Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
-
Upload
neresluana -
Category
Documents
-
view
10 -
download
0
Transcript of Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
1/174
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS
FACULDADE DE HISTRIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
MESTRADO
DANYLLO DI GIORGIO MARTINS DA MOTA
O BRASIL DE MR. SLANG:
A REPBLICA NAS CRNICAS DE MONTEIRO LOBATO
(19261927)
Goinia2010
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
2/174
DANYLLO DI GIORGIO MARTINS DA MOTA
O BRASIL DE MR. SLANG:
A REPBLICA NAS CRNICAS DE MONTEIRO LOBATO
(19261927)
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Histria da Faculdade de
Histria da Universidade Federal de Gois,
como requisito para a obteno do ttulo de
Mestre em Histria.
rea de Concentrao:Culturas, Fronteiras e
Identidades.
Linha de Pesquisa: Identidades, Fronteiras e
Culturas de Migrao.
Orientadora:
Prof. Dr. Fabiana de Souza Fredrigo
Goinia2010
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
3/174
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)GPT/BC/UFG
M917bMota, Danyllo Di Giorgio Martins da.
O Brasil de Mr. Slang: a Repblica nas crnicas de MonteiroLobato (1926-1927) [manuscrito] / Danyllo Di Giorgio Martins daMota. - 2010.
xv, 174 f.
Orientadora: Prof. Dr. Fabiana de Souza Fredrigo.Dissertao (Mestrado) Universidade Federal de Gois,
Faculdade de Histria, 2010.Bibliografia.
1. Lobato, Monteiro (1882-1948) 2. Repblica 3.Paulistanidade I. Ttulo.
CDU: 94(81).07
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
4/174
DANYLLO DI GIORGIO MARTINS DA MOTA
O BRASIL DE MR. SLANG:
A REPBLICA NAS CRNICAS DE MONTEIRO LOBATO
(19261927)
Dissertao defendida pelo Programa de Ps-Graduao em Histria, nvel
Mestrado, da Faculdade de Histria, da Universidade Federal de Gois. Aprovada em:
_____/_____/2010_/ pela Banca Examinadora constituda pelos seguintes professores:
____________________________________________________________
Dr. Fabiana de Souza Fredrigo (UFG)
Presidente
____________________________________________________________
Dr. Gabriela Pellegrino Soares (USP)
Argidor
____________________________________________________________
Dr. No Freire Sandes (UFG0
Argidor
____________________________________________________________
Dr. Robson Mendona Pereira (UEG)
Suplente
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
5/174
Aos meus pais.
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
6/174
AGRADECIMENTTO
Minha sincera gratido a Deus e s muitas pessoas que de maneira diversacontriburam para a realizao deste trabalho.
Em primeiro lugar, agradeo minha orientadora, professora Dr. Fabiana de
Souza Fredrigo, pelas palavras certas, sempre em momento oportuno, pela pacincia
inesgotvel e pelas exigncias que tanto contriburam para o enriquecimento da
pesquisa. Seu trabalho tem sido a melhor definio para o verbo orientar. Obrigado
por indicar novos caminhos e permitir que eu pudesse trilh-los sempre com a certeza
de ter a quem recorrer nos momentos de dificuldade.
Minha gratido Faculdade de Histria e ao Programa de Ps-Graduao em
Histria da Universidade Federal de Gois. Agradeo ao grupo de funcionrios e ao
corpo docente dessa instituio, em especial ao professor Dr. No Freire Sandes, que
tem acompanhado nosso trabalho desde a Graduao sempre colaborando de forma
decisiva com suas observaes, crticas e sugestes.
Meus agradecimentos tambm Dr. Gabriela Pellegrino Soares que
generosamente atendeu ao convite para avaliar nosso trabalho. Agradeo ao Dr. Robson
Mendona Pereira pela valiosa colaborao no exame de qualificao, momento crucial
para a realizao desse trabalho. Sou grato tambm professora Ms. Fabiane Costa
Oliveira, que acreditou nesse trabalho e incentivou sua realizao em um momento em
que poucos acreditavam ser possvel.
Mas o resultado que obtemos no seria possvel se no contssemos com a
compreenso, a pacincia, o apoio e as oraes de pessoas com quem tenho o prazer de
conviver. Agradeo a meus pais, Vilmar e Dinamar, cujos esforos tornaram tudo isso
possvel. A concluso do Mestrado apenas um dentre outros inmeros sonhos que
puderam ser realizados graas ao empenho desses dois guerreiros a quem eu devo tudo
o que sou. Minha gratido tambm minha irm, Ingrid Dellyane, com quem sempre
posso contar.
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
7/174
Agradeo tambm aos familiares e amigos, como Juliana de Souza Pinto,
que acompanharam o desenvolvimento do trabalho desde o comeo e deram apoio em
todos os momentos. Agradeo tambm aos amigos e colegas da Escola Municipal Santo
Antnio, pela compreenso e pela ajuda to importantes no momento de concluso da
pesquisa.
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
8/174
RESUMO
A Revoluo de 1930 tornou-se um marco da historiografia brasileira sobre a
Repblica. Afirmado como momento de inaugurao de uma modernidade brasileira,
sua anlise esteve pautada pelo contraponto Primeira Repblica, vista como smbolo
de experincia fracassada e de ausncia de projetos modernizadores. Contudo, uma
historiografia mais recente tem abordado a dcada de 1920 como momento
independente desse movimento, analisando os aspectos de projetos modernizadores
desenvolvidos nesse perodo. Uma dessas perspectivas de modernidade e modernizao
presentes na Primeira Repblica encontra-se relacionada ao estado de So Paulo, cujos
indcios podem ser identificados na Obra de Monteiro Lobato. A representao de So
Paulo como lugar de trabalho, modernidade e progresso tornou-se elemento
fundamental para a afirmao do estado como smbolo a ser seguido pela nao. Essa
perspectiva, denominada Paulistanidade, encontra-se expressa no livro Mr. Slang e o
Brasilque rene crnicas de Monteiro Lobato produzidas ao longo de 1926. Os textos
apresentam a viso do autor sobre a Repblica brasileira em um momento de transio
poltica em que So Paulo retomava o controle do poder central republicano com a
eleio de Washington Luis para a presidncia. Os debates sobre poltica e economia
desenvolvidos por Lobato revelam o objetivo de formao de uma opinio pblicafavorvel ao governo de Washington Luis, cuja tarefa seria promover o progresso e a
modernizao nacional aos moldes paulistas. Semelhante aos discursos sobre a Era
Vargas surgidos a partir de 1930, Monteiro Lobato constri em 1926 a imagem desse
novo governo, comandado pelos paulistas, como smbolo do rompimento com o perodo
de crises enfrentadas pela Repblica, denominado de perodo ciclnico, revelando a
expectativa de construo de um novo Brasil.
Palavras chave:Monteiro Lobato,Paulistanidade, Repblica, Modernidade, Crnica.
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
9/174
ABSTRACT
The 1930 Revolution became a landmark in brazilian historiography about the
Republic. Known as the initial moment of the brazilian modernity, its analysis has been
guided by the confrontation with the First Republic, seen as a symbol of unsuccessful
experience and lack of modernization projects. However, a more recent historiography
is approaching the decade of 1920 as an independent moment of this movement,
analyzing the attributes of modernizing projects developed in this period. One of these
perspectives of modernity and modernization present in the First Republic is related to
the state of So Paulo, which inklings can be found in Monteiro Lobatos artwork. A
representation of So Paulo as a place of work, modernity and progress became the
main element for the affirmation of the state as a symbol to be followed by the nation.
This perspective, nominated Paulistanidade, is found in the book Mr. Slang e o Brasil,
which reunites Monteiro Lobatos chronicles produced along 1926. The writings show
the authors view of the brazilian Republic in a moment of political transition when So
Paulo was getting the central republican power back, with the election of Washington
Luis for presidency. The Lobatos critics about politics and economy growth shows the
intention of creating a friendly public opinion about Washington Luis government,
whose task would be to foster the progress and national modernization shaped in So
Paulos. Like the sayings about the Era Vargas, arising from 1930, Monteiro Lobato
builds in 1926 the image of this new government, ruled by the So Paulo politics, as a
symbol of a breakup with the periods of crisis faced by the Republic, known as the
perodo ciclnico, revealing the expectation of building a new Brazil.
Keywords: Monteiro Lobato, Paulistanidade, Republic, Modernity, chronicle.
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
10/174
SUMRIO
INTRODUO ........................................................................................................... 12
CAPTULO I - Monteiro Lobato: as faces do escritor ............................................ 22
1.1. Historiografia lobatiana. .................................................................................... 221.1.1. Modernidade, Modernismo e Pr-Modernismo. ............................................... 291.1.2. Smbolos de modernidade e a relao com o moderno. .................................... 341.2. Lobato no Rio de Janeiro: um novo campo intelectual. .................................... 381.2.1. O desterro lobatiano. ......................................................................................... 381.2.2. Vises do Rio de Janeiro. .................................................................................. 431.2.3. A Imprensa carioca e O Jornal. ........................................................................ 471.3. A crnica no conjunto da Obra de Monteiro Lobato ........................................ 541.3.1. Os textos deMr. Slang e o Brasil. .................................................................... 571.4. A escrita de Crnica: interaes entre Jornalismo, Literatura e Histria. ........ 621.4.1. A crnica, entre fico e realidade. .................................................................. 67
CAPTULO II: Monteiro Lobato e a Paulistanidade............................................... 72
2.1. O Cenrio Intelectual Paulista. .......................................................................... 722.1.1. Lobato e o Regionalismo. .................................................................................. 742.1.2. Lobato e a elite intelectual paulista ................................................................... 772.2. O que Paulistanidade: tentativas de definio ............................................... 792.3. APaulistanidadena Obra de Monteiro Lobato. ............................................... 872.3.1. A moralidade, o trabalho e a vocao econmica. ............................................ 922.3.2. Regionalismo, nacionalismo e cosmopolitismo: caminhos percorridos por
Lobato. ............................................................................................................. 100
CAPTULO III: A Repblica Sob o Olhar de Monteiro Lobato .......................... 105
3.1. Os perodos da Repblica segundo Monteiro Lobato. .................................... 1053.1.1. A Repblica dos Conselheiros: experincia e compromisso. .......................... 1063.1.2. O Perodo Ciclnico: o imprio da imoralidade. ............................................. 1143.1.3. O Novo Governo: momento de ruptura. .......................................................... 1233.2. Entre a elite e o povo: o ideal lobatiano de cidadania. .................................... 1293.2.1. A relao entre elite e povo. ............................................................................ 1293.2.2. A cidadania republicana. ................................................................................. 135
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
11/174
3.3. A mentalidade nacional. .................................................................................. 1383.3.1. Conscincia, realidade e seus opostos. ............................................................ 1383.4. A necessria formao de uma Opinio Pblica. ............................................ 146
CONSIDERAES FINAIS: Mr. Slang e o Brasi l e as Contribuies para a
Escrita da Histria da Primeira Repblica ............................................................. 158
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .................................................................... 165
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
12/174
INTRODUO
O objetivo principal de nosso trabalho discutir a viso de Monteiro Lobato
sobre a Repblica brasileira presente no livro Mr. Slang e o Brasil, publicado em 1927.
Esses textos apontam para a relao entre a obra de Monteiro Lobato e a ideologia da
Paulistanidade como representao que orienta a construo discursiva do perodo
republicano elaborada pelo autor. Nessas crnicas esto apontados os elementos de um
projeto modernizador para a nao guiado pelas ideias de modernidade, progresso e
trabalho, em que o autor identifica So Paulo como exemplo a ser seguido pelo Brasil
como forma de o pas ingressar no mundo da modernidade.
Por meio da anlise da obra literria adulta de Monteiro Lobato, possvel
mapear inmeras transformaes que transpassam os campos poltico, econmico e
cultural brasileiros no perodo entre as dcadas de 1900 e 1940. Sua aguada percepo
permitiu que, em suas obras, permanecessem impressas as imagens que nos do pistas
da forma como o autor percebia o mundo no qual viveu. Em vrios de seus textos, o
autor constri e reconstri uma interpretao do ambiente no qual atuou. Esse fato,assim como destacado por outros autores, pode ser percebido em textos como o
Bocatorta que discute a questo dos ex-escravos; em O estigma, que aborda as
epidemias no interior paulista nas primeiras dcadas do sculo XX; em Urups, que
discute o ambiente caipira, dentre vrios outros exemplos (ALEIXO, 2005). Essa
caracterstica um dos pontos que tm despertado principalmente a partir da dcada
de 1970 (PASSIANI, 2001) - o interesse pela obra de Monteiro Lobato como fonte para
o estudo da Histria. Apesar disso, uma advertncia importante: no se trata de avaliara obra de Lobato apenas presa a um contexto, como se ela revelasse algo oculto nos
acontecimentos, mas de avaliar, junto com a importncia literria de Lobato, como os
combates (pela vida, pela literatura e pela poltica) tangenciam os seus escritos. A
biografia de Monteiro Lobato indica que a escrita para esse autor era uma forma de
combate. Lobato metia-se, inclusive, em discusses econmicas. Entretanto, suas
crticas viraram literatura e necessrio, tambm, investigar essa delicada relao,
fugindo do risco de apresentarmos um autor e seu contexto e pouco acrescentarmossobre sua criao e seu universo ldico.
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
13/174
13
Segundo Maria Bernadete Flores1, os anos 20 so vistos como momento de
loucura e imaginao, onde tudo era possvel; no por acaso esses eram os anos
loucos, dominados pela fertilidade artstica das vanguardas. O imaginrio do ps-guerra
europeu, de um lado, e os matizes felizes do americanismo, de outro, permitiam aos
atores histricos traduzirem a dcada a seu modo, por isso, os anos 20 encerraram
dbios imaginrios, ora atrelados ideia de uma esperana perdida, ora de uma
esperana fortemente renovada, ensejando exatamente a expresso de um tempo de
loucura e imaginao. . No caso brasileiro, a preocupao com o devir da nao era
um elemento que incentivava a criao de projees para o pas. A experincia do
passado era tida como parmetro para a construo de um Brasil diferente. A percepo
do descompasso do Brasil com o que se tinha como parmetro de modernidade indicava
a necessidade de uma transformao da vida nacional. Assim, as crticas s estruturas da
Repblica deram origem a vrias interpretaes dessa experincia e a expresso de
expectativas tambm distintas. Essas leituras do passado e presente e projees do
futuro iam desde o extremo otimismo, com a afirmao do Brasil como o pa s do
futuro, impulsionadas pelo crescente processo de urbanizao e industrializao
ocorrida em algumas regies do pas nas primeiras dcadas do sculo XX, at uma viso
mais pessimista que apontava as mazelas e a manuteno da populao margem
desses processos e, por conseguinte, a permanncia do Brasil em uma condio de
atraso no concerto das naes modernas.
Como apontado por Marly Motta (2007), uma historiografia recente tem
abordado o perodo da dcada de 1920 como marco para inaugurao de uma
modernidade brasileira. Um dos resultados desses desdobramentos tem sido a tomada
desse perodo como momento independente do processo revolucionrio de 1930. O
perodo da dcada de 1920 tem sido compreendido como portador de uma feioprpria de grande efervescncia poltica e social. Essas abordagens tm construdo uma
interpretao alternativa quela que comeou a ser empreendida imediatamente aps a
Revoluo de 1930 e que estabeleceu esse movimento como marco de inaugurao de
um processo modernizador no Brasil. A designao da Repblica Velha terminou por
retirar do perodo anterior Era Vargas um sentido prprio de modernizao e
1 Conferncia Encantos da imagem: a propsito da obra plstica de Xul Solar e sua utopia do novohomem latino-americano, proferida na abertura da VIII Semana de Histria e III Colquio de Pesquisasda Histria da UFG em junho de 2010.
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
14/174
14
modernidade, caracterizando-os como contraponto ao processo que tem seu lugar
consagrado no ps-30.
Atentos para essa abordagem da ideia de modernidade, buscamos discutir
sua presena na obra de Monteiro Lobato. Atravs dessa anlise, identificamos algumas
relaes entre o pensamento de Monteiro Lobato com as ideias que estavam postas
nesse perodo para os grupos intelectuais que se voltaram para a reflexo e atuao
social pautados pelos ideais de transformao nacional cujo objetivo ltimo era a
construo de um Brasil moderno2. As discusses desenvolvidas entre os intelectuais na
dcada de 1920 tm sua origem j durante o perodo final do sculo XIX. A mudana no
regime de governo do Brasil, com a substituio da Monarquia pela Repblica, causou
conturbaes polticas durante os ltimos anos do sculo XIX e os primeiros anos do
sculo XX. Com a impossibilidade de soluo para todos os problemas nacionais, como
propunham os fundadores da Repblica (CARONE, 1969), na dcada de 1920, a
intelectualidade encontrou-se em um ambiente de desiluso com o novo regime no qual
haviam depositado grandes esperanas de transformao da vida nacional.
No apenas a alterao do regime poltico do pas provocou alteraes nas
vrias esferas da vida nacional, mas outras mudanas estruturais tambm tiveram uma
importante parcela nesse processo de transformaes. Com a abolio da mo de obra
escrava, vrios conflitos polticos e sociais se instauraram ou se agravaram. O no
pagamento por parte do Imprio das indenizaes cobradas pelos grandes proprietrios
de terra e de escravos, sobretudo nas regies produtoras de caf em So Paulo, agravou
o conflito entre o governo imperial e os grandes produtores rurais, precipitando o
processo de alterao do regime poltico. A falta de planejamento e direcionamento para
a populao de antigos escravos agravou os problemas sociais. Sem ocupao no meio
rural, vtimas do preconceito e sem o atendimento do poder pblico, os ex-escravos
passaram a dirigir-se para as periferias das grandes cidades, onde as perspectivas
econmicas e sociais tambm no eram muitas (SEVCENKO, 1998). A formao de
esteretipos, firmados nos discursos racistas, no evolucionismo e, posteriormente, no
eugenismo, difundiu imagens da populao pobre e dos ex-escravos como inaptos ao
processo de modernizao almejado pelas elites polticas e econmicas, sendo essas
2O que queremos dizer com Brasil Moderno, para a obra de Lobato e para as discusses intelectuais noperodo, ficar mais claro no decorrer dos captulos, particularmente no captulo 2.
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
15/174
15
imagens sustentadas pelos discursos intelectuais. Assim, a populao composta por
pobres, negros, caipiras, sertanejos dentre outros inmeros grupos estereotipados pelos
discursos exclusivistas, acabaram tendo negadas as possibilidades de amplo exerccio da
cidadania, sendo desprezados como agentes polticos, como produtores de cultura e
como mo de obra produtiva. Ao invs de organizar a incluso dos antigos escravos no
mercado de trabalho livre, ocorreu no Brasil um incentivo imigrao de mo de obra
estrangeira para as lavouras e para as indstrias urbanas entre as dcadas de 1890 e
1920 (NAXARA, 1998). Com a concorrncia da mo de obra estrangeira e enfrentando
uma mentalidade influenciada pelas ideias racistas, o trabalhador nacional passou a ser
visto como inferior ao estrangeiro, em muito devido admirao das elites brasileiras
pelo progresso da Europa em comparao com a percepo de estagnao e atraso do
Brasil.
Proclamada a Repblica e passados os primeiros momentos de atuao das
Foras Armadas no comando da poltica nacional, os grandes produtores rurais, que
detinham grande poder econmico, assumiram tambm o comando das decises
polticas do pas. Entretanto, a perspectiva de alteraes profundas indicada pelos
fundadores da Repblica foi frustrada nas primeiras dcadas do regime. As dificuldades
do governo republicano em solucionar os problemas sociais, polticos e as criseseconmicas, alm da concentrao do poder nas mos das oligarquias regionais
muitas das quais no se encontravam satisfeitas com a partilha do poder central entre
paulistas e mineiros nos primeiros governos republicanos levaram ao
descontentamento de grande parte da elite intelectual com o novo regime.
A desiluso com a Repblica atingiu grande parte dos homens que sonhavam
com um novo Brasil que, para muitos, seria construdo a partir dos ideais de
modernidade defendidos por diversas correntes tericas que povoavam o campo
intelectual brasileiro. Surgia ento a necessidade de definir quais seriam aos parmetros
a serem seguidos pela nao brasileira. A organizao da nao era uma tarefa urgente
que caberia s elites. Como destacado por Daniel Pcault (1990: 14), por ser esse um
fato intelectual e poltico, os intelectuais viam-se com ainda mais motivos para
participar desse processo de ordenao do pas. Essa ordenao seguiu os ideais vistos
como mais modernos pelas elites dominantes no inicio do sculo XX, como a
restaurao urbana, a formao de uma sociedade apta para o trabalho, a
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
16/174
16
industrializao, tendo como referncia ideias e experincias anteriores, inicialmente
europias e posteriormente norte-americanas.
No campo poltico e econmico, e, sob vrios aspectos, tambm no campo
intelectual, a dcada de 1910 marcou a ascenso do estado de So Paulo a uma posio
de centralidade no pas. o momento de afirmao da ideologia da Paulistanidade3,
que, desde a dcada de 1890, foi difundida pelo trabalho intelectual de uma elite ligada
oligarquia e que dava grande nfase grandeza do Estado paulista (CERRI, 1996).
Atravs das representaes de So Paulo construdas por sua elite intelectual, ligada
elite oligrquica que comandava a poltica em mbito estadual, procurou apropriar
vrios marcos fundadores e confirmadores da supremacia paulista frente nao.
Assim, a ascenso paulista devido ao desenvolvimento econmico provindo
principalmente da produo cafeeira convive com a formulao de um discurso que
busca ligar tal grandeza paulista a smbolos mticos e ancestrais (QUEIROZ, s.d).
Nesse contexto, as representaes de So Paulo como lugar de modernidade, progresso
e trabalho alcanam o patamar de exemplo para a nao brasileira, tornando-se
parmetro para o processo de modernizao que se buscava implantar no pas. Essa
ideia de modernidade encontra-se presente na obra de Monteiro Lobato, tornando-a um
exemplo da expresso daPaulistanidadecomo smbolo para o Brasil. Dessa forma, pormeio do dilogo com inmeros autores que se dedicam ao estudo do regionalismo
paulista caracterizado comoPaulistanidade (CERRI, 1996; QUEIROZ, s.d; CASADEI,
2008; MATOS, 2006; VELLOSO, 1993; MOUTINHO, 1991; SOUZA, 2007),
mapeamos uma construo caracterstica do Estado de So Paulo, orientada por essa
ideia, que revela a formulao de um projeto de modernizao nacional na Primeira
Repblica, expresso nos textos de Monteiro Lobato.
A estruturao desse pensamento de valorizao chamado dePaulistanidade
foi um dos exemplos de discurso regionalista do inicio do sculo XX. Este conflito entre
as esferas nacional e regional se estendeu aos campos da poltica e da cultura. Um dos
problemas centrais para os debates intelectuais do perodo foi a definio de uma
identidade nacional. As vrias regies do pas buscaram afirmar a existncia de um
carter nacional brasileiro a partir das caractersticas de sua prpria cultura e tradies
3Lus Fernando Cerri afirma que essa ideia pode ser identificada j desde o sculo XVII com obras queidentificam as caractersticas nobilirquicas dos paulistas. Ver CERRI, 1996.
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
17/174
17
(CANDIDO, 1975). Tambm os intelectuais paulistas seguiram este caminho pensando
uma identidade nacional a partir e em funo dos interesses de So Paulo. Nesse
processo de valorizao do povo, da cultura, das tradies, do sucesso econmico de
So Paulo, tornou-se necessria, na concepo dos intelectuais paulistas, a extenso
desse sucesso s demais regies do Brasil, vistas sob um enfoque negativo como
contraponto ao desenvolvimento paulista. So Paulo era representado como o Estado
mais rico, prspero e moderno, cuja populao, herdeira da tradio bandeirante,
portava valores desconhecidos para os habitantes das demais regies do pas como a
altivez, a coragem e o empenho ao trabalho.
Na construo dessa imagem de So Paulo, o momento de produo dos
textos de Monteiro Lobato bastante representativo da relao entre as esferas regional
e nacional. O cenrio republicano, na passagem de 1926 para 1927, momento de
transio do governo de Artur Bernardes para o de Washington Luis, se encontra
expresso nos textos deMr. Slang e o Brasil. Esse momento representa uma retomada do
controle do poder central republicano por So Paulo que, divergindo da ideia
consagrada pela historiografia como poltica do caf com leite, no el egia um
presidente da Repblica desde o quatrinio. 1902-1906, com o presidente Rodrigues
Alves4
. O retorno do governo republicano s mos de um poltico paulista representava,para Monteiro Lobato, a possibilidade de se alavancar no Brasil um processo
semelhante ao que j havia se realizado em So Paulo. Seguindo essa perspectiva, o
autor apresenta nessa obra a construo de uma histria republicana que se relaciona
ideia dePaulistanidade, fazendo de Lobato um intelectual e um poltico propositivo que
circulava na ambincia regional e nacional, formulando os princpios para um projeto
que visava modernizao do Brasil tendo como parmetro o exemplo encontrado no
estado de So Paulo.
Aps uma anlise mais ampla da obra de literatura adulta de Monteiro
Lobato, fomos levados ao recorte temtico de nosso objeto. Considerando o alcance e a
extenso da obra de Monteiro Lobato e o tempo disponvel para a realizao da
pesquisa, optamos por um recorte que privilegiasse a anlise de sua produo literria
para adultos. Ainda assim no seria possvel desenvolver a contento um trabalho que
4Rodrigues Alves fora eleito ainda para um segundo mandato em 1918, mas faleceu antes de assumir ocargo de Presidente da Repblica.
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
18/174
18
visava discutir as ideias que propomos tendo um material to amplo e um prazo to
curto. Ento, optamos por discutir a viso do autor sobre a Repblica brasileira durante
a dcada de 1920 e elegemos como fonte de pesquisa o livro Mr. Slang e o Brasil
(1927). Aps a definio de nossa fonte de pesquisa e um rduo trabalho de
mapeamento da historiografia, partimos para a organizao dos temas a serem
discutidos. Nesse processo, a ideia de Paulistanidadeganhou fora em nossas leituras.
Assim decidimos discutir a presena da ideia de Paulistanidadena obra de Monteiro
Lobato e a forma como esse iderio se fazia perceber na viso do autor sobre a
Repblica brasileira, caracterizada nos textos deMr. Slang e o Brasil. Com essa breve
explanao, definimos o objeto de pesquisa, a fonte, os temas e o referencial terico
deste trabalho.
Aps essas definies, a pesquisa foi dividida em trs partes que deram
origem aos trs captulos da dissertao. Intitulado Monteiro Lobato: as faces do
escritor, o primeiro captulo apresenta a prtica de escrita de Monteiro Lobato e a forma
como o autor aborda questes que se tornaram cones de seu pensamento, como as
ideias de modernidade e progresso, e que se encontravam no centro do debate
intelectual durante a dcada de 1920. Mapeamos as abordagens de Lobato sobre esses
temas por meio de um constante dilogo com a historiografia. Esse trabalho nos ajudoua localizar o livro Mr. Slang e Brasilno cenrio maior do conjunto da obra lobatiana.
Abordamos com mais ateno a relao entre autor, obra e personagens, evidenciando a
forma como as crnicas de Monteiro Lobato revelam uma interpretao e uma
projeo da realidade nacional ou, ainda melhor, de que forma as crnicas
apontam o desejo de debater, intervir e transformar o cenrio nacional. Esses textos
expem a leitura do ator histrico sobre os temas que circundam sua ambincia,
conferindo a ele a condio de autor histrico, dada a caracterizao de sua escrita comotestemunho de seu tempo. Este caminho nos permitiu entender melhor a relao entre
Mr. Slang e o Brasil, o conjunto da obra lobatiana e o contexto no qual esse livro foi
produzido. Para isso, atentamos caracterstica de fico dos textos contidos neste
livro sem perder de vista seu objetivo de analisar e transformar uma realidade
especfica: o contexto republicano no qual Lobato encontrava-se inserido.
O roteiro do trabalho teve inicio com uma breve apresentao de Monteiro
Lobato e de suas atividades intelectuais, sobretudo como escritor e editor. Por meio
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
19/174
19
desses apontamentos, visamos discutir como o autor chegou ao centro do campo
intelectual paulista, como apontado por Tnia de Luca, ganhando evidencia nacional
entre o final da dcada de 1910 e meados da dcada de 1920. Nesse trajeto, discutimos a
viso de Lobato sobre a ideia de modernidade, ressaltando que nosso objetivo no o
de classificar a obra lobatiana como moderna ou anti-moderna, mas mapear os
elementos que formavam a concepo de modernidade do autor e a maneira como ele
se relaciona com essas ideias modernas. Contudo, estabelecemos uma anlise da
historiografia que se voltou ao estudo dessas caractersticas da obra de Lobato,
apontando como sua obra esteve envolta nesse conflito entre modernidade e atraso. O
que procuramos foi demonstrar que as alteraes feitas por Lobato em seu pensamento
ressaltam uma caracterstica daquilo que o autor entendia por modernidade: a ideia de
transformao.
Apontadas algumas caractersticas da carreira de monteiro Lobato, de sua
ideia de modernidade e das leituras sobre sua obra presentes na historiografia, partimos
para a anlise de um momento que revelou transformaes na escrita: a sada de So
Paulo e seu estabelecimento no Rio de Janeiro. Esse novo cenrio apresenta novos
elementos para a escrita de Lobato. Afastado de So Paulo, Lobato encontra no Rio
outro campo intelectual, cujas caractersticas procuramos apontar. O papel e aimportncia da imprensa carioca, sobretudo nos debates em torno dos temas polticos
que agitavam a capital da Repblica (e que tinha como um de seus smbolos a escrita de
crnica), com certeza, suscitaram em nosso autor a pretenso de inteirar-se desse
outro campo intelectual.
Nesse momento do debate, privilegiaremos a anlise dos textos deMr. Slang
e o Brasilcomo pertencente ao gnero das crnicas, ressaltando o desafio de se definir
esse tipo de escrita, aproximando-a de um conceito, capaz de ser aplicado a um texto
to complexo como o lobatiano que, como j sugeriram diversos especialistas, apresenta
inmeros obstculos para ser conformada em definies ou delimitaes. Para essa
anlise, partimos da relao entre literatura, jornalismo e escrita da histria, que
caracteriza a escrita de crnica e encontra-se presente nos textos de Mr. Slang e o
Brasil. Ao abordarmos esse tema visamos mapear os caminhos trilhados por Lobato no
campo da fico literria lanando mo de referncias a personagens, acontecimentos e
conflitos reaiscomo um recurso de sua escrita (S, 1985) que abria a seus textos a
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
20/174
20
possibilidade de contriburem para a transformao da realidade, tornando-se
instrumentos polticos que alcanariam e influenciariam seu pblico.
No segundo captulo, intitulado Monteiro Lobato e a Paulistanidade,
discutimos o contedo da ideologia da Paulistanidade e sua relao com a obra e a
atuao intelectual de Monteiro Lobato. Ao encontramos as primeiras referncias a essa
ideia nos questionamos: o que Paulistanidade? Como essa ideia se formou? Que
elementos a compem? Quando e onde podemos identificar a gnese dessa ideia? Para
responder a essas questes, estabelecemos um trabalho de busca, mapeamento e dilogo
com a historiografia. Dessa forma, apontamos nesse captulo os contedos que
caracterizam a ideia de Paulistanidadecomo elemento constitutivo da identidade e do
regionalismo cultural e poltico do estado de So Paulo. Apresentamos, assim, os
elementos que compem essa ideia, bem como suas origens e algumas de suas
apropriaes. Na seqncia discutimos a relao dessa ideologia com a obra de
Monteiro Lobato. A pergunta que nos guiou, nessa circunstncia, foi: como apreender
as formas pelas quais o autor estabelece uma relao entre o regionalismo paulista e a
nacionalidade brasileira? Antes de investigar o resultado dessa relao que a
indicao de So Paulo como lugar de modernidade, progresso e trabalho, afirmando o
estado paulista como exemplo a ser seguido pelo Brasil interessou-nos indicar oscaminhos trilhados pelo autor para contribuir com o reforo da Paulistanidade, de um
modo particularcomo era particular toda a prtica lobatiana.
No terceiro captulo, intituladoA Repblica sob o olhar de Monteiro Lobato,
discutimos a leitura lobatiana sobre a Repblica brasileira presente em Mr. Slang e o
Brasil. Lobato elabora uma histria republicana a partir da diviso desse perodo em trs
fases distintas: o perodo dos Conselheiros, o perodo ciclnico e a novo governo.
Segundo Lobato, at 1909 a Repblica fora governada a partir das noes de moralidade
e justia, caractersticas que acompanhavam os experientes e sensatos governantes desse
perodo. Todavia, entre 1909 e 1926, o perodo ciclnico, a chegada ao poder de
homens despreparados e descompromissados com o interesse pblico teria lanado o
pas em seguidas crises. Esse quadro se transformaria a partir de 1926, com a
implantao do novo governo, sob o comando de Washington Luis. Esse novo
perodo da Repblica seria marcado pelo restabelecimento da justia e da moralidade e
pela implementao de um projeto modernizador que teria como parmetro o exemplo
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
21/174
21
dado ao Brasil por So Paulo. Na defesa desse projeto e do novo governo, Lobato
discute a relao entre elite e povo, apontando o papel desses grupos na realizao
dessas transformaes. Assim o autor demonstra sua viso de como deveria se
configurar a cidadania republicana. Discutindo as caractersticas da mentalidade
nacional e a necessidade de formao de uma opinio pblica que desse suporte ao
novo governo,Lobato afirma a necessidade de So Paulo guiar o Brasil, ensinando o
pas atravs de seu exemplo. A possibilidade de o Brasil alcanar o nvel de
modernidade almejado por Lobato se desenhava nas transformaes que seriam
implementadas pelo novo governo, a partir de 1926, estabelecendo, ento, um
momento de ruptura que criaria o novo Brasil.
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
22/174
CAPTULO I
MONTEIRO LOBATO: AS FACES DO ESCRITOR
1.1. HISTORIOGRAFIA LOBATIANA
Jos Bento Monteiro Lobato (1882 1948) nasceu na cidade de Taubat,
interior de So Paulo. Neto de um fazendeiro da regio do vale do rio Paraba do Sul, a
formao de Lobato esteve voltada para o ambiente rural. Tornado rfo quando ainda
era criana, foi criado por seu av, o Visconde de Trememb, que teve grandeinfluncia em sua formao. O ingresso no curso de Direito, em 1900, apontado em
sua biografia como um exemplo dessa influncia (CAVALHEIRO, s.d). Contudo,
Monteiro Lobato no seguiu a carreira de bacharel. Enveredou por outros vrios
caminhos: escritor, editor, tradutor, crtico de arte, empresrio, fazendeiro, sendo que
suas marcas mais fortes foram deixadas no campo literrio e editorial. A preocupao
com a modernidade, com o progresso e com a racionalidade so elementos marcantes
em seu pensamento. Tambm marcante seu posicionamento intelectual em que asimples reflexo no era suficiente para solucionar os problemas da nao, apontando a
necessidade da ao.
Como escritor, Monteiro Lobato produziu uma vasta obra de literatura
infantil e adulta. Sua literatura infantil tornou-se um cone no campo literrio nacional.
Obras que apresentavam os personagens e as aventuras do Stio do Picapau Amarelo
contriburam com a formao de vrias geraes de brasileiros (SANDES, 2003). Suas
obras, tanto de literatura infantil quanto de literatura adulta, revelam uma forte ligao
com o meio rural, caracterstica destacada por Nicolau Sevcencko (1985) que aponta o
autor como aquele que melhor representou esse meio de vida, assim como Lima Barreto
representara o meio urbano e Euclides da Cunha discutira o serto. Essa relao com o
meio rural ocorre, sobretudo, ambientada no vale do rio Paraba do Sul, no interior do
estado de So Paulo. Alm de ter passado sua infncia nessa regio, Lobato herdara de
seu av a Fazenda do Buquira, na cidade de Taubat. Essa fazenda tornou-se, durante a
dcada de 1910, um laboratrio onde Lobato buscou colocar em prtica suas ideias de
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
23/174
23
administrao moderna e racional, como forma de tornar a propriedade mais
produtiva e rendosa. No perodo em que Lobato administrou sua fazenda, entre 1911 e
1915, o autor estreitou o contato com a vida do homem rural, cujas caractersticas lhe
deram os elementos para a criao dos textos de Urupse o personagem Jeca Tatu.
Foi nesse ambiente que Lobato escreveu os contos Urups e Velha Praga
(1914). Publicados no jornal O Estado de So Paulo, ao final do ano de 1914, esses
textos apresentam as crticas do autor s prticas tradicionais da populao do interior
paulista. Visto como despreparado, preguioso, atrasado, inadaptvel civilizao,
descompromissado com o trabalho e com a busca por comodidades, o caipira
apontado como um dos culpados pelo atraso nacional e um empecilho para a
modernizao do pas. O sucesso desses textos (posteriormente incorporados ao livro
Urups) deu notoriedade a Lobato no campo intelectual paulista e brasileiro. Esses
textos tambm fixaram no imaginrio nacional as caractersticas do personagem Jeca
Tatu como smbolo da falta de ao e do comodismo indicados como marcas da
populao brasileira (MARTINS, 1978).
Na historiografia tradicional que trabalha com a obra de Monteiro Lobato,
sua produo literria encontra-se dividida em momentos ou fases distintas
(ZILBERMAN et al, 1983: 107). Essas fases so definidas pelos caracteres atribudos
pelo autor ao povo, na anlise da realidade nacional.Segundo Marisa Lajolo ( 1985),
a obra de Lobato pode ser dividida em trs fases. A primeira simbolizada pelo
personagem Jeca Tatu presente no artigo Urups de 1914. Este texto fortemente
influenciado por ideias racistas e deterministas, caractersticas de um tipo de
pensamento comum entre os intelectuais brasileiros desse perodo, apresentando uma
viso extremamente pessimista e fatalista da populao.
Com o sucesso de seus textos, surgiram tambm as crticas imagem
negativa que Monteiro Lobato construra do caipira e que ganhara projeo de
identificao nacional. Essas crticas levaram Lobato a alterar a imagem que compusera
do caipira em sua obra, dando-lhe um carter mais positivo. Essa imagem seria
amenizada com o ingresso do autor nas campanhas sanitaristas do final da dcada de
1910. Apontando as doenas e o abandono da populao pelo Estado como as causas da
condio deplorvel em que o povo se encontrava, Lobato afirma que o Jeca no assim, ele est assim. Para solucionar os problemas nacionais era preciso ento
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
24/174
24
salvar a populao de sua condio de doena. Era preciso se lanar ao
(ZILBERMAN et al, 1983). A busca por solues efetivas dos problemas nacionais
levou Monteiro Lobato a criticar o ambiente intelectual de sua poca e a ingressar em
projetos em prol da transformao da realidade brasileira, tendo como marca
caracterstica seu posicionamento crtico e sua percepo diferenciada da realidade
social. Entre as empreitadas do autor esto as campanhas sanitaristas, a luta pela
produo de petrleo e ferro no Brasil, pelo desenvolvimento do mercado editorial
brasileiro e pela liberdade de imprensa, somados a outros inmeros projetos que
alcanaram grande sucesso, mas, por vezes, tambm, resultaram em grandes fracassos.
A segunda fase da obra contm, assim, uma forte influncia das ideias
higienistas. O grande marco dessas ideias na obra de Monteiro Lobato o livro
Problema Vital (1918). Nos artigos reunidos nesse volume, Lobato retira da populao
rural a carga de culpa que havia relegado a ela na fase anterior de sua produo,
concluindo que o povo encontrava-se doente devido falta de assistncia e de aes
eficazes do Estado. Tambm como expresso dessa salvao do Jeca, o autor produz
o Jecatatuzinho. Publicada em pequenos folhetos que integraram as campanhas
publicitrias do biotnico produzido pelo laboratrio Fontoura, a histria mostra como o
Jeca se salva das doenas e do opilamento aps a visita de um mdico sua fazenda.Aps a cura, o Jeca torna-se produtivo, atualizado com a modernidade, se interessando
por tudo o que americano, aprendendo inclusive a falar ingls. Produtivo, o Jeca torna-
se um fazendeiro prspero.
Somado s propostas de transformao da sociedade brasileira, o ideal de
intelectual de ao (ZILBERMAN et al, 1983) tambm pode ser percebido na atuao
de Monteiro Lobato no campo editorial. As aes de Monteiro Lobato foram pioneiras
no mercado editorial brasileiro. Ao final da dcada de 1910, ele adquiriu a Revista do
Brasil (1917) e, a partir desse empreendimento, fundou a Monteiro Lobato e Cia,
primeira editora brasileira. Nesse perodo a Revista do Brasil tornou-se o
empreendimento cultural de maior sucesso na Primeira Repblica (MARTINS, 1978).
As atividades como escritor e editor levaram Monteiro Lobato a ocupar o centro do
campo intelectual brasileiro na passagem da dcada de 1910 para a dcada de 1920
(LUCA, 1999). Mas ele no se limitou s atividades empresariais. Envolvendo-se
tambm nas campanhas em prol do saneamento dos sertes e na luta pela explorao de
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
25/174
25
petrleo e ferro em territrio nacional, Lobato demonstrava a preocupao com o
desenvolvimento do pas. Essas aes possibilitariam, em sua viso, a modernizao
nacional. Na defesa de suas ideias, envolveu-se em inmeros debates e polmicas,
estabelecendo uma marca que perfaz a ligao de sua atuao como intelectual,
empresrio e editor com sua prtica de escrita (KOSHIYAMA, 1982).
A dcada de 1920 marcou a afirmao da primazia das correntes modernistas
no cenrio cultural e intelectual no Brasil. Desde o final da dcada de 1910, os grupos
modernistas, principalmente em So Paulo, buscavam a reinterpretao e adaptao
sociedade brasileira de movimentos artsticos de vanguarda europeus. Essa relao entre
a arte e a cultura nacional com modelos europeus provocou a reao critica de Monteiro
Lobato, principalmente ao que ele via como exageros, sobretudo no campo das artes
plsticas (VALE, 2006). O marco principal do conflito entre Lobato e os modernistas
foi a critica do autor exposio de Anita Malfati em 1917, expressa no apontamento
de que as obras da autora eram exemplos de parania e mistificao. Esse episdio
marca o afastamento entre Lobato e os modernistas. Como destaca nio Passiani (2001,
p. 57), havia uma proximidade temtica e at formal entre a escrita literria de
Lobato e dos modernistas, mas que no foi suficiente para aproxim-los. Como
no foi possvel arregimentar o criador de Jeca Tatu, a estratgia modernista foi a de
desautoriz-lo como crtico de arte, taxando-o de pintor frustrado e
responsabilizando-o pelo recuo de Anita Malfatti em relao ao modernismo e seu
declnio artstico. Esse afastamento tambm se revela na disputa pelo domnio do campo
intelectual paulista na passagem das dcadas de 1910 e 1920. frente da Revista do
Brasil, Monteiro Lobato dominou o campo editorial at meados da dcada de 1920,
quando essa supremacia passou ao domnio de expoentes das correntes modernistas.
Os embates em que Monteiro Lobato se envolveu e no apenas com os
modernistasno se restringiram ao domnio do campo intelectual paulista e revelam a
adoo de diferentes perspectivas para a interpretao do cenrio nacional. Os debates
intelectuais desse perodo gravitavam em torno da necessidade de se buscar a
verdadeira essncia do brasileiro. Umaperspectiva corrente entre os intelectuais era o
conflito entre dimenses opostas que firmaram razes no imaginrio nacional como
serto e litoral, urbano e rural, tradio e modernidade (SOUZA, 1996). Essas
dimenses esto relacionadas s diferentes formas de vivncias, s vises de mundo e
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
26/174
26
forma como se compreende natureza e cultura. Questionava-se onde o verdadeiro
brasileiro poderia ser encontrado. Atravs desses debates, as tenses entre
cosmopolitismo e localismo, modernidade e tradio, campo e cidade alcanavam lugar
privilegiado nas discusses. Firmado no enfrentamento entre essas figuras dialgicas, o
Brasil era construdo por meio de um imaginrio retrico que reafirmava sua
diversidade ao tentar encontrar uma unidade.
Neste ambiente, inmeras correntes intelectuais se digladiavam na busca de
caractersticas que identificassem a populao nacional, na indicao dos males do
Brasil e na definio de condutas para que esses males fossem sanados. A cincia, a
cultura, a poltica e a literatura foram alguns dos campos nos quais esses debates se
desenvolveram em meio a um conturbado contexto poltico e econmico interno,
somados ainda a conflitos externos como a Primeira Guerra Mundial. Alm desses
desafios, durante as primeiras dcadas da Repblica ocorreram, no campo poltico,
crises internas entre as oligarquias regionais, agravadas ainda pelos conflitos
envolvendo as Foras Armadas. Os levantes no exrcito e na marinha desgastavam a
relao entre o poder executivo nacional e os militares. Durante a dcada de 1920,
resultaram desse conflito os levantes tenentistas e o movimento revolucionrio liderado
por Lus Carlos Prestes, acirrando as crticas de vrios grupos sociais ao governo federalno quadrinio de Artur Bernardes (1922-1926).
J mais distante desse perodo, o terceiro momento da obra de Monteiro
Lobato, como apontado por Marisa Lajolo, apresenta certa influncia do pensamento
poltico socialista. Em textos da dcada de 1940, Lobato saiu em defesa das ideias de
Luis Carlos Prestes e do Partido Comunista Brasileiro5. No texto Z Brasil (1946), as
ideias de Prestes so apontadas como a possibilidade de promover no pas uma melhoria
nas condies de vida da populao mais pobre - sobretudo no meio rural - que ainda
encontrava-se afastada das decises sobre o destino do pas. Embora nunca tenha
exercido qualquer cargo pblico eletivo, as questespolticas tambm ocupam um lugar
relevante no pensamento lobatiano. Isso pode ser identificado em sua oposio ao
5 Apesar de sua relao de proximidade com Luis Carlos Prestes e com inmeros intelectuais deorientao claramente esquerdista, Monteiro Lobato nunca filiou-se ao PCB e chegou mesmo a negar asorientaes comunistas que muitos leitores encontravam em seus textos. Recusou tambm o convite de
Prestes para se candidatar a uma cadeira de Deputado Federal, nas eleies de 1946 (ZILBERMAN et al,1983).
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
27/174
27
governo de Getlio Vargas durante a dcada de 1930 e em sua admirao por Luis
Carlos Prestes e pelo Partido Comunista Brasileiro, exposta em textos da dcada de
1940 (LAJOLO, 1983). Contudo, mesmo antes, ainda durante a dcada de 1920,
percebemos a ateno de Lobato com o cenrio poltico paulista e brasileiro. Aps
repassar o controle daRevista do Brasilpara Paulo Prado, em 1924, e ver sua editora ir
falncia, em 1925, Lobato se transfere de So Paulo para o Rio de Janeiro. Esse
momento apontado por Tnia de Luca como o marco de sada de Lobato do centro
para a margem do campo intelectual brasileiro (LUCA, 1999), mas tambm marca o
aumento da presena de questes relativas poltica na obra do autor, como se verifica
nos textos deMr. Slang e o Brasil.
Nessa diviso da obra lobatiana e na historiografia que versa sobre sua
anlise, encontramos uma forte relao entre as ideias de passado e futuro como forma
de atribuir valor produo de Monteiro Lobato. O autor foi constantemente
identificado por seus crticos como um intelectual de ideias retrgradas e atrasadas. Em
contraponto, seus apologistas destacam o carter extremamente moderno de seu
pensamento. Nesse meio, revela-se uma guerra discursiva pelo domnio do campo
intelectual brasileiro, considerando que a maior parte dessas crticas que apontam o
descompasso das ideias de Lobato com a modernidade partiu de expoentes dosmovimentos modernistas durante a dcada de 1920. Como exemplo desse processo,
destacou-se a relao de Monteiro Lobato com Mrio de Andrade. ONecrolgio, escrito
por Mrio de Andrade em 1926, em que o autor decreta a morte de Lobato como
homem de letras, marca o momento em que Lobato se afasta do campo intelectual
paulista, perdendo a posio de centralidade a qual desfrutava (LUCA, 1999).
Em contraponto a essa imagem construda pelos modernistas, a
historiografia que aponta Monteiro Lobato como homem smbolo de modernidade
bem mais recente. Ganha fora a partir da dcada de 1970 nos campos da Histria e da
crtica literria e apresenta autores como Regina Zilberman, Cassiano Nunes, Tadeu
Chiareli, Joo Lus Ceccantini, nio Passiani, dentre vrios outros autores, tendo como
grande destaque as obras de Marisa Lajolo. Parte dessa produo tem como uma de suas
marcas a indicao da contradio6 como caracterstica fundamental da atuao
6Sobre a ideia de contradio, ver Vera Nogueira Galvo, no livro Euclidiana: estudos sobre Euclides daCunha, onde a autora aponta o uso pelo autor da figura de linguagem oximoro, como forma deacomodar as contradies em seu pensamento que seriam explicadas pela prpria realidade nacional que,
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
28/174
28
intelectual e da produo literria de Monteiro Lobato, destacando o jogo entre moderno
e anti-moderno. A ideia de contradio identificada nas transformaes que Lobato
faz em sua obra ao longo do tempo. Entretanto, percebemos que essas alteraes
internas na obra de Lobato - apontadas acima nas diferentes construes do personagem
Jeca Tatu - no devem ser consideradas como contradies no se a ideia de
contradio vier acompanhada do juzo de valor, que implica em defender que um
argumento srio no pode estar eivado de contradies, como se a captao das
circunstncias no revelasse as contradies. A bem da verdade, as contradies
lobatianas so frutos do acompanhamento do autor dos debates que se desenrolam ao
longo de sua atividade intelectual. Ao passo que surgem novos dados e novas
possibilidades, h uma ampliao de horizontes do autor que busca a adaptao de suas
obras s novas contingncias, caracterizando-o como homem comprometido com os
debates presentes em seu prprio tempo, como apontamos ao longo da discusso sobre
os textos deMr. Slang e o Brasil.
As polmicas nas quais se envolveu, somadas qualidade de seus textos,
deram a Monteiro Lobato notoriedade no campo intelectual paulista. Isso pode ser
percebido na recepo dos textos de Urups. Elogiado por parte do pblico pela
qualidade de sua escrita e por sua capacidade de transmitir ao leitor as caractersticas davida do caipira, Lobato tambm recebeu inmeras crticas que apontavam o preconceito
contra a populao rural. As alteraes que Lobato empreendeu em sua obra ao final da
dcada de 1910 tornaram sua interpretao do modo de vida do homem rural mais
amena, retirando do caipira a culpa pela improdutividade e pelo atraso do pas e
direcionando as crticas falta de assistncia do Estado a essa populao, como j
apontamos acima. Contudo, acreditamos que essa alterao tambm revela a tentativa
de assegurar um lugarprivilegiado no campo intelectual que se encontrava ameaadopelas duras criticas que recebera devido a essa viso negativa da populao. Para o
autor, o caipira era oai Jesus dos intelectuais naqueleperodo, a quem as crticas no
poderiam ser dirigidas (LOBATO, 1994: 171). Ainda assim, ele defendia a necessidade
de mostrar a verdadeira face do Brasil,mesmo que desagradasse a muitos, e de partir
para a ao que possibilitasse a transformao dessa realidade. Aes que seriam
orientadas por uma interpretao evolucionista da Histria, onde era preciso construir
por si mesma, poderia ser considerada contraditria. Exemplos do uso dessa figura de linguagem so ostermos inocente culpa ou covarde valente, presentes nos textos de Euclides da Cunha.
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
29/174
29
um futuro que se diferenciasse da experincia vivida pelo pas naquele momento. Essa
transformao da vida nacional, que estabelecia a separao entre passado e futuro, seria
orientada pelas ideias de modernizao e progresso. O grande objetivo era fazer do
Brasil um pas que se equiparasse aos smbolos de modernidade consagrados nesse
perodo, como a Europa e os Estados Unidos.
A modernizao nacional uma das questes mais presentes nas ideias de
Monteiro Lobato. Contudo, a permanncia dessa temtica soma-se a uma transformao
constante de sua viso sobre esse processo, cujos indcios podem ser identificados em
suas obras. Essas alteraes no apontam simplesmente para uma mudana no
momento histrico do autor, como se o texto pudesse refletir o contexto como uma
transparncia. Essa relao entre o texto e o tempo de sua escrita se d por sua
utilizao como instrumento poltico que tem como objetivo a transformao de seu
prprio momento histrico. A adaptao carter fundamental para a evoluo7, ideia
que tambm encontra-se presente nos textos do autor. Para Lobato, era preciso que o
Brasil evolusse da condio de atraso em que se encontrava para atingir a modernidade
e o progresso que desejava. essa percepo do que moderno e da forma como o pas
atingiria o progresso que se altera na obra de Lobato ao longo do tempo.
1.1.1. Modernidade, Modernismo e Pr-Modernismo.
Segundo Frederick Karl (1988), cada poca tem sua prpria noo de
modernidade e do que ser moderno. A ideia de moderno refere-se quilo que pertence
ao presente, diferenciando-se do que pertencera a uma poca remota. Somado a isso,
existem ainda diferentes formas de se relacionar com o que se considera moderno. Karlidentifica atitudes moderadas de aceitao dos indcios de modernidade e atitudes
radicaistanto de aceitao, quanto de repulsa (KARL, 1988: 23). Ligado a essa forma
de interpretao da ideia de modernidade, encontramos um dos fundamentos presentes
nas interpretaes da obra de Lobato como retrgrada ou anti-moderna. Esse problema
tambm transparece na classificao de um determinado perodo como pr-moderno ou
7Essa ideia de evoluo est exposta nos textos de Urups, sobretudo na comparao entre caractersticasda sociedade brasileira, representada pelo modo de vida caipira, com a situao de pases tomados porLobato como parmetros de modernidade, como a Inglaterra e a Holanda.
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
30/174
30
uma determinada forma de leitura do mundo como pr-modernista, caractersticas a um
tipo de produo cultural como oposio produo dos movimentos modernistas.
A ideia de pr-modernismo revela a adoo de uma noo ideal de
modernidade. Implcita nesse termo, a noo ideal torna anacrnicos os indcios de
modernidade adotados na interpretao da realidade. Por meio dessa noo de pr-
modernismo, corre-se o risco de definir o carter de modernidade de um determinado
momento, obedecendo a parmetros pertencentes a outro contexto. Esses parmetros de
modernidade so definidos pelas relaes sociais, pelas relaes de classe, pela noo
de interesses, pela luta por hegemonia poltica ou econmica, pelas noes estticas etc.
que tm caractersticas particulares em cada momento histrico. No Brasil, a ideia de
pr-modernismo esteve muito relacionada ao campo cultural e esttico, mas essa
construo tem suas razes no contexto social e poltico, como pode ser observado na
luta pelo domnio do campo intelectual em So Paulo durante a dcada de 1920 entre as
diversas correntes intelectuais chamadas de modernistas8e os grupos intelectuais que,
como Monteiro Lobato, ficaram margem do campo de atuao desses grupos de
vanguarda.
Algo que se tornou marca da produo intelectual brasileira a
incapacidade de atribuir essncia prpria ao perodo entre 1870 e 1922,
caracterizado como pr-moderno como um simples antecedente dos movimentos
ocorridos a partir da Semana de 1922. Isso pode ser percebido nas obras de estudiosos
que se dedicaram ao debate sobre o pr-modernismo brasileiro, com destaque para a
crtica literria. Na obra de Alfredo Bosi, encontramos algumas definies para a noo
de pr-modernismo. Segundo Bosi (BOSI, 1974: 220), pr-modernista tudo o que
rompe, de algum modo, com uma cultura oficial, alienada e verbalista, e abre caminho
para sondagens sociais e estticas retomadas a partir de 22. Ou ainda, pr-modernista
pode ser tudo o que, nas primeiras dcadas do sculo XX, problematiza a nossa
realidade social e cultural (BOSI, 1974: 343). Esse momento estaria delimitado
temporalmente pelo perodo entre a morte de Machado de Assis (1908) e Joaquim
Nabuco (1910) e a ecloso do movimento modernista. Alguns autores desse perodo so
recuperados como precursores das ideias modernistas, mas, de acordo com Bosi, a
8 No nos deteremos de forma mais aprofundada na discusso sobre obras, autores e debates de Lobatocom o Modernismo devido s delimitaes do trabalho. Contudo, esse um tema j bastante explorado
pela historiografia e nosso intuito retom-lo em um trabalho posterior.
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
31/174
31
grande maioria foi afastada da celebrao aos ideais do modernismo, tratado como a
fonte mxima da autoridadeesttica nacional (MICELI, 2001: 15).
Assim, o pr-modernismo um conceito problemtico, na medida em que
subjuga toda uma gama de intelectuais e suas produes a uma ideia anterior a. Isso
indica uma relao de dependncia criando a aparncia de que esses predecessores no
tm uma produo caracterstica e ligada sua condio social e cultural. Como o
conceito surge aps o perodo delimitado como pr-moderno, podemos inferir que essa
ideia de pr-modernismo surgiu de um pensamento ligado aos movimentos modernistas
como forma de afirmar exatamente essa superioridade cultural das correntes estticas
que ganharam fora a partir da Semana de 1922. O modernismo como fonte mxima de
autoridade esttica est ligado a uma concepo que subjuga ideias de um perodo aos
ideais presentes em um perodo posterior. O modernismo, visto como um ideal esttico,
deixa transparecer o problema presente na ideia de pr-moderno, desconsiderando que
cada momento histrico tem uma noo particular do que entendido por modernidade.
Considerando esses problemas conceituais, a prpria existncia de uma
produo ou de um perodo pr-modernista discutida por Alfredo Bosi que destaca
(BOSI, 1974: 373):
Se por Modernismo entende-se exclusivamente uma ruptura com oscdigos literrios do primeiro vintnio, ento no houve, a rigor,nenhum escritor pr-modernista.Se por Modernismo entende-se algo mais que um conjunto deexperincias de linguagem; se a literatura que se escreveu sob o seusigno representou tambm uma critica global s estruturas mentais dasvelhas geraes e um esforo de penetrar mais fundo na realidadebrasileira, ento houve, no primeiro vintnio, exemplos probantes de
inconformismo cultural; e escritores pr-modernistas foram Euclides,Joo Ribeiro, Lima Barreto, Graa Aranha.
A literatura foi um dos principais veculos usados pelos intelectuais para
colocar em discusso os problemas que os afligiam nas primeiras dcadas do sculo XX
(SEVCENKO, 1985). Lima Barreto e Euclides da Cunha so apontados tambm por
Daniel Pcault como exemplos de reao ao isolamento e da vontade de colocar a
literatura a servio da recuperao da nacionalidade, fazendo dela um instrumento de
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
32/174
32
transformao social e poltica (PCAULT, 1990: 23). Tambm Alfredo Bosi, assim
como outros tericos da literatura brasileira, destaca a importncia desses dois escritores
na formao de um novo ambiente literrio nacional (BOSI, 2003). Antnio Candido,
assim como Nicolau Sevcenko, ainda indica a importncia da obra de Monteiro Lobato
nessa linha de introduo na literatura de questes polticas e sociais (CNDIDO,
1975).
Contudo, em sua obra, Alfredo Bosi no aponta Monteiro Lobato e sua
literatura como exemplos de modernidade. Ainda que considere que o autor tenha sido,
aps Euclides da Cunha e Lima Barreto, aquele que melhor soube apontar as mazelas
fsicas, sociais e mentais do Brasil oligrquico da Primeira Republica que se arrastava
por trs de uma fachada acadmica e parnasiana, Bosi caracteriza a obra de Lobato
como exemplo da contradio moderno/anti-moderno. Nesse sentido, a viso de Alfredo
Bosi aproxima-se daquela que vem sendo construda por Marisa Lajolo em suas obras.
No obstante, a interpretao desses dois autores se distancia quando Bosi aponta a obra
de Lobato como smbolo de uma literatura arcaica e de um regionalismo pobre. Para
alm das caractersticas de sua escrita, a modernidade de Monteiro Lobato, segundo
Marisa Lajolo (1985), tambm se expressa em sua forma de ao intelectual.
Para discutir a obra de Lobato a partir da ideia de modernidade, precisamos
pens-la a partir de dois ngulos: a modernidade presente em sua obra literria, expressa
em seus escritos como smbolo daquilo que o autor considerava moderno; e a
modernidade de suas aes, identificvel em sua atuao como intelectual, empresrio,
editor etc. Para superar essa ideia de moderno e retrgrado, a obra deve ser analisada
considerando o contexto em que o autor esteve inserido e o que era ser moderno para
Lobato e para seus contemporneos no momento especifico de sua produo,
desfazendo os enganos construdos a partir da indicao do Modernismo como
expresso de um tipo de interpretao da realidade mais verdadeira que aquelas que
precederam esse movimento.
Como apontamos anteriormente, o moderno, na viso de Frederick Karl,
aquilo que pertence ao presente e se afasta de uma poca remota (KARL, 1988: 23).
Ligado a essa relao entre presente e passado, Monteiro Lobato tem sido visto sob dois
pontos de vista opostos: por um lado ele foi apontado por seus crticos como umintelectual de ideias retrgradas e, por outro, definido por seus apologistas como
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
33/174
33
homem frente de seu tempo. Ambas as vises retiram Lobato de seu prprio tempo.
Se aqueles que o viam como retrgrado o ligavam a um tempo passado, os que o vm
como moderno o transportam para o tempo futuro, fazendo com que o autor permanea
deslocado das transformaes caractersticas do momento de sua atuao intelectual e
de sua escrita.
Para alm dessas analises que produzem reflexes que se mantm
inalteradas ao longo do tempo, preciso questionar que tipo de relao que o autor
mantinha com a ideia de modernidade. Nesse sentido, o argumento de Frederick Karl
em sntese: para esse autor, vrios tipos de atitude perante o moderno podem se
apresentar na obra de um artista ou em uma determinada poca (KARL, 1988: 36)nos
auxilia na construo de outra interpretao da obra de Lobato. Seguindo essa
perspectiva, percebemos que as transformaes na obra de Monteiro Lobato revelam a
passagem de um tipo a outro de atitude perante o moderno. Assim, as transformaes
verificadas na obra de Lobato nos apontam para a relao que o autor mantm com a
ideia de modernidade presente no tempo de produo de seus textos, no sendo
apropriado classific-la como retrgrada ou contraditria, tal como verificamos na
historiografia. Muito mais importante considerar a modernidade como meio de
adequao e acompanhamento das transformaes ocorridas no contexto em que Lobatose encontra.
Na busca por respostas para a ligao de Monteiro Lobato com a ideia de
modernidade, salientamos a dificuldade de se enquadrar o autor em uma definio
rgida. A diversidade de sua obra faz com que ele no seja um escritor que possa ser
colocado em caixinhas, sendo sua obra de difcil acomodao nas definies da teoria
e crtica literria. Talvez tenha sido este o equvoco de parte da historiografia que se
voltou ao estudo da obra de Lobato: tentar desvincular umas das outras as vrias
experincias com as quais o autor esteve envolvido e que deram sua produo essa
caracterstica de diversidade. Assim, preciso restituir a unidade da obra e das aes de
Lobato, perdidas em meio a interpretaes que dissociaram sua produo do contexto,
mesmo quando anunciavam a tentativa contrria. Como j sugerimos, no se trata de,
numa outra ponta, que levaria a outro equvoco, encarcerar a obra de Lobato a um
contexto nico.
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
34/174
34
O mapeamento da construo e das transformaes constantes desse projeto
possibilita o restabelecimento da unidade da obra demolida pelas criticas que apontam
as alteraes feitas pelo autor como contradies. Dessa forma, podemos confirmar que
a modernidade do autor encontra-se expressa em sua capacidade de percepo das
transformaes polticas, sociais e dos debates intelectuais ocorridos em seu tempo e
presentes em seus textos. Foi esse acompanhamento das transformaes dos vrios
aspectos da vida poltica, econmica, cultural e social do pas que provocou as
alteraes implementadas pelo autor em sua obra.
1.1.2. Smbolos de modernidade e relao com o moderno.
Ao propormos uma reflexo sobre a ideia de modernidade na obra de
Monteiro Lobato, encontramos uma gama de possibilidades pelas quais podemos definir
um roteiro de anlise. So inmeros os aspectos pelos quais possvel desenvolver essa
discusso devido atuao de Lobato em vrias reas com reflexos marcantes nos
campos intelectual, poltico, social, econmico e cultural do pas, ao longo de sua
carreira. Podemos analisar sua concepo de modernidade e sua atitude perante essa
ideia atravs das esferas artstica e esttica, tecnolgica, comportamental, poltica,
econmica, mercadolgica e comercial etc.
Contudo, preciso lembrar que no nosso objetivo definir se sua obra deve
ou no ser considerada moderna ou retrgradadiscusso que insiste em permanecer na
historiografia -, mas apontar elementos que indiquem o que era essa modernidade para o
autor. Essa anlise possibilita a deteco de elementos que do forma a um projeto de
modernizao presente na obra de Lobato que acreditamos estar relacionado ideia dePaulistanidade. O fio condutor dessa anlise alude s transformaes nos smbolos de
modernidade presentes nesse projeto exposto nos textos de Lobato e, como indicado por
Frederick Karl (1988: 36), ao posicionamento desse indivduo perante aquilo que era
por ele (e em sua poca) considerado moderno. Isso nos permite mapear a relao do
autor com ideias e debates ligados necessidade de modernizao do pas em vrios
mbitos.
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
35/174
35
Algo apropriado para a anlise da obra de Lobato pensar que, segundo as
palavras de Frederick Karl, o sentido de moderno em qualquer poca sempre o de um
processo de tornar-se (KARL, 1988: 21), para ento questionarmos: que
transformaes Lobato propunha para o Brasil? Por meio dessas transformaes, o que
o pas deveria se tornar? Esse aspecto de transformao pode ser identificado tanto em
Lobato como individuo, quanto no desejo de tornar o Brasil, o povo e a nao algo que
ainda no eram. Tornar-se, no sentido empregado por Frederick Karl, entendido ento
como um ato de mudana, de transformao. A ideia de modernidade exposta por
Lobato tem esse sentido. A ideia de transformao um dos fios condutores de sua
obra. Essa transformao no se restringe s alteraes internas na obra do autor, mas a
um dos objetivos de sua escrita, que promover a transformao social. Essa ideia de
transformao contnua coincide com a ideia de modernizao como um processo
tambm contnuo de atualizao tcnico-cientfica, social, econmica e cultural,
percebido na prpria escrita de Lobato em Mr. Slang e o Brasil. Segundo o autor
(LOBATO, 1959: 23):
Nunca houve na terra progresso que no perturbasse o anterior
equilbrio da vida. A entrada do automvel perturbou o equilbrio davida mesquinha de milhares de cocheiros de tilburi. Mas transformouesses homens. Os cocheiros so hoje choferes, gente mais bem paga ede um mais alto tipo de vida [sic.].
Nesse trecho, Lobato destaca a necessidade de transformaes, s vezes
abruptas, cujo momentneo prejuzo seria compensado com um futuro de facilidades
(LOBATO, 1959: 23). Essa uma forma de justificar a transposio dos interesses de
modernizao sobre as prticas culturais populares e tradicionais. A modernizao
necessria, ainda que passe por cima de uma suposta cultura tradicional. A ligao
estabelecida por Lobato entre a ideia de progresso e a necessidade de transformao
um dos pontos definidores de seu projeto modernizador. Suas perspectivas de
modernizao e modernidade esto ligadas ideia de progresso, fruto da prpria
formao de Lobato, muito associada teoria evolucionista.
Outro trecho que demonstra a viso de Lobato sobre o que era entendidocomo modernidade pode ser encontrado no texto O rdio-motor, publicado
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
36/174
36
originalmente em jornais do interior de So Paulo e depois includo em Ideias de Jeca
Tatu. Escrevendo em 1910, o autor fala sobre uma recente experincia apresentada em
Londres, de um carro movido energia atmica. Lobato demonstra como o uso da
energia nuclear simbolizava um avano tecnolgico e acenava para o caminho da
modernidade. No texto, Lobato escreve (1964: 246):
A supresso das distancias, o rpido devassar dos mares, as usinasimensas de onde saem todas as maravilhas da industria, a prpriaeletricidade e o mais que ensoberbece a nossa era tudo, direta ouindiretamente, veiu do vapor dagua. A idade contempornea filhado vapor como a idade subseqente o ser da fora radio-ativa. Futuroe radio-atividade so termos que se misturam [sic].
O futuro estava ligado ideia de transformao, de avano, de inovao. A
ideia de progresso como processo para se atingir a modernidade refere-se ento, para
Lobato, a uma transformao que pode ser perturbadora ao costume generalizado, mas
que renderia um futuro de comodidades, assim como j fora experimentado com a
utilizao da energia a vapor. Em outro trecho, Lobato ressalta que essas transformaes
visavam sempre facilitar a vida das pessoas (LOBATO, 1959: 23). Ainda que
perturbadoras em seu incio, as transformaes empreendidas pela modernizao tinham
sempre como fim o bem-estar humano. Assim, a ideia de modernidade de Lobato
refere-se ideia de transformao, cujo sentido encontra-se relacionado a seu
humanismo (CARDOSO, 2007), pois o objetivo do processo modernizador culmina no
bem-estar e na comodidade humana.
Mas, retomando nosso questionamento, para Monteiro Lobato, em que oBrasil deveria se transformar? Quais eram os parmetros adotados pelo autor para a
elaborao desse projeto de modernizao nacional? Como essas ideias foram aplicadas
em sua anlise sobre o Brasil?Uma caracterstica da obra de Lobato a contraposio
de imagens na formulao de suas ideias. Atravs desse dialogismo, Lobato contrape a
imagem do Brasil, marcado pelo atraso, pela ideia de serto, pelo abandono e pela
inconscincia, s experincias da Europa e dos Estados Unidos, adotadas tanto por ele
quanto por grande parte dos intelectuais na Primeira Repblica como parmetros demodernidade e progresso.
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
37/174
37
Assim a ideia de transformao no se associa necessariamente ideia de
contradio como apontada na historiografia tradicional sobre a obra de Lobato, tendo
em vista que, como demonstra Rosimeiri Cardoso (2007), h de se considerar o fato de
o momento social permitir ou no a publicao de determinadas obras e a veiculao de
algumas ideias. Como o prprio Lobato afirma em carta de 11 de fevereiro de 1926 a
Godofredo Rangel9(LOBATO, 1959: 288), sua poltica literria era ficar nos extremos:
s ler os gnios e os imbecis, que so os mesmos gnios s avessas. Essa ideia de
ficar nos extremos tambm percebida em sua prtica de escrita e refora a
transformao como caracterstica mpar de sua obra. Ele transita entre os extremos,
seja para polemizar ou para adequar-se s novas contingncias de seu prprio tempo.
seguindo essa prtica de contraposio de imagens que Lobato representa
o pas atravs do livroMr. Slang e o Brasil(1927). Ao apresentar o personagem que d
ttulo obra, Lobato destaca que a fome de pitoresco de Mr. Slang o faz correr o
mundo (LOBATO, 1959: 05) fazendo-o encalhar por trinta anos no Brasil. Neste texto
o Brasil, representado pela Tijuca, indicado como o mais pitoresco dos lugares
visitados pelo ingls. A ideia de pitoresco, atribuda pelo autor ao personagem do livro,
parte de um escritor que est analisando sua prpria terra e revela como Lobato se
coloca na condio de estrangeiro para falar de seu pas. Esse um dos exemplos quemostram que Lobato toma como parmetros de modernidade os pases europeus e os
Estados Unidos10. O Brasil representado pela Tijuca, no Rio de Janeiro, com sua
natureza, seus cenrios e seus personagens um lugar extico e distante da ideia de
modernidade que o autor almeja.
A relao de Lobato com a ideia de modernidade revela ainda, como
indicamos anteriormente, uma contraposio entre passado e futuro. Essa relao pode
ser percebida atravs dos relatos das experincias e expectativas (KOSELLECK, 2006)
do autor em relao aos temas que discute em suas obras. Essa questo percebida
claramente na Barca de Gleyre na forma como, ao longo do tempo, Lobato constri
uma imagem de si para seu leitor imediato, Godofredo Rangel, e para o pblico que
9Jos Godofredo de Moura Rangel (1884-1951) foi escritor e jurista. Amigo de Monteiro Lobato desdeque formam colegas no curso de Direito na Faculdade do Largo do So Francisco no incio do sculo,trocaram cartas por mais de 40 anos ininterruptamente. Essas cartas foram reunidas e editadas por Lobato
nos dois volumes do livroA Barca de Gleyre(1959).10A presena dessa ideia na obra de Monteiro Lobato ser mais detalhadamente discutida no segundocaptulo, onde analisaremos o contedo daPaulistanidadepresente nos textos do autor.
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
38/174
38
recebe suas cartas atravs do livro publicado originalmente em 1946. Essa relao com
temporalidades diversas o tempo da escrita, o tempo vivido, o futuro projetado pelo
autor - tambm pode ser identificada em outras obras, principalmente por meio dos
debates em torno da ideia de modernizao nacional. Isso encontra-se presente em
Problema Vital, no que se refere necessidade de transformar a sociedade como forma
de melhorar as condies de vida da populao e de construir um pas melhor no futuro;
em Urups e nas Cidades Mortas, nas criticas s praticas tradicionais da populao
rural; em Amrica, que revela sua admirao pelos Estados Unidos como smbolo do
novo e parmetro de modernidade; na sua literatura infantil, onde o autor aponta a
necessidade de investir nas geraes do futuro.
na Barca de Gleyreque o autor aponta em uma frase a importncia que
dava ao futuro como possibilidade de transformao da realidade por meio dos projetos
que propunha para o pas. Em carta de 8 de novembro de 1925, Lobato afirma a
Godofredo Rangel (LOBATO, 1959: 282): A coisa que menos me mete medo o
futuro. Esse arrojo caracterstico da atuao de Monteiro Lobato como intelectual
demonstrado na passagem dos anos 1925-1927, perodo de sua estada no Rio de Janeiro
e de grandes mudanas no Brasil.
1.2. LOBATO NO RIO DE JANEIRO: UM NOVO CAMPO INTELECTUAL
1.2.1. O desterro lobatiano.
Um dos pontos que se destacam na anlise da obra Mr. Slang e o Brasil
como uma leitura da Primeira Repblica o momento e o lugar onde Monteiro Lobato
produz esses textos. Escritor marcado pela tradio paulista, smbolo da intelectualidadedo estado de So Paulo, Lobato encontra-se no Rio de Janeiro entre os anos de 1925 e
1927. O ambiente intelectual, o cenrio poltico e as caractersticas naturais e culturais
do Rio de Janeiro se diferiam das de So Paulo, fato constantemente destacado pelo
autor em artigos e cartas. Encontrando-se neste lugar, Lobato tambm vivencia de forma
marcante o conflito entre esses dois estados pela hegemonia cultural no Brasil que
ganhara fora nas primeiras dcadas do sculo XX.
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
39/174
39
Aps quase uma dcada de destacado trabalho como editor e escritor,
sobretudo por seu trabalho frente daRevista do Brasile da editoraMonteiro Lobato e
Cia., em 1925, Lobato passa por uma mudana radical. O lugar de centralidade que
ocupara no campo intelectual paulista (LUCA, 1999) perdido a partir da crise
econmica que se abate sobre sua editora. As causas dessa crise a uma empresa que se
encontrava em plena expanso, com grandes remessas de livros no prelo, tm mais de
uma faceta. Isso apontado por Lobato nas cartas que envia a Godofredo Rangel ao
longo do ano de 1925. Em uma dessas cartas, escrita em 11 de janeiro de 1925, ele
afirmava (LOBATO, 1959: 277):
A situao peora. A Light, que prometera restabelecer a fora estems, avisa hoje que far nova reduo na energia fornecida. Spodemos trabalhar agora 2 dias por semana! E como a horrenda secaque determinou essa calamidade continua, voz geral que teremoscompleta suspenso de fora em novembro. O desastre que issorepresenta para So Paulo imenso; e como se juntou a crise daenergia eltrica a crise da gua da Cantareira e a crise bancaria, o mal enorme [sic].
Monteiro Lobato enfrenta o obstculo da crise energtica que atingira So
Paulo nesse perodo, tornando necessrio o racionamento de energia eltrica. Sendo as
mquinas da oficina grfica impedidas de funcionarem a pleno vapor, tornava-se
invivel o atendimento pela empresa das enormes remessas de livros j encomendados
poca. Outro percalo encontrado por Lobato foi a alta carga de impostos sobre o papel
e da concorrncia dos livros impressos em Portugal que eram isentos de impostos na
importaofato denunciado por Lobato no texto Guerra ao livro. Contra a legislao
que sufocava, no apenas sua empresa, mas a indstria grfica de forma geral, Lobato
escrevia (LOBATO, 1959: 166):
A mentalidade metropolitana dantanho irmana-se agora com amentalidade dos nossos republicanssimos fazedores de leis. Ambosquerem a mesma coisa: trevas mentais. Ambos guerream o mesmodrago: o livro [sic].
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
40/174
40
As taxaes impostas indstria grfica equivaliam, na opinio de Lobato,
com as leis do perodo colonial que proibiam o desenvolvimento da imprensa no Brasil.
De forma semelhante Lobato via que as aes dos governos republicanos tinham o
intuito de sufocar a indstria editorial e, por conseguinte, a prpria cultura nacional. As
constantes crticas s aes do Governo Federal fizeram com que Lobato se envolvesse
em inmeras polmicas, principalmente por meio da imprensa. As polmicas nas quais
o escritor se envolvera apresentam uma dupla conseqncia: afirmaram a caracterstica
de independncia do autor como marca de sua atuao intelectual, mas tambm
contriburam para a perda de espao no campo intelectual de So Paulo, pois geraram
crticas a seu pensamento dentro do prprio circulo em que atuava.
Tambm dessa forma as criticas poltica republicana, principalmente
durante o perodo de governo do presidente Artur Bernardes, renderam a Lobato vrias
inimizades, inclusive a do prprio presidente da Repblica. No texto Uma questo de
honra nacional11, publicado em 20 de abril de 1922, que fora produzido por Lobato e
endossado pela assinatura de inmeros intelectuais e polticos da poca, o autor defende
a instituio do voto secreto no Brasil como forma de moralizao da poltica nacional.
A insistncia na discusso desse tema tornaria ainda mais delicada sua relao com o
presidente da Repblica, tendo reflexos nos acordos comerciais que a editora de Lobatomantinha com o Governo Federal. Em agosto de 1924, Lobato escreveria tambm uma
carta a Artur Bernardes denunciando que era esse afastamento entre a poltica e a
opinio pblica sobretudo das elites que causava o desinteresse pelos caminhos da
nao e o carter revoltoso da populao (AZEVEDO et al, 1997: 151). Condenando as
prticas dos governos republicanos, cujo resultado era o divrcio entre a poltica e a
opinio pblica, Lobato criticava duramente o presidente da Repblica.
Um dos resultados dessa polmica foi o cancelamento pelo governo de Artur
Bernardes das edies de livros didticos que seriam produzidos pela editora de
Monteiro Lobato (AZEVEDO et al, 1997). Esse foi um duro golpe na empresa que j
enfrentava o problema da crise energtica nesse perodo. No havendo outra sada,
Monteiro Lobato teve declarada sua falncia em meados de 1925. Em carta enviada a
11 Carta aberta ao Dr. Carlos de Campos, assinada por treze intelectuais notveis em So Paulo. VerAZEVEDO, CAMARGO e SACHETTA, p. 155.
-
5/24/2018 Danyllo Di Giorgio Martins Da Mota
41/174
41
Godofredo Rangel, publicada na Barca de Gleyre, o autor escreve (LOBATO, 1959:
278):
A crise de energia eltrica da Light vai dar-nos um tombo mas ha deser tombo passageiro. Breve estaremos novamente de p. As feridascicatrizaro e em um ou dois anos ningum falar mais no caso. (...)Perdermos uma batalha, mas no fim ganharemos a guerra como osingleses. [sic].
Escrevendo ao amigo em meio crise, Lobato demonstra a gravidade da
situao, mas j aponta uma perspectiva de manuteno de seus planos comoempreendedor. Na carta seguinte a Godofredo Rangel, Lobato demonstra que seus
planos j iam alm da crise que atingia sua empresa e que pretendia dar continuidade a
seu projeto comercial ao afirmar (LOBATO, 1959: 279).
Ainda no posso dizer que rumo tomaro as coisas. (...) Pensamos empropor concordata com 50%, mas eu toro pela liquidao. Antes
construir uma casinha nova e s da gente do que remendar umcasaro de todo mundo. Havendo liquidao, lanaremos sem demoraa Companhia Editora Nacional, pequenininha, com o capital de 50contos em dinheiro e 2000 em experincia e em poucos anosficaremos ainda maiores que o arranha-ceus que desabou. Perder umabatalha no perder a guerra [sic].
Aps j haver repassado o controle daRevista do Brasilpara Paulo Prado, a
Monteiro Lobatoe Cia. liquidada. Envolto por essa crise comercial, Lobato parte de
So Paulo para o Rio de Janeiro onde, apesar do recente fracasso de sua editora, planeja
fundar um novo empreendimento. Assim Lobato chega ao Rio de Janeiro
comercialmente falido, mas com planos de dar continuidade a seu projeto grfico
interrompido na capital paulista. Mesmo antes de ver sua empresa atingida pela crise
econmica, ocorre outro fato que tem grande representatividade no afastamento de
Lobato do campo intelectual que dominara por quase uma dcada. Em carta daBarca de
Gleyre de 7 de abril de 1924, Lobato relata a Godofredo Rangel esse momento
(LOBATO, 1959: 264):