GRUPO Krisis · È possibile la ... Filosofia Prática e do Departamento de Filosofia da Escola de...

369
GRUPO Krisis ACTAS DAS IV JORNADAS INTERNACIONAIS DE INVESTIGADORES DE FILOSOFIA Cartografias da Filosofia para o Século XXI 2014

Transcript of GRUPO Krisis · È possibile la ... Filosofia Prática e do Departamento de Filosofia da Escola de...

  • GRUPO Krisis

    ACTAS DAS

    IV JORNADAS

    INTERNACIONAIS

    DE INVESTIGADORES

    DE FILOSOFIA

    Cartografias da Filosofia

    para o Sculo XXI

    2014

  • Grupo Krisis

    ACTAS DAS

    IV JORNADAS INTERNACIONAIS

    DE INVESTIGADORES DE FILOSOFIA

    Cartografias da Filosofia para o Sculo XXI

    2014

  • ISBN: 978-989-99154-0-4

    Ttulo: Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia Cartografias da Filosofia para o Sculo XXI

    Autores: Irene PINTO PARDELHA, Irene VIPARELLI, Moiss FERREIRA

    Data: 2014

    Editor: Instituto de Filosofia Prtica Plo da Universidade de vora (IFP-U)

    URL: http://www.krisis.uevora.pt/edicao/actas4.pdf

    http://www.krisis.uevora.pt/edicao/actas4.pdf

  • 4

    NDICE APRESENTAO ................................................................................................................................................ 7

    O lgos e a essncia do humano .......................................................................................................... 8 Paula Renata de Campos ALVES

    O federalismo e a democracia no sculo XXI .............................................................................. 15 Jos Gomes ANDR

    Autonomy or heteronomy of the State? An enquiry into the political theory of The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte by Karl Marx ......................................................... 29

    Francesca ANTONINI

    Giorgio Agamben, leitor contemporneo do Peris Psykhs ................................................. 37 Jonnefer BARBOSA

    O papel do professor na instruo democrtica da criana: Uma reflexo crtica ao programa de Filosofia para Crianas de Matthew Lipman ................................................. 47

    Fernando BENTO

    Nuove cartografie (filosofiche) dellurbano: Abitare tra spazio esistente e spazio femminile..................................................................................................................................................... 57

    M. Giovanna BEVILACQUA

    Sul nuovo reale filosofico: Oltre il postmoderno ...................................................................... 66 Flavia CONTE

    La violenza originaria: Una violenza di principio nella filosofia di Mara Zambrano .......................................................................................................................................................................... 94

    Paola COPPI

    Political behaviour and moral behaviour between praxis and poiesis ......................... 105 Piergiorgio DELLA PELLE

    Uma reinterpretao da Filosofia da Natureza de Hegel: A ideia de vida e de organismo como ponto de partida para uma abordagem evolucionista .................... 114

    Margarida DIAS

    Existenz: Reflexes sobre tcnica e filosofia ............................................................................. 125 Joo Emanuel DIOGO

  • 5

    Ernst Cassirer: Da patologia da conscincia simblica definio dos limiares e horizontes do humano ........................................................................................................................ 144

    Moiss FERREIRA

    Metafsica da revoluo. Potica e poltica no ensasmo de Eduardo Loureno ..... 155 Maria Teresa FILIPE

    Exploration and regime of spatiality. The French expansionist project to the Terra Australis ...................................................................................................................................................... 162

    Simn Gallegos GABILONDO

    Godard e il colore che forma ............................................................................................................ 179 Roberto LAI

    possibile la filosofia oggi? .............................................................................................................. 191 Edoardo LAMEDICA

    Variaes fenomenolgicas de V. Flusser: Anlise fenomenolgica da lngua ........ 204 Helena LEBRE

    Le paradigme pistmologique des sciences conomiques. Vers la fin du dbat entre interventionnisme et montarisme ................................................................................. 212

    Elfge LEYLAVERGNE

    What metaphysics today?.................................................................................................................. 222 Rosa Maria LUPO

    Il fondamento e la fondazione. Alcune riflessioni sui presupposti di una fenomenologia senza presupposti ................................................................................................ 234

    Emanuele MARIANI

    Do substancialismo da tcnica heideggeriana sua politizao: Os propsitos da crtica de Andrew Feenberg ao essencialismo tecnolgico .............................................. 242

    ngelo Nunes MILHANO

    Contaminazioni: Immagine cinematografica e architettura contemporanea .......... 252 Federica PAU

    Regressar Lebenswelt. Resgatar a opacidade na reflexo ............................................. 260 Irene PINTO PARDELHA

    Do universalismo dialgico ao universalismo interativo: Adela Cortina e Seyla Benhabib .................................................................................................................................................... 266

    Maria do Cu PIRES

  • 6

    O fenmeno do tdio e o seu enraizamento na afetividade e na temporalidade humana ....................................................................................................................................................... 274

    Gabriela P

    O impacto educacional da corrupo ........................................................................................... 280 Zlia Maria Xavier RAMOS

    Vulnerabilidade social: Questes baseadas na anlise do trabalho precrio ........... 291 Carolina Costa RESENDE Jos Newton Garcia de ARAJO

    tica da natureza e esttica da paisagem .................................................................................. 300 Lus Portugal Viana de S

    In dubbio sulla cosa stessa. Note sul problema husserliano della integrit del dato percettivo ........................................................................................................................................ 309

    Roberto SIFANNO

    Podem as razes subjacentes a uma ao ser as causas (eficientes) dessa ao? Uma investigao filosfica sobre o poder causal da razo prtica .............................. 327

    Joo Carlos Sousa SILVA

    Percorsi astronomici in Platone ..................................................................................................... 343 Carla SOLDAT

    Sostanza e tempo. Una breve nota sul pensiero di Jonathan Lowe ............................... 351 Timothy TAMBASSI

    As implicaes polticas das categorias de vazio e de conjuntura em L. Althusser ........................................................................................................................................................................ 362

    Irene VIPARELLI

  • 7

    APRESENTAO O presente volume de Actas visa dar a conhecer alguns dos textos resultantes

    das comunicaes apresentadas nas IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia. Este encontro, que decorreu no Colgio do Esprito Santo da Universidade de vora nos dias 14, 15 e 16 de Junho de 2012, foi organizado pelo Grupo Krisis Grupo de Investigao em Filosofia Contempornea, com o apoio do Instituto de Filosofia Prtica e do Departamento de Filosofia da Escola de Cincias Sociais da Universidade de vora. A Comisso Organizadora foi composta por Moiss Ferreira, Irene Pinto Pardelha, Antnio Caselas, Jos Caselas e Miguel Antunes, e a Comisso Cientfica esteve a cargo de Irene Viparelli (U. de vora), Eduardo Pellejero (U. de Natal/Brasil) e Olivier Feron (U. de vora).

    As Jornadas tiveram como linha orientadora o tema Cartografias da Filosofia para o Sculo XXI. Em resposta ao desafio lanado atravs deste mote, foram dados a conhecer trabalhos que, inscritos em mltiplos domnios da reflexo filosfica, e privilegiando em muitos casos o dilogo interdisciplinar, demonstraram de maneira clara o dinamismo da investigao em Filosofia produzida nos mbitos nacional e internacional.

    Espera-se que esta publicao, contribuindo para divulgar as pesquisas dos autores nela reunidos, abra novas pistas e horizontes de reflexo quer queles que j desenvolvem o seu trabalho no interior da Filosofia, quer queles que, oriundos de outras reas do saber, descobrem na Filosofia uma fonte de revitalizao de todo o pensar.

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    8

    GRUPO

    Krisis

    O lgos e a essncia do humano

    Paula Renata de Campos ALVES Universidade Federal de Juiz de Fora UFJF (Brasil)

    RESUMO: A presente comunicao tem como escopo a interpretao heideggeriana de palavras fundamentais (Grundworte) do pensamento de Herclito, que trazem luz a questo da essncia do humano. no jogo entre um lgos humano e um lgos propriamente dito que essa questo pode ser elucidada. Para Heidegger, o lgos humano s ganha corpo em jogo com o lgos. Se o lgos, para o filsofo, a recolha dos entes na unidade do ser, o lgos humano, para participar desse lgos, aquele que pode dar ouvidos e, assim, dar voz a essa reunio. Essa correspondncia ns encontramos com o nome grego homologin. O homologin o dilogo da essncia do humano com aquilo que lhe confere a medida dessa essncia. Esse dilogo permite ao humano reconhecer seus traos mais prprios e, assim, aproximar-se de si mesmo, ou seja, alcanar sua essncia. PALAVRAS-CHAVE: Lgos, Homologin, Linguagem, Heidegger, Herclito ABSTRACT: This communication aims to analyse the heideggerian interpretation of the key words (Grundworte) from the thought of Heraclitus that illuminate the question of the essence of the human. It is within the game between a human lgos and a lgos which this issue can be elucidated. For Heidegger, the human lgos happens in the game with the lgos. If the lgos, to the philosopher, is unity of being, the human lgos is one that can hear this unit. This correspondence is called homologin. The homologin is a dialogue between the essence of the human with the logos that gives the measure of that essence. This dialogue allows the recognition of their human traits and approaches yourself, in other words, reaching its essence. KEYWORDS: Lgos, Homologin, Language, Heidegger, Herclito

    Doutora em Cincia da Religio pelo Departamento de Ps Graduao em Cincia da Religio da Universidade Federal de Juiz de Fora, com doutoramento sanduche junto ao Departamento de Filosofia Prtica da Universidade de vora. E-mail: [email protected]

    mailto:[email protected]

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    Paula Renata de Campos ALVES 9

    GRUPO

    Krisis

    O presente artigo pretende dissertar sobre a interpretao de Heidegger do lgos de Herclito, como sendo a palavra nomeadora do que podemos chamar, em termos heideggerianos, da essncia do humano.

    A importncia do termo lgos indiscutvel, j que marca profundamente nossa estrutura de pensamento ocidental. O pensamento, na tradio ocidental, mantm-se vinculado ao que conhecemos e nomeamos como lgica. Para Heidegger, esse vnculo do pensar ao que nomeamos lgica a questo mais elementar para que possamos entender em que bases assentam a estrutura de pensamento ocidental. Para que esse vnculo entre lgos e pensamento possa ser desdobrado em questo preciso que nos perguntemos sobre a lgica em sua nomeao originria. A nomeao da lgica pressupe o termo grego lgos e todo o seu contexto de nomeao, ou seja, a voz prpria que o trouxe luz do nome.

    Em primeiro lugar, precisamos lembrar que a lgica nasce em um momento especfico da histria do pensamento, no qual a filosofia grega se consolida em meio a uma fragmentao do saber em saberes, em disciplinas, ou seja, em modos de considerar as coisas em campos segmentados. Pensadas em seus aspectos determinados, isto , em contextos delimitados, o real passa a ser examinado, captado, em mbitos particulares. As disciplinas acadmicas so justamente o modo de captao do real, baseadas na fragmentao do saber, que ocasiona os saberes.

    A lgica, desde o princpio da tradio filosfica, pretende dar a conhecer aquilo que se passa com o lgos. Ela , contudo, uma determinada forma de relao com esse termo, um modo possvel de traz-lo linguagem do pensamento e, isto, na maneira privilegiada pela tradio do pensamento ocidental que chamamos de metafsica.

    Precisamos agora, ento, esclarecer o que que esse termo quer dizer, como pode ser traduzido de uma forma a nos aproximar de sua nomeao originria. Esse justamente o empreendimento heideggeriano que sobreleva uma grande importncia: pensar o que quer dizer o termo lgos embebido em sua arch implica em pensar desde onde a tradio filosfica, que tem a lgica como fora motriz, pde se consolidar.

    O termo lgos aparece, com grande importncia, no contexto de pensamento de Herclito. Para Heidegger, essa palavra, no contexto de pensamento de Herclito, nomeia a experincia grega da saga do dizer (Sage), do essencializar da linguagem. O substantivo lgos e o verbo lgein referem-se, para Heidegger, ao acontecimento do dizer em instncia mais originria, da linguagem em sua referncia ao prprio movimento do pensar. O pensar em seu acontecimento mais originrio, para o filsofo, no ocorre nem em virtude do ente em si e nem em virtude do ser para si, mas em virtude da dobra (Zwiefalt), do estar a ser, do entre ser e ente. Nessa referncia ao estar a ser do ente no ser e do ser que se deixa ver para e atravs do ente, o pensar ganha corpo a partir do lgein, que a articulao humana do lgos. Em outras palavras, o acontecimento originrio da linguagem reside no dizer que, em primeira instncia, no a pronncia, mas o movimento em que algo pode, ao mostrar-se, alcanar pronncia. Ao dizer, expresso no termo lgein, pertence o legtimo elo com o silncio. O dizer do lgos enquanto um lgein acontece como um deixar aparecer silencioso. O lgos, pensado como linguagem, convoca o ente alvorada do encontro. Convocar quer dizer: nomear celebrando, chamar.

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    Paula Renata de Campos ALVES 10

    GRUPO

    Krisis

    A linguagem, em seu pulsar inaugural, permite o aparecer daquilo que est a ser no ser, a tentativa de tornar explcito o movimento do ser sem estanc-lo. A sentena de Parmnides: Pois o mesmo pensar e ser (HEIDEGGER, 2007: 205), diz essa pertena entre ser e ente e nomeia a dobra, o entre, de to auto, ou seja, o mesmo. O mesmo no se refere a uma igualdade, mas a uma trama articulada na qual a unidade tece os fios da diferena. nessa co-pertena entre ser e pensar que podemos ver que o pensamento tambm se constitui como um dizer, no sentido de um apelo silencioso radicado na linguagem.

    O trao fundamental do mostrar da linguagem, que ilumina e rene tudo o que , o surgimento, o descobrir, ao que os gregos chamam de altheia. ao desencobimento, altheia, que Parmnides se volta para pensar o silenciamento do entre ser e ente, assim como Herclito para pensar o encobrimento daquilo que se doa.

    O desencobrimento permite que o ente seja visto, acolhido em seu despontar. Essa captao uma espcie de colocar defronte ao homem. No h vinda do ente luz sem esse captar que o perscruta, que o acolhe atravs do pensar. Pensar e iluminao do ente so faces da mesma moeda. O pensar ocorre como destinatrio daquilo que se oferece ao encontro; a destinao do ente tem o homem como endereo. A essa destinao, Parmnides chama de moira, o destino (do ser). Na moira, na destinao, o ser alcana o brilho, o ente alcana um aparecer e o homem se experimenta em sua essncia captadora. A histria do ser essa do acontecimento da moira, da iluminao do ser a partir do vir presena dos entes e da essncia do humano como captadora dessa presena, como o prprio lugar da presena acontecer. Convm enfatizar que se a altheia permite pensar o desencobrimento dos entes luz do ser, tambm com esse termo que o encobrimento pode ser pensado como constituinte do jogo do vir luz. A lthe, presente no termo altheia, o esquecimento, o deitar-se, o encobrir. Assim sendo, se o trao marcante da linguagem trazer luz (o ente), no menos marcante que o trazer luz , concomitantemente, empalidecer essa luz. O lgos enquanto provedor da luz da linguagem, retira-se, recusa-se a ela, na medida mesmo em que a sustenta, que nela subjaz.

    Heidegger compreende o lgos de Herclito como Versammlung, como a recolha reunidora dos entes na unidade do ser. Isto porque, para ele, h um sentido primordial nas palavras lgein e lgos, que no pensamos enquanto consideramos o dizer como um comportamento humano dentre tantos outros. Heidegger interpreta no termo lgein o sentido do que encontramos no legere latino e no lesen alemo, que o de apanhar ou colher algo, trazendo para uma reunio. O termo lgos pensado por Heidegger como uma colheita (die Lese).

    O termo alemo lesen comumente conhecido por expressar o sentido de ler, a ao de leitura. Heidegger vai ao encontro do sentido de ler como um colher. Vejamos como isso se d: Quando estamos a ler, estamos a participar de uma colheita, no sentido de que estamos deixando que aquilo que vem ao nosso encontro, que se mostra no discurso, nos envolva e nos libere para uma ateno. Como coletores ou leitores, encontramo-nos nessa correspondncia entre o que se mostra e a nossa disponibilidade para a captao. Na colheita ou na leitura, algo nos salta s vistas, ou seja, dispe-se a ser colhido e resguardado em uma unidade de sentido. Isso que salta s vistas no ler da leitura, conduz-nos a uma experincia, remete-nos a um encontro com a linguagem. O que antes no se encontrava em nosso horizonte, agora vem ao nosso encontro, ofertando-nos uma viso. Para dar

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    Paula Renata de Campos ALVES 11

    GRUPO

    Krisis

    espao ao ver que vislumbra a linguagem, necessrio, contudo, uma espera atenciosa pelo que no pode ser trazido fora, mas que vem por si mesmo luz da presena. No lesen, Heidegger encontra, ento, uma ao de tipo especial, que tem como motivao a espera, o aguardar pelo que vem a partir de si mesmo e que a partir de si mesmo se despede.

    O que , contudo, que colhemos a partir do lgein do lgos? O que est em questo nessa colheita do lgos? Ou seja, o que e como colhe o lgos?

    Vamos tentar responder a essas questes: O lgos dispe o ente ao encontro e convoca o homem, a partir de seu lgein, de seu dizer, a colher, a captar o que vem ao encontro. Essa captao a correspondncia do homem com aquilo que lhe permite ser o que , o correspondente do lgos. Essa correspondncia nomeada, em grego, no pensamento de Herclito, por homologin. O homologin o modo como o homem, acolhendo o que lhe destinado pelo ser, acede escuta de sua prpria provenincia, ou seja, daquilo que lhe diz respeito muito essencialmente. A escuta do homologin se dispe ao silncio de abertura da linguagem. A partir dessa escuta de tipo especial, porque originria, o homem pode se estiver atento, de ouvidos abertos para essa abertura pronunciar a palavra nomeadora do evento originrio de sua essncia. Pode, ento, perceber o que Herclito traz luz no termo lgos. A escuta dessa dimenso mais originria da linguagem marcada por um silncio caracterstico das destinaes. Um silncio cuja caracterstica mais prpria no o da mera ausncia de sons, mas o de sustentao do acontecimento da fala humana. Essa escuta do que no audvel, mas originador de compreenso, possibilita que o humano, como recolhedor de sentidos, recolha-se junto unidade daquilo que o convoca ao encontro. Enquanto recolhido nessa escuta, o homem est referido ao silncio do acontecimento de tudo o que no ser e do prprio ser. Silncio e encobrimento so aqui pressentidos como aquilo de que no se pode prescindir no acontecimento primordial da fala do humano, ou seja, de que no se pode prescindir no acontecimento primordial da presena dos entes, do vir luz e ao encontro do ente humano todas as coisas que so. Por isso que, no dizer humano, no lgein, torna-se possvel que acontea a colheita daquilo que s passvel de viso para aqueles aguardam pelo anncio silencioso da linguagem, pelo semblante delicado daquilo que no tem visibilidade. O que se pode ouvir nessa escuta de tipo especial que caracteriza o homologin a grande questo a respeito do que Heidegger interpreta no akouin grego, como a escuta; aquela dos mortais que, ouvindo, esbarram com o impronuncivel.

    O fragmento de nmero 50 de Herclito, na traduo/verso de Heidegger diz que: Se no ouvirem simplesmente a mim mas se tiverem auscultado (obedecendo-lhe na obedincia) o lgos, ento um saber (que consiste em) dizer igual o que diz o lgos: tudo um (HEIDEGGER, 2002: 270).

    De acordo com a interpretao de Heidegger desse fragmento, o que Herclito considera imprescindvel de ser ouvido pela escuta atenciosa do humano, no aquele o sujeito, a pessoa, a autoridade que pronuncia as palavras, e nem sequer somente os resduos de sentido daquilo que pronunciado. O que imprescindvel nessa escuta o prprio lgos, ou seja, o mbito de abertura desde o qual a palavra desabrocha. Nessa escuta, portanto, no se pode ouvir demasiadas coisas, uma vastido de contedos, mas apenas se atenta nela para o caso especial de que o que diz o lgos a cada vez em sua pronncia que Tudo um. E Tudo um porque o que rege o movimento do vir a ser de cada coisa uma articulao reunidora, sem a qual nada poderia ser ordenado para o surgimento.

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    Paula Renata de Campos ALVES 12

    GRUPO

    Krisis

    Inmeras so as interpretaes do lgos que ganham voz no decorrer da histria do pensamento: as palavras latinas Ratio, Verbum; assim como explicaes como lei do mundo, sentido, etc... mas, para Heidegger, nenhuma delas alcana a questo do lgos originrio, ou seja, do tipo de enunciado que confere ao homem a escuta de sua provenincia, o lugar de sua essncia. O que que sobrevm nessa escuta que capaz de nos remeter ao lugar de nossa essncia?

    O que sobrevm so as coisas em suas simplicidades, isto , em seu desabrochar mais ntimo e espontneo. A essa sobrevinda e retirada desde si mesmo de tudo o que , os gregos chamam physis. A physis pensada pelos gregos como o surgimento que j sempre tende ao encobrimento. As coisas pensadas desde a compreenso do ser como physis vm ao encontro do humano na medida em que este pode aguardar por esse advento, disponibilizar-se para esse encontro. As coisas em suas simplicidades desdobram mundo, isto , fazem brilhar uma articulao de referncias de sentidos na qual o prprio homem se reconhece como sendo o que . Na escuta obediente e pertinente s coisas em suas simplicidades, o mundo se abre nessa articulao de ser e ente que resguarda a essncia do humano. Nesse sentido, o mundo no pode ser a totalidade do ente como ideia transcendental, porque ele se d, antes de mais, como isto que est a a ser no ser, o prprio estar a ser a do ser.

    A escuta do homologin pressente o jogo do mundo no qual o prprio homem, tomando parte neste movimento, alcana seu modo de ser. Tomar parte, participar do jogo do mundo, da fala do lgos, o que Herclito chama de sofn estin, o a-se-saber, aquilo que mais digno de saber e que pode ser encontrado por todo e qualquer homem em sua busca por si mesmo.

    Na medida em que o homem encontra a si mesmo em sua pertena ao ser, atravs dessa escuta do homologin, ocorre o saber. Saber, ento, nesse sentido, deixar-se enredar pelo jogo do mundo, deixando as coisas se mostrarem em suas simplicidades; captando essa simplicidade com o pensar e deixando que o simples se preserve como simplicidade. Encontrar as coisas em suas simplicidades s pode acontecer na medida em que o humano encontra a si mesmo como aquele a quem ofertado uma escuta e uma fala.

    Mas o que podemos entender por deixar que as coisas se preservem em suas simplicidades? Essa pergunta pode ser feita tambm da seguinte maneira: O que quer dizer saber?

    Quer dizer, de acordo com a interpretao de Heidegger do pensamento de Herclito, ouvir o acontecimento da linguagem em seu mistrio de origem. Que a escuta do humano acontea como correspondncia, ou seja, como homologin, quer dizer que o humano aquele ente que pode aperceber-se da linguagem como lugar de seu acontecimento, de seu estar a ser, e assim, ouvir a linguagem como a sua voz prpria, ou seja, experimentar-se em sua essncia de humano.

    O carter de obscuridade que envolve o encontro da escuta do humano com o dizer do lgos, diz respeito prpria dinmica constituinte do ser em seu estar a ser, como vimos quando falamos do desencobrimento em sua relao indestituvel com o encobrimento. Desse modo, o lgos palavra reveladora da essncia do humano, mas tambm ocultadora dessa mesma essncia.

    Por isso, as essncias do ser e do humano, pensadas a partir do lgos querem e no querem, deixam e no deixam, ser nomeadas. O lgos pensado, no contexto de pensamento de Herclito, como raio, sbito claro que ilumina e subitamente se

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    Paula Renata de Campos ALVES 13

    GRUPO

    Krisis

    esconde. Herclito diz (na verso de Heidegger): o raio, porm, dirige (para sua vigncia) tudo (que vige). (HEIDEGGER, 2007: 196).

    No contexto de pensamento de Herclito, o raio compreendido como sinal do deus. Zeus, o deus do raio, o poder de presentificao, que traz luz o ente, assim como tambm conduz ausncia. Querer e no querer, deixar e no deixar ser nomeado a condio de toda palavra que revela o irrevelvel, que traz linguagem aquilo que conduz a linguagem em seu movimento, que descortina a essncia do humano. Querer e no querer ser nomeado significa no poder estar presente como se est um ente. Em outras palavras, significa estar presente no modo da ausncia.

    O Uno, o lgos, Zeus, so a dimenso do tempo que temporaliza, do ser que essencializa, do nomear que doa o nome. Por isso, no podem ser nomeados como o que vem a ser luz da presena, mas somente podem ser nomeados entreluzindo a presena na ausncia. Trata-se de uma modalidade de linguagem que no pode pretender esgotar sentidos, mas, apenas, abrir uma fenda para que o pensamento vislumbre essa dimenso misteriosa.

    esse jogo entre escuta e mensagem, entre silncio e dizer, presena e ausncia, luz e penumbra, que confere ao homem a sua essncia. no jogo com a linguagem que o homem alcana essa referida essncia e, mesmo uma vez alcanada, sempre e a cada vez que ele se reconhece nela, nunca definitivamente. O mais prprio do homem , como vimos, sua pertena ao lgos. A palavra como lgos diz aquilo que caracteriza a essncia do humano, que a sua correspondncia, o seu pr-se em jogo junto ao no humano, ausncia em toda presena.

    Aquilo que o homem escuta na ateno ao lgos no pode nunca ser esgotado na sua fala. Por isso, muito embora o lgos atravesse e institua o dizer como lgein, ele nunca chegar totalidade de um encontro, nunca poder ser reduzido a esse encontro. Contudo, o fato do lgos ser irredutvel ao lgein no significa que ele possa ser alcanado em qualquer reduto para fora, para alm do homem. Somente na e como linguagem que o lgos pode acontecer. na prpria linguagem que o jogo entre humano e no humano acontece.

    Aquilo que o homem escuta no homologin a linguagem em seu acontecimento mais espontneo e, assim, nessa escuta, ele experimenta a si prprio, alcana sua psiqu, ou seja, o ressoar de sua arch, de sua origem, daquilo que lhe possibilita ser o humano. O homologin , ento, a escuta em que o homem ouve sua prpria voz ao deixar falar o Outro. Isto que chamamos de Outro s se oferece na trajetria da linguagem e o que Heidegger nomeia Sage, a saga do dizer, isto , a linguagem sem palavras que o homem ausculta e com base na qual se formula todo discurso explcito (ARAJO, 2007: 160).

    Nisto que Herclito nomeia lgos e que Heidegger apreende como Sage, acontece a unidade de ser e dizer, de ser e pensar, e, assim, a prpria dinmica da essncia do humano.

    Sendo assim, o que se traz luz na dimenso da palavra grega lgos, entreaberta no pensamento de Herclito, o estar diante de um espelho em que, se olhamos cada vez mais fundo para aquilo que foi nomeado primordialmente pelo pensador, encontramos a imagem sem forma do no pensado.

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    Paula Renata de Campos ALVES 14

    GRUPO

    Krisis

    BIBLIOGRAFIA ARAJO, P. J.: Metafsica e Religio: Silncio e Palavra. Texto-aula apresentado na disciplina

    Metafsica e Religio do Programa de Ps-Graduao em Cincia da Religio da Universidade Federal de Juiz de Fora (Texto policopiado), 2007, p. 160.

    HEIDEGGER, M.: Introduo Metafsica, Lisboa, Instituto Piaget, 1977.

    ___________________ Herclito. A origem do pensamento ocidental. Lgica. A doutrina heracltica do lgos, Rio de Janeiro, Relume Dumar, 2002.

    ___________________ A Caminho da Linguagem, Petrpolis, Vozes, 2003.

    ___________________ Ensaios e Conferncias, Petrpolis, Vozes, 2007.

    ___________________ Parmnides, Petrpolis, Vozes, 2008.

    HEIDEGGER, M.; FINK, E.: Herclito, Barcelona, Ariel, 1986.

    KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.: Os filsofos pr-socrticos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1982.

    LEO, E.; WRUBLEWSKI, S.: Os pensadores originrios: Anaximandro, Parmnides, Herclito, Petrpolis, Vozes, 1991.

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    15

    GRUPO

    Krisis

    O federalismo e a democracia no sculo XXI

    Jos Gomes ANDR Universidade de Lisboa (Portugal)

    RESUMO: As ltimas dcadas trouxeram novos desafios ideia de democracia, como a globalizao, o crescimento desmesurado dos poderes econmicos e o domnio das mquinas partidrias sobre a aco poltica, entre outros. Daqui tem resultado um gradual enfraquecimento das democracias contemporneas, controladas por uma elite poltica inbil e marcadas por uma sociedade civil inoperante e um progressivo afastamento dos cidados face aos processos decisrios. Neste artigo reflectimos sobre potenciais solues para estes problemas, reavaliando em particular os benefcios do federalismo na promoo de valores democrticos. Com efeito, devido sua natural predisposio para o policentrismo e a difuso administrativa, o federalismo pode estimular uma maior participao popular nos processos decisrios, revigorar o conceito de cidadania, criar mecanismos adicionais de vigilncia aco poltica, levar a importantes alteraes no sistema partidrio, proteger as minorias e promover o pluralismo com maior eficcia, e ainda fornecer o enquadramento formal de cooperao transnacional avidamente exigido pela nova ordem internacional. PALAVRAS-CHAVE: Federalismo, Democracia, Filosofia poltica

    ABSTRACT: The last decades have brought new challenges to contemporary democratic societies, such as globalization, the unchecked growth of economic powers and the predominance of party machines over political action, among others. This has lead to a progressive weakening of current democracies, controlled by incapable political elites and marked by an inoperative civil society and a growing distance between citizens and the political deliberation process. Our paper aims to consider potential solutions to these problems, reassessing the benefits of federalism in the promotion of democratic values. In fact, due to its natural predisposition to polycentrism and diffusive administrative patterns, federalism may stimulate a stronger popular participation in the decision-making process, reinvigorate the concept of citizenship, create additional mechanisms of vigilance to the political action, bring important changes to the party system, protect minorities and promote pluralism more effectively, and provide the kind of transnational cooperation framework eagerly demanded by the new international order. KEYWORDS: Federalism, Democracy, Political philosophy

    Professor Auxiliar Convidado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Trabalha num ps-doutoramento sobre Federalismo Moderno e Contemporneo. Doutorou-se em Filosofia Poltica com uma tese sobre o pensamento poltico de James Madison. Membro do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. As suas publicaes e conferncias centram-se sobretudo no federalismo norte-americano e na filosofia poltica do sc. XVIII. E-mail: [email protected]

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    Jos Gomes ANDR 16

    GRUPO

    Krisis

    Esquema do artigo Um conjunto de eventos e realidades diversificadas desafiam hoje a

    democracia, que parece mergulhada numa crise de amplas propores. Este artigo procura descrever alguns desses eventos/desafios e reflectir sobre o modo como a ideia de federalismo pode ser til para encar-los, fomentando valores democrticos actualmente em perigo. Face aos equvocos habitualmente presentes nas abordagens ao conceito de federalismo, pareceu-nos apropriado comear o nosso ensaio com uma clarificao do seu significado. Seguidamente enunciaremos alguns dos desafios que ameaam as democracias hodiernas, analisando posteriormente em que medida o federalismo lhes pode responder positivamente, fortalecendo os princpios democrticos. Concluiremos este texto com uma breve reflexo acerca dos limites da ideia de federalismo, a qual, apesar das suas virtudes, no pode ser encarada como uma soluo definitiva para todos os problemas que assolam as democracias contemporneas.

    1. O que o federalismo? Manipulado por foras partidrias, desdenhado preconceituosamente por

    agentes polticos pouco esclarecidos e incompreendido por muitos jornalistas e outros divulgadores, a noo de federalismo constitui um dos mais nebulosos termos presentes no debate pblico. Associado experincia poltica norte-americana, veio a ser utilizado no continente europeu como sinnimo de centralizao poltica, descrevendo uma putativa agregao dos vrios pases europeus num super-Estado omnipotente, com sede em Bruxelas (THATCHER, 1988). O federalismo tornou-se pois numa palavra maldita, usada pelos seus detractores como o equivalente a um Leviat dos tempos modernos, que engoliria as naes europeias num s vrtice poltico, anulador de todas as diferenas polticas e culturais, discricionrio (se no mesmo desptico) na sua governao e domnio no Velho Continente. Esta leitura caricatural tem inclusive contaminado ocasionalmente o mundo acadmico, onde no faltam descries equvocas sobre o significado daquele termo (GALLOWAY, 2001: 163; LOU & MORTGUA, 2012: 199-200).

    Uma abordagem ndole conceptual do federalismo, mesmo que breve, permite-nos perceber quo contraditrios e errneos so estes diagnsticos. Provindo dos timos latinos fides (confiana) e foedus (pacto, acordo), a ideia de federalismo implica uma relao cooperativa entre vrias entidades unidas por objectivos comuns. Tal relao conduz tipicamente a uma unio poltica dotada de um governo central, que porm coexiste lado a lado com estruturas de poder concorrentes, inerentes aos membros que formam essa unio. Numa associao federal, as decises no emanam por conseguinte de um nico rgo ou super-estrutura, ocorrendo outrossim no quadro de uma intrincada matriz de autoridades concomitantes, permanentemente ligadas entre si. Daniel Elazar, um dos maiores tericos do federalismo do sculo XX, esclarece-nos a este propsito:

    Os princpios federais relacionam-se com a combinao de

    autogoverno [self-rule] e governo partilhado [shared rule]. [...] Como princpio poltico, o federalismo tem a ver com a distribuio constitucional de poder,

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    Jos Gomes ANDR 17

    GRUPO

    Krisis

    de forma a que os elementos constitutivos de um esquema federal partilhem de direito os processos de deciso poltica e administrativa comuns, enquanto as actividades do governo comum so conduzidas de modo a que aqueles elementos mantenham as suas respectivas integridades. (ELAZAR, 1987: 5-6)

    Enquanto acordo composto, o federalismo no implica a agregao das partes constituintes numa estrutura nica, ou a compresso dos Estados numa organizao poltica unidimensional. Os sistemas federais baseiam-se, ao invs, num princpio oposto: o estabelecimento de um acordo entre entidades polticas que mantm um estatuto formal idntico, pese embora estejam vinculadas a um corpo poltico comum. Este exige que se constitua um eixo central (que mantm essas entidades diversas agregadas), mas em seu redor gravita um amplo conjunto de rgos de poder complementar. Ainda que os organismos centrais beneficiem de supremacia jurisdicional em matrias especficas, o federalismo por natureza polirquico. O seu modus operandi baseado na colaborao entre vrias unidades polticas, que contudo no esto subjugadas a num nico plo de autoridade, sendo antes preservadas como partes constituintes de um edifcio multiforme.

    Em evidente contraste com formas unitrias de governo tipicamente assentes numa hierarquia fixa, que faz os processos polticos circular num eixo vertical (agindo um governo centralizado directamente sobre todo o territrio) as associaes federais dependem principalmente de ligaes horizontais, decises partilhadas e dilogos entre autoridades legais e polticas diferentes (HRBEK, 1995: 553; NICOLAIDIS, 2006: 69). Mesmo solicitando a criao de um governo central (por motivos de eficcia na procura de objectivos mtuos), o federalismo depende permanentemente de uma comunicao inter-institucional entre vrias organizaes de poder equidistantes, as quais so encorajadas a agir em conjunto para obter solues comuns para problemas comuns, no mbito das suas capacidades e competncias.

    Do ponto de vista formal, um sistema federal agrega assim uma estrutura piramidal, tendo na base um conjunto alargado de governos regionais (que podem ser designados de Estados, provncias, etc.), que usufruem de ampla autonomia poltica, legislativa e econmica, surgindo no topo da pirmide um governo central com competncias reforadas e supremacia jurisdicional em reas designadas pelo acordo constitucional. A relao entre o topo e a base da pirmide porm francamente dinmica, e a referncia a uma primazia dos rgos centrais serve, acima de tudo, para destacar a existncia de um vnculo entre todas as partes, no devendo ocultar que, no interior da referida pirmide, existem inmeras relaes colaterais entre organismos e estruturas com estatuto poltico idntico, independentemente do lugar que ocupam no sistema em geral.

    2. A democracia na actualidade: problemas e desafios O conceito de democracia moderna, que se tornou poltica e filosoficamente

    hegemnico no decorrer do sculo XX, tem as suas razes nas grandes revolues liberais do sculo XVIII, fundamentando-se num conjunto de proposies hoje globalmente reconhecidas: a existncia de eleies livres e de diversos partidos polticos legalmente autorizados, a ideia de representao poltica, o funcionamento de tribunais independentes, a imposio de limitaes legais

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    Jos Gomes ANDR 18

    GRUPO

    Krisis

    aco governativa, a proteco de vrias liberdades individuais, a laicidade do Estado, o respeito pelo princpio do consentimento fiscal, entre outros.

    Estes princpios so ainda essenciais na vida das democracias hodiernas, possuindo uma renovada pertinncia em reas do globo onde so apenas parcialmente praticados. Todavia, eles tm-se revelado ao mesmo tempo insuficientes para lidar plenamente com os novos desafios colocados pelas sociedades democrticas contemporneas, nomeadamente em pases ocidentais onde tais princpios so respeitados, mas onde as aspiraes democrticas dos povos permanecem de vrias formas ainda por responder. Estes desafios so muito diversificados em nmero e em caractersticas, mas tentaremos identificar em seguida alguns dos mais importantes.

    Primeiramente, o surgimento de desafios supranacionais, associados ao que se convencionou chamar de globalizao. A democracia ocidental moderna nasceu e desenvolveu-se em simultneo com o aparecimento do Estado-nao. Como tal, o enquadramento institucional das primeiras experincias democrticas modernas assentaram sobretudo em orientaes legais uniformizadas, necessrias sustentao de uma nova administrao central e, em rigor, de um novo tipo de Estado democrtico, mas ainda assim muito dependente de dinmicas de centralizao e homogeneizao legal, jurdica e administrativa, para sua maior eficcia num renovado quadro normativo e simblico. A emergncia, nas ltimas dcadas, de realidades polticas que requerem uma forte cooperao entre os Estados (tais como migraes macias, o reforo do comrcio internacional, polticas monetrias partilhadas, desafios ambientais, etc.), exige porm novos tipos de relaes institucionais, designadamente alguma forma de coordenao supranacional, com as quais, no entanto, as democracias modernas parecem ter dificuldades em lidar, chocando aquelas dinmicas inter-estatais com a sua natureza primordialmente unitria.

    Um segundo desafio peculiar da actualidade a relevncia das minorias. Praticamente inexistentes quando as primeiras experincias democrticas tiveram lugar, as minorias religiosas e tnicas representam actualmente uma populao considervel e em crescimento entre as sociedades democrticas. No obstante, uma vez que as democracias so essencialmente baseadas no governo da maioria [majority rule], essas minorias tm sido repetidamente excludas dos mais importantes rgos polticos, como tambm do processo decisrio em geral. Encontrar um lugar para as minorias no quadro democrtico permanece um dos desafios mais difceis, e todavia mais urgentes, da poltica contempornea.

    Em terceiro lugar, destaque-se o problema do crescimento desmesurado dos poderes econmicos. Essenciais na vida quotidiana das democracias modernas, os agentes econmicos (tomados em sentido lato: bancos, corporaes, investidores, mercados, etc.) prosperaram rapidamente no sculo XX muito beneficiando da desregulao e de leis ambguas ao ponto de os aspectos fundamentais da actividade poltica estarem agora fortemente subordinados aos poderes econmicos. Estes poderes constituem uma ameaa substancial s democracias hodiernas, uma vez que eles no so institucionalmente enquadrveis e/ou exercem a sua influncia atravs de canais isentos de um eficaz controlo poltico.

    Um outro problema premente na actualidade democrtica a preponderncia das mquinas partidrias na esfera pblica. Apesar da existncia de partidos polticos ser h muito reconhecida como uma marca distintiva de uma democracia slida, o modo peculiar como os partidos intervm hoje no processo

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    Jos Gomes ANDR 19

    GRUPO

    Krisis

    poltico gera vrios problemas democracia, o mais relevante dos quais a forma como se limita a participao do cidado comum na vida poltica. Tornando-se nos nicos intermedirios efectivos entre a sociedade (entendida como um todo) e a prtica poltica, os partidos ergueram um obstculo quase inultrapassvel aos cidados que pretendam juntar-se aos processos decisrios, sem pertencerem a esses partidos.

    Por fim, recordemos os perigos inerentes aos abusos de poder. Fenmenos como a corrupo, o nepotismo e as nomeaes poltico-partidrias (designadas no mundo anglo-americano por patronage) sempre existiram na experincia democrtica. No entanto, a sua recorrncia e talvez mesmo aumento em anos recentes prejudicou notoriamente a eficincia da democracia. Quando associadas a um dos piores efeitos do domnio das mquinas partidrias nas democracias actuais (a diminuio da responsabilidade dos agentes polticos, os quais parecem responder mais directamente s lideranas partidrias do que ao povo que os elege), tais formas de aco poltica nociva contriburam para o aumento das vises negativas que a opinio pblica vem sentindo em relao democracia.

    Estes e outros factores levaram a um enfraquecimento progressivo das democracias actuais, controladas por elites polticas incapazes e marcadas por uma distncia crescente entre os cidados e o processo poltico deliberativo. O nosso artigo procura considerar solues potenciais para estes problemas, reavaliando em particular os benefcios do federalismo na promoo de valores democrticos, que sero considerados em seguida.

    3. As virtudes do federalismo e a renovao dos princpios democrticos

    O incremento da participao popular na esfera poltica As duas caractersticas mais relevantes do federalismo so a descentralizao

    e a consagrao do princpio de subsidiariedade. A primeira implica a existncia de uma ampla rede de estruturas polticas, garantindo-se a unidade do sistema por via da integrao dessa rede num projecto poltico comum, que todavia assenta na multiplicidade e disseminao de processos decisrios. J o princpio de subsidiariedade estabelece que, neste organismo poltico complexo, os rgos superiores s devem agir se as matrias em causa no puderem ser executadas com a mesma eficcia pelas unidades subalternas. Dito de outro modo, considera-se benfico que os governos inferiores usufruam de uma srie de prerrogativas podendo responder s pretenses imediatas dos seus habitantes e equilibrando a distribuio de poderes em relao ao governo central. Este ltimo dever intervir apenas nas questes que so da sua competncia exclusiva, respeitando a autonomia dos governos subalternos.

    Estes dois princpios so muito importantes para a promoo de valores democrticos por duas razes. Primeiro, porque amplificam a ideia de representao, encorajando dinmicas de proximidade entre os actores polticos e os cidados comuns, os quais podem ver as suas necessidades mais rapidamente atendidas, devido existncia de unidades de deciso com poder significativo prximas de si. Simultaneamente, aumentam a responsabilidade dos agentes polticos face aos seus constituintes, medida que as decises pblicas tendem a

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    Jos Gomes ANDR 20

    GRUPO

    Krisis

    estar ligadas com nomes familiares, e no mais a funcionrios polticos distantes e muitas vezes inidentificveis. O federalismo enfatiza portanto a responsabilidade poltica, criando elos mais fortes entre representantes e representados, permitindo uma melhor comunicao entre eles e aumentando tambm as hipteses de uma recompensa (ou de uma punio) eleitoral queles que foram pessoal e directamente mais capazes (ou incapazes) na proteco do bem comum e dos interesses da comunidade.

    Por outro lado, atravs da descentralizao, o federalismo pode maximizar a participao popular nos assuntos polticos. Tal pode suceder atravs da criao de um maior nmero de estruturas governativas providenciando consequentemente mais oportunidades para os cidados influenciarem os processos decisrios. Devido sua predisposio natural para padres administrativos diversos e difusos, o federalismo cria portanto diversas etapas e palcos para a organizao, envolvimento e mobilizao polticas. Estas disposies no garantem per se o incremento do envolvimento popular na poltica, mas oferecem pelo menos uma hiptese melhor e adicional para uma participao activa (HRBEK, 1995: 556-567), particularmente atractiva para o povo porque uma grande parte de decises polticas substantivas ocorre a um nvel local, mais acessvel aos cidados comuns e onde maior a visibilidade dos efeitos do processo poltico, tal como Mark Tushnet sublinha:

    O federalismo promove a participao porque [...] as pessoas

    consideram mais fcil envolver-se na aco poltica em jurisdies mais pequenas: quanto mais pequena a jurisdio, mais provvel que a aco poltica de uma pessoa venha a afectar efectivamente as decises polticas [policy], e mais claro ser para o eleitor que a sua participao acabou mesmo por fazer a diferena. (TUSHNET, 1998: 308)

    O aumento da participao popular, mesmo que ocorra inicialmente apenas a um nvel local, pode assim produzir benefcios adicionais no longo-prazo, devido aos seus efeitos pedaggicos. Pois essa participao potencia o interesse dos indivduos na discusso e deliberao polticas, promovendo a ideia de uma sociedade pblica e aberta, gerando cidados mais vigorosos, os quais, aps a experincia a um nvel local, estaro mais dispostos a participar noutros palcos da aco poltica (nomeadamente nos governos regionais e nacionais) (TUSHNET, 1998: 308-309).

    Uma cidadania revigorada Ao estabelecer uma rede de conexes sociais e polticas a montante da aco

    governativa, assente no primado da interveno cvica, o federalismo remete para o significado mais genuno da palavra democracia, como o governo do povo, para o povo, e pelo povo (nas famosas palavras de Abraham Lincoln), porque celebra a capacidade (e o direito) de cada indivduo (ou pequenas comunidades) em assumir uma participao seminal nas decises que afectam directamente a sua vida quotidiana. Por conseguinte, o federalismo permite revisitar o conceito de cidadania, no mais entendido apenas como o direito do indivduo ao pleno domnio das suas aces privadas (ou ao estar isento da aco do Estado), mas

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    Jos Gomes ANDR 21

    GRUPO

    Krisis

    primariamente como o direito (e, de alguma forma, o dever) de tomar activamente parte nas decises colectivas do corpo pblico.

    Presente em vrias obras tericas contemporneas (mormente em autores da chamada Escola Comunitarista: McCLAY, 1998: 101-108; SANDEL, 2005: 9-34, 156-173), esta ideia, na verdade, sempre foi uma caracterstica essencial das reflexes sobre federalismo e democracia ao longo da histria. A este propsito, recordemos as observaes de Thomas Jefferson, um dos primeiros autores a estabelecer uma relao muito directa entre o conceito de federalismo e a ideia de democracia.

    Tendo no auge da sua vida contribudo directamente para a implementao de uma repblica federal nos Estados Unidos, Jefferson viria, na sua velhice, a confessar-se algo desiludido pela diminuta participao do povo no processo poltico. Na sua correspondncia, Jefferson apresenta ento uma proposta para ultrapassar esse problema, a qual consistiria na criao de um vasto sistema de wards divises administrativas locais, de dimenso reduzida, atravs da qual os cidados seriam chamados a intervir directamente nos assuntos da governao. Algo mais do que simples circunscries ou municpios (uma traduo portuguesa possvel seria micro-municpios ou at mesmo bairros), os wards corresponderiam a genunos espaos pblicos de discusso e deciso, permitindo a participao directa de cada indivduo na tomada de deliberaes polticas colectivas.

    Recuperando a prtica histrica dos town hall meetings, os wards teriam assim funes em reas relacionadas com o dia-a-dia das comunidades, como o cuidado dos pobres, a organizao das escolas e da instruo pblica, a construo de estradas, a nomeao de jurados para exercer a justia em pequenos casos, a constituio de uma polcia e de uma milcia, entre outras actividades propriamente locais (JEFFERSON, 1984: 1308).

    Jefferson considerava que a adopo destas estruturas de poder e a sua inscrio no sistema poltico americano potenciaria um maior envolvimento do povo no processo de governao. Estamos, pois, perante uma apologia da participao individual alm do simples acto peridico da votao eleitoral e da escolha dos governantes, possvel pela criao de um espao privilegiado para um exerccio cvico. Nestes termos,

    [...] cada ward seria assim uma pequena repblica dentro de si prpria,

    e cada homem no Estado tornar-se-ia portanto um membro activo do governo comum, transaccionando pessoalmente uma grande poro dos seus direitos e deveres [...]. O engenho humano no poderia imaginar uma base mais slida para uma livre, duradoura e bem administrada repblica. (JEFFERSON, 1984: 1492-1493)

    Este conceito de ward parece consignar um regresso noo da polis grega. Tal como para os clssicos, o que est aqui essencialmente em causa a pretenso de cultivar a realizao do indivduo atravs de um exerccio activo de cidadania. O ward seria assim (pois nunca chegou a ser implementado) esse espao pblico que concederia a cada indivduo a possibilidade de agir enquanto cidado, ou seja, de intervir como participante autnomo e singular num processo de deciso poltica colectiva. Primeiramente, seria enaltecido o direito de cada pessoa ao autogoverno,

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    Jos Gomes ANDR 22

    GRUPO

    Krisis

    mas logo se enfatizaria que esse gesto individual s adquire sentido quando inscrito na vida pblica e na dinmica da governao.

    Freios e contrapesos O federalismo pode tambm ser benfico para a democracia pela forma como

    multiplica os mecanismos de vigilncia, reforando os freios e contrapesos (checks and balances, na mais popular designao anglo-americana) de um sistema poltico. Ao criar nveis adicionais de governo inscritos na estrutura poltica principal o federalismo, por um lado, procede a uma ampla repartio do poder por vrios organismos (evitando a concentrao da autoridade num nico rgo, distante e potencialmente abusivo), por outro, estimula as vrias estruturas de poder a uma vigilncia recproca, procurando que nenhuma delas extravase a sua rea de jurisdio. Cioso da natureza transgressora da autoridade, o federalismo promove assim uma atmosfera de zelo mtuo entre os actores polticos, incitando-os a evitar por todos os meios invases indevidas das suas prerrogativas especficas, o que ajuda por conseguinte a manter a aco poltica num quadro de competncias restritas. Ao aumentar o nmero de actores num sistema poltico, o federalismo cria portanto uma salvaguarda indispensvel contra o abuso de poder, como sublinha Elazar:

    [...] o federalismo politicamente slido devido sua feio composta

    [...]; ao garantir uma difuso de poder constitucional, o federalismo permite que a ambio contrabalance a ambio para o bem do corpo poltico, prevenindo que a ambio se consolide em detrimento deste ltimo. (ELAZAR, 1987: 29) Neste excerto presta-se justa homenagem a James Madison (autor da

    expresso que a ambio contrabalance a ambio, MADISON, 1977: 477), provavelmente o primeiro autor da tradio ocidental a sublinhar a capacidade do federalismo para proteger o bem comum ao tirar partido dos traos negativos da natureza humana (como o desejo de poder e de controlo, por exemplo), os quais podem ser usados no devido enquadramento institucional (que o federalismo visa edificar) para reforar a vigilncia mtua entre os agentes e as estruturas polticas. Isto sucede precisamente porque os interesses pessoais dos polticos e das instituies na manuteno das suas jurisdies incrementam a sua ateno contra ameaas ilegtimas a essas jurisdies (ANDR, 2012: 108-111).

    As anlises contemporneas sobre os benefcios do federalismo tambm recorrem com frequncia ideia de uma negatividade da natureza humana, ao procurarem encontrar caractersticas egostas que possam ainda assim ser colocadas ao servio do interesse pblico (numa curiosa reviso do clebre axioma de Bernard de Mandeville, vcios privados, virtudes pblicas). Um bom exemplo a reflexo do Prmio Nobel Roger Myerson, que defendeu num artigo recente que as foras da competio democrtica podem ser aguadas pelas ambies nacionais dos lderes locais (MYERSON, 2006: 5). Usando modelos tericos para avaliar o comportamento de lderes polticos em sistemas federais, Myerson descobriu que a diviso federal de poderes fomenta uma governao saudvel, pois cria incentivos adicionais para os lderes regionais, os quais desejam construir uma boa reputao enquanto cobiam um papel futuro a nvel nacional. Num sistema

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    Jos Gomes ANDR 23

    GRUPO

    Krisis

    unitrio, os polticos ambiciosos podem facilmente contaminar a poltica pblica com o seu interesse pessoal, mas num modelo federal, que confere poder efectivo a vrios nveis, a feroz competio entre actores polticos cria motivos e oportunidades para promover boas prticas democrticas, canalizando as ambies pessoais para a construo de carreiras pblicas de excelncia (MYERSON, 2006: 5 et passim).

    Alteraes no funcionamento dos partidos e do sistema partidrio O federalismo pode igualmente ser til para o aperfeioamento dos sistemas

    democrticos ao alterar a forma como os partidos polticos operam, designadamente descentralizando a sua organizao e introduzindo variantes inclusive na sua plataforma ideolgica. Conferindo diferentes prerrogativas e competncias aos actores polticos consoante a sua funo e lugar nos vrios componentes das diversas estruturas governativas, os sistemas federais podem remodelar a natureza da competio inter-partidria e os incentivos para os polticos, forando-os a uma maior adequao s necessidades regionais e locais. Por outro lado, o j referido modelo de proximidade entre representantes e constituintes, tpico do federalismo, contribui para uma maior concordncia entre as aces polticas e os interesses dos cidados comuns. Em sistemas federais, os partidos esto portanto mais ligados e dependentes da opinio pblica do que em pases unitrios, onde as organizaes partidrias devido sua faceta nacional mais abrangente requerem habitualmente uma liderana mais rgida e centralizada.

    O caso norte-americano pode ilustrar as vantagens do federalismo nesta matria. Devido s amplas diferenas culturais, sociais e ideolgicas entre os Estados, os partidos polticos so organizaes fortemente descentralizadas, uma vez que tm de se adaptar s prioridades mutveis do eleitorado. Assim, as estruturas do Partido Democrata no Sul so muito mais conservadoras do que as suas congneres na Costa Leste, por exemplo (o mesmo vlido para o Partido Republicano). De igual modo, a plataforma poltica dos partidos nos Estados rurais do Wyoming ou Idaho difere substancialmente das propostas defendidas no Rustbelt (Ohio, Michigan, Pensilvnia, etc.) pelos mesmos partidos. Estas diferenas so claramente reforadas pelas caractersticas complexas do sistema federal, o qual, devido aos seus mltiplos mecanismos decisrios, exige dos partidos uma grande flexibilidade (em questes de ideologia, mas tambm de organizao e composio), num panorama geral em que existe [...] um mbito muito alargado para dissonncias entre organizaes partidrias dos Estados no que respeita representao e s eleies para a Presidncia, para o Congresso, para a escolha do Governador [dos Estados] e para as eleies estaduais e locais (BURGESS, 2006: 152).

    Porque dominam a vasta maioria dos cargos polticos a nvel nacional, pode parecer que os Partidos Democrata e Republicano so organizaes fortemente centralizadas. Na verdade, sucede justamente o contrrio, resultando eles de uma larga coligao de estruturas locais e estaduais, com diferentes mensagens polticas ou at mesmo estratgias eleitorais, necessrias para ganhar votos em diversas regies da federao. Os partidos nacionais nos Estados Unidos da Amrica so assim muito frgeis. Tal deve-se, em parte, inexistncia de uma

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    Jos Gomes ANDR 24

    GRUPO

    Krisis

    disciplina partidria (por motivos histricos e organizativos, no h compromissos gerais quanto ao voto dos representantes, sendo este estritamente individual em todos os cargos polticos relevantes dos EUA), bem como personalizao da poltica (as candidaturas so essencialmente individuais, quer na organizao, quer na recolha de fundos, surgindo os partidos apenas como estruturas de apoio e como smbolos para mais fcil identificao e reconhecimento poltico-ideolgico). No entanto, o factor que melhor explica a mencionada fragilidade dos partidos polticos norte-americanos , precisamente, a diversidade das suas posies polticas, o que neste caso favorece princpios democrticos, uma vez que os partidos cortejam a aprovao popular adaptando-se s (diferentes e abrangentes) necessidades e aspiraes do povo1.

    Pluralismo, minorias e globalizao Outro aspecto importante do federalismo resulta do modo como procura

    promover o pluralismo, uma marca distintiva da experincia democrtica, facilitando o acesso das minorias ao processo poltico, tal qual assinala Rudolf Hrbek:

    As minorias [...] podem ter um maior peso a nvel regional que lhes

    confira melhores oportunidades para promover os seus interesses no quadro da organizao nacional. [...] Uma estrutura federal torna mais fcil para as minorias ganharem terreno, crescerem e consolidarem-se a um nvel regional. [...] Uma estrutura federal no permite que se marginalizem as minorias. (HRBEK, 1995: 557)

    Num modelo poltico unitrio, as minorias tm grandes dificuldades em impulsionar a sua agenda, devido escassa relevncia dos temas minoritrios quando comparados com as questes gerais que preocupam a maioria. Pelo contrrio, um esquema federal que contm mltiplos nveis de governo, incluindo uma diviso de poder territorial alarga as hipteses de grupos especficos se manifestarem, especialmente se o peso demogrfico desses grupos for, numa regio particular, proporcionalmente superior sua representao no nvel nacional. Nesses casos, a existncia de uma unidade poltica especfica com poderes reservados indispensvel para proteger tais minorias contra a superioridade da maioria, alojada nos corpos nacionais. Esta a razo pela qual muitos sistemas federais adoptam clusulas especiais de proteco para grupos minoritrios que desejem preservar a sua cultura ou a sua lngua (veja-se o caso da Blgica, Sua ou Canad), conferindo a certos Estados (ou regies) uma autonomia significativa ou at mesmo um poder de veto em determinados assuntos polticos.

    A ideia de que o federalismo pode promover valores democrticos protegendo os direitos minoritrios um aspecto constante nas reflexes histricas sobre esta matria. Ela surge desde logo com os Founding Fathers norte-americanos, nomeadamente na famosa teoria da repblica alargada [extended republic], apresentada por James Madison, que defende a diversidade poltica e social como o instrumento mais adequado para lidar com a existncia de faces

    1 Tivemos o ensejo de abordar a organizao dos partidos polticos norte-americanos num outro estudo: ANDR, 2008: 205-208.

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    Jos Gomes ANDR 25

    GRUPO

    Krisis

    (grupos motivados por interesses particulares), os quais, num ambiente plural, tm menos hipteses de se constiturem como uma maioria abusiva contra os interesses de grupos minoritrios (MADISON, 1977: 263-270; ANDR, 2012: 152-162).

    Encontramo-la tambm nas obras de Arend Lijphart, onde o federalismo enumerado como um dos mais efectivos mecanismos das democracias consocionalistas [consociational democracies], protegendo as minorias contra as maiorias eleitas atravs da criao de subunidades polticas com uma reserva de soberania substancial, onde uma minoria tnica ou cultural tem uma predominncia especfica (LIJPHART, 1977). Os benefcios do federalismo para os direitos minoritrios so ainda enfatizados no pensamento de Daniel Elazar, que sublinha a importncia das maiorias compostas para a democracia, i.e., o facto de as maiorias polticas deverem consistir de uma agregao de diversas minorias ou grupos confederados (que seriam governados por consenso), e no dominados por uma nica faco cultural ou ideolgica que adquiriria predominncia institucional (ELAZAR, 1987: 263).

    Todos estes autores concordam que o federalismo pode ser til para as minorias de uma forma dupla. Primeiro, ao criar para as minorias uma barreira imunitria contra abusos de poder; em segundo lugar, porque o federalismo promove a integrao das minorias no processo poltico nacional, reservando-lhes um papel especfico nos elaborados processos negociais prprios de um modelo federal.

    A capacidade dos sistemas federais para promover colaboraes entre vrias entidades em busca de objectivos comuns e para construir consensos razoveis entre mltiplas instituies habitualmente marcadas por interesses divergentes , com efeito, talvez o valor mais importante do federalismo, tornando-o pertinente em muitas situaes na qual existe diversidade (seja de uma natureza cultural, social ou poltica) e onde, contudo, uma qualquer forma de entendimento e de esforo comum necessita de ser encontrada e desenvolvida. Assentando na cooperao, no debate livre e na negociao institucional, o federalismo parece assim apropriado no apenas para defender valores democrticos no interior dos pases, mas tambm entre si. Preferindo as parcerias e o mutualismo subordinao ou a imposies externas, o federalismo primordialmente um exerccio poltico dialgico, e neste sentido pode operar tanto a um nvel micro (nacional) ou macro (supranacional).

    No cenrio internacional hodierno surgem sistematicamente novas ligaes entre os Estados, governos e cidados, trazendo consigo desafios que exigem respostas alargadas e integradas. A globalizao produziu notveis progressos na cincia, na tecnologia, nos transportes, no comrcio e na informao, mas ainda lhe faltam feitos inovadores no campo poltico. Talvez o federalismo possa ser particularmente til nesta matria, criando o tipo de ligaes institucionais avidamente solicitado pela nova ordem global, sem pr em causa a validade e importncia dos princpios democrticos (inscritos na matriz gentica do federalismo, assente em procedimentos baseados na colaborao, na discusso aberta e nas decises partilhadas) (BURGESS, 2006: 251-268; HELD, 1999: 84-111).

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    Jos Gomes ANDR 26

    GRUPO

    Krisis

    4. Concluso: um alerta para as fragilidades do prprio federalismo Ao longo deste texto, procurmos mostrar como o federalismo pode

    promover valores democrticos num amplo conjunto de matrias. Todavia, apesar desta anlise, importa registar que o federalismo no constitui uma soluo definitiva para os problemas da democracia apenas um instrumento para lidar com eles. Isto sucede, em primeiro lugar, porque a democracia obviamente uma realidade demasiado complexa para se alicerar num nico conceito ou enquadramento poltico; mas em segundo lugar, devido s imperfeies do prprio federalismo, mormente quando considerado como um mecanismo potencial para lidar com as deficincias da democracia.

    Uma dessas imperfeies reside na incapacidade do federalismo para controlar de modo eficaz os poderes econmicos nas democracias modernas. Como vimos, estes poderes escapam-se usualmente aos enquadramentos polticos, aos quais as instituies federais esto intrinsecamente conectadas. Em termos prticos, estas instituies podem fortalecer a cooperao entre pases e organismos supranacionais, mas at mesmo este gnero de instrumentos de superintendncia mostram-se muitas vezes incapazes de vigiar adequadamente as presses externas dos mercados, bancos e outros agentes econmicos.

    O federalismo tambm francamente ineficaz ao lidar com a burocracia poltica e o peso dos processos administrativos problemas crescentes das democracias contemporneas, os quais na verdade apenas so aumentados pelo federalismo. Com efeito, os sistemas federais so por definio policntricos, exigindo uma multiplicao de agncias, instituies e cargos na estrutura poltica de uma nao (ou de configuraes supranacionais). Esta ampla rede de organismos e actores traz naturalmente consigo um aumento da burocracia, criando alm do mais uma to grande variedade de processos decisrios, que tanto o observador externo, como os agentes que pertencem a essa matriz, consideram difcil compreender devidamente os vrios passos da deliberao poltica nesses sistemas.

    Finalmente, deve ser notado que o federalismo no tem uma validade indisputvel ou uma solidez normativa que garanta a sua eficcia, como nos recorda Edward Gibson:

    [...] o federalismo no um resultado ou um fim do processo

    democrtico, mas uma varivel que interage com a democratizao fortalecendo-a a alguns nveis e inibindo o funcionamento de um governo democrtico noutros. O federalismo e a democracia no esto ligados ontologicamente, mas por via de mecanismos institucionais. (GIBSON, 2004: 13)

    Uma vez que o federalismo no tem um valor ontolgico ou moral intrnseco, pode apenas ser perspectivado como um mecanismo auxiliar e no como uma panaceia para todos os problemas das democracias. A grande flexibilidade do federalismo a sua enorme capacidade para se adaptar a diversos matizes institucionais (recorrendo a vrios enquadramentos legais, diferentes tipos de distribuio de poderes, distintas composies de rgos polticos, etc.) faz dele uma ferramenta muito til num vasto mbito de circunstncias polticas, culturais e sociais. No obstante, e apesar das suas virtudes promissoras, o federalismo

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    Jos Gomes ANDR 27

    GRUPO

    Krisis

    permanece apenas e s um instrumento poltico. Cabe aos seus utilizadores tirarem dele o maior partido. BIBLIOGRAFIA ANDR, J. G.: Sistema Poltico e Eleitoral Norte-Americano: um Roteiro, in Viriato

    Soromenho-Marques, O Regresso da Amrica, Lisboa, Esfera do Caos, 2008.

    ________________________ Razo e Liberdade. O Pensamento Poltico de James Madison, Lisboa, Esfera do Caos, 2012.

    AXTMANN, R.: Democracy: Problems and Perspectives, Edinburgh University Press, 2007.

    BAKVIS, H.; CHANDLER, W. (eds.): Federalism and the Role of the State, Toronto, University of Toronto Press, 1987.

    BEER, S.: To Make a Nation: the Rediscovery of American Federalism, Cambridge, Belknap Press, 1993.

    BROWN-JOHN, C. L.: Federal-Type Solutions and European Integration, Lanham, University Press of America, 1995.

    BURGESS, M.: Comparative Federalism. Theory and Practice, London, Routledge, 2006.

    ELAZAR, D.: Exploring Federalism, Tuscaloosa, The University of Alabama Press, 1987.

    FRIEDRICH, C.: Trends of Federalism in Theory and Practice, New York, Frederick A. Praeger, 1968.

    GALLOWAY, D.: The Treaty of Nice and Beyond, Sheffield, Sheffield Academic Press, 2001.

    GIBSON, E.: Federalism and Democracy in Latin America: Theoretical Connections and Cautionary Insights, in Edward Gibson (ed.), Federalism and Democracy in Latin America, The Johns Hopkins University Press, 2004, pp. 1-37.

    HELD, D.: The Transformation of Political Community: Rethinking Democracy in the Context of Globalization, in Ian Shapiro & Casiano Hacker-Cordn, (eds.), Democracy's Edges, Cambridge University Press, 1999, pp. 84-111.

    HRBEK, R.: Exploring Federalism: Europe and the Federal Experience. Reflections at the Beginning of the Nineties, in C. Lloyd Brown-John (ed.), Federal-Type Solutions and European Integration, Lanham, University Press of America, 1995, pp. 551-572.

    JEFFERSON, Th.: Writings, New York, The Library of America, 1984.

    LIJPHART, A.: Democracy in Plural Societies: A Comparative Exploration, New Haven, Yale University Press, 1977.

    LOU, F.; MORTGUA, M.: A Dividadura. Portugal na Crise do Euro, Lisboa, Bertrand Editora, 2012.

    LOWI, Th.: Eurofederalism: What Can European Union Learn From United States?, in Anand Menon & Martin Schain (eds.), Comparative Federalism: The European Union and the United States in Comparative Perspective, Oxford, Oxford University Press, 2006, pp. 93-117.

    MADISON, J.: The Federalist Number 10, in The Papers of James Madison, vol. 10, Chicago, The University of Chicago Press, 1977, pp. 263-270.

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    Jos Gomes ANDR 28

    GRUPO

    Krisis

    ______________________ The Papers of James Madison, Congressional Series, 17 vols. (vols. 1-10, University of Chicago Press, 1962-1977; vols. 11-17, University Press of Virginia, 1977-1991).

    MCCLAY, W.: Communitarianism and the Federal Idea, in Peter Lawler & Dale McConkey (eds.), Community and Political Thought Today, Praeger, 1998, pp. 101-108.

    MYERSON, R.: Federalism and Incentives for Success of Democracy, Quarterly Journal of Political Science, 2006, 1, pp. 323.

    NICOLAIDIS, K.: Constitutionalizing the Federal Vision?, in Anand Menon & Martin Schain (eds.), Comparative Federalism: The European Union and the United States in Comparative Perspective, Oxford, Oxford University Press, 2006, pp. 59-91.

    SANDEL, M.: Public Philosophy. Essays on Morality and Politics, Cambridge/London, Harvard University Press, 2005.

    SOROMENHO-MARQUES, V.: Tpicos de Filosofia e Cincia Poltica. Federalismo: das razes americanas aos dilemas europeus, Lisboa, Esfera do Caos, 2011.

    STEPAN, A.: Federalism and Democracy: Beyond the U.S. Model, Journal of Democracy, vol. 10, n 4, October, 1999, pp. 19-34.

    THATCHER, M.: Speech to the College of Europe (Bruges, 20/09/1988), URL

    TOURAINE, A.: O que a democracia?, trad. port., Lisboa, Instituto Piaget, 1994.

    TUSHNET, M.: Federalism as a Cure for Democracys Discontent?, in Anita Allen & Milton Regan (eds.), Debating Democracy's Discontent. Essays on American Politics, Law, and Public Philosophy, Oxford University Press, 1998, pp. 307-318.

    http://www.margaretthatcher.org/document/107332

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    29

    GRUPO

    Krisis

    Autonomy or heteronomy of the State? An enquiry into the political theory of The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte by

    Karl Marx

    Francesca ANTONINI* Universit degli Studi di Pavia (Italy)

    ABSTRACT: The nature and the role of political institutions is a controversial matter in Marxism. The classical definition of the Manifesto (the State as a committee for managing the affairs of the bourgeoisie) clashes with the one of Marxs historical works, where he describes the birth of the Second French Empire as a process of progressive gaining of independence (Verselbststndigung) of the political sphere from the civil one. If this heterodox interpretation gives him the opportunity to reject the contraposition between structure and superstructure, a problematic theoretical position arises. In this paper I present an overview of the theory of politics in The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte, aimed at explaining how and why we find such a strange definition of the nature of the State. On this basis, I will emphasize the richness of the Marxian interpretation and its significance for the Marxist debate in 20th century. KEYWORDS: Bonapartism, Eighteenth Brumaire, Interpretations of Fascism, Marxism, Dictatorships RIASSUNTO: Quella della natura e del ruolo delle istituzioni politiche una fra le questioni pi controverse della dottrina marxiana: la definizione classica del Manifesto secondo la quale lo Stato sarebbe il comitato daffari della classe borghese si scontra infatti con la realt descritta da Marx nelle sue opere storiche, secondo la quale quello in atto nella Francia a partire dal 1848 un processo di autonomizzazione (Verselbststndigung) della sfera politica da quella civile. Se da un lato tale lettura eterodossa permette di uscire dalla semplicistica contrapposizione fra struttura e sovrastruttura, dallaltro essa da luogo ad una presa di posizione teorica assai problematica. In questa sede mi propongo di indagare questa problematicit, passando in rassegna i principali snodi concettuali sottesi alla narrazione storiografica del Diciotto Brumaio e mostrando, sulla base di questi, come in Marx si possa ritrovare una concezione autonomistica dello Stato, bench di difficile definizione. Alla luce di tale analisi cercher infine di sottolineare la ricchezza dellinterpretazione marxiana, mettendone in rilievo i riflessi sullo sviluppo successivo del pensiero marxista, nonch la sua rilevanza ai fini della riflessione contemporanea. PAROLE CHIAVE: Bonapartismo, Diciotto Brumaio, Interpretazioni del fascismo, Marxismo, Regimi autoritari

    *E-mail: [email protected]

    file:///C:/Users/Moiss/Documents/Os%20Meus%20Documentos/Encontros%20Cientficos/Ano%20de%202012/Quartas%20Jornadas%20Internacionais%20de%20Investigadores%20de%20Filosofia%20%5b14-06-12%20a%2016-06-12%5d/IV%20Jornadas%20-%20Edio%20das%20Actas%202013/Actas%20das%20Quartas%20Jornadas/[email protected]

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    Francesca ANTONINI 30

    GRUPO

    Krisis

    1. Marx and the nature of the modern State As is known, in The Manifesto of the Communist Party Marx maintains that

    die moderne Staatsgewalt ist nur ein Ausschu, der die gemeinschaftlichen Geschfte der ganzen Bourgeoisklasse verwaltet (ENGELS; MARX, 1959: 464). In other words, he refers to the political sphere the economical production, where the former depends totally on the latter (BOURGEOIS, 1991; WIPPERMANN, 1983: 30). A very different conception emerges from his historical works: recalling his early works of political critique (FURET, (1986) 1989: 123, 141), he reject their thesis on the deceptiveness of the superstructural dimension and proposes an (almost)1 new relationship between the executive power and the legislative one; the first, the repository of the political power, is in this case subordinated to the second, which is the expression of civil society (the normal order is therefore inverted BOBBIO, 1999: 66 et passim; POULANTZAS (1968) 1971b: 396 ff.). Thus he states in The Eighteen Brumaire of Louis Bonaparte:

    Vor der Exekutivgewalt dankt sie jeden eignen Willen ab und

    unterwirft sich dem Machtgebot des fremden, der Autoritt. Die Exekutivgewalt im Gegensatz zur Legislativen drckt die Heteronomie der Nation im Gegensatz zu ihrer Autonomie aus. Frankreich scheint also nur der Despotie einer Klasse entlaufen, um unter die Despotie eines Individuums zurckzufallen, und zwar unter die Autoritt eines Individuums ohne Autoritt. (ENGELS; MARX, 1960: 196)

    Although Marx is usually cautious when dealing with the question of the nature of the modern State, noteworthy conceptual difficulties arise from these statements: the existence of an autonomy of the State is a real challenge (Herausforderung; see WINKLER, 1978: 41; WIPPERMANN, 1983: 51)) to Marxs classical conception: it creates an impasse that seems impossible to solve (WINKLER, 1978: 40). Even if a definitive solution is not possible, however, we shall try to resolve the issue as far as possible by deepening the theoretical dimension embedded in the historical structure of the Eighteenth Brumaire and analyzing its revival in the twentieth century discussion.

    2. The Eighteenth Brumaire between historiography and theory of politics The Eighteenth Brumaire is not only a narration of the events that led to the

    seizure of power by Louis Bonaparte with all its consequences, but also a singular mixture of historical description and theoretical reflection, which so far has not been adequately brought out2.

    The work is one of the most brilliant analyses of modern French History between the outbreak of the revolution in February 1848 and the putsch of 2nd

    1 Marx applied the idea of the autonomy of the State from the civil society for the first time to the French absolutism; see WINKLER, 1978: 35. 2 The age-old and futile controversy about the primacy of Marxs historical or theoretical works has long overshadowed the importance of the Eighteenth Brumaire, which has only recently been subject to critical reappraisal by the critics (BURGIO, 2000: 145-198; HOBSBAWM, 1997: 190 et passim).

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    Francesca ANTONINI 31

    GRUPO

    Krisis

    December 1851. Taking the cue from the articles of The Class Struggles in France, he describes the slow but inexorable decline of the new-born bourgeois republic, due to a process of progressive expulsion of the components gradually defeated: this process came to an end with the double plebiscite which confirmed the autocratic government of Napoleon III. The ascendant revolutionary line of the first French Revolution contrasts with the descendant one of the second revolution (see ENGELS; MARX, 1960: 135).

    Written in order to explain the necessity of the Bonapartist State, the Eighteenth Brumaire is an equivocal work. In the text three different interpretative keys can be recognized: the historical, the teleological and the political. Thanks to his study of modern French history, Marx could approach the events happening in France after 1848 with a great analytical finesse, distinguishing himself as one of the most important historians of the age (on Marxs passion for history see MOSOLOV, 1973; HARSTICK, 1983; SCHMIDTGALL, 1988). Nevertheless he sometimes interrupts the pressing historical narration in order to present epochal perspectives, as it is typical of the Marxian philosophy of history. In a few key passages he focuses on the grotesque and caricatured description of Louis Napoleon, recalling the target of overthrowing of the regime of Bonaparte and the advent of the proletarian revolution which he elaborated in the works of the period before February 1848 (TOMBA, 2008; see also VIPARELLI, 2010). The main focus of his analysis is the genesis of the modern State over a middle to long period: the purpose of Marx is to show how the progressive change in the form of the State led to the success of the coup dtat of Louis Bonaparte (BONGIOVANNI, 1989; FEHR, 1990; FURET, (1986) 1989)3.

    From the explanation of the load-bearing structures of the text it is thus clear that the Eighteenth Brumaire distinguishes itself from the other historical works because of its new richness of reflections on the nature of the modern State. Even though this theoretical approach is applied to the narration of pressing historical events, there is something overtly paradigmatic in it: Marx outlines a conception of the Bonapartist regime which clashes dramatically with his previous assumptions of the heteronomy of the State.

    3. Autonomy or heteronomy of the State? First of all, we have to remember the long excursus about the beginnings of

    the modern State in the seventh section of the Eighteen Brumaire. Here Marx suggests a unitarian interpretation of modern French history. He sketches the period from the origin of absolute monarchy to the putsch of Louis Bonaparte, passing through the first French Revolution and the empire of Napoleon I, and through this rsum he underlines the strong connection between modernity and despotism, i. e. a rationalized and centralized political rule. As it is demonstrated in Marxs statements on the role of the bureaucratic machinery and of the army, the administrative concentration is directly proportional to the autonomy of the

    3 On an interpretation of the meaning and the structure of the Eighteen Brumaire I refer to my MA-Thesis (Bonapartism as historical phenomenon and theoretical category. An analysis of The Eighteen Brumaire of Louis Bonaparte), especially to the first section (History, philosophy and politics in the Marxian Thought (1848-1852)). See also ANTONINI, 2012.

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    Francesca ANTONINI 32

    GRUPO

    Krisis

    executive power (FURET, (1986) 1989: 119 et passim; POULANTZAS, (1968) 1971b: 426-431; RUBEL, 1960: 47 ff.; JANOVER/RUBEL, 1981: 11-51; WINKLER, 1978: 49-51).

    In this context it is important to take into account some of Marxs reflections on the economy and in particular those concerning the economic origin of the State and the role of the State in the trade system (see ENGELS; MARX, 1960: 197; 1962: 336)4. In short, he emphasizes the independence of the Bonapartist executive from civil society, although he does not forget to point out the conditional or relative character of this autonomy. The existence of this margin for movement shows how the definition of autonomy of the State is much more complicated than it appears at first glance.

    A sociological enquiry seems even more necessary. An important section of the Eighteenth Brumaire is in fact devoted to the analysis of the relationship between Louis Bonaparte and different social groups: Marxs conclusion is that the nephew of Napoleon is supported by all the classes, without being bound to a specific one. If the peasants (still fascinated by the Napoleonic myth) are the electoral basis of the Bonapartist regime, the Lumpenproletariat is the very core of his power (under Louis Napoleon it evolved from the rejected and most hated social group into the ruling class of the Second French Empire; he is in fact also defined as der Chef der Gesellschaft vom 10. Dezember, composed by the rag proletarians - ENGELS; MARX, 1960: 197). In this new political context, the petit bourgeoisie and the proletariat have disappeared, defeated during the class struggle of June 48 and of June 49; nevertheless Bonaparte does not give up flattering them and trying to obtain their favour (on Bonaparte and the peasant class see ENGELS; MARX, 1960: 198 ff.; VIGIER, 1977; BLUCHE, 1980: 232-239; BATTINI, 1995: 115; on Bonaparte and the Lumpenproletariat see ENGELS; MARX, 1960: 205 et passim; MAUKE, (1970) 1971: 96-97; HAYES, 1988; about his relationships with the small bourgeoisie and the proletariat see ENGELS; MARX, 1960: 195 et passim; POULANTZAS, (1968) 1971b: 322; HAYES, 1993:100-102 et passim). Particularly significant is his attitude towards the bourgeoisie. While supporting the extra-parliamentary faction of the bourgeoisie (and its desire for protection of its growing economic interests), he encourages the struggles inside the party of the order: in this way he creates an important sphere of action for himself (ENGELS; MARX, 1960: 189 ff.; on this aspect see FURET, (1986) 1989: 124 ff.; WIPPERMANN, 1983: 54-58; WINKLER, 1978: 46-47). From this point of view the Bonapartist regime appears (relatively) independent from civil society.

    However this gaining of independence of the executive power collides with the philosophy of history of the Eighteenth Brumaire (see ENGELS; MARX, 1960: 196 and 203-204). In some passages, Marx depicts the Bonapartism in the larger context of the proletarian revolution: he considers the State of Louis Bonaparte as equal to the bourgeois-capitalistic domination, reintroducing the conception of the heteronomy between the political and social spheres. In any way, however, this perspective seems to be marginal, extrinsic compared with the main theme of the work (the historical-political analysis of the phenomenon); it could be 4 The second thesis is maintained in another historical work of Marx, The civil war in France. The context is similar to the one of his masterpiece (the excursus on the origin of the modern State): the Eighteen Brumaire is in fact the model for the pamphlet of 1871, even if the latter contains a very different conception of politics. (On the question see WIPPERMANN, 1983: 36, 148-151; WINKLER, 1978: 48; GUASTINI 1978: 37.)

  • Actas das IV Jornadas Internacionais de Investigadores de Filosofia

    Francesca ANTONINI 33

    GRUPO

    Krisis

    regarded simply as a warning against viewing the autonomist interpretation as the only one (FURET,(1986) 1989: 132).

    What clearly emerges, therefore, is the existence of different levels of analysis in Marxs work. Even if we reject the teleological level, it is difficult to give a definition of Bonapartism: the relative independence of the State of Louis Napoleon is a concept with blurred outlines, which allows a margin of movement depending on the case. Marxs first aim is to approach a new and not yet analyzed phenomenon, rather than to deepen the concept of autonomy of the State or to investigate Bonapartism as type of government (see WINKLER, 1978: 58; BOBBIO, 1999: 70). This distinctive feature of the Eighteenth Brumaire can therefore explain why the meaning of Marxs works on Bonapartism has been recognized only partially within the Marxist debate on the State of the twentieth-c