior. Nunca a tinha en-contrado antes, mas sabia muitobem quem ela era, pois j era entouma crtica famosa, aborrecidssimapor ter de dividir o quarto com umadesconhecida e, ainda por cima,num convento to fora de mo. Co-memos a falar, e aquele dilogo

    duraria, ininterrupto, quase qua-renta anos, at morte de Maria deLourdes, em 1998, poucos dias de-

    pois de, ainda juntas, termos rece-bido com Eduardo Loureno umdoutoramento honoris causa da Uni-

    versidade Nova de Lisboa, que t-nhamos contribudo os trs parafundar, logo depois da queda dosalazarismo, em 1975.Para o Congresso da Bahia, aprovei-tando-me da minha recente expe-rincia teatral, preparara uma co-municao sobre o teatro medievale o problema do arremedilho. Um

    tese nova, audaciosa, que contradi-zia as interpretaes de ilustres fil-logos e teatrolgos portugueses, queconsideravam o arremedilho, pro-metido em 1231 por dois jograis aorei, um gnero teatral tipicamenteportugus. Pelo contrrio, eu inter-pretava-o como uma manifestao

    jogralesca comum a toda a rea ro-mnica. Li e expus a minha tese pe-rante o silncio da sala e, no fim da

    comunicao, levantaram-se MarcelBataillon, declarando que se tratavade uma novidade absoluta, Eugenio

    Asensio, aceitando plenamente oque eu tinha afirmado e, por ltimo,I.S. Rvah, que eu no sabia estar alipresente e que, entre todos, era omais contestado, declarando-se des-portivamente derrotado. Ganharaassim, de uma s vez, a amizade e oapoio de trs dos mais ilustres crti-cos do momento. E cada um deles,mesmo ainda com algumas escara-muas por parte de Rvah, mantive-ram depois sempre a mesma amizade

    para comigo.A mais afectuosa e duradoura foi,contudo, a de Eugenio Asensio. To-das as vezes que eu passava por Lis-boa, ia visit-lo na sua mtica bi-blioteca da Rua dos Ferreiros Es-trela e ele, esteta e grande gourmetque era, oferecia-me sempre uma li-o de filologia e biblioteconomianum dos restaurantes moda deLisboa. E no s: insistia para que

    eu abandonasse a crtica e a filolo-gia (talvez no confiasse nas mu-lheres para uma actividade to s-

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    Com Maria de Lourdes Belchior, Santa Barbara, 1982

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    ria) e escrevesse, finalmente, al-guma coisa sem rede. A 6 de Maiode 1989, ele ainda escrevia: No ssi no erraste tu camino, cuando en

    vez de pintora directa de la vida, tecontentaste con la tarea de glosa-dora de escritos ajenos. An ests atiempo de rectificar tu rumbo y de-

    jar visiones tuyas, no apostillas doque los otros imaginaron. Obri-gada, Eugenio, mas acho que agora realmente tarde demais. Quandofez noventa anos, fui propositada-mente a Lisboa e, como nunca hou-

    vera elevadores no prdio, subi pela

    ltima vez, dum lance, as escadas demadeira que ele, leve como um pas-

    sarinho, continuaria a subir at aofim, e ofereci-lhe noventa rosasamarelas. E tambm nesse dia fo-mos almoar fora, ao Tgide, com

    D. Katarina Braun, a sua fiel amigalituana. E com D. Eugenio, que es-tava h trinta anos em Lisboa, tra-tando-nos por tu espanhola, fa-lmos sempre espanhol. Porque osespanhis, aprendi-o ento, e veri-fiquei-o muitas outras vezes depois,no h hiptese de os pr a falarnoutra lngua que no seja a deles:imagine-se o portugus, que consi-deram como um estranho dialecto

    da sua lngua nacional. De Euge-nio, que escrevia uma prosa lmpida

    como poucas, que possua umaimensa erudio, comparvel s sua modstia ou acanhamento, quelia a lrica galego-portuguesa com a

    distncia e a objectividade que osnacionais nem imaginavam, quesabia absolutamente tudo sobre oentrems e o romance, que possuasempre um livro na sua bibliotecapara demonstrar a inutilidade e aimprovisao de todas as nossasdescobertas, de Eugenio, aprendimuito: a prudncia histrica e filo-lgica e, sobretudo, a considerar osfenmenos portugueses, no isola-

    damente, mas sempre num contextoibrico e europeu.

    Com Eugnio Asensio, Lisboa, 1983

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    A.M. Mas voltemos quela primeira

    vez no Brasil. Que outras coisas, lu-gares, e pessoas, recordas?

    L.S.P. Comecei, nessa primeira oca-sio, a fazer aquilo que, com outrosmeios e tambm outra preparao,continuei a fazer nos quarentaanos seguintes, com mais ou menosduas viagens por ano, atravs dopas todo, do Maranho ao RioGrande do Sul. Aceitar qualquer

    convite, mesmo os desconfortveise, em cada uma das viagens, ver,perceber, conhecer o mais que pu-desse, lugares e pessoas: como sem-pre em poucas semanas, numa es-pcie de vertiginoso armazena-mento, para ruminar tudo depois aolongo de meses e meses em Roma.Daquela primeira vez no Brasil, lem-bro-me ainda nitidamente da che-gada ao Recife e de um rapaz de cor,da Varig, que me esperava sorri-dente no aeroporto, sem camisa ecom um txi todo amolgado. Mas,

    assim que entrmos no carro, pen-

    durada no espelho retrovisor, haviauma gravata que ele se apressou apr no pescoo, sobre o peito nu, di-zendo: A Companhia no quer quea gente v sem gravata. Primeira li-o de surrealismo brasileiro. Quan-tos sculos se passaram desde ento?Lembro-me tambm de uma viagemde txi numa noite, de Salvador aum terreiro no interior para assistir,com a recomendao de Jorge

    Amado, a uma verdadeira ma-cumba. E l estavam, para meugrande espanto, como Pais de Santo,o filsofo portugus Agostinho daSilva, ento hospedado no Conventode S. Francisco, e o prprio Jorge

    Amado, ainda com os cabelos escu-ros e um pouco mais gordo, mas es-sencialmente o mesmo que o amigoDario Puccini me apresentara emRoma, em 1948, quando ele estiveraem Itlia na esperana de uma vit-ria da esquerda. Vi pela primeira vezo espectculo das baianas que vol-

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    A primeira vez

    no Brasil15

    Braslia, 1960(Foto de Ren Burri Magnum Photos)

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    A.M. E depois, quando voltaste paraRoma, continuaste a descobrir o Bra-sil na casa de Murilo Mendes? Li mui-tos dos teus relatos sobre aquela casaextraordinria, aquela sala de visitasda Via del Consolato, onde apareciatoda a intelectualidade romana e in-ternacional de ento. Queres dizermais alguma coisa sobre esse perodo,sobre esse poeta, sobre esse mundoque hoje parece desaparecido para

    sempre?

    L.S.P. verdade, a amizade comMurilo Mendes e Saudade, as casasonde habitaram em Roma, primeiroem Castro Pretorio e depois na Viadel Consolato, n.o 6, foram uma dascoisas mais importantes da vida,para mim e para a minha famlia:durante dezoito anos, desde 1957,ano da chegada deles a Roma, at1975, data da morte de Murilo e damudana da Saudade para Lisboa.

    Ainda hoje, quando vou a Portugal,

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    Roma. Os anos de Murilo Mendes

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    Murilo Mendes em Roma, 1970

    direita:Com Murilo Mendes em Coimbra,Congresso Gil Vicente, 1963

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    mesmo que por poucas horas, vousempre visitar a Saudade, que trans-feriu para Lisboa, na Travessa daPalmeira, n.o 7, a aura de Roma,

    junto com alguns mveis e quadros.Os restantes j esto todos no Bra-sil, em Juiz de Fora, na Fundao--Museu Murilo Mendes, que se tor-nou um dos pontos de atraco dacidade natal do poeta. Como disse eescrevi tantas vezes, Murilo e Sau-dade foram os companheiros dirios,com quem nos encontrvamos, fa-lvamos, sonhvamos, viajvamos,conhecamos, recebamos os amigos

    de tantas naes, quase todos, deincio, amigos deles, e, logo depois,transformados tambm em nossosamigos. Com eles soframos, pela di-tadura, que naqueles anos,