CARTA ENCÍCLICA DIVES IN MISERICORDIA¨que/Oeuvres... · 2020. 9. 15. · Revelação da...

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CARTA ENCÍCLICA DIVES IN MISERICORDIA DO SUMO PONTÍFICE JOÃO PAULO II SOBRE A MISERICÓRDIA DIVINA.

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CARTA ENCÍCLICADIVES IN MISERICORDIA

DO SUMO PONTÍFICEJOÃO PAULO II

SOBRE A MISERICÓRDIA DIVINA.

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Veneráveis irmãos e caríssimos filhos e filhas: saúde ebênção apostólica!

I. QUEM ME VÊ, VÊ O PAI (CF. JO 14, 9)

Revelação da misericórdia1. «DEUS, RICO EM MISERICÓRDIA»1 é

Aquele que Jesus Cristo nos revelou como Pai eque Ele, seu próprio Filho, nos manifestou e deua conhecer em Si mesmo2.Convém recordar, aeste propósito, o momento em que Filipe, umdos doze Apóstolos, dirigindo-se a Cristo lhedisse: «Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos basta».Jesus respondeu-lhe deste modo: «Há tantotempo que estou convosco e não me conheces...?Quem me vê, vê o Pai»3. Estas palavras foramproferidas no último discurso com que Cristo sedespediu dos seus no princípio da Ceia Pascal.

Seguiram-se os acontecimentos daqueles diassagrados, durante os quais havia de confirmar-se,de uma vez para sempre, o facto de que «Deus,que é rico em misericórdia, movido pela imensacaridade com que nos amou, restituiu-nos à vidajuntamente com Cristo, quando estávamosmortos pelos nossos pecados»4.

Seguindo a doutrina do Concílio Vaticano II,e atendendo às necessidades particulares dos

1 Ef 2,4.2 Cf. Jo 1,18; Hebr 1,1 s.3 Jo 14,8 s.4 Ef 2,4 s.

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tempos em que vivemos, dediquei a EncíclicaRedemptor Hominis à verdade sobre o homem,verdade que, na sua plenitude e profundidade,nos é revelada em Cristo.

Exigência de não menor transcendência,nestes tempos críticos e difíceis, leva-nos adescobrir, também, no mesmo Cristo, o rosto doPai, que é «Pai das misericórdias e Deus de toda aconsolação»5. Lê-se na Constituição Gaudium etSpes: «Cristo, novo Adão... revela o homem a simesmo plenamente e descobre-lhe a sua sublimevocação». E fá-lo precisamente «na revelação domistério do Pai e do seu amor»6. As palavras citadasatestam com clareza que a manifestação dohomem, na plena dignidade da sua natureza, nãopode verificar-se sem referência – não apenasconceitual, mas integralmente existencial–a Deus.O homem e a sua vocação suprema desvendam-se em Cristo, mediante a revelação do mistério doPai e do seu amor.

Por esse motivo parece agora oportunodesenvolver este mistério. Sugerem-no múltiplasexperiências da Igreja e do homemcontemporâneo; e exigem-no também asaspirações de tantos corações humanos, os seussofrimentos e esperanças, as suas angústias eexpectativas. Se é verdade que todos e cada um

5 2 Cor 1,3.6 Const. past. sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo Gaudium et Spes,22: AAS, 58 (1966), p. 1042.

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dos homens, em certo sentido, são o caminho daIgreja – como afirmei na Encíclica RedemptorHominis – também é verdade que o Evangelho etoda a Tradição nos indicam constantemente quedevemos percorrer com todos e cada um doshomens este caminho, tal como Cristo o traçou, aorevelar em si mesmo o Pai e o seu amor7.

Em Cristo Jesus, todos os caminhos que sedirigem ao homem, tais como eles foramconfiados, duma vez para sempre à Igreja,conduzem sempre ao encontro do Pai e do seuamor. O Concílio do Vaticano II confirmou estaverdade adaptando-a às condições dos nossostempos.

Quanto mais a missão realizada pela Igreja secentrar no homem – quanto mais for, por assimdizer, antropocêntrica – tanto mais se deveconfirmar e realizar de modo teocêntrico, isto é,orientar-se em Jesus Cristo em direcção do Pai.

Enquanto as várias correntes do pensamentohumano, do passado e do presente, têm sido econtinuam a ser marcadas pela tendência paraseparar a até mesmo para contrapor oteocentrismo e o antropocentrismo, a Igreja,seguindo a Cristo, procura ao contrário uni-losconjuntamente na história do homem, de maneiraorgânica e profunda. Este é um dos princípiosfundamentais, e talvez o mais importante, domagistério do último Concílio. Na fase actual da7 Cf. ibid.

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história da Igreja, se nos propomos como tarefaprincipal pôr em prática a doutrina do grandeConcílio, devemos procurar ater-nos precisamentea este princípio, com fé, espírito e coraçãoabertos.

Na minha já citada Encíclica, procurei pôrem realce que o aprofundamento e oenriquecimento multiforme da consciência daIgreja, frutos do mesmo Concílio, devem abrirmais amplamente o nosso entendimento e onosso coração ao próprio Cristo. Hoje queroexpor que a abertura para Cristo que, comoRedentor do mundo, revela plenamente o homemao próprio homem, não pode realizar-se senãomediante uma relação, cada vez mais consciente ,ao Pai e ao seu amor.

Encarnação da misericórdia2. Deus, que «habita numa luz inacessível»8,

fala também ao homem através da linguagem detodo o universo: «Desde a criação do mundo asperfeições invisíveis de Deus, tanto o seu podereterno como a sua divindade, tornam-sereconhecíveis quando as obras por Ele realizadassão consideradas pela mente humana»9.

O conhecimento indirecto e imperfeito, obrada inteligência que procura Deus por meio dascriaturas, através do mundo visível, não é ainda«visão do Pai». «Ninguém jamais viu a Deus»,

8 1 Tim 6,16.9 Rom 1,20.

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escreve S. João para dar maior relevo à verdadesegundo a qual «o Filho unigénito, que está noseio do Pai, é que O deu a conhecer»10. A«revelação» manifesta Deus no insondávelmistério do seu ser – uno e trino – rodeado de«luz inacessível»11. Mediante esta «revelação» deCristo, conhecemos Deus, antes de mais nada nasua relação de amor para com o homem: na sua«filantropia»12. É precisamente aqui que «as suasperfeições invisíveis» se tornam de maneiraparticular «reconhecíveis», incomparavelmentemais reconhecíveis do que através de todas asoutras «obras por Ele realizadas». Tornam-sevisíveis em Cristo e por meio de Cristo, por intermédiodas suas acções e palavras e, por fim, mediante asua morte na cruz e a sua ressurreição.

Deste modo em Cristo e por Cristo, Deuscom a sua misericórdia torna-se tambémparticularmente visível; isto é, põe-se emevidência o atributo da divindade, que já o AntigoTestamento, servindo-se de diversos conceitos etermos, tinha chamado «misericórdia». Cristoconfere a toda a tradição do Antigo Testamentoquanto à misericórdia divina sentido definitivo.Não somente fala dela e a explica com o uso decomparações e parábolas, mas sobretudo Elepróprio encarna-a e personifica-a. Ele próprio é, em certo

10 Jo 1,18.11 Tim 6,16.12 Cf. Tit 3,4.

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sentido, a misericórdia. Para quem a vê n'Ele – en'Ele a encontra – Deus torna-se particularmente«visível» como Pai «rico em misericórdia»13.

A mentalidade contemporânea, talvez maisdo que a do homem do passado, parece opor-seao Deus de misericórdia e, além disso, tende aseparar da vida e a tirar do coração humano aprópria ideia da misericórdia. A palavra e oconceito de misericórdia parecem causar mal-estar ao homem, o qual, graças ao enormedesenvolvimento da ciência e da técnica, nuncaantes verificado na história, se tornou senhor daterra, a subjugou e a dominou14. Tal domíniosobre a terra, entendido por vezes unilateral esuperficialmente, parece não deixar espaço para amisericórdia.

A este propósito, podemos reportar-nos comproveito à imagem da «condição do homem nomundo contemporâneo», como está delineada noinício da Constituição Gaudium et Spes, ondelemos, entre outras, as afirmações seguintes:«Assim, o mundo actual apresenta-sesimultaneamente poderoso e débil, capaz domelhor e do pior; abre-se na sua frente o caminhoda liberdade ou da escravidão, do progresso ou daregressão, da fraternidade ou do ódio. Alémdisso, o homem toma consciência de quedepende dele a boa orientação das forças que

13 Ef 2,4.14 Cf. Gén 1,28.

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suscitou, as quais tanto o podem esmagar comoservir»15.

A situação do mundo contemporâneo não sómanifesta transformações que fazem esperar umfuturo melhor do homem sobre a terra, mas apresentatambém múltiplas ameaças, que ultrapassamlargamente as conhecidas até agora. Sem deixarde denunciar tais ameaças (por exemplo, comintervenções na ONU, na UNESCO, na FAO enoutras sedes), a Igreja deve também examiná-lasà luz da verdade recebida de Deus.

A verdade revelada por Cristo a respeito deDeus «Pai das misericórdias»16, permite-nos «vê-l'O» particularmente próximo do homem,sobretudo quando este sofre, quando é ameaçadono próprio coração da sua existência e da suadignidade. Por este motivo, na actual situação daIgreja e do mundo, muitos homens e muitosambientes, guiados por vivo sentido de fé,voltam-se quase espontaneamente, por assimdizer, para a misericórdia de Deus. São impelidosa fazê-lo certamente pelo próprio Cristo, o qual,mediante o seu Espírito, continua operante noíntimo dos corações humanos. O mistério deDeus «Pai das misericórdias» revelado por Cristotorna-se, no contexto das hodiernas ameaças

15 Const. past. sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo Gaudium et Spes,9: AAS, 58 (1966), p. 1032.16 2 Cor 1,3.

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contra o homem, como que um singular apelodirigido à Igreja.

Na presente Encíclica, pretendo acolher talapelo; desejo inspirar-me na linguagem darevelação e da fé, linguagem eterna e ao mesmotempo incomparável pela sua simplicidade eprofundidade, para com ela exprimir, uma vezmais, diante de Deus e dos homens, as grandespreocupações do nosso tempo.

A revelação e a fé ensinam-nos,efectivamente, não tanto a meditar de modoabstracto sobre o mistério de Deus, «Pai dasmisericórdias», quanto a recorrer a esta mesmamisericórdia em nome de Cristo e em união comEle. Cristo não disse, porventura, que o nossoPai, Aquele que «vê o que é secreto»17, estácontinuamente à espera, por assim dizer, de quenós, apelando para Ele em todas as necessidades,perscrutemos cada vez mais o seu mistério: omistério do Pai e do seu amor?18

É meu desejo, portanto, que estasconsiderações sirvam para aproximar mais detodos tal mistério e se tornem, ao mesmo tempo,um vibrante apelo da Igreja à misericórdia, de queo homem e o mundo contemporâneo tantoprecisam. E precisam dessa misericórdia, mesmosem muitas vezes o saberem.

17 Mt 6,4.6.18.18 Cf. Ef 3,18; e também Lc 11,5-13.

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II. MENSAGEM MESSIÂNICA

Quando Cristo começou a fazer e aensinar

3. Diante dos seus conterrâneos, em Nazaré,Cristo expõe as palavras do profeta Isaías: «OEspírito do Senhor está sobre mim, porque Eleme ungiu e me enviou a anunciar a Boa-Nova aospobres, a proclamar a libertação aos captivos e odom da vista aos cegos, a pôr em liberdade osoprimidos e a promulgar um ano de acolhimentopor parte do Senhor»19. Segundo S. Lucas, estasafirmações são a sua primeira declaração messiânica, àqual se seguem os factos e as palavras conhecidospor intermédio do Evangelho. Mediante taisfactos e palavras, Cristo torna o Pai presente nomeio dos homens.

É muito significativo que estes homens sejamsobretudo os pobres, carecidos dos meios desubsistência, os que estão privados da liberdade,os cegos que não vêem a beleza da criação, os quevivem com a amargura no coração, ou então osque sofrem por causa da injustiça social e, porfim, os pecadores. Em relação a estes últimos, demodo especial, o Messias torna-se sinalparticularmente legível de Deus que é amor,torna-se sinal do Pai. Do mesmo modo que oshomens de então, também os homens do nossotempo podem ver o Pai, neste sinal visível.

19 Lc 4,18 s.

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É igualmente significativo que, quando osmensageiros enviados por João Baptista vieramter com Jesus e lhe perguntaram – «Tu és Aqueleque está para vir, ou temos que esperar outro?»20

– Ele, referindo-se ao mesmo testemunho comque havia inaugurado o seu ensino em Nazaré,lhes tenha respondido: «Ide contar a João o quevistes e ouvistes: os cegos vêem, os coxos andam,os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, osmortos ressuscitam, aos pobres é anunciada aBoa-Nova»; e é ainda significativo que tenhadepois concluído: «Bem-aventurado aquele quenão se escandalizar a meu respeito»21.

Jesus revelou, sobretudo com o seu estilo devida e com as suas acções, como está presente oamor no mundo em que vivemos, amor operante, amorque se dirige ao homem e abraça tudo quantoconstitui a sua humanidade. Tal amor transpareceespecialmente no contacto com o sofrimento,injustiça e pobreza; no contacto com toda a«condição humana» histórica, que de váriosmodos manifesta as limitações e a fragilidade,tanto físicas como morais, do homem.Precisamente o modo e o âmbito em que semanifesta o amor são chamados na linguagembíblica «misericórdia».

Cristo, portanto, revela Deus que é Pai, que é«amor», como se exprimiria S. João no sua

20 Lc 7,19.21 Lc 7,22s.

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primeira Epístola22. Revela Deus «rico emmisericórdia», como lemos em S. Paulo23. Estaverdade, mais do que tema de ensino, é realidadeque Cristo nos tornou presente. Tornar presente oPai como amor e misericórdia, constitui na consciênciado próprio Cristo, ponto fundamental doexercício da sua missão messiânica. Confirmam-no as palavras por Ele pronunciadas, primeiro nasinagoga de Nazaré e, depois, diante dos seusdiscípulos e dos enviados de João Baptista.

Baseando-se neste modo de manifestar apresença de Deus, que é Pai, amor e misericórdia,Jesus faz da mesma misericórdia um dosprincipais temas da sua pregação. Como de costume,também neste ponto ensina antes de mais «emparábolas», porque exprimem melhor a própriaessência das coisas. Basta recordar a parábola dofilho pródigo24, ou a parábola do bomsamaritano25, ou ainda, por contraste, a do servosem compaixão26. Numerosas são ainda aspassagens do ensinamento de Cristo quemanifestam o amor e misericórdia sob umaspecto sempre novo. Basta ter diante dos olhoso bom pastor que vai à busca da ovelha

22 1 Jo 4.8.16.23 Cf, Ef 2,4.24 Lc 15,11-32.25 Lc 10,30-37.26 Mt 18,23-35.

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tresmalhada27, ou a mulher que varre a casa àprocura da dracma perdida28. O Evangelista quetrata de modo particular estes temas do ensino deCristo é S. Lucas, cujo Evangelho mereceu serchamado «o Evangelho da misericórdia».

Quando se trata da pregação, levanta-se umproblema de capital importância, no que dizrespeito ao significado dos termos e ao conteúdodo conceito de «misericórdia» (em relação como conceito de«amor»). A recta compreensão desse conteúdo é achave para se entender a própria realidade damisericórdia. E isto é o que para nós maisimporta.

Antes de dedicar uma parte das nossasconsiderações a este assunto, ou seja, antes deestabelecer o significado das palavras e oconteúdo próprio do conceito de «misericórdia»,devemos notar que Cristo, ao revelar o amor-misericórdia de Deus, exigia ao mesmo tempo doshomens que se deixassem guiar na própria vidapelo amor e pela misericórdia. Esta exigência fazparte da própria essência da mensagemmessiânica e constitui a medula do «ethos»evangélico. O Mestre exprime isto mesmo, querpor meio do mandamento por Ele definido como«o primeiro e o maior»29, quer sob a forma debênção, ao proclamar no Sermão da Montanha:

27 Mt 18,12-14; Lc 15,3-7.28 Lc 15,8-10.29 Mt 22,38.

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«Bem-aventurados os misericordiosos, porquealcançarão misericórdia»30.

Deste modo, a mensagem messiânica sobre amisericórdia conserva sempre particular dimensãodivino-humana. Cristo, enquanto é ocumprimento das profecias messiânicas, aotornar-se encarnação do amor que se manifestacom particular intensidade em relação aos quesofrem, aos infelizes e aos pecadores, tornapresente e, desse modo, revela mais plenamente oPai, que é Deus «rico em misericórdia». Aomesmo tempo, tornando-se para os homensmodelo do amor misericordioso para com osoutros, Cristo proclama com obras, mais ainda doque com palavras, o apelo à misericórdia, que éuma das componentes essenciais do «ethos» doEvangelho. Não importa cumprir somente ummandamento ou postulado de natureza ética, mastambém de satisfazer a uma condição de capitalimportância, a fim de Deus se poder revelar nasua misericórdia para com o homem: «Osmisericordiosos... alcançarão misericórdia».

III. A MISERICÓRDIA NO ANTIGO TESTAMENTO

O conceito de «misericórdia» no AntigoTestamento

4. O conceito de «misericórdia» no AntigoTestamento tem longa e rica história. Devemos

30 Mt 5,7.

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remontar a essa história, para fazer resplandecermais plenamente a misericórdia que Cristorevelou. Revelando-a, quer pelas suas obras querpelo seu ensino, Cristo dirigia-se a homens quenão só conheciam o conceito de misericórdia,mas também, como povo de Deus da Antiga Aliança,tinham colhido da própria história plurissecularuma peculiar experiência da misericórdia de Deus. Estaíntima experiência foi tanto social e comunitária,como particular e individual.

Israel foi o povo da aliança com Deus,aliança que muitas vezes violou. Quando tomavaconsciência da própria infidelidade apelava para amisericórdia . E ao longo da história de Israel nãofaltaram Profetas e outros homens quedespertavam tal consciência. A este propósito, osLivros do Antigo Testamento apresentam-nosnumerosos testemunhos. Entre os factos e ostextos mais salientes, podemos recordar: o inícioda história dos Juízes31, a oração de Salomão aoser inaugurado o Templo32, uma parte dasintervenções proféticas de Miqueias33, asconsoladoras garantias oferecidas por Isaías34, a

31 Cf. Jz 3,7-9 32.32 Cf. 1 Sam 8,22-53.33 Cf. Miq 7,18-20.34 Cf. Is 1,18; 51,4-16.

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súplica dos hebreus exilados35 e a renovação daAliança depois do regresso do exílio36.

É significativo o facto de os Profetas na suapregação apresentarem a misericórdia, a qualmuitas vezes se referem por causa dos pecadosdo povo, em ligação com a incisiva imagem doamor da parte de Deus. O Senhor ama Israel comamor de singular eleição, semelhante ao amor deum esposo37; e por isso perdoa as suas culpas eaté as infidelidades e traições. Ao encontrar-seperante a penitência, a conversão autêntica dopovo, restabelece-o novamente na graça38. Napregação dos Profetas, a misericórdia significa aespecial força do amor, que prevalece sobre o pecado esobre a infidelidade do povo eleito.

Neste amplo contexto «social», a misericórdiaaparece como o elemento correlativo daexperiência interior de cada uma das pessoas quese encontram em estado de culpa, ou quesuportam sofrimentos e desgraças de toda aespécie. Tanto o mal físico como o mal moral, ou pecado,fazem com que os filhos e as filhas de Israel sevoltem para o Senhor, apelando para a suamisericórdia. Deste modo a Ele se dirige David,consciente da gravidade da sua culpa39; igualmente

35 Cf. Bar 2,11-3,8.36 Cf. Ne 9.37 Cf. por ex. Os 2,21-25 e 15; Is 54,6-8.38 Cf. Jer 31,20- Ex 39,25-29.39 Cf. 2 Sam 11; 12; 24,10.

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a Ele se dirige Job, depois das suas rebeliões, aoencontrar-se na sua tremenda desventura40; assimse dirige ao Senhor também Ester, consciente daameaça mortal, iminente, contra o seu povo41. E,além destes, deparamos ainda com outrosexemplos nos Livros do Antigo Testamento42.

Na origem desta multiforme convicçãocomunitária e pessoal, como é comprovado portodo o Antigo Testamento no decurso dosséculos, há que colocar a experiência fundamentaldo povo eleito, vivido nos dias do êxodo: oSenhor observou a aflição do seu povo, reduzidoà escravidão, ouviu os seus clamores, deu-seconta dos seus sofrimentos e decidiu libertá-lo43.Neste acto de salvação realizado pelo Senhor, oProfeta quis ver o seu amor e a sua compaixão44.A segurança de todo o povo e de cada um dosseus membros radica na misericórdia divina quepode ser invocada em todas as circunstânciasdramáticas.

A isto vem juntar-se o facto de que a misériado homem é também o seu pecado. O povo daAntiga Aliança conheceu esta miséria desde ostempos do êxodo, quando ergueu o bezerro deouro. Mas o próprio Senhor triunfou sobre este

40 Job passim.41 Est 4,17k ss.42 Cf. por ex. Ne 9,30-32- Tob 3,2-3, 11-12; 8,16s.; 1 Mac 4,24.43 Cf. Ex 3,7s.44 Cf. Is 63,9.

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gesto de ruptura da Aliança, quando se definiusolenemente a Moisés como «Deus compassivo emisericordioso, lento para a ira e cheio debondade e de fidelidade»45. É nesta revelaçãocentral que o povo eleito e cada um dos seuscomponentes irão encontrar, depois de teremprevaricado, a força e a razão para de novo sevoltarem para o Senhor, para Lhe recordaremexactamente aquilo que Ele tinha revelado acercade si próprio46, e para Lhe implorarem perdão.

O Senhor revelou a sua misericórdia tantonas obras como nas palavras, desde os primórdiosdo povo que escolheu para si. No decurso da suahistória, este povo, quer em momentos dedesgraça, quer ao tomar consciência do própriopecado, entregou-se continuamente comconfiança ao Deus das misericórdias. Namisericórdia do Senhor para com os seusmanifestam-se todos os matizes do amor: Ele épara eles Pai47, dado que Israel é seu filhoprimogénito48; Ele é também o esposo daquela aquem o Profeta anuncia um nome novo: «bem-amada» (ruhama), porque usará de misericórdiapara com ela49.

45 Ex 34 6.46 Cf. Núm 14,18; 2 Crón 30,9; Ne 9,17; Sl 86(85), 15; Sab 15,1; Sir 2,11; Jl2,13.47 Cf. Is 63,16.48 Cf. Ex 4.22.49 Cf Os 2,3.

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Mesmo quando o Senhor, exasperado pelainfidelidade do seu povo, decide acabar com ele,são ainda a compaixão e o amor generoso paracom os seus que O levam a suster a suaindignação50. E então, torna-se fácil compreendera razão pela qual os Salmistas, ao quererem cantarao Senhor os mais sublimes louvores, entoarãohinos ao Deus do amor, da compaixão, damisericórdia e da fidelidade51.

De tudo isto se deduz que a misericórdia fazparte não somente da noção de Deus, mascaracteriza também a vida de todo o povo deIsrael e de cada um dos seus filhos e filhas: é aessência da intimidade com o seu Senhor, a essência doseu diálogo com Ele. Precisamente sob esteaspecto, a misericórdia é apresentada em cada umdos Livros do Antigo Testamento com granderiqueza de expressões. Seria difícil, talvez,procurar nestes livros resposta meramente teóricaà pergunta: o que é a misericórdia em si mesma.Contudo, a própria terminologia que neles é usadapode dizer-nos muitíssimo a tal respeito52.50 Cf Os11,7-9; Jer 31,20; Is 54,7s.51 Cf. Sl 103(102) e 145(144).52 Ao definirem a misericórdia, os Livros do Antigo Testamento servem-sesobretudo de duas expressões, cada uma das quais tem um matizsemântico diverso. Antes de mais, o termo hesed, que indica uma profundaatitude de «bondade». Quando esta disposição se estabelece entre duaspessoas, estas passam a ser, não apenas benévolas uma para com a outra,mas também reciprocamente fiéis por força de um compromisso interior,portanto , também em virtude de uma fidelidade para consigo próprias. E se écerto que hesed significa também «graça» ou «amor», isto sucedeprecisamente na base de tal fidelidade. O facto de o compromisso em

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O Antigo Testamento proclama amisericórdia do Senhor mediante numerosostermos com significados afins. Estes termos sãodiferenciados no seu conteúdo particular, mastendem a convergir, se assim se pode dizer, de váriospontos de vista para um único conteúdo fundamental, a

questão ter um carácter, não apenas moral, mas como que jurídico, nãoaltera a sua realidade. Quando no Antigo Testamento o vocábulo hesed éreferido ao Senhor isso acontece sempre em relação com a aliança queDeus fez com Israel. Esta aliança foi da parte de Deus um dom e umagraça para Israel. Contudo, uma vez que Deus, em coerência com aAliança estabelecida, se tinha comprometido a respeitá-la, hesed adquiria,em certo sentido, um conteúdo legal. O compromisso «jurídico» da partede Deus deixava de obrigar quando Israel infringia a aliança e nãorespeitava as condições da mesma. E era precisamente então que hesed,deixando de ser uma obrigação jurídica, revelava o seu aspecto maisprofundo: tornava-se manifesto aquilo que fora ao princípio, ou seja, amorque doa, amor mais potente do que a traição, graça mais forte do que opecado.Esta fidelidade para a «filha do meu povo» infiel (cf. Lam 4,3.6), em últimaanálise é, da parte de Deus, fidelidade a si próprio. Isto aparece evidentesobretudo pela frequência com que é usado o binómio hesed we'emet (=graça e fidelidade), que se poderia considerar uma hendíadis (cf. p. ex., Ex34,6; 2 Sam 2,6; 15,20; Sl 25[24],10; 40[39], 11 s.; 85[84],11; 138[137],2; Miq7,20). «Eu faço isto, não por causa de vós, ó casa de Israel, mas pela honrado meu santo nome» (Ez 36,22). Assim, também Israel, embora sob opeso das culpas, por ter quebrado a aliança, não pode ter pretensões emrelação ao hesed de Deus, com base numa suposta justiça (legal). Noentanto, pode e deve continuar a esperar e a ter confiança em obtê-lo, jáque o Deus da aliança é realmente «responsável pelo seu amor». Frutodeste amor é o perdão e a reconstituição na graça, o restabelecimento daaliança interior.O segundo vocábulo que na terminologia do Antigo Testamento serve paradefinir a misericórdia é rahªmim. O matiz do seu significado é um poucodiverso do significado de hesed. Enquanto hesed acentua as características dafidelidade para consigo mesmo e da «responsabilidade pelo próprio amor»(que são características em certo sentido masculinas), rahªmim, já pelaprópria raiz, denota o amor da mãe (rehem= seio materno). Do vínculo maisprofundo e originário, ou melhor, da unidade que liga a mãe ao filho, brotauma particular relação com ele, um amor particular. Deste amor se podedizer que é totalmente gratuito, não fruto de merecimento, e que, sob este

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fim de exprimir a riqueza transcendental damisericórdia e, ao mesmo tempo, para aproximá-la do homem sob aspectos diversos. O AntigoTestamento encoraja os homens desventurados,sobretudo os que estão oprimidos pelo pecado –como também todo o povo de Israel, que tinha

aspecto, constitui uma necessidade interior: é uma exigência do coração. Éuma variante como que «feminina» da fidelidade masculina para consigopróprio, expressa pelo hesed. Sobre este fundo psicológico, rahªmim dáorigem a uma gama de sentimentos, entre os quais a bondade e a ternura, apaciência e a compreensão, que o mesmo é dizer a prontidão para perdoar.O Antigo Testamento atribui ao Senhor estas características quando, aofalar d'Ele, usa o termo rahªmim. Lemos em Isaías: «Pode porventura amulher esquecer-se do seu filho e não ter carinho para com o fruto dassuas entranhas? Pois ainda que a mulher se esquecesse do próprio filho, eu jamais meesqueceria de ti» (Is 49,15). Este amor, fiel e invencível graças à forçamisteriosa, da maternidade, é expresso nos textos do Antigo Testamentode várias maneiras: como salvação dos perigos, especialmente dosinimigos, como perdão dos pecados – em relação aos indivíduos e tambéma todo o povo de Israel– e, finalmente, como prontidão em satisfazer apromessa e a esperança (escatológicas), não obstante a infidelidadehumana, conforme lemos em Oséias: «Eu os curarei das suas infidelidades,amá-los-ei de todo o coração» (Os 14,5).Na terminologia do Antigo Testamento encontramos ainda outrasexpressões, que se referem de modo diverso ao mesmo conteúdofundamental. Todavia, as duas acima mencionadas merecem uma atençãoparticular. Nelas se manifesta claramente o seu originário aspecto antropomórfico:para indicar a misericórdia divina, os autores bíblicos servem-se dostermos que correspondem à consciência e à experiência dos homens seuscontemporâneos. A terminologia grega da versão dos Setenta apresenta-secom uma riqueza menor do que a hebraica; não reflecte todos oscambiantes semânticos próprios do texto original. Em todo o caso, oNovo Testamento constrói sobre a riqueza e a profundidade que jácaracterizavam o Antigo.Deste modo, herdamos do Antigo Testamento – como que numa sínteseespecial – não apenas a riqueza das expressões usadas por aqueles Livrospara definir a misericórdia divina, mas também uma específica, obviamenteantropomórfica, «psicologia» de Deus: a impressionante imagem do seu amorque, em contacto com o mal e, em particular, com o pecado do homem edo povo, se manifesta como misericórdia. Esta imagem é composta, mais doque pelo conteudo, bastante genérico aliás, do verbo hãnan, sobretudo pelo

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aderido à Aliança com Deus – a fazerem apelo àmisericórdia e permite-lhes contar com ela.Recorda-a nos tempos de queda e de desalento.Em seguida, dá graças e glória a Deus pelamisericórdia, todas as vezes que ela se tenhamanifestado e realizado, tanto na vida do povocomo na das pessoas individualmente.

Deste modo, a misericórdia é contraposta ,em certo sentido, à justiça divina; e revela-se, emmuitos casos, não só mais poderosa, mas tambémmais profunda que ela. Já no Antigo Testamentose ensina que, embora a justiça no homem, sejaautêntica virtude e em Deus signifique perfeiçãotranscendente contudo o amor é «maior» do que ajustiça. E é maior no sentido de que,relativamente a ela, é primário e fundamental. Oamor condiciona, por assim dizer, a justiça; e, emúltima análise, a justiça serve a caridade. Oprimado e a superioridade do amor em relação àjustiça – ponto característico de toda a Revelação

conteúdo de hesed e de rahªmim O termo hãnan, exprime um conceito maisamplo: significa a manifestação da graça que comporta, por assim dizer,uma constante predisposição magnânima, benévola e clemente.Além destes elementos semânticos fundamentais, o conceito demisericórdia no Antigo Testamento inclui também o conteúdo do verbohãmal, que literalmente significa «poupar (o inimigo derrotado)», mastambém significa «manifestar piedade e compaixão» e, por conseguinte,perdão e remissão da culpa. O termo hus exprime igualmente piedade ecompaixão, mas isso sobretudo em sentido afectivo. Estes termosaparecem nos textos bíblicos com menor frequência para indicar amisericórdia. É oportuno ainda lembrar o já citado vocábulo 'emet, quesignifica: em primeiro lugar «solidez, segurança» (no grego dos Setenta,«verdade»); e depois, também «fidelidade»; e desta maneira parecerelacionar-se com o conteúdo semântico próprio do termo hesed.

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– manifestam-se precisamente através da misericórdia.Isto pareceu tão claro aos Salmistas e aos Profetasque o próprio termo justiça acabou por significar asalvação realizada pelo Senhor por meio da suamisericórdia53. A misericórdia difere da justiça, mas nãose lhe opõe, se admitirmos na história do homem –como faz o Antigo Testamento precisamente – apresença de Deus, o qual já como Criador seligou com particular amor às suas criaturas.

O amor, por natureza, exclui o ódio e odesejo do mal em relação àquele a quem algumavez se deu a si mesmo como dom: Nihil odistieorum quae fecisti, «não aborreceis nada do quefizestes»54. Tais palavras indicam o fundamentoprofundo da conexão entre a justiça e amisericórdia em Deus, nas suas relações com ohomem e com o mundo. Dizem-nos também quedevemos procurar as raízes vivificantes e asrazões íntimas desse nexo, remontando ao«princípio», no próprio mistério da criação. Nocontexto da Antiga Aliança, essas palavraspreanunciam a plena revelação de Deus, que «éamor»55.

O mistério da criação está em conexão com omistério da eleição, que de modo especial plasmou ahistória do povo cujo pai espiritual é Abraão,como mérito da sua fé. Por meio deste povo que

53 Sl 40(39),11; 98(97),2 s.; Is 45,21; 51,5.8; 56,1.54 Sab 11,24.55 1 Jo 4.8.16.

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caminha através da história, tanto da Antigacomo da Nova Aliança, aquele mistério de eleiçãorefere-se a todos e a cada um dos homens e atoda a grande família humana. «Amo-te comamor eterno, por isso ainda te conservo os meusfavores»56. «Ainda que os montes sejamabalados ... o meu amor jamais se apartará de ti, ea minha aliança de paz não será alterada»57. Estaverdade, anunciada outrora a Israel, encerra em sia perspectiva de toda a história do homem,perspectiva que é simultaneamente temporal eescatológica58. Cristo revela o Pai na mesmaperspectiva, na perspectiva e no estado dosespíritos já preparados, como o demonstramnumerosas páginas do Antigo Testamento. Comoremate desta revelação, na véspera da sua morte,diz ao Apóstolo Filipe aquelas memoráveispalavras: «Há tanto tempo que estou convosco enão me conheces?... Quem me vê, vê o Pai»59.

IV. A PARÁBOLA DO FILHO PRÓDIGO

Analogia5. No limiar do Novo Testamento repercute-

se no Evangelho de S. Lucas singularcorrespondência entre duas vozes que proclamama misericórdia divina, nas quais ecoa intensamente

56 Jer 31,3.57 Is 54,10.58 Jon 4,2.11, Sl 145(144),9; Sir 18,8-14; Sab 11,23-12,1.59 Cf. Jo 14,9.

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toda a tradição do Antigo Testamento. Nelasencontram expressão os conteúdos semânticos,ligados à terminologia diferenciada dos LivrosAntigos. A primeira destas vozes é a de Mariaque, entrando em casa de Zacarias, engrandece oSenhor louvando-O com toda a alma «pela suamisericórdia», da qual se tornam participantes, «degeração em geração», os homens que vivem no temorde Deus. Pouco depois, comemorando a eleiçãode Israel, proclama a misericórdia, da qual «serecorda» desde sempre Aquele que a escolheu60.

A outra voz é a de Zacarias que, na mesmacasa, por ocasião do nascimento de João Baptista,seu filho, bendizendo o Deus de Israel, glorifica amisericórdia que Ele quis «usar... para com osnossos pais e lembrar-se da sua santa aliança»61.

No ensino do próprio Cristo esta imagem,herdada do Antigo Testamento, torna-se maissimples e, ao mesmo tempo, mais profunda. É o que semanifesta com especial evidência na parábola dofilho pródigo62, na qual a essência da misericórdiadivina – embora no texto original não seja usada a

60 Em ambos os casos se trata de hesed, isto é, da fidelidade que Deusmanifesta ao próprio amor para com o povo, fidelidade às promessas, queencontrarão precisamente na maternidade da Mãe de Deus o seucumprimento definitivo (cf. Lc 1,49-54).61 Cf. Lc 1,72. Também neste caso se trata da misericórdia no significadode hesed, ao passo que nas frases seguintes, em que Zacarias fala do«coração misericordioso do nosso Deus», é expresso claramente o segundosignificado, o de rahªmim (tradução latina: viscera misericordiae), que identificaprevalentemente a misericórdia divina com o amor materno.62 Cf. Lc 15,11-32.

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palavra «misericórdia» – aparece de modoparticularmente límpido. Contribui para isso, nãotanto a terminologia, como nos Livros do AntigoTestamento, mas a analogia, que permitecompreender com maior profundidade o própriomistério de misericórdia, como drama profundoque se desenrola entre o amor do pai e aprodigalidade e o pecado do filho.

Este filho, que recebe do pai a parte daherança que lhe toca e deixa a casa paterna paraesbanjar essa herança numa terra longínqua«vivendo dissolutamente», em certo sentido é ohomem de todos os tempos, a começar poraquele que foi o primeiro a perder a herança dagraça e da justiça original. Neste ponto a analogiaé muito vasta. Indirectamente a parábola estende-se a todas as rupturas da aliança de amor: a toda aperda da graça, e todo o pecado.

Ao contrário do que acontecia na tradiçãoprofética, esta analogia, embora se possa estendertambém a todo o povo de Israel, não o visa emprimeiro lugar.

Aquele filho, «depois de ter esbanjado tudo...,começou a passar privações», tanto mais quesobreveio grande carestia «naquela terra» paraonde ele tinha ido depois de abandonar a casapaterna. Em tal situação, «bem desejava matar afome» com qualquer coisa, até mesmo «com asalfarrobas que os porcos comiam», animais queele guardava, ao serviço de «um dos habitantes

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daquela terra». Mas até isso lhe era recusado. Aanalogia desloca-se claramente para o interior dohomem. A herança que o jovem tinha recebidodo pai era constituída por certa quantidade debens materiais. Mas, mais importante do queesses bens era a sua dignidade de filho na casa paterna.A situação em que veio a encontrar-se quando seviu sem os bens materiais que dissipara, é naturalque o tivesse também feito cair na conta da perdadessa dignidade. Quando pediu ao pai que lhedesse a parte de herança que lhe tocava, para seausentar para longe, não reflectiu por certo nisso.Parece que nem mesmo agora está bemconsciente dessa realidade, quando diz para sipróprio: «Quantos jornaleiros na casa de meu paitêm pão em abundância, e eu aqui morro defome!». Avalia-se a si mesmo pela medida dosbens que tinha perdido e que já «não possui»,enquanto os criados na casa de seu pai«continuam a possuí-los». Estas palavrasexprimem principalmente a sua atitude perante osbens materiais. No entanto, por detrás delasesconde-se também o drama da dignidadeperdida, a consciência da condição de filhomalbaratada.

É então que toma a decisão: «Levantar-me-ei,irei ter com o meu pai e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra océu e contra ti; já não sou digno de ser chamadoteu filho; trata-me como a um dos teus

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jornaleiros»63. Tais palavras permitem descobrirmais profundamente o problema essencial.Através da complexa situação material de penúriaa que o filho pródigo chegou, por causa da sualeviandade, por causa do pecado, amadureceunele o sentido da dignidade perdida. Quandotomou a decisão de voltar para a casa paterna e depedir ao pai para ser recebido, não já gozandodos direitos de filho, mas na condição deassalariado, o jovem parece à primeira vista agirpor motivo da fome e da miséria em que caiu.Subjacente a esse motivo, porém, está aconsciência de perda mais profunda: ser umassalariado na casa do próprio pai é com certezagrande humilhação e vergonha. Apesar disso, ofilho pródigo está disposto a arrostar com talhumilhação e vergonha. Caiu na conta de que jánão tem mais direito algum, senão o de ser umempregado na casa do pai. Esta reflexão, brotaem primeiro lugar da plena consciência da perdaque mereceu e do que, doutro modo, poderia vira possuir. Este raciocínio, precisamente,demonstra que, no âmago da consciência do filhopródigo, se manifesta o sentido da dignidadeperdida, daquela dignidade que brota da relaçãodo filho com o pai. Com essa decisãoempreendeu o caminho de regresso.

Na parábola do filho pródigo não é usado,nem uma vez sequer, o termo «justiça», assim63 Lc 15,18 s.

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como também não é usado no texto original, otermo «misericórdia». Contudo, a relação dajustiça com o amor que se manifesta comomisericórdia aparece profundamente vincada noconteúdo desta parábola evangélica. Torna-seclaro que o amor se transforma em misericórdiaquando é preciso ir além da norma exacta dajustiça: norma precisa mas, por vezes, demasiadorigorosa.

O filho pródigo, depois de ter gasto os bensrecebidos do pai, ao regressar merece apenasganhar para viver, trabalhando na casa paternacomo empregado e, eventualmente, iramealhando, pouco a pouco, certa quantidade debens materiais, mas sem dúvida nunca emquantidade igual aos que tinha esbanjado. Talseria a exigência da ordem da justiça, até porqueaquele filho, com o seu comportamento, nãotinha somente dissipado a parte de herança quelhe competia, mas tinha também magoadoprofundamente e ofendido o pai. Na verdade o seucomportamento, que a seu juízo o tinha privadoda dignidade de filho não podia deixar indiferenteo pai; devia fazê-lo sofrer e fazer com que sesentisse, de algum modo, envolvido nesseprocedimento. Tratava-se com efeito do seupróprio filho, e esta relação não podia seralienada nem destruída, fosse qual fosse o seucomportamento. O filho pródigo tem consciênciadisso, e é precisamente essa consciência que lhe

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mostra claramente a dignidade perdida e o leva aavaliar correctamente o lugar que ainda lhepoderia tocar na casa do pai.

Consideração pela dignidade humana6. A imagem que acabei de descrever do estado de

espírito do filho pródigo permite-nos compreender comexactidão em que consiste a misericórdia divina. Não hádúvida de que naquela simples mas penetrantecomparação, a figura do pai revela-nos Deuscomo Pai.

A atitude do pai da parábola, todo o seumodo de agir manifestação da disposição interior,permite-nos encontrar cada um dos fios queentretecem a visão da misericórdia no AntigoTestamento, mas numa síntese totalmente nova,cheia de simplicidade e profundidade. O pai dofilho pródigo é fiel à sua paternidade, fiel ao amorque desde sempre tinha dedicado ao seu filho. Talfidelidade manifesta-se na parábola não apenas naprontidão em recebê-lo em casa, quando elevoltou depois de ter esbanjado a herança, massobretudo na alegria e no clima de festa tãogeneroso para com o esbanjador que regressa.Esta atitude provoca até a inveja do irmão maisvelho, que nunca se tinha afastado do pai, nemabandonado a casa paterna.

A fidelidade a si próprio por parte do pai –traço característico já conhecido pelo termo doAntigo Testamento «hesed» – exprime-se de modoparticularmente denso de afecto. Lemos, com

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efeito, que, ao ver o filho pródigo regressar acasa, o pai, «movido de compaixão, correu ao seuencontro, abraçou-o efusivamente e beijou-o»64.Procede deste modo levado certamente porprofundo afecto; e assim se explica também a suagenerosidade para com o filho, generosidade quecausará tanta indignação no irmão mais velho.

Todavia, as causas da sua comoção hã-de serprocuradas em algo mais profundo. O pai sabeque o que se salvou foi um bem fundamental: obem da vida de seu filho. Embora tenhaesbanjado a herança, a verdade é que a sua vidaestá salva. Mais ainda, esta, de algum modo, foireencontrada. É o sentido das palavras dirigidaspelo próprio pai ao filho mais velho: «Era precisoque fizéssemos festa e nos alegrássemos, porqueeste teu irmão estava morto e voltou à vida,estava perdido e foi encontrado»65. No mesmocapítulo XV do Evangelho de S. Lucas lemos asparábolas da ovelha desgarrada e reencontrada66 ea seguir a da dracma perdida e de novo achada67.Em cada uma destas parábolas é posta emevidência a mesma alegria , que transparece nocaso do filho pródigo . A fidelidade do pai a sipróprio está inteiramente centralizada na vida dofilho perdido, na sua dignidade. Assim,

64 Lc 15,20.65 Lc 15,32.66 Cf. Lc 15,3-6.67 Cf. Lc 15,89.

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sobretudo, se explica a imensa alegria quemanifesta quando o filho volta para casa.

Pode-se dizer, portanto, que o amor paracom o filho, o amor que brota da própria essênciada paternidade, como que obriga o pai, se assimnos podemos exprimir, a desvelar-se peladignidade do filho. Esta solicitude constitui amedida do seu amor; amor, do qual escreverá S.Paulo: «A caridade é paciente, é benigna..., nãobusca o próprio interesse, não se irrita, nãoguarda ressentimento pelo mal sofrido... rejubilacom a verdade ..., tudo espera, tudo suporta» e«não acaba nunca»68.

A misericórdia apresentada por Cristo naparábola do filho pródigo tem a característicainterior do amor, que no Novo Testamento échamado «agape». Este amor é capaz de debruçar-se sobre todos os filhos pródigos, sobre qualquermiséria humana e, especialmente, sobre todamiséria moral, sobre o pecado. Quando istoacontece, aquele que é objecto da misericórdianão se sente humilhado, mas como quereencontrado e «revalorizado». O pai manifesta-lhe alegria, antes de mais por ele ter sido«reencontrado» e ,por ter «voltado à vida». Estaalegria indica um bem que não foi destruído: ofilho, embora pródigo, não deixa de ser realmentefilho de seu pai. Indica ainda um bem

68 1 Cor 13,4-8.

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reencontrado: no caso do filho pródigo, oregresso à verdade sobre si próprio.

O que, na parábola de Cristo, se verificou narelação do pai para com o filho, não se podeavaliar «de fora». As nossas opiniões acerca damisericórdia são de maneira geral o resultado deum juízo meramente externo. Acontece até porvezes que seguindo tal critério, percebemos namisericórdia sobretudo uma relação de desigualdadeentre aquele que a exercita e aquele que a recebe.Por consequência, somos levados a deduzir que amisericórdia degrada aquele que a recebe e ofendea dignidade do homem.

A parábola do filho pródigo persuade-nosque a realidade é diferente: a relação de misericórdiabaseia-se na experiência daquele bem que é ohomem, na experiência comum da dignidade quelhe é própria. Esta experiência comum faz comque o filho pródigo comece a ver-se a si próprio eàs suas acções com toda a verdade (e esta visão daverdade é autêntica humildade). Por outro ladopara o pai, precisamente por isso, torna-se o seuúnico bem. Graças a uma misteriosa comunicaçãoda verdade e do amor, o pai vê com tal clareza obem operado, que parece esquecer todo o malque o filho tinha cometido.

A parábola do filho pródigo exprime, demaneira simples mas profunda, a realidade daconversão, que é a mais concreta expressão da obrado amor e da presença da misericórdia no mundo

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humano. O verdadeiro significado damisericórdia não consiste apenas no olhar, pormais penetrante e mais cheio de compaixão queseja, com que se encara o mal moral, físico oumaterial. A misericórdia manifesta-se com a suafisionomia característica quando reavalia, promove esabe tirar o bem de todas as formas de mal existentes nomundo e no homem. Entendida desta maneira,constitui o conteúdo fundamental da mensagemmessiânica de Cristo e a força constitutiva da suamissão. Desta mesma maneira entendiam epraticavam a misericórdia os discípulos eseguidores de Cristo. A misericórdia nuncacessou de se manifestar nos seus corações e nassuas obras, como prova particularmente criadorado amor, que não se deixa «vencer pelo mal», masvence «o mal com o bem»69. É preciso que o rostogenuíno da misericórdia seja sempre descobertode maneira nova. Não obstante váriospreconceitos, a misericórdia apresenta-se comoparticularmente necessária nos nossos tempos.

V. O MISTÉRIO PASCAL

A misericórdia revelada na Cruz e naRessurreição

7. A mensagem messiânica de Cristo e a suaactividade entre os homens terminam com a Cruze a Ressurreição. Se quisermos exprimirtotalmente a verdade acerca da misericórdia, com

69 Cf. Rom 12,21.

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a plenitude com que foi revelada na história danossa salvação, devemos penetrar de maneiraprofunda nesse acontecimento final que,particularmente na linguagem conciliar, é definidocomo mysterium paschale (mistério pascal). Chegados aeste ponto das nossas considerações, impõe-seaproximarmo -nos ainda mais do conteúdo daEncíclica Redemptor Hominis. Se a realidade daRedenção, na sua dimensão humana, revela agrandeza inaudita do homem que talem ac tantummeruit habere Redemptorem (mereceu tal e tão grandeRedemptor)70, a dimensão divina da Redençãopermite-nos descobrir de modo, iria a dizer, maisempírico e «histórico», a profundidade do amorque não retrocede diante do extraordináriosacrifício do Filho, para satisfazer à fidelidade deCriador e Pai para com os homens, criados à suaimagem e escolhidos neste mesmo Filho desde o«princípio», para a graça e a glória.

Os acontecimentos de Sexta-Feira Santa e,ainda antes, a oração no Getsémani introduzemmudança fundamental em todo o processo derevelação do amor e da misericórdia, na missãomessiânica de Cristo. Aquele que «passou fazendoo bem e curando a todos»71 e «sarando toda aespécie de doenças e enfermidades»72, mostra-seagora Ele próprio, digno da maior misericórdia e

70 No «Exsultet» da Liturgia da Vigília Pascal.71 Act 10 38.72 Mt 9,35.

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parece apelar para a misericórdia, quando é preso,ultrajado, condenado, flagelado, coroado deespinhos, pregado na cruz e expira no meio detormentos atrozes73. É então que Ele se apresentaparticularmente merecedor da misericórdia doshomens a quem fez o bem; mas não a recebe. Atéaqueles que mais de perto contactam com ele nãotêm a coragem de o proteger e arrancar da mãodos seus opressores. Na fase final dodesempenho da função messiânica cumprem-seem Cristo as palavras dos Profetas e sobretudo asde Isaías, proferidas a respeito do Servo de Javé:«Fomos curados pelas suas chagas»74.

Cristo, enquanto homem, que sofrerealmente e de um modo terrível no Jardim dasOliveiras e no Calvário, dirige-se ao Pai, àquelePai cujo amor Ele pregou aos homens e de cujamisericórdia deu testemunho com todo o seuagir. Mas não lhe é poupado, nem sequer a Ele, otremendo sofrimento da morte na cruz: «Aqueleque não conhecera o pecado, Deus tratou-o pornós como pecado»75, escrevia São Paulo,resumindo em poucas palavras toda aprofundidade do mistério da Cruz e a dimensãodivina da realidade da Redenção.

É precisamente a Redenção a última edefinitiva revelação da santidade de Deus, que é a

73 Cf. Mc 15,37; Jo 19,30.74 Is 53,5.75 2 Cor 5,21.

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plenitude absoluta da perfeição: plenitude dajustiça e do amor, pois a justiça funda-se noamor, dele provém e para ele tende. Na paixão emorte de Cristo – no facto de o Pai não terpoupado o seu próprio Filho, mas «o ter tratadocomo pecado por nós»76 – manifesta-se a justiçaabsoluta, porque Cristo sofre a paixão e a cruzpor causa dos pecados da humanidade. Dá-se naverdade a «superabundância» da justiça, porque ospecados do homem são «compensados» pelosacrifício do Homem-Deus. Esta justiça, que éverdadeiramente justiça «à medida» de Deus,nasce toda do amor, do amor do Pai e do Filho, efrutifica inteiramente no amor. Precisamente porisso, a justiça divina revelada na cruz de Cristo é«à medida» de Deus, porque nasce do amor e serealiza no amor, produzindo frutos de salvação. Adimensão divina da Redenção não se verifica somenteem ter feito justiça do pecado, mas também nofacto de ter restituído ao amor a força criativa,graças à qual o homem tem novamente acesso àplenitude de vida e de santidade, que provém deDeus. Deste modo, Redenção traz em si arevelação da misericórdia na sua plenitude.

O mistério pascal é o ponto culminante darevelação e actuação da misericórdia, capaz dejustificar o homem, e de restabelecer a justiçacomo realização do desígnio salvífico que Deus,desde o princípio, tinha querido realizar no76 Ibid.

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homem e, por meio do homem, no mundo,Cristo, ao sofrer, interpela todo e cada homem enão apenas o homem crente. Até o homem quenão crê poderá descobrir nele a eloquência dasolidariedade com o destino humano, bem comoa harmoniosa plenitude da dedicaçãodesinteressada à causa do homem, à verdade e aoamor.

A dimensão divina do mistério pascal situa-se, todavia, numa profundidade ainda maior. Acruz erguida sobre o Calvário, na qual Cristomantém o seu último diálogo com o Pai, brota doâmago mais íntimo do amor, com que o homem,criado à imagem e semelhança de Deus, foigratuitamente beneficiado, de acordo com oeterno desígnio divino. Deus, tal como Cristo Orevelou, não permanece apenas em estreitarelação com o mundo, como Criador e fonteúltima da existência; é também Pai: está unido aohomem por Ele chamado à existência no mundovisível, mediante um vínculo mais profundo aindado que o da criação. É o amor que não só cria obem, mas que faz com que nos tornemosparticipantes da própria vida de Deus, Pai, Filho eEspírito Santo. Quem ama deseja dar-se a sipróprio.

A cruz de Cristo sobre o Calvário surge nocaminho daquele «admirabile commercium», daquelacomunicação admirável de Deus ao homem, que encerra ochamamento dirigido ao homem para que, dando-se

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a si mesmo a Deus e oferecendo consigo todo omundo visível, participe da vida divina, e, comofilho adoptivo, se torne participante da verdade edo amor que estão em Deus e vêm de Deus. Nocaminho da eterna eleição do homem para adignidade de filho adoptivo de Deus, ergue-se nahistória a cruz de Cristo, Filho unigênito, que,como «Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deusverdadeiro»77 veio para dar o último testemunhoda admirável aliança de Deus com a humanidade, deDeus com o homem: com todos e com cada um doshomens. Esta aliança tão antiga como o homem –pois remonta ao próprio mistério da criação, e foirenovada depois muitas vezes com o único Povoeleito – é igualmente nova e definitiva aliança;ficou estabelecida ali, no Calvário, e não élimitada a um único povo, o de Israel, mas abertaa todos e a cada um.

Que nos ensina a cruz de Cristo que é, emcerto sentido, a última palavra da sua mensagem eda sua missão messiânica? Em certo sentido –note-se bem – porque não é ela ainda a últimapalavra da Aliança de Deus. A última palavra seriapronunciada na madrugada, quando, primeiro asmulheres e depois os Apóstolos, ao chegarem aosepulcro de Cristo crucificado o vão encontrarvazio, e ouvem pela primeira vez este anúncio:«Ressuscitou». Depois, repetirão aos outros tal

77 Símbolo Niceno-Constantinopolitano.

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anúncio e serão testemunhas de CristoRessuscitado.

Mas mesmo na glorificação do Filho deDeus, continua a estar presente a Cruz que,através de todo o testemunho messiânico doHomem-Filho que nela morreu, fala e não cessa defalar de Deus-Pai, que é absolutamente fiel ao seu eternoamor para com o homem, pois que «amou tanto omundo – e portanto, o homem no mundo – quelhe deu o seu Filho unigénito para que todoaquele que n'Ele crer não pereça, mas tenha avida eterna»78. Crer no Filho crucificado significa«ver o Pai»79 significa crer que o amor estápresente no mundo e que o amor é mais forte doque toda a espécie de mal em que o homem, ahumanidade e o mundo estão envolvidos. Crerneste amor significa acreditar na misericórdia. Esta é,de facto, a dimensão indispensável do amor, écomo que o seu segundo nome e, ao mesmotempo, é o modo específico da sua revelação eactuação perante a realidade do mal que existe nomundo, que assedia e atinge o homem, que seinsinua mesmo no seu coração e o «pode fazerperecer, na Geena»80.

Amor mais forte do que a morte, maisforte do que o pecado

78 Cf. Jo 3,16.79 Cf. Jo 14.9.80 Mt 10,28.

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8. A cruz de Cristo sobre o Calvário étambém testemunha da força do mal em relaçãoao próprio Filho de Deus: em relação Àquele que,único dentre todos os filhos dos homens, era porsua natureza absolutamente inocente e livre dopecado, e cuja vinda ao mundo foi isenta dadesobediência de Adão e da herança do pecadooriginal. E eis que precisamente n'Ele, em Cristo,é feita justiça do pecado à custa do seu sacrifício,da sua obediência «até à morte»81, Aquele que erasem pecado, «Deus o tratou por nós comopecado»82. É feita justiça também da morte que,desde o início da história do homem, se tinhaaliado ao pecado. E este fazer-se justiça da morterealiza-se à custa da morte d'Aquele que era sempecado e o único que podia, mediante a própriamorte, infligir a morte à morte83. Deste modo, aCruz de Cristo, na qual o Filho consubstancial aoPai presta plena justiça a Deus, é também revelaçãoradical da misericórdia, ou seja, do amor que se opõeàquilo que constitui a própria raiz do mal nahistória do homem: se opõe ao pecado e à morte.

A Cruz é o modo mais profundo de adivindade se debruçar sobre a humanidade esobre tudo aquilo que o homem-especialmentenos momentos difíceis e dolorosos-considera seuinfeliz destino. A cruz é como que um toque do

81 Flp 2,8.82 2 Cor 5,21.83 Cf. 1 Cor 15,54s.

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amor eterno nas feridas mais dolorosas daexistência terrena do homem, é o cumprir-secabalmente do programa messiânico, que Cristoum dia tinha formulado na sinagoga de Nazaré84 eque repetiu depois diante dos enviados de JoãoBaptista85.

Segundo as palavras exaradas havia muitotempo na profecia de Isaías86, tal programaconsistia na revelação do amor misericordiosopara com os pobres, os que sofrem, osprisioneiros os cegos, os oprimidos e ospecadores. No mistério pascal são superadas asbarreiras do mal multiforme de que o homem setorna participante durante a existência terrena.Com efeito a cruz de Cristo faz-nos compreenderas mais profundas raízes do mal que mergulhamno pecado e na morte, e também ela se torna sinalescatológico. Será somente na realizaçãoescatológica e na definitiva renovação do mundoque o amor vencerá, em todos os eleitos, os germes maisprofundos do mal, produzindo como frutoplenamente maduro o Reino da vida, da santidadee da imortalidade gloriosa. O fundamento destarealização escatológica está já contido na cruz deCristo e na sua morte. O facto de Cristo «terressuscitado ao terceiro dia»87 constitui o sinal que

84 Cf. Lc 4,18-21.85 Cf. Lc 7,20-23.86 Cf. Is 35,5; 61,1-3.87 1 Cor 15,1.

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indica o remate da missão messiânica, sinal quecoroa toda a revelação do amor misericordiosono mundo, submetido ao mal. Tal facto constituiao mesmo tempo o sinal que preanuncia «umnovo céu e uma nova terra»88, quando Deus«enxugará todas as lágrimas dos seus olhos; e nãohaverá mais morte, nem pranto, nemgemidos,nem dor, porque as coisas antigas terãopassado»89.

Na realização escatológica, a misericórdiarevelar-se-á como amor, enquanto que no tempopresente, na história humana, que éconjuntamente história de pecado e de morte, oamor deve revelar-se sobretudo comomisericórdia e ser realizado também como tal. Oprograma messiânico de Cristo – programa tãoimpregnado de misericórdia – torna-se oprograma do seu Povo da Igreja. Ao centro desteprograma está sempre a Cruz, porque nela arevelação do amor misericordioso atinge o pontoculminante. Enquanto não passarem «as coisasantigas»90, a Cruz permanecerá como o «lugar», aque se poderiam aplicar estas palavras doApocalipse de São João: «Eis que estou à porta ebato. Se alguém ouvir a minha voz e me abrir,entrarei em sua casa e cearemos juntos, eu com

88 Apoc 21,1.89 Apoc 21,4.90 Cf. Apoc 21,4.

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ele e ele comigo»91. Deus revela também de modoparticular a sua misericórdia, quando solicita ohomem, por assim dizer, a exercitar a «misericórdia»para com o seu próprio Filho, para com o Crucificado.

Cristo, precisamente como Crucificado, é oVerbo que não passa92, é o que está à porta e bateao coração de cada homem93, sem coarctar a sualiberdade, mas procurando fazer irromper dessamesma liberdade o amor; amor que é não apenasacto de solidariedade para com o Filho dohomem que sofre, mas também, em certo modo,uma forma de «misericórdia», manifestada porcada um de nós para com o Filho do Eterno Pai.Porventura, em todo o programa messiânico deCristo, em toda a revelação da misericórdia pelaCruz, poderia ser mais respeitada e elevada adignidade do homem, já que o homem, se éobjecto da misericórdia, é também, em certosentido, aquele que ao mesmo tempo «exerce amisericórdia»?

Em última análise, não é acaso esta a posiçãoque toma Cristo em relação ao homem quandodiz: «Sempre que fizestes isto a um destes meusirmãos... foi a mim que o fizestes»?94 As palavrasdo Sermão da Montanha – «Bem-aventurados os

91 Apoc 3,20.92 Cf. Mt 24,25.93 Cf. Apoc 3,20.94 Mt 25,40.

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misericordiosos, porque alcançarãomisericórdia»95 – não constituem, em certosentido, uma síntese de toda a Boa-Nova, de todoo «admirável intercâmbio» (admirabile commercium)nela contido, que é uma lei simples, forte e aomesmo tempo «suave», da própria economia daSalvação? Estas palavras do Sermão da Montanha ,mostrando desde o ponto de partida aspossibilidades do «coração humano» («sermisericordiosos»), não revelarão talvez, na mesmaperspectiva, a profundidade do mistério de Deus:isto é, aquela imperscrutável unidade do Pai, doFilho e do Espírito Santo, em que o amor,contendo a justiça, dá origem à misericórdia, aqual, por sua vez, revela a perfeição da justiça?

O mistério pascal é Cristo na cúpula darevelação do imperscrutável mistério de Deus. Éprecisamente então que se verificam plenamenteas palavras pronunciadas no Cenáculo: «Quemme vê, vê o Pai»96. De facto, Cristo a quem o Pai«não poupou»97 em favor do homem e que na suapaixão assim como no suplício da cruz nãoencontrou misericórdia humana, na suaressurreição revelou a plenitude daquele amor queo Pai nutre para com Ele e, n'Ele para com todosos homens. Este Pai «não é Deus de mortos, mas

95 Mt 5,7.96 Jo 14,9.97 Rom 8,32.

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de vivos»98. Na sua ressurreição Cristo revelou oDeus de amor misericordioso, precisamente porqueaceitou a Cruz como caminho para a ressurreição. É porisso que, quando lembramos a cruz de Cristo, asua paixão e morte a nossa fé e a nossa esperançaconcentram-se n'Ele Ressuscitado naquelemesmo Cristo, aliás, que «na tarde desse dia, queera o primeiro de semana... se pôs no meio deles»no Cenáculo «onde se achavam juntos osdiscípulos ... soprou sobre eles e lhes disse:«Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quemperdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados eàqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ãoretidos»99.

Este é o Filho de Deus que na suaressurreição experimentou em si de modo radicala misericórdia, isto é, o amor do Pai que é maisforte do que a morte. Ele é também o mesmo CristoFilho de Deus, que no termo – e, em certosentido, já para além do termo – da sua missãomessiânica, se revela a si mesmo como fonteinexaurível de misericórdia, daquele amor que, naperspectiva ulterior da história da Salvação naIgreja, deve perenemente mostrar-se mais forte doque o pecado. Cristo pascal é a encarnação definitivada misericórdia, o seu sinal vivo: histórico-salvífico e, simultaneamente, escatológico. Nestemesmo espírito a Liturgia do tempo pascal põe

98 Mc 12,27.99 Jo 20,19-23.

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nos nossos lábios as palavras do Salmo: Cantareieternamente as misericórdias do Senhor100.

A Mãe da Misericórdia9. No cântico pascal da Igreja repercutem,

com a plenitude do seu conteúdo profético, aspalavras que Maria pronunciou durante a visitaque fez a Isabel, esposa de Zacarias: «A suamisericórdia estende-se de geração em geração»101.Tais palavras, já desde o momento daEncarnação, abrem nova perspectiva da históriada Salvação. Após a ressurreição de Cristo, estanova perspectiva passa para o plano histórico e,ao mesmo tempo, reveste-se de sentidoescatológico novo. Desde então sucedem-sesempre novas gerações de homens na imensafamília humana, em dimensões semprecrescentes; sucedem-se também novas geraçõesdo Povo de Deus, assinaladas pelo sinal da Cruz eda Ressurreição e «seladas»102 com o sinal domistério pascal de Cristo, revelação absolutadaquela misericórdia que Maria proclamou àentrada da casa da sua parente: «A suamisericórdia estende-se de geração em geração»103.

Maria é, pois, aquela que, de modo particulare excepcional – como ninguém mais –,experimentou a misericórdia e, também de modo

100 Cf. Sl 89(88),2101 Lc 1,50.102 Cf. 2 Cor 1,21 s.103 Lc 1,50.

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excepcional, tornou possível com o sacrifício docoração a sua participação na revelação damisericórdia divina. Este seu sacrifício estáintimamente ligado à cruz do seu Filho, aos pésda qual ela haveria de encontrar-se no Calvário.Tal sacrifício de Maria é uma singular participaçãona revelação da misericórdia, isto é, da fidelidadeabsoluta de Deus ao próprio amor, à Aliança queele quis desde toda a eternidade e que no temporealizou com o homem, com o seu Povo e com ahumanidade. É a participação na revelação que serealizou definitivamente mediante a Cruz.Ninguém jamais experimentou, como a Mãe doCrucificado, o mistério da Cruz, o impressionanteencontro da transcendente justiça divina com oamor, o «ósculo» dado pela misericórdia àjustiça104. Ninguém como Maria acolheu tãoprofundamente no seu coração tal mistério, noqual se verifica a dimensão verdadeiramentedivina da Redenção, que se realizou no Calváriomediante a morte do seu Filho, acompanhadacom o sacrifício do seu coração de mãe, com oseu «fiat» definitivo.

Maria, portanto, é aquela que conhece maisprofundamente o mistério da misericórdia divina.Conhece o seu preço e sabe quanto é elevado.Neste sentido chamamos-lhe Mãe damisericórdia, Nossa Senhora da Misericórdia, ouMãe da divina misericórdia. Em cada um destes104 Cf. Sl 85(84),11.

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títulos há um profundo significado teológico,porque exprimem a particular preparação da suaalma e de toda a sua pessoa, para torná-la capazde descobrir, primeiro, através dos complexosacontecimentos de Israel e, depois, daqueles quedizem respeito a cada um dos homens e àhumanidade inteira, a misericórdia da qual todosse tornam participantes, segundo o eternodesígnio da Santíssima Trindade, «de geração emgeração»105.

Estes títulos que atribuímos à Mãe de Deusfalam dela sobretudo como Mãe do Crucificado edo Ressuscitado, d'Aquela que, tendo experimentado amisericórdia de um modo excepcional, «merece»igualmente tal misericórdia durante toda a sua vidaterrena e, de modo particular, aos pés da cruz doFilho. Tais títulos dizem-nos também que Ela,através da participação escondida e, ao mesmotempo, incomparável na missão messiânica de seuFilho, foi chamada de modo especial para tornarpróximo dos homens o amor que o Filho tinhavindo revelar: amor que encontra a sua maisconcreta manifestação para com os que sofrem,os pobres, os que estão privados de liberdade oscegos, os oprimidos e os pecadores, conformeCristo explicou referindo-se à profecia de Isaías,ao falar na sinagoga de Nazaré106 e, depois, ao

105 Lc 1,50.106 Cf. Lc 4,18.

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responder à pergunta dos enviados de JoãoBaptista107.

Precisamente deste amor «misericordioso»,que se manifesta sobretudo em contacto com omal moral e físico, participava de modo singular eexcepcional o coração daquela que foi a Mãe doCrucificado e do Ressuscitado. Nela e por meiodela o mesmo amor não cessa de revelar-se nahistória da Igreja e da humanidade. Esta revelaçãoé particularmente frutuosa, porque se funda,tratando-se da Mãe de Deus, no singular tacto doseu coração materno, na sua sensibilidadeparticular, na sua especial capacidade para atingirtodos aqueles que aceitam mais facilmente o amormisericordioso da parte de uma mãe. É este um dosgrandes e vivificantes mistérios do Cristianismo,mistério muito intimamente ligado ao mistério daEncarnação.

«Esta maternidade de Maria na economia dagraça – como se exprime o Concílio Vaticano II –perdura sem interrupção, a partir doconsentimento que fielmente deu na anunciação eque manteve inabalável junto à cruz, ate àconsumação eterna de todos os eleitos. De facto,depois de elevada ao céu, não abandonou estamissão salvadora, mas, com a sua multiformeintercessão, continua a alcançar-nos os dons dasalvação eterna. Cuida, com amor materno, dosirmãos de seu Filho que entre perigos e angústias,107 Cf. Lc 7,22.

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caminham ainda na terra até chégarem à Pátriabem-aventurada»108.

VI. «MISERICÓRDIA... DE GERAÇÃO EM GERAÇÃO»

Imagem da nossa geração10. Temos todo o direito de acreditar que

também a nossa geração foi abrangida pelaspalavras da Mãe de Deus, quando glorificava amisericórdia de que participam, «de geração emgeração», aqueles que se deixam guiar pelo temorde Deus. As palavras do Magnificat de Maria têmconteúdo profético, que diz respeito não só aopassado de Israel, mas também a todo o futurodo Povo de Deus sobre a terra. Com efeito, todosnós que vivemos actualmente na terra somos ageração que está consciente da aproximação doterceiro Milénio e que sente profundamente aviragem que hoje se está a verificar na história.

A geração contemporânea tem consciência deser uma geração privilegiada, porque o progressolhe proporciona imensas possibilidades,insuspeitadas há apenas alguns decénios. Aactividade criadora do homem, a sua inteligênciae o seu trabalho provocaram mudançasprofundas, quer no campo da ciência e da técnica,quer no plano da vida social e cultural. O homem,de facto, estendeu o seu domínio sobre a naturezae adquiriu conhecimento mais aprofundado das

108 Const. dogm. sobre a Igreja Lumen Gentium, 62: AAS 57 (1965), p. 63.

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leis do seu próprio comportamento social.Verificou que caíram ou se tornaram menores osobstáculos e as distâncias que separam os homense as nações: graças ao vivo sentido do que éuniversal e à consciência mais nítida da unidadedo género humano, aceitando a dependênciarecíproca numa solidariedade autêntica; e emvirtude, ainda, do desejo – e também dapossibilidade – de entrar em contacto com osseus irmãos e irmãs, ultrapassando as divisõesartificialmente criadas pela geografia, ou pelasfronteiras nacionais ou raciais. Os jovens de hoje,sobretudo, sabem que o progresso da ciência e datécnica é capaz de produzir não somente novosbens materiais, mas também participação maisampla no comum património do saber.

O desenvolvimento da informática, porexemplo, multiplicará as capacidades criadoras dohomem e permitir-lhe-á o acesso aos bens deordem intelectual e cultural dos outros povos. Asnovas técnicas da comunicação favorecerão maiorparticipação nos acontecimentos e intercâmbiocrescente de ideias. As conquistas das ciênciasbiológicas, psicológicas e sociais ajudarão ohomem a penetrar na riqueza do seu próprio ser.Se é verdade que tal progresso continua a ser,muitas vezes apanágio dos países industrializados,não se pode negar, contudo que a perspectiva dese conseguir que todos os povos e todas asnações dele usufruam, já não irá permanecer por

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muito tempo mera utopia, dado que existe realvontade política, a este respeito.

Mas, a par de tudo isso – ou melhor talvez,em tudo isso – existem dificuldades que se vãoavolumando. Existem inquietudes e impotências aexigirem que se lhes dê a resposta profunda que ohomem sabe que tem de dar. O quadro domundo contemporâneo apresenta tambémsombras e desequilíbrios que nem sempre sãosuperficiais. A Constituição Pastoral Gaudium etSpes do Concílio Vaticano II não é certamente oúnico documento que trata da vida da geraçãocontemporânea, mas é um documento deimportância singular. Nela se diz: «Na verdade, osdesequilíbrios de que sofre o mundo actual estãoligados com aquele desequilíbrio fundamental que seradica no coração do homem. Porque, no íntimo dopróprio homem muitos elementos se combatem.Enquanto, por uma parte, ele se experimentacomo criatura que é, multiplamente limitado, poroutra, sente-se ilimitado nos seus desejos echamado a uma vida superior. Atraído por muitassolicitações, vê-se obrigado a escolher entre elas,e a renunciar a algumas. Mais ainda, fraco epecador, faz muitas vezes aquilo que não quer enão realiza o que deseja fazer. Sofre assim em simesmo a divisão, da qual tantas e tão grandesdiscórdias se originam para a sociedade»109.

109 Const. past. sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo Gaudium et Spes,10: AAS 58 (1966), p. 1032.

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Quase ao fim da introdução da mesmaConstituição pastoral lemos: «... Perante a actualevolução do mundo, cada dia são maisnumerosos aqueles que põem ou sentem commaior acuidade, as questões fundamentais: Que éo homem? Qual é o sentido da dor, do mal e da morteque, apesar do enorme progresso alcançado,continuam a existir? Para que servem essas vitóriasganhas a tão grande preço?»110.

Decorridos quase quinze anos após oencerramento do Concílio Vaticano II, ter-se-átornado menos inquietante este quadro detensões e de ameaças, próprias da nossa época?Parece que não. Ao contrário, as tensões e asameaças que no Documento conciliar pareciamapenas esboçar-se e não manifestar inteiramentetodo o perigo que em si encerravam, no decursodestes anos revelaram-se mais claramente,confirmaram de várias maneiras o perigo e nãopermitem acalentar as ilusões de outrora.

Fontes de inquietação11. Aumenta no nosso mundo a sensação de

ameaça, aumenta o medo existencial que andaligado sobretudo – conforme já tive ocasião deinsinuar na Encíclica Redemptor Hominis – com aperspectiva de um conflito que, tendo em contaos hodiernos arsenais atómicos, poderia significara autodestruição parcial da humanidade. Aameaça não diz respeito apenas ao que os homens110 Ibid.

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podem fazer uns aos outros, utilizando osrecursos da técnica militar. Ela envolve aindamuito outros perigos que são o produto de umacivilização materialista, que, não obstantedeclarações «humanistas», aceita o primado dascoisas sobre a pessoa. O homem contemporâneo,receia que, com o uso dos meios técnicosinventados por este tipo de civilização, não sócada um dos indivíduos, mas também os ambientes,as comunidades, as sociedades e as nações, possamvir a ser vítimas da violência de outros indivíduos,ambientes e sociedades. Na história do nossoséculo não faltam exemplos a esse respeito.Apesar de todas as declarações sobre os direitosdo homem tomado na sua dimensão integral, istoé, na sua existência corpórea e espiritual, nãopodemos dizer que tais exemplos pertencemsomente ao passado.

O homem tem justamente medo de vir a servítima da opressão que o prive da liberdadeinterior, da possibilidade de manifestarpublicamente a verdade de que está convencido,da fé que professa, da faculdade de obedecer àvoz da consciência que lhe indica o rectocaminho a seguir. Os meios técnicos à disposiçãoda civilização dos nossos dias encerram de facto,não apenas a possibilidade de uma autodestruiçãopor meio de um conflito militar, mas também apossibilidade de uma sujeição «pacífica» dos indivíduos,dos ambientes de vida, de inteiras sociedades e de

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nações que, seja por que motivo for, seapresentem incómodos para aqueles que dispõemde tais meios e estão prontos para empregá-lossem escrúpulos. Pense-se ainda na tortura quecontinua a existir no mundo adoptadasistematicamente por Autoridades, comoinstrumento de dominação ou de opressãopolítica, e posta em prática, impunemente, porsubalternos.

Assim, ao lado da consciência da ameaçacontra a vida vai crescendo a consciência daameaça que destrói ainda mais aquilo que éessencial ao homem, ou seja, aquilo que estáintimamente relacionado com a sua dignidade depessoa, com o seu direito à verdade e à liberdade.

Tudo isto se desenrola, tendo como pano defundo o gigantesco remorso constituído pelo facto deque, ao lado de homens e sociedades abastados efartos, a viverem na abundância, dominados peloconsumismo e pelo prazer, não faltam na mesmafamília humana indivíduos e grupos sociais quesofrem a fome. Não faltam crianças que morrem defome sob o olhar de suas mães. Não faltam, emvárias partes do mundo, em vários sistemas sócio-económicos, áreas inteiras de miséria, de carênciae de subdesenvolvimento. Este facto éuniversalmente conhecido. O estado de desigualdadeentre os homens e os povos não só perdura, masaté aumenta. Sucede ainda nos nossos dias que aolado dos que são abastados e vivem na

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abundância, há outros que vivem na indigência,padecem a miséria e, muitas vezes até morrem defome, cujo número atinge dezenas e centenas demilhões. É por isso que a inquietação moral estádestinada a tornar-se cada vez mais profunda.Evidentemente na base da economiacontemporânea e da civilização materialista háuma falha fundamental ou, melhor dito, umconjunto de falhas ou até um mecanismodefeituoso, que não permite à família humana sairde situações tão radicalmente injustas.

Eis a imagem do mundo de hoje, onde existetanto mal físico e moral, a ponto de o tornar ummundo enredado em tensões e contradições e, aomesmo tempo, cheio de ameaças contra aliberdade humana, a consciência e a religião. Talimagem explica a inquietação a que está sujeito ohomem contemporâneo inquietação sentida, nãosó pelos que se acham desfavorecidos ouoprimidos, mas também por aqueles que gozamdos privilégios da riqueza, do progresso e dopoder. Embora não faltem aqueles que procuramdescobrir as causas de tal inquietação, ou reagircom os meios à disposição que lhes oferecem atécnica, a riqueza ou o poder, todavia, no maisfundo da alma humana, tal inquietação supera todosos paliativos. Como justamente concluiu na suaanálise o Concílio Vaticano II, ela diz respeito aosproblemas fundamentais de toda a existênciahumana. Esta inquietação está ligada ao próprio

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sentido da existência do homem no mundo. Émesmo inquietação quanto ao futuro do homeme de toda a humanidade e exige resoluçõesdecisivas que hoje parecem impor-se ao génerohumano.

Bastará a justiça?12. Não é difícil verificar que no mundo

actual despertou em grande escala o sentido dajustiça, o que indubitavelmente põe mais emrelevo tudo o que se opõe à justiça, tanto nasrelações entre os homens, grupos sociais ou«classes», como nas relações entre os Povos ou osEstados e até mesmo nas relações entre inteirossistemas políticos ou os assim chamados«mundos». Esta corrente profunda e multiforme,em cuja base a consciência humanacontemporânea situou a justiça, atesta o carácterético das tensões e das lutas que avassalam omundo.

A Igreja compartilha com os homens do nosso tempoeste profundo e ardente desejo de vida justa sobtodos os aspectos. Não deixa de fazer objecto dereflexão os vários aspectos da justiça exigida pelavida dos homens e das sociedades. Bem ocomprova o amplo desenvolvimento alcançadono último século pela doutrina social católica. Nalinha deste ensino situam-se tanto a educação e aformação das consciências humanas no espíritoda justiça, como as iniciativas que, animadas pelomesmo espírito, se vão desenvolvendo,

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especialmente no campo do apostolado dosleigos.

Apesar disso, seria difícil não se dar conta deque, muitas vezes, os programas que têm como ponto departida a ideia da justiça e que devem servir para suarealização na convivência dos homens, dosgrupos e das sociedades humanas, na prática sofremdeformações. Embora depois continuem a apelarpara a mesma ideia de justiça, todavia aexperiência mostra que sobre ela predominamcertas forças negativas, como o rancor o ódio eaté a crueldade. Então, a ânsia de aniquilar oinimigo de limitar a sua liberdade ou mesmo delhe impor dependência total, torna-se o motivofundamental da acção. Isto contrasta com aessência da justiça que, por sua natureza, tende aestabelecer a igualdade e o equilíbrio entre aspartes em conflito. Esta espécie de abuso da ideiade justiça e a sua alteração prática demonstramquanto a acção humana pode afastar-se da própriajustiça, muito embora seja empreendida em seunome.

Não sem razão Cristo reprovava nos seusouvintes, fiéis à doutrina do Antigo Testamento,a disposição manifestada nestas palavras: «Olhopor olho, dente por dente»111. Era esta a forma dealterar a justiça naquele tempo; e as formas dehoje continuam a pautar-se pelo mesmo modelo.É óbvio efectivamente, que, em nome de uma111 Mt 5,38.

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pretensa justiça (por exemplo histórica ou declasse), muitas vezes se aniquila o próximo semata, se priva da liberdade e se despoja dos maiselementares direitos humanos. A experiência dopassado e do nosso tempo demonstra que ajustiça, por si só, não basta e que pode até levar ànegação e ao aniquilamento de si própria, se nãose permitir àquela força mais profunda, que é o amorplasmar a vida humana nas suas várias dimensões.Foi precisamente a experiência da realidadehistórica que levou à formulação do axioma:summum ius, summa iniuria. Tal afirmação não tira ovalor à justiça, nem atenua o significado da ordeminstaurada sobre ela, indica apenas, sob outroaspecto, a necessidade de recorrer às forças maisprofundas do espírito, que condicionam a própriaordem da justiça.

Tendo diante dos olhos a imagem da geraçãode que fazemos parte, a Igreja compartilha ainquietação de não poucos homens contemporâneos. Alémdisso, devemos preocupar-nos também com odeclínio de muitos valores fundamentais queconstituem valor incontestável não só da moralcristã, mas até simplesmente da moral humana, dacultura moral, como sejam o respeito pela vidahumana desde o momento da concepção orespeito pelo matrimónio com a sua unidadeindissolúvel e o respeito pela estabilidade dafamília. O permissivismo moral atinge sobretudoeste sector mais sensível da vida e da convivência

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humana. Paralelamente, andam também a crise daverdade nas relações dos homens entre si, a faltade sentido de responsabilidade pela palavra , outilitarismo nas relações dos homens entre si, adiminuição do sentido do autêntico bem comume a facilidade com que este é sacrificado. Enfim, éa dessacralização que se transforma muita vezesem «desumanização»; o homem e a sociedade,para os quais nada é «sagrado», decaemmoralmente, apesar de todas as aparências.

VII. A MISERICÓRDIA DE DEUS NA MISSÃO DA IGREJA

Em relação com esta imagem da nossageração, que não pode deixar de despertarprofunda inquietação, vêm à minha mente aspalavras que, por motivo da Encarnação do Filhode Deus, ressoaram no Magnificat de Maria e quecantam a «misericórdia... de geração em geração».Conservando sempre no coração a eloquênciadestas palavras inspiradas, e aplicando-as àsexperiências e aos sofrimentos próprios da grandefamília humana , é preciso que a Igreja do nossotempo tome consciência mais profunda eparticular da necessidade de dar testemunho damisericórdia de Deus em toda a sua missão, emcontinuidade com a tradição da Antiga e da NovaAliança e, sobretudo, no seguimento do próprioCristo e dos seus Apóstolos. A Igreja deve dartestemunho da misericórdia de Deus revelada em

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Cristo, ao longo de toda a sua missão de Messias,professando-a em primeiro lugar como verdadesalvífica de fé necessária para a vida em harmoniacom a fé; depois, procurando introduzi-la e encarná-lana vida tanto dos fiéis, como, na medida dopossível, na de todos os homens de boa vontade.Finalmente professando a misericórdia epermanecendo-lhe sempre fiel, a Igreja tem odireito e o dever de apelar para a misericórdia deDeus, implorando-a perante todas as formas do malfísico ou moral, diante de todas as ameaças quetornam carregado o horizonte da humanidadecontemporânea.

A Igreja professa e proclama amisericórdia de Deus

13. A Igreja deve professar e proclamar amisericórdia divina em toda a sua verdade, tal como nosé transmitida pela Revelação. Nas páginasanteriores do presente documento, procureidelinear ao menos o perfil desta verdade, tãoricamente expressa em toda a Sagrada Escritura ena Tradição.

Na vida quotidiana da Igreja a verdade sobrea misericórdia de Deus, expressa na Bíblia,repercute-se como eco perene em numerosasleituras da Sagrada Liturgia. E o autêntico sentidoda fé do Povo de Deus percebe-a bem, comoatestam várias expressões da piedade pessoal ecomunitária. Seria certamente difícil enumerá-lase resumi-las todas, dado que a maior parte delas

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está só gravada vivamente no íntimo dos coraçõese das consciências humanas. Há teólogos queafirmam ser a misericórdia o maior dos atributose perfeições de Deus; e a Bíblia, a Tradição e todaa vida de fé do Povo de Deus oferecem-nostestemunhos inesgotáveis. Não se trata aqui daperfeição da imperscrutável essência de Deus nomistério da própria divindade, mas da perfeição edo atributo, graças aos quais o homem, naverdade íntima da sua existência, se encontra commaior intimidade e maior frequência em relaçãoautêntica com o Deus vivo. De acordo com aspalavras que Cristo dirigiu a Filipe112, «a visão doPai» – visão de Deus mediante a fé – temprecisamente no encontro com a sua misericórdiaum momento singular de simplicidade e verdadeinterior, como aquele que nos é dado ver naparábola do filho pródigo.

«Quem me vê, vê o Pai»113. A Igreja professa amisericórdia de Deus, a Igreja vive dela na suavasta experiência de fé e também no seu ensino,contemplando constantemente a Cristo,concentrando se n'Ele, na sua vida e no seuEvangelho, na sua Cruz e Ressurreição, enfim,em todo o seu mistério. Tudo isto, que forma a«visão» de Cristo na fé viva e no ensino da Igreja,aproxima-nos da «visão do Pai» na santidade dasua misericórdia. A Igreja parece professar de

112 Cf. Jo 14.9s.113 Ibid.

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modo particular a misericórdia de Deus e venerá-la, voltando-se para o Coração de Cristo. Defacto, a aproximação de Cristo, no mistério doseu Coração, permite-nos deter-nos neste pontoda revelação do amor misericordioso do Pai, queconstituiu, em certo sentido, o núcleo central – e,ao mesmo tempo, o mais acessível no planohumano – da missão messiânica do Filho doHomem.

A Igreja vive vida autêntica quando professa eproclama a misericórdia, o mais admirável atributodo Criador e do Redentor, e quando aproxima oshomens das fontes da misericórdia do Salvador,das quais ela é depositária e dispensadora. Nestecontexto, assumem grande significado ameditação constante da Palavra de Deus e,sobretudo, a participação consciente e reflectidana Eucaristia e no sacramento da Penitência ouReconciliação.

A Eucaristia aproxima-nos sempre do amorque é mais forte do que a morte. Com efeito,«todas as vezes que comemos deste Pão ebebemos deste Cálice», não só anunciamos amorte do Redentor, mas proclamamos também asua ressurreição, «enquanto esperamos a suavinda gloriosa»114. A própria acção eucarística,celebrada em memória d'Aquele que na suamissão messiânica nos revelou o Pai por meio daPalavra e da Cruz, atesta o inexaurível amor, em114 Cf. 1 Cor 11,26, Aclamação no Missal Romano.

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força do qual Ele deseja sempre unir-se e comoque tornar-se uma só coisa connosco, vindo aoencontro de todos os corações humanos.

O sacramento da Penitência ou Reconciliaçãoaplana o caminho a cada um dos homens, mesmoquando sobrecarregados com graves culpas.Neste Sacramento todos os homens podemexperimentar de modo singular a misericórdia,isto é, aquele amor que é mais forte do que opecado. Convém que este tema fundamentalapesar de já tratado na Encíclica RedemptorHominis, seja abordado mais uma vez.

Porque existe o pecado no mundo, nestemundo que «Deus amou tanto ... que lhe deu oseu Filho unigénito»115, Deus que «é amor»116 não sepode revelar de outro modo a não ser como misericórdia, aqual corresponde não somente à verdade maisprofunda daquele amor que Deus é, mas ainda atoda a verdade interior do homem e do mundo,sua pátria temporária.

A misericórdia em si mesma, como perfeiçãode Deus infinito é também infinita. Infinita,portanto, e inexaurível é a prontidão do Pai emacolher os filhos pródigos que voltam à sua casa.São infinitas também a prontidão e a força do perdão quebrotam continuamente do admirável valor doSacrifício do Filho. Nenhum pecado humanoprevalece sobre esta força e nem sequer a limita.

115 Jo 3,16.116 Jo 4,8.

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Da parte do homem pode limitá-la somente afalta de boa vontade, a falta de prontidão naconversão e na penitência, isto é, o permanecerna obstinação, que está em oposição com a graçae a verdade, especialmente diante do testemunhoda cruz e da ressurreição de Cristo.

É por isso mesmo que a Igreja professa eproclama a conversão. A conversão a Deusconsiste sempre na descoberta da sua misericórdia, istoé, do amor que é «paciente e benigno»117 como o éo Criador e Pai; amor ao qual «Deus e Pai denosso Senhor Jesus Cristo»118 é fiel até às últimasconsequências na história da Aliança com ohomem, até à cruz, à morte e à ressurreição doseu Filho. A conversão a Deus é sempre fruto doretorno para junto deste Pai, «rico emmisericórdia».

O autêntico conhecimento do Deus damisericórdia, Deus do amor benigno, é a fonteconstante e inexaurível de conversão, nãosomente como momentâneo acto interior, mastambém como disposição permanente, comoestado de espírito. Aqueles que assim chegam aoconhecimento de Deus, aqueles que assim O«vêem», não podem viver de outro modo que nãoseja convertendo-se a Ele continuamente. Passama viver in statu conversionis, em estado deconversão; e é este estado que constitui a

117 Cf. Cor 13,4.118 2 Cor 1,3.

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característica mais profunda da peregrinação detodo homem sobre a terra in statu viatoris, emestado de peregrino. É evidente que a Igrejaprofessa a misericórdia de Deus, revelada emCristo crucificado e ressuscitado, não somentecom as palavras do seu ensino, mas sobretudocom a pulsação mais profunda da vida de todo oPovo de Deus. Mediante este testemunho devida, a Igreja cumpre a sua missão própria comoPovo de Deus, missão que participa da própriamissão messiânica de Cristo, e que, em certosentido, a continua.

A Igreja contemporânea está profundamenteconsciente de que só apoiada na misericórdia deDeus poderá realizar as tarefas que derivam dadoutrina do Concílio Vaticano II; e em primeirolugar, a tarefa ecuménica que tende a unir todosos que crêem em Cristo. Empregando múltiplosesforços neste sentido, a Igreja confessa comhumildade que somente o amor, que é maispoderoso do que a fraqueza das divisõeshumanas, pode realizar definitivamente a unidade queCristo pedia ao Pai, e que o Espírito não cessa depedir para nós «com gemidos inexprimíveis»119.

A Igreja procura pôr em prática amisericórdia

14. Jesus Cristo ensinou que o homem não sórecebe e experimenta a misericórdia de Deus, masé também chamado a «ter misericórdia» para com119 Rom 8,26.

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os demais. «Bem-aventurados os misericordiosos,porque alcançarão misericórdia»120. A Igreja vênestas palavras um apelo à acção e esforça-se porpraticar a misericórdia. Se todas as bem-aventuranças do Sermão da Montanha indicam ocaminho da conversão e da mudança de vida, aque se refere aos misericordiosos éparticularmente eloquente a tal respeito. Ohomem alcança o amor misericordioso de Deus ea sua misericórdia, na medida em que ele própriose transforma interiormente, segundo o espíritode amor para com o próximo.

Este processo autenticamente evangélico nãoconsiste numa transformação espiritual realizadade uma vez para sempre; mas é um completoestilo de vida, uma característica essencial econtínua da vocação cristã. Consiste, pois, nadescoberta constante e na prática perseverante doamor, como força que ao mesmo tempo unifica e eleva, nãoobstante todas as dificuldades de naturezapsicológica ou social. Trata-se, efectivamente, deum amor misericordioso que, por sua essência, éamor criador. O amor misericordioso, nasrelações recíprocas entre os homens, nunca é umacto ou um processo unilateral. Ainda nos casosem que tudo pareceria indicar que apenas umaparte oferece e dá, e a outra não faz mais do queaceitar e receber (por exemplo, no caso domédico que cura, do mestre que ensina, dos pais120 Mt 5,7.

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que sustentaram e educam os filhos, do benfeitorque socorre os necessitados), de facto, tambémaquele que dá é sempre beneficiado. De qualquermaneira, também ele pode facilmente vir aencontrar-se na posição de quem recebe, dealguém que obtém um benefício, experimenta oamor misericordioso, ou se encontra em estadode ser objecto de misericórdia.

Neste sentido, Cristo crucificado é para nós omodelo, a inspiração e o incitamento mais nobre.Baseando-nos neste impressionante modelo,podemos, com toda a humildade, manifestar amisericórdia para com os outros, sabendo queCristo a aceita como se tivesse sido praticada paracom Ele próprio121, Segundo este modelo,devemos também purificar continuamente todasas acções e todas intenções, em que amisericórdia é entendida e praticada de modounilateral, como um bem feito apenas aos outros.Ela é realmente um acto de amor misericordiososó quando, ao praticá-la, estivermosprofundamente convencidos de que ao mesmotempo nós a estamos a receber, da parte daquelesque a recebem de nós. Se faltar esta bilateralidadee reciprocidade, as nossas acções não são aindaautênticos actos de misericórdia. Não se realizouainda plenamente em nós a conversão, cujocaminho nos foi ensinado por Cristo compalavras e exemplos, até à Cruz, nem121 Cf. Mt 25,34-40.

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participamos ainda completamente da fontemagnífica do amor misericordioso que nos foi reveladapor Ele.

O caminho que Cristo nos indicou noSermão da Montanha, com a bem-aventurançados misericordiosos, é muito mais rico do queaquilo que, por vezes, podemos advertir noshabituais juízos humanos sobre o tema damisericórdia. Tais juízos apresentamordinariamente a misericórdia como acto ouprocesso unilateral, que pressupõe e mantém asdistâncias entre aquele que pratica a misericórdiae aquele que dela é objecto, entre aquele que faz obem e o que o recebe. Daqui nasce a pretensão delibertar da misericórdia as relações humanas esociais e de baseá-las somente na justiça. Taisjuízos sobre a misericórdia não têm em conta ovínculo fundamental que existe entre amisericórdia e a justiça, de que fala toda a tradiçãobíblica e, sobretudo, a actividade messiânica deJesus Cristo. A misericórdia autêntica é, por assimdizer, a fonte mais profunda da justiça. Se esta é, em simesma, apta para «servir de árbitro» entre oshomens na recíproca repartição justa dos bensmateriais, o amor, pelo contrário, e somente oamor (e portanto também o amor benevolenteque chamamos «misericórdia»), é capaz derestituir o homem a si próprio.

A misericórdia autenticamente cristã é ainda,em certo sentido, a mais perfeita encarnação da

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«igualdade» entre os homens e, por conseguinte,também a encarnação mais perfeita da justiça, namedida em que esta, no seu campo, tem em vistao mesmo resultado. Enquanto a igualdadeintroduzida mediante a justiça se limita ao campodos bens objectivos e extrínsecos, o amor e amisericórdia fazem com que os homens seencontrem uns com os outros naquele valor que éo mesmo homem, com a dignidade que lhe éprópria. Ao mesmo tempo, a «igualdade» doshomens mediante o amor «paciente e benigno»122

não elimina as diferenças. Aquele que dá torna-semais generoso, quando se sente recompensadopor aquele que recebe o seu dom. E, vice-versa, oque sabe receber o dom com a consciência de quetambém ele faz o bem, ao recebê-lo, está, por seulado, a servir a grande causa da dignidade dapessoa, e contribui para unir mais profundamenteos homens entre si.

A misericórdia torna-se, assim, elementoindispensável para dar forma às relações mútuasentre os homens, em espírito do mais profundorespeito por aquilo que é humano e pelafraternidade recíproca. É impossível conseguirque se estabeleça este vínculo entre os homens sese pretende regular as suas relações mútuasunicamente com a medida da justiça. Esta, emtoda a gama das relações entre os homens, devesubmeter-se, por assim dizer, a uma «correção» notável,122 Cf. 1 Cor 13,4.

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por parte daquele amor que, como proclama S.Paulo, «é paciente» e «benigno», ou por outraspalavras, que encerra em si as características - doamor misericordioso, tão essenciais para oEvangelho como para o Cristianismo. Tenhamospresente, além disto, que o amor misericordiosoimplica também ternura, compaixão e sensibilidade docoração, de que tão eloquentemente nos fala aparábola do filho pródigo123, ou a da ovelha e a dadracma perdidas124. O amor misericordioso, ésobretudo indispensável entre aqueles que estãomais próximos: os cônjuges, os pais e os filhos eos amigos; e é de igual modo indispensável naeducação e na pastoral.

O seu campo de acção não se confina,porém, só a isto. Se Paulo VI, por mais de umavez indicou que a «civilização do amor»125 é o fimpara o qual devem tender todos os esforços tantono campo social e cultural, como no campoeconómico e político, é preciso acrescentar queeste fim nunca será alcançado se nas nossasconcepções e nas nossas actuações, relativas àsamplas e complexas esferas da convivênciahumana, nos detivermos no critério do «olho porolho e dente por dente»126, e, ao contrário, não

123 Cf. Lc 15,11-32.124 Cf. Lc 15,1-10.125 Cf. Insegnamenti di Paolo VI, vol. XIII (1975), p. 1568 (Discurso noencerramento do Ano Santo de 1975, 25-XII-1975); e vol. XIV (1976), pp.40-42.126 Mt 5,38.

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tendermos para transformá-lo essencialmente,completando-o com outro espírito. É nestadirecção que nos conduz também o ConcílioVaticano II, quando, ao falar repetidamente danecessidade de tornar o mundo mais humano127,centraliza a missão da Igreja no mundocontemporâneo precisamente na realização destatarefa. O mundo dos homens só se tornará maishumano se introduzirmos no quadro multiformedas relações interpessoais e sociais, juntamentecom a justiça, o «amor misericordioso» queconstitui a mensagem messiânica do Evangelho.

O mundo dos homens só poderá tornar-se«cada vez mais humano» quando introduzirmosem todas as relações recíprocas, que formam asua fisionomia moral, o momento do perdão, tãoessencial no Evangelho. O perdão atesta que nomundo está presente o amor mais forte que o pecado.O perdão, além disso, é a condição fundamentalda reconciliação, não só nas relações de Deuscom o homem, mas também nas relaçõesrecíprocas dos homens entre si. Um mundo doqual se eliminasse o perdão seria apenas ummundo de justiça fria e irrespeitosa, em nome daqual cada um reivindicaria os próprio direitos emrelação aos demais. Deste modo, as váriasespécies de egoísmo, latentes no homem,127 Cf. Const. past. sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo Gaudium etSpes, 40: AAS 58 (1956), pp. 1057-1059; Paulo PP. VI, Exort. Apost.Paterna cum Benevolentia, especialmente nos nn. 1 e 6: AAS 67 (1975), pp. 7-9 e 17-23.

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poderiam transformar a vida e a convivênciahumana num sistema de opressão dos mais fracospelos mais fortes, ou até numa arena de lutapermanente de uns contra os outros.

Em todas as fases da história, masespecialmente na época actual a Igreja deveconsiderar como um dos seus principais deveresproclamar e introduzir na vida o mistério damisericórdia, revelado no mais alto grau em JesusCristo. Este mistério, não só para a própria Igrejacomo comunidade dos fiéis, mas também, emcerto sentido, para todos os homens, é fonte devida diferente daquela que é capaz de construir ohomem, exposto às forças prepotentes da trípliceconcupiscência que nele operam128. É em nomedeste mistério, precisamente, que Cristo nosensina a perdoar sempre. Quantas vezesrepetimos as palavras da oração que Ele próprionos ensinou, pedindo: «Perdoai-nos as nossasofensas, assim como nós perdoamos a quem nos temofendido», isto é, aos que são culpados emrelação a nós!129. É realmente difícil expressar ovalor profundo da atitude que tais palavrasdesignam e inculcam. Quantas coisas dizem acada homem acerca do seu semelhante e tambémacerca de si próprio! A consciência de sermosdevedores uns para com os outros anda a parcom o apelo à solidariedade fraterna, que S. Paulo

128 Cf. 1 Jo 2,16.129 Mt 6,12.

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exprimiu concisamente convidando-nos asuportar-nos «uns aos outros com caridade»130,Que lição de humildade não está encerrada aqui,em relação ao homem, ao próximo e, também, anós mesmos! Que escola de boa vontade para avida comum de cada dia, nas várias condições danossa existência! Se não déssemos atenção a estanorma, que restaria de qualquer programa«humanista» da vida e da educação?

Cristo sublinha com insistência a necessidadede perdoar aos outros. Quando Pedro lheperguntou quantas vezes devia perdoar aopróximo, indicou-lhe o número simbólico de«setenta vezes sete»131, querendo desta formaindicar-lhe que deveria saber perdoar sempre atodos e a cada um.

É evidente que exigência tão generosa emperdoar não anula as exigências objectivas da justiça. Ajustiça bem entendida constitui, por assim dizer, afinalidade do perdão. Em nenhuma passagem doEvangelho o perdão, nem mesmo a misericórdiacomo sua fonte, significam indulgência para como mal, o escândalo, a injúria causada, ou osultrajes. Em todos estes casos, a reparação do malou do escândalo, a compensação do prejuízocausado e a satisfação da ofensa são condição doperdão.

130 Ef 4,2, Gal 6,2.131 Mt 18,22.

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Assim, a estrutura fundamental da justiçapenetra sempre no campo da misericórdia. Esta,no entanto, tem o condão de conferir à justiça umconteúdo novo, que se exprime do modo maissimples e pleno, no perdão. O perdão manifestaque, além do processo de «compensação» e de«trégua» que é a característica da justiça, énecessário o amor para que o homem se afirmecomo tal. O cumprimento das condições dajustiça é indispensável, sobretudo, para que oamor possa revelar a sua própria fisionomia. Aoanalisarmos a parábola do filho pródigo,dirigíamos a atenção para o facto de que aqueleque perdoa e o que é perdoado se encontram numponto essencial, que é a dignidade; isto é, o valoressencial do homem, que não se pode deixarperder e cuja afirmação, ou reencontro, sãoorigem da maior alegria132.

Com razão a Igreja considera seu dever eobjectivo da sua missão, assegurar a autenticidade doperdão, tanto na vida e no comportamentoconcreto, como na educação e na pastoral. Não aprotege doutro modo senão guardando a suafonte, isto é, o mistério da misericórdia de Deus,revelado em Jesus Cristo.

Em todos os domínios a que se referemnumerosas indicações do recente Concílio e aplurissecular experiência do apostolado, na baseda missão da Igreja não existe outra preocupação132 Cf. Lc 15,32.

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senão ir «beber nas fontes do Salvador»133. Daíprovêm as múltiplas orientações para a missão daIgreja, tanto na vida de cada cristão, como na decada comunidade ou de todo o Povo de Deus. O«beber nas fontes do Salvador» só se pode realizarcom o espírito de pobreza a que o Senhor noschamou com as palavras e com o exemplo: «oque recebestes de graça, dai-o também degraça»134. Assim, em todos os caminhos da vida edo ministério da Igreja, – através da pobrezaevangélica dos ministros e dispensadores e detodo o povo, que dão testemunho «das grandemaravilhas» do seu Senhor – manifesta-se aindamelhor Deus que é «rico em misericórdia».

VIII. A ORAÇÃO DA IGREJA DOS NOSSOS TEMPOS

A Igreja faz apelo à misericórdia divina15. A Igreja proclama a verdade da

misericórdia de Deus, revelada em Cristocrucificado e ressuscitado, e proclama-a de váriasmaneiras. Procura também praticar a misericórdiapara com os homens por meio dos homens,como condição indispensável da sua solicitudepor um mundo melhor e «mais humano», hoje eamanhã.

Mas, além disso, em nenhum momento e emnenhum período da história, especialmente numa

133 Cf. Is 12,3.134 Mt 10,8.

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época tão crítica como a nossa, pode esquecer aoração que é um grito de súplica à misericórdia de Deus,perante as múltiplas formas do mal que pesamsobre a humanidade e a ameaçam. Tal é o direitoe o dever da Igreja, em Cristo Jesus: direito edever para com Deus e para com os homens.Quanto mais a consciência humana, vítima dasecularização, esquecer o próprio significado dapalavra «misericórdia», e quanto mais, afastando-se de Deus, se afastar do mistério da misericórdia,tanto mais a Igreja tem o direito e o dever de apelar«com grande clamor»135 para o Deus damisericórdia. Este «grande clamor», elevado atéDeus para implorar a sua misericórdia há-decaracterizar a Igreja do nosso tempo. A mesmaIgreja professa e proclama que a manifestaçãoclara de tal misericórdia se verificou em Jesuscrucificado e ressuscitado, isto é, no Mistériopascal. É este Mistério que contém em si a maiscompleta revelação da misericórdia, isto é,daquele amor que é mais forte do que a morte,mais poderoso do que o pecado e que todo o mal,do amor que ergue o homem das suas quedas,mesmo mais profundas, e o liberta das maioresameaças.

O homem contemporâneo sente estasameaças. O que se disse acima a este propósitonão é mais do que simples esboço. O homemcontemporâneo interroga-se com profunda135 Cf. Hebr 5,7.

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ansiedade quanto à solução das terríveis tensõesque se acumulam sobre o mundo e seentrecruzam nos caminhos da humanidade. Sealgumas vezes o homem não tem a coragem depronunciar a palavra «misericórdia», ou não lheencontra equivalente na sua consciênciadespojada de todo o sentido religioso, ainda setorna mais necessário que a Igreja pronuncie esta palavra,não só em nome próprio, mas também em nomede todos os homens contemporâneos.

É, pois, necessário que tudo o que acabamosde dizer no presente documento, sobre amisericórdia, se transforme continuamente em fervorosaoração, num clamor a suplicar a misericórdia,segundo as necessidades do homem no mundocontemporâneo. E que este clamor estejaimpregnado de toda a verdade sobre a misericórdia quetem expressão tão rica na Sagrada Escritura e naTradição, e também na autêntica vida de fé detantas gerações do Povo de Deus. Com esteclamor apelamos, como fizeram os Autoressagrados, para o Deus que não pode desprezarnada daquilo que Ele criou136, para o Deus que éfiel a si próprio, à sua paternidade e ao seu amor.

Como os Profetas, apelamos para o amor quetem características maternais e, à semelhança damãe, vai acompanhando cada um dos seus filhos,cada ovelha desgarrada, ainda que houvessemilhões de extraviados, ainda que no mundo a136 Cf. Sab. 11,24; Sl 145(144),9; Gén 1,31.

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iniquidade prevalecesse sobre a honestidade eainda que a humanidade contemporâneamerecesse pelos seus pecados um novo «dilúvio»,como outrora sucedeu com a geração de Noé.Recorramos, pois, a tal amor, que permaneceamor paterno, como nos foi revelado por Cristona sua missão messiânica, e que atingiu o pontoculminante na sua Cruz, morte e ressurreição!Recorramos a Deus por meio de Cristo,lembrados das palavras do Magnificat de Maria,que proclamam a misericórdia «de geração emgeração». Imploremos a misericórdia divina para ageração contemporânea! Que a Igreja, queprocura, a exemplo de Maria ser em Deus, mãedos homens, exprima nesta oração a suasolicitude maternal e o seu amor confiante, dondenasce a mais ardente necessidade da oração.

Elevemos as nossas súplicas, guiados pela fé, pelaesperança e pela caridade, que Cristo implantou nosnossos corações. Esta atitude é, ao mesmotempo, amor para com Deus, que o homemcontemporâneo por vezes afastou tanto de si, queO considera um estranho e de várias maneiras Oproclama «supérfluo». É, ainda, amor para comDeus, em relação ao Qual sentimosprofundamente quanto o homem contemporâneoO ofende e O rejeita; e por isso estamos prontospara clamar com Cristo na cruz: «Pai, perdoa-lhes,porque não sabem o que fazem»137. Tal atitude é137 Lc 23,34.

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também amor para com os homens, para com todosos homens, sem excepção e sem qualquerdiscriminação: sem diferenças de raça, de cultura,de língua, de concepção do mundo e semdistinção entre amigos e inimigos. Tal é o amorpara com todos os homens, que deseja todo obem verdadeiro a cada um deles, e a todacomunidade humana, a cada família, nação, gruposocial, aos jovens, aos adultos, aos pais, anciãos edoentes, enfim, amor para com todos semexcepção. Tal é o amor, esta viva solicitude paragarantir a cada um todo o bem autêntico e afastare esconjurar todo o mal.

Se alguns contemporâneos nãocompartilharem comigo a fé e a esperança que meimpelem, como servo de Cristo e ministro dosmistérios de Deus138, a implorar nesta hora dahistória a misericórdia do mesmo Deus para ahumanidade, que esses procurem ao menoscompreender o motivo desta solicitude. Ela é ditadapelo amor para com o homem, para com tudo o que éhumano e que, segundo a intuição de grandeparte dos nossos contemporâneos, está ameaçadopor perigo imenso. O mistério de Cristo que,revelando-nos a alta vocação do homem, melevou a pôr em evidência na Encíclica RedemptorHominis a incomparável dignidade do mesmohomem, obriga-me igualmente a proclamar amisericórdia, como amor misericordioso de Deus,138 Cf. 1 Cor 4,1.

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manifestado no mistério de Cristo. Impele-meainda a recorrer à misericórdia e a implorá-la,nesta fase difícil e crítica da história da Igreja e domundo, ao aproximarmo-nos do final do segundoMilénio.

Em nome de Jesus Cristo crucificado eressuscitado, e no espírito da sua missãomessiânica que continua presente na história dahumanidade, elevemos as nossas vozes esupliquemos que nesta fase da história, semanifeste uma vez mais o Amor que está no Pai eque, por obra do Filho e do Espírito Santo, talAmor manifeste no nosso mundocontemporâneo a sua presença, mais forte do queo mal, e o pecado e a morte. Pedimos isto porintercessão d'Aquela que não cessa de proclamar«a misericórdia, de geração em geração»; etambém pela intercessão daqueles em que já serealizaram até ao fim as palavras do Sermão daMontanha, «Bem-aventurados os misericordiosos,porque alcançarão misericórdia»139.

Prosseguindo na grande tarefa de darcumprimento ao Concílio Vaticano II, no qualpodemos justamente descobrir nova fase da auto-realização da Igreja – na medida adaptada à épocaque nos coube viver – a própria Igreja deve serconstantemente guiada pela plena consciência deque não lhe é permitido, em hipótese alguma,esmorecer nesta tarefa e fechar-se sobre si139 Mt. 5,7.

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mesma. A sua razão de ser, efectivamente, é revelarDeus, isto é, o Pai, que nos permite «vê-l'O», emCristo140. Por mais forte que possa ser aresistência da história humana, por mais marcanteque se apresente a heterogeneidade da civilizaçãocontemporânea e, enfim, por maior que possa sera negação de Deus no mundo humano, aindamaior deve ser, apesar de tudo, a nossaaproximação de tal mistério que, oculto desdetoda a eternidade em Deus, foi depois, no tempo,realmente comunicado ao homem por meio JesusCristo.

Com a minha Bênção Apostólica!Dado em Roma, junto de São Pedro, aos trinta dias do mês de

Novembro, Primeiro Domingo do Advento, do ano de 1980, terceirodo meu Pontificado.

IOANNES PAULUS PP. II

140 Cf. Jo 14,9.

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