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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA PUC SP BÁRBARA BUENO GARIBALDI TUTTO È FOLLIA NEL MONDO: ASPECTOS ANALÍTICOS DA ÓPERA LA TRAVIATA DE GIUSEPPE VERDI MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL SÃO PAULO 2017

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA

PUC – SP

BÁRBARA BUENO GARIBALDI

“TUTTO È FOLLIA NEL MONDO”:

ASPECTOS ANALÍTICOS DA ÓPERA LA TRAVIATA DE GIUSEPPE

VERDI

MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL

SÃO PAULO

2017

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA

PUC – SP

BÁRBARA BUENO GARIBALDI

ASPECTOS ANALÍTICOS DA ÓPERA LA TRAVIATA DE GIUSEPPE

VERDI

SÃO PAULO

2017

Dissertação apresentada à

Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo, como exigência parcial

para a obtenção do título de mestre

em História Social, sob orientação

do professor Antônio Pedro Tota.

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BÁRBARA BUENO GARIBALDI

TUTTO È FOLLIA NEL MONDO:

UMA ANÁLISE DA ÓPERA LA TRAVIATA DE GIUSEPPE VERDI

Aprovado em : _____/_____/_____

BANCA EXAMINADORA

________________________________________

Professor Dr. Antônio Pedro Tota

_________________________________________

Professor Dr. Acchile Picchi

_________________________________________

Professora Dra. Denise Bernuzzi de Sant’Anna

Dissertação apresentada à

Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo, como exigência parcial

para a obtenção do título de mestre

em História Social, sob orientação

do professor Antônio Pedro Tota.

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Agradecimentos

Agradeço aos meus professores, da história e da música, por todo o conhecimento

compartilhado comigo. Agradeço também aos meus amigos pela ajuda que me

prestaram nos últimos meses e, principalmente, à minha mãe e ao meu marido, pelo

apoio e paciência nesta intensa jornada.

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“La Traviata, ieri sera, fiasco. La colpa è mia

o dei cantante? Il tempo giudicherà.”

(Giuseppe Verdi)

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RESUMO

A Europa do século XIX passou por diversas transformações, entre elas, a

consolidação da unificação italiana. Este processo político contou com o apoio de

algumas personalidades, como Giuseppe Verdi, um dos mais importantes

compositores de ópera italianos. Entre suas composições mais famosas, La Traviata

destaca-se por seu grande sucesso, no ano posterior à sua estreia. Em sua primeira

apresentação, esta ópera foi duramente criticada. Esta pesquisa, discute a recepção

da obra pela burguesia, através do libreto e tramas literária e histórica, analisa

alguns aspectos do período. Desta forma, esta ópera foi considerada imoral e

ofensiva aos bons costumes da sociedade burguesa italiana, que reconheceu seus

próprios defeitos neste espetáculo.

Palavras chave: Ópera, Itália, Giuseppe Verdi, História, La Traviata.

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ABSTRACT

The 19th century Europe has passed for many transformations, among they, the

setting of italian unification. This political process had the support of some

personalities, as Giuseppe Verdi, one of the most important italian opera composers.

Between his most famous compositions, La Traviata stands out for its big sucess in

the after year of debut. In its first presentation, this opera were strongly criticized.

This research discusses the reception of this drama by the bourgeoisie, through the

libretto and literary and historical plot, analyzes few aspects of period. Thus, this

opera were considered imoral and offensive for good customs of italian bourgueois

society, who recognized his own defects in this spectacle.

Key words: Opera, Italy, Giuseppe Verdi, History, La Traviata.

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Sumário

Introdução 9

1. Primeiro ato: Aspectos gerais da Europa no século XIX 15

1.1 Definições políticas 15

1.2 Os três Giuseppes 18

1.3 Burguesia: brigando por uma definição 24

1.4 O romantismo como expressão burguesa 24

2. Segundo ato: La Traviata, entre o céu e o inferno 30

2.1 Problemas técnicos 30

2.2 Problemas morais 34

2.3 Itália: tradições, moral e música 41

2.4 A redenção: o sucesso de 1854 42

3. Terceiro ato: A ópera e a sociedade 46

3.1 Tutto è follia nel mondo 49

3.2 Croce e delizia al cor 50

3.3 La Traviata 54

3.4 Ah, tutto fini! 57

Considerações Finais 62

Bibliografia 64

Anexos

Anexo A 67

Anexo B 68

Anexo C 72

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Introdução

Esta pesquisa pretende, através da análise dos aspectos que compõem a

ópera La Traviata, de Giuseppe Verdi, trama literária e histórica, momentos de

tensão e relaxamento e libreto, compreender a recepção da obra pela burguesia

italiana. Observar-se-ão as contradições da sociedade burguesa.

Sabe-se que são poucas as pesquisas feitas no Brasil dentro da área de

História utilizando a ópera como fonte. Essa tarefa foi desenvolvida por musicólogos,

que frequentemente focaram suas análises na grafia musical. Uma série de

obstáculos encontra-se no caminho dos historiadores, dificultando assim, o diálogo

entre história e música, mas talvez o pouco conhecimento da linguagem musical

seja o maior destes entraves. Por esta razão, diversos estudos nesta área resumem-

se ao campo da crítica, sendo produzidos por jornalistas e afastando-se, portanto,

da academia.

Atualmente, a pesquisa histórica permite o uso de novas fontes de pesquisa,

quebrando assim, os antigos paradigmas1. Estas novas propostas vieram de vários

lados: Escola de Frankfurt, Marxismo Cultural e Escola dos Annales, com um

objetivo; substituir a narrativa tradicional, pautada em heróis e datas, criando uma

história problema, que não fosse excludente e levasse em conta todas as atividades

políticas e culturais, permitindo um enfoque interdisciplinar. Relatos orais, música,

poesia, cartas, literaturas e imagens transformam-se em valiosos documentos nas

mãos do pesquisador, possibilitando novas problemáticas.

Trata-se, portanto, de um trabalho transdisciplinar, pois “na realidade, essas

linguagens não fazem parte de fato do universo direto e imediato do historiador, mas

nenhuma delas impediu que esses materiais fossem utilizados como fontes

históricas para desvendar e mapear zonas obscuras da história” (MORAES, 2000).

1 No século XIX a corrente positivista surgiu com o intuito de atribuir à História o caráter de ciência e,

assim como as demais áreas do conhecimento, deveria ter um método e um objeto de estudo.

Pautado na análise dos documentos oficiais para que se pudesse chegar à “verdade” histórica,

absoluta e inquestionável, o Positivismo dominou, por muito tempo, o campo de estudo da História.

Muito preocupado com aquilo e aqueles que faziam parte das elites, da esfera política e de uma

história factual, acabou deixando de lado as minorias, mulheres, crianças e os menos favorecidos.

Aos poucos, começaram a surgir questionamentos a esta corrente, sobretudo quanto à sua

abrangência.

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Desta forma, o objetivo desta pesquisa é discutir, através da ópera La

Traviata, de Giuseppe Verdi, alguns elementos da modernidade italiana, sobretudo

os paradigmas da moralidade desta recém-formada sociedade no século XIX. Para

isso, serão analisados os perfis psicológicos e estratégias de sobrevivência das

personagens. Além disso, serão apuradas as possíveis causas do fracasso, e

também do sucesso da ópera, respectivamente, nos anos de 1853 e 1854.

Este trabalho pretende também, criar condições para aproximar as áreas de

Música e História, ampliando horizontes para pesquisas futuras. É fato que,

atualmente, a música protagoniza diversas pesquisas históricas, todavia, no Brasil, o

foco está, principalmente, na música popular. Ainda que pouco explorada no nosso

país, a música de concerto2 persiste e agrada, mesmo assim os historiadores

brasileiros ainda não se debruçaram sobre ela como fonte de pesquisa.

A cultura é, por conta de sua abrangência, um dos conceitos de mais difícil

definição entre historiadores. Por vezes, ela pode ser compreendida como a

formação escolar de alguém, seu nível de instrução. Outras vezes refere-se às

manifestações artísticas, música, teatro, pinturas e esculturas. Aqui há inclusive

espaço, na atual sociedade capitalista, para compreender cultura como os meios de

comunicação, cinema, televisão e rádio. Pode ainda ser o conjunto das tradições

dos povos, tais como festas, cerimônias e lendas. Mesmo com todas essas

variações, há algo comum a todas elas; é correto afirmar que a cultura relaciona-se

com a experiência humana, com as vivências.

Trata-se de um conceito que, como Raymond Willians em sua obra “Marxismo

e Literatura” ressalta, se forma e se transforma ao longo da história. Teve, no século

XVI o significado de colheita mas alguns séculos mais tarde, se uniu ao conceito

moderno de civilização e assumiu novos significados, passando aí a compreender

os caráteres de religião, artes, família e vida pessoal.

A ópera, espetáculo teatral musicado, na Itália do século XIX, fazia parte de

uma cultura cotidiana para parte da população. Ir ao teatro tornou-se um ritual

burguês e após a apresentação, discussões sobre a qualidade das obras em cafés,

2 Optei pela nomenclatura Música de Concerto em substituição às expressões Música Clássica, que

se refere apenas às composições produzidas durante o período clássico ou ainda à Música Erudita,

que parece colocar as composições em uma escala qualitativa, julgando como inferior a música

popular, que, muitas vezes, não possui refinamento técnico.

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eram frequentes. Temas, hoje famosos, podiam sem ouvidos em todos os cantos,

eram entoados nas vozes da população.

O final do século XVIII trouxe uma significativa transformação na vida musical

europeia, isso porque até então, o público estava muito restrito às cortes. Após este

período, ele se expande e se transforma, consolidando-se como um público

burguês. Como no século XIX o Romantismo é o movimento predominante na

música europeia, os artistas passaram a observar com mais atenção o passado de

suas nações e a ópera, acaba assumindo importante papel na “sustentação da

consciência nacional”3.

Além disso, houve um aumento significativo no número de concertos e a

música, aos poucos, ia se democratizando, criando assim, a necessidade de ampliar

a quantidade de casas de espetáculo. Os concertos ganhavam cada vez mais

prestígio.

Entretanto, estes espetáculos tinham também outros objetivos, dentre os

quais: “promover a afirmação pessoal dos músicos, comemorar acontecimentos de

diferentes naturezas, beneficiar obras de caridade.”4 Os concertos eram

patrocinados, frequentemente, por um grupo de músicos, jornais, clubes e

sociedades, teatros ou até mesmo editoras.

Por volta dos anos 1830 surgiu no interior da música uma distinção. De um

lado, uma tendência mais acessível à população, caracterizada pelo cômico,

superficial e que tinha como principal objetivo a distração. Por outro lado, surgiu uma

corrente mais séria, profunda e exigente, que agradava um público restrito.5

O século XIX foi também o responsável pela transformação e consolidação da

ópera italiana. Gioachino Rossini, Gaetano Donizetti e Vicenzo Belini foram os

responsáveis por possibilitar aos cantores, espaço para exibirem suas qualidades

vocais, eis o momento áureo do Bel Canto.

3 SUPICIC, Ivo. Situação sócio histórica da música no século XIX. In: MASSIN, Jean &Brigitte, 1997

p. 662

4 SUPICIC, Ivo. Situação sócio histórica da música no século XIX. In: MASSIN, Jean &Brigitte, 1997

p. 662

5 É possível observar uma discussão interessante sobre este assunto em Theodor Adorno, em O

fetichismo da música e a regrssão da audiçãp. In:Textos escolhidos. São Paulo: Nova cultural, 1999,

na qual discute as diferenças entre a música séria e a música ligeira.

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A voz humana é um instrumento complexo, de acordo com a definição de

Ségio Magnani “com ela nasceu a música; com ela a música evoluiu até a perfeição

formal e expressiva da Renascença, e com ela, continuou, nos séculos seguintes,

em soberbas realizações sonoras, profanas e religiosas.” (MAGNANI, 1989)

Em sua obra, Magnani, analisa as vozes masculinas e femininas e ressalta

que elas se distinguem em agudas e graves, respectivamente, soprano e contralto

no caso das mulheres, tenor e baixo para os homens. Entretanto, encontram-se

ainda, vozes intermediárias, mezzo soprano e barítono. A classificação vocal não é

fácil, para a definição do registro de cada voz é necessário considerar: extensão, o

campo total de alcance vocal, do mais grave ao mais agudo6; tessitura, região em

que a voz encontra sua melhor sonoridade, mais natural e confortável e por último, o

timbre é a característica específica de cada voz, normalmente é espontânea, mas

pode ser desenvolvida através da técnica vocal. 7 Eis as definições:

Soprano: Voz feminina aguda. Por se tratar de uma classificação comum

entre as mulheres possui subdivisões, coloratura, ligeiro, lírico-ligeiro, lírico, lírico-

spinto e dramático. Para as obras de Richard Wagner exige-se uma voz com grande

potência e resistência, eventualmente, pode ser chamada de soprano heroico ou

wagneriano.

Mezzo soprano (ou meio-soprano): Voz feminina intermediária entre o

soprano e o contralto. Também possui subdivisões, lírico, lírico-coloratura e

dramático.

Contralto: Voz grave feminina, é considerada rara. Possui um reduzido

registro agudo, mas é timbrada em toda a sua a sua extensão, podendo soar quase

como a voz masculina.

Tenor: Voz masculina aguda, transformou-se muito com o passar do anos até

se consolidar no século XVIII, quando as notas agudas passaram a ser emitidas com

voz plena e não mais falsete. Subdivide-se em lírico, lírico-ligeiro, lírico spinto e

dramático. Assim como no caso dos sopranos, nas obras de Wagner, costuma-se

encontrar o heldentenor, que possui uma grande sonoridade no registro central.

6 Trata-se de um elemento duvidoso, pois pode ser ampliada com o passar dos anos.

7 As definições sobre voz humana utilizadas neste trabalho foram pautadas na obra MAGNANI,

Sérgio. Expressão e comunicação na linguagem da música. Belo Horizonte, UFMG, 1989.

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Barítono: Voz intermediária masculina, apesar de sua etimologia (do grego

barys, que significa grave). Nos repertórios barroco e clássico, confunde-se

frequentemente com a voz de baixo cantante, mas no romantismo esta voz foi mais

explorada, possibilitando uma rica gama de classificações. Subdivide-se em barítono

lírico, lírico ligeiro e dramático.

Baixo: É a voz masculina mais grave e com registros mais equilibrados. Sua

subdivisão limita-se a dois tipos, baixo cantante e baixo profundo.

Giuseppe Verdi, em suas composições, une os elementos do bel canto,

exigindo muito de seus cantores e valoriza as questões dramáticas, conquistando

assim, vozes “mais flexíveis e expressivas”8.

No tecido social da Itália do século XIX, a ópera não tinha como missão

reproduzir objetos reais, mas resgatar a sensibilidade, tocar o imaginário dos sonhos

e das insatisfações de diversas pessoas9.

Para o desenvolvimento desta pesquisa, foram utilizadas duas fontes

históricas. A primeira, o periódico especializado em artes “L’Itália Musicale”. Suas

publicações ocorriam duas vezes por semana, sempre às quartas e aos sábados,

traziam informações sobre teatro, literatura e música. Era comercializado na Itália e

Áustria pela Associação de Milão, podendo ser assinado por um ano e com

desconto para os associados, cujo valor era de 24 liras austríacas. Os exemplares

individuais custavam 75 centavos. No ano de 1853, entre março e abril, trouxe uma

série de artigos sobre a primeira apresentação de La Traviata. No ano de 1854,

também trouxe uma nota, quando a ópera foi reapresentada. Através dele, pode-se

diagnosticar os sucessos e os fracassos de Giuseppe Verdi, bem como a recepção

do público com esta ópera.

A segunda fonte utilizada foi o libreto10 da ópera La Traviata, de Giuseppe

Verdi, baseado no romance “A dama das Camélias” de Alexandre Dumas Filho. A

adaptação teatral desta obra originou a ópera. Através do libreto, foram analisados

8 LABIE, Jean Françóis. A ópera italiana: Donizetti, Bellini, Verdi. In: MASSIN, Jean & Brigitte, 1997 p.

682

9 Discussão presente em LABIE, Jean Françóis. “A ópera Italiana de Cherubini a Rossini. In:

MASSIN, Jean & Brigitte, 1997 p. 647.

10 Texto utilizado como base para uma ópera. Pode ser também o impresso que contém este texto

para acompanhar o espetáculo.

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os trechos que reproduziam os costumes da Europa do século XIX. Desta forma, a

partir das questões culturais, foi possível estabelecer o diálogo com a bibliografia.

Desta forma, esta pesquisa está divida da seguinte forma:

No primeiro capítulo, “Aspectos gerais da Europa no século XIX” foi feita uma

breve análise da situação histórico social da Europa no período. A partir daí podem

ser discutidos os problemas dos países que se unificaram tardiamente, Alemanha e

Itália, e os esforços, principalmente italianos, para a consolidação de uma identidade

nacional. O romantismo, a burguesia e a unificação italiana são os eixos centrais

deste capítulo.

Em “La Traviata: entre o céu e o inferno”, segundo capítulo deste trabalho, o

foco está nas opiniões publicadas no "L'Itália Musicale”, principalmente nos meses

que sucederam a estreia no teatro La Fenice. Com elas, são levantadas algumas

possiblidades para a recepção do espetáculo, além dos comentários de Giuseppe

Verdi sobre as críticas que recebera.

O último capítulo, denominado “Um evento dramático” traz recortes de

algumas das principais árias e duetos da ópera, que foram cuidadosamente

analisados. Desta forma, os costumes e as atitudes das personagens retratadas

foram discutidos no contexto do século XIX.

A complexidade do tema, foi, certamente um fator dificultador para esta

pesquisa, pois a bibliografia presente no Brasil é escassa. Trata-se de um tema

amplo e com diversas possibilidades, que merecem ser analisadas posteriormente,

em continuidade à esta pesquisa.

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1. Primeiro ato: Aspectos gerais da Europa no século XIX.

Entre 1789 e 1914, ou o chamado longo século XIX11, a Europa vivenciou um

período repleto de mudanças: a industrialização, o crescimento das cidades, a

expansão do imperialismo, e a consolidação da burguesia enquanto classe social.

Nas artes, o Romantismo predominava, adequando-se às características de cada

um dos países. Entretanto, tais características não foram homogêneas, França,

Alemanha e Itália vivenciavam, no mesmo momento, situações completamente

diversas.

1.1 Definições políticas.

No centro dos conflitos internacionais, estava a França, que passava por um

período de reestruturação após a queda de Napoleão Bonaparte na batalha de

Waterloo. Por conta disso, foi necessária a reorganização do mapa europeu e a

discussão das formas de governo neste continente, uma reunião entre os Estados

da Europa era urgente e necessária. Na esfera política, o Congresso de Viena,

realizado em 1814/15, após as guerras napoleônicas, possibilitou um longo período

de paz no “velho continente”, através do equilíbrio do poder entre as potências.

Nesta condição, a França “teve que abrir mão de todas as suas conquistas e voltar

às antigas fronteiras de antes da revolução” (KISSINGER,2012). A região que

corresponde à atual Alemanha também foi pauta de discussão. Este território

aparentava ser um problema para as questões diplomáticas europeias, pois sempre

causava temor aos seus vizinhos; unificado então, seria uma grande ameaça.

Assim, os integrantes do congresso optaram por solidificar o país, evitando que se

enfraquecesse demais perante os outros. No caso da região da Península Itálica, a

influência austríaca cresceu, mas por pouco tempo, pois a pluralidade linguística e o

surgimento de um nacionalismo tornaram-se um agravante para essa tentativa de

unidade, liderada pela Áustria. Tais elementos foram, ao longo de todo o século,

questões fundamentais e amplamente difundidas por toda a Itália em seu processo

de unificação.

11

Periodização definida por HOBSBAWN, Eric. A era das revoluções: 1789 – 1848. São Paulo, Paz e

Terra.

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Após o congresso, a França deparou-se com a ascensão de um

conservadorismo político por aproximadamente vinte anos, mas o país que foi o

cenário da grande revolução burguesa no século anterior, novamente se viu em

meio a uma nova revolução em 1848. No entanto, com as ideias socialistas tomando

força no continente europeu, contrapondo o liberalismo, burguesia e proletariado

distanciavam-se acentuando cada vez mais esse embate e ainda colocava à prova o

desenvolvimento capitalista. Esse sentimento, inclusive, ultrapassou as fronteiras

francesas e reverberou em outros países da Europa, proporcionando a chamada

“Primavera dos Povos”. Após esse novo processo revolucionário, a França instaurou

um governo republicano, liderado por Luís Bonaparte, que através de um golpe,

tornou-se imperador em 1852, passando a ser chamado de Napoleão III. Em seu

governo se opôs às unificações da Itália e da Alemanha, a fim de evitar nações

muito fortes tão próximas às fronteiras francesas.

Entretanto, a sua tentativa foi fracassada, já que foi capturado na guerra

franco-prussiana em 1870, fato que pôs fim ao seu governo. As animosidades entre

estes três países se intensificaram. Mesmo nos anos seguintes, a influente França

tornara-se um modelo a ser rejeitado por estas duas nações que estavam

despontando no velho mundo.

Para italianos e alemães o século XIX representou o momento de união de

forças, de superação de suas diferenças internas para conquistar um objetivo maior:

suas unificações, cada qual realizada com suas próprias características.

As experiências de constituição de identidades nacionais na modernidade

europeia foram complexas, contraditórias e passaram por um longo processo de

transformação. Enquanto no período medieval a comunidade religiosa foi a

responsável por unir as pessoas, na idade moderna esta unidade passou a se

consolidar a partir de reinos dinásticos12. Entretanto, entre os séculos XVIII e XIX, a

Europa apresentou-se completamente reconfigurada, com novos países, novos

12

Benedict Anderson desenvolve esta ideia em sua obra Nação e Consciência Nacional, de 1983.

Quanto à comunidade religiosa, refere-se às civilizações que se tornaram coesas através de

elementos considerados sagrados, a exemplo da língua. Já no caso do reino dinástico, “o governo do

rei organiza tudo, em torno de um centro elevado. Sua legitimidade deriva da divindade e não das

populações[...] ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo, Ática, 1991.

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costumes, novas nações. A ideia de nação, por sua vez, passa a formar-se a partir

da representação de uma comunidade imaginada, onde elementos simbólicos (como

a literatura) são fundamentais para a união dos grupos. (ANDERSON, 2008). Nesse

caso, não se tratou de uma união forçada, de indivíduos vivendo em um mesmo

território, não somente a economia ou a moeda eram fundamentais, uma cultura,

ainda que pertencente à determinadas elites, espalhava-se e passava a caracterizar

um povo.

Para uma melhor compreensão das tensões sociais presentes no século XIX, é

necessário fazer uma breve discussão sobre a questão nacionalista. O nacionalismo

é o vínculo emocionalmente construído entre as pessoas e o lugar onde passaram

grande parte de suas vidas. Língua, religião, etnia e definições políticas, são os

elementos que constituem o “protonacionalismo”, como Eric Hobsbawm13 prefere

chamar em sua obra Nações e Nacionalismo. São aspectos importantes para a

constituição de um Estado, mas não são essenciais para a constituição da lealdade

e patriotismo nacionais. Por outro lado, Benedict Anderson ressalta que os laços

subjetivos escapam à lógica da razão, mas são cruciais para a constituição da

consciência nacional no século XIX14.

O exemplo da unificação alemã é valoroso para a discussão de tais elementos

simbólicos. Otto Von Bismarck, enquanto chanceler, acolheu a iniciativa de unificar

os estados alemães. Para isso, usou a guerra como estratégia e foi bem sucedido,

conquistou vários territórios de influência austríaca. No entanto, para que o processo

pudesse ser finalizado, Bismarck precisou despertar o patriotismo e a comunhão, a

ponto de pessoas mobilizarem-se a morrer pela nação.

“Uma vez que a nação articula sentimentos de "comunhão" [commonness] entre seus membros (mesmo que esta última não possa ser observada empiricamente), tal articulação deve estar intimamente associada à mediação ou transmissão das "narrativas-mestras" da nação aos seus membros. Minha hipótese é que uma parte importante dessa transmissão está na própria estrutura comum a essas narrativas, isto é, em seus elementos interindividuais, ou — seguindo Michel Foucault — discursivos, que realizam a tarefa, tanto no que diz respeito aos

13

HOBSBAWN, Eric. Nações e nacionalismos desde 1780: Programa, mito e realidade. São Paulo:

Paz e terra, 2013.

14 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do

nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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sentimentos de pertencimento, quanto às narrativas e modos de expressão. Por outras palavras, o discurso nacional não é apenas uma expressão de determinados sentimentos nacionais, mas também um mecanismo que cria a nação enquanto uma comunidade.” (SCHNEIDER, 2004)

A Itália, por sua vez, diferenciou-se dos demais países da Europa, a começar

por sua consolidação do nacionalismo, que foi um pouco mais delicada. A Península

Itálica era, até o século XIX, formada por diferentes regiões, cada uma delas com

suas características, cultural, econômica e linguística, o que dificultou o surgimento

de uma literatura italiana. Tais diferenças eram tão intensas, que um processo de

unificação parecia impossível, como cita Antônio Gramsci:

“Polêmicas surgidas no período de formação da nação italiana e da luta pela unidade política e territorial e que continuaram e continuam a envolver de modo obsessivo pelo menos uma parte dos intelectuais italianos. Alguns destes problemas, como o da língua, são muito antigos. Remetem às primeiras épocas da formação de uma unidade cultural italiana. Nasceram do confronto entre as condições gerais da Itália e as de outros países, particularmente da França, ou do reflexo de condições peculiares italianas, como o fato de que a península foi a sede do Império Romano e tornou-se a sede do maior centro da religião cristã. O conjunto destes problemas é o reflexo da difícil elaboração de uma nação italiana de tipo moderno, obstaculizada por condições de equilíbrio de forças internas e internacionais” (GRAMSCI, 2006).

Diante desses problemas internos, o processo de unificação italiano precisou

ultrapassar os limites políticos, motivando assim a participação popular. Por esta

razão, desenrolou-se de diferentes formas, passando pelas esferas ideológica e

revolucionária, mas também cultural e contou com o efetivo envolvimento de três

figuras: Giuseppe Mazzini, Giuseppe Garibaldi e Giuseppe Verdi.

1.2 Os três Giuseppes

Giuseppe Mazzini (1805 – 1872) nasceu em Gênova, era extremamente

religioso e defendia a unificação italiana pela via democrática e republicana, além de

julgar fundamental a participação popular neste processo. Ele buscou contato direto

com os trabalhadores italianos, com o objetivo de suscitar o espírito nacionalista,

propôs uma transformação social efetiva, que não fosse limitada, criticando assim os

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19

efeitos da Revolução Francesa. Segundo ele, os Direitos do Homem e do Cidadão

de nada serviram, já que não atingiam a classe dos trabalhadores:

“No; la condizione del popolo non ha migliorato; ha peggiorato anzi e peggiora in quasi tutti i paesi, e specialmente qui dov'io scrivo, il prezzo delle cose necessarie alla vita è andato progressivamente aumentando, il salario dell'operaio in molti rami d'attività progressivamente diminuendo, e la popolazione moltiplicando. In quasi tutti i paesi, la sorte degli uomini di lavoro è diventata più incerta, più precaria; le crisi che condannano migliaia d'operai all'inerzia per un certo tempo si sono fatte più frequenti.” (MAZZINI, 1860)

Seu foco era sensibilizar todas as classes da Itália, somente assim a

solidificação do país seria possível. Justamente por essa razão, participou de

associações como “Jovem Itália” e “Associação Nacional Italiana” e, quando sua

influência já não ecoava por todos os cantos da península, escreveu “I doveri

dell’uomo”, em 1860, como um panfleto da unificação. Nesta obra ressalta a

importância da pátria e do nacionalismo.

“Senza Patria, voi non avete nome, né segno, né voto, né diritti, né battesimo di fratelli tra i popoli. Siete i bastardi dell' Umanità. Soldati senza bandiera, israeliti delle Nazioni, voi non otterrete fede né protezione : non avrete mallevadori. Non v'illudete a compiere, se prima non vi conquistate una Patria, la vostra emancipazione da una ingiusta condizione sociale ; dove non è Patria, non è Patto comune al quale possiate richiamarvi: regna solo l'egoismo degli interessi, e chi ha predominio lo serba, giacché non vi è tutela comune a propria tutela. Non vi seduca l'idea di migliorare, senza sciogliere prima la questione Nazionale, le vostre condizioni materiali : non potete riuscirvi”. (MAZZINI, 1860)

A Itália idealizada por Mazzini em sua obra, seria religiosa, unida e

igualitária15. Mais do que isso, em seus escritos, ele frequentemente ambicionava

uma possível unificação do continente europeu. Esta união seria necessária e

15

Em “I doveri dell’uomo”, Giuseppe Mazzini destaca a importância da uma união entre todos os

países europeus, capítulo 5 “Doveri verso la patria”. Além disso, recorre, frequentemente, à figura de

Deus para justificar a necessidade de uma fraternidade entre as nações. Este autor trouxe uma

relevante contribuição para a questão das relações internacionais. Em “A Cosmopolitanism of

Nations” livro organizado por Stefano Recchia e Nadia Urbinati é possível acessar alguns de seus

escritos a respeito de suas ideias nacionalistas e suas propostas. Fernando Catroga possui uma obra

interessante, intitulada “Ensaio Republicano”, na qual faz uma discussão importante sobre patriotismo

e nacionalismo, citando também Giuseppe Mazzini.

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inevitável, pois segundo ele, baseado em sua crença na cristandade, os maus

governos seriam os responsáveis pela segregação da Europa, afinal essa separação

iria contra os “desígnios de Deus”, a pátria dos reis promovia o egoísmo, baseado

nas castas. Mas “o desígnio divino se realizará inevitavelmente”, com essa frase,

afirma que as divisões seriam superadas naturalmente e o mapa da Europa seria,

portanto, refeito, com a criação de uma “Pátria do Povo”, caracterizada pela

harmonia e fraternidade.

Outro ator do processo de unificação italiana foi Giuseppe Garibaldi (1807 –

1882), nascido na cidade de Nice, na época pertencente à França, mas que pouco

tempo depois, em 1814, retornou ao Reino de Sardenha. Quando jovem, estudou

com professores particulares e demonstrou grande interesse pela leitura, mas não

pertencia ao grupo mais intelectualizado daquele contexto. Em 1824 passou a

dedicar-se à Marinha, entre suas viagens estão alguns dos destinos: Ucrânia, Roma

e a América do Sul, onde permaneceu por treze anos e consolidou-se como um

agitador político, na luta contra a tirania.

Em uma de suas viagens conheceu Émille Barrault16 (1799 – 1869), que lhe

apresentou as ideias de Saint Simon sobre a aristocracia. Posteriormente, as ideias

de Mazzini também conquistariam Garibaldi. Gianni Carta, no livro Garibaldi na

América do Sul, de 2013, traz comentários importantes sobre a aproximação de

ambos:

“Cerca de dois meses depois do encontro com Barrault, Garibaldi conheceu alguém que o apresentou aos princípios do nacionalismo democrático universal defendido por Giuseppe Mazzini. Mazzini, o líder republicano do Risorgimento, tinha uma clara estratégia global: estabelecer em todo o mundo células político-partidárias conhecidas como Giovine Italia (Jovem Itália) a fim de recrutar voluntários para lutar por causas republicanas locais e pela unificação da Itália. Cada um desses grupos deveria lançar um jornal próprio para propagandear a doutrina política de Mazzini e divulgar os feitos militares dos voluntários.” (CARTA, 2013)

Estes elementos foram fundamentais para a construção de sua concepção

sobre o nacionalismo, descrita por Alexandre Dumas na biografia “Memórias de

Garibaldi”:

16

Professor e político francês com ideias republicanas.

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“O apóstolo começou por provar-me que o homem que defende a sua pátria, ou que ataca a pátria de outrem não passa de um soldado devoto no primeiro caso e injusto no segundo, e que o homem que fazendo-se cosmopolita, adota outras pátrias e vai erguer a sua espada e oferecer o seu sangue a todo povo que luta contra a tirania, é mais que um soldado, é um herói.” (DUMAS, 1944)

Esta filosofia fez-se presente na vida de Garibaldi, que se envolveu

diretamente nos confrontos pela unificação. Foi esse o motivo que o aproximou de

Mazzini, a luta pela unidade italiana.

No entanto, é incoerente dizer que as ambições dos dois sempre coincidiram,

principalmente no que diz respeito ao tratamento dado a outros países, sobretudo à

França:

“Garibaldi avaliara a situação e, do campo de batalha, , escreveu ao ministro da guerra, Avezzana: Envie-me tropas em bom estado físico. Assim, como eu lhe prometera bater os franceses – promessa que cumpri -, afianço-lhe que impedirei que um único deles alcance os seus navios.

Mas, então, ao que se sabe, o triúnviro Mazzini impôs o seu poderoso veto a esse projeto: Não façamos da França, disse ele, um inimigo mortal por via de uma derrota completa, nem exponhamos os nossos jovens soldados de reserva num vasto descampado contra um inimigo batido, mas valoroso.

Esse grave erro de Mazzini privaria Garibaldi da glória de uma jornada a Napoleão e tornaria infrutífera a vitória do dia 30. Erro fatal e ainda assim escusável de um homem que depositara todas as suas esperanças nas forças democráticas francesas [...]” (DUMAS, 1944)

Alexandre Dumas foi escolhido por Giuseppe Garibaldi para ser seu biógrafo.

Nesta biografia, Garibaldi aparece como o soldado revolucionário, em alguns

momentos assemelha-se a um herói, idealizado, o que acrescentou uma intensa

dose de charme à obra. Entretanto, sua transformação em herói nacional deve ser

analisada com cautela, como ressalta Lucy Riall, em “Garibaldi, invention of a hero”,

de 2007:

“The promotion of Garibaldi as a national hero during the 1840’s should be seen as part of a political struggle to personify and popularise a specific vision of national community. This vision was tied not so much to an authoritarian and exclusive form of mass politics as to an inclusive, democratic ideal of liberty and fraternity. To support this vision, Italian democrats not only had to identify themselves with romanticism, they also had to appropriate the revolutionary symbolism of the Jacobins, and to challenge and subvert the conservative legacy of Napoleon.” (RIALL, 2007)

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Entre mitos e verdades, pode-se dizer que a relação entre estes dois ícones da

unificação foi marcada por encontros e desencontros, o ideal de ambos era o

mesmo: tornar a Itália um país forte e unido, no entanto, o caminho imaginado por

eles para atingir este objetivo era distinto. Mazzini, idealista, defendia a transição

para uma república pela via democrática, enquanto Garibaldi pela via revolucionária.

A terceira figura, ao contrário dos outros, não participou de guerras, nem

escreveu propostas ideológicas, sua participação no processo de unificação foi

bastante subjetiva, talvez por isso, um pouco mais complexa; merece ainda mais

atenção, pois se trata do compositor de La Traviata, objeto de estudo deste trabalho.

Giuseppe Verdi nasceu em 9 de outubro do ano de 1813, em Le Roncole,

pequena aldeia próxima de Busseto, província de Parma, que naquele período

pertencia ao Reino da Itália, sob posse de Napoleão. Por conta disso, foi registrado

como Joseph Fortunin François, mas nunca fora chamado por tal nome. Esta região

sofreu constantes agitações entre 1814 e 1815, quando os franceses foram

perseguidos por russos e austríacos. Após o congresso de Viena, a guerra chegou

ao fim e o pequeno povoado passa a ser de domínio austríaco.

Filho de Carlo Verdi e Luigia Uttini, pequenos proprietários de terra, o garoto

demostrou interesse pela música logo cedo e iniciou seus estudos musicais na

igreja, aos nove anos substituíra seu professor Baistrocchi, como organista. Em

1823, foi apadrinhado por Antonio Barezzi, um importante comerciante de Busseto, e

se matriculou na escola de música. Aos quinze anos já era assistente de seu

professor Ferdinando Provesi, substituindo-o ao piano quando estava doente, além

de preparar alguns arranjos e compor músicas para a banda da cidade de Busseto.

Em 1832 passou a ter aulas com Vicenzo Lavigna, músico do teatro La Scala, em

Milão, responsável por lhe apresentar o universo das óperas.

Verdi casou-se pela primeira vez com Marguerita Barezzi, filha mais velha de

seu benfeitor Antonio Barezzi. Com ela teve dois filhos, mas entre 1838 e 1840

sofreu grandes perdas, enfrentou a morte das duas crianças e de sua esposa.

Após a estreia de Nabucco, em 1842, o compositor viu sua popularidade

musical ascender. O público sentiu-se representado no drama que retrata a

perseguição aos judeus. A Itália, machucada, encontrou nesta ópera um hino para

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embalar o processo de unificação. Diante desse sucesso e dos intensos conflitos

armados, que se espalhavam pela península, foi procurado por Giuseppe Mazzini,

que lhe entregou uma poesia a ser musicada:

“Que refulja sempre o aço, Enquanto houver um pedaço Da Itália por libertar; Para ser Itália una Dos Alpes até o mar. Viva a Itália! Acabou A miséria, a opressão... Soa o clarim de ardor O coração estremece. Deus com o povo combate A esperança dos irredentos, Que no peito não se bate, A nova Roma aparece!”

17

O músico fez o que lhe foi pedido e, ao devolver o texto a Mazzini, escreveu:

“Possa este hino, entre o troar dos canhões, ser cantado brevemente nas planícies

lombardas”. Seu engajamento político e nacionalismo fortaleceram-se a partir de sua

amizade com Francesco Maria Piave (1810 – 1876), militante da unificação. Anos

mais tarde, Piave tornar-se-ia amigo e principal libretista de Verdi.

Assim como grande parte dos italianos do século XIX, Verdi era favorável ao

processo de unificação de seu país, acreditando que este poderia, assim, tornar-se

livre das amarras da Áustria e da França. Julian Budden traz uma passagem sobre

isso em seu livro “Verdi”, de 1986:

“In 1848 verdi had been a republican. Now he had a more practical reason for favouring a united Italy under the Kingdom of Sardinia, which had just such a treaty with England. In February 1856 through the agency of Cavour, soon to be his political hero, he was awarded the order of S. Maurizio and S. Lazzari” (BUDDEN, 1986).

Desta forma, percebe-se que Giuseppe não teve participação ativa no processo

de Unificação, não estando ligado diretamente às questões políticas, mas atuou na

produção de um elemento simbólico importante: a ópera. Esta foi apropriada, no

Risorgimento, para a construção de uma identidade.

17

WERFEL, Franz. Verdi: o romance da ópera. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1942 (pg. 174)

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1.3 Burguesia: brigando por uma definição

A palavra burguesia, ao longo do período, foi alvo de muitas discussões, afinal

englobava um grupo muito heterogêneo: todos aqueles que não fossem operários,

porém excluía os grandes capitalistas, que frequentemente flertavam com as

aristocracias locais.

Derivada do latim “burgus”, referia-se, incialmente, ao grupo de pequenos

comerciantes que, ao final da Idade Média, contribuíram com o renascimento

comercial das cidades. Na França, outra expressão derivada, “bourgeois”,

relacionava-se às condições socioeconômicas e culturais do Terceiro Estado (GAY,

1999)18. Pode-se dizer que industriais, comerciantes, advogados, médicos,

proprietários que viviam das rendas do aluguel de suas propriedades e poucos

funcionários públicos de alto escalão constituíam esta classe social. Dentre esses

membros, alguns gozavam de grande prestígio na sociedade, fosse pelo dinheiro ou

pela linhagem que possuíam. Diante disso, as negociações matrimoniais eram

extremamente relevantes, e era fundamental unir estes dois elementos para a

constituição de uma diplomacia.

Os burgueses, apesar de suas diferenças internas, tinham uma característica

em comum, segundo Peter Gay, “buscavam educar seus filhos, decorar suas casas

e deixar posses a seus herdeiros” (GAY, 1999). Com seus ganhos, proviam a arte,

na busca de uma cultura burguesa, aparentemente caracterizada pela erudição. O

mecenato sustentava teatros, óperas, museus, orquestras e galerias de arte, o que

não quer dizer que a opinião sobre a cultura refinada era unânime, reflexo das

diferenças internas da classe. Sobre isso, Peter Gay assinala:

“Poucos lares burgueses estariam completos se não tivessem quadros nas paredes, música na sala de estar, clássicos nas estantes de portas envidraçadas. Os burgueses, homens e mulheres, cantavam, desenhavam, frequentavam assiduamente concertos e apresentações literárias, recitavam e até mesmo escreviam poesias.” (GAY, 1988).

18

Peter Gay em A Experiência Burguesa, da Rainha Vitória a Freud, no volume a educação dos

sentidos, faz uma intensa e necessária discussão a respeito da burguesia, seu surgimento e sua

consolidação. Discute ainda a definição do século XIX como o século burguês, alertando os

problemas das generalizações e do discurso vencedor desta classe social. Tais elementos não foram

aprofundados pois esta pesquisa pretende discutir a contraditória percepção da ópera no século XIX.

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25

A experiência burguesa foi gratificante em diversos aspectos, possibilitou a

expansão econômica, a atuação nas turbulências políticas do momento, o progresso

da mente humana, a participação dos enormes benefícios do capitalismo. Mas o

século XIX, foi para os burgueses, um período de incertezas:

“As incertezas que assolavam os burgueses do século XIX, e que eles

lançaram aos historiadores, não se restringiam as questões angustiantes relativas às suas obrigações para com seus inferiores ou a sua reputação entre poetas e pintores. Mais do que qualquer século anterior, essa foi uma época de esperança sem precedentes e ansiedades desconhecidas.” (GAY, 1999)

Diante destas características, é possível perceber relações entre a ascensão

da burguesia enquanto classe e as obras do romantismo. Os dramas morais,

embasados na manutenção das aparências, eram assuntos recorrentes. Percebe-se

ainda, que as questões nacionalistas também estiveram presentes nestas obras.

1.4 O Romantismo como expressão burguesa

Pode-se perceber que a política e artes foram assuntos que caminharam de

mãos dadas ao longo do século XIX. As agitações sociais e instabilidades

governamentais se fizeram presentes em todas as esferas cotidianas. França,

Alemanha e Itália passaram por um momento de intensa produção artística e

intelectual.

No campo das artes, a Europa vivenciou um movimento chamado

Romantismo19, que repercutiu na literatura, teatro, artes plásticas e na música.

Tradicionalmente, era caracterizado pela elevação das sensibilidades e da

subjetividade, uma forma de oposição ao racionalismo proposto anos antes pelos

iluministas. O sentimentalismo e o drama estavam presentes nas linhas dos

19

“O período do romantismo é fruto de dois grandes acontecimentos da história da humanidade, ou

seja, a Revolução Francesa e suas derivações, e a Revolução Industrial. As duas revoluções

geraram e provocaram novos processos , desencadeando forças que resultaram na formação da

sociedade moderna, moldado em grande parte seus ideais sociais. [...]As artes recebem os novos

elementos gerados em tais circunstâncias, incorporando-os em suas várias formas de expressão, já

anteriormente preparados com revolução intelectual dos séculos XVII e XVIII.” (GUINSBURG, 2002)

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romances literários, que exaltavam o amor platônico e o cotidiano burguês. Ivo

Supicic traz uma observação acera disso no livro História da Música Ocidental:

“Na época do romantismo, o compositor, liberto dos entraves que lhe eram postos no passado, passou a contar com o juízo prévio favorável de um público neófito, que o via quase sempre como um ser extraordinário, especialmente dotado. Começou a desenvolver-se o culto do gênio.” (SUPCIC, 1997)

20

Os espetáculos teatrais resgatavam a sensibilidade, tocavam o imaginário dos

sonhos e das insatisfações de diversas pessoas. O público, que até então estava

restrito ao universo das cortes, torna-se numeroso e formado, essencialmente, por

burgueses. Há uma grande expansão cultural, que perpassa pelo teatro, pela

literatura e pela música.

O movimento romântico foi impulsionado pela situação política caótica

vivenciada pelo velho mundo. Fruto de um século caracterizado por intensas

mudanças nas questões de identidade nacional e também de desenvolvimento do

capitalismo editorial21, o romance romântico proporcionou “meios técnicos para re-

presentar o tipo de comunidade imaginada correspondente à nação” (ANDERSON,

2008. Isso permitiu a um grande número de pessoas refletirem sobre si mesmas,

sobre suas vidas, costumes, valores e a forma como se relacionavam com os

demais membros da sociedade. Antigas problemáticas, como a imagem das

cortesãs e romances envolvendo diferentes classes sociais foram amplamente

explorados.

Na França o sentimentalismo misturou-se com os dramas sociais, tal como

retrata Victor Hugo na obra “Os Miseráveis”. Muitos autores românticos franceses

destacaram-se, Gustav Flaubert, com “Madame Bovary”, Charles Baudelaire, que

publicou “As flores do mal”, Alexandre Dumas, escritor de “Os três mosqueteiros” e

ainda Alexandre Dumas Filho, responsável por uma das grandes obras do teatro

20

SUPICIC, Ivo. Situação sócio histórica da música no século XIX. In: MASSIN, Jean &Brigitte, 1997

p. 662

21 Em “Comunidades Imaginadas”, de Benedict Anderson, o autor observa que “é por meio do

material impresso que a nação se converte numa comunidade sólida[...]”.ANDERSON, Benedict.

Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo:

Companhia das Letras, 2008.

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romântico22 “A dama das camélias”, no qual traz a história de uma cortesã que vive

um amor impossível por um jovem burguês. Este texto se transformou em uma peça

de teatro que influenciou Giuseppe Verdi para a composição de La Traviata.

O Romantismo consolidou-se de formas diferentes, de acordo com o país. Na

Alemanha, trouxe à tona reflexões sobre as contradições da vida e rejeitou o

racionalismo radical. Johann Wolfgang von Goethe é um bom exemplo do

romantismo alemão, sobretudo com sua obra “Fausto”, que retrata um homem sábio,

mas insatisfeito, e para alcançar as suas ambições pessoais e amorosas, faz um

pacto com “Mefistófeles”, o demônio.

Mas enquanto em alguns países o romantismo voltava-se para o “mal do

século23” , os artistas italianos preocupavam-se com o processo de unificação e com

a formação de uma nova sociedade. A falta de um idioma oficial nacional,

certamente foi o grande entrave para os romancistas do século XIX, afinal a Itália

era um grande território segregado, formado por regiões onde eram falados

diferentes dialetos. Justamente por essa razão, pouco se fala em uma literatura

italiana no século XIX. Sobre isso, Antônio Gramsci24 faz alguns apontamentos

importantes “ Por que a literatura italiana não é popular na Itália? [...] Existiu ou não

um romantismo italiano?” Tais questionamentos são fundamentais para

compreender os problemas que envolvem uma unidade linguística, dificultando

portanto, uma literatura popular. Além disso, este mesmo autor retoma a

impopularidade do “Risorgimento”, ou seja, o movimento que reúne as condições

históricas necessárias para a unificação. Tudo isso estaria atrelado às problemáticas

linguísticas e a dúvida sobre a sede do papado, seria este um fato para progresso

ou retrocesso?

22

A dama das Camélias, romance escrito por Alexandre Dumas Filho, transformou-se em peça de

teatro e obteve grande sucesso, foi adaptado diversas vezes para o cinema. É, ainda nos dias de

hoje, tema de vários artigos e livros que discutem o papel da cortesã no século XIX, a exemplo de

Susan Griffin em sua obra “O livro das cortesãs: um catálogo das suas virtudes.”

23 Na obra “O Romantismo”, organizada por J. Guinsburg, capítulo “por e ficção do romantismo”, é

caracterizado como a valorização do horror, do terror, da presença poética do sentimentalismo e

melancolia. GUINSBURG, Jaco (org). O romantismo. São Paulo: Perspectiva, 2005.

24 Cadernos do Cárcere, tomo 3 e principalmente tomo 5, no qual discute a popularidade de literatura

e do teatro italiano no século XIX.

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Se por um lado a literatura não agradava aos italianos, a ópera, por sua vez

ocupa um espaço especial em toda a Península e consolida-se como verdadeira

expressão do romantismo italiano, capaz de romper as fronteiras regionais, sociais e

linguísticas.

Ainda que o capitalismo editorial tivesse sido responsável por proezas

extraordinárias, sobretudo na veiculação das obras literárias, não foi capaz de

unificar uma língua, muito menos uma nação. As questões linguísticas não

conseguiram atingir o imaginário do povo italiano, possibilitando uma identidade

nacional, então o romantismo italiano adquiriu características próprias. Este

movimento cultural fortaleceu-se através de outra manifestação artística, que

alcançou o seu auge justamente no século XIX: a ópera, que compreende uma

forma de performance onde cantores encenam um drama cantando, acompanhados

por uma orquestra, constituída por libreto e música. Este espetáculo ressaltava o

sentimentalismo, as questões políticas, a vida privada, o cotidiano e os costumes,

mas com muita cautela, pois a censura era rígida e os libretos com temas

“espinhosos” eram frequentemente alterados e adaptados pelos censores. Antes

mesmo do libreto começar a ser produzido, uma sinopse deveria ser enviada aos

censórios para avaliação. A tolerância era diferente de acordo com a região, na

Áustria, por exemplo, era maior que nos Estados Papais. Temas bíblicos deveriam

ser cuidadosamente trabalhados, os relacionados à história da Igreja eram proibidos,

assim como as “comédias que ofendiam a moral e os bons costumes” como assinala

Lauro Machado Coelho:

“O Risorgimento era o tema central dos artistas na primeira metade do século XIX. Estava presente na literatura - num romance como as Confessioni di um italiano, de Ipolito Nievo, por exemplo -; nas salas de aula das universidades, particularmente a de Milão; nos artigos de um crítico como Felice Romani para a Gazetta Piemontese; nos cafés literários e nas salas públicas de leitura, que viraram moda na década de 1840; de forma direta ou indireta, nos libretos das óperas, espetáculo apreciado por todas as camadas sociais. Preocupação fundamental dos artistas, justamente, era de se expressar de forma acessível, visando a derrubar barreiras entre os intelectuais e o público em geral, que em outras épocas vira-se afastado de manifestações literárias muito sofisticadas. Nesse sentido, nenhum outro gênero artístico foi mais eficiente do que a ópera. [...] a ópera desempenha papel de capital importância, pois espelha de forma muito eloquente as aspirações e ideais de um povo e, mais do que isso, a sua consciência de pertencer a uma mesma comunidade” (COELHO, 2002).

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Mas as óperas eram por excelência, manifestações artísticas burguesas. Assim

como muitos grupos e sociedades secretas que se formaram para a discussão das

questões nacionalistas. Desta forma, o nacionalismo italiano foi muito restrito a

pequenos círculos das elites político-culturais, o que dificultou ainda mais a

formação de uma unidade politica, cultural e linguística. Antônio Gramsci cita:

“Polêmicas surgidas no período de formação da nação italiana e da luta pela unidade política e territorial e que continuaram e continuam a envolver de modo obsessivo pelo menos uma parte dos intelectuais italianos. Alguns destes problemas, como o da língua, são muito antigos. Remetem às primeiras épocas da formação de uma unidade cultural italiana. Nasceram do confronto entre as condições gerais da Itália e as de outros países, particularmente da França, ou do reflexo de condições peculiares italianas, como o fato de que a península foi a sede do Império Romano e tornou-se a sede do maior centro da religião cristã. O conjunto destes problemas é o reflexo da difícil elaboração de uma nação italiana de tipo moderno, obstaculizada por condições de equilíbrio de forças internas e internacionais”. (GRAMSCI, 2006).

Para ultrapassar as barreiras regionais e sociais, que se apresentavam como

entraves para a formação de uma unidade, é possível perceber que as óperas de

Giuseppe Verdi utilizam um artifício extremamente relevante para sua aceitação em

todo o território nacional. Foram escritas, mesclando elementos da língua oficial e

dialetos, falados nas diferentes regiões do país25.

25

Discussão presente em no capítulo 3, “Língua e Identidade no inicio da Itália Moderna”. BURKE,

Peter; PORTER, Roy (org). História social da linguagem. São Paulo: Unesp, 1997.

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2. Segundo ato: La Traviata, entre o céu e o inferno.

Certamente o compositor de óperas mais popular da Itália é Giuseppe Verdi.

Tal fama se deve à sua capacidade de compor dramas tensos e heróicos, capazes

de despertar o interesse do grande público. La Traviata, entretanto, não teve

sucesso imediato. No ano de sua estreia, em 1853 foi um grande fiasco, mas um

anos depois foi reapresentada e conseguiu grande sucesso. As possíveis razões

para essa diferença na recepção merecem ser estudadas.

2.1 Problemas técnicos

Veneza, seis de março de 1853, Teatro La Fenice. Eis o domingo de estreia

de “La Traviata”. A expectativa era grande, pois, a esta altura, Giuseppe Verdi já

contava com certo prestígio entre os compositores italianos, afinal, anos antes , em

1842, a ópera Nabuco havia conquistado um sucesso estrondoso. Na plateia, como

de costume, além daqueles que buscavam diversão, estavam presentes cronistas,

céticos e admiradores do trabalho do compositor.

Charles Osborne, no livro Vida e Ópera, levanta algumas informações

relevantes sobre o contexto em que La Traviata foi composta. Verdi teve pouco

tempo para escrevê-la pois o trabalho na sua ópera anterior, Il Trovatore, havia

consumido grande parte de seu tempo. Sendo assim, começou a orquestração da

La Traviata apenas no dia 21 de fevereiro, poucos dias antes da estreia. A esta

altura, Verdi mostrava-se preocupado com os cantores que interpretariam as

personagens:

“Verdi estava preocupado com a possibilidade da companhia veneziana não

ser boa o bastante para fazer justiça à ópera, por isso uma das tarefas de Piave durante sua visita foi tentar convencê-lo de que Fanny Salvini - Donatelli, a prima donna do Fenice naquela temporada, daria uma Violeta adequada. Verdi insistia num soprano que fosse jovem, com boa figura e capaz de transmitir paixão.” (OSBORNE, 1989)

A preocupação de Verdi parecia ter fundamento. A estreia foi, musicalmente,

desastrosa. De acordo com Charles Osborne, o primeiro ato não foi tão ruim, “o

estrago começou no segundo ato, quando o tenor e o barítono se apresentaram de

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forma execrável” (OSBORNE, 1989 p. 136). Além disso, a manutenção de Salvini –

Donatelli como Violeta rendeu boas gargalhadas do público, sobretudo no final,

quando sucumbiu à tuberculose.

Antes mesmo de ler as críticas que seriam publicadas nos jornais sobre a

estreia de La Traviata, Giuseppe Verdi espalhou alguns bilhetes no dia 7 de março.

Tais escritos estão reunidos em “I copialettere”, livro publicado em 1913, em

homenagem seu centenário26. O primeiro deles, destinado a Emmanuele Muzio, seu

amigo e compositor:

“Caro Emmanuele (Muzio,)

La Traviata, ieri sera, fiasco. La colpa è mia o dei cantante? ... Il tempo giudicherà”

A Giovanni Ricordi, violinista, Verdi escreveu:

“Caro Ricordi,

Sono dolenti doverti dar uma triste notizia, ma nos posso nasconderti la verità, La Traviata há fato fiasco. Non indaguiamo le cause. La storia è così. Addio, addio.

Partirò dopodimani, scrivire a Busseto.”

As críticas a respeito da qualidade musical são antigas. Definir se uma música

é boa ou ruim pode relacionar-se com sua riqueza estrutural, virtuosismo e também

por sua aceitação pela sociedade. As opiniões sobre a decadência do gosto musical

também não são recentes, nem mesmo a “música séria”, comumente qualificada

como “clássica”27.

A obra de Theodor Adorno sobre a crítica musical é relevante, ainda que

volte-se para a questão da indústria cultural, traz algumas informações importantes

que podem ser aplicadas ao pensamento do século XIX, sobretudo por citar algumas

características do romantismo:

26

I Copialettere di Giuseppe Verdi, publicado em 10 de outubro de 1913, em comemoração ao

centenário do nascimento do compositor. O livro traz os escritos de Verdi e para ele, cartas e bilhetes

trocados com seus amigos. Alguns, são apresentados com a própria letra do compositor, outros

transcritos. Foi integralmente digitalizado em 2009 pela Universidade de Toronto disponível em

https://archive.org/stream/icopialettere00verd#page/n3/mode/2up .

27 Conceitos desenvolvidos em ADORNO, Theodor W. O fetichismo da música e a regrssão da

audiçãp. In:Textos escolhidos. São Paulo: Nova cultural, 1999.

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32

“As obras que sucumbem ao fetichismo e se transformam em bens de cultura sofrem, mediante este processo, alterações constitutivas. Tornam-se depravadas. [...] O processo de coisificação atinge a sua própria estrutura interna. Tais obras transformam-se em um conglomerado de ideias, de “achados”, que são inculcados aos ouvintes através de amplificações e repetições contínuas, sem que a organização do conjunto possa exercer a mínima influência contrária. O valor de recordação das partes dissociadas possui na própria grande música uma forma prévia ou antecipada nas técnicas de composição do romantismo tardio, sobretudo na wagneriana. Quanto mais coisificada for a música, tanto mais romântica soará aos ouvidos alienados.” (ADRONO, 1963)

O periódico jornalístico “L’Itália Musicale”, intitulava-se como o “Jornal do

teatro, literatura, belas artes e variedades”, era publicado duas vezes na semana, às

quartas e aos sábados. Comercializado na Itália e na Áustria pela Associação de

Milão, o jornal trazia as principais informações sobre as apresentações artísticas da

região. Além das informações sobre os espetáculos, contava com um grupo de

cronistas e jornalistas que publicavam resenhas sobre as estreias e dicas de

entretenimento, não era porém, o principal periódico musical que circulava. Os

escritos de Theodor Adorno são coerentes com as críticas publicadas neste

periódico. No dia 23 de março de 1853 a crônica abaixo estampou algumas páginas

deste jornal:

“Cena única

A ação é em Veneza no Café Florian

Um mecenas de cabelos grisalhos sentado à mesa.

Um jovem e elegante senhor voltando rapidamente do teatro de Fenice, entra em um café, seguido por um segundo e um terceiro, pouco a pouco o café se enche e tem início uma conversa geral, o debate fica animado.

- Portanto?

- Portanto, não veio sequer esta noite à ópera?

- Eu não, espero que o público fique calmo e que os jornalistas tenham bom senso, que as traqueias dos cantores precisam de repouso, que esta música, em resumo, possa ser julgada pelo que é e não pelo que parece, então... É provável que eu vá também.

- Mas você é de uma obstinação fabulosa.

- Eu era jovem, meu caro, quando Rossini era o maior na Itália, era moço quando Bellini estava em evidência, era amigo de Donizetti... Estou acostumado com a sonoridade do canto de Rubini e à voz de Donzelli, ao prodígio da Malibran... Mas veja bem, sempre tenho tempo para ir à ópera.

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33

- As pessoas não vêem que os seus tempos não são bons como àqueles que nasceram conosco. O jovem despreza o velho e o velho despreza o jovem, e desta forma, não é possível se entender mais.

- Mas aqui não se trata nem de jovens e nem de velhos, se trata de perder o critério e o bom gosto.”

28

Este trecho mostra que há uma recepção bastante negativa à composição de

Giuseppe Verdi. Entre as críticas, está o fato da música de Verdi não estar a altura

de compositores como Rossini e Donizetti, que atingiram seu apogeu no início do

século XIX. Seria portanto, um desprezo ao passado glorioso da ópera pois sua obra

mais recente perdera o “critério e o bom gosto”.

Na crônica, entre os que discutiam, um levanta uma posição, favorável à

Verdi, atribuindo o fracasso da estreia à péssima escolha dos cantores, que não

tinham “traqueia” suficiente para encarar tal desafio. Ainda que irônico, ressalta que

a composição é boa, e espera que ela possa ser analisada pelos jornalistas e pelo

público, por sua qualidade real e não pela desastrosa estreia.

O fracasso musical de La Traviata é discutido por alguns autores que se

dedicaram ao estudo da vida do compositor, Charles Osborne em Verdi: Vida e

Ópera ressalta que a “deficiência dos cantores parece ter impedido [o público] de

desfrutar tanto do drama quanto da música” (1989, p. 136). Este autor traz ainda

uma carta de Felice Varesi, barítono que interpretou Germont na estreia, queixando-

se a um amigo do papel que lhe havia sido oferecido: “não quero me erigir em juiz

dos méritos de La Traviata, mas certamente afirmo que Verdi não conseguiu

explorar os dons dos artistas à sua disposição” (p.137)

Julian Budden, no livro Verdi também destaca os problemas com os cantores,

focando-se numa defesa à Salvini – Donatelli:

“Also it is not true that Fanny Salvini – Donatelli disapointed. An old-fashioned florid soprano, she distinguished herself nobly in the first act and won considerable applause; the rest of the opera however gave no scope for her particular skills, and the spectacle of so robust a soprano apparently dying of consumption carried little conviction.” (BUDDEN, 2008 p.263)

28

Fragmento. Tradução livre da autora, para original, observar anexo B

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34

2.2 Problemas morais

Giuseppe Verdi reconheceu o fracasso da estreia de La Traviata, mas não

demonstrou interesse em saber as causas disso. Em 12 de março, os

correspondentes do “L’Itália Musicale” escrevem uma crítica sobre “La Traviata”

“A nova ópera de G. Verdi estreou em 6 de março, domingo, no teatro La Fenice. Fiel a minha promessa, aqui estão algumas observações. Piave, com sua Traviata não parece ter dado ao genial Verdi o impulso mais afortunado, puro, de todas as variadas e diversas paixões pelas quais o coração humano se movimenta, qualquer uma dessas podem ser despertadas em seu libreto. Não é bom, nem natural o andamento do drama, mas não faltam assuntos variados e diversos, a variedade de acidentes e paixões, romances e festas, alegrias, ódio e tudo mais que poderia ascender à imaginação do maestro. Então não torno elogios ao poeta, bem como para a aventura que se encontra neste libreto, afinal, A Dama das Camélias de Alexandre Dumas, o filho, que a desenhou, praticou algumas supressões e ampliações, o que deu originou uma série de inconsistências.

Os argumentos nem convém falar, são muito conhecidos; eles pintam as fantasias de um mundo pouco moral, podendo uma mulher, em cena, que vive somente pelos caprichos amorosos dos ricos e tenta depois, esquecer dos outros e de si mesma, as aberrações de sua escandalosa vida passada são sufocadas pelo amor que apagou as cicatrizes de seus dias.

Quanto a poesia, nós temos um argumento de quão deplorável é a degradação que ela reduziu os nossos dias . Que se volte a ter um belo estilo de elegância, de harmonia dos novos versos de Piave, eu não farei mais do que citar poucas linhas para não me aproximar do pior, estão aqui apenas as dez primeiras.”

29

É possível observar que a primeira crítica lançada à nova ópera de Verdi

preocupa-se com o seu libreto. Não foram citadas, nas primeiras linhas nenhuma

observação referente ao grupo de cantores, aos protagonistas ou à produção. O

foco é, inicialmente, a indignação com uma história de amor que, certamente,

contradizia os costumes morais do século XIX. O incômodo não se limitou ao

espetáculo musical, mas se estende ao autor da obra original, Alexandre Dumas

Filho, que, segundo jornal, também não teria escrito um bom romance.

Vale ressaltar que era uma tradição das óperas italianas apropriar-se de

temas épicos ou mitológicos, com personagens heroicos e momentos históricos do

passado, como é o caso de Aida e a própria Nabuco. Nesse sentido, “La Traviata”

29

Fragmento. Tradução livre da autora, observar anexo B para a versão original.

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trouxe uma inovação, a escandalosa peça de teatro “A Dama das Camélias” havia

estreado poucos meses antes, em Paris, no ano de 1852, portanto o seu tema era

contemporâneo, ainda que tivesse sido representada com trajes do século anterior.

A escolha do compositor por tal tema parece ter uma justificativa. Verdi

sentiu-se atraído por ele quando assistiu à peça na França, acompanhado de sua

esposa. Giuseppina Strepponi era cantora lírica, o que a tornava automaticamente

uma mulher inferior para o casamento, além disso, teve uma vida pessoal agitada

que lhe renderam três filhos ilegítimos. Assim como Dumas, em sua vida pessoal,

Verdi também conhecia as dificuldades de viver um amor condenado pela

moralidade da sociedade.

Os comentários sobre a desrespeitosa ópera de Verdi não se limitaram à

semana posterior de sua estreia. Na crônica do dia 23 de março, já apresentada

anteriormente, o mesmo jornal apresentou uma síntese das opiniões que corriam por

todos os cantos da Itália. O texto traz uma possível conversa entre alguns homens

que se reuniram em um café após o espetáculo.

“- E de que força!30

Ele diz que o autor deveria ser indenizado pelo escândalo e as risadas resultantes da estreia. Em suma, de acordo com ele, nesta Traviata, o público, se não fosse proibido pelas leis, deveria jogar pedras, porque os cantores não sabem cantar. (eu sou sempre aquilo que você diz) que a notável orquestra não chegou a ser compreendida, que a crítica leva 5% dos lucros e não sabe o que fazer para encontrar frases notáveis.

- É uma obra prima da composição. Uma coisa gigantesca, um enigma complicado para ser compreendido apenas com a primeira crítica afiada. Resumindo uma irmã de Semiramide, do Barbeiro, Norma, Beatrice...

[...]

- Eu já disse, que Traviata é uma obra prima e deve derramar lágrimas de remorso, aqueles que não a entenderam, aplaudiram e aclamaram.

- Quanto a mim, resta derramar lágrimas por ter jogado fora quatro libras para ouvir música que, certamente, não vale o preço do ingresso.

- Então, não te parece divina e nem perfeita como o autor que descrevi no outro artigo?

- Eu confesso que não senti música, nem o trivial, muito menos o que inspirou esta Traviata.

30

A crônica descrita tem início com a publicação de uma Crítica negativa à Traviata, publicada pela

“Gazzetta Ufiziale di Venezia”, uma das principais e mais reconhecidas publicações do século XIX.

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- Os exageros habituais, ou Deus ou o Inferno!

- Digo que não é nem uma nem outra coisa. Porque se fosse infernal, ao menos seria alguma coisa, mas... Nem frio e nem quente, é musica chatíssima, está fadada ao fracasso. Não vou nem entrar na questão da arte, não há nada a declarar, e eu te desafio a refutar! Eu estou “entediado” dessa “arte” que não tem mais imaginação e nem tem a intenção de ser acadêmica ou filosófica e tentar traduzir situações imputáveis e o fato de ser carregada da verdade de destruir a fantasia e os impulsos da imaginação.

[...]

- Senhores, não entendo como podem falar coisas tão ferozes sobre Verdi. Entendo que o que falam não diz respeito nem a Nabucco e nem a Ernani, mas esta tem o seu valor e, assim como as outras, percorrerá a Itália e Europa e os dois mundos. Entretanto, ninguém pode negar que ele possui muitos méritos dramáticos e o livro não poderia ter sido melhor interpretado.

- Caro, sem saber, fez uma crítica feroz da música, porque ao interpretar um livro péssimo cheio de absurdos e feito, apesar de todas as leis do bom senso e bom gosto, não é preciso nem uma música ruim ou pegajosa.

- Se todas as músicas fossem julgadas pelos valores de seus livros, deveríamos lançar às chamas todas as obras de Rossini, que de livros péssimos, escreveu música divina.

[...]

- Não me custa nada perceber que de um livro ruim é possível fazer boa música, mas devo fazer uma observação.

-Qual?

- Que o mérito de um melodrama não consiste apenas nos versos ou no estilo.

- Isso é verdade

-Mas na grandeza do assunto, na verdade das personagens, na força das paixões e no caráter das situações.”

31

A análise deste documento permite perceber que a recepção da ópera dividia

as opiniões, entretanto as críticas negativas se sobrepunham às positivas. Os

comentários levavam em conta a qualidade dos cantores, escrita musical e,

principalmente, enredo.

O século XIX, período em que foram escritos o romance de Dumas Filho e a

ópera de Verdi, é um período contraditório, de incertezas e angústias. Mesmo que

caracterizado pelo progresso e pela industrialização, desperta novas sensibilidades,

31

Fragmento. Tradução livre da autora. Texto completo no anexo B

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novas maneiras de enfrentar a realidade. Marshall Berman em seu livro “Tudo que é

sólido desmancha no ar” descreve este século como um “mundo que não chega a

ser moderno por inteiro” (BERMAN, 1986. P.16). Afinal, vive-se em uma era

revolucionária, com uma grande explosão de agitações políticas e sociais, mas

também as questões espirituais e materiais não foram deixadas de lado. Para este

autor, a dicotomia da modernidade é:

“[...]encontrar-se num ambiente que promete aventura, poder, alegria,

crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor –

mas o mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que

sabemos, tudo o que somos. A experiência ambiental da modernidade

anula todas a fronteiras geográficas e raciais de classe e nacionalidade, de

religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a

espécie humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de

desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente

desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e

angústia.32

” (BERMAN, 1986)

Tal definição de modernidade cria condições para que possamos

compreender melhor algumas das críticas negativas à Traviata de Giuseppe Verdi.

A primeira crítica apresentada pelo “L’Itália Musicale” focam-se na questão da

moralidade: “os argumentos nem convém falar, são muito conhecidos; eles pintam

as fantasias de um mundo pouco moral”. Tal frase, ainda que pequena possibilita

uma grande discussão sobre a moral burguesa do século XIX. Michel Foucault em

seu livro “História da sexualidade: o uso dos prazeres” define a moral como:

[...] um conjunto de valores e regras de ação propostas aos indivíduos e

aos grupos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos, como podem ser a família, as instituições educativas, as Igrejas etc. Acontece dessas regras e valores serem bem explicitamente formuladas em uma doutrina coerente e em um ensinamento explícito. Mas acontece também delas serem transmitidas de maneira difusa e, longe de formarem um conjunto sistemático, constituíram um jogo complexo de elementos que se compensam, se corrigem, se anulam em certos pontos, permitindo, assim, compromissos ou escapatórias. Com essas reservas pode-se chamar

32

Assim como Marshall Berman, discute as incertezas da modernidade, como citado no primeiro

capítulo deste trabalho, GAY, Peter. A experiência burguesa da Rainha Vitoria a Freud: A educação

dos sentidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

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código moral esse conjunto prescritivo. Porém, por moral entende-se igualmente o comportamento real dos indivíduos em relação às regras e valores que lhe são propostos: designa-se assim, a maneira pela qual eles se submetem mais ou menos completamente a um princípio de conduta; pela qual obedecem ou resistem a uma interdição ou a uma prescrição; pela qual eles respeitam ou negligenciam um conjunto de valores[...] (FOUCAULT, 2012)

Sendo assim, a moral burguesa é constituída de valores, que definiram-se

principalmente após a Revolução Francesa33, impostos aos integrantes dessa classe

social. Estes valores influenciam diretamente a maneira como a família é vista, entre

os séculos XVIII e XIX, afinal esta era um bem que deveria se preservado.

O espaço privado consolida-se como o espaço da família. Tudo o que pode

arranhar ou prejudicar a honra familiar deve ser mantido em segredo, com o intuito

de preservar a instituição familiar, intocável. Justamente por isso, qualquer tipo de

conflito deve ser resolvido dentro do espaço doméstico. Neste modelo, o patriarca é

triunfante, é quem dá o sobrenome, assume o papel de provedor e garante o

sustento familiar. Sua esposa normalmente dedica-se ao lar, administram seus

empregados e cuidam dos filhos, heroínas domésticas que são responsáveis por

manter o equilíbrio familiar.

A constituição da família era, portanto, fundamental. Até a primeira metade do

século XIX os casamentos são feitos, fundamentalmente, para garantir alianças, daí

a elevada quantidade de casamentos arranjados. Entretanto, na segunda metade do

século, aumenta o número de pessoas que deseja um matrimônio capaz de formar

alianças e vínculos amorosos, mas isso nem sempre acontecia. Esse descompasso

entre amor e casamento se torna um dos temas preferidos dos autores românticos.

No espaço doméstico é comum também a exaltação da cultura, obras de arte

estavam presentes nas residências burguesas, bem como o piano, que merecia um

lugar de destaque, mesmo que ninguém tivesse conhecimento de música. Livros

diversos recheavam as grandes estantes dos escritórios. Concertos e teatros

33

PERROT, Michelle. História da vida privada: Da revolução francesa à primeira guerra. São Paulo:

Companhia das Letras, 2009 p. 14 e 15. Destaca a ruptura causada pela Revolução Francesa na

esfera privada, na vida familiar e nos costumes.

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constituíram uma forma comum de entretenimento, por isso as salas de espetáculo

ampliaram-se e tornaram-se mais numerosas.

Todos estes elementos constituem aspectos da moral burguesa do século

XIX. Ainda que a burguesia fosse heterogênea, tais características estavam

presentes na maioria dos lares.

As transgressões tornaram-se comuns no seio da família burguesa, isso foi

aliás, o ponto crucial para que esta instituição demonstrasse a sua fragilidade. As

palavras de Michelle Perrot são convenientes e destacam este problema:

“Totalitária, ela [a família] pretende impor suas finalidades a seus membros. Mas estes frequentemente, e cada vez mais, se rebelam. Daí que, entre gerações, entre os sexos, entre indivíduos dispostos a escolher seus destinos, surjam tensões que alimentam seus segredos, conflitos que levam à sua eclosão. O que se acentua tanto mais na medida em que ela recorre com maior frequência à justiça como árbitro de suas divergências, assim se submetendo insidiosamente ao controle externo.” (PERROT, 2009 p. 78)

La Traviata, trouxe à tona, através da adaptação do texto de Dumas Filho,

cenas comuns, que se repetiam com frequência no cotidiano das famílias do século

XIX, como o próprio jornal descreveu, apontou o quão “deplorável é a degradação

que ela reduziu os nossos dias”. Enxergar nas cenas de um espetáculo a

representação de alguns dos segredos familiares, certamente não agradou ao

público, como outro trecho reafirma “Eu estou “entediado” dessa “arte” que não tem

mais imaginação e nem tem a intenção de ser acadêmica ou filosófica e tentar

traduzir situações imputáveis e o fato de ser carregada da verdade de destruir a

fantasia e os impulsos da imaginação”.

Os elementos presentes em La Traviata são os argumentos clássicos do

romantismo: o embate entre o antigo e o moderno, diante da consciência da

impossibilidade de definir este novo homem, sem confrontá-lo com o seu passado34.

Não foi a primeira e nem a última obra deste movimento artístico a ser duramente

criticada:

“Em síntese, Berchet define a poesia romântica como popular e moderna: popular porque destinada a um público mais amplo, do qual todavia se

34

SQAUROTTI, Giorgio Bárberi (org). Literatura italiana: linha problemas e autores. São Paulo, Nova

Stella, 1989.p. 400 e 401.

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excluem tanto os incultos – impossibilitados de compreender a arte pela sua própria condição – quanto os excessivamente cultos – incapazes de apreciar as novidades porque enriquecidos por uma erudição obsoleta e árida; moderna porque deve ocupar-se de questões atuais, imitar a natureza a e não os clássicos, com o objetivo de comover e de educar, ou seja, estimular os sentimentos e o espírito moral do homem” (SQUAROTTI, 1989 p. 404)

A discussão da moral burguesa do século XIX nos remonta à descrição de

Marshall Berman sobre os paradoxos da modernidade. A modernização material é

evidente no século XIX, o vapor, a luz do gás, processos políticos, sociais e

econômicos tornaram-se mais complexos. Entretanto, tais elementos estavam em

descompasso com a modernização espiritual, do campo das artes e da

intelectualidade35.

Ao analisar a obra de Baudelaire, Berman levanta pontos importantes sobre a

arte e a beleza em a oposição à “verdade”. Ainda que discorra principalmente sobre

a fotografia e pintura, pode ser associada também a outros tipos de arte, justamente

porque a expressão “verdade”, aparece no jornal L’Itália Musicale. Sendo assim:

“Por que a presença da realidade, ou “verdade”, em uma obra de arte deveria minar ou destruir sua beleza? A resposta imediata, na qual Baudelaire acredita com tanta veemência (ao menos nessa altura) que nem sequer ousa expressá-la com clareza, é que a realidade é intrinsicamente repugnante, vazia não só de beleza, mas de qualquer potencial de beleza[...] A consistente discussão crítica sobre a representação da realidade, levada a efeito por Baudelaire, se vê comprometida por um desprezo acrítico pelas reais pessoas modernas ao seu redor.” (BERMAN, 1986 p.137)

Violeta, que representa a cortesã do século XIX, era uma figura comum, real,

uma mulher ciente de sua vida, despreocupada com sua imagem, mas com

sentimentos. Não era vilã, tampouco uma moça inocente, era uma personagem

verdadeira. Entre os membros da burguesia europeia, as relações com as prostitutas

e também cortesãs, eram comuns. Não era aliás, motivo de segredo na sociedade.

O problema estava na concepção de um envolvimento mais íntimo com essas

35

O autor desenvolve esta ideia através dos escritos de Baudelaire, no capítulo “Baudelaire: o

modernismo nas ruas” do livro “Tudo que é sólido desmancha no ar”.

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mulheres. De modo geral, elas faziam parte do cotidiano do século XIX, mas não

poderiam se aproximar demais das famílias, para que não manchassem sua honra.

Entretanto, Alain Corbain ressalta:

“A prostituição está em expansão em toda a Europa Ocidental. Peter Gay, por sua parte, mostrou quanto a visão de uma moral triunfante combina mal, no século XIX, com a hipocrisia de burgueses que, fascinados pela fuga social e pela suposta instintividade do corpo das moças do povo, frequentam prostitutas, mantêm amantes e se deleitam com literatura erótica” (CORBAIN, 2008 p. 183)

O que se percebe no século XIX é que as grandes transformações ocorreram

no campo da tecnologia e desenvolvimento de ideias. Na vida privada, nas

atividades diárias, não ocorreram mudanças significativas. O moralismo continuou

vigente, sobretudo no caso da embrionária Itália, que muito próxima da religiosidade

católica, buscava elementos para consolidar sua identidade nacional. Os aspectos

religiosos estavam presentes na produção intelectual do século XIX na Península.

As poucas obras de literatura romântica italiana resistiram fortemente aos

questionamentos iluministas e trouxeram e enalteceram a moral cristã.

2.3 Itália: tradições, moral e música.

A famosa frase atribuída à Massimo D’Azeglio “Fizemos a Itália. Agora temos

que fazer os italianos”, nos permite discutir alguns elementos relevantes para a

consolidação de uma tradição para a recém unificada Itália do século XIX. O novo

projeto de país precisa construir imagens que possam orgulhar seu povo, é neste

sentido que Eric Hobsbawn discute sobre a necessidade da invenção das tradições:

“Por tradição inventada entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através de uma repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer uma continuidade com um passado histórico apropriado.” (HOBSBAWN, 2008 p. 9)

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Desta forma, a ópera italiana fornecerá elementos, bem como as obras do

romantismo em outros países, para reforçar as tradições da sociedade. Pode-se

dizer portanto, que a censura, tão presente no cotidiano dos compositores de ópera

do século XIX, cumpriu seu papel, removendo os elementos julgados como

negativos, que não seriam adequados para a formação da nova nação italiana.

No caso da Itália, havia a necessidade de redescobrir um passado mais

glorioso que o presente. O romantismo italiano visava buscar personagens heroicos

e claramente delineados como bons ou maus, na expectativa de que o público, leitor

ou plateia, pudesse se identificar.36 A ópera neste caso, leva vantagem e floresce de

forma excepcional, sobretudo os dramas verdianos, que trazem enredos heroicos,

dramáticos e com impulsos “passionais e morais” (SQUAROTTI, 1989 p. 432), que

garantem a aceitação.

La Traviata, porém, destoa desta fórmula por trazer uma protagonista que se

afasta, justamente da figura de heroína idealizada. A cortesã que ofende os bons

costumes é um exemplo a ser rejeitado e não valorizado. Isso pode explicar o fato

da censura ter sido tão rígida com esta ópera; da adaptação dos figurinos em sua

estreia, simulando um período anterior e finalmente, pela crítica jornalística, que não

poupou o enredo, que pintava um mundo “pouco moral”. Giuseppe Verdi, numa

conversa com seu amigo Cesare de Sanctis que lhe propôs uma produção em

Nápoles, respondeu: “Ah, então você gosta da minha Traviata, aquela pobre

pecadora que teve tão pouca sorte em Veneza. Um dia obrigarei o mundo a fazer-

lhe justiça. Mas não em Nápoles, onde os padres ficariam horrorizados ao verem no

palco o tipo de coisa que eles próprios fazem na calada da noite”. Aparentemente, a

sociedade não se sentiu confortável ao ver seus costumes, suas falhas e erros

representados no teatro. Verdi estava ciente disso.

36

Análise feita a partir da discussão presente no livro SQAUROTTI, Giorgio Bárberi (org). Literatura

italiana: linha problemas e autores. São Paulo, Nova Stella, 1989. Estabelece importantes relações

com a política.

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2.4 A redenção: o sucesso de 1854

Mesmo após o fracasso da estreia, La Traviata continuou despertando a

atenção dos empresários, mas Verdi estava receoso, queria evitar que os problemas

de março de 1853 se repetissem e que o próximo elenco estivesse a sua disposição.

Assim, a ópera, que fracassara no ano anterior, foi reapresentada em 6 de

maio de 1854, com novo elenco, novamente na cidade de Veneza, mas desta vez no

teatro San Benedetto, um pouco menor que o La Fenice. Foi dirigida por Antonio

Gallo e contou com o soprano Maria Spezia no papel de Violeta, Francesco Landi

como Alfredo e Filippo Colleti como Germont. Os mesmos figurinos e cenários do

ano anterior foram aproveitados, apenas os músicos e os cantores foram

substituídos.

Giuseppe Verdi finalmente consentiu a reapresentação e fez apenas alguns

pequenos ajustes na partitura de barítono de Germont, para melhor adequar à voz

do cantor. No demais, a apresentação foi, de certa forma, muito semelhante à do

ano anterior. Surpreendentemente, La Traviata obteve grande sucesso, como pode

se observada na nota publicada pelo jornal L’Itália Musicale :

“Por nossos correspondentes e com nosso relacionamento com a “Gazzeta Ufiziale”, notamos o afortunado sucesso obtido no teatro San Benedetto de La Traviata de Verdi, ópera que teve um destino bem diferente no seu nascimento no palco do La Fenice. A execução foi a grande responsável pelo sucesso. Spezia interpretou a personagem protagonista com tanta inspiração dramática que surpreendeu. Landi foi um grande cantor e ator nas partes de Alfredo, e Colleti nas suas, tais destaques que ninguém poderia imaginar. A orquestra, dirigida por Gallo foi excelente e comemorou diante dos aplausos trovejantes nas introduções da ópera e do terceiro ato. É inútil dizer sobre os aplausos a Spezia, Landi e Colleti: foram calorosos e unânimes do início ao fim da ópera.”

37

Finalmente a ópera de Verdi conquistara o gosto do público. As críticas

publicadas pelos periódicos foram extremamente positivas, o sucesso foi inevitável.

Contradiatoriamente, “a maioria das pessoas que a ouvira alegava tê-la achado

bonita também no ano anterior” (OSBORNE, 1989 p. 139). Diante desta agradável

surpresa, o compositor escreveu uma carta a Cesare de Sanctis:

37

Texto original disponível no anexo B.

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44

“Você devia saber que La Traviata que está sendo encenada no teatro San Benedetto é a mesma, exatamente a mesma ópera encenada no anão passado no Fenice, exceto por uma ou duas transposições de tonalidade e umas poucas alterações de notas que fiz para adequá-la melhor às habilidades desses cantores em particular. Estas serão impressas na partitura, porque considero a ópera com tendo sido escrita para o elenco atual. À parte isto, nem uma única peça foi alterada, nenhum número foi acrescentado ou retirado, nenhuma ideia musical foi alterada. Tudo que havia no Fenice está lá no San Benedetto. Na época, foi um fiasco. Agora, causou sensação. Tire suas próprias conclusões.”

O estrondoso sucesso de 1854 parece ter sido atribuído à elevada qualidade

técnica dos cantores e da orquestra. Os cantores foram extremamente elogiados,

fazendo, portanto, justiça à composição, que outrora fora criticada. A melodia, que

antes nem fora classificada como “música”, de acordo com a crítica do próprio jornal

agora transformara-se numa obra prima. Entretanto, há uma observação que

merece destaque, ao passo que em 1853 as críticas ásperas feitas à Verdi, Piave e

até mesmo Alexandre Dumas estamparam várias edições do periódico, no ano de

1854, as publicações sobre a reapresentação de La Traviata ocuparam apenas

dezoito linhas dentro da seção “teatro e notícias diversas”.

Nem mesmo as críticas em respeito ao conteúdo da ópera, ou seja, seu

enredo e libreto, foram colocadas em pauta. As preocupações que a respeito do

mundo pouco moral e libertinoso, que ofendiam os espectadores foram deixado de

lado. Já não era mais um problema, pensar que Violeta que representava uma figura

comum, presente no cotidiano da cidade. A recepção crítica em 1854 não pôs em

xeque o fabuloso e polêmico final, com o perdão da jovem cortesã.

Todavia, não devemos esquecer que o figurino e o cenário se mantiveram os

mesmos do ano anterior. Este detalhe nos permite lembrar que, já em 1853, a ópera

teve sua produção adaptada, sendo portanto, ambientada no século anterior, ou seja

no século XVIII. Assim, na reapresentação, os costumes permaneceram adaptados.

A montagem com figurino contemporâneo, que se desenvolve no século XIX, só foi

produzida, de fato, após a consolidação do sucesso do espetáculo.

É difícil, se não impossível, dizer que no breve intervalo de um ano, a Itália

superou seus problemas a respeito da sua identidade e seus embates de

moralidade, tão próprios do período que estava vivenciando: a modernidade. Talvez

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45

o desastre musical tenha possibilitado as críticas a respeito do drama moral. Talvez

tenha sido o contrário, a apresentação pode ter causado um grande

constrangimento aos espectadores, que encontraram nas falhas dos cantores e

orquestra, o estopim para o seu descontentamento.

Ainda assim, uma das frases do L’Itália Musicale merece atenção: “O jovem

despreza o velho e o velho despreza o jovem”. Na citação original, o objetivo é

destacar as diferenças entre a qualidade musical, no período dos “velhos” a música

era superior, de melhor qualidade, a geração dos “jovens”38 por sua vez, estaria em

contato com músicas medianas, inferiores. Mais do que referência à música, esta

frase possibilita o discutir o embate entre as gerações formadoras da Nova Itália.

Na construção da nova identidade italiana, os novos valores precisavam ser

construídos. Na crônica jornalística, ao apresentar os homens que estavam reunidos

conversando sobre a ópera de Verdi, o jornal L’Itália Musicale caracteriza como o

homem grisalho, o responsável pelas críticas mais severas. O outro homem, “um

jovem e elegante senhor voltando rapidamente do teatro de Fenice” é aquele que

tece elogios à composição.

Se a sonoridade e o enredo desagradaram à antiga geração, o mesmo não se

pode dizer dos jovens, importantes participantes do processo de unificação italiano,

que não viram problemas no drama moral, vivenciado por Violeta. Novamente, o

paradoxo da modernidade vem à tona.39

O conteúdo que gerou polêmica na estreia de La Traviata é o assunto do

próximo capítulo.

38

Nomenclatura do próprio periódico.

39 Antônio Gramsci em Cadernos do Cárcere, volume 3 páginas 233 e 234, discute sobre as

condições que possibilitaram o surgimento de um partido socialista na Itália. Para isso, caracteriza a

juventude italiana, seus questionamentos e inquietações. Tal discussão é coerente com o

pensamento expresso pelo jovem rapaz da crônica do periódico L’Itália Musicale.

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3. Terceiro ato: A ópera e a sociedade

La Traviata é uma ópera em três atos, escrita por Giuseppe Verdi com libreto

de Francesco Maria Piave. A inspiração do compositor para esta ópera foi a

adaptação teatral da obra “A dama das Camélias”, feita pelo próprio autor, Alexandre

Dumas Filho, no ano de 1851.40 Verdi e sua esposa Giuseppina Strepponi,

assistiram o espetáculo em Paris. Ainda que traduzida para o italiano, a trama

desenvolve-se na década de 1850, contemporânea, portanto, à sua data de estreia,

1853.

A obra caracteriza a burguesia urbana, através da vestimenta, da moral e da

ética do século XIX, expressas no jovem Alfredo, apaixonado por Violeta, uma

cortesã que vive seus últimos dias e resolve se entregar ao amor do rapaz. No

espetáculo, o público da estreia ficou escandalizado41 diante do romance entre as

protagonistas, donos de vidas tão distintas e, principalmente, com o desfecho,

quando há o consentimento do romance pelo pai do jovem.

A problemática da ópera gira em torno, justamente, da personagem de Violeta

Vallery e sua postura emblemática. A figura feminina nesta sociedade, que é palco

de vários espetáculos, é fundamental e merece destaque, como pode-se observar

na citação de Michelle Perrot:

“No teatro, na Ópera, no café-concerto, elas ocupam o palco, logo substituído pelas telas de cinema e pelo esplendor das estrelas. Nos bulevares, nos salões ou no concerto, lugares múltiplos da recepção mundana, as mulheres tem uma função de representação. Sua elegância, seu luxo e mesmo sua beleza exprimem a riqueza ou o prestígio de seus maridos ou seus companheiros. Espetáculo do homem, elas são também o objeto desejo deles, não raro aguçado pelos interdito de uma sexualidade mais presa. A prostituição, do bordel popular à casa de ronde-vous, da clandestina perseguida à demi-mondaine ostentada, assume as formas

mais diversas.” (PERROT, 1998)

A situação das mulheres neste período era bem diversificada. No ambiente

familiar burguês ocupam, aparentemente, poder secundário, mas exercem

importante influência na tomada das decisões familiares e de negócios. Enquanto

40

OSBORNE, Charles. Verdi, vida e ópera. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1989 p. 127 e 128. descreve

o interesse de Verdi no enredo para a produção de La Traviata.

41 Jornal L’Italia Musicale

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47

mãe, é responsável pela educação da criança, muitas criaram seus filhos sozinhas,

quando os pais se distanciaram por conta do trabalho. Nos lares populares, a dona

de casa era responsável por todas as tarefas domésticas.42 Algumas mulheres

porém, diferenciavam-se destes padrões, como é o caso das cortesãs.

Figura de destaque no século XIX, o conceito de cortesã merece atenção.

Atualmente os dicionários apresentam como:

“adj. e s. fem. de Cortesão. S.F. Mulher dissoluta que vive luxuosamente;

meretriz elegante, mundana” 43.

Ao recorrer a um dicionário do próprio século XIX, a palavra “cortezã” possui o

significado:

“s.f. Meretriz”44.

Percebe-se que em ambos os significados, o sentido da palavra cortesã pouco

se alterou e, apesar de mostrar-se como o feminino de cortesão, ou seja, aquele que

faz a corte, a imagem de meretriz é presente nos dois períodos.

As definições já trazem em si, um tom moralista, que por si próprias,

condenam. Apesar disso, não há clareza em nenhuma passagem da ópera, de que

Violeta, ou a Traviata, tenha realmente se comportado como uma prostituta. No

entanto, ao longo do primeiro ato, mostra-se como uma mulher entregue aos

prazeres da vida, como demonstra a frase “Tutto è follia nel mondo, ciò che non è

piacer. Godiam, fugace e rápido è il gaudio dell’amore”45

Mas Violeta, alternou entre fases de pobreza e abandono e os momentos

áureos passados nas festas em que participava. Não aparecia nem como cantora,

dançarina. A figura da cortesã confunde-se com a da prostituta a partir do século

42

Discussão a partir do livro O excluídos da História de Michelle Perrot.

43 Disponível em http://www.dicionariodoaurelio.com/Cortesa.html , 06/06/2016

44 Disponível em Diccionario da língua brasileira. Pinto, Luiz Maria da Silva, pag. 294

45 Tudo o que não é prazer é “loucura” no mundo. Vamos nos divertir, fugaz e rápida é a “alegria” do

amor.

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XVI. Neste sentido, Sara F. Matthews-Grieco em “História do Corpo” faz uma

importante discussão:

“Na Roma dos séculos XVI e XVII, o standing de uma cortesã era determinado pelo status social de seus clientes. No ápice, a “cortigiana onesta” – bela, inteligente e culta – tinha talentos e um nível de vida equivalente ao das elites eclesiásticas e aristocráticas que vinham a reunir-se em sua casa. O “ethos” profissional da cortesã “honesta” supunha uma certa lealdade, na medida em que ela só se permitia um único amante, muitas vezes durante longos períodos, meses ou anos.

[...] Uma fisionomia atraente não era o único quesito necessário ao sucesso de uma cortesã. A inteligência, a educação, o talento literário ou musical e a capacidade de seduzir eram tantas outras qualificações indispensáveis à mobilidade social numa profissão altamente competitiva.” (CORBIN, 2008)

Tais mulheres, autônomas, independentes e, aparentemente conscientes de

sua condição e existência, foram temas de diversos romances, como Michelle Perrot

cita:

“A mulher, origem do mal da infelicidade, potência noturna, força das sombras, rainha da noite, oposta ao homem diurno da ordem e da razão lúcida, é um grande tema romântico, e, em particular, de Mozart a Richard Wagner, da ópera. Em Parsifal, a busca da salvação consiste em exorcizar a ameaça que a mulher representa para o triunfo de uma ordem dos homens.” (PERROT, 2006 p. 168)

Violeta levava uma vida luxuosa, entregue aos prazeres da vida, certamente

sua melhor estratégia de sobrevivência. Doente, sabendo que seu fim está próximo

dedica-se a promover festas. Como demonstra o primeiro ato, principalmente na ária

“Libbiamo ne liete calice”, figuras importantes da burguesia frequentavam sua

residência: Marquês d’Obigni, Barão Duphol e Alfredo. Eis o cenário da boemia, tão

comum por todos os cantos da Europa no século XIX e descrito por Michelle Perrot

em “História da Vida Privada”:

“A boemia constrói um modelo simetricamente inverso à vida privada burguesa. Primeiramente por sal relação invertida com o tempo e o espaço: vida noturna, sem horários – o boêmio não usa relógio -, de intensa sociabilidade tendo como palco a cidade, os salões, bares e avenidas. Os boêmios “não conseguem andar dez passos na avenida sem encontrar um amigo”. Conversar é seu prazer, sua principal ocupação. Eles vivem, escrevem nos bares, bibliotecas e gabinetes de leitura, próximos das classes populares pelo uso privativo que fazem do espaço público.” (PERROT, 2009)

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3.1 Tutto è follia nel mondo

Uma cena merece destaque no primeiro ato, o contato entre o jovem Alfredo e

a anfitriã Violeta. Neste momento, o rapaz declara seu amor, enquanto ela lhe

mostra os problemas que um possível romance com uma cortesã poderia trazer,

reconhece também que o amor, nobre sentimento, não foi feito para as pessoas

mundanas. Eis o dueto “Un di felice eterea”:

Alfredo

Un dì felice, eterea, Um dia, feliz e etérea

mi balenaste innante, passaste diante de mim

e da quel dì, tremante, E desde aquele dia, trêmulo,

vissi d’ignoto amor. Vivo para este desconhecido amor

Di quell’amor ch’è palpito Deste amor que é a pulsação

dell’universo intero, do universo inteiro,

misterioso, altero, misterioso, altivo

croce e delizia al cor Tormento e delicia do coração

Violeta

Ah, se ciò è ver, fuggitemi, Ah, se isso é verdade, fugi de mim

solo amistade io v’offro: Só a amizade lhe ofereço

amar non so, né sofro amar não sei, nem suporto

un così eroico amor. um amor tão heróico

Io sono franca, ingenua; Sou sincera, inocente;

altra cercar dovete; Deve procurar outra

non arduo troverete Não será difícil então

dimenticarmi allor. me esquecer.

*Tradução livre da autora

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Alfredo inicia declarando seu amor à Violeta, apresentando seu fascínio pela

moça, entretanto, não esconde suas dúvidas e angústias. Ela reafirma a postura já

apresentada em todo o primeiro ato, de entrega aos prazeres mundanos e conclui

que somente uma amizade seria possível.

O embate deste momento encontra-se juntamente na impossibilidade de um

relacionamento amoroso, que ultrapassasse os limites do prazer. Alain Corbain nos

permite recordar que há um “conjunto de normas e de comportamentos que

concerne às elites” (Corbin, 2008 p. 231), que proíbe este envolvimento.

3.2 Croce e delizia al cor

Mesmo sabendo da impossibilidade do romance, Violeta sente-se, finalmente,

amada por alguém, o que para sua condição de vida seria impossível. Frequente no

seio da sociedade burguesa, a cortesã era vista como uma prostituta de luxo: bem

educada, sabia expressar-se bem e vestia-se de forma luxuosa. Mesmo em grandes

cidades, extremamente urbanizadas, um envolvimento amoroso entre estas

mulheres e homens da alta sociedade, ainda que comum, era condenado, pois

poderia manchar a honra da família. Ainda assim, a esperança existia, como destaca

Sara F. Matthews Grieco:

“Algumas carreiras fabulosas, como a da célebre cortesã e poetisa Verônica Franco (1546-1591), que recebeu o rei da França, Henrique III, por ocasião de uma estada real em Veneza, ou a de Lady Emma Hamilton (1765-1815), que foi sucessivamente criada, prostituta, amante e finalmente esposa aristocrática, contribuíram sem dúvida para a esperança com a qual numerosas mulheres entravam na profissão.” (CORBIN, 2008)

Giuseppe Verdi teve contato com uma situação semelhante ao seu primeiro

ato, em sua vida. Frequentou a casa de Andrea e Clara Maffei, enquanto casados.

Este espaço, assim como o retratado por Dumas em sua “Dama das Camélias”, era

frequentado por poetas, escritores, músicos e outros, e tornou-se um importante

espaço na vida social de Milão. Das visitas aos salões surgiu uma grande amizade

entre os três.

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Diante da insistência de Alfredo, ela cede ao amor do rapaz e os dois mudam-

se para uma casa de campo nos arredores de Paris, tem início o segundo ato.

Ambos renunciam às suas vidas em nome do amor, ele deixa para trás sua família,

ela, o luxo. O dinheiro, que se fazia presente pelas condições sociais dos dois, se

torna escasso. A questão da honra se repete na trama em diversos momentos e de

diferentes formas. Na ária “oh mio remorso, oh infâmia”, Alfredo descobre que

Violeta, às escondidas, tem vendido alguns de seus pertences para sustentar a vida

conjugal. Ele sente-se ofendido, pois percebe que não consegue desempenhar seu

papel de provedor, de sustentar a casa.

Oh, mio remorso! Oh, infamia! Oh, meu remorso! Oh, infâmia!

Io vissi in tale errore! Eu vivi tão enganado!

Mai l turpe sonno a frangere, Mas o sonho acabou,

Il ver mi balenò! A verdade me acordou

Per poco in seno acquetati, Quase se aquietou no meu peito

O grido dell’onore; A reputação da honra

Ma vrai securo vindice; Mas certamente me vingarei

Quest’onta laverò. Esta mancha limparei

*Tradução livre da autora

Diante disso, ele sai em busca de alguma maneira para sustentar a casa e

sua amada. Violeta recebe a visita inesperada de Germont, pai de Alfredo, que lhe

faz um pedido surpreendente nos trechos a seguir do dueto “Pura siccome un

angelo”:

Germont

Pura siccome un angelo Deus me deu uma filha

Iddio mi diè una figlia; Pura como um anjo

se Alfredo nega riedere Se Alfredo se nega

in seno alla famiglia, a voltar para o seio da família

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l’amato e amante giovane, o amado e amante jovem

cui sposa andar dovea, com quem se casaria

or si ricusa al vincolo Se recusaria ao vínculo

che lieti ne rendea. que a lhe satisfaria

Violeta

Ah, comprendo, Ah, entendo

dovrò per alcun tempo Deverei por algum tempo

da Alfredo allontanarmi… De Alfredo me afastar,

Germont

Non è ciò che chiedo. Não é isso o que lhe peço

Violeta

Cielo! Che più cercate? Céus! Que mais precisa?

Germont

Pur non basta. Mas não basta.

Violeta

Volete che per sempre a lui rinunzi? Quer que o renuncie para sempre?

Germont

È d’uopo! É apropriado!

Germont

Un dì, quando le veneri Um dia, quando o tempo

il tempo avrà fugate, tiver acalmado os ardores

fia presto il tedio a sorgere. Logo o tédio surgirá.

Che sarà allor? Pensate, O que será então? Pense

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Violeta

È vero! É verdade

*Tradução livre da autora

A figura angelical da filha de Germont nos remete ao imaginário da mulher do

século XIX. Entre suas características percebemos a figura da “mulher água”,

definida por Michelle Perrot como “lisa como um espelho oferecido, estagnante

como um belo lago submisso; mulher doce, passiva, amorosa, quieta, instintiva e

paciente” (PERROT, 1988 p.188). Opõe-se assim à imagem de Violeta, que se

apresenta como a mulher fogo, “devastadora das rotinas familiares e da ordem

burguesa, devoradora, consumindo as energias viris, mulher das febres e das

paixões românticas” (PERROT, 1988 p.188)

Desta forma, a análise do texto permite compreender a estratégia usada por

Germont: apontar a Violeta o prejuízo que ela traria a uma família tradicional, que

teria sua honra prejudicada, sugerindo assim, o fim do relacionamento amoroso com

Alfredo. Esta questão é, aliás, de fundamental importância para a constituição da

família burguesa. A honra familiar jamais poderia ser ferida, e é tema frequente em

várias passagens da ópera. Sobre este assunto, Michelle Perrot cita:

“A família não é apenas um patrimônio. É também um capital simbólico de honra. Tudo o que arranha sua reputação, que mancha seu nome, é uma ameaça. Cerra fileiras contra o estranho que lhe faz uma ofensa. O erro comprometedor de um membro seu mergulha-a num constrangimento cruel. Solidariedade na reparação, punição do tribunal familiar, exclusão, cumplicidade do silêncio: todas as reações são possíveis. [...] De modo geral, a honra é muito mais moral e biológico do que econômica. O erro sexual, o nascimento ilegítimo são objetos de uma censura muito maior do que a falência[...]. Em suma, a desonra chega através das mulheres, sempre situadas do lado da vergonha.” (PERROT, 2009)

Tal ária constitui um dos momentos mais importantes da ópera. Nos primeiros

compassos, Violeta acata o pedido de Germont com tranquilidade, até tomar

consciência de que a separação seria definitiva.

Apesar de sofrer com o pedido de Germont, Violeta cede e percebe que a

separação do casal é necessária. Passado o momento do desespero, ainda que

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magoada, a jovem não sente raiva, pelo contrário, vê no atitude do pai de Alfredo,

um gesto de amor pela família. Sente-se fragilizada por não poder seguir os

impulsos de seu coração, mas percebe que os bons costumes e a moral devem

prevalecer. O sonho e a esperança da moça encerram-se neste momento. Se o

amor não lhe foi possível, não lhe resta outra opção, senão voltar à sua antiga vida.

Ocorre a partir daí a transformação psicológica da protagonista, a jovem livre

e desimpedida, com voz alegre e brilhante dá lugar a uma mulher triste e sem

esperanças.

3.3 La Traviata

Sem coragem de enfrentar seu amado, Violeta escreve uma carta a Alfredo

rompendo seu relacionamento e parte para mais uma festa, das quais já estava

acostumada a frequentar. Quando descobre, o rapaz furioso parte com o objetivo de

reencontrar Violeta, que está acompanhada pelo Barão Duphol. Enciumado, ele a

obriga a confessar, mas ela mente e diz estar apaixonada pelo barão. Neste

momento, Alfredo, alternando entre humilhação e mágoa, arrasta a “traviata” para o

meio do salão e canta a ária “Ogni suo aver tal femmina”. Num gesto de fúria e

revolta, brutalmente joga nela todo o dinheiro que julga ser necessário para pagar

por sua companhia nos últimos meses.

Ogni suo aver tal femina Por mim esta mulher

per amor mio sperdea... tudo perdeu

Io cieco, vile, misero, Eu, cego, vil e miserável

Tutto accettar potea. Tudo pude aceitar.

Ma è tempo ancora, tergermi Mas ainda é tempo, livrar-me

Da tanta macchia bramo. De toda esta sujeira

Qui testimon vi chiamo, Aqui chamarei testemunhas

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Che qui pagata io l’ho. Para mostrar que a paguei.

*Tradução livre da autora

A atitude do rapaz foi repreendida por todos na festa, mas tal gesto, simbólico,

transforma Violeta, a cortesã, numa prostituta. Ainda que seja comum uma confusão

entre os significados destes dois conceitos, como já discutido anteriormente, não fica

claro em nenhuma passagem da ópera que ela tenha se comportado como tal. O

objetivo de Alfredo é, claramente, tentar recuperar a sua honra, mesmo que para

isso destrua a de sua amada, transformando-a num ser nefasto. Se no século XIX, a

figura da cortesã era uma das mais reconhecidas e aceitas, mesmo que fora da

esfera da vida privada, o mesmo não se pode dizer sobre a prostituta. Neste sentido

Thomas Laquer destaca:

“As prostitutas eram em geral vistas como um produto improdutivo: porque

eram mulheres públicas; porque seus órgãos reprodutivos sujeitavam-se a um tráfico tão pesado; porque nelas o sêmen de vários homens diferentes era misturado junto; porque seus ovários através da superestimulação, quase sempre apresentavam lesões mórbidas; porque suas trompas de Falópio eram fechadas por excesso de coito; ou mais, importante ainda, porque como não tinham afeição pelos homens com quem faziam sexo, eram consideradas estéreis ou, pelo menos, incapacitadas para terem filhos.” (LAQUEUR, 2001)

Por conta do pedido de Germont, um mal entendido Alfredo, com tal atitude,

retira os sentimentos e o que resta da dignidade de Violeta.

Após o vexame que vivenciou, a jovem está sozinha, empobrecida e com o

estágio de sua doença avançado. Tem início o último ato da ópera. No fim de sua

vida, pouco lhe resta, a não ser ler as cartas que recebera de seus amigos,

prestando solidariedade. A cena mostra-nos logo de início o aspecto dramático que

pretende expressar. Violeta, acamada em seu quarto e ciente de seu pouco tempo

de vida, resolve revelar seus sentimentos mais íntimos, seu arrependimento da vida

que teve e pedir perdão a Deus. A música assemelha-se a uma marcha fúnebre e ao

início da melodia vocal, a sensação de angústia causada ao ouvinte se amplia

através da necessária interpretação introspectiva e quase sufocada.

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A protagonista conclui com um grito implorando o perdão de Deus, pois a

consciência da morte é clara. A voz leve e alegre, presente no primeiro ato dá lugar

a uma voz densa e encorpada. A alegria de outrora já não existe mais nas palavras

da “Traviata”:

Addio del passato Adeus ao Passado

Bei sogni ridenti Belos e felizes sonhos

Le rose del volto As cores do rosto

Già sono palenti. Já se foram.

L’amore d’Alfredo mi manca O amor de Alfredo me faz falta

Conforto, sostegno dell’anima Conforto, apoio d’uma alma

stanca cansada

Ah, dela traviata , Ah da “transviada”

Soridi al desio, A vontade de sorrir

A lei deh perdona Conceda o perdão a ela

Tu accoglila o Dio! A acolha ó Deus!

Ah tutto finì! Ah tudo está acabado!

*Tradução livre da autora

Violeta reconhece finalmente a sua condição, percebe que mesmo tendo

vivido momentos felizes, a crença na possibilidade de levar uma vida tranquila,

guiada pelo amor e pelos sentimentos, já não existe mais. Seu fim é triste, como ela

sempre soube, antes de conhecer o jovem Alfredo. A expectativa de aceitação pela

sociedade ou pela família do rapaz, bem como o perdão por sua vida luxuosa se

desfazem no grito de angústia entoado ao final da ária. A última esperança é a graça

divina, Violeta perdera a riqueza, o status, a saúde e o amor.

A respeito da expectativa de Violeta de conseguir o perdão, a análise feita por

Alain Corbin a respeito do sofrimento e a salvação da alma:

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“O sofrimento leva mais rapidamente a Deus. Ele prepara a salvação. Mostra o caminho da graça [...] O sofrimento possui um valor salvífico; é expiação e resgate. O ascetismo e, bem-entendido, o martírio, portanto a degradação física, constituem as vias privilegiadas do progresso moral e da salvação.” (CORBIN, 2012 p.333-34)

Nota-se, a partir da análise do texto da ária que este é o primeiro e único

momento que Violeta se reconhece como a “transviada”, ou seja, como uma mulher

que de fato possuiu, ao longo de sua vida uma conduta que se desviou do caminho

moral. Por esta razão, a jovem encontra-se solitária, em seu leito de morte, não lhe

resta mais nada a não ser o perdão divino, já que a sociedade não a perdoou por

sua vida. A alegre jovem, tão segura de suas atitudes e desprendida do amor e do

julgamento da sociedade, que se apresenta em árias como “Sempre Libera” e

“Libiamo ne lieti calici”, mostra-se agora fragilizada, machucada pelo sofrimento e

pela solidão.

3.4 Ah, tutto fini!

A ópera caminha para seu desfecho, Alfredo descobre que seu pai, Germont,

foi o responsável pelo fim de seu relacionamento com Violeta. Sendo assim, ele

procura por sua amada para reparar seus erros, desculpando-se pela humilhação

que lhe causara e também planejar o futuro. Neste momento ocorre o famoso dueto

“Parigi o cara”, no qual os dois amantes trocam juras de amor e se dispõem a deixar

Paris para reconstruir uma nova vida no campo. Violeta reúne todas as suas forças,

mas já é tarde, a jovem sabe que seus dias estão no fim, a tuberculose havia lhe

fragilizado demais.

Em seu quarto, acamada e acompanhada do médico Dr. Grenvil, sua amiga

Flora e seu amado, a Traviata aguarda por seu último suspiro. Uma visita

inesperada a surpreende: Germont. Tem início “Ah, Violeta!”, última cena da ópera.

Germont

Ah, Violeta! Ah Violetta!

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Violeta

Voi, signor! O senhor?

Alfredo

Mio padre! Pai?

Germont

La promessa adempio . Cumpri a promessa

A stringervi qual figlia vengo al seno, Venho abraçar-lhe como uma filha

o generosa! O generosa

Violeta

Ahimè, tardi giungeste! Ai de mim, chegaste tarde!

Pure, grata ven sono. Mas, lhe sou grata

Grenvil, vedete? Fra le braccia io spiro Grenvil, viu? Morrerei nos braços

di quanti cari ho al mondo. De todos que amo no mundo.

Germont

Di più non lacerarmi. Não me machuque mais.

Troppo rimorso l'alma mi divora. O remorso já me devora a alma.

Quasi fulmin m'atterra ogni suo detto. Cada palavra dita me sufoca.

Oh, malcauto vegliardo! Ah velho imprudente!

Il mal ch'io feci ora sol vedo! Só agora vejo mal que fiz

Violeta

Più a me t'appressa Se aproxime mais

Ascolta, amato Alfredo. Escute, amado Alfredo.

Prendi, quest'è l'immagine Pegue esta imagem

de' miei passati giorni; De meus dias passados

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a rammentarti torni Lembre-se de mim

colei che sì t'amò. Que tanto o amou

Germont

Cara, sublime vittima Cara, sublime vítima

d'un disperato amore, de um amor desesperado

perdonami lo strazio perdoe o estrago

recato al tuo bel cor. Causado ao seu belo coração

Violeta

Se una pudica vergine Se uma virgem decente

degli anni suoi sul fiore, na flor da idade

a te donasse il core lhe entregar o seu coração

sposa ti sia - lo vo' case com ela

Le porgi quest'effigie; Lhe entregue este retrato

dille che dono ell'è de presente e diga

di chi nel ciel tra gli angeli que no céu entre os anjos,

prega per lei, per te. Alguém ora por ela e por você.

Violeta

È strano! É estranho

Cessarono gli spasimi del dolore . Cessaram os espamos de dor

In me rinasce - m'agita insolito vigor! Em mim renasce um vigor repentino

Ah! ma io ritorno a viver! Ah! Eu estou de volta a vida!

Oh gioia! Oh alegria

*Tradução livre da autora

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Eis o inesperado e surpreendente momento de reconciliação. Germont, com

boa vontade, procura por Violeta para lhe pedir perdão pelo mal que a fez, e lhe

oferece um abraço fraterno como sua despedida, já que o remorso lhe consome a

alma. Mesmo ciente do sofrimento que lhe fora causado, a jovem agradece a

presença de Germont, mais uma vez reafirma que vê nele, a figura de um pai, e

agradece por ter agido como tal.

Violeta tem um breve espasmo de consciência e suas forças reaparecem, em

seu leito de morte, dispensa suas últimas palavras a Alfredo, aconselhando-o a

encontrar um novo amor em uma jovem pudica, virgem.

É possível perceber nesta cena, a inesperada mudança da protagonista,

outrora vista como uma mulher mundana, transforma-se agora numa figura angelical

de espírito santo, uma vítima das armações e da vida terrena. Em oposição ao

romance de Alexandre Dumas, a Traviata recebe o perdão do pai de seu amado.

Os esforços de toda a sua vida, ao menos em seus últimos minutos, foram

reconhecidos. Na última cena do espetáculo, pela primeira vez, Violeta é desnuda

da sua máscara de cortesã e finalmente vista como uma mulher com sentimentos,

que amou e, principalmente, sofreu pelas convenções sociais impostas pela soberba

sociedade burguesa.

É válido recordar o início da ópera, em que a voz da protagonista mostra-se

completamente diferente, não apenas pela escrita musical, que estava repleta de

ornamentos, mas por um timbre brilhante e alegre. A transformação psicológica da

protagonista se expressa, claramente, em sua voz. Seu suplício foi a sua chave para

o paraíso, a Traviata, enquanto alegre cortesã, incomodava Germont, representante

da burguesia tradicional. A Violeta que sofre e morre, é perdoada.

Na obra original de Alexandre Dumas Filho o desfecho é um pouco diferente,

não há uma reconciliação entre a jovem cortesã e o pai de seu amado. Tais

características podem ser observadas nas frases finais de Marguerite, a

personagem que inspirou Violeta, destinadas a seu amado Armando:

ARMANDO: Sou eu, Margarida, eu mesmo, tão arrependido, tão culpado que nem tinha coragem de cruzar a sua porta. Se não tivesse encontrado Nanine teria ficado na rua. Margarida, não me amaldiçoe! Meu pai me escreveu. Eu estava bem longe, sem saber para onde ir, fugindo do meu amor e do meu remorso... Parti como um louco, viajando noite e dia, sem

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trégua, sem sono, sem repouso, perseguido por pressentimentos sinistros... vendo de longe a casa coberta delato... Se eu não tivesse te encontrado eu morreria, pois teria sido o culpado de sua morte... Ainda não estive com meu pai. Diga que nos perdoa, Margarida, a nós dois. Como é bom te ver de novo.

MARGARIDA: Te perdoar, querido? Fui eu a culpada... Mas não podia ter feito outra coisa. Queria a sua felicidade, mesmo a custa da minha... Agora seu pai não vai mais nos separar... Não é a mesma Margarida que você está encontrando, mas ainda sou moça e voltarei a ser bonita, pois sou tão feliz! Vamos esquecer tudo... De hoje em diante, começaremos a viver... [...]

Sente aqui, perto de mim... o mais perto que puder e preste atenção... Ainda há pouco tive um momento de raiva contra a morte. Estou arrependida, ela é necessária. E generosa pois esperou a sua chegada para me levar. Se

minha morte não fosse certa, seu pai não teria pedido a sua volta.”46

Armando (personagem que inspirou Alfredo em La Traviata) recebera uma

carta de seu pai lhe informando sobre as articulações que havia feito para separar

os dois jovens apaixonados. Sendo assim, na obra de Dumas, a cena de

reconciliação e o arrependimento entre o tripé de personagens principais, não existe.

Desta forma, Giuseppe Verdi e Francesco Maria Piave, alteraram o desfecho

da obra original e também a sua intencionalidade e a maneira como ela foi percebida

pela Europa do século XIX. Revelou ainda, a “humanidade, penetração psicológica

e fosto infalível do compositor” (OSBORNE, 1989 p.140) do compositor.

46

A dama das camélias, nesta tradução de Gilda de Mello e Souza, foi representada pela primeira

vez no Teatro Municipal de São Paulo, a 6 de novembro de 1961.

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Considerações Finais

A presente pesquisa levantou algumas questões relevantes a respeito da

romantismo, da burguesia, do nacionalismo e da ópera italiana no século XIX,

representada aqui, pelo maior compositor da Itália neste período: Giuseppe Verdi.

O romantismo, movimento artístico essencialmente burguês foi responsável

em grande parte, para a afirmação e consolidação da burguesia. Seus valores e

costumes foram representados, e também criticados, na literatura, no teatro e na

ópera romântica. Mas este movimento não se limitou a representar os valores e

costumes deste grupo. Diante dos intensos problemas políticos vivenciados pela

Europa, a produção romântica esteve intimamente ligada à constituição de uma

identidade nacional. Justamente por divulgar valores e padrões a serem seguidos ou

rejeitados, contribuiu para a constituição de uma unidade.

No caso de Giuseppe Verdi, a associação do compositor com a política é

imediata, justamente por conta de sua atuação como deputado em 1859. Entretanto,

a análise bibliográfica presente nesta pesquisa não mostra Verdi como um homem

politicamente engajado, tal como Giuseppe Mazzini, nem mesmo revolucionário

como Giuseppe Garibaldi. Verdi, assim como a maioria do povo italiano era a favor

de sua unificação, mas não participou ativamente dos movimentos do Risorgimento,

não teve como objetivo principal, ao compor suas óperas, fazer qualquer tipo de

propaganda deste movimento, ainda que posteriormente algumas de suas

composições tenham sido utilizadas com tal finalidade.

Entretanto, se o interesse deste compositor pelas questões políticas era

pequeno, o mesmo não se pode dizer sobre as questões sociais. Verdi escolhia

atentamente os enredos que musicava e sentia-se atraído por personagens que

enfrentavam algum tipo de drama moral. Sua vida pessoal foi a responsável por

isso.

La Traviata, uma das óperas mais famosas e de maior sucesso de Giuseppe

Verdi, através desta pesquisa, mostrou-se como contraditória. Em sua primeira récita

foi um fracasso, a péssima interpretação dos cantores é a justificativa mais aceita tal

feito. Este fator é, aliás, um dos que ressalta a genialidade do compositor. A

inovação trazida e amplamente explorada por Verdi gira em torno da exigência vocal

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dos cantores, que além de dominar a técnica e estilo característicos do bel canto

precisavam compreender a personagem para que pudessem conferir à elas, as

características dramáticas exigidas pela escrita do compositor.

Mas as críticas feitas à cortesã parisiense ultrapassaram as questões

musicais e foram embasadas, segundo o jornal L’Itáila Musicale, nas questões

morais. La Traviata foi considerada imoral, ofensiva aos bons costumes da

sociedade italiana. Certamente, tais comentários foram feitos porque o drama

inspirado na Dama das Camélias de Alexandre Dumas, já incomodava algumas

pessoas. O principal público espectador de óperas, a burguesia, viu-se representada

neste espetáculo, entretanto não viu suas qualidades, suas ambições e desejos.

Esta classe reconheceu, nesta transviada, sua realidade, seus desencantos,

conflitos e principalmente, seus defeitos. Aqueles que não aceitaram reconhecer

seus erros sentiram-se ofendidos e espalharam críticas ácidas à ópera.

A contradição desta obra está na sua reapresentação, feita um ano depois em

outra cidade, com novo elenco, mas com o mesmo figurino, que foi ovacionada. Os

cantores conseguiram expressar a intencionalidade de Verdi e foram extremamente

elogiados. As questões morais por sua vez, foram silenciadas. No lugar das

extensas críticas jornalísticas, uma breve nota atestando seu sucesso.

Diante de todos os aspectos apresentados, pode-se dizer que a análise da

música enquanto fonte de pesquisa, sobretudo a ópera, é de extrema importância

para a compreensão das sociedades em que esta manifestação artística foi

valorizada. Ainda que de forma embrionária, esta pesquisa buscou estreitar os laços

entre História e Música, coletando informações e bibliografias destas duas áreas,

criando possibilidades, portanto, para o trabalho de futuros pesquisadores do

assunto.

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ANEXOS

Anexo A

Cartaz de estreia da ópera La Traviata, em 6 de março de 1853

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Anexo B

Jornal L’Itália Musicale

Capa da publicação do Jornal L’Itália Musicale de 12 de março de 1853. Fonte Biblioteca Digital

Italiana

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Artigo publicado no Jornal L’Itália Musicale de 12 de março de 1853. Fonte Biblioteca Digital

Italiana

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Jornal L’Itália Musicale de 23 de março de 1853. Fonte Biblioteca Digital Italiana

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Jornal L’Itália Musicale de 10 de maio de 1854. Fonte Biblioteca Digital Italiana

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Anexo C

Gravações de La Traviata – Lisboa, 1958

Intérpretes: Maria Callas (Violeta); Alfredo Krauss (Alfredo) e Mario Sereni

(Germont). Coro e Orquestra Sinfônica do Teatro São Carlos. Regência de Franco

Guione.

1. Un di Felice etérea

2. Oh mio rimorso

3. Pura siccome um angelo

4. Ogni suo aver tal femmina

5. Addio del passato

6.1 Finale Ah Violeta

6.2 Finale Prendi quest’è l’immagine

6.3 Finale Se uma pudica vergini

Bônus: Brindisi