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     ANTONIO CARLOS SECCHIN

    Sétimo ocupante da Cadeira nº 19, eleito em 3 de junho de 2004, na sucessão de Marcos

    Almir Madeira e recebido em 6 de agosto de 2004 pelo acadêmico Ivan Junqueira.Cadeira:

    19

    Posição:

    Atual

    Data de nascimento:

    10 de junho de 1952

    Naturalidade:

    Rio de Janeiro - RJ

    Brasil

    Data de eleição:

    3 de junho de 2004

    Data de posse:

    6 de agosto de 2004

    Acadêmico que o recebeu:

    Ivan Junqueira

    BIOGRAFIA Antonio Carlos Secchin nasceu no Rio de Janeiro em 10 de junho de 1952. Filho de SivesSecchin e de Victoria Regia Fuzeira Secchin. Até os 6 anos morou em Cachoeiro deItapemirim. Desde 1959 reside no Rio de Janeiro.

    Formação e experiência profissional

    É Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1982). Professor de

    Literatura Brasileira das Universidades de Bordeaux, (1975-1979), Roma (1985), Rennes

    (1991), Mérida (1999),Nápoles (2007), Paris Sorbonne (2009) e da Faculdade de Letras daUFRJ, onde foi aprovado (1993), por unanimidade, com nota máxima, em concurso públicopara professor titular.

    Orientou 24 dissertações de mestrado, 13 teses de doutorado e 3 pesquisas de pós-doutorado. Ministrou 48 cursos e participou de 177 bancas de pós-graduação, no país e noexterior.

    Conferências, palestras, mesas-redondas e comunicações

    http://www.academia.org.br/academicos/ivan-junqueirahttp://www.academia.org.br/academicos/ivan-junqueira

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    Proferiu 376 palestras, em sua maioria versando sobre os temas de literatura e culturabrasileira, no Brasil e nos seguintes países: Argentina, Cuba, Espanha, Estados Unidos.França, Israel, Itália, México, Portugal e Venezuela.

    Editorias e conselhos científicos e editoriais

    Membro de 42 editorias ou conselhos, no Brasil e no exterior, sobretudo de periódicos deinvestigação literária.

    Prêmios literários

    Total de 15 prêmios nacionais, destacando-se: 1.o lugar, categoria “ensaio”, do InstitutoNacional do Livro (1983); Prêmio Sílvio Romero, da Academia Brasileira de Letras, 1985,

    ambos para João Cabral: a Poesia do Menos; Prêmio Alphonsus de Guimaraens, daFundação Biblioteca Nacional (2002); Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras

    (2003); Prêmio Nacional do PEN Clube do Brasil (2003), atribuídos aTodos osVentos como melhor livro de poesia.

    Distinções

    Membro titular de PEN Clube do Brasil, eleito em 1995:

    Medalha Cruz e Sousa, do Governo de Santa Catarina (1998);Medalha João Ribeiro, da União Brasileira de Escritores (1999);

    Medalha Carlos Drummond de Andrade, da União Brasileira de Escritores (2002);

    Membro Honorário da Academia Cachoeirense de Letras, Cachoeiro de Itapemirim (2004);Medalha do Mérito da Imprensa de Pernambuco, da Associação da Imprensa dePernambuco (2005);Benemérito do Real Gabinete Português de Leitura, Rio de Janeiro (2008);Medalha Jorge Amado, no Jubileu de Ouro da União Brasileira de Escritores-RJ (2008).Membro Correspondente da Academia de Letras da Bahia (2009).Na ABL foi eleito Diretor Tesoureiro (8.12.2005) para a Diretoria de 2006 e nomeadoDiretor da Comissão de Publicações (sessão de 4.5.2006).Dilploma de Mérito Cultural da Academia Brasileira de Filologia (2011).

    BIBLIOGRAFIA 

    Crítica e Ensaio

     João Cabral: a Poesia do Menos. São Paulo: Duas Cidades, 1987. 2.a ed. rev. ampliada.Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.Poesia e Desordem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.Cruz e Sousa, o Desterro do Corpo. Florianópolis: Assembléia Legislativa, 1998.

    Um Mar à Margem: o Motivo Marinho na Poesia Brasileira do Romantismo. Florianópolis:Museu/Arquivo da Poesia Manuscrita, 2000.

    Escritos sobre Poesia & Alguma Ficção. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003.

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    Memórias de um Leitor de Poesia. Rio de Janeiro: Setor Cultural/Faculdade de Letras daUFRJ, 2004.Memórias de um leitor de poesia e outros ensaios. Rio de Janeiro: Topbooks/ABL, 2010.

    Poesia

     A Ilha. Rio de Janeiro: edição do autor, 1971 (plaquete fora do comércio). Ária de Estação. Rio de Janeiro: São José, 1973.Elementos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.Diga-se de Passagem. Rio de Janeiro: Ladrões do Fogo, 1988.Poema para 2002. Rio de Janeiro: Cacto Arte e Ciência, 2002 (livro-objeto fora docomércio, tiragem de 50 exemplares).Todos os Ventos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

    Todos los Vientos. Traducción de Yhana Riobueno. Mérida: Ediciones Gitanjali, 2004.Todos os ventos.Vila Nova de Famelicão: Edições Quasi, 2005

    50 Poemas Escolhidos pelo Autor. Rio de Janeiro: Galo Branco, 2006.

    Ficção

    Movimento(novela). Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, 1975.

    Divulgação cultural

    Guia dos Sebos. 4.a ed. rev. e ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/SABIN/FBN, 2003.

    Guia dos sebos. 5ª ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro; Lexikon, 2007.

    Organização de edições

    Os Melhores Poemas de João Cabral de Melo Neto. Organização, seleção, introdução enotas. São Paulo: Global, 1985. 9.a ed. 2003.Primeiros Poemas de João Cabral de Melo Neto. Organização e introdução. Rio de

    Janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, 1990.Obra Poética de Júlio Salusse. Organização, introdução e estabelecimento de texto. Rio de

    Janeiro: Anais da Biblioteca Nacional, vol. 113, 1993, pp. 149-188.

     A Problemática Social na Literatura Brasileira. Organização e introdução. Tübingen: MaxNiemeyer Verlag, 1993. Agenda Permanente da Literatura Brasileira. Consultoria. Rio de Janeiro: FundaçãoBiblioteca Nacional, 1993.

     Antologia da Poesia Brasileira (edição bilíngüe). Organização, seleção, introdução e notas.Pequim: Embaixada do Brasil, 1994.

     Antologia Poética de Castro Alves. Organização, seleção e introdução. Rio de Janeiro:FUNARTE, 1997.Machado de Assis – uma Revisão. Organização (com José Maurício Gomes de Almeida eRonaldes de Melo e Souza) e ensaio. Rio de Janeiro: In Folio, 1998.

    Poesia Completa de Cecília Meireles (edição do centenário). Organização, introdução eestabelecimento de texto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 2 vols.

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    Piedra Fundamental – Poesía y Prosa de João Cabral de Melo Neto. Seleção e posfácio.Venezuela: Biblioteca Ayacucho, 2002.Poesia Reunida de Mário Pederneiras. Organização, introdução, estabelecimento de texto,elaboração de glossário e levantamento bibliográfico. Rio de Janeiro: Academia Brasileirade Letras, 2004. (Coleção Austregésilo de Athayde, vol. 22)

    Os Melhores Poemas de Fagundes Varela. Organização, seleção e introdução. São Paulo:Global, 2005.

    Os Melhores Contos de Edla van Steen. Organização, seleção e introdução. São Paulo:Global, 2006.

    Roteiro da Poesia Brasileira – Romantismo. Organização, seleção e introdução. São Paulo:Global, 2007.Palavras e Pétalas – antologia de Cecília Meireles. Organização, seleção e introdução. Riode Janeiro: Desiderata, 2008.

     A Cidade e as Musas – antologia de Manuel Bandeira. Organização, seleção e introdução.Rio de Janeiro: Desiderata, 2008.Poesia Completa e Prosa de João Cabral de Melo Neto. Organização, introdução,estabelecimento de texto e notas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.

    Poesia Completa, Teatro e Prosa de Ferreira Gullar. Organização, introdução eestabelecimento de texto. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.

     Agrestes, de João Cabral de Melo Neto. Introdução e estabelecimento de texto. Rio deJaneiro: Alfaguara, 2009.

    Participação em antologias

     26 Poetas Hoje. Rio de Janeiro: Labor, 1976, pp. 101-105. 2.a ed. 1998, Aeroplano. A Poesia Fluminense no Século XX. Rio de Janeiro: FBN/Imago; Mogi das Cruzes: UMC,1998, pp. 252-255.

    41 Poetas do Rio. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1998, pp. 103-114.100 Anos de Poesia. Rio de Janeiro: O Verso Edições, 2001, vol. II, pp. 194-195.

    Seleção de Meus Poemas Líricos Favoritos, org. K. Tadokoro. Osaka: Kinjydo, 2004, pp.37-8.

    Poesia Portoghese e Brasiliana, org. Luciana Stegagno Picchio. Roma: La Biblioteca diRepubblica, 2004, p. 777-9.

    Poesía Brasileira Hoxe. Santiago de Compostella: Danú Editorial, 2004, pp. 257-264.

    Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004, p.29.Quartas Histórias. Rio de Janeiro: Garamond, 2006, p. 93-97Capitu Mandou Flores. São Paulo: Geração Editorial, 2008, p. 113-117Roteiro da Poesia Brasileira - anos 70. São Paulo: Global,2009, pp.202-205.

    Artigos, ensaios, resenhas, prefácios, crônicas, contos e poemas

    Cerca de 500 publicações, em livros e nos principais periódicos do país e do exterior.

    DISCURSO DE POSSE

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    Como os poetas que já cantaram,e que ninguém mais escuta,eu sou também a sombra vagade alguma interminável música.

    Cecília Meireles 

    Agradeço a todos os membros da Academia Brasileira de Letra que me honraram com seuvoto, possibilitando que eu acedesse a esta Casa para nela ocupar a cadeira de número19. Agradeço também àqueles que, manifestando outra opção no pleito do dia 3 de junho,igualmente contribuíram para chancelar os procedimentos regimentais das sucessõesacadêmicas.

    A cadeira 19 figura entre as poucas a jamais haverem sido ocupadas por um escritor

    preponderantemente voltado à ficção ou à poesia. Não obstante, fui buscar a epígrafedeste discurso num poema de Cecília Meireles, ganhadora póstuma do Prêmio Machadode Assis, da ABL, em 1965. Versos que, se de um lado, com resignado lamento, parecem

    confinar os escritores à contingência de uma “sombra vaga” “que ninguém mais escuta”,por outro nos alçam à condição de elos necessários a “alguma interminável música”.

    Ainda que não alocados no pódio de solistas, participamos de um concerto para muitasvozes - e talvez seja esta uma das mais nobres missões da Academia: convocar à vida osnossos mortos, despertar contra o esquecimento as palavras represadas no sono doslivros, fazê-las fluir para que venham integrar-se à “interminável música” da literatura.

    O fundador da cadeira 19 foi Alcindo Guanabara, que escolheu como patrono JoaquimCaetano da Silva. Dom Silvério Gomes Pimenta ocupou a vaga de Guanabara, e foisucedido por Gustavo Barroso. A Gustavo Barroso seguiu-se Antônio da Silva Melo,substituído por Américo Jacobina Lacombe. O sucessor de Lacombe foi Marcos Almir

    Madeira.

    Cada um desses nomes se relacionou de modo bastante peculiar com o universo das

    letras, dificultando uma pretensão de todo novo acadêmico: a de lastrear um fio condutorque o destino porventura houvesse tramado para enlaçar com alguma coerência pessoase obras de natureza tão díspar. Ainda assim, examinando a bibliografia do patrono e a doderradeiro ocupante, e tentando aproximar essas extremidades cronológicas da cadeira,pude constatar entre Joaquim Caetano e Marcos Almir ao menos uma clara convergência,sobre a qual falarei no final do discurso.

    Duas vias se franqueiam a quem estude a produção dos acadêmicos: uma, abastecida emfontes primárias, na prospecção direta de suas biobibliografias; outra, que não exclui a

    anterior, baseada no conhecimento dessas vidas e obras já no âmbito da própria dinâmicasucessória, ou seja: nas análises que os novos titulares foram consecutivamente

    formulando a propósito dos membros que os precederam. Além de se marcarem comoritual de passagem, os discursos revelam não só os valores pelos quais um acadêmico é

    acolhido, mas também a releitura que o recém-ingresso opera do legado cultural de sua

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    cadeira. Nessa operação podem ocorrer deslocamentos de hierarquias e de prioridades. Oque hoje se minimiza na avaliação de um escritor talvez seja exatamente o aspecto queamanhã nele mais se releve. Passaremos a ler, portanto, um outro autor, que, do antigoconserva o nome, mas é dele diverso ou até antagônico. Por existirem camadas potenciaisde sentido na obra literária, cada época irá trazer à tona aquelas que mais lhe digam

    respeito, como espelho em que verá impressa a sua própria face.

    A escolha dos intelectuais que compuseram o primeiro conjunto acadêmico, como

    observou Joaquim Nabuco, efetuou-se através de um amplo consenso interpares, e nãomediante candidaturas avulsas; tal processo de constituição, seguramente, ainda terá sidopreferível ao estabelecimento da imortalidade por meio de ato do Executivo. Igualmentepelo livre arbítrio do quadro inicial de membros procedeu-se à indicação dos patronos,recrutados entre escritores mortos e, em boa proporção, de reconhecido mérito. Dessemodo, os fundadores, antes de serem, eles próprios, sucedidos no fluxo do tempo,desfrutaram da rara oportunidade, num viés quase borgiano, de gerar quem lhesantecedeu. Os patronos forneceram séculos de passado a uma Academia com meses devida.

    Nem patronos nem fundadores foram alvo de saudação acadêmica individualizada. Assim,

    uma sessão que comportasse o elogio do antigo ocupante só poderia forçosamenteocorrer quando da primeira substituição de um fundador, celebrada em 30 de novembro de

    1898. O eleito, João Ribeiro, assumiu a vaga de Luís Guimarães Júnior e foi recebido porJosé Veríssimo. Naquela noite, inaugurou-se a cerimônia das orações de posse eresposta, desencadeando-se o protocolo discursivo que até hoje vigora, reiterado nas 181recepções subseqüentes à admissão de Ribeiro.

    Da herança de Joaquim Caetano da Silva, patrono da cadeira 19, quase nada se encontraà disposição do leitor de hoje. Sua única imagem corrente, acessível na página eletrônicada Academia, revela um homem de ar austero, em tudo consoante ao retrato que faríamosde um fiel e probo funcionário do Segundo Reinado. Nasceu em Cerrito (atual Jaguarão),

    Rio Grande do Sul, em 2 de setembro de 1810. Dos 16 aos 27 anos morou na França,onde, se graduou em Medicina. Retornando ao Brasil em 1838, ei-lo professor de

    Português, Retórica e Grego do Colégio de Dom Pedro II. No ano seguinte já se tornariareitor da instituição, tendo nela implementado, em 1841, uma pioneira reforma curricular,

    com ênfase na área das humanidades.

    Especialista em Geografia, disciplina que elevou à categoria de ciência na grade doensino colegial, Joaquim leu em 1851, diante do imperador Pedro II, uma “Memória sobreos limites do Brasil com a Guiana Francesa”. No mesmo ano, ingressou na carreiradiplomática, como encarregado de negócios na Holanda. Em 1853, na cidade de Haia,participou das tratativas dos limites brasileiros com Suriname. É de 1861 sua obraprincipal, redigida em francês: L’Oyapoc et l’Amazone, onde retoma e aprofunda, numalentado estudo com mais de um milhar de páginas, as argumentações da “Memória” de

    dez anos antes. Em 1900, o barão do Rio Branco, apoiado nos subsídios de Caetano da

    Silva, terminaria por obter, num foro internacional, a vitória que selaria em definitivo oconflito de nossas fronteiras com a Guiana Francesa.

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    Na condição de inspetor geral de Instrução Pública, Joaquim Caetano criticou, numrelatório de 1863, a qualidade do ensino brasileiro, denunciando que “o aparato eragrande, grande era também a despesa e o resultado pequenino”. Foi membro do InstitutoHistórico e Geográfico do Brasil. Entre 1869 e 1873 dirigiu o Arquivo Nacional, entãodenominado Arquivo Público do Império. Faleceu em Niterói, no dia 28 de fevereiro de

    1873. Seus restos mortais, no entanto, não repousam em solo fluminense, no cemitério deMaroí, Niterói, onde Caetano foi sepultado. Encontram-se na Fortaleza de São José de

    Macapá, numa urna abrigada pelo Museu Histórico Joaquim Caetano da Silva – justareverência àquele que ajudou a incorporar ao território brasileiro uma zona litigiosa, hoje

    parte integrante do estado do Amapá. A gratidão do Brasil para com o geógrafo ediplomata materializou-se ainda num decreto do Executivo, de 15 de junho de 1959, peloqual foi concedido crédito de 15 milhões de cruzeiros para a Comissão do Monumento aJoaquim Caetano da Silva, a ser erigido em Macapá. Seu nome foi atribuído a umaavenida no centro do Oiapoque, e, no berço gaúcho, a uma Sociedade Cultural.Parodiando o clichê, podemos dizer que as homenagens a Caetano se estendem doOiapoque ao... Jaguarão. Mas é forçoso constatar que o importante papel por eledesempenhado nas áreas da educação e da diplomacia permanece insuficientementereconhecido. A razão para isso talvez consista no fato de que o mármore, o cimento e obronze não são os melhores materiais para imortalizar um escritor. O grande monumento

    que se pode erguer à sua memória é de natureza mais modesta e frágil, cabe na palma damão. Esse monumento, que em sua precariedade física se sobrepõe a todos os outros, se

    chama livro. E o maior tributo que se presta a um autor consiste em repô-lo sem cessar navida, através das reedições que o fazem perpetuamente contemporâneo de novos leitores.

    Ao contrário do patrono, discreto funcionário na órbita do poder imperial, AlcindoGuanabara, nascido em Guapimirim, Magé, estado do Rio, em 19 de julho de 1865,destacou-se como jornalista imerso com desassombro nas grandes questões nacionais,por ele retratadas de forma candente e partidária. O risco de um tal procedimento resideno fato de que, pela ausência de salvaguarda crítica, o ímpeto ao partidarismocompulsório pode induzir-nos a embarcar na plataforma errada. Guanabara, declarando-

    se hostil à abolição da escravatura, acabaria tomando o trem no sentido oposto ao daHistória. Certa inconstância na escolha da plataforma, aliás, parece marcar a trajetória

    desse nosso publicista, fornecendo-nos a imagem de um indivíduo versátil, antes propensoa transigências eventuais do que propriamente defensor de convicções irremovíveis. A

    fama de tal flexibilização de valores remonta, provavelmente, ao famoso episódio em queAlcindo, instado, às vésperas da Semana Santa, a escrever editorial sobre Jesus, teriaargüido: “A favor ou contra?”. Não sendo, talvez, verdadeira, a anedota propagou-se, porverossímil. Em prol de Guanabara circulou a atenuante de que não formulara a perguntamovido pela cobiça de propina vultosa em caso de ataque à figura divina, e sim pelodesejo de evitar atritos com José Carlos Rodrigues, proprietário do jornal e seguidor doprotestantismo anabatista.

    Antes de abraçar o jornalismo, Alcindo deixou inconclusa a Faculdade de Medicina.

    Trabalhou como inspetor no Asilo dos Menores Desvalidos e como faxineiro na Gazeta da

    Tarde, de José de Patrocínio, onde travou contato com Raul Pompéia e Luís Murat. Numdia em que a redação estava em greve, redigiu sozinho todas as matérias do jornal,

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    conquistando no mesmo passo a admiração de Patrocínio e um emprego na folha.Defendeu com vigor a causa abolicionista, mudando de opinião aos 22 anos, quando, apósromper relações com José do Patrocínio, passou a dirigir a folha escravagista Novidades.Em artigo estampado dois dias após a promulgação da Lei Áurea, justificava seu ponto devista, argumentando que a extinção da escravatura desencadearia uma incontrolável

    convulsão social: “Nós gastamos boa parte da nossa atividade fazendo sentir que aabolição radical devia trazer conseqüências funestíssimas ao país; e agora que ela está

    feita pela pior das maneiras, seremos talvez o único jornalista que assim pensa! maspensamos que essas conseqüências serão inevitáveis e fatais.”

    Posteriormente, sem ambigüidades, engajou-se na causa republicana, trabalhando noJornal do Comércio e no Correio do Povo. Deputado na Constituinte, reelegeu-se em 1894,na segunda legislatura republicana. Três anos depois, seu nome, bem como os de JoséVeríssimo e José do Patrocínio, constaria de um documento em apoio a Cuba, noturbulento período em que o país caribenho lutava pela consolidação de suaindependência. Ainda em 1897, Alcindo, opondo-se a Prudente de Morais, recebeu a penade confinamento na ilha de Fernando de Noronha, de onde saiu graças a habeas corpusimpetrado por Rui Barbosa. Guanabara persistiu na oposição com o jornal A Tribuna,

    fundado em 1898. Transformou-se em voz situacionista na presidência de Campos Sales(1899-1902), quando criou A Nação e colaborou em O Dia. Ocupou o cargo de redator-

    chefe de O País, até 1905. Fundou A Imprensa, onde liderou a campanha por PinheiroMachado. Eleito para o Senado, morreu no dia 20 de agosto de 1918, alguns meses após

    o início da legislatura.

    A relação (não-exaustiva) de tantos títulos de periódicos em que Alcindo Guanabara atuoufornece um pouco da dimensão superlativa de sua figura no meio jornalístico do país. Paramelhor lhe dimensionarmos a importância, basta dizer que na História da imprensa noBrasil, de 1967, Nelson Werneck Sodré, num impressionante índice onomástico, arrolanada menos do que 1940 nomes; desses, apenas 13 são citados 20 ou mais vezes;Alcindo Guanabara é um deles. Foi, aliás, precisamente em louvor ao poder da imprensaque Alcindo escreveu uma de suas mais vibrantes páginas, publicada em O País, de 3 de

    novembro de 1904: “É graças a ela [imprensa] que o pensamento se liberta, que o espíritohumano se emancipa de preconceitos/.../, que a prepotência dogmática se atenua e que o

    livre exame surge, como alicerce e fundamento de uma nova moral social/.../. O panfleto,

    clandestino e anônimo, é ainda uma arma de rebelião; o jornal só vive numa atmosfera deliberdade”.

    Estampava a manchete do jornal A Razão, no dia seguinte à morte de Alcindo: “Uma perdainsubstituível no nosso patrimônio moral. O falecimento do maior dos jornalistasbrasileiros”. A matéria detalhava: “é sobretudo como jornalista que o nome de AlcindoGuanabara se perpetuará na nossa história. A sua pena maravilhosa representava, por simesma, o próprio jornal, porque produzia tudo de quanto ele precisasse, desde o artigo de

    fundo até ao noticiário de polícia”. Curiosamente, nem A Razão, nem A Notícia, tampoucoo Jornal do Comércio sublinharam o fato de Guanabara ter pertencido aos quadros da

    Academia Brasileira de Letras, preferindo reverenciá-lo como um grande jornalistasubtraído pelas lides políticas, e lamentando que a atividade parlamentar houvesse, já há

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    alguns anos, abafado o escritor em prol do deputado. Alcindo Guanabara tornou-se nomede colégio estadual, de rua, e já o foi de sua cidade natal, que voltou a chamar-seGuapimirim.

    A produção de Alcindo encontra-se resgatada, ainda que parcialmente, graças a uma

    iniciativa do Senado Federal, que republicou em 2002 - um século após a edição original -o livro A presidência Campos Sales. Apesar de Guanabara proclamar-se, orgulhosamente, jornalista, é inegável que se sobreleva uma dimensão literária, no sentido estrito, em

    alguns textos de sua lavra, a exemplo da conferência “A dor”, pronunciada em 1905. Asconferências sobre temas abstratos ou genéricos, aliás, estiveram em grande voga noinício do século XX. Vários membros da Academia aderiram à atividade, que, ao queconsta, era bem remunerada e visava sobretudo ao público feminino. Citemos, entre ascontribuições mais destacadas, as de Olavo Bilac, com as Conferências literárias, de 1906;de Medeiros e Albuquerque, cujos Pontos de vista vieram a lume em 1913; e de CoelhoNeto, autor de Falando, de 1919.

    Alcindo Guanabara proferiu o elogio fúnebre de Machado de Assis na Câmara, em 1908.

    De seu elogio póstumo e acadêmico incumbiu-se o sucessor, arcebispo dom SilvérioGomes Pimenta, empossado em 28 de maio de 1920. Se Guanabara já fora controverso

    em vida, continuou a sê-lo em morte. A recepção a dom Silvério ficou a cargo de umdesafeto do falecido jornalista: o escritor Carlos de Laet, monarquista e católico. Dom

    Silvério, elegantemente, realçara as qualidades do antecessor e ainda tentara localizar, emseus escritos, declarações ou indícios que lhe contradissessem a arraigada fama de ateu.Mas Laet, polemista de verbo afiado e verve ferina, insinuou, com demolidora ironia, tratar-se de um curioso caso de conversão religiosa post-mortem, e, omitindo o nome de Alcindo,destilou toda a causticidade do famigerado episódio do “a favor ou contra Jesus Cristo”.

    Dom Silvério, nascido em Congonhas do Campo em 12 de janeiro de 1840, tornou-se nãoapenas o primeiro prelado a ingressar na Academia, mas também, em 1890, o primeirosacerdote consagrado bispo na vigência do regime republicano. Negro, de família

    humílima, órfão de pai aos 4 anos, foi caixeiro e sapateiro. Estudou graciosamente emescolas religiosas. Aos 16 anos já ministrava aulas de Latim; algum tempo depois,

    dedicou-se igualmente ao magistério de Filosofia e História Universal. Na docência doLatim, teve entre seus alunos Augusto de Lima, futuro membro da Academia Brasileira de

    Letras.

    Na bibliografia que deixou, destaca-se, de 1876, a Vida de Dom Antônio Ferreira Viçoso,bispo de Mariana e conde da Conceição. Dom Antônio ordenara Silvério Gomes Pimentana cidade de Sabará, em 1862, e seria um de seus antecessores no bispado de Mariana.Em 1906, o papa Pio X elevou a diocese da cidade à categoria de arquidiocese. DomSilvério, à época o nono bispo de Mariana, transformou-se, assim, no seu primeiroarcebispo. Sua obra, cujo padrão estilístico é comparado ao de frei Luís de Sousa, não foicontemplada com reedições, e tornou-se de difícil acesso, quer em alfarrabistas, quer em

    bibliotecas públicas ou particulares. Todavia, a devoção ao arcebispo foi bastante para

    perpetuar-lhe a memória numa cidade mineira, a antiga Saúde, situada na Zona da Mata, eque desde 17 de dezembro de 1938 se denomina Dom Silvério. Outro registro a não se

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    negligenciar é o da viagem que, em 1919, Mário de Andrade realizou a Mariana. Além deprotagonizar um célebre encontro com Alphonsus de Guimaraens (poeta que, certamente,mereceria ter figurado entre os membros da Academia), Mário também visitou o arcebispo.

    Menos de 24 meses ocupou Dom Silvério a cadeira 19. Falecendo em 30 de agosto de

    1922, foi sucedido em 7 de maio de 1923 por Gustavo Barroso, de 34 anos. Apesar de jovem, Barroso já se havia candidatado à Academia em diversas ocasiões. Sua vitória naquarta tentativa, além de premiar-lhe o tenaz temperamento, representou o

    reconhecimento acadêmico a uma trajetória inegavelmente precoce e operosa.

    Nascido em Fortaleza, no dia 29 de dezembro de 1888, bacharelou-se em Direito no Riode Janeiro em 1911. A partir de então, e até 1913, foi colaborador do Jornal do Comércio.Aos 23 anos, estreou em livro com Terra do sol, que versa sobre paisagens e costumes dosertão cearense. Nesta que, para muitos, é sua melhor obra, assinou-se “João do Norte”.

    Ainda está por ser feito um levantamento que dê conta dos inúmeros “Joões” (e alguns“Josés”) sob os quais, nas primeiras décadas do século XX, se ocultavam os verdadeirosnomes dos autores. Houve pseudônimos para todos os gostos e regiões: João do Rio, de

    Minas, do Sul; João das Regras e João dos Gatos. O português João Grave, queescrevera Gente pobre – cenas da vida rural, mereceu do brasileiro José da Costa

    Sampaio, autor de Gente rica – cenas da vida paulistana, uma dedicatória que se tornouantológica pelo fato de Sampaio tê-la subscrito com seu nome literário: “A João Grave,oferece José Agudo.”

    Antes do ingresso na Academia, Barroso atuou, sucessiva ou simultaneamente, como

    professor da Escola de Menores; secretário do Interior e da Justiça do Ceará; redator darevista Fon-Fon; deputado federal pelo Ceará. Além disso, no que se constitui talvez emseu maior legado, foi o idealizador do Museu Histórico Nacional, que dirigiu (compequenas interrupções) desde a fundação, em 1922, até falecer, no dia 3 de dezembro de

    1959.

    Ao assumir a cadeira 19, já havia publicado cerca de 15 livros, e seu intenso ritmo de

    produção o fez atingir, em 1959, a espantosa cifra de 128 títulos. Gustavo Barroso foi umpolígrafo, na plena acepção do termo: escreveu romances, contos, poemas, ensaios,biografias, memorialismo, lexicografia, textos sobre folclore, museologia, história e política.Sua faceta política, decerto, é a mais polêmica, em decorrência do anti-semitismo que delatranspira. Na década de 1930, foi ostensiva a participação de Barroso na ação integralista,onde se situava como o segundo nome do movimento, abaixo apenas do líder PlínioSalgado. Várias obras do período, da autoria de Barroso, concorreram para a divulgação ea apologia da doutrina. Na biografia elaborada por seu sucessor acadêmico, Antônio daSilva Melo, ressalta-se a incontida atração de Gustavo, desde a infância, pela vida militar epelos princípios do comando e da autoridade. Mas, aceitando-se ou não a premissa de

    que no menino estaria o homem, deve-se por justiça reconhecer que sua vida,ensombrecida embora pelo equívoco do preconceito racial, não pode a ele ser reduzida.

    Quando aderiu ao integralismo, em sua vertente mais áspera, Barroso já se notabilizarapor uma série de realizações como homem público e escritor. Foi um dos pioneiros no

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    reconhecimento do valor cultural e literário dos cantadores nordestinos. Com RibeiroCouto, fundou, em 1932, a Editora Civilização Brasileira. Em 1934, ministrou o primeirocurso de museologia do país, no Museu Histórico Nacional, instituição pela qualincansavelmente se bateu, dedicando-se à preservação da memória de um país acusadode desprezá-la. Igualmente profícuo foi o trabalho de Gustavo Barroso nos seus 36 anos

    de atuação acadêmica. Duas vezes presidente da Casa, em outras ocasiões secretário outesoureiro, já em 1923, recém-admitido, lhe fora atribuída uma delicada missão, da qual se

    desincumbiu com êxito: administrar a transferência da sede da Academia, do SilogeuBrasileiro para o prédio do Petit Trianon.

    Próximo ao fim da existência, voltou-se, ternamente, para a Fortaleza natal, escrevendo,em 1957, a letra do hino da cidade: “No esplendor das manhãs cristalinas/ Tens asbênçãos dos céus que são teus/ E das ondas que o sol ilumina/ As jangadas te dizemadeus/.../ Onde quer que teus filhos estejam, / Na pobreza ou riqueza sem par, / Com amore saudade desejam/ Ao teu seio o mais breve voltar./ Porque o verde do mar que retrata/ Oteu clima de eterno verão/ E o luar nas areias de prata/ Não se apagam no seu coração.”

    Vida e obra de Gustavo Barroso foram minuciosamente descritas por Antônio da SilvaMelo, na sua oração de posse, realizada em 16 de agosto de 1960. Para se ter uma idéia

    da exaustividade da pesquisa, basta dizer que no volume XVII dos Discursos acadêmicosseu texto se estende por 104 páginas, das quais cerca de uma dezena dedicadas a

    patrono e primeiros ocupantes, e nada menos do que 90 ao antecessor. Consta ter sido osegundo mais longo discurso de toda a história da Academia, suplantado apenas pelo deÁlvaro Lins. Silva Melo o pronunciou em versão condensada, porque, apresentado naíntegra, demandaria cerca de 4 horas de leitura.

    A oscilação pendular entre jovens e idosos manteve-se, na cadeira 19, com a eleição deAntônio. Ele, aos 70 anos, substituía Gustavo Barroso, que entrara com 34, que substituíradom Silvério, que entrara com 80, que substituíra Alcindo Guanabara, que entrara com 32.

    Silva Melo nasceu em Juiz de Fora, no dia 10 de maio de 1886. Temperamento inquieto,

    curiosíssimo, voltou-se desde a adolescência para a área médica, e logo demonstrouinsatisfação com a má qualidade do ensino de Medicina no país. Decidiu prosseguir os

    estudos na Alemanha. Em 1916, defendeu, em Berlim, tese intitulada “A influência do tórioX sobre o sangue”. Especializou-se em clínica médica. A experiência mais dramática desua vida provavelmente terá sido a de um naufrágio, quando o navio em que viajava deregresso ao Brasil foi torpedeado no Mar do Norte. Antônio salvou-se, mas tudo o quetrazia - uma vasta biblioteca, seu laboratório, vários trabalhos inéditos - foi por águaabaixo. Impedido de retornar à Alemanha, devido à deterioração das relações teuto-brasileiras na I Guerra Mundial, acabou permanecendo por mais dois anos na Suíça.Retornou ao Brasil em 1918. Foi aprovado em concurso para catedrático de Clínica Médicana então Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro. Aprofundou-se na área danutrição e desenvolveu inúmeros estudos sobre as conseqüências da radioatividade no

    organismo humano. Deve-se a ele a divulgação dos efeitos benéficos das areias negras e

    monazíticas de Guarapari, região que freqüentou nos anos de 1930, e a que consagrouartigos de grande sucesso, publicados em O Cruzeiro, no Jornal do Brasil e no livro

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    Guarapari, maravilha da natureza, de 1971. Nessa cidade, em preito de gratidão, SilvaMelo é hoje nome de escola e de rua.

    Passando das areias monazíticas da praia às areias metafóricas da ampulheta do tempo,

    permito-me incluir, aqui, um pequeno excurso de natureza sentimental e biográfica. A vida

    me reservou a extraordinária felicidade de contar com a presença, na cerimônia de hoje,de meus pais, Sives e Regy, que se conheceram na década de 1940 no balneário deGuarapari, tão louvado por meu antecessor. O primeiro mar que vi foi o da praia espírito-

    santense de Marataízes. Homenageio assim, por extensão, o estado do Espírito Santo, emque, por casualidade, não nasci, mas onde aprendi a ler e iniciei, fascinado, essa viagemsem volta na direção da escrita e da leitura - nessa mesma terra capixaba que mereceu deum crítico severo, Osório Duque-Estrada, no livro O norte, de 1909, um fulminante juízo:“Não há literatos nem cultores da arte no estado do Espírito Santo”. Quatro anos após odrástico veredito, nasceria, em Cachoeiro de Itapemirim, aquele que seria aclamado comoum dos maiores, senão o maior cronista do país: Rubem Braga.

    Silva Melo fundou, em 1944, e dirigiu até o fim de seus dias - morreu no Rio, em 19 de

    setembro de 1973 - a Revista Brasileira de Medicina. Citam-se, entre seus principais livros,O homem - sua vida, sua educação, sua felicidade, de 1945; Mistérios e realidades deste e

    do outro mundo, de 1948; Nordeste brasileiro, de 1953; Estados Unidos - prós e contras,de 1958; Estudos sobre o negro, de 1958 e A superioridade do homem tropical, de 1967. A

    observar, em sua obra, a ênfase positiva atribuída à etnia negra e à cultura mestiça etropical do brasileiro. Ainda que supervalorizando aspectos do instinto e da constituiçãofísica do homem dos trópicos, a posição de Silva Melo não deixa de ser bastanteprovocativa, a ponto de podermos interpretá-la como a trincheira bio-antropológica dodiscurso histórico-sociológico de Gilberto Freyre. Essas afinidades, aliás, já foramsalientadas pelo cientista social Gilberto Vasconcellos, num simpático perfil que traçou denosso antecessor: “foi o crítico da ideologia do colonialismo na esfera da medicina,ideologia essa que calunia o sol, o trópico e o homem mestiço. Ele negouperemptoriamente a tese equivocada de que o calor ou o clima quente seja um fatordesfavorável à cultura e ao desenvolvimento da inteligência.” Esse traço contestador

    reflete-se em muito do que escreveu. O título de uma de suas obras - Estados Unidos, próse contras - fez alguns leitores pensarem que ele se havia esquecido de encaminhar à

    gráfica o capítulo dos “prós”.

    Silva Melo dedicou-se a uma pormenorizada investigação acerca dos mistérios deste e dooutro mundo, para concluir que em nenhum dos mundos havia mistério algum. AméricoJacobina Lacombe, que o sucedeu na cadeira 19, não deixou de registrar no discurso deposse que, apesar do espírito incrédulo de seu antecessor, patente na exaltação da ciênciacomo a única via da verdade, Antônio poderia servir de comprovação a um axioma deElisabeth Leseur, segundo o qual não haveria ateu lógico. Para corroborar a afirmativa,Lacombe leu um trecho do livro mais conhecido de Silva Melo, O homem: “Fui

    invariavelmente levado à convicção de que os fantasmas não existem e que, portanto, nãome devem amedrontar. Mas, apesar disso, continuo a ter medo deles./.../ Por essa simples

    razão nunca ousei dormir sozinho numa casa isolada, ou mesmo num quarto afastado deoutros habitados. Eis a situação em toda sua ridícula simplicidade”.

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    Américo Jacobina Lacombe assumiu a cadeira de Antônio da Silva Melo em 2 de julho de1974, a cinco dias de completar seu sexagésimo-quinto aniversário. Nascido no Rio deJaneiro, cresceu no interior de um estabelecimento de ensino - o célebre Jacobina -, mas asaúde frágil o levou a prosseguir os estudos em Belo Horizonte, onde conheceria JoãoGuimarães Rosa. Regressou ao Rio, concluindo, em 1931, a Faculdade de Direito, sem

    que jamais viesse a exercer a advocacia. Professou por toda a existência a religiãocatólica. Freqüentou o Centro Dom Vital, tornando-se amigo de Jackson de Figueiredo e

    do padre Leonel Franca. Com Alceu Amoroso Lima e outros intelectuais, foi um dosmentores do projeto de criação, no Rio de Janeiro, da Pontifícia Universidade Católica.

    Eram nítidas, em Lacombe, as vocações para o serviço público, a pesquisa e o magistério.Em 1939, foi nomeado diretor da Casa de Rui Barbosa, instituição em que trabalharia até ofim de seus dias, transformando-a num avançado e prestigioso centro de documentação.Seu talento, porém, não se revelou apenas na inegável competência e operosidade comque administrou a Casa; estampou-se do mesmo modo na qualidade de sua produçãoensaística, centrada na História do Brasil, e no desvelo com que se votou a um gigantescoempreendimento na área jurídica: a publicação das obras completas de Rui Barbosa, aindaem curso, com 151 volumes editados, vários deles enriquecidos com prefácio ou notas do

    próprio historiador. Também em prol da memória de Rui, colaborou nos Escritos ediscursos seletos (1960), da editora José Aguilar. Em excelente estudo introdutório,

    Lacombe defendeu com vigor o estatuto especificamente literário da escrita de Rui, contraos que nela enxergavam apenas traços convencionais da retórica forense.

    Américo Jacobina Lacombe foi membro e presidente do Instituto Histórico e GeográficoBrasileiro. Coordenou a cadeira de História, no Instituto Rio Branco, do Itamarati, e dirigiu,a partir de 1957, em substituição a Fernando de Azevedo, a famosa coleção Brasiliana, daCompanhia Editora Nacional, referência indispensável em qualquer bibliografia que seelabore sobre o nosso país.

    Dentre o que legou, sem falarmos nos inúmeros estudos avulsos dedicados a Rui,

    destacam-se: o livro de estréia, de 1942, Um passeio pela História do Brasil; a Introduçãoao estudo da História do Brasil, de 1974, contribuição de peso na área da metodologia

    historiográfica; e Afonso Pena e sua época, de 1986.

    Faleceu no dia 7 de abril de 1993, ainda na presidência da Casa de Rui Barbosa. Apesquisadora Isabel Lustosa evocou-lhe a figura num delicado artigo intitulado “Umhomem admirável”. Após ressaltar, em breves linhas, alguns episódios da vitoriosatrajetória intelectual e administrativa de Lacombe, concluía: “A grande obra de AméricoLacombe é a Fundação Casa de Rui Barbosa. Sua vida, dedicou-a inteira a ela. Justo éque seja a Casa Rui também o seu memorial. Que ali fiquem, para a formação dasgerações futuras, seus livros, suas anotações, seus arquivos. Que a memória destehomem admirável não se perca dispersa em bibliotecas estranhas”. O voto aí formuladoacabou por materializar-se, e hoje a fundação é a guardiã do arquivo de um homem que

    tanto trabalhou como guardião da memória de todos nós.

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    Marcos Almir Madeira sucedeu a Américo Jacobina Lacombe em 19 de novembro de1993. No início da oração, saudou Niterói, cidade em que nascera no dia 21 de fevereirode 1916. Após examinar, numa síntese feliz, a vida, a obra e a herança do antecessor,encerrou o discurso com uma atilada análise da contribuição de Rui Barbosa à vida públicabrasileira - e o epílogo não foi arbitrário, pois, ao lado da francofilia, o jurista baiano

    sabidamente ocupava o mais elevado patamar das afinidades eletivas entre Marcos eLacombe.

    Observa-se uma coincidência na biografia dos quatro últimos titulares da cadeira 19:todos, a seu modo, se irmanam por terem-se consagrado à idealização e/ou à manutençãode um consistente e duradouro projeto cultural. Gustavo Barroso criou o Museu Histórico.Silva Melo, em terreno mais específico, fundou a Revista Brasileira de Medicina. AméricoJacobina Lacombe dirigiu a Casa de Rui Barbosa. E Marcos Almir Madeira tornou-sequase sinônimo de PEN Clube, associação que presidiu durante um quarto de século. Abiografia de Marcos, todavia, ultrapassa tal referência, por mais fecunda que haja sido suaextensa gestão à frente desse grêmio literário.

    Graduou-se em Direito no ano de 1939. Foi professor de Português, História e, a partir de1950, de Sociologia, na atual Universidade Federal Fluminense - disciplina que introduziria,

    a partir de 1952, na Fundação Getúlio Vargas. Também lecionou Sociologia na PUC do Riode Janeiro e no Instituto Rio Branco. Como educador, visitou, em missões oficiais, a

    Alemanha, a França, Israel e o Japão. Na qualidade de delegado regional do MEC, lutoupela preservação do mobiliário de Machado de Assis, hoje incorporado ao acervo daAcademia Brasileira de Letras. Dirigiu a Casa de Oliveira Viana, de quem foi dileto amigo,e o Arquivo Público. Foi membro e orador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

    Estreou em livro com A ironia de Machado de Assis e outros estudos, de 1944. Dentreseus títulos mais relevantes, encontram-se Homens de marca (1979) e Fronteira sutil entrea sociologia e a literatura (1993). Na publicação comemorativa do centenário da AcademiaBrasileira de Letras, foi autor do ensaio “Os cientistas sociais”. A bibliografia de Marcos

    recobre os domínios da sociologia, da pedagogia, da crítica literária e dos estudosbiográficos. Deixou inéditas suas memórias, a serem publicadas por esta Casa tão logo se

    conclua o estabelecimento do texto. As reminiscências, com o título de Na província e nacorte, privilegiam, num saboroso relato, a fase “na província” (entenda-se: em Niterói) de

    Marcos, mas também alcançam, sem o desdobramento que a morte houve por mal obstar,seu período carioca.

     Almir Madeira era um orador refratário ao dó-de-peito retórico; exatamente por isso,lograva ser mais insinuante e persuasivo. Nascido no mesmo dia e mês de outro notávelconferencista da Academia - Coelho Neto -, Marcos refugava a hipérbole, na fluidez de umtom que sabia, desde o início, cativar a platéia. Exibia uma satisfação quase voluptuosapela palavra precisa. A elegância e a perspicácia que afloravam de seus discursos talveztenham empalidecido a apreciação dos méritos – ofuscados pelo próprio brilho do orador -

    de sua obra escrita. É verdade que, a rigor, alguns textos de Marcos parecem mais sugerir

    a audição do que a leitura, de tal modo neles transparecem as marcas de uma prazerosaoralidade, sustentada por uma leveza estilística a convidar, ou quase a convocar, o público

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    a deixar-se envolver pelos meandros de sua bem urdida sintaxe. Conforme se podeverificar nos ensaios que dedicou a Machado de Assis, Lúcio de Mendonça, Euclides daCunha, Gilberto Freyre, Augusto dos Anjos, Afonso Arinos, Antonio Candido, entre váriosoutros, a palavra de Almir Madeira, na tribuna ou no livro, era sempre portadora de umalucidez ao mesmo tempo amena e aguda.

    A esses dotes se adicionavam a sólida cultura de base francófila e o gosto pelas incursõesao domínio histórico. Sirva de exemplo a reabilitação que empreendeu do ideário de

    Oliveira Viana, ao comprovar, nas manifestações tardias do pensador, a ultrapassagem deposições racistas abonadas em seus primeiros trabalhos. É ler Oliveira Viana -vulnerabilidades da crítica (1999), onde, baseado em ampla documentação, Madeirareavalia o legado do amigo e “quase” mestre. Apesar da amizade e da reiterada admiraçãopor Viana, Marcos insistia em declarar-se um cultor não-ortodoxo do sociólogo, sobretudono que tangia às considerações acerca do papel do estado. À veia liberal de Marcos soavaexcessivo o incremento da autoridade estatal propugnado por Oliveira Viana, adepto deuma política exercida por um poder antes unitário e aglutinador do que federativo edescentralizado.

    Se eu tivesse de caracterizar Marcos Almir Madeira como um personagem da literatura

    brasileira, não hesitaria em recorrer ao machadiano Conselheiro Aires, pela sutileza, pelotrato lhano, pelo tédio à controvérsia. Isso não o impedia, se necessário, de ser incisivo,

    mas sempre no diapasão da polidez, zeloso de que as discordâncias não derivassem parao destempero. Leia-se, por exemplo, sua conferência sobre Manuel Bandeira, em queelogia o poeta pela simplicidade e pela veia comunicativa, em oposição à vertente do quedenomina “modernismo predatório”. Num tom algo acima do que lhe era habitual situam-seas veementes conclusões do seu discurso de posse, quando, respeitando embora agrandeza de Rui Barbosa, distingue duas faces no pensamento do jurista: uma, digamos,mais formalista, e outra próxima da realidade concreta do país. Sem tergiversações,Marcos afirma: “Já me vou cansando, Senhores, dessa liberdade apenas declarada,declamada, verbal, a produzir uma democracia de superfície, formal/.../ O Estado liberalteria de ser, antes de tudo, um Estado justo. E, mais do que nunca, este é o problema

    capital do Estado brasileiro na hora que passa/.../ Já não me entusiasma o artífice daConstituição de 1891, de costas para a realidade social em carne viva; Constituição

    omissa, demissionária, perfeita na técnica jurídica, mas lastimável na visão (ou não-visão)

    do homem brasileiro, da problemática do meio e suas urgências./.../desse Rui eu de fatome despedi. Reverencio sinceramente a outro/.../ que pregava a ampliação dos benefícios judiciais do habeas corpus, o que libelava o arbítrio, os desmandos/.../ ficou-me tambémprofundamente aquele outro, que magnificamente projetou a renovação de métodos eprocessos de ensino nos três níveis, madrugando, em 1882, para uma filosofia e novapolítica de educação”.

    Conheci Marcos em 1994, e logo desenvolvemos uma amizade fundada em instantânea e

    recíproca simpatia. Com seu voto e apoio, fui eleito para o PEN Clube em 1995, na vagado professor José Carlos Lisboa. Segundo informação de suas filhas, Cristina e Maria

    Ângela Madeira, as memórias paternas se iniciam, precisamente, pela ida de Marcos àminha residência, no âmbito da tradicional visita que o presidente efetuava à casa de

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    escritor recém-eleito, a fim de comunicar-lhe o resultado do pleito. Posteriormente, pordiversas vezes atendi a seus convites para proferir palestras na sede da instituição, à Praiado Flamengo, onde me recebia com a afabilidade, a fidalguia e o bom-humor que lhe eramcaracterísticos. Tratava-se de um refinado mestre-de-cerimônias, impecável na conduçãodos cursos e mesas-redondas que desde 1978 promovia no seu PEN Clube. Mais do que

    apenas cordial, adjetivo com que muitos o caracterizavam, Marcos foi, essencialmente, umhomem conciliador, pronto a acolher o outro e a ele predispor-se.

    Em uma ou outra ocasião, cheguei a divisar no seu semblante um leve traço demelancolia, e me perguntava se, no fundo, não faria parte da personalidade de MarcosAlmir Madeira uma inextinguível nostalgia de galã, ou galanteador, da belle-époque, avincar, no seu rosto risonho, o rictus elegíaco de um ser desconfortável frente aorecrudescimento da incivilidade que permeia o campo das práticas cotidianas.

    A última vez que o vi ainda lúcido foi, como de hábito, num evento literário: tratava-se do

    lançamento do romance Damas de copas, de Cecília Costa, numa livraria do Leblon.Achei-o tenso, abatido. Na manhã seguinte, entraria em coma - duas semanas após haver

    perdido Duhilia, a companheira de toda a existência. Pouco depois, um livro de minhaautoria foi contemplado com o Prêmio Nacional do PEN Clube. Comentei com suas filhas

    que para mim a maior dádiva seria receber das mãos de Marcos o diploma da vitória. Nãofoi possível. Acabei recebendo-o da arqueóloga Maria Beltrão, sua substituta na

    presidência do Clube. O destino, num lance de dura sabedoria, fez Marcos,romanticamente, morrer de amor. Ao despedir-se da mulher, despedia-se da vida.

    Para a cadeira 19, foi eleito com 19 votos num dia 19. Tomou posse noutro dia 19. Emorreu no Rio de Janeiro, em 19 de novembro de 2003. Cabe-me a honra de sucedê-lo.

    Recordamos Marcos Almir Madeira, Américo Jacobina Lacombe, Antônio da Silva Melo,Gustavo Barroso, dom Silvério Gomes Pimenta, Alcindo Guanabara e Joaquim Caetano da

    Silva. De certo modo, cada cerimônia de posse na Academia Brasileira de Letras ritualiza oenlace do passado - os antecessores - com o futuro, na figura de um novo acadêmico.

    Nesse mecanismo, regido pela inexorabilidade de Chronos (afinal, somos todos provisóriosoperários da palavra na construção de alguma “interminável música”), não poderia omitir

    os elos do presente. Saúdo Affonso Arinos de Melo Franco, Alberto da Costa e Silva,Alberto Venancio Filho, Alfredo Bosi, Ana Maria Machado, Antonio Olinto, ArianoSuassuna, Arnaldo Niskier, Candido Mendes de Almeida, Carlos Heitor Cony, Carlos Nejar,Celso Furtado, Cicero Sandroni, Eduardo Portella, Evanildo Bechara, Evaristo de MoraesFilho, Pe. Fernando Bastos de Ávila, Ivan Junqueira, Ivo Pitanguy, João de Scantimburgo,João Ubaldo Ribeiro, José Murilo de Carvalho, José Sarney, Josué Montello, Lêdo Ivo,Lygia Fagundes Telles, Marco Maciel, Marcos Vilaça, Miguel Reale, Moacyr Scliar, MuriloMelo Filho, Nélida Piñon, Oscar Dias Corrêa, Paulo Coelho, Sábato Magaldi, Sergio Corrêada Costa, Sergio Paulo Rouanet, Tarcísio Padilha e Zélia Gattai. São estes, hoje, osescritores, os expoentes, que, com seus feitos e obras, elevam o nome e respaldam a

    força e a respeitabilidade de uma instituição a que, nesta noite de 6 de agosto de 2004, eu

    me orgulho de associar: uma Casa que simboliza o retrato instantâneo e multifacetado dacultura brasileira, numa vigorosa demonstração de polifonia e diversidade.

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    Por fim, de volta ao começo. Referi-me, no início, à obra mais importante de JoaquimCaetano da Silva, L’Oyapoc et l’Amazone, que tratava dos limites entre o Brasil e a Guiana.Um dos últimos livros de Marcos Almir Madeira se denomina Fronteira sutil entre asociologia e a literatura. Coincidentemente, o patrono e o derradeiro ocupante da cadeira19 se debruçaram sobre limites e fronteiras.

    Não interpreto os limites como região de plácido descompromisso entre o lá e o cá, mascomo um tenso território em cujas bordas vivenciamos o risco e o fascínio do duplo.

    Dissolvida a confortável ilusão da unidade, aprendemos a confrontar-nos com o territóriodo que desconhecemos. Percorrer o intervalo não é abrigar-se entre dois espaços, éexpor-se a ambos. É aceitar o assédio e o aceno de tudo aquilo que, em nós ou fora denós, se recusa à apropriação apaziguadora da identidade.

    Assim gostaria de entrar na Academia Brasileira de Letras: entendendo-a como fronteirafranqueada ao livre trânsito de todas as temporalidades. De um lado, receptáculo de

    nossas mais fundas, atávicas, heranças; de outro, passagem para a paisagem do novo.Neste discurso, balizado por dois poetas, a primeira palavra, acolhendo o passado, foi de

    Cecília Meireles. Que a última seja de Carlos Drummond de Andrade: “Ó vida futura! nóste criaremos”.

    DISCURSO DE RECEPÇÃO – IVAN JUNQUEIRA 

    Discurso de recepção por Ivan Junqueira

    Senhores Acadêmicos:

    Embora não seja a regra – e esta, se existe, prevê de quando em vez a exceção – , cabe-me nesta noite, na condição de Presidente da Casa de Machado de Assis, receber oAcadêmico eleito Antonio Carlos Secchin. O mesmo já se dera há poucos anos atrás, mais

    precisamente em 7 de junho de 1999, quando o então Presidente Arnaldo Niskier acolheuno Petit Trianon o Acadêmico Murilo Melo Filho. E assim também já ocorrera em passado

    distante, quando o Presidente Carlos de Laet recepcionou o Acadêmico Dom SilvérioGomes Pimenta, na noite de 28 de maio de 1920, nesta mesma Cadeira nº 19, na qual a

    partir de hoje toma assento o novo imortal que elegemos no último dia 3 de junho.Confirma-se, portanto, aquele antigo conceito de que a exceção legitima a regra. Épossível até que outros casos tenham ocorrido na história já centenária da AcademiaBrasileira de Letras, mas o que importa nesta noite é menos o esquecimento que tenhodesses fatos do que o imperativo de relembrar o precedente que se registra na cadeiracujo patrono foi o polígrafo Joaquim Caetano da Silva e que teve como primeiro ocupante o jornalista Alcindo Guanabara.

    Nascido em 10 de junho de 1952, sois hoje, aos 52 anos de idade, o mais jovem dentrenós, além de o primeiro acadêmico que conheceu a luz do mundo na segunda metade doséculo XX. É grande, pois, a vossa responsabilidade, e longa será, como todos

    esperamos, a vossa contribuição intelectual e literária à Casa que vos recebe nesta noitede festa e de glória. Muito embora a grave solenidade do instante recomende a adoção de

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    um tom impessoal, quero aqui recordar o nosso primeiro encontro, em 1992, quando o quenos unia – e continua a unir, e decerto nos unirá para sempre –, era o interesse pelaliteratura, mais exatamente a poesia e a crítica literária que escrevíamos à época e ospontos de vista estéticos de que partilhávamos. Éreis então ainda mais jovem, e no entanto já despontava em vós esse pendor pela astúcia da análise textual, pela palavra exata e

    escorreita, pela limpidez do estilo e pela clareza da expressão, atributos que, segundopenso, são o apanágio do poeta que se faz crítico e do crítico que subjaz em todo aquele

    que se torna, quase por fatalidade, um poeta de poetas. E assim tiveram início essaamizade e essa admiração recíprocas que se prolongam até os dias de hoje e que agora

    mais uma vez nos aproxima no momento em que conquistais a glória suprema do homemde letras que fostes desde sempre.

    Quero aqui recordar aos presentes um pouco de vossa trajetória como poeta, comoensaísta, como crítico literário e como professor universitário, já que, na qualidade de

    titular de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sois o herdeiro dogrande e inesquecível Afrânio Coutinho. E dispensa acrescentar que deste mesmo berçoilustre procedem os Acadêmicos Alceu Amoroso Lima, Celso Cunha, Eduardo Portella etantos outros que ali deixaram as indeléveis marcas de sua sabedoria. Vindes de umafamília de imigrantes italianos do Veneto que se estabeleceram no estado do EspíritoSanto desde os fins do século XIX, mas corre também em vossas veias o generososangue de um avô português que era poeta e leitor assíduo de Camões, de GuerraJunqueiro e de Antero de Quental. Apesar de carioca – ou homo copacabanensis, comogostais de dizer –, vivestes até os cinco anos em Cachoeiro de Itapemirim, ondeaprendestes a ler e escrever. E esta primeira infância é que inerva o amor que guardais

    por vossas raízes mais remotas.

    Mais adiante, aos 17 anos, ingressastes na Faculdade de Letras da Universidade Federaldo Rio de Janeiro, onde fostes discípulo, entre outros, dos Acadêmicos Eduardo Portella,Afrânio Coutinho, Evanildo Cavalcante Bechara e Oscar Dias Corrêa. Seis anos depois,

    em 1975, vos tornastes professor de literatura e cultura brasileira da Universidade deBordeaux, na França, e em 1977 obtivestes o diploma de Estudos Aprofundados na

    Sorbonne. De volta ao Brasil, trabalhastes com a futura Acadêmica Nélida Piñon e oescritor Rubem Fonseca no Departamento de Cultura da Secretaria de Educação do

    Município do Rio de Janeiro. Lecionastes ainda, ao longo destes trinta e quatro anos de

    magistério, não apenas no Brasil, mas também, como professor convidado, na França, naItália, em Portugal, na Venezuela e nos Estados Unidos. Mestre em Literatura Brasileiraem 1979 e doutor em Letras em 1982, com teses sobre a poesia de João Cabral de MeloNeto, conquistastes em 1993, em concurso público que vos atribuiu a nota máxima, acátedra de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na qualsucedestes a Alceu Amoroso Lima e Afrânio Coutinho. Era o coroamento de vossopercurso magisterial, e o lograstes na condição de o mais jovem catedrático dessa

    especialidade entre vossos pares na instituição de ensino superior que foi sempre umaespécie de segunda residência para vós. E agora começais a morar em vossa “terceira

    residência”, aquela que foi o exílio para Pablo Neruda e que será para vós, ad

    immortalitatem, a Academia que agora vos recebe.

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    Não me alongarei mais em vossa biografia, já que os muitos anos de vida que vos restamse encarregarão de fazê-lo. Que baste por hora este precário e lacunoso bosquejo. Queroantes deter-me em vossa obra, a do ensaísta laureado de João Cabral: a poesia domenos, contemplado em 1987 com o Prêmio Sílvio Romero da Academia Brasileira deLetras; a do crítico literário que nos legou Poesia e desordem e Escritos sobre poesia &

    alguma ficção; a do organizador de diversas antologias de poetas brasileiros e das ediçõesda poesia completa de Júlio Salusse, Cecília Meireles e Mário Pederneiras, bem como dos

    melhores poemas de João Cabral de Melo Neto; e, finalmente, a do poeta de Todos osventos, no qual reunistes toda a vossa poesia e que, num único ano, o de 2003,

    conquistou nada menos que três importantes prêmios literários: os da Academia Brasileirade Letras, da Fundação Biblioteca Nacional e do Pen Club do Brasil, durante tantos anospresidido pelo Acadêmico Marcos Almir Madeira, a quem agora sucedeis na cadeira quelhe pertenceu por toda uma década ao longo da qual nos deu uma inexcedível lição devida e de fraterno convívio.

    É sobre o poeta que sois – e sem o concurso do qual jamais seríeis o crítico e o ensaístaem que vos tornastes – que pretendo me deter um pouco durante o tempo que me resta.Já o fiz, aliás, em 1997, no Centro Cultural de São Paulo, onde pronunciei uma conferênciasobre esse poeta que vos ilumina os textos em prosa e que muito me lembram aquelaexigência que nos impunha Baudelaire num dos fragmentos de Mon coeur mis à nu: “Soistoujours poète, même en prose”. Disse eu na ocasião que, por serdes até aquela dataessencialmente um crítico de poesia, tal condição vos inibiria no que toca à arte deescrevê-la. É bem de ver que tal conjectura tem lá o seu grão de verdade, pois o pleno eininterrupto exercício de vossas demais atividades, às quais se acrescentava então a

    espinhosa e multitudinária responsabilidade que vos cabia como editor da revista PoesiaSempre, da Biblioteca Nacional, decerto vos levaria, como de fato vos levou, à fímbria de

    uma outra exigência, esta de Leonardo da Vinci, quando aludia ao ostinato rigor com quedeve proceder o artista em tudo o que faz. E esse rigor, se não inibe, sem dúvida concorre

    para que qualquer escritor só dê à estampa o que julga digno de si e de sua pena.

    Muito embora o que acabamos de dizer contribua para caracterizar a escassez de uma

    poesia do pouco, como então a batizei glosando aquilo que definistes como “a poesia domenos” no que respeita à severa arquitetura verbal de João Cabral de Melo Neto, pareceu-

    me que o fio da meada principiava com o vosso próprio comportamento de autor, que se

    ocultava, de todo arredio às efêmeras glorietas literárias, sob o manto de uma quaseparadoxal e extrema sociabilidade mundana. É que, num dos poemas de vosso segundolivro, Elementos, que absorve a poesia do primeiro, Ária de estação, “revisitada ediminuída”, como a corroborar aquela tendência ao menos e ao pouco a que já nosreferimos, encontramos estes versos: “Na sonância do que vive, / minha fala éresistência, / e dizer é corroer o que se esquiva.” Comportamento idêntico é o que se vênas últimas linhas da estranha novela metapoética Movimento, onde confessais: “Coloco

    uma folha na máquina. Penso no que vou escrever. Por alguns segundos fico indeciso. Épreciso contar. Meu corpo treme de frio, o papel parece aumentar seu limite em branco nas

    minhas mãos. Mas eu resisto.” Resiste, claro está, como resistia Mallarmé quando

    escreveu o célebre verso: “Sur le vide papier que la blancheur défend.” De tanto lidar comas palavras, passastes a duvidar delas. Por isso mesmo, ainda em Elementos, aludis à

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    “língua iludida da linguagem”, pois aquilo a que almejáveis era o que se situava “aquém donome, / movendo a voz que se/ publica enquanto cala”. É tanta a vossa pudicícia diante dasacralidade do verbo poético que chegais a nos pedir: “me emudece para o jogo desse dia, / resgata em prosa o que eu perco em poesia”. Vossa metalinguagem está crivada deversos que comprovam à saciedade essa desconfiança quanto à eficácia das palavras,

    tema com que T.S. Eliot, aliás, conclui o último movimento do primeiro de seus FourQuartets. Sem incidirmos aqui em nenhuma estapafúrdia ou abstrusa comparação, o que

    lemos em vós é, mutatis mutandis, quase o mesmo, sobretudo quando dizeis: “enquantona garganta do meu canto/ um sol solene me assassina.” Ou quando, desolado,

    confessais:

    O que faço, o que desmonto,

    são imagens corroídas,ruínas de linguagem,

    vozes avaras e mentidas.

    O que eu calo e que não digo

    entrelaçam meu percurso.Respiro o espaço

    fraturado pela falae me deponho, inverso,no subsolo do discurso. É claro que, ao “purifer les mots de la tribu”, qualquer poeta – e o próprio Mallarmé é o

    exemplo supremo dessa escassez no que toca ao volume da obra poética – tende nãoapenas à concisão de tudo o que escreveu, mas até mesmo à redução daquilo que seentende como o corpus poético de sua produção. A rigor, o exemplário vem desdeLeopardi, cujos Canti somam apenas 40 poemas. O conjunto de Les fleurs du mal, deBaudelaire, totaliza somente 167 poemas, e nele está tudo o que o autor escreveu em

    verso, se aqui desprezarmos sua irrelevante Juvenília. E é pequena, também, a obrapoética de Valéry, o mais ilustre dos discípulos de Mallarmé. Pequena, entre nós, é a obra

    fundamental de Dante Milano, que morreu aos 91 anos de idade e nos deixou uma exíguaprodução de 141 poemas. Esse Dante Milano que Drummond, ao fim da vida, considerava

    o maior dentre todos os poetas brasileiros do século passado. E se os cito aqui, é porque

    todos encarnam essa poética do pouco, que teria a coroá-la aquele juízo do poetaexpressionista alemão Gottfried Benn, segundo quem o que de fato permanece parasempre de cada grande poeta não chega a oito ou dez poemas dignos desse nome.

    Não quero dizer com isto que esse reducionismo seja, necessariamente, sinônimo dequalidade estética: pode-se escrever pouco e, ainda assim, escrever mal. O que querodizer é que, quando se trata de um grande e verdadeiro poeta, essa avarícia equivalerá,quase inevitavelmente, a um salutar exercício de concentração intelectual que tende aexpurgar o que não presta. E é isto o que vemos desde o vosso primeiro livro, onde já se lêmuita poesia que merece esse nome, sobretudo, por exemplo, no poema que dedicais a

    João Cabral de Melo Neto e naquele que leva o título de “Onde este fardo molhava”, cujosversos aparecem algo modificados (vale dizer: reduzidos) em Elementos. Não resisto aqui,

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    muito a propósito, a transcrever os esplêndidos versos de sabor camoniano que abrem aterceira parte desse poema que nos recorda também certa ambiência que Jorge de Limacriou na Invenção de Orfeu:

    E olhamos a ilha assinalada

    pelo gosto de abril que o mar traziae galgamos nosso sono sobre a areia

    num barco só de vento e maresia.Depois, foi a terra. E na terra construídaErguemos nosso tempo de água e de partida.

    Sonoras gaivotas a domar luzes braviasem nós recriam a matéria de seu canto,e nessas asas se esparrama nossa glória,

    de um amor anterior a todo estio,de um amor anterior a toda história.

    Dizem alguns que vossa poesia paga tributo à sintaxe desértica de João Cabral. Por mais

    que essa dívida fosse algo previsível, já que mergulhastes mais fundo do que ninguém nasvísceras do verso cabralino, não vemos dela qualquer indício em vossos poemas, já quesoubestes vos manter incólume ao jugo dessa influência, à qual, diga-se logo, sucumbiramincontáveis epígonos do autor de Uma faca só lâmina. É que não se deve confundir a

    poesia do menos com a poética do pouco, muito embora sejam ambas quase tangenciais.E mais: há que se entender que os processos verbais de João Cabral e os vossos sãointeiramente distintos. A poesia daquele primeiro é essencialmente visual e guarda poucasrelações com aquilo que poderíamos definir como a música da língua, com essa melopéiaque nos vem desde Camões e Sá de Miranda e que entranha boa parte de vossos versos,nos quais a todo instante aflora a chamada índole da língua, como o vemos, de forma

    cabal, na primeira estrofe do poema “Vou armar as margens dessas lendas”, na qual se lê:

    Vou armar as margens dessas lendasalugadas pela garra da alegria.

    Sobre o cimo de uma voz zombadaAvisto o nada, e meu avesso me recria.

    E surpreende até que assim o seja, pois quem freqüenta a poesia de João Cabral – ou,mais grave ainda, quem a estuda a fundo, como o fizestes – , conhece como ninguém oseu fundo e insidioso poder de contaminação estilística. Conviver com essa poesia,

    sobretudo quando se é poeta, é como anular-se na fímbria de um sortilégio que se querimpor e imprimir seu estigma sobre tudo o que porventura medre ao seu redor. Penso que

    todos nós já corremos esse risco, e alguns foram por ele devorados. Estranhamente, não ofostes. E é possível, neste caso, que nos devais uma explicação. De nossa parte,

    arriscamos aqui um paradoxo: talvez justamente por conviverdes à exaustão com a poesiade João Cabral é que pudestes vos furtar ao seu traiçoeiro fascínio.

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    Depois de Ária de estação e de Elementos, somente retornastes à poesia publicada em1988, e, ainda assim, de raspão. Ou en passant, como sugere o título de uma plaqueteque vos reuniu apenas oito poemas e que leva o título de Diga-se de passagem. É bem dever aí vossa preocupação metalingüística, já que quatro desses oito poemas de algummodo a ilustram, conquanto em dois deles, “Notícia do poeta” e “Remorso”, predominem

    antes o humor e o sarcasmo antiparnasianos, como naquele segundo, onde se lê: “Apoesia está morta. /Discretamente, Alberto de Oliveira volta ao local do crime.” Interessa-

    nos mais de perto, entretanto, o primeiro poema do livro: “Biografia”. É que sua primeiraestrofe proclama uma poética que jamais poderia ser endossada pela raison raisonante

    que preside a poesia de João Cabral de Melo Neto:

    O poema vai nascendo

    num passo que desafia:numa hora eu já o levo,

    outra vez ele me guia.

    No processo cabralino, o que se percebe é a mão tenaz e dominadora do poeta, de modo

    que o poema jamais o guia, sendo antes por ele controlado e mesmo subjugado. É claroque sobre esse assunto de precedências caberia aqui toda uma discussão que este breve

    discurso não comporta. O que quero deixar claro, mais uma vez, é que, embora hajaanalisado com rara acuidade a poética de João Cabral, é outra a matriz a partir da qual searticula o vosso processo poético, tal como o vemos, ainda em Diga-se de passagem, numbelo poema veladamente metalingüístico que tem como título “Cintilações do mal”, cujasduas primeiras estrofes tomo aqui a liberdade de citar:

    Cintilações do mal. Precipício de poemas,travessia para um sol que vem de longe.Minha sombra aparecendo na calçadarepentina feito a mão de um monge.

    Enroladas nos panos da cama,na malícia de serpente e lã,dormem as mulheres que não tivena delícia vermelha da maçã.

    Vejam bem que, neste caso, o tom seria antes bandeiriano do que cabralino. Ou mesmoeliotiano, se nos lembrarmos daqueles “Preludes” que constam de Prufrock and OtherObservations. E isso atesta aquilo que costumo chamar de boa formação poética. Emoutras palavras: quanto mais influências ou pontos de tangência, tanto melhor para asaúde literária de qualquer autor.

    Os poemas até então inéditos que, juntamente com os que já se encontravam publicados,reunistes em Todos os ventos vos confirmam todas as anteriores virtudes, além deacrescentar-lhes outras. Assim, paralelamente ao domínio cabal da língua e da linguagem

    poética, assiste-se ao vosso amadurecimento como artista, essa maturidade que não sedeve apenas a uma conquista do espírito e da alma, mas também a uma refinada

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    educação sentimental, como nos sugere o romance de Gustave Flaubert. Percebe-senesses poemas que renunciastes a qualquer artifício verbal ou pompa estilística, o que osleva àquela difícil comunhão entre o que e o como da expressão poética. Não há nelesnem sobras nem arestas: são apenas exatos, como exatas são a vida e a morte. Suamúsica weberiana já não mais recorre àqueles traiçoeiros e amiúde fáceis artifícios da

    paronomásia ou da aliteração. Nota-se ainda que vossa poesia se avizinha cada vez maisdaquela concepção wordsworthiana segundo a qual o fenômeno poético poderia ser

    entendido como uma “emotion recollected in tranquility”. É pelo menos isto o quecomprovam pelo menos dois dos “Dez sonetos da circunstância”, cuja pompa é nenhuma e

    cuja poesia é absoluta. Assinale-se em ambos o misterioso estigma de um tempo quepassou e deixou suas marcas, essas marcas que devem aqui ser compreendidas comouma “busca do tempo perdido”, na qual o ser humano se redescobre porque alcança adimensão estética do tempo, como no ápice do romance proustiano. Nesse sentido, éexemplar o primeiro quarteto do soneto “O menino se admira”, no qual se lê:

    O menino se admira no retratoe vê-se velho ao ver-se novo na moldura.É que o tempo, com seu fio mais delgado,no rosto em branco já bordou sua nervura.

    Há também nesses poemas uma vertente a que jamais renunciastes: a do humor. Se éverdade que ela aflora mais intensamente em vossos ensaios críticos, nem por issopodemos desconsiderar sua existência desde os primeiros textos poéticos queescrevestes. Essa “rebelião do espírito contra a miséria da nossa condição”, como

    escreveu certa vez Aníbal Machado a propósito do humor, faz-se visível em dois de vossosúltimos poemas: aquele em que explorais um breve episódio das peregrinaçõesazevedianas, quando o grande poeta romântico cumpre certa visita no Catumbi; e umoutro em que confessais não poder vos dar “em espetáculo”, pois “a platéia toda fugiria/antes mesmo do segundo ato”. Não bastasse essa fuga, teríeis ainda contra vós um crítico

    que, “maldizendo a sua sina/ rosnaria feroz/ contra a minha verve/ sibilina”. Mas é antesfina do que sibilina a verve com que descreveis a tal visita de Álvares de Azevedo naquele

    primeiro poema, cujos últimos versos dizem:

    Ao sair, deixa de lembrança

    ao sono cego do parceirodois poemas, um cachimbo e um estilo.

     Sim, um estilo. E eis aqui uma das chaves, se não a principal, para que possamos

    entender não apenas a vossa poesia, mas também a prosa e o ensaísmo que escreveis.Esse estilo austero e de poucas palavras que cultivais em vossa linguagem poética e quenão se pode dissociar daquele que ilumina vossos textos ensaísticos, nos quais, comosublinha Antônio Houaiss, “há um lastro preciso de elegâncias (na linguagem, nasimagens, no encaminhamento das idéias, no respeito ao leitor, no pudor para com oscriticados). Esse estilo, remata ainda Sérgio Paulo Rouanet, que “mantém uma misteriosa

    afinidade” com a “matéria poética que trabalha”. Refiro-me aqui a tais circunstânciasporque é amiúde importante, para compreendermos a poesia de determinados autores,

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    que lhe examinemos mais de perto a prosa estético-doutrinária que nos legaram. É isso,por exemplo, o que acontece com Horácio, Boileau, Coleridge, Baudelaire, Valéry, Eliot,Leopardi, Paz, Borges e tantos outros cuja crítica literária tem a iluminá-la a condição depoetas que sempre foram. E mais crucial ainda do que todas essas ponderações que façoaqui para vos compreender melhor o estro poético seja talvez esmiuçar-vos o próprio

    pensamento doutrinário a respeito do assunto, ou seja, o que entendeis por poesia.

    No ensaio “Poesia e desordem”, que abre vossa penúltima coletânea de escritos sobrepoesia e alguma prosa, dizeis que “a poesia não pretende ser o espelho do caos, hipóteseem que, ausente qualquer padrão de reconhecimento, tudo, isto é, nada, seria poético.” É

    ainda nesse ensaio que nos esclareceis quanto à vossa própria concepção do fenômenopoético quando sustentais que “a poesia representa a fulguração da desordem, o ‘mau

    caminho’ do bom senso, o sangramento inestancável do corpo da linguagem, nãoprometendo nada além de rituais para Deus nenhum”. Ou seja, o ato poético, como o

    compreendeis, seria uma espécie de “desordem sob controle”. E argumentais que, nessaperspectiva, “a poesia poderia ser também encarada como uma espécie de grandemetáfora da língua, um discurso que, simulando ser a imagem do outro, já que dele utilizaas palavras e a sintaxe, acaba produzindo objetos que desregulam o modo operacional eprevisível da matriz”. E como que para confirmar vossa atitude exegética dizeis ao fim dosegundo ensaio do volume: “Por isso, desconfio da crítica que escamoteia, por pudorepistemiológico, sua condição de navegante à deriva do texto, na busca infatigável dainvenção do sentido.”

    Temos aqui, efetivamente, o que sois ou, na pior das hipóteses, o que vossa escolha

    estética nos leva a crer o que sejais: um poeta de poetas e um crítico de poetas. E nãoapenas vossa poesia como também vossa prosa o atestam. E há nessa mesma poesia umdado que talvez a explique melhor. Aludo aqui a uma breve e concisa inscrição a partir daqual se articula vossa meditação pré-socrática sobre aqueles quatro elementos queserviram de base à especulação filosófica dos primeiros pensadores daquela colônia grega

    de Mileto, na Ásia Menor:

    O real é miragem consentida,engrenagem da voragem,língua iludida da linguagem

    contra a sombra que não peço.O real é meu excesso.

    É graças a esta inscrição, verdadeira declaração de princípios poéticos, que se podecomeçar a entender o vosso pensamento sempre avesso à evanescência da música

    simbolista ou à fantasmagoria da ilusão romântica. Vossa preocupação é antes com apalavra concreta, e não com o vazio de um “signo precário”. Em certa medida, reagis

    contra aquele esforço no sentido de dizer o indizível que caracteriza quase toda a poesiarilkiana. E não creio que assim o seja apenas por influência da dura e áspera sintaxecabralina, mas por algo que já preexistia em vós, quer como crença estética, quer mesmo

    como desígnio poético, ao vosso monumental estudo sobre João Cabral de Melo Neto. Éque supomos que essa aproximação com a poesia do autor de Pedra do sono resultaria

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    antes de uma goethiana afinidade eletiva. A mesma, por exemplo, que levou Baudelaire adifundir na França o Poetic Principle de Edgar Allan Poe e a traduzir-lhe para o francêsquase toda a obra ficcional. E no que toca a essa vossa obsessão pela visibilidadeconcreta do signo poético ou à vossa desconfiança com relação a tudo o que não sejaemocionalmente tangível, se aqui não me derem ouvidos, não os façam moucos para o

    que escrevestes no primeiro poemas de Elementos:

    Palavra,nave da navalha,gume da gaiola,

    ave do visível.

    Se me permitem os confrades e os amigos que vieram aqui esta noite para vos saudar eaplaudir, gostaria de dizer ainda algumas poucas palavras sobre Todos os ventos, volumeem que reunistes toda a vossa poesia, pois é nele que melhor se pode observar a

    cristalização de todos esses processos estilísticos e verbais a que já aludi, como oatestam, muito particularmente, aqueles modelares “Dez sonetos da circunstância”. E se

    digo modelares, faço-o apenas porque neles não se percebem aquelas fraturas e fissurasque nos levam às vezes a concluir que se rompeu a indissolúvel comunhão entre forma e

    fundo, como se vê amiúde nos poemas dos autores que não alcançaram ainda a suamaturidade. Nesses sonetos, ao contrário, vemos confirmada aquela concepção de queforma e fundo são uma coisa só, tamanho e tão íntimo se revela o matrimônio entre o quese quis dizer e o que efetivamente se disse. É de tal modo austera e solene a vossalinguagem que, em seu prefácio ao livro, Eduardo Portella nos assegura que nele estão

    “todos os ventos e nenhum vendaval”, exceto “a serena percepção do precipício, essenúcleo tenso e intenso que promove a dispersão e a coesão”. Outro ilustre acadêmico eastucioso crítico literário, Alfredo Bosi, sustenta que, em Todos os ventos, lograstes“alcançar o nível raro da expressão singular, forte e desempenada”, e logo em seguida serefere aos “belos sonetos ingleses” de que há pouco me ocupei. E reservo-me aqui, por

    uma questão de estima pessoal, o direito de escolher apenas um desses dez soberbossonetos, aquele que me dedicais e que leva o título de “À noite o giro cego”. Nele dizeis:

    À noite o giro cego das estrelas,errante arquitetura do vazio,

    desperta no meu sonho a dor distantede um mundo todo negro e todo frio.

    Em vão levanto a mão, e o pesadelode um cosmo conspirando contra a vida

    me desterra no meio de um desertoonde trancaram a porta de saída.

    Em surdina se lançam para o abismonuvens inúteis, ondas bailarinas,

    relâmpagos, promessas e presságios,

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    sopro vácuo da voz frente à neblina.E em meio a nós escorre sorrateiraa canção da matéria e da ruína.

    Pouco depois, em 2003, haveríeis de nos brindar com outra coletânea de ensaios críticos:

    Escritos sobre prosa & alguma ficção. E mais uma vez comprovastes aquela exigênciabaudelariana de que, se formos poetas verdadeiros, haveremos de sê-lo também emprosa. Disse-o depois Fernando Pessoa, quando afirmou que somente os poetas sãocapazes de escrever boa prosa. E disse-o também Alceu Amoroso Lima ao sublinhar que“todo grande poeta é um grande crítico, como todo grande crítico é um poeta, ou em

    perspectiva ou em ação”. É vasta e complexa a matéria de que vos ocupais nestaspáginas, que reúnem ensaios, estudos críticos, conferências, palestras, prefácios, textos

     jornalísticos e comunicações universitárias sobre alguns dos mais insignes escritoresbrasileiros, entre os quais se incluem Machado de Assis, Álvares de Azevedo, Castro

    Alves, Cruz e Sousa, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Cecília Meireles, Raul Bopp, JoãoCabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, além de vários outros autorescontemporâneos. E não esqueçamos aqui os assuntos temáticos que foram objeto devossa argúcia, como é o caso da poesia que se produziu entre nós durante o Romantismo,o Simbolismo, o Parnasianismo e o Modernismo.

    Como sempre, vossa crítica literária encontra-se instrumentada não apenas por um“esplêndido domínio verbal”, como certa vez observou Antônio Houaiss, mas também pelopleno conhecimento que tendes da matéria de que tratais, virtudes a que se soma umoutro tempero: o do humor. Não surpreende, portanto, que esses textos de crítica tenham

    sido louvados por alguns dos mais lúcidos e exigentes ensaístas brasileiros, como JoséGuilherme Merquior, Sérgio Paulo Rouanet, Benedito Nunes, José Paulo Paes, AlfredoBosi, Ivo Barbieri, Miguel Sanches Neto e Eduardo Portella, que certa vez disse de vós:“Além do mais, em Secchin convivem, dentro das mais harmoniosas regras de convivência,o poeta e o crítico”. E logo depois remata: “Secchin é poeta não só porque escreve

    poemas convincentes, mas porque o seu ensaio se nutre da relação fundadora com apalavra.” E eis aí confirmados aqueles conceitos tão caros a Baudelaire, a Fernando

    Pessoa e a Alceu Amoroso Lima.

    Senhores acadêmicos, esta é uma Casa de autores e livros, na feliz expressão de Múcio

    Leão, tanto assim que hoje dispõe de duas opulentas e seletas bibliotecas: a BibliotecaAcadêmica e a Biblioteca Rodolfo Garcia, que reúnem cerca de 150 mil volumes e cujos

    acervos incluem incontáveis raridades bibliográficas que demandam o zelo de todosaqueles que amam o livro. Ao elegermos Antonio Carlos Secchin, elegemos também um

    dos maiores e mais obsessivos bibliófilos brasileiros. Curioso, pertinaz, maníaco, ciumentoe detetivesco como todos os de sua espécie, fostes capaz, entre outras notáveis proezas,de recuperar toda a poesia de Júlio Salusse, dada como perdida, mas afinal resgatada porvós num caderno manuscrito adquirido em sebo e depois publicado nos Anais daBiblioteca Nacional. Não contente com tal façanha, reunistes a obra completa do poetasimbolista Mário Pederneiras, que será em breve reeditada pela Academia Brasileira de

    Letras, e conseguistes ainda descobrir o derradeiro exemplar do livro Espectros, queassinala a estréia de Cecília Meireles, em 1919, e cujo total desaparecimento era um

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    desafio para bibliófilos, pesquisadores e leitores. E o encontrastes a tempo de incluí-lo namonumental edição do centenário de nascimento da autora, que organizastes em 2001para a Editora Nova Fronteira.

    Autor do já clássico Guia dos sebos, do qual há pouco se deu a lume a 4ª edição revista e

    aumentada, e que mapeia de forma cabal e exaustiva as velhas lojas dos alfarrabistas doRio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, Goiânia, Fortaleza, Curitiba, Maceió,Manaus, Natal, Porto Alegre e São Luís do Maranhão, sois hoje, talvez, o mais aplicado etenaz guardião de nossas jóias bibliográficas, o que decerto muito convém à Casa deMachado de Assis e à preservação de seu riquíssimo acervo. Em vossas mãos – e sob

    vossa obsidiante e zelosa tutela – todo esse tesouro estará mais bem guardado do quenunca.

    Sr. Antonio Carlos Secchin – o poeta, o ensaísta, o crítico literário, o bibliófilo, o mestreexemplar de nossa literatura – sede bem-vindo ao nosso convívio, que, como sabeis, se

    estenderá para o resto dos tempos. Per omnia seculae seculorum, diz a surrada, e talvezpor isso mesmo verdadeira, expressão latina. Esta é a Casa que o tempo escolheu para

    erguer a sua morada, que é também a do ser que se resolve em palavras. É nela quehavereis de conquistar aquele tempo que, como diz o poeta, somente através do tempo

    será conquistado. A isto chamamos memória: a dos que já se foram e ainda dóem em nóscomo eternas cicatrizes, e a dos que, como vós, lograram transpor a soleira daimortalidade. Sede bem-vindo.

    Senhores Acadêmicos:

    Embora não seja a regra – e esta, se existe, prevê de quando em vez a exceção – , cabe-me nesta noite, na condição de Presidente da Casa de Machado de Assis, receber o

    Acadêmico eleito Antonio Carlos Secchin. O mesmo já se dera há poucos anos atrás, maisprecisamente em 7 de junho de 1999, quando o então Presidente Arnaldo Niskier acolheu

    no Petit Trianon o Acadêmico Murilo Melo Filho. E assim também já ocorrera em passadodistante, quando o Presidente Carlos de Laet recepcionou o Acadêmico Dom SilvérioGomes Pimenta, na noite de 28 de maio de 1920, nesta mesma Cadeira nº 19, na qual apartir de hoje toma assento o novo imortal que elegemos no último dia 3 de junho.Confirma-se, portanto, aquele antigo conceito de que a exceção legitima a regra. É

    possível até que outros casos tenham ocorrido na história já centenária da AcademiaBrasileira de Letras, mas o que importa nesta noite é menos o esquecimento que tenhodesses fatos do que o imperativo de relembrar o precedente que se registra na cadeiracujo patrono foi o polígrafo Joaquim Caetano da Silva e que teve como primeiro ocupante o jornalista Alcindo Guanabara.

    Nascido em 10 de junho de 1952, sois hoje, aos 52 anos de idade, o mais jovem dentrenós, além de o primeiro acadêmico que conheceu a luz do mundo na segunda metade do

    século XX. É grande, pois, a vossa responsabilidade, e longa será, como todosesperamos, a vossa contribuição intelectual e literária à Casa que vos recebe nesta noite

    de festa e de glória. Muito embora a grave solenidade do instante recomende a adoção deum tom impessoal, quero aqui recordar o nosso primeiro encontro, em 1992, quando o que

  • 8/19/2019 Antonio Carlos Secchin

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    nos unia – e continua a unir, e decerto nos unirá para sempre –, era o interesse pelaliteratura, mais exatamente a poesia e a crítica literária que escrevíamos à época e ospontos de vista estéticos de que partilhávamos. Éreis então ainda mais jovem, e no entanto já despontava em vós esse pendor pela astúcia da análise textual, pela palavra exata eescorreita, pela limpidez do estilo e pela clareza da expressão, atributos que, segundo

    penso, são o apanágio do poeta que se faz crítico e do crítico que subjaz em todo aqueleque se torna, quase por fatalidade, um poeta de poetas. E assim tiveram início essa

    amizade e essa admiração recíprocas