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Bobb io , N o rb er to e M i ch ela ng elo Bo ve ro ( 19 79 [1 98 6]) Sociedade e

Estado na Filosofia Politica Modema, Sao Paulo: Brasi liense.

PRIMElRA PARTE

o modelo jusnaturalista

Norberto Bobbio

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o carater do jusnaturalismo

Ernbora a ideia do d,k,eitonatural rernonte i t . epoca clas-sica, e nao tenha cessado de viver durante a Idade Media, averdade e que quando se fala de "doutrina" ou de "escola" do

direito natural, sern outra qualificacao, ou, rnais brevernen.te,com urn terrno mais recente e nao ainda acolhido em todas.aslinguas europeias, de "jusnaturalismo", a intencao e referir-se

it revivescencia, ao desenvolvimento e it difusao que a antiga e

recorrente ideia do direito natural teve durante a idade mo-derna, no periodo que intercorre entre 0 inicio do seculo XYjIe 0 fim do XVIII. Segundo uma tradicao ja consolidada nasegunda metade do seculo XVII - mas que ha algum tempo,com fundamento, tern sido posta em discussao -, a escola do

direito natural teria tido uma precisa d~!~_,de i!li~jo com aobra de Hugo. Grocio (1588-1625), De iure belli ac pacis , pu-blicada em 1625, doze anos antes do Discours de la methodede Descartes. Mas nao tem umadata de encerramento igual- ,

m_~!1:!,~!~ra,ainda ~q1J.~,lliQ}uijaduvidas sobxeoseve.,n!9s que !

assinalaram 0 seu fim: a criacao das gran des codificacoes, es-pecialmente a napoleonica, que puseram as bases para 0 re-nascimento de uma atitude de maior reverencia em face das

leis estabelecidas e, por conseguinte, daquele modo de conce-

ber 0 trabalho do jurista e a funcao da ciencia juridica quetoma 0 nome de positivismo juridico. Por outro lado, e bernconhecida tambem a corrente de pensamento que decretousua morte: 0 historicismo, especialmente 0 historicismo juri-

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dieo, que se manifesta muito em particular na Alemanha(onde, de resto, a escola do direito naturalencontrara sua pa-tria de adocao), com a Eseola historica do direito. Ademais, sequisessemos indiear preeisamente uma data emblematica

desse ponto de ehegada, poderlamos eseolher 0 ana da publi-cacao do ensaio juvenil de Hegel, Ueber die wissenschaftli-chen Beharidlungsarten des Naturrechts (Sobre os diversosmodos de tratar cientificamente 0 direito natural), publicadoem 1802. Nessa obra, 0 filosofo - cujo pensamento repre-senta a dissolucao definitiva do jusnaturalismo, e nao so domoderno, como veremos no final- submete a uma c~

dical ~.~iJosofias,do 4i.r~_i~~9~~.~p!~~e~.:ram, de Grocio aKant e Fichte. -~,

Sob a velha etiqueta de "escola do direito natural", es-condem-se autores e correntes muito diversos: grandes fil6so-fos como Hobbes, Leibniz, Locke, Kant, que se ocuparamtambem, mas nao precipuamente, de problemas juridicos epoliticos, pertencentes a orientacoes diversas e por vezes opos-tas de pensamento, como Locke e Leibniz, como Hobbes eKant; juristas-fil6sofos, como Pufendorf, Thomasius e Wolff,tambern divididos quanta a pontos essenciais da doutrina(Wolff, para darmos apenas urn exemplo, e consider ado comoo antiPufendorf); professores universitarios, autores de tra-

tados escolasticos que, depois de seus discipulos, talvez nin-guem mais tenha lido; e finalmente, urn dos maiores escri-tores politicos de todos os tempos, 0 autor de 0 Contrato

Social.

Por outro lado, enquanto para os juristas-fil6sofos a ma-teria do direito natural compreende tanto 0 direito privadoquanta 0 direito publico (e muito mais 0 primeiro que 0 se-gundo), para os outros, em especial para os .ires grandes, porcuja obra se mede hoje a importancia do jusnaturalismo, e emfuncao dos quais talvez valha ainda a pena falar de um "di-reito natural moderno" contraposto ao medieval e ao antigo- estou me referindo a Hobbes, Locke e Rousseau -,0 tema

\ ~ ~ e ~ : S~~~~,:,~~~X~1~~i:~;~::1~~!ia~divisao entre uma e outra historiografia particular seja umaconvencao, que pode tambem ser deixada de lado e que, dequalquer modo, e nreciso evitar considerar como uma mura-

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lha intransponivel, nao ha duvida de que uns pertencem prin-cipalmente a historia das doutrinas juridicas, enquanto os ou-tros pertencem aquela das doutrinas politicas.

Contudo, apesar da disparidade dos autores compreen-

didos sob as insignias da mesma escola, ou, 0 que e sinonimo,do mesmo "ismo" , e nao obstante 0 que de artificial, e por suavez de "escolastico", existe em proceder por escolas ou por"ismos", nao se pode dizer que tenha sido urn capricho falarde uma escola do direito natural. Dela se falou, e verdade,com duas perspectivas diversas: pelos proprios fundadores eseus seguidores, com a finalidade de construir uma arvoregenealogica frondosa e, alem do mais, com urn ilustre anteces-sor, de quem eles pudessem tirar vantagem e argumento para

se considerarem como inovadores que deixaram para tras urnpassado de erros e de barbaric: pelos adversaries, para osquais, uma vez esgotado 0 impulso criador da escola, 0 fato depor todos os seus componentes, indistintamente, num unicoalinhamento tomava mais facil acertar no alvo, com a finali-dade de desembaracar-se de uma vez para sempre de urn errofunesto. Enquanto a primeira perspectiva permite-nos captaraquilo contra 0 que os criadores e os fieis seguidores da escolase opuseram, a segunda nos permite compreender 0 que a elesfoi contraposto por seus criticos: como se sabe, nao hJt modo-.------ \

melhor para compreender as linhas essenciais de um movi- I

: : :~~~n~~~~:-:~i}¥i~~:~;~~ ~ f s ~ ! O~~~~~~j::1teses C l!!eJQI:arii]legad_as31elQS_QY Jtos~· ,

-----j>oisern: tanto uma quanta outra perspectiva convergem

para trazer it luz urn prJ!tcipio de unificac_aodaquilo que am-bas as partes convieram chamar de uma "escola". Esse prin-cipio nao reside nesse ou naquele conteiido, mas consiste cer-tamente num modo de se aproximar do estudo do direito e, em

geral, da etica e da filosofia pratica: numa palavra, no "me-todo". Entre um e outro, a diferenca esta no juizo de valor:oqlie para os defensores constitui um titulo de merito, para osdetratores representa um item de acusacao. 0 metoda queune autores tao diversos e 0 metodo racional, ou seja, aquelemetoda que deve permitir a re4u~a(j do::direito ~ da moral(bern como da politica) , pela primeira vez na hist6ria da refle-xilo sobre a conduta humana, a uma ciencia demonstrativa.

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Em outras palavras: tanto os seguidores quanto os adversariesconsideram-se autorizados a falar de "escola" enquanto estaconstitui uma unidade nao ontologica, nao metafisica nemideologica, mas sim metodol6gica. A melhor prova disso, deresto, eo fato de ter prevalecido 0 uso (pelo menos a partir da

critica da escola hist6rica) de chamar 0 direito natural mo-derno de "direito racional": 1temos aqui um indicador do fatode que aquilo que caracteriza 0 movimento em seu conjuntonao e tanto 0 objeto (a natureza), mas 0 modo de aborda-lo(a razao), nao urn principio ontologico (que pressuporia umametafisica comurn que, de fato, jamais existiu), mas urn prin-cipio metodologico.

Nao que inexistam divergencias entre os jusnaturalistas(podemos doravante chama-los assim), tambem no que se re-

fere ao O1J)~tivb'comum.No opusculo juvenil sobre0

direitonatural, Hegel se propusera examinar (e criticar) as "diversasmaneiras de tratar cientificamente 0 direito natural", distin-guindo entre os empiristas, como Hobbes, que partem de umaanalise psicologiCi---'cfa'atureza humana, e os formalistas,como Kant e Fichte, que deduzem 0 direito de "uma-lde1atranscendental do hornem. Tanto e assim que penetrou na tra-tadistica corrente no fim do seculo, nao saberia dizer se porinfluencia direta de Hegel, 0 usc de reservar 0 nome de "di-reito racional" somente para a doutrina kantiana. No inicio

do seu monumental tratado, Wolff critica seu mais direto ri-val, Pufendorf, nao como 0 havia feito Leibniz, por razoesmetafisicas e implicitamente de politica cultural, mas unica-mente por razoes metodologicas: Pufendorf, diz ele, passa porurn escritor que tratou cientificamente 0 direito natural, masesta efetivamente tao longe do verdadeiro metodo cientificocomo "0ceu da terra'l.! Contudo, essas divergencies - e ou-

(1) Urn dos textos rnais recentes e autorizados da historiografia juridica, F.Wiaecker, Privotrechtsgeschichte der Neuzeit unter besonderer Beriicksichtigung der

deutschen Entwicklung ; Gettinger, Vandenhoe u. Ruprecht, 1967, dedica urn capi-tulo a "epoca do direito racional", pp. 249-347.

(2) A passagern rnerece ser citada na integra: Vulgo Puffendorfius ius naturae

demonstrasse dicitur: enimvero qui sic sentiunt, methodi demonstrativae satis igna-

ros sese probant, et qui vel in mathesi, vel in operibus nostris philosophicis fuerit

versatus, quantum a veritate distet iudicium abunde intelliget. Legat ea, quae de

methodophilosophica, eadem omnimo cum scientifica, seu demonstrativa (... ) co-

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tras que se poderiam arrolar - nao cancelam 0 intento co-mum, ainda que esse tenha sido realizado de modos diversos,um intento que permite considerar unitariamente os variesautores: a construcao de uma etica racio1].al,separada defini-tivamente da teologia e capaz por si mesma, precisamenteporque fundada finalmente numa analise e numa critica ra-cional dos fundamentos, de garantir - bem mais do que ateologia, envolvida em contrastes de opinioes insohiveis - auniversalidade dos principios da conduta humana. Historica-mente, 0 di_reito_naturale umatentativa.de dar uma respsotatranqiiilizadora a s conseqiiencias corrosivas que os libertinostinham retiradoda crise do universalismp- religiose. Nao haautor da escola que nao tome posicao diante do pirronismo emmoral, do que hoje chamariamos de relativismo etico. Na am-

pla introducao a traducao francesa da principal obra de Pu-fendorf - introducao que pode ser consider ada como um ver-dadeiro manifesto da escola -, Barbeyrac, depois de ter ci-tado, entre outras, uma celebre passagem de Montaigne, 3 quepoe em diivida 0direito natural pelo fato de nao haver supostalei da natureza que nao tenha sido desautorizada por urn ournais povos, responde com urna citacao de Fontenelle: "Sobretudo 0 que diz respeito a conduta dos homens, a razao terndecisoes muito seguras: 0mal e que ela nao e consultada" .4 0

mentati sumus ( ... ) et inquirat, num Puffendorfius regulis eiusdem satisfecerit: nisi

enim in re manifesta caecutire velit, eundem a methodo scientifica tantum abesse

. deprehendet, quantum distat a terra coelum (Christian Wolff, Jus naturae methodo

scientifica pertractatum, que cito da edi~ao de Frankfurt e Leipzig, de 1764, vol. I,§2, p. 2). .

(3) "De resto, sao verdadeiramente curiosos quando, para dar alguma certeza

as leis, afirmam que, entre elas, h a algumas estaveis, perpetuas e imutaveis, que eles

chamam de naturais e que sao impressas no genero humano pela condieao de suapropria existencia. E, dessas, h a quem conte tres, quem quatro, quem mais, quem

menos: prova que isso e urn signo tao incerto quanto 0 resto. Ora, eles sao tao desa-

fortunados ( ... ) que, dessas. tres ou quatro leis escolhidas, nao ha nenhuma que nao

seja contraditada e desmentida, nao por urn s6 povo, mas por muitos" (Montaigne,

Essais, que cito da trad. italiana de F. Garavini, Milao, Adelphi, 1966, vol. I,p.770).

(4) Fontenelle, Dialogues des morts anciens avec des modernes , Dialogo V,

Sur les prejuges (os interlocutores sao Estratao e Rafael), que cito de Entretiens sur

les pluralizes des mondes, nova edi~ao aumentada do Dialogues des morts, Paris,

chez la veuve Brunet, 1762, p. 367. Essa passagem e citada por Barbeyrac no inicio do

§5 do seu importante Pre/ace du traducteur ao De iure naturae et gentium de Pu-

fendorf. Depois, ele comenta: Ilfaut l'avouer, a l'honte du genre humain, cette scien-

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que era preciso, justamente, era aprender a consulta-la. Anova ciencia da moral, que nascia com 0proposito de aplicarao estudo da moral as mais refinadas tecnicas da razao, cujosresultados foram tao surpreendentes no estudo da natureza,

devia servir para essa finalidade.Se ha urn fio vermelho que mantem unidos os jusnatura-

listas e permite captar uma certa unidade de inspiracao emautores diferentes sob muitos aspectos, e precisamente a ideiade que e possivel uma "verdadeira" ciencia da moral, enten-dendo-se por ciencias verdadeiras as que haviam comecado aaplicar com sucesso 0metodo matematico, Creio que hoje nin-guem esta mais disposto a conceder a obra de Grocio, comrelacao it fundacao do jusnaturalismo moderno, 0 posto dehonra que Ihe foi atribuido por seu discipulo Pufendorf, porobra de quem nasceu e se transmitiu a lendade urn Grocio paido direito natural. 5 Mesmo prescindindo das influencias que

ce [alude a ciencia moral ou "science des moeurs", como ele a chama] qui devoit itre

la grande affaire des hommes, et l'objet de toutes leurs recherches, se trouve de tous

temps extremement negligee. Nessas poucas linhas, esta contido 0 tema fundamental

da escola do direito natural eo program a que a caracterizou por dois seculos.

(5) J a em sua primeira obra, Elementorum iurisprudentiae universalis libri

duo, de 1660, a qual ele confiara a primeira temeraria mas impostergavel tentativa de

expor a ciencia do direito como ciencia demonstrativa, Pufendorf - depois de ter

dec1arado que, ate entao, a ciencia do direito "nao fora cultivada na medida exigidapela sua necessidade e pela sua dignidade" - expressa a sua propria divida de reco-

nhecimento a apenas dois autores, Grocio e Hobbes. Numa obra publicada muitos

anos depois, Eris scandica, que adversos libros de iure naturali et gentium obiecta

diluuntur (1686), escrita para esclarecer os seus eriticos, Pufendorf reafirma a con-

viccao de que 0 direito natural "somente nesse seculo comecou a ser elaborado de

forma apropriada", tendo sido, nos seculos passados, primeiro desconhecido pelos

antigos filosofos, especialmente por Arist6teles, cujo campo de investigacao restrin-

gia-se a vida e aos costumes das cidades gregas, depois mesclado, ora aos preceitos

religiosos nas obras dos teologos, ora as regras de urn direito hist6rico transmitido

numa compilacao arbitraria e lacunosa, como era 0 direito romano, a obra dos ju-ristas. Mais uma vez, por sobre a turba dos pedantes e litigiosos comentadores dos

textos sagrados ou de leis de urn povo remoto, elevam-se os dois autores aos quais se

deve a primeira tentativa de fazer do direito uma ciencia rigorosa: Gr6cio e Hobbes.De Gr6cio, Pufendorf diz que, antes dele, "nao houve ninguem que distinguisse exa-

tamente os direitos naturais dos direitos positivos e tentasse dispd-los num sistema

unitario e cornpleto (in pleni systematis rotunditatem)", Essa passagem se encontra

num esboco de historia do direito natural, ao qual Pufendorf dedica 0 primeiro capi-

tulo do escrito Specimen controversiarum circa ius naturae ipsi nuper motarum, que

faz parte da supracitada Eris scandica. 0 capitulo, intitulado De origine et progressu

disciplinae iuris naturalis, foi por mim traduzido pela primeira vez em italiano num

pequeno volume para uso didatico, Samuele Pufendorf, Principi di diritto naturale,

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ele sofreu, e que foram repetidarnente postas em evidenciacom comparacoes dificilmente refutaveis, da neo-escolasticaespanhola que 0 precedeu irnediatamente, 6 0 estilo de suaobra, especialmente quando comparado a urn Hobbes, urnSpinoza ou urn Locke, e ainda 0 estilo do jurista tradicional,que abre caminho e se move atraves das opinioes dos juristasanteriores e nao da urn passe sem se apoiar na autoridade dosclassicos. Para 0pai do jusnaturalismo moderno, 0 fato de tersido urn dos quatro autores preferidos de Giambattista Vico- 0 primeiro grande adversario do racionalismo juridico eetico - seria um estranho destino, caso 0 atributo lhe cou-besse de pleno direito. Todavia, nao se pode negar, tambemGr6cio prestou uma homenagem, embora discreta e sem efei-

tos visiveis no desenvolvimento do seu trabalho de jurista, aomodo de proceder dos matematicos, quando - nos Prolego-menos ao De iure belli ac pacis - afirma sua intencao decomportar-se como os matematicos que, examinando as figu-ras, fazem abstracao dos corpos reais (§ 60). Na realidade, secabe a alguem 0 discutivel titulo de Galileu das ciencias mo-rais (discutivel, porque da aplicabilidade do metoda moral asciencias matematicas se discute ainda hoje e a discussao naoesta de modo algum esgotada), esse alguem nao e Gr6cio, massim 0 admirador de Galileu: Thomas Hobbes.

Convencido de que a desordem da vida social, desde asedicao ao tiranicidio, desde 0 surgimento das Iaccoes ate aguerra civil, dependia das doutrinas erroneas, de que tinhamsido autores os escritores antigos e modernos sobre questoespoliticas; bern como do espirito de seita alimentado por mausteologos, e comparando a concordia que reinava no campo

"Piccola Biblioteca de Filosofia e Pedagogia", Turim, Paravia, 1943 (2~ ed., 1961),

pp. 1-18. Afirmei que Hobbes, e nao Gr6cio, deve ser considerado 0 verdadeiro ini-

ciador do jusnaturalismo modemo, em meu artigo "Hobbes e it giusnaturalismo", in

Rivista Critica di storia della filosofia, 1962, pp. 471-86, agora recolhido no volume

Da Hobbes a Marx, Napoles, Morano, 1965, pp. 51-74.

(6) Cf. tanto a contribuicao fundamental de G. Ambrosetti, Ipresuppostiteologici e speculativi della concezione giuridica di Grozio, Bolonha, Zanichelli, 1955,

quanto as observacoes critic as de A. Droetto, "L'alternativa teologica nella conce-zione giuridica di Grozio", in Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto, 1956, pp.

351-63, posteriormente republicadas em A. Droetto, Studi groziani, "Pubblicazioni

dell'Istituto di Scienze Politiche dell'Universita di Torino", Turim, Giappichelli,1968, pp. 240-254.

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das disciplinas matematicas com 0 reino da discordia sem tre-gua em que se agitavam as opinioes dos teologos, dos juristas e

dos escritores politicos, Hobbes afirma que os piores malefi-

cios de que sofre a humanidade seriam eliminados "se se co-nhecessem com igual certeza as regras das acoes humanas, talcomo se conhecem aquelas das grandezas das figuras", 7

"0 que chamamos de leis da natureza - precisa ele, depois

de as ter enumerado - nao sao mais do que uma especie deconclusao extraida pela razao sobre 0 que se deve fazer oudeixar de fazer". 8 E, no Leviatii, especifica: conclusoes outeo rem as . 9 Se e verdade que a geometria e "a unica cienciacom que ate agora Deus resolveu presentear 0 genero hu-

mano", a unica ciencia "cujas conclusoes tornaram-se agoraindiscutiveis", ao filosofo moral cumpre imita-la; mas, preci-samente devido a fait a de urn metodo rigoroso, a ciencia mo-ral foi ate entao a mais maltratada. Uma renovacao dos estu-dos sobre a conduta humana so pode ter lugar atraves de uma

renovacao do metodo.

No campo das ciencias morais, dominara por longo tem-po, incontrastadamente, a opiniao de Aristoteles, segundo a

qual - no conhecimento do justo e do injusto - nao e pos-

sivel atingir a mesma certeza a que chega 0 raciocinio mate-matico, e que e preciso nos contentarmos com urn conheci-

mento provavel: "Seria tao inconveniente - ele afirmara -exigir demonstracoes de urn orador quanto contentar-se com aprobabilidade nos raciocinios de urn matematico" .10E conhe-

cido 0 peso dessa opiniao no estudo do direito. Durante seen-los, a educacao do jurista se dera atraves do ensinamento datopica, isto e , dos lugares de onde se podem extrair argumen-tos pro ou contra uma opiniao, atraves da dialetica ou arte de

querelar e da retorica ou arte de convencer, ou seia, atraves dedisciplinas que restam na esfera da logica do provavel e nao

(7) Essa passagerrr se encontra na Epistola dedicatoria do De cive, que jA

contem integral mente 0 programa da politica "geometrico more demonstrata". Verem Th. Hobbes, Opere politiche, ed. de N. Bobbio, "Classici politici", colecao diri-gida por L.Firpo, Turim, Utet, 1959, p. 60.

(8) De cive, 111,33; trad. it. cit., p. 121.(9) "( . .. ) conclusions or theorems"; cf. ed. M. Oakeshott, Oxford, Blackwell,

1951, p. 104; trad. it. de G. Micheli, Florenca, La Nuova Italia, 1976, p. 154.

(10) Arist6teles, Etica a Nicomaco, 1094b.

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devem ser confundidas com a logica propriamente dita, queanalisa e prescreve as regras dos raciocinios demonstrativos.Estudos recentes exploraram mais do que se fizera no passadoa hist6ria da logica juridica e puseram em destaque a relacao

entre humanismo juridico e disputa sobre 0 metodo, ligada arenovacao dos estudos dialeticos (de Rodolfo Agricola' a Pie-trus Ramus): 0 florescimento de tratados de dialetica legalchega nao casualmente ate 0 limiar da nova methodus, ins-taurada pela escola do direito natural. 11 Ate 0 momenta emque 0 jurista e considerado, nao diferentemente do teologo,como um comentador de textos, ele tem de aprender as variasregras que devem servir a compreensao (comprehensio) e a :eventual complementacao do texto iextensio), bem como a so-

lu~ao das antinomias entre uma passagem e outra, ou, numapalavra, as regras da interpretatio. Para a nova methodus, aocontrario, a tarefa do jurista nao e mais a interpretatio; e sima demonstratio, Se a interpretacao foi0metoda tradicional dajurisprudencia, 0metoda da nova ciencia do direito sera - aimitacao das ciencias mais evoluidas - a demonstracao. 0grande debate entre humanistas e "bartolistas" , entre mosgallicus e mos italicus, que por mais de um seculo tinha con-traposto os inovadores aos tradicionalistas, era uma contro-

versia que dizia respeito, sempre e apenas, a diversos modosde entender a interpretatio: 0objeto sobre 0 qual trabalhava 0

jurista. Fosse esse urn seguidor do metoda exegetico ou dometoda hist6rico, era sempre urn direito escrito, um direitopositivo que, embora excelente ou considerado como tal, espe-

(11) Refiro-me, em particular, aos estudos de D. Maffei, Gli inizi dell'uma-

nesimo giuridico, Milio, Giuffre, 1956; V. Piano Mortari, Dialettica e giurispru-

denza. Studio sui trattati di dialettica legale del sec. XVI, Milito, Giuffre, 1955;

"Considerazioni sugli seritti programmatici dei giuristi del sec. XVI", in Studia et

documenta historiae et iuris, 1955, pp. 276-302; "La sistematica come ideale uma-

nistico nell'opera di Francesco Connano", inStudi in onore de Gaetano Zingali, Mi-

lio, Giuffre, 1965, vol. III, pp. 559-71; A. Mazzacane, Science, logica e ideologia

. nella giurisproduzenza tedesca del sec. XVI, Milio, Giuffre, 1971. E, alem do mais,

C. Vasoli, La dialletica e la retorica dell'umanesimo. "Inventio" e "metodo" nella

cultura del XV e XVI secolo, Milio, Feltrinelli, 1968. - Entre os estudos estrangei-

ros, gostaria de recordar 0 de G. Kirsh, Gestalten und Probleme aus Humanismus

und Jurisprudenz, Neue Studien und Texte, Berlim, de Gruyter, 1969, e a excelente

monografia sobre urn dos maiores juristas e dialeticos da epoca, Claudius Cantiun-

cula. Ein Basler Jurist und Humanist des 16. Jahrhunderts, Basileia, Verlag vonHelbing & Lichtenhanh, 1970.

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cialmente se liberado dos estragos que nele introduzira a com-pilacao justiniana, como afirmavam os humanistas, era nadamais e nada menos que urn conjunto de textos a serem inter-

pretados corretamente.opasso dado pela jurisprudencia culta alem da mera in-terpretacao e complernentacao do texto foi aquele que a orien-tou para a ideia do "sistema": dai nasceram, com frequenciacada vez mais rapida a comecar da primeira metade do seculoXVI, as varias tentativas de redigire in artem 0 direito, ouseja, de prop or criterios para a ordenacao da imensa materiadas leis romanas, em vez de cementa-las segundo a ordem emque haviam sido transmitidas. Mas tambem a sistematicausava, para suas proprias construcoes, materiais ja dados, que

eram sempre aqueles fornecidos pelo direito romano, ou seia,por urn direito hist6rico: rnostrava, quando muito, a propriapreferencia pelas Instituiciies, isto e , por urn texto mais siste-matico, e nao pelo Digesto . Seria interessante, mas nao e esteo local, mostrar que urn processo identico ocorrera no campoda teologia, onde a disputa sobre os textos e 0 modo de inter-preta-los cederia paulatinamente 0 terreno a teologia racional,ao racionalismo teista, it ideia de uma religiao natural, queesta para a religiao positiva e para a exegese dos textos, atra-ves dos quais uma religiao positiva e anunciada e transmitida,do mesmo modo como 0 direito natural esta para 0 direito ro-mano e a cornpilacao justiniana.

S o se compreende a novidade do direito natural se estefor comparado com a situacao do estudo do direito antes davirada, ou seja, se nao for dado urn minimo de atencao, comodiziamos ha poueo, a tudo isso de que ele e a negacao. Pro-pondo a reducao da ciencia do direito a ciencia demonstrativa,os jusnaturalistas defendem, pela primeira vez com tal impetona historia da jurisprudencia, a ideia de que a tarefa do jurista

nao e a de interpretar regras ja dadas, que enquanto tais naopodem deixar de se ressentir das condicoes historicas na qualforam emitidas, mas e aquela - bern mais nobre - de des-eobrir as regras universais da conduta, atraves do estudo danatureza do homem, nao diversamente do que faz 0 cientistada natureza, que finalmente deixou de ler Aristoteles e se posa perserutar 0 ceu. Para 0 jusnaturalista, a fonte do direitonao e 0Corpus iuris, mas a "natureza das coisas". "A razao

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- diz Pufendorf -, mesmo no estado natural, possui urn cri-terio de avallacao comum, seguro e constante, ou seja, a natu-

reza das coisas, que se apresenta do modo mais Iacil e acessi-

vel na indicacao dos preceitos gerais da vida e da lei natu-

ral" . 12 Em suma: 0 que os jusnaturalistas eliminam do seuhorizonte e a interpretatio: mesmo que os juristas continuema comentar as leis; 0 jusnaturalista nao e urn interprete, masurn descobridor. Jamais foi notado como mereceria se-lo 0 fatode que 0problema da interpretacao e de suas varias formas de

argumenta e de loci, sobre as quais os juristas de todos os

tempos versaram rios de tinta, e urn problema que desaparecequase inteiramente nos tratados de direito natural. Com 0

avanco da "escola", as topicas e as dialeticas, todas as regulae

docendi e discendi, que dizem respeito a logica do provavel

vao desaparecendo. A recente redescoberta da retorica, en-quanto tecnica do discurso persuasivo, contraposta a logica

tecnica do discurso demonstrativo, 13 bern como 0 reconheci-

mento de que as operacoes intelectuais realizadas pelos juris-

tas ern sua Iuncao de interpretes pertencem a primeira, pode

servir para ilustrar 0 carater especifico do jusnaturalismo,com uma nitidez da qual, em geral, nao ha traco nas historias

da escola, Embora com certa simplificacao, e licito afirmarque 0 jusnaturalismo foi a primeira (e tambem a ultima) ten-

tativa de romper 0 nexo entre 0 estudo do direito e a ret6ricacomo teoria da argumentacao, abrindo tal estudo para as re-gras da demonstracao.

(12) Pufendorf, De iure naturae et gentium, L. II, cap. II, § 9; trad. cit.,

p. 79. Cf. tambem L. II, cap. III, §8: "Sem duvlda, os preceitos da reta razao sao

principios verdadeiros, que concordam com a natureza das coisas, observada e exa-

minada atentamente" (trad. cit., p. 107).

(13) Refire-me, como 0 leitor ja compreendeu, a obra de Ch. Perelman, taovasta que nao pode ser apresentada exaustivamente numa nota, e de resto bastante

conheeida para nao carecer de muitas citacoes. Limite-me a assinalar para os juristasa coletanea de ensaios Diritto, morale e filosofia, Napoles, Guida, 1973, bern como a

ultima coletanea, L'empire rhetorique. Rhetorique et argumentation, Paris, Vrin,

1977. Mas nao se deve esquecer, na mesma direcao, 0 livro de Th. Viehweg, Topik

und Jurisprudenz , Munique, C. H. Becksche Verlagsbuchhandlung, 1953 (trad. it.,

Milao, Giuffre, 1962, que, mesmo partindo de pressupostos diversos, chega a resul-

tados analogos),

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Razao e historia

o primeiro a ter plena consciencia da importancia dessainovacao, a ponto de buscar justifica-la criticamente e funda-menta-la teoricamente, foi Pufendorf. Ele compreendeu per-feitamente ser necessario, antes de mais nada, limpar 0 ter-reno da perniciosa autoridade de Arist6teles, a quem se deve aopiniao, repetida acriticamente durante seculos, de que no es-tudo das coisas morais s6 se pode alcancar urn conhecimentoprovavel. Naturalmente, para se conseguir na ciencia moral a

mesma certeza que se tern nas ciencias naturais, e preciso terideias sobre qual e 0 obieto da primeira. A teoria que ele de-fende a esserespeito e tao engenhosa que teve uma influenciadireta sobre Locke: ao lado dos entes fisicos, sobre cuja exis-tencia estao todos de acordo, existem tambem os entes mo-rais, erradamente negligenciados ate entao pela maioria dosautores. Os entes morais sao modalidades das acoes humanasque sao atribuidas a estaspelas regras postas por quem detema autoridade legitima de impor leis aos homens. Enquanto os

entes fisicos derivam diretamente da criacao, os entes moraisderivam de uma imposicao e pressupoem, enquanto tais, de-terminadas regras. 0 que a ciencia moral deve estudar e aconformidade ou desconformidade das acoes humanas as re-gras estabelecidas. Quanto as regras, elas podem ser conheci-das com certeza quando se abandona 0 terreno pouco confia-vel das leis positivas, que mudam de pais para pais, e se consi-dera a natureza do homem, suas paixoes, seus carecimentos,

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLiTICA MODERNA 25

as condicoes objetivas de sua existencia, as finalidades para asquais tende. Pufendorf nao chega ate a aceitacao da tese deHobbes, depois acolhida por Vico, segundo a qual a certezadas coisas morais depende do fato de serem criacao nossa, tal

como as figuras geometricas: mas rechaca tambem a teseoposta, segundo a qual existem coisas boas ou mas em si mes-mas: bondade e maldade sao nocoes sempre relativas as leisestabelecidas (as leis naturais sao indiretamen te estabelecidaspor Deus) que, enquanto tais, impoem ou proibem ou perm i-tem fazer algo.

Mais ou menos nos mesmos anos em que Pufendorf es-crevia suas obras, Spinoza trabalhava naEthica, no Tractatustheologico-politicus e no Tractatus politic us. Basta recordarque, nesse ultimo, retomando 0motivo hobbesiano da politica

racional, ele escreve: "Ao dedicar-me a politica, portanto, naome propus nada de novo e de impensado, mas apenas de-monstrar, com argumentos certos e irrefutaveis, ou deduzir dapropria condicao da natureza humana, aqueles principios queconcordam perfeitamente com a pratica; e, para procedernessa investigacao cientifica com a mesma liberdade de espi-rito com que costumamos nos aplicar a matematica, fiz urnestudo sobre as acoes humanas sem rir nem chorar". 1

Tambem Locke, embora muito diferente de Spinoza, a

ponto de ser considerado como a antitese do autor da Ethica,pelo menos do ponto de vista metafisico e gnosiologico, perse-guiu durante toda a vida, embora sem sucesso, 0 ideal de umaetica demonstrativa; e isso nao escapou a Barbeyrac, 0 qual,para defender a mesma tese, apela para a autoridade do En-saio sobre 0 intelecto humano, citando algumas de suas pagi-nas.? Ele nao tem nenhuma diivida sobre 0 fato de que, se a

(1) Spinoza, Tratactus politicus, cap. I, §4.

(2) Cf. 0§ 2 do Preface du traducteur, ja citado, onde Barbeyrac desenvolve 0

tema da demonstrabilidade da ciencia moral mediante 0 topos classico segundo 0

qual nao e verossimil que 0Criador tenha dotado os homens de faculdades suficientes

para descobrir e demonstrar com certeza uma quantidade de coisas especulativas,

especialmente urn grande numero de verdades matematicas, e nao nos tenha feitocapazes de conhecer e de estabelecer com a mesma evidsncia as maximas da moral. 0

argumento principal que ele aduz em favor da demonstrabilidade da ciencia moral e 0

argumento pufendorfiano, retomado por Locke: nao se trata, na ciencia moral, de

conhecer a esssncia das coisas, mas de examinar e comparar as relaeoes entre as a~Oes

humanas e as regras estabelecidas. A esse ponto, refere-se grande-parte do § 18 do

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26 NORBERTO BOBBIO

ideia de urn ser supremo e a ideia do homem como ser racional

fossem devidamente consideradas, a moral poderia ser colo-

cad a entre "as ciencias suscetiveis de demonstracao", ou seia,

que, "de proposicoes evidentes por si mesmas, mediante con-

sequencias necessarias, nao menos incontestaveis que as damatematica, poder-se-iam extrair as medidas do justo e doinjusto, se alguem quisesse se dedicar a essa ciencia com amesma indiferenca e atencao que poe na outra". 3Para dar urnexemplo (nao muito convincente, na verdade), acrescenta ime-

diatamente depois que uma proposicao como "onde nao hitpropriedade, nao ha injustica" e "tao certa quanta qualquer

demonstracao encontrada em Euclides". Em outro local,chega mesmo a afirmar que 0homem e mais apto ao conheci-

mento moral que ao conhecimento dos corpos fisicos, e anun-cia vitoriosamente: "a moral e a ciencia apropriada e a grande

tarefa da hurnanidade em geral, a qual tern enorrne interesse

na pesquisa de seu summum bonum e e tambern apta a tal

pesquisa"."

Precisamente em virtu de da sua autoridade de grande 16-

gico e de grande jurista, 0 que Leibniz escreveu sobre 0 me-

todo da jurisprudencia da a plena medida do significado e da

novidade da concepcao rnatematizante na ciencia do direito:"A teoria do dire ito inclui-se entre aquelas - escreve ele -que nao dependem de experimentos, mas de definicoes": e,logo apos, como confirrnacao, aduz ser possivel compreenderque algo e justo mesmo quando nao haja ninguem que possaIaze-Io vigorar, nao diversamente do que ocorre em materna-

cap. III do Livro IV, os §§ 16 e 17 do cap. XI do Livro IIi, os§§8,9 e 10 do cap. IVdo Livro IV do Ensaio lockeano, ou seja, as passagens mais conhecidas onde Locke

expressa sua propria conviccao e enuncia seus proprios argumentos em favor da tese

de que a ciencia moral e "suscetivel de dernonstracao" (que e a mesma expressao

usada por Barbeyrac). Depois, ele comenta: "E : assim que raciocina esse grande f i l o -sofo. Aduzimos que as dernonstracoes das verdades especulativassao bern mais com-

plexas e dependem de urn mimero de principios maior do que as demonstracoes das

regras da moral. Para convencer-se disso, basta comparar os Elementos de geome-

tria com um pequeno sistema metodico dos deveres que a lei natural prescreve aos

homens (a referencia e ao De officio hominis et civis de Pufendorf); ao mesmo tempo

que se comprovara a verdade do que digo, reconhecer-se-a tambem, em minha opi-

niao, que e incomparavelmente mais facil compreender os principios e os raciocinios

desse livro do que os teoremas, problemas e demonstracoes daquele".

(3) Locke, An Essay concerning Human Understanding, L. IV, cap. III, § 18.

(4) Ibid., L. IV, cap. XII, §11.

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SOCIEDADE EESTADO NA FILOSOFIA POLlTICA MODERNA 27

tica, onde "as relacoes aritmeticas sao verdadeiras, mesmoque nao haja quem numere nem existam coisas a numerar". 5

Explieando em outro local quais sao as earaeteristicas das"ciencias necessarias e demonstrativas, que nao dependemdos fatos, mas unieamente da razao", inc1ui entre essas, alem

da logica, da matematica, da geometria e da ciencia do movi-mento, tambem "a ciencia do direito". 6 Iniciando sua obra de

ius naturale, methodo scientifica pertraetatum , Wolff nao he-sita em afirmar que tudo 0 que forma objeto da mesma "deve

ser demonstrado", ja que - se e verdade que a ciencia con-

siste no habitus demonstrandi, 0 direito natural ou se vale domethodus demonstrativa ou nao e ciencia. 7

Nao ha melhor comprovacao desse ideal comum a todos

os jusnaturalistas, 0 de uma ciencia demonstrativa do direito,

que a recusa unanime do argumento do "consenso", ou seia,da tese - mais uma vez aristotelica - de que as leis naturais

sao as leis comuns a todos os povos ou, mais limitadamente, atodos os povos eivilizados, e que, portanto, sao inferiveis naode consideracoes gerais sobre a natureza humana, nao da"natureza das coisas", mas, indutivamente, atraves de urn es-tudo eomparado das diversas legislacoes. Arist6teles dissera:"Justo natural e 0que tem por toda parte a mesma eficacia":"

e Cicero sentenciara: "Em qualquer coisa, 0 consenso de to-

dos os povos deve ser considerado lei de natureza. 0 consensode todos e a voz da natureza" .9 Mas ja Gr6eio afirmara haver

(5) Leibniz, Elementa iuris naturalis, que cito da edicao de V. Mathieu dos

Scrittipolitici de Leibniz, Turim, Utet, 1951, p. 86.

(6) Leibniz, Meditations sur la notion commune de justice, ed. cit., p. 219.

(7) Wolff, Jus naturalis methodo scientifica pertractatum, ed. cit., Prolego-

mena, §2.

(8) Arist6teles, Etica a Niciimaco, 1134 b. Trata-se da celebre passagem naqual Aristoteles distingue 0 justo natural do justo legal. Afirmando que por justo

natural se entende 0 que tern em toda parte a mesma eficacia, pode deixar entenderque e possivel concluir que 'se podem inferir as prescricoes observando 0 que e prati-

cado entre os diversos povos, precisamente "em toda parte".(9) Cicero, Tusculanae, I, 13-4. Essa e a principal passagem invocada pelos

defensores do fundamento consensual da lei natural. 0 consenso de todos os povos,enquanto voz da natureza, e a prova - a (mica prova - de que existem leis naturais.

Tanto e verdade que 0 argumento principal dos ceticos e mostrar que nao ha ne-

nhurna lei que seja acolhida por todos os povos, ou seja, que tenha "em toda parte" a

mesrna eficacia. Na passagem ja citada, Montaigne comenta a doutrina dos que afir-

mam a existencia de leis naturais a partir da "universalidade do consenso" com as

seguintes palavras: "Nao ha nada em que 0mundo seja tao diverso como no que se

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28 NORBERTO BOBBIO

dois modos para provar que uma instituicao e direito natural,

um a priori, que se funda na consideracao da natureza dascoisas, e outro a posteriori, que se funda no estudo dos costu-

mes e das leis dos varies povos; mesmo nao tendo tomado

posicao em favor de um ou de outro, ele precisara que 0 pri-meiro era mais rigoroso, enquanto 0 segundo estava mais aoalcance de todos, porem levava a conclusoes apenas pro-

viweis.10

Quem desatou 0 no, mais uma vez, foi Hobbes, que ne-

gou todo valor ao argumento a posteriori, afirmando, com re-

lacao ao consenso dos povos mais civilizados, nao ser claro aquem caberia estabelecer quais seriam os povos civilizados equais nao: e, com relacao ao consenso de todo 0 genero hu-mano, argumentou entre outras coisas que, assim como quem

viola uma lei geralmente 0 faz com 0 proprio consenso, do

consenso de todos os homens pode-se inferir tudo e 0 contrariode tudo. 11 Em De iure naturae et gentium, Pufendorf - mos-

trando, tambem sobre esse ponto tao importante de set Hob-bes e nao Grocio 0verdadeiro inspirador da nova methodus -acolhera 0ponto de vista hobbesiano, comentando as teses deArist6teles e de Cicero com 0 seguinte juizo: "Mas esse modo

de fun dar 0 direito natural, alem de ser a posteriori e nadadeixar entender sobre a razao pela qual 0 dire ito natural dis-

'pos desse modo e nao daquele outro, e tambem inseguro (lu-

bricus) e repleto de infinitas dificuldades". 12 Depois de ter

refere aos costumes e as leis. Uma coisa aqui e abominavel e alhures e honrada, como a

habilidade de roubar em Esparta. Os casamentos entre parentes sao proibidos entre

nos sob pena de morte, e alhures sao honrados. ( ... ) 0 infanticidio, () parricidio,

a comunidade das mulheres, 0 trafico de objetos rouhados, a licenca diante de qual-quer voluptuosidade, em suma, nao hfl nada de tao excessivo que nao seja admitidonos usos de algum povo" (ed. cit., vol. I, p. 771).

(to) Grocio, De iure belli ac pacis, L. I, cap. I, § 12. Ha nesse texto uma

distincao entre 0consenso de todos os povos e consenso dos povos mais civilizados. Adistincao e acolhida por Hobbes, que critica a legitimidade de ambos como funda-

men to do direito natural. Como autores da primeira tese, Gr6cio cita Heraclito, Aris-

toteles, Cicero, Seneca e Quintiliano; como defensores da segunda, Porfirio, Andrb-

nico de Rodes, Plutarco e ainda Aristoteles.

(11) Hobbes, De cive, II, I, ed. cit., pp. 94-7. Tambem em sua primeira obra

politica, Elements of Law Natural and Politic, Parte I, cap. XV, § 1.(12) Pufendorf, Die iure naturae et gentium, L. II, cap. III, §7 (na antologia

de Pufendorf por mim traduzida e ja citada, 0 texto se encontra nas pp. 98-9). Essapassagem de Pufendorf e invocada por Barbeyrac em seu comentario ao trecho de

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLiTICA MODERNA 29

exposto a origem contratualista do Estado, enfrenta a objecao

dos que se perguntam como e possivel que os Estados tenham

tido tal origem, respondendo do seguinte modo: "Nada im-pede que se possa indagar sobre a origem de uma instituicaoraciocinando sobre ela iratiocinando), quando dessa institui-cao nao mais restou nenhum documento historico". 13

A critica dos argumentos retirados do consenso, LOckededicou urn dos ensaios juvenis sobre a lei natural, que ate ha

pouco restou inedito, 0 quinto, intitulado significativamente

A lei de natureza niio pode ser conhecida com base no con-senso universal dos hom ens : 14 nele, Locke distingue 0 con-

senso dos costumes do consenso das opinioes, e afirma que,enquanto 0 primeiro nao prova nada, ja que nao existe acao

malvada com a qual os homens nao tenham consentido, 0 se-gundo pode servir apenas para revelar a lei natural, mas nao

para demonstra-la, porque, embora podendo fazer crer maisfortemente que aquela e uma lei de natureza, nao conseguenos dar da mesma urn conhecimento mais seguro: mais uma

vez, a demonstracao so pode ser obtida por meio da deducao a

partir dos principios, nao da analise das crencas alheias. "0

que existe, de fato, de tao celerado, de tao atroz e contrario a

Grocio citado em nota anterior, afirmando a proposito do metodo a posteriori: "Essa

maneira de provar 0 direito natural nao e de grande utilidade, porque apenas as rna-ximas mais gerais do direito natural foram acolhidas pela maior parte das nacoes.

Houve tambem maximas muito evidentes, cujo contrario foi considerado por muito

tempo como coisa indiferente mesmo nos paises mais civilizados. Eo que parece ter

ocorrido com 0horrivel costume de expor os recem-nascidos" (cito segundo a edicaofrancesa da obra grociana, Le droit de Laguerre et de Lapaix, na traducao de Jean

Barbeyrac, da qual existem muitas ediebes: a que tenho em meu poder e a de Basi-

leia, editada por Emanuel Toumeisen, 1768, e a passagem citada se encontra no vol.

I, pp. 53-4). Barbeyrac compara a evidencia com a experiencia, e mostra como nemsempre 0 que e evidente e tambem confirm ado pela experiencia, Esse contraste entreo que e evidente (1razao) e 0que e de fato praticado pelos diversos povos deve induzir

o filosofo moral a nao confiar na prova que pode ser deduzida do consenso de todos os

povos, ainda que se trate dos mais civilizados.(13) Pufendorf, De jure naturae et gentium, L. VII, cap. II, §8, trad. cit.,

p. 168. Essa afirmacao e feita por Pufendorf a proposlto da teoria dos dois contratosque se poem como fundamento ao Estado (sobre os quais voltaremos adiante), e deve

servir para demonstrar que fundar 0Estado em uma ou mais convencoes e uma exi-gencia racional antes de ser uma conclusao retirada da historia.

(14) Locke, "An lex naturae cognosci potest ex hominum consensu?", in Es-

says on the Law of Nature, ed. por W. von Leyden, Oxford, Clarendon Press, 1954,pp.16O-89.

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30 NORBERTO BOBBIO

todo direito e justica que nao tenha conseguido alguma vezobter 0 consenso, ou melhor, a conjura de uma rnultidao en-louquecida?" .IS 0 citado ensaio de Locke, que comeca comessas palavras, e dedicado em grande parte a uma escandali-zada demincia de todas as torpezas de todos os atos celerados,

de todas as loucuras que enchem as narracoes dos historia-dores. "Quase nao existe vicio, nem violacao da lei de natu-reza, nao existe aberracao moral que, para quem conhece ahistoria universal e para quein observa as acoes humanas, naodemonstre facilmente ter sido, em alguma parte do mundo,nao s6 admitida privadamente, mas tambem aprovada pelaautoridade publica e pelo costume" . 16 0 fato de que se estejadiante de urn retrato maneirista, precisamente da literaturainspirada no pirronismo moral, nao anula que um desabafodesse genero nao deixe diividas sobre a atitude do raciona-

lismo etico diante da hist6ria considerada como uma confusaoda qual e imitil buscar uma explicacao.

Nada pode fazer compreender melhor a importancia darecusa do argumento do consenso, a qual e comum a todos osjusnaturalistas, do que a obra do primeiro grande antagonistado jusnaturalismo, que se baseia principalmente na redesco-berta e no confiante emprego desse argumento. A ScienzaNuova Prima (1975) comeca, nao casualmente, com as seguin-tes palavras: "0 direito natural das nacoes nasceu certamente

com os costumes comuns das mesmas" . 17 E, ainda mais expli-citamente, na Scienza Nuova Seconda, Vico enuncia 0 princi-pio de "0que e sentido como justo por todos ou pela maiorparte dos homens deve ser a regra da vida em sociedade", aoque se segue 0conselho, dado a quem "quiser escapar" desseslimites que 'devem ser os confins da humana razao", de que"ele se cuide para nao escapar de toda a humanidade". 18

(15) Ibid., p. 161.

(16) Ibid., p. 166.(17) G. B. Vico, La scienza nuova prima, ed. por F. Nicolini, Bari, Laterza,

1931,p. 9.(18) G. B. Vieo, La scienza nuova (segundo a edi~ao de 1744), ed. por F.

Nicolini, Bari, Laterza, 1928,vol. I, p. 131,par. 360.Desse diversomodo de fundar 0

direito natural, segue-se tambem urn diferente modode entender as duas caracteris-tieas da imutabilidade e da universalidade. Para Vico, 0direito natural nao e urn di-reito estaticamente eterno, mas e urn direito que "corre no tempo", 0 que significa

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA 31

o nexo que. une os autores habitualmente incluidos naescola do direito natural pode ser determinado, como disse-mos, nao apenas com base no que eles concordantemente ne-garam, mas tambem com base no que neles e em suas teoriasfoi igualmente negado concordemente. Sem duvida, para fa-zer desses autores um grupo unitario, contribuiram tambemos seus adversaries, entre os quais Vico pode ser consideradocomo0primeiro. Se 0jusnaturalismo acreditara poder desco-brir leis universais da conduta para alern da hist6ria, remon-tando-se it natureza do homem abstraida das condicoes quedeterminam as leis mutaveis de povo para povo, de epoca paraepcca, e, ao fazer isso, combatera uma rnemoravel batalhacontra 0 principio de autoridade, dominante no estudo do di-reito, 0 historicismo - em suas varias formas - repos em

posicao de honra, contra a critica racionalista, a autoridadeda historia, condenando em bloco, indiscriminadamente, to-dos os que, mesmo pertencendo a orientacoes metafisicas di-versas, mesmo chegando a conclusoes politicas opostas, masigualmente fascinados pelo sucessodas ciencias fisicas e atrai-dos pela ideia de encontrar uma ordem racional no mundo hu-mano, tal como os grandes cientistas, de Descartes a Newton,haviam encontrado uma ordem racional no cosmo, tinham seempenhado no sentido de construir urn sistema universal do

direito, ou seja, urn sistema valido para qualquer tempo e paraqualquer lugar.EmAs origens do historicismo ;Meinecke escreve: "Toda

que sua eternidade consiste em seu eterno processo de reproducao e de realizacao na

historia, por toda parte onde se acenda uma centelha de humanidade. De resto, euniversal nao no sentido de que seja igual "em toda parte", como dissera Aristoteles,

mas no sentido de que e igual 0 seu processo de realizacao atraves do estado das

families, das republicas heroicas, das republic as populares, dos principados, e em

seu retorno ao principio depois da decadencia da ultima fase. Portanto, segundo

Vico, erraram os tres grandesjusnaturalistas (Gr6cio, Selden e Pufendorf), "os quais

todos os tres querem que, por cima de seus sistemas do direito natural de filosofos,

tenha transcorrido desde 0principio do mundo 0direito natural das gentes com cons-

tante uniformidade de costumes" (La scienza nuova prima, cit., p. 116). Em suma,

para quem, como Vico, considera 0 direito natural como algo mutavel segundo as

epocas e os povos, a variedade dos costumes - que eo argumento classico, por urn

lado, dos pirronistas contra os racionalistas, e, por outro, dos racionalistas contra os

consensualistas - nao prova nada: nao e urn argumento para dar razao aos pirronis-tas, nem uma boa razao para refutar 0argumento do consenso.

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32 NORBERTO BOBBIO

a tarefa do historicismo consistiu em enfraquecer e tornar mo-vel 0 rigido pensamento jusnaturalista, com sua fe na invaria-bilidade dos supremos ideais humanos e na igualdade abso-luta e eterna da natureza humana. 19 Quando Meinecke fala

do jusnaturalismo, nao se refere apenas ao moderno, mastambem, pelo menos abstratamente, ao jusnaturalismo pe-rene, que por dois milenios constituiu para 0homem ocidental"a estrela polar em meio a todas as tempestades da historia"; 20

mas, de fato, os jusnaturalistas com os quais e obrigado aacertar contas sao osjusnaturalistas dos seculos XVII eXVIII.A Rousseau - considerado segundo urn juizo transmitidoatraves da filosofia politica da Restauracao, que tern em Rous-seau 0 seu grande inimigo, como 0 extremo florescimento do

racionalismo etico e do abstratismo politico -, refere-se Cro-ce, quando condena as "construcoes geometric as e mecani-cas" de toda a escola do direito natural, criadas quando "sedesenvolvia e crescia a ciencia matematica da natureza, e 0

habito mental, que nela se formava, era transferido para todaparte, para a filosofia, a historia, a politica" . 21

Contudo, e verdade que 0 historicismo, em todas as suasformas, nao se limitou a fazer uma critic a metodologica dojusnaturalismo, porque - muito freqiientemente - a critic a

metodologica nao foi mais do que pretexto para uma critic apolitica. Desse modo, a critic a politica teve pelo menos duasfaces opostas (e muitas outras intermediarias): a conserva-dora, que viu no abstratismo do direito de razao 0principio dasubversao da ordem constituida; e a revolucionaria, que viuno mesmo abstransrno a ilusao, mas apenas a ilusao, senaomesmo 0enganoso pretexto de uma nova ordem fundada na

(19) F. Meinecke, Le origini della storicismo, trad. it., Florenca, Sansoni,

1954, p. 4.

(20) Ibid., p. XI.

(21) Esse juizo pode ser lido nos Elementi di politica (1925), que cito de B.Croce, Etica e politico; ;~ciri,Laterza, 3~ ed., 1945, p. 257. A passagem citada con-tinua. surpreenceruemente, do seguinte modo: H E caracteristico que a nova ciencia

que ~111...0 surgiu, concernente a atividade humana, fosse precisamente a ciencia

matematizante da utilidade, a Aritmetica politica (como inicialmente foi chamada)

ou Economia, como a cham amos nos. 0 livro de Rousseau e uma forma extrema, ou

uma das formas extremas, e certamente a mais famosa, da escola jusnaturalista"

(p. 257). Sobre essas teses de Croce, c t. 0 comentario de G. Cotroneo, Croce e l'illu-minismo, Napoles, Giannini, 1970, pp. 178-83.

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POUTICA MODERNA 33

liberdade--ena igualdade, enquanto a liberdade e a igualdadeefetivamente reivindicadas eram limitadas e parciais, nao urnbem de todos, mas urn bern da classe hegemonica. A criticametodol6gica, ao contrario, teve sempre uma tinica face: 0

jusnaturalismo, desse ponto devista, e acusado de ter queridoestudar 0 mundo da hist6ria com os mesmos instrumentosconceituais com os quais os fisicos estudaram 0 mundo danatureza, e, ao fazer isso, terminaram - 0 que nao deve pa-recer urn trocadilho - por "desnatura-lo",

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Bobbio, Norberto e Michelangelo Bovero (1979 [1986]) Sociedade e

Estado na Filosofia Polltica Moderna, Sao Paulo: Brasiliense.

o modelo hobbesiano

A critic a antijusnaturalista do historicismo atingia so-bretudo a teoria politica que a doutrina do direito natural cria-ra e divulgara. Como ja dissemos, no ambito da escola dodireito natural foram compreendidos alguns dos maiores es-critores politicos dos seculos XVII e XVIII, de Hobbes a Rous-

seau. A hist6ria da filosofia politica daqueles dois seculoscoincide em grande parte com a historia do jusnaturalismo:

ninguem pode escrever a historia das ideias politicas da epoca

que intercorre entre0

Renascimento e0

Romantismo sem le-var em conta, alem dos escritos politicos estritamente enten-didos, tambem os gran des tratados de direito natural, de Pu-fendorf a Burlamaqui. Com relacao a tradicao juridica ante-rior, a tratadistica do direito natural representa uma inovacao

para a qual e preciso chamar mais uma vez a atencao: nasisternatizacao geral do direito, ela compreende, ao lido dodireito privado, para 0 qual eram orientadas de modo exclu-sivo as tentativas de redigere ius in artem dos juristas do Re-nascimento (cuja materia era 0 Digesto), tambem 0 direitopublico. As grandes disputas metodologicas, que tinham divi-dido entre si os tradicionalistas e os humanistas, manifesta-ram-se predominantemente no terre no do direito privado. Aideia de que 0 dire ito romano fosse ratio scripta, e, enquantotal, desfrutasse do privilegio de uma validade que se perpetua

e se renova no tempo, era uma doutrina que se referia ao ius

privatum, nao ao ius publicum. Nao que 0 direito romano nao

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA 3S

constituisse urn fundamento confiavel para a solucao de al-guns problemas capitais tambem do direito publico: bastapensar na importancia que, desde a epoca dos glosadores, tevea lex de imperio (sobre a qual falaremos adiante), com a fina-lidade de estabelecer 0 fundamento e os limites da soberania,

para dar corpo a uma teoria da legitimidade. Mas direito pri-vado e direiro publico permaneciam habitualmente separados.Enquanto 0 direito privado se fora desenvolvendo sem apa-rente solucao de continuidade atraves da interpretatio dos ju-ristas - chamados a resolver controversias que, rnesmo nas-cendo de uma sociedade diversa da sociedade romana, conti-nuavam a envolver de qualquer modo institutos tipicos de di-reito privado, como propriedade, contratos, testamentos -,o direito publico modemo nascera de conflitos de poder desco-nhecidos na sociedade antiga: antes de mais nada, 0 conflito

entre poder espiritual e poder temporal, que constituiu poralguns seculos 0 principal argumento da tratadistica politica,e, por conseguinte, 0 conflito entre regna e imperium, ouaquele entre regna e civitates.

Indubitavelmente, 0direito publico - ou, para dizer me-lhor, aquele embriao de direito publico que se fora elaborandodurante a Idade Media - aproveitara-se grandemente dasprincipais categorias do direito privado: basta pensar na equi-paracao entre imperium e dominium, que permitia analisar 0

pode£ . soberano atraves das refinadas categorias empregadaspara a decomposicao e reconstrucao dos direitos do proprie-tario e dos direitos reais em geral; e, sobretudo, a teoria dopactum ou dos diversospacta, que deviam servir para explicaras relacoes entre soberano e suditos, e permitira tratar juridi-camente, ou seia, como uma questao a ser resolvida recor-rendo-se a logica do discurso juridico, 0 problema fundamen-tal da obrigacao, ou melhor, dos limites da obrigacao, da obe-diencia as leis por parte dos suditos (0 problema, como depoissera chamado, da obrigacao politica). Mas, a uma sistematica

geral do direito, que compreendesse ao mesmo tempo e comigual dignidade tanto 0 direito privado quanto 0 direito pu-blico, jamais se chegara antes da tratadistica do direito natu-ral. Se se deve reconhecer a escola do direito natural 0 meritode ter feito a maior tentativajamais realizada ate entao de daruma sistematizacao geral a materia juridica, de racionalizar 0

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36 NORBERTO BOBBIO

direito, esse merito the deve ser reconhecido mais ainda noambito do dire ito publico que no do direito privado.

Comparemos a primeira grande obra politica, que assi-nala 0 inicio do jusnaturalismo politico e do tratamento racio-

nal do problema do Estado, 0 De cive de Hobbes, 1 com a

maior obra politic a e de direito publico que a precede: 0De larepublique (1576) de Jean Bodin. (A comparacao e licita por-que, numa concepcao essencialmente legalista do Estado,como a que acompanha 0 nascimento do Estado moderno ecompreende toda a escola do direito natural, nao e possivel

distinguir nitidamente entre a filosofia politic a eo dire ito pu-blico.) A diferenca quanta ao modo de tratar os problemasnas duas obras - mais uma vez, a diferenca em relacao aometoda - e enorme. E a diferenca que intercorre entre 0 me-

todo tradicional do jurista, que extrai suas proprias solucoes

da analise dos precedentes autorizados e das sugestoes ofere-cidas pelo estudo da historia, e 0 metodo "geometrico", 0

qual, prescindindo de tudo 0 que podem ter dito os autoresprecedentes e nao levando em consideracao 0 ensinamento dahistoria, busca 0 caminho de uma reconstrucao meramenteracional da origem e do fundamento do Estado. Os tratados

de filosofia politica anteriores a Hobbes se apoiavam monoto-namente sobre dois pilares, a ponto de aparecerem freqiiente-

mente como nada mais que uma repeticao do ja dito: a PoU-

tica de Aristoteles e 0 direito romano, ou, mais precisamente,aquelas passagens do Codex referentes a fonte do poder impe-rial e que, a partir dos glosadores, haviam sido interpretadas

de variados modos. Dessa interpretacao derivara uma densarede de opinioes da qual nenhum escritor politico considerava

poder prescindir. Ainda recentemente, foi observada e docu-mentada a estreita analogia de estrutura entre 0 tratado deBodin e 0 de Arist6teles, bern como "0 panorama medieva-lista, em seu conjunto", que se manifesta a quem anotar as

(1) A primeira edicao e de 1642; a segunda, destin ada a divulgacao publica, ede 1647.0 titulo exato e Elementa philosophica de cive. la. em 1640, Hobbes cornpu-

sera uma primeira redacao de seu sistema filosofico, com referencia particular a filo-

sofia politica, The Elements of Law Natural and Politic, publicado em sua forma ori-

ginal somente em 1889 por F. Tennies: trad. it., por A. Pacchi, Florenca, La Nuova

Italia, 1968.

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA 37

citacoes juridic as da Republique. 2 Juntamente com a autori-dade da historia, como ha pouco observamos, Hobbes varretambem a autoridade de Aristoteles, contra quem toma posi-Cao desde as primeiras paginas do De cive, contrapondo ahipotese do homem naturaliter social, acolhida mediocre-

mente ate Grocio (inclusive), ahipotese do homo homini lu-pus; e nao parece levar em conta a existencia de urn direitopublico que faz apelo ao direito romano, embora utilize al-guns de seus conceitos fundamentais, como 0 do pacto queserve de fundamento ao poder estatal eo do Estado como pes-soa moral. Hobbes faz tabula rasa de todas as opinioes ante-riores e constroi sua teoria sobre as bases solidas, indestru-tiveis, do estudo da natureza humana e dos carecimentos queessa natureza expressa, bern como do modo - do iinico modopossivel, dados aqueles pressupostos - de satisfazer tais care-

cimentos.No tocante ao problema crucial do fundamento e da natu-

reza do Estado, pode-se com justeza falar - a comecar porHobbes - de urn modelo jusnaturalista, 3 adotado, emboracom notaveis variacoes, pelo rnenos ate Hegel incluldo-exclui-do, por alguns dos majores filosofos politicos da epoca mo-derna. Se, na teoria geral do direito, 0 que aproxima os escri-tores do direito natural, permitindo falar de uma escola do di-reito natural, e - como j a dissemos - 0 metodo, sobretudo

quando comparado com·0 das grandes escolas juridicas que aprecederam e a sucederarn, no que se refere ao direito publicoe a doutrina do Estado as obras jusnaturalistas, aquelas queseus criadores e seus adversaries consideram como tais, saocaracterizadas nao s6 pelo procedimento racionalizante, ouseja, por urn metodo, como tambem por urn modelo teorico(tao geral que pode ser preenchido com os mais diversos con-teudos), que remonta a Hobbes e do qual sao devedores, maisou menos conscientemente, tanto Spinoza quanta Pufendorf,tanto Locke quanto Rousseau (e cito propositalmente autoresdiferentissimos com relacao ao conteiido ideologico dos seus

(2) M. Isnardi Parente, Introduzione a J. Bodin, Isei libri dello stato, na co-

lecao dos "Classici politici", dirigida por L. Firpo, Turim, Utet, 1964, vol. I, p. 23.

(3) Retorno e desenvolvo 0 tema tratado no ensaio "Il rnodello giusnaturalis-

tico", in Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto , 1973, pp. 603-22.

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38 NORBERTa BOBBIO

escritos). Falando de "modelo", quero fazer entender imedia-tamente que, na realidade hist6rica, urn processo de formacaoda sociedade civil, tal como 0 idealizado pelos jusnaturalistas,jamais teve lugar: na evolucao das instituicoes de onde nasceuo Estado moderno, ocorreu a passagem do Estado feudal para

o Estado de estamentos, do Estado de estamentos para a mo-narquia absoluta, da monarquia absoluta para 0 Estado re-presentativo; mas 0 Estado como produto da vontade racio-nal, como e 0 caso daquele a que se referem Hobbes e seusseguidores, e pura ideia do intelecto.

o modelo e constituido com base em dois elementos fun-damentais: 0estado (ou sociedade) de natureza eo estado (ousociedade) civil. Trata-se de urn modele claramente dicoto-mico, no sentido de que tertium non datur: 0 homem ou viveno estado de natureza ou vive no estado civil. Nao pode viverao mesmo tempo em urn e outro. Da dicotomia principal, es-tado de natureza/ estado civil, os jusnaturalistas fazem emcada oportunidade, como ocorre com toda dicotomia, ora urnuso sistematico, na medida em que os dois termos servem paracompreender toda a vida social do homem; ora urn uso histo-riografico, quando 0 curso da hist6ria e explicado como pas-sagem do estado de natureza para 0 estado civil e, eventual-mente, como uma recaida do estado civil no estado de natu-reza; ora urn uso axiologico, na medida em que a cada urn dos

termos e atribuido urn valor antitetico com relacao ao outro(para quem atribui urn valor negativo ao estado de natureza, 0

estado civil tem urn valor positivo, e vice-versa).4 Entre as doisestados, ha uma relacao de contraposicao: 0estado natural e 0estado nao politico, e 0 estado politico e 0 estado nao natural.Em outras palavras, 0 estado politico surge como antitese doestado natural, do qual tern a funcao de eliminar os defeitos, e

(4) Sobre esses tres usos dos sistemas conceituais, detive-me pela primeira vez

no artigo "La grande dicotomia", em Studi in memoria de Carlo Esposito, Padua,

Cedam, 1974, pp. 2187-2200 (e, depois, no volume Dalla struttura alia funzione,

Nuovi studi di teoria del diritto ; Milao, Cornunita, 1977, pp. 145-63). A "grande di-

cotomia" de que falo e a distincao entre direito privado e direito publico. - Vali-rne

da ideia tarnbem na analise da teoria classica das formas de governo, tanto no artigo

"Vico e la teoria delle forme di governo", in Bolettino del Centro di Stud; Yichiani,

1978, pp, 5-27, quanto no verbete "Democrazia/Dittatura" da Enciclopedia Ei-

naudi, vol. IV, pp. 535-58 (publicado em 1978).

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA 39

o estado natural ressurge como antitese do estado politico,quando esse deixa de cumprir a finalidade para a qual foi ins-tituido. A contraposicao entre os dois estados consiste no fatode serem os elementos constitutivos do primeiro individuos

singulares, isolados, nao associados, embora associaveis, que

atuam de fato seguindo nao a razao (que permanece oculta ouimpotente), mas as paixoes, os instintos ou os interesses; 0

elemento constitutivo do segundo e a uniao dos individuos iso-lados e dispersos numa sociedade perpetua e exclusiva, que ea unica a permitir a realizacao de uma vida conforme a razao.Precisamente porque estado de natureza e estado civil sao

concebidos como dois momentos antiteticos, a passagem deurn para outro nao ocorre necessariamente pela propria forca

das coisas, mas por meio de uma ou mais convencoes, ou seja,

por meio de urn ou mais atos voluntaries dos proprios indi-

viduos interessados em sair do estado de natureza, ou seja, em

viverem conforme a razao. Na medida em que e antitetico ao

estado de natureza, 0 estado civil e urn estado "artificial",

produto, como se diria hoje, de cultura e nao de natureza (daia ambiguidade do termo "civil", que significa ao mesmo tem-po "politico", de civitas, e civilizado, de civilitas). Diferente-

mente do que ocorre com qualquer outra forma de sociedade

natural, em que 0 homem pode viver independentemente de

sua vontade -, como e 0 caso, segundo a tradicao, da socie-

dade familiar e da sociedade senhorial- 0 principio de legiti-macae da sociedade politica e · o consenso.

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o modelo aristotelico

Iduz-me a falar de modelo tambem a consideracao deque, na filosofia politica anterior a do direito natural, tiveralugar durante seculos uma reconstrucao da origem e do fun-damento do Estado completamente diversa e, sob todos os as-pectos, oposta, na qual e possivel(e titil) perceber urn modeloalt-rnativo. Trata-se do modelo que pode ser chamado comjusteza, em funcao do seu autor, de "aristotelico", assim comoo oposto pode com igual direito ser chamado de "hobbe-

siano", mesmo levando em conta que nao foi certamente Hob-bes quem 0 inventou, dado que a ideia da origem convencio-nal do Estado ja era conhecida na Antiguidade e teve cursoespecialmente na Idade Media ate a redescoberta de Aristo-teles; mas foi a Hobbes que se referiram todos os escritoressubseqiientes. Desde as primeiras paginas da Politica, Aristo-teles explica a origem do Estado enquanto polis ou cidade,valendo-se nao de uma construcao racional, mas de uma re-construcao historica das etapas atraves das quais a humani-

dade teria passado das formas primitivas as formas mais evo-luidas de sociedade, ate chegar a sociedade perfeita que e 0

Estado, As etapas principais sao a familia (que e a forma pri-mitiva de sociedade) e a aldeia. Com suas proprias palavras:"A comunidade que se constitui para a vida de todos os dias epor natureza a familia (. ..). A primeira comunidade que de-riva da uniao de mais de uma familia, voltada para satisfazeruma necessidade nao mais cotidiana, e a aldeia (... ). A comu-"

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA 41

nidade perfeita de mais de uma aldeia constitui agora a ci-dade, que alcancou 0 que se chama de nivel de auto-suficien-

cia, e que surge para tornar possivel a vida e subsiste paraproduzir as condicoes de uma boa existencia" . 1

Sao surpreendentes a duracao, a continuidade, a estabi-

lidade, a vitali dade de que deu prova esse modo de descrever aorigem do Estado. A medida que apresenta a evolucao da so-ciedade humana como uma passagem gradual de uma socie-dade menor para uma mais ampla, resultan te da uniao devarias sociedades imediatamente inferiores, pode facil e docil-

mente ser estendido a outras situacoes, a medida que as di-

mensoes do Estado, ou seja, da sociedade auto-suficiente e

como tal perfeita, cresciam, passando da cidade a provincia,da provincia ao reino, do reino ao imperio. Na logica desse

tipo de reconstrucao do Estado, e exemplar a longa sequenciaenunciada por Tommaso Campanella no inicio dos seus Alo-

rismos politicos (escritos nos primeiros anos do seculo XVII):"A primeira uniao ou comunidade e a do macho e da femea.

A segunda, ados geradores e dos filhos. A terceira, ados se-nhores e servidores. A quarta e de uma familia. A quinta, demais de uma familia numa vila. A sexta e a de mais de uma

vila em uma cidade. A setima, a de mais de uma cidade numa

provincia. A oitava, a de varias provincias num reino. A nona

e a mais de um reino sob urn imperio. A decima e a de muitosimperios sob mais de urn clima e meridianos ou sob 0mesmo.

A decima-primeira e a de todos os homens sob a especie hu-mana". 2

Essa passagem permite ver, entre outras coisas, como 0

modele aristotelico chegou inalterado ate 0 limitar da nova

era. Ainda em De la republique, Bodin da inicio ao trata-mento da materia com a seguinte definicao de Estado: "PorEstado, entende-se 0 governo justo que se exerce com poder

soberano sobre diversas familias e sobre tudo 0 que elas tern

em comum entre si". 3 Mais adiante, tendo de comentar a par-te da definicao que se refere a "diversas familias", explica que

(1) Aristoteles, Polltica, 1252 a.

(2) T. Campanella, Aforismi politici, ed. por L. Firpo, Turim, Giappichelli,1941, af. 3, p. 89.

(3) 1. Bodin, I se i libri della repubblica, ed. cit., p. 159.

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a familia "e a verdadeira origem do Estado e constitui sua

parte fundamental" .40 autor da maior obra politica antes de

Grocio, Johannes Althusius, define a civitas, ou seja, a conso-ciatio politica, como uma sociedade de segundo grau (maspode tambem ser de terceiro ou quarto, segundo as passagens

intermediarias, sem que a logica do modelo deva ser modifi-cada), ou seja, como uma sociedade que resulta da agregacaode sociedades menores, das quais as Iamilias sao as primeirasna ordem do tempo: Universitas haec est plurium coniugum,familiarum et collegiorum, in eodem loco habitantium, certislegibus facta consociatio. Vocatur alias civitas. 5

Apos ter iniciado a exposicao falando da consociatio do-

mestica, isto e, da familia (cap. II), Althusius passa para aconsociatio propinquorum, ou seja, a aldeia (cap. III), depois

para as especies inferiores da societas civiles, os colegios, quesao associacoes nao mais naturais porern artificiais (cap. IV),

para chegar a graus sucessivos, mediante circulos que se am-

pliam cada vez mais, a civitas (na qual distingue uma "riis-

tica" e uma "urbana"), e, finalmente, passa das civitates,

atraves das provinciae, ate 0 regnum (que corresponde ao Es-

tado propriamente dito, na acepcao moderna da palavra),

definido como universalis maior consociatio (cap. X). 0 fatode que, independentemente da quantidade e da qualidade dos

graus, variaveis de autor para autor, a teoria politica althu-

siana ainda se desenvolva inteiramente no interior do esquemareconstrutivo gradualista proposto por Aristoteles, e algo ates-tado do modo mais claro possivel pelo proprio autor, quandoafirma - no principio do capitulo V - que a sociedade hu-

mana passa das sociedades privadas para as sociedades pu-blicas certis gradibus acprogressionibus.

A reconstrucao racional proposta pelos jusnaturalistas, 0

modelo tradicional contrapoe uma reconstrucao historic a(ainda que uma hist6ria imaginaria). 0 ponto de partida nao

e urn abstrato estado de natureza, no qual os homens se en-contrariam antes da constituicao do Estado, e que 0 precede

(4) Ibid., p. 172.

(5) J. Althusius, Politic a metodice digesta, cap. V, 8, que cito da edicao de C.

J. Friedrich, na colecao "Harvard Political Classics", Cambridge University Press,

1932, p. 21.

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLtTICA MODERNA 43

logica e nao cronologicamente, mas a sociedade natural origi-naria, a familia, e uma forma especifica, concreta, historica-

mente determinada, da sociedade humana. Enquanto 0 mo-delo hobbesiano e dicotomico e fechado (ou 0 estado de natu-

reza ou 0 estado civil), 0modelo aristotelico e plural e aberto

(do primeiro ao ultimo grau, os graus intermediarios podemvariar de mimero). Enquanto no primeiro modelo, precisa-

mente enquanto dicotomico, urn dos dois term os e a antitesedo outro - e, portanto, estado de natureza e estado civil saocolocados urn diante do outro numa relacao de antagonismo-, no segundo modelo, entre a sociedade primitiva e origi-naria e a sociedade ultima e perfeita que e 0 Estado, ha umarelacao de continuidade ou de evolucao ou de progressao, nosentido de que, do estado de familia ao estado civil, 0 homem

passou atraves de fases intermediarias que fazem do Estado,nao a antitese do estado pre-politico, mas 0 desaguadouro na-

tural, 0 ponto de chegada necessario, a conclusao de certomodo quase predeterminada de uma serie mais ou menoslonga de etapas obrigat6rias. Se e verdade que a antitese entre

as duas figuras da dicotomia no modelo jusnaturalista de-pende do fato de que a primeira figura representa 0 individuono momento do seu isolamento, ou, para usar uma celebre

expressao de Hegel, 0 "sistema da atomistica", e a segunda 0

representa unido em socidade com outros individuos, e igual-

mente verdade que 0 gradualismo do segundo modelo de-pende do fato de que, desde a origem, os individuos sao apre-sent ados como reunidos em sociedade. Dai resulta que a pas-sagem de uma fase para outra, enquanto passagem de. umaforma de sociedade para uma outra maior (sem p~r isso sermais evoluida) , e uma transformacao nao qualitativa, maspredominantemente quantitativa. Finalmente, a passagem deuma fase para outra, do estado pre-politico para 0 estado poli-tico, precisamente na medida em que ocorre por urn processo

natural de extensao das sociedades menores a sociedademaior, nao se deve a uma convencao - ou seja, a urn ato devontade racional -, mas ocorre atraves do efeito de causas

naturais, atraves da acao de condicoes objetivas, rebus ipsis

dictantibus, como diria Vico, tais como a ampliacao do terri-

torio, 0 aumento da populacao, a necessidade de defesa, a ca-rencia de obter os meios necessaries a subsistencia, a divisao

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44 NORBERTO BOBBIO

do trabalho, etc., com a consequencia de que 0 Estado, em

vez de ser concebido como homo artificialis , nao e menos na-

tural que a familia. Nesse quadro, 0 principio de legitimacaoda sociedade politic a nao e mais 0 consenso, porem 0 estadode necessidade, ou, mais simplesmente, a propria natureza

social do homem.Comparando entre si as caracteristicas diferenciadoras

dos dois modelos, emergem com nitidez algumas das grandes.alternativas que caracterizam 0 longo caminho da reflexaopolitic a ate Hegel: a) concepcao racionalista ou historico-sociologic a da origem do Estado; b) 0Estado como antitese ou

como complemento do homem natural; c) concepcao indivi-dualista e atomizante e concepcao social e organica do Estado;d) teoria contratualista ou naturalista do fundamento do po- .

der estatal; e) teoria da legitimacao atraves do consenso ouat raves da Iorca das coisas. Essas alternativas referem-se aos

problemas da origem (a), da natureza (b), da estrutura (c), do

fundamento (d), da legitimidade (e) daquele sumo poder que

eo poder politico em relacao a todas as outras formas de po-

der do homem sobre 0 homem.De todas as diferencas entre os dois modelos, a mais rele-

vante para uma interpretacao hist6rica e (com todas as caute-las do caso) ideologica de ambos e a que se refere a relacaoindividuo/ sociedade. No modelo aristotelico, esta no inicio a

sociedade (a sociedade familiar como micleo de todas as for-mas sociais posteriores); no modelo hobbesiano, esta no prin-cipio 0 individuo. No primeiro caso, 0 estado pre-politico por

excelencia, ou seja, a sociedade familiar entendida no sentido

amplo de organizacao da casa ioikos) - 0 primeiro livro daPolitica de Aristoteles e dedicado ao governo da casa ou eco-

nomia -, onde por "casa" se entende tanto a sociedade do-mestica quanta a sociedade senhorial, e urn estado no qual as

relacoes fundamentais sao relacoes entre superior e inferior e,

portanto, sao relacoes de desigualdade, comoe 0 caso, preci-samente, das relacoes entre pai e filhos e senhor e servos. No

segundo caso, 0estado pre-politico, ou seia, 0 estado de natu-

reza, sendo urn estado de individuos isolados, que vivem forade qualquer organizacao social, e urn estado de liberdade e deigualdade, ou de independencia reciproca; e e precisamente

esse estado que constitui a condicao preliminar necessaria da

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLlTICA MODERNA 4S

hipotese contratualista, ja que 0 contrato pressupoe em seusurgimento sujeitos livres e iguais, Do mesmo modo como, noestado de natureza, sao naturais a liberdade e a igualdade, noestado social do modelo aristotelico sao naturais a dependen-cia e a desigualdade. Enquanto estado de individuos livres e

iguais, 0 estado de natureza e 0 local dos direitos individuaisnaturais, a partir dos quais e constituida de varies modos ecom diferentes resultados politicos - a sociedade civil.

A particular importancia desse contraste se revela no fatode ser a ele que se refere principalmente a interpretacao cor-rente que faz do modelo jusnaturalista 0 reflexo teorico e, aomesmo tempo, 0 projeto politico da sociedade burguesa emformacao. Dessa interpretacao, os tracos mais destacados saoos seguintes: a) 0 estado de natureza e 0 local das relacoes

mais elementares entre os homens, idest das relacoes econfi-micas: enquanto tal, ele representa a descoberta da esfera eco-nomica como dis tint a da esfera politica; da esfera privadacomo distinta da esfera publica, descoberta que e propria deuma sociedade na qual desaparece a confusao entre poder eco-nomico e poder politico que e caracteristica da sociedade feu-dal; b) essa esfera das relacoes economic as e regida por leisproprias de existencia e de desenvolvimento, que sao as leisnaturais: enquanto tal, ela represent a 0momento da emanci-

pacao da c1asse que se prepara para tornar-se economica-mente dominante com relacao a situacao existente; c) en-quanto estado no·qual os sujeitos sao individuos singulares,abstratamente independentes uns dos outros e, portanto, em

contato ou em conflito entre .s i exc1usivamente por meio daposse e da troca reciproca de bens, 0 estado de natureza re-flete a visao individualista da sociedade e da historia, comu-mente considerada como urn trace distintivo da concepcao domundo e da etica burguesas; d) a teoria contratualista, ou

seja, a ideia de urn Estado fundado sobre 0 consenso dos indi-viduos destin ados a dele fazer parte, representa a tendencia

da classe, .que se move no sentido da emancipacao politic a enao so economica e social, no sentido de par sob 0 propriocontrole 0 maior instrumento de dominacao de que se serveurn grupo de homens para obter obediencia: em outras pala-vras, reflete a ideia de que uma c1asse que se encaminha nosentidode se tornar economica e ideologicamente dominante

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deve conquistar tarnbem 0poder politico, ou seja, deve criar 0

Estado a sua imagem e semelhanca; e) a tese de que 0poder elegitimo so na medida em que e fundado sobre 0 consenso epropria de quem luta para conquistar urn poder que aindanao possui, e depois, uma vez conquistado 0 poder, passa adefender a tese contraria; f) finalrnente, os ideais de liberdadee de igualdade, que encontram seu lugar de realizacao no es-tado de natureza, ainda que urn lugar imaginario, indicam eprescrevem urn modo de conceber a vida em sociedade anti-tetico ao tradicional, segundo 0 qual a sociedade humana econstruida com base nurna ordem hierarquica tendencial-mente estavel, j a que conforme a natureza das coisas, e carac-terizam aquela concepcao libertaria e igualitaria que animapor toda parte os movimentos burgueses contra os vinculos

sociais, ideologicos, economicos e politicos que obstaculizamsua ascensao.

Uma prova a contrario da ruptura que 0 modelo jusnatu-ralista introduz na concepcao classica, bern como do signifi-cado ideologico-politico que essa ruptura assume no desenvol-vimento das reflexoes sobre a formacao do Estado moderno,pode ser extraida da seguinte observacao: a partir do dominioquase incontrastado do modelo jusnaturalista, sempre que ereexumado 0modelo classico, particularmente atraves de umaretomada da reavaliacao da familia como origem da sociedade

politica e como local privilegiado da vida economica, e que 0

Estado e figurado como uma familia em tamanho ampliado(concepcao paternalista do poder politico), com a conseqtientenegacao de urn estado originario constituido por individuoslivres e iguais; sempre que e feita uma critica acerba contra 0

contrato social, com a conseqiiente afirmacao da naturalidadedo Estado; sempre que e refutada a antitese entre estado denatureza e estado civil, com a conseqiiente concepcao do Es-tado como continuacao necessaria da sociedade familiar, isso

ocorre por obra de escritores reacionarios (entendendo por"reacionarios" os que sao hostis as grandes mudancas econo-micas e politic as de que foi protagonista a burguesia). Saoexemplos tipicos Robert Filmer, urn dos ultimos defensores darestauracao monarquica depois da Revolucao Inglesa, e CarlLudwig von Haller, urn dos mais conhecidos escritores politi-cos da Restauracao depois da Revolucao Francesa.

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLlTICA MODERNA 47

o alvo politico de Filmer e a teoria da liberdade naturaldos homens, da qual decorre a afirmacao (por ele julgada in-fundada e blasfema) de que os homens tern 0 direito de esco-lher a forma de govemo que preferem. Para Filmer, a unicaforma de governo legitima e a monarquia, porque 0 funda-

mento de todo poder e 0 direito que tem 0 pai de comandar osfilhos; e os reis sao ou originariamente os proprios pais, ou, nodecorrer do tempo, os descendentes dos pais ou os seus dele-gados. A concepcao ascendente do poder, propria das teoriascontratualistas, Filmer contrapoe uma concepcao rigidamentedescendente: 0poder jarnais se transmite, segundo Filmer, debaixo para cima, mas sernpre de cima para baixo. A partir domomento em que 0 paradigm a de toda forma de poder dohomem sobre 0 homem e 0 poder do pai sobre os filhos, entre

a sociedade politica e a sociedade familiar nao existe, paraFilmer, uma diferenca essencial: ha apenas uma diferenca degrau. Vejamos como ele se expressa: "Se se compararn os di-reitos naturais. de urn pai com os de urn rei, nao perceberemosoutra diferenca alem da amplitude e da extensao: como 0 paide uma familia, assim 0 rei estende sobre muitas familias asua preocupacao para conservar, nutrir, vestir, instruir e de-fender toda a comunidade". 6

Nao diversamente se manifesta Haller, 0 qual, mesmonao conhecendo a obra de Filmer, dec1araque 0 titulo "parece

indicar uma exata ideia fundamental" 7 (ernbora, como ele ad-verte logo apos, excessivamente restrita). Um dos propositosmais insistentemente repetidos em sua obra fundamental,Restauration der Staats- Wissenschaft tRestauracdo da ciencia

politico), de 1816-1820, e 0de mostrar que "os agrupamentoshumanos denominados de Estados nao diferem por natureza,mas somente em grau, das outras relacoes sociais". 8 Essa ten-tativa e perseguida atraves de urn ataque continuo contra as

(6) R. Filmer, Patriarcha or the Natural Power of Kings (1680), que cito da

edicao de L. Pareyson, publicada como apendice aos Due trattati del governo civile,

de Locke, Turim, Utet, 2~ ed. revista, 1960, cap. 1, §10, p. 462.

(7) C. L. von Haller, Restauration der Staats-Wissenschaft (1816-1820), que

cito da edicao de M. Sancipriano, na colecao dos "Classici politici", Turim, Utet,1963, vol. I, p. 154.

(8) Ibid., p. 130. 0grifo e nosso.

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48 NORBERTO BOBBIO

varias form as assumidas pela teoria contratualista, conside-rada uma "quimera", e por meio da tese segundo a qual 0

Estado nao e menos natural que as formas mais naturais davida social. Assim, nao e possivel tracar nenhuma diferencaentre as sociedades naturais e aquelas falsamente chamadas

de "civis": "A Antiguidade ignorava, como ainda hoje 0

mundo inteiro ignora (com excecao das escolas filosoficas),toda a terminologia que se faz passar por cientifica e que esta-

belece uma essencial diferenca entre 0 estado de natureza e 0

estado civil". 9 Portanto, dado que os Estados nao sao criados

mediante urn ato da razao humana, mas se formaram atravesde urn processo natural, "a diferenca entre os Estados e asdemais relacoes sociais consiste apenas na independencia, ouseja, num mais alto grau de poder e de liberdade". 10 Nao se

poderia dizer de modo mais claro que, entre sociedades pre-estatais e Estado, hi uma diferenca de grau e nao uma anti-

tese. Na cadeia finita de varias sociedades, uma sobre a outra,e inevitavel que se chegue a uma sociedade da qual as outras

dependam e que, por sua vez, nao depende de nenhuma outra.Essa sociedade ultima e 0 Estado. Mas a propria sociedadepode se tornar Estado e pode perder a qualidade de Estadosem mudar sua propria natureza.

(9) Ibid., p. 472.

(10) Ibid., p. 476.

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o estado de natureza

. Como dissemos, 0modele hobbesiano sofreu muitas va-riacoes na literatura dos seculos XVII e XVIII, que podem seragrupadas em torno de tres temas fundamentais: 0 ponto departida (0 estado de natureza), 0 ponto de chegada (0 estadocivil) e 0 meio atraves do qual ocorre a passagem de urn paraoutro (0 contrato social).

As variacoes referentes ao carater do estado de naturezaconcentram-se principalmente em torno destes tres proble-mas: a)se 0 estado de natureza e urn estado historico ou so-

mente imaginado (uma hipotese racional, urn estado ideal,etc.); b) se e pacifico ou belicoso; c) se e urn estado de isola-mento (no senti do de que cada individuo vive por sua conta,sem ter necessidade dos outros) ou social (ainda que se tratede uma sociedade primitiva). .

a) 0 problema do carater hipotetico ou hist6rico do es-tado de natureza foi colocado corretamente ja por Hobbes,embora sua solucao nao tenha sido freqiientemente enten-dida. 0 que em Hobbes e uma pura hipotese da razao e 0

estado'de natureza universal, ou seja, aquela condicao na qual

os homens teriam vivido ou seriam destinados a viver todosjuntos e ao mesmo tempo em estado de natureza, e da qualderivaria como consequencia (uma consequencia logica e naohist6rica) 0 bellum omnium contra omnes . 0 estado de natu-reza universal jamais existiu e nao existira jamais (sua exis-tencia prolongada no tempo teria levado ou levaria a extincao

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da humanidade). 0 que existiu e continua a existir de fato eurn estado de natureza nao universal mas parcial, circunscritoa certas relacoes entre homens ou entre grupos em certas cir-cunstancias de tempo e de lugar. Hobbes tampouco ere, como

ao contrario crera Rousseau, que 0 estado de natureza univer-

sal tenha existido pelo menos uma vez no tempo, no inicio dahist6ria da humanidade, ou seja, nao considera ser possivelidentificar 0 est ado de natureza com 0estado originario. Alias,considera verossimil que, "desde a criacao ate hoje, 0 generohumane jamais esteve numa situacao inteiramente sem socie-dade". 1

Os casos de estado de natureza parcial, ou seja, hist6rico

ou historicamente possivel, sao sobretudo tres: 1) 0 estado darelacao entre grupos sociais independentes, em particular, no

tempo de Hobbes, entre Estados soberanos (tambern Hegel,embora ironize a hipotese do estado de natureza, reconheceque os Estados soberanos vivem reciprocamente em estado denatureza); 2) 0 estado em que se encontram os individuos du-rante uma guerra civil, ou seia, quando se dissolve a sociedadepolitica e se entra em estado de anarquia; 3) 0 estado em queencontram certas sociedades primitivas, tanto as dos povos

selvagens da epoca, como alguns grupos de indios da Ame-

rica, quanto as dos povos barbaros da Antiguidade agora civi-

lizados. Na figuracao hobbesiana do estado de natureza, con-fluem tres inspiracoes diversas: a representacao do estado fe-rino da sociedade humana, segundo a concepcao epicurianatransmitida por Lucrecio no quinto livro do De rerum natura; 2

as descricoes de viajantes ao Novo Mundo, como foi documen-tado recentemente, de modo amplo e adrniravel, por Lan-ducci; 3 e as vivas impressoes da guerra civil inglesa."

(1) Hobbes, Questions concerning liberty, necessity and chance (1656), que

cito das English Works, ed. Moleshott, vol. V, p. 183.(2) Multaque per coelum solis volventia lustra / vulgivago vitam tractabant

more ferrarum, versos 931·32. (Na traducao portuguesa de Agostinho da Silva (Da

Natureza, Sao Paulo, Abril Cultural, col. "Os Pensadores", vol. V, 1973, p. 116),

temos: "E, enquanto muitos lustros se desenrolavam pelo ceu marcados pelo Sol,levavam eles uma vida errante a maneira dos animais bravios'"]

(3) S. Landucci, Lfilosofi e Ie macchine (1580·1780), Bari, Laterza, 1972, em

particular, no que se refere a Hobbes, pp. 114·42.

(4) Nao sem uma reminiscencia literaria de Tucidides, que descrevera comcores obscuras a guerra civil, desencadeada em Corcira em 427 a.C.: "A tal ponto de

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SOCIEDADE E EST ADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA 51

A . distincao implicita na teoria hobbesiana entre estadode natureza universal (apenas hipotetico) e estado de naturezaparcial (historicamente possivel), Pufendorf deu uma formaexplicita, ao distinguir 0 estado de natureza puro ou absoluto

daquele limitado: "Com efeito, pode-se considerar0

generohumane de dois modos: ou se concebem todos os homens emseu conjunto e singularmente considerados, vivendo em es-tado de liberdade natural; ou entao se consideram alguns de-les ligados entre si numa sociedade civil e unidos com os ou-tros apenas pelo vinculo da comum humanidade". 5

Tambem Locke, depois de ter descrito 0 estado de natu-reza como mera abstracao, ou seja, como 0 estado no qual oshomens vivem ou poderiarn viver se fossem tao razoaveis aponto de respeitarem as leis naturais, pergunta se jamais

houve homens em estado de natureza e onde estariam eles; eresponde aduzindo alguns casos, 0 dos soberanos de governos

ferocidade cbegou aquela guerra civil, e pareceu ainda mais tremenda, porque foi a

primeira:mais tarde, tambem toda a Grecia, pode-se dizer, foi por ela abalada etc."

(III, 82). Nao e preciso esquecer que Hobbes traduzira, na primeira parte de sua vida. a

historia da guerra no Peloponeso, publicada em Londres em 1629, interpreted - como

se I e no frontispicio .:._with faith and diligence immediately out 0/ the Greek by

Thomas Hobbes. Sobre a centralidade do tema da guerra civil em Hobbes, chamei

particularrnente a atencao no ensaio dedicado ao autor do Leviatii no vol. III da Storia

delle idee politiche economiche e sociali, dirigida por L. Firpo, Turirn, Utet, 1979.

Gostaria, porem, de citar pelo menos um trecho que nao se encontra nas obras politicase que, precisamente por isso, e ainda mais decisivo. No primeiro capitulo do De cor-

pore, tratando da utilidade da filosofia, Hobbes escreve: "Mas [a utilidade da filosofia

moral e civil) deve ser mensurada nao tanto pelas vantagens que derivam do conhe-

cimento dela quanto pelas calamidades em que incorremos por ignorancia da mesma.

Alem do mais, todas as calamidades que podem ser evitadas com a interveneao at iva do

homem nascem da guerra, em particular da guerra civiltdessa, com efeito, derivam

massacres, desolaciio, falta de todas as coisas" (I, 7). De todas as interpretacoes do

estado de natureza, a que tern menor credibilidade e aquela que, nestes ultlmos anos,

incrivelmente, teve maior sucesso. Refiro-me a obra de C. B. Macpherson, The Poli-

tical Theory of Possessive Individualism, Oxford, Clarendon Press, 1962, na qual se

afirma - com fracas provas - que, descrevendo 0 estado de natureza, Hobbes des-

creve na realidade, ainda que inconscientemente, a sociedade de mercado. Do mesmo

autor, cf. tambem a introducao aedi~ao do Leviathan , Penguin Books, 1968, na qual atese e reafirmada. Hobbes teria usado "urn modelo mental que, estivesse ele ou nao

consciente disso, corresponde apenas a sociedade de mercado burguesa" (p. 38), com a

consequencia de que "os modelos por ele construidos foram modelos burgueses" e,

portanto, 0nucleo principal de sua ciencia e "uma ciencia da sociedade burguesa"!(p.12).

(5) Pufendorf, De jure naturae et gentium, L. II, cap. II, §1, trad. it. cit.,

p.63.

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independentes, 0 de dois homens numa ilha deserta, 0 de "urnsuico e urn indiano nas florestas da America", 6 e 0 do sobe-ranD de urn Estado em face de urn estrangeiro em seu terri-t6rio. 7 De resto, tal como Hobbes, tambem Locke considera a

dissolucao do Estado como urn retorno ao estado de natureza:numa passagem, identifica explicitamente 0 estado de natu-reza com a anarquia. 8

o estado de natureza, ao contrario, e representado comourn estado hist6rico por Rousseau, que na primeira parte doDiscours sur I 'origine de 1'inegalite (Discurso sobre a origemdadesigualdade), de 1753, identifica 0 estado de naturezacom 0 estado primitivo da humanidade, inspirando-se, comose sabe, na .literatura sobre 0 "born selvagem". Mas trata-se

de uma hist6ria imaginaria que tern uma funcao exemplar, namedida em que deve servir para demonstrar a : decadencia dahumanidade a partir do momento em que esse saiu desse es-tado para entrar na "sociedade civil", bern como a necessi-

dade de uma renovacao das instituicoes que nao pode an darseparada de uma renovacao moral. Enquanto os autores ante-

riores distinguem nitidamente entre a hipotese racional e 0

dado hist6rico, Rousseau eleva 0 dado hist6rico (0 que ele erepoder ser considerado como urn dado historico) a uma ideiada razao, 0 que para os autores precedentes e somente urndos casos de estado de natureza real, e considerado por Rous-seau como 0 caso exemplar, como 0 estado de natureza porexcelencia. Mas tambem em Rousseau, nao diferentemente

dos outros, 0 estado de natureza e ao mesmo tempo urn fatohistorico e uma ideia reguladora, ainda que nele - bern maisdo que em seus predecessores - fato hist6rico e ideia regula-dora sejam fundidos conjuntamente.

b) A questao sobre a qual se detiveram freqiientementeos criticos do direito natural- se 0 estado de natureza e urnestado de guerra ou de paz - e tambern ela, em grande parte,uma questao irrelevante e que leva a equivocos quando se quer

compreender a peculiaridade do modelo.jusnaturalista. Com

efeito, se se acredita poder contrapor uma visao otimista a

(6) 1. Locke. Two Treatises of Government (1960), Segundo Tratado, § 14.(7) Ibid .• §9.

(8) Ibid .•§225.

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA S3

uma pessimista do estado de natureza, nao se conseguira ja-mais compreender por que uma das caracteristicas comuns a

todos osjusnaturalistas e a tese de que e preciso sair do estadode natureza e por que e util (Hobbes e Locke) ou necessario(Spinoza) ou algo imposto pelo dever (Kant) instituir 0 estado

civil: se, por estado pacifico, entende-se urn estado born en-quanto contraposto ao estado de guerra considerado comomau, e 0 estado de natureza e urn estado pacifico, 0 est ado

civil nao teriajamais nascido, ou, pelo menos, deveria ser con-

siderado nao como 0 estado da razaovmas como 0 estado da

estultice humana.A ideia de que 0 estado de natureza e urn estado de guer-

ra aparece como 0 fundamento da construcao hobbesiana: 0

primeiro capitulo do De cive e dedicado a expor todos os argu-

mentos em favor da tese de que 0 est ado de natureza e urnestado de guerra. Hobbes foi seguido por Spinoza, 0 qual- com uma expressao hobbesiana - afirmou que os ho-

mens, sen do .sujeitos a paixoes, "sao entre si naturalmenteinimigos' . 9

Com uma refutacao direta, mas na verdade Iorcada, de

alguns argumentos de Hobbes, Pufendorf afirmou que - porpoder ohomem no estado de natureza escutar nao s6 a pai-xao, mas tambem a razao, "que nao lhe sugere certamenteadequar-se somente aos proprios interesses" - esse estado e

urn estado de paz. 10 Uma afirmacao desse tipo, por outrolado, nao tern nenhum efeito sobre a sequencia do raciocinioque leva Pufendorf, como Hobbes e Spinoza, a fazer com que

os homens saiam do estado de isolamento e busquem viver em

sociedade. Se 0 estado de natureza e por urn lado, urn estado

de paz, ele e , por outro, urn estado de infelicidade e, portanto,

urn estado negativo, por causa de duas caracteristicas naturaise contraditorias do homem, que sao 0 arnor de si (precisa-

mente aquele arnor de si que Rousseau julgara como positivo e

distinguira do arnor propriol), que 0 irnpele a preocupar-se

exclusivamente com a propria conservacao, e a fraqueza (in-

firmitas), ou seja, a insuficiencia das proprias forcas, que 0

(9) Spinoza, Tractatus politicus, cap. II, §14.(10) Pufendorf, De iure naturae et gentium, L. II, cap. II, §9, trad. it. cit.,

p.79.

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S 4 NORBERTO BOBBIO

obriga a unir seus proprios esforcos aos dos outros. Desde Pla-tao, a razao fundamental pela qual os homens se reiinem emsociedade foi sempre a necessidade da divisao do trabalho. 0tema fora reexumado tambem por Spinoza no Tratado teolo-

gico-polltico (1670), publicado dois anos antes do tratado de

Pufendorf: "( ... ) Se os homens nao se prestassem socorro rmi-tuo, faltariam tanto 0 tempo quanto a capacidade de fazeremo que lhes e possivel em vista do proprio sustento e da propriaconservacao. Com efeito, nem todos sao igualmente habeis em

tudo; nem cada urn seria por si so capaz de obter aquilo de

.que individualmente tern mais necessidade". 11 Pufendorf re-

toma essa ideia quase com as mesmas palavras: "( ... ) para ter

uma vida comoda, ha sempre necessidade de recorrer a ajudade coisas e de homens, ja que cada urn nao dispoe de energia e

de tempo para produzir, sem a colaboracao alheia,0

que emais iitil e sumamente necessario" . 12

Como se ve, 0 problema relevante para explicar a origemda vida social nao e tanto se 0estado de natureza e pacifico oubelicoso, mas se e urn estado positivo ou negativo. Para Pufen- .

dorf, esse estado - mesmo sendo urn estado de paz - con-tinua a ser urn estado negativo, ainda que por uma razao(a rniseria, a indigencia, a pobreza) diferente da principal ra-zao adotada por Hobbes (digo "principal", porque 0 estadode natureza hobbesiano e , alem de violento, tambem misera-vel). Mas precisamente 0 que importa nao e que ele nao sejaurn estado de guerra, mas que seja de tal ordem - mesrno nao

sendo urn estado de guerra - que nao permite a sobrevivenciae 0desenvolvimento civil da humanidade.

Tambem Locke descreve 0 estado de natureza como urnestado de paz e, para afastar ate mesmo a menor suspeita deser hobbesiano, declara-o expressamente: "Temos aqui clara-mente a diferenca entre 0 estado de natureza e 0 estado deguerra, os quais, embora alguns os tenham confundido, sao

tao distintos entre si como 0 sao um est ado de paz, bene-volencia, assistencia e conservacao reciproca, e urn estadode hostilidade, malvadeza, violencia e destruicao recipro-

(11) Spinoza, Tractatus theologico-politicus, cap. V.

(12) Pufendorf, De iure naturae et gentium, L. II, cap. III, §9, trad. it. cit.,

p.111.

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SOCIEDADE E EST ADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA SS

ca" .13 Mas, enquanto estado de paz universal, e tao hipoteticoquanto 0estado universal de guerra de que fala Hobbes. Hipo-tetico no sentido de que seria urn estado de paz se os homensfossem todos e sempre racionais: s6 0homem racional obedeceas leis naturais sem necessidade de ser a isso coagido. Mas, ja

que os homens nao sao todos racionais, as leis naturais podemser violadas; e, visto que de uma violacao nasce outra, pela au-sencia no estado de natureza de urn juiz super partes, 0 estadode natureza apresenta continuamente 0risco de degenerar numestado de guerra, ou melhor, "0estado de guerra, uma veziniciado, prossegue", 14 Assim, 0 estado de natureza e hipote-ticamente urn estado de paz, mas se torna de fato urn estadode guerra: e superfluo acrescentar que nao do est ado hipote-tico, mas do estado de fato e que nasce a exigencia da socie-dade civil. Nao muito diversa

ea posicao kantiana: na reali-

dade, Kant nao se coloca expressamente 0 problema de saberse 0 estado de natureza e belicoso ou pacifico, mas - cha-mando-o de "provis6rio", em contraste com 0 estado civil,que chama de "peremptorio" - mostra claramente que 0 es-tado de natureza e urn estado incerto, instavel, inseguro,desagradavel, no qual "0homem nao pode continuar a viverindefinidamente" .1S

A posicao de Rousseau e urn pouco mais complexa, por-que sua concepcao do desenvolvimento historico da humani-

dade nao e diadica - estado de natureza ou estado civil -,como no caso dos escritores precedentes, onde 0 primeiro mo-mento e negativo e 0 segundo positivo, mas triadic a - estadode natureza, sociedade civil, republica (fundada no contratosocial) -, onde 0 momento negativo, que e 0 segundo, apa-rece colocado entre dois momentos positivos. 0 estado ori-

(13) Locke, Two Treatises, Segundo Tratado, §19.

(14) Ibid., §20.

(15) A correspondencia da distincao entre estado de natureza e estado civil com

a distincao entre estado de direito provisorio e estado de direito peremptorio e funda-

mental para compreender a relacao entre estado de natureza e sociedade civil em Kant.

Na Rechtslehre (que e a primeira parte da Metaphysik der Sitten, 1797), ele retorna aquestao varias vezes: no § 9, a proposito do "rneu" e do "teu" exteriores; no § 15,

a proposito do titulo de aquisicao: no §44, a proposito da constituicao do Estado. Para

urn cornentario desses trechos, remeto ao meu curso sobre Direito e Estado no pensa-

mento deEmanuel Kant, ed. brasileira, Brasilia, Editora da Vniversidade de Brasilia.

1984, pp. 94 e ss.

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56 NORBERTO BOBBIO

ginario do hom em era urn estado feliz e pacifico, ja que 0 ho-

mem - nao tendo outros carecimentos alem daqueles que

podia satisfazer em contato com a natureza - nao se via nodever nem de se unir nem de combater os proprios semelhan-tes. Mas era urn estado que nao podia durar; por uma serie de

inovacoes, a principal das quais foi a instituicao da proprie-dade privada, ele degenerou na sociedade civil (entenda-se:

civilizada), onde ocorre 0 que Hobbes imaginara ocorrer noestado de natureza, ou seja, a conflagracao de conflitos conti-nuos e destrutivos pela posse dos bens que 0 progresso tecnicoe a divisao do trabalho haviam aumentado .enormemente.Quando Rousseau escreve que "as usurpacoes dos ricos, 0

banditismo dos pobres, as paixoes desenfreadas de todos" ge-ram "urn estado de guerra permanente", faz eco a.Hobbes: 16

na realidade, 0 que Rousseau critica em Hobbes nao e terformulado a ideia de urn estado de guerra total, mas de te-loatribuido ao homem de natureza e nao ao homem civil. Tam-bern para Rousseau, portanto, e perfeitamente irrelevante aquestao de saber se 0 estado de natureza e urn estado de pazou de guerra. 0 que importa e que, tarnbem para ele, comopara todos os jusnaturalistas, 0estado que precede 0estado derazao e urn est ado negativo e que, portanto, 0estado de razao,o estado no qual a humanidade devera encontrar a solucao de

seus proprios problemas mundanos, surge como antitese aoestado precedente: a diferenca entre Rousseau e os outros e

que, para esses, 0estado precedente e 0 estado de natureza -

seja esse estado de guerra efetiva (Hobbes e Spinoza) ou deguerra potencial (Locke e Kant), seja urn estado de miseria

(Pufendorf) -,.enquanto para Rousseau e a "societe civile".c) Se 0ponto de partida de uma teoria racional da socie-

dade e do Estado deva ser 0 individuo isolado ou associ ado , 0individuo enquanto tal ou alguma forma de sociedade, foi algo

repetidamente discutido no interior da propria escola do di-

(16) I.-I. Rousseau, Discours sur I'origine de l'imfgalite parmi les hommes

(1754), que cito de Rousseau, Scritti politici, ed. de P. Alatri, Turirn, Utet, 1970,p. 333. "Entre 0 direito do mais forte e 0 direito do primeiro ocupante, surgia urn

conflito permanente, que termiriava somente com 0furor de combates e assassinatos. Asociedade nascente cedia lugar ao rnais horrendo estado de guerra" (p. 333). Mais urna

vez, 0 estado de guerra e a passagem obrigat6ria para 0 nascimento do Estado: rnais

uma vez,0Estado e a antitese do estado deguerra.

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POL[TICA MODERNA 57

reito natural. Mais ainda do que a solucao dada as duas alter-nativas anteriorrnente exarninadas, a solucao do problema desaber se 0 estado de natureza era urn estado associal, ou seia,composto de individuos sem uma necessaria relacao entre si,

ou social, serviu como criterio de discriminacao das varias ten-dencias de filosofia politica durante 0 seculo XVIII. Em con-traste com os defensores do direito natural individual, quehoje poderiamos chamar de individualistas, os outros - osdefensores do direito natural social- foram chamados, ja noseculo XVIII, de "socialistas". 17 Na historia do direito natu-ral, 0 kantiano Hufeland chama Pufendorf e seus seguidoresde Socia listen , porque "fundam 0 direito natural na socie-dade" . 18Essa denominacao durou muito tempo e e ainda hojeempregada por Stahl, na hist6ria da filosofia do direito, antes

mencionada, quando ja agora 0 termo "socialista" assumiuurn significado diverso. 19·

Mas tambem essa distincao deve hoje ser considerada cri-ticamente, ou seia, fora das preocupacoes de ortodoxia reli-giosa que levaram a encarar os escritores nao "socialistas", ou.seja, os que haviam feito remontar as origens da humanidadea urn estado de "selvageria" (basta recordar as acusacoes diri-gidas contra Vico por causa do seu "estado ferino"), como re-probos. Se por "socialistas" se entendem osque continuaram

a transmitir a concepcao aristotelica do homem como animalnaturalmente social - ou movido, como afirmara Grocio,pelo appetitus societatis -, nenhum dos escritores que contri-buiram para formar e desenvolver 0 modelo jusnaturalista

(17) F. Venturi, "Socialisti e socialismo nell'Italia del Settecento", in Rivista

Storica Italiana, 1963, pp.129-40.

(18) G. Hufeland, Lehrstitze des Naturrechts, que cito da 2~ ed., lena, C. H.

Cuno'sErben, 179S(I~ ed., 1790). Adenominacao de "socialistas" dada a Pufendorf e

seus seguidores encontra-se no§59, no inicio de uma breve hist6ria do direito natural,

na qual e proposta uma periodizaeao, discutida tambem pelo nosso Rosmini, em Vor-

zeit (epoca dos precursores), Unbestimmete Zeit (epoca de formacao), que compreende

os tres grandest Gr6cio, Pufendorf e Thomasius, e Bestimmte Zeit (epoca da escola

formada), de Thomasius para a frente. De Thomasius, Hufeland diz: "Inicialmente

amigo dos socialistas, tornou-se depois seu primeiro mais importante adversario"

(§60).

(19) F. Stahl, Die Philosophie des Rechts nach geschichtlicher Ansicht, publi-

cada em dois volumes, respectivamente em 1830 e 1837. Na p. 170 da ed. italiana

(Turim, 1855), fala-se de Thomasius "socialista",

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S8 NORBERTO BOBBIO

pode ser caracterizado com essa denominacao. Nem sequer

Pufendorf. A necessidade que tern 0 homem de viver junto

com outros nao deriva, em Pufendorf, corno em Grocio, de

uma tendencia natural para a sociedade, mas - como vimos

- de duas concepcoes objetivas, ° amor de si ,e a fraqueza,que fazem com que a vida social apareca como desejavel para

o homem. Assim explicada, a vida em sociedade aparece maiscomo 0 produto de urn calculo racional, de urn interesse, doque de urn instinto ou de urn appetitus; tambem por isso, Pu-

fendorf deve ser considerado, mais uma vez, como seguidor deHobbes e nao de Grocio, De resto, para todos os escritores ateagora examinados, 0estado de natureza e 0 estado cujo prota-gonista e 0 individuo singular, com direitos e deveres, cominstintos e interesses; ou seja, em relacao diretamente com a

natureza, da qual ret ira os meios para sua propria sobreviven-

cia, e s6 indiretamente, esporadicamente, com os outros ho-mens. 0 dado originario, urn dado diante do qual nao se podeimaginar nada de mais adequado a uma concepcao individua-

lista da sociedade, nao e 0appetitus societatis, mas 0 instinto "

de conservacao, 0conatus sese conservandi de Spinoza. 0 ins-

tinto de conservacao move tanto 0 hom em de Hobbes e de

Spinoza quanta 0 de Pufendorf e de Locke. Num feliz isola-

men to em face dos outros homens transcorre a vida do homemnatural de Rousseau, movido exc1usivamente pelo amor de si

que e , como se I e no Emflio, "sempre born", e e 0meio atravesdo qual 0 homem satisfaz 0 carecimento fundamental da pro-pria conservacao, Fato individual e 0 ius in omnia, do qualpartem tanto Hobbes quanta Spinoza. E fruto do esforco inte-

ligente ou capcioso do individuo e 0 instinto fundamental do

estado de natureza segundo Locke, e da sociedade civil se-gundo Rousseau, que substitui 0 estado de natureza como mo-mento antitetico do Estado: a propriedade. Kant faz coincidiro direito natural (contraposto ao direito civil) com 0 direitoprivado (contraposto ao publicor.j" 0 direito natural-privado

(20) Sobre esse ponto fundamental, lemos na Metaphysik der Sitten a seguinte

passagem: "A divisao do direito natural nao reside ( ... ) na distincao entre direito

natural e direitosocial, mas naquela entre direito natural e direito civil, 0primeiro dos

quais e chamado de direito privado eo segundo, de direito publico. E, com efeito

o oposto do estado de natureza nao eo estado social, mas 0estado civil, pois pode multo

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA S9

e essencialmente, se nao exc1usivamente, 0 direito que regulaas relacoes entre os individuos: nao exc1usivamente, ja queregula tambem aquela forma primitiva e natural de socie-dade que e a familia, bem como as associacoes privadas.o principio individualista em que se inspiram as teorias

jusnaturalistas nao exc1ui que exista um direito natural social,ou seja, um dire ito das sociedades naturais, como a familia, e,por conseguinte, que exist am sociedades divers as da sociedadecivil ou politica. 0 que se exc1uie que a sociedade politica seja

concebida como um prolongamento da sociedade natural: a

sociedade politica e uma criacao dos individuos, e 0 produtoda conjuncao de vontades individuais. A familia faz parte do

estado de natureza, mas nao 0 substitui. A sociedade politic a

substitui0

estado de natureza, nao0

continua, nem0

pro-longa, nem 0 aperfeicoa. Os dois termos da construcao per-manecem 0 individuo, cujo reino e 0 estado de natureza, e 0

Estado, que nao e uma sociedade natural. As sociedades natu-rais, ou seja, nao-politicas, existem; e ninguem pode cancela-

las da hist6ria: mas, no contraste principal entre individuo e

Estado, 'elas desempenham um papel secundario, ao contrariodo que ocorre no modelo tradicional, onde tem urn papel pri-mario. E verdade, Hobbes admite que, numa sociedade pri-

mitiva, a familia - a "pequena familia" - assuma 0posto doEstado," e que, de fato, na evolucao da sociedade do pequenogrupo familiar para 0 grande Estado, existam Estados, comoas monarquias patrimoniais, que assumem 0 aspecto de Iami-lias ampliadas; 22 e e igualmente verdade que Locke admite

que "os pais de familia, por uma mudanca insensivel, torn a-

ram-se tambem os monarcas politicos", 23 e que, na origem

dos tempos, os primeiros governos eram estados monarquicos

bern existir sociedade no estado de natureza, mas nao uma sociedade civil, que garanteo meu eo teu por meio de leis public as" (ed. cit., p. 422). Dessa passagem, na qualKant especifica que a contraposicao fundamental nao e entre direito individual edireito social, mas entre direito natural (aqui incluido 0direito das sociedades naturais,

como a familia e as associacoes contratuais) e direito civil (ou direito da sociedade civil,que nao deve ser confundida com as sociedades naturais), resulta claramente por queo direito natural coincide com 0 direito privado, e 0 direito positivo nasce com 0 di-

reito publico.(21) Hobbes, Leviathan, cap. XVII.(22) Hobbes, De cive, IX, 10; Leviathan, cap. XX.(23) Locke, Two Treatises on/Government, Segundo Tratado, §76.

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60 NORBERTO BOBBIO

na medida em que 0 proprio pai era reconhecido como rei. 24

Mas e igualrnente claro que, na argumentacao de Hobbes e deLocke, e preciso distinguir entre a descricao do que ocorreu defato em certas circunstancias e a proposta de uma nova formade legitimacao politica. Desse ponto de vista, ou seja, do pontode vista do fundarnento de urn novo principio de legitirnidade,

nern a sociedade domestica nem a sociedade senhorial ofere-cern urn modelo valido para a sociedade politica,

(24) Ibid., §107.

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o contrato social

o principio de legitimacao das sociedades politic as eexclusivamente 0 consenso. 0 tema foi colocado com a m a -xima precisao por Locke. A melhor chave de leitura da segun-

da parte dos ja citados Two Treatises of Government (Dois

tratados sobre 0governo), que tern como subtitulo, e e conhe-

cida como, An Essay concerning the true Original, Extent andEnd of Civil Government (Ensaio sobre a verdadeira origem,extensiio e finalidade do governo civil), e a que nos permite

interpreta-lo como urn longo e dense raciocinio dirigido no

senti do de refutar todos os que confundiram a sociedade poli-

tica com a sociedade domestica e com a sociedade senhorial,bern como de demonstrar que 0 que distingue as tres form as

de sociedade e 0 diferente fundamento da autoridade e, por-tanto, da obrigacao de obediencia, ou seja, 0 diverso principiode legitimidade. Desde as primeiras paginas, Locke deixa cla-

ro 0 seu proposito, quando escreve que" 0poder de urn magis-

trado sobre urn sudito pode se distinguir daquele de urn paisobre os filhos, de urn senhor sobre 0 servo, de urn maridosobre a rnulher, e de urn dono sobre 0seu escravo"; por isso, epreciso mostrar "a diferenca entre 0 governante de urna socie-

dade politica, 0 pai de uma familia e 0 capitao de uma ga-lera";." Tres sao os tipos classicos de fundamento das obriga-coes, como bern 0 sabem os juristas: ex generatione, ex de-licto, ex contratu. A obrigacao do filho de obedecer ao pai e a

(1) Ibid., §2.

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62 NORBERTO BOBBIO

mae depende do fato de que foi por eles gerado, ou da natu- .reza; a obrigacao do escravo de obedecer ao dono depende deum delito cometido, ou e 0castigo por uma culpa grave (comoa de ter travado uma guerra injusta e te-Ia perdido); a obriga-cao do sudito de obedecer ao soberano nasce do contrato. Issosignifica dizer que 0 governante, ao contrario do pai e do dono

de escravos, necessita que sua propria autoridade obtenhaconsentimento para que seja considerada como legitima. Emprincipio, um soberano que governa como urn pai, segundo 0

modelo do Estado paternalista, ou, pior ainda, como um se-nhor de escravos segundo 0modele do Estado despotico, nao eurn governo legitime e os siiditos nao sao obrigados a lheobedecer.

Embora a teoria do contrato social fosse antiga e ampla-mente utilizada pelos legisladores da Idade Media, somente

com os jusnaturalistas ela se torna uma passagem obrigatoriada teoria politica; tanto que sera comum a todos os criticos dodireito natural, de Hume a Bentham; de Hegel a Haller, deSaint-Simon a Cornte, a refutacao desse estranho e imitil ex-pediente (que dois autores tao diferentes, como Bentham eHaller, urn independentemente do outro, charnam de "qui-mera"). Entre os escritores antigos, haviam se referido a urnpossivel e, em alguns casos, efetivamente ocorrido fundamentocontratualista do Estado tanto Platao 2 quanto Cicero, 0 qual

colocara na boca de Philus, porta-voz das ideias ceticas sobrea justica, a seguinte afirmacao que hoje diriamos de saborhobbesiano: Sed cum alium met, et homo moninem e ordo

ordinem, tum quia nemo sibi confidit, quase pactio fit inter

populum et potentes, ex quo existit id quod Scipio laudabat,

coniunctum civitatis genus". 3 0 acordo ao qual tanto Plataoquanto Cicero se referem e aquela especie de pacto que os es-critores medievais iriam chamar de pactum subiectionis (so-

(2) "Portanto, aeontece 0 seguinte: os reis e os povos de tres reinos (Esparta,

Argos, Messina), com base nas leis estabelecidas em comum para regular as relacoes

entre governantes e governados, juraram-se reciprocamente, uns nao tornarem mais

gravoso 0 seu poder com 0passar dos tempos e com a ampliacao de suas familias, os

outrosjamaisderrubarem 0poder regie e nao permitirem que outros tentassem faze-Io,

enquanto os reis observassem essas condicoes" (Platao, Leis, 684 a).(3) Cicero, De republica, 111,13.

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLlTICA MODERNA 63

bre 0 qual falaremos adiante). Mas, na tradicao sofistica, quesublinhara de modo particular e polemico 0 carater conven-cional das leis e dos governos e, portanto, do justo e do in-justo, e depois na tradicao epicuriana, 0 acordo do qual nasce

a vida social fazia pensar no que iria ser chamado entao de

pactum societatis, como se pode ler nesta celebre passagem deEpicuro: "A justica nao e algo que existe em si, mas somente

nas relacoes reciprocas e sempre de conformidade com os 10-

cais onde se estabelece urn acordo para nao provocar nem re-ceber dano". 4. Essa diferente interpretacao do acordo origi-nario demonstra como era pouco elaborado 0 chamado con-

tratualismo antigo em comparacao com 0 rnoderno. Para °contratualismo medieval, rnais irnportante fora a famosa pas-

sagem de Ulpiano sobre a lex de imperio (ou seja, sobre a lei

da qual 0 irnperador derivava a autoridade de fazer leis), se-gundo a qual 0 que 0 principe delibera tern forca de lei, por-que 0populus conferiu-Ihe 0 poder de que originariamentesomente ele, 0 povo, era titular. 5 Mais uma vez, se a declara-cao contida nessa passagem podia ser interpretada como urndocumento da origem contratualista da autoridade, 0pacta aque ela se refere e 0 pacto de submissao, cuja condicao neces-saria e objetiva e a existencia do populus como universitas ja

constituida e independentemente do modo como foi consti-tuida. Do reconhecimento preliminar de uma relacao entrepopulus e princeps, de resto, resultavam duas interpretacoes

contrapostas do conteudo dessa relacao, conforme a atribui-cao da autoridade ao principe fosse entendida como uma alie-nacao total e, portanto, nao somente do exercicio mas tarn-

bern da titularidade do poder (0 translatio imperii), ou como

uma concessao limitada ora no tempo ora tambem no objeto,

segundo a qual 0 principe recebia do povo, de quando em

quando, 0 exercicio mas nao tambem a titularidade do poder

(ou concessio imperii).

Tambern 0 tema do contrato social e apresentado pelosdiversos autores com algumas variacoes, das quais as duas

(4) Epicuro, Ratae sententiae, XXXIII.

(5) "Quod principi placuit legis habet vigorem utpote cum populus ei et in eum

suum imperium et potestatem conferat" (D. 1,4, I).

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64 NORBERTO BOB810

mais importantes referem-se it modalidade de realizacao (suba) eo conteiido (sub b).

E menos importante do que para 0 estado de natureza a

questao relativa it historicidade ou nao do ato. Somente Lockebusca provar que nada obsta a que se possa considerar 0 con-trato originario como urn fato historico." Mas Locke tern derefutar urn adversario, Filmer, que defendeu a legitimidadeda monarquia absoluta recorrendo it historia (ainda que a

uma hist6ria sagrada, que nada tern a ver com a hist6ria pro-

fana). De resto, tambem para Locke 0 contrato serve princi-palmente como instrumento necessario it finalidade de permi-tir a afirmacao de urn certo principio de legitimacao (a legiti-

macae baseada no consenso) contra outros principios. Se a

unica forma de legitimacao do poder politico e 0 consenso da-

queles sobre quem esse poder se exerce, na origem da socie-

dade civil deve ter existido urn pacto, se nao expresso, pelo·menos tacite, entre os que deram vida a tal sociedade. Mais

do que urn fato historico, 0 contrato e concebido como uma

verdade de razao, na medida em que e urn elo necessario dacadeia de raciocinios que comeca com a hipotese de individuoslivres e iguais. Se individuos originariamente livres e iguais sesubmeteram a urn poder comum, isso nao pode ter ocorrido anao ser por meio de urn acordo reciproco. Nesse sentido, 0

contrato - alern de urn fundamento da legitimacao - e tam-

bern urn principio explicativo. A diferenca entre 0 contratocomo fato historico e 0 contrato como fundamento de legiti-macae e clara em Rousseau, onde 0pacta entre ricos e pobres

que deu historicamente origem ao Estado, tal como e descritona segunda parte do Discurso sobre a-desigualdade, e urn

pacto urdido com 0 engano (e portanto, a rigor, ilicito), 7 en-

(6) Locke, Two Treatises, Segundo Tratado, §100 e S S e Para afirrnar a reali-dade historica do contrato originario, Locke se serve de dois argumentos: a) desses

contratos nao se tern geralmente noticia porque os povos nao conservararn noticias desuas origens; b) para alguns Estados, como Roma e Veneza, de cuja origem se tern

noticia, a origem contratual e certa.

(7) Trata-se da celebre passagem na qual Rousseau explica a origem do Estado,

ou melhor, da relacao de sujeicao politica, no longo periodo hist6rico que esta entre 0

fim do estado de natureza e 0 inicio da nova comunidade fundada sobre 0 contrato

social. irnaginando que os ricos conseguiram convencer os pobres a se submeterern ao

poderdosprimeiros, mostrandoosperigosdadesuniao(ed. cit., p. 334). Enesse ponto

que Rousseau escreve: "Todos correram ao encontro de suas cadeias, acreditando

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLiTICA MODERNA 6S

quanto 0 "contrato social" atraves do qual 0 homem corrom-pido da sociedade civil deveria reencontrar a felicidade, oupelo menos a pureza originaria, e pura ideia reguladora darazao. Como ideia reguladora da razao, finalmente, 0 con-trato originario e dec1aradamente acolhido por Kant, que nao

se preocupa absolutamente em saber se 0 Estado teve ou naocomo fundamento proprio urn acordo entre os suditos. Aocontrario, ele considera que a origem do poder supremo e parao povo que esta submetido a ele algo "imperscrutavel" e, por-tanto, nao pode se tornar objeto de investigacao e de contro-versia, a nao ser com grave perigo para a salvacao do Estado."o que importa e 0 soberano dirigir 0Estado como se seu poderestivesse fundado num contrato originario e ele devesse pres-tar contas do modo como 0 exerce aos seus suditos. No ensaio

Ueber den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtigsein, taugt aber nicht fur die Praxis (Sobre 0ditado comum:

Isso pode ser justo em teoria, mas niio vale na pratica), de1793, Kant - depois de ter reconhecido a existencia de urncontrato originario, "que e 0 iinico no qual se pode fundaruma constituicao civil universalmente juridica entre os ho-omense se pode constituir uma comunidade" - nega que sejanecessario pressupo-lo como urn fato historico, dado que, en-quanta tal, como ele especifica, tal contrato nao seria sequerpossivel; e afirma, ao contrario, que ele tern sua realidade

"como simples ideia da razao", no sentido de que a ideia docontrato obriga "todo legislador a fazer leis como se essas de-vessem derivar da vontade comum de todo urn povo e a consi-derar todo sudito, enquanto ele se quer cidadao, como se ti-vesse dado 0 seu consenso a uma tal vontade". 9 Nesse sentido,

garantirem a liberdade". Essa afirmacao constitui 0 ponto de partida do Contrato

Social, que comeca com a nao menos celebre frase: "0 homem nasceu livre; e em toda

parte se encontra em cadeias" .

(8) "A origem do poder superior e para 0povo, que esta submetido a ele, doponto de vista politico, algo imperscrutavel; ou seja, 0sudito nao deve especular sutil-

mente sobre essa origem, como se se tratasse de uma correta diivida com relacao aobediencia que se deve a tal poder (ius controversum)" (M etaphysik der Sit ten J Rechts-

lehre, §49). A partir do momenta em que a origem do sumo poder e imperscrutavel,

a busca das origens de um eventual contrato originario por parte do sudito, que n~o tern

o direito de faze-lo, nao s6 e perfeitamente'imitil, mas tambem criminosa, se feita com

a intencao de "mudar depois pela Iorca a constituicao atualmente existente" (§ 52).(9) Kant, Scrittipolitici, ed. cit., p. 262.

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66 NORBERTa BOBBIO

o contrato originario desempenha sua real Iuncao, que e a deconstituir urn principio de legitimacao do poder que, comotodos os principios de legitimacao (basta pensar no principio

da origem divina do poder), nao tern necessidade de ter deri-

vado de urn fato realmente ocorrido para ser valido.

a) Segundo uma opiniao cornum dos escritores de direito

publico, sao necessarias duas convencoes sucessivas para darorigem a um Estado: 0pactum societatis, com base no qual

urn certo mimero de individuos decidem de comum acordo

viver em sociedade; e 0pactum subiectionis, com base no qual

os individuos assim reunidos se submetem a urn poder co-

mum. 0 primeiro pacto transforma uma multitudo em urn

populus; 0 segundo, umpopu[us numa civitas.

Pufendorf e a tratadistica de escola seguem a opiniao co-mum (acolhida ainda em final do seculo XVIII por Anselm

Feuerbach no pequeno tratado juvenil Anti-Hobbes, que e de1798).10 Segundo Pufendorf, quando uma multidao de indivi-duos quer proceder a instituicao de urn Estado, deve antes de

rnais nada estipular entre si urn pacto, "com 0 qual manifeste

a vontade de se unir em associacao perpetua", e depois, num"'-egundo momento, apos ter deliberado qual devera ser a for-

ma de governo, se monarquica ou aristocratic a ou dernocra-

tica, deve chegar a "urn novo pacto para designar aquela pes-

soa ou aquelas pessoas as quais deve ser confiado 0governo da

associacao";'"

U rna das inovacoes de Hobbes foi a de eliminar urn dosdois pactos: 0 pactum unionis, idealizado por Hobbes, com

base no qual cada urn dos individuos que cornpoem uma mul-

tidao cede 0 direito de autogovemar-se, que possui no estado

de natureza, a urn terceiro (seia uma pessoa ou uma assem-

bleia), contanto que todos os outros facam 0mesmo. Tal pacta

e ao mesmo tempo urn pacto de sociedade e urn pacta de sub-

(10) P. J. A. Feuerbach, Anti-Hobbes oder Ueber die Grenzen der hoschtenGewalt und das Zwangsrecht der Burger gegen den Oberherm, Erfurt, Henning.1798; ed. italiana, Milao, Giuffre, 1972, pp. 26 e 29. Para urn comentario mais pro-fundo, d. M. A. Cattaneo, Anselm Feuerbach filosofo e giurista, Millo, Comunita,1970.

(11) Pufendorf, De iure naturae et gentium, L. VII. cap. 2, §§ 7 e 8, trad. cit.,pp.I64-6S.

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA 67

missao, ja que os contratantes sao os individuos singularesentre si e nao 0populus, por urn lado, e 0 futuro princeps,por outro, urn pacto de submissao na medida em que aquiloque os individuos acordam entre si e a instituicao de urn podercomum ao qual decidem se submeter. Por outre lado, ja em

Hobbes se anuncia a diferenca, que sera gravida de conse-qiiencias, entre 0 pacta originario da forma democratica degoverno e 0 das demais formas de governo (aristocratica e mo-narquica). Num trecho doDe cive, ele diz: "Urn Estado demo-cratico nao se constitui em virtude de pactos efetuados entreos individuos singulares, por urn lado, e 0 povo, por outro,mas em virtu de de pactos reciprocos de cada urn com todos osoutros" .12 Essa ideia e confirmada 'quando ele diz que 0 Es-tado aristocratico "tern sua origem na democracia" 13 e na mo-

narquia, que "deriva da autoridade do povo, na medida emque esse transfere 0proprio direito, ou seja, 0poder soberano,a urn individuo" .14 Essas passagens deixam claramente en-tender que, enquanto para as formas aristocratica e monar-quica sao necessaries os dois pactos (nao so 0 de sociedade,mas tambem 0 de submissao), ou urn pacta complexo, cons-tituido por urn contrato social seguido por uma doacao (assimHobbes interpreta, no De cive, 0 pacta de uniao), para a for-ma democratic a basta urn unico pacto, ou 0 pacta de socie-dade, ja que - uma vez constituido 0 povo atraves do con-

trato social - nao e mais necessario urn segundo pacta desubmissao, pois esse seria urn pacto entre 0 povo e 0 povo e,como tal, perfeitamente imitil. Dessa diferenca e da dificul-dade que dela deriva, Pufendorf tivera plena consciencia: eleobservou que, com relacao it forma de governo democratico,"nao resulta muito claramente a estrutura do segundo pacta,ja que se trata das mesmas pessoas que, sob dois diversos as-pectos, comandam e obedecem". Mas ele resolvera a dificul-dade observando que, "embora nos Estados democraticos nao

pareca talvez tao necessario quanta nos outros tipos de Estadoesse segundo pacto, em virtude do qual 0 soberano e os suditos

(12) Hobbes, De cive, VII, 7.

(13) Ibid., VII. 8. Textualmente: "Aristocratia sive curia optimatum cum

summo imperio, originern habet a Democratia, quae jus suum in illam trasfert",

(14) Ibid., VII,1t.

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6 8 NORBERTO BOBBIO

trocam expressamente uma promessa sobre os respectivos de-

veres a cumprir, deve-se imaginar, contudo, que ele ocorreu

pelo menos tacitamente" . 15

A reducao dos dois pactos a urn so foi completada, em-bora de forma menos explicita, em Spinoza: de forma menosexplicita porque, a diferenca de Hobbes (e tarnbem, como logo

veremos, de Rousseau), Spinoza nao enuncia a formula dopacto, e, alias, no Tratado politico, sua ultima obra, que res-

tou inacabada, passa por alto do tema do contrato social (masnao 0 exc1ui, como pareceu a alguns, pois a ele se refere pelomenos uma vez, no § 13 do Livro II, quando diz: "se dois

entram em acordo e conjugam suas forcas, aumentam 0 seupoder"). Mas agora a forma de governo que ele tern vista eexclusivamente a democratica. No celebre capitulo XVI do

Tratado teologico-polltico, onde expoe pela primeira vez sua

teoria politica, limita-se a dizer, quando os homens percebe-ram que nao mais podiam viver no estado de natureza: "tive-

ram firmissirnamente de estabelecer e acordar entre si regulartodas as coisas segundo 0 ditame da razao", 16 No estado de

natureza, todo hornem (como, de resto, toda criatura) tern

tanto direito quanto poder; em outras palavras, cada urn terno direito de fazer 0 que esta em seu poder fazer. Se Hobbesdissera que, no est ado de natureza, todo homem tern urn di-reito sobre todas as coisas (ius in omnia), Spinoza especifica

corretarnente ao dizer que 0 hornem, no estado de natureza,tern urn direito sobre todas as coisas que estao em seu poder(ius in omnia quae potest), (Somente de Deus, entao, pode-sedizer que tern urn direito sobre todas as coisas, a partir do

momento em que, sendo onipotente, 0 direito sobre tudo 0

que esta em seu poder coincide com 0 direito sobre tudo.) Asconsequencias que derivam dessa condicao natural do homernnao sao diferentes das previstas por Hobbes. Para sair desseestado, a razao sugere a cada homem entrar em acordo com

todos os outros, de modo que "cada qual transfira todo seu

proprio poder a sociedade, a qual sera assim a unica a deter 0

sumo direito natural sobre tudo, ou seja, 0 supremo poder, ao

(15) Pufendorf, De iure naturae et gentium, L. VII, cap. 2, § 8, trad. cit.,

pp.16S-66.

(16) Spinoza, Tractatus theologico-politicus, ed. italiana, p. 380.

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLlTICA MODERNA 69

qual cada urn, ou livremente ou por temor dos castigos, de-vera obedecer" . 17

Portanto, tambem para Spinoza, como para Hobbes, em-bora com uma motivacao diversa, que examinaremos melhoradiante, 0 pacto social consiste num acordo para a constitui-

«;ao de urn poder comum. 0 que, quando muito, distingueSpinoza de Hobbes e que, enquanto para Hobbes 0 pacto de

uniao pode ser configurado como urn contrato ern favor de urnterceiro (como diria urn jurista), para Spinoza - que nisso

antecipa c1aramente Rousseau e 0 conceito tipicamente rous-seauniano da liberdade politica como autonomia - 0 propriopacta de uniao prevf a transferencia do poder natural de cadaurn para a coletividade da qual cada urn e parte. Disso resultaque essa sociedade, "que se define como a uniao de todos os

homens, que tern coletivamente pleno direito a tudo 0 que esaem seu poder" pode ser chamada propriamente de "democra-cia". 18 Falando mais adiante da natureza do governo demo-

cratico, que the parece "0 mais natural e 0 mais conforme itliberdade que a natureza permite a cada urn" (nao se podeesquecer que, para Hobbes, ao contrario, a melhor forma degoverno e a monarquica), Spinoza define tal governo comoaquele no qual "ninguem transfere a outros seu proprio di-

reito natural de modo tao definitivo que depois nao seia mais

consultado; mas 0 defere it maior parte da sociedade inteira,

da qual ele e membro", 19 concluindo com uma frase, que

enuncia 0micleo do pensamento igualitario, que depois sera 0

de Rousseau: "Por esse motivo, todos continuam a ser taoiguais quanta 0eram no anterior est ado de natureza" .20 Rous-

seau elaborara a formula com base na qual "cada urn, unin-do-se a todos, obedece apenas a si mesmo, e permanece naomenos livre do que antes". 21

No fundo, Rousseau nao fez mais do que extrair as extre-mas consequencias da doutrina, ja anunciada por Hobbes,

sublinhada por Pufendorf, formulada por Spinoza, segundo a

(17) Ibid., p. 382.

(18) Ibid., p. 382.

(19) Ibid., p. 384.

(20) Ibid., L. I, cap. 8, p. 735.

(21) Rousseau, Du c on tr a t s o c ia l, L. I, cap. 6.

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70 NORBERTO BOBBIO

qual, na constituicao do governo, quando esse governo e 0

governo democratico, ou seja, 0governo do povo sobre 0 povo,

basta urn unico contrato, 0 contrato social. A instituicao docorpo politico, na qual Rousseau ve a transforrnacao dos mui-tos "eu" no unico "eu comum", ocorre instantaneamente, ja

que a associacao de cada urn com todos os outros e a submis-

sao de cada urn a todos sao urn unico e mesrno ato. 0 podersocial personificado na vontade geral e 0 resultado da rnodali-dade particular na qual ocorre a associacao, que e ao rnesrno

tempo uniao de todos e submissao de todos ao todo. Ao con-trario de Pufendorf, e de seu predecessor irnediato, 0 gene-brino Burlamaqui, cujas ideias ele tern presente, Rousseaunega explicitamente que, para instituir 0 governo, seja neces-

sario urn novo pacto. No cap. VII da parte III de 0 Contrato

Social, intitulado significativamente" A instituicao do governo

nao e urn contrato", explica que a instituicao do governo, oudo poder executivo, nao ocorre mediante contrato pelo menospor tres razoes: a) porque a autoridade suprema nao podenern ser alienada, nern ser modificada com a criacao de urnpoder ainda que superior; b) porque urn contrato do povo com

essa ou aquela pessoa seria urn ato particular e a vontade geralpode se expressar tao-somente atraves de atos gerais ou leis;c) porque os contratantes estariam entre si em estado de natu-reza, 0 que repugna 0 estado civil uma vez constituido. Dai a

conclusao perernptoria: "Nao ha senao urn contrato no Es-tado, 0 da associacao: e este, por si so, exc1ui qualquer ou-tro"." Mediante 0 contrato social, riasce - com a vontadegeral- a soberania, perfeita em si mesma. Ja que a prerroga-tiva da vontade geral e fazer as leis, ela estabelece com urn atode soberania, com uma lei - que e urn ato unilateral-, quemdevera governar, ou seja, quem tera 0 titulo para 0 exercicio dopoder executivo. Todos podem ver a afinidade entre 0 pensa-

men to de Rousseau e de Spinoza; mas ninguem deve perder devista, enquanto Spinoza fala hobbesianamente em "poder co-mum", Rousseau fala de "eu comum". Spinoza poe 0 acento

no result ado do pacto, em seu aspecto objetivo. Rousseau 0 fazno novo sujeito que dele deriva, em seu aspecto subjetivo.

(22) Ibid., L. III, cap. 16.

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SOCIEDADE E EST ADO NA FILOSOFIA POL!TICA MODERNA 71

b) 0 objeto do contrato ou dos contratos e a transferen-cia de todos ou de alguns direitos que 0 homem tem no estadode natureza para 0Estado, de modo que 0homem natural setorna homem civil ou·cidadao, As varias teorias contratualis-tas se distinguem com base na quantidade e na qualidade dosdireitos naturais a que 0homem renuncia para transferi-los aoEstado, ou seja, conforme a remincia e a subseqiiente aliena-cao sejam mais ou menos tais. De todos os jusnaturalistas, 0

que concebeu a alienacao rnais totalizante foi Rousseau (doque resulta a acusacao que the foi movida de ser defensor deuma "democracia totalitaria"), precisamente 0 Rousseau queinicia 0 Contrato Social polemizando com autores como Gro-cio, queconsideravam legitimo 0 ato pelo qual urn povo alienasua propria liberdade. Mas 0micleo do pensarnento de Rous-

seau e a distincao entre a alienacao a outros e a alienacao a simesrno. 0 homem e livre somente quando obedece a lei queele mesrno se deu. No estado de natureza, 0 homem nao e livre(embora seja feliz), porque obedece nao a lei, mas aos pro-prios instintos; na sociedade civil, fundada sobre a desigual-dade entre ricos e pobres, entre opressores e oprimidos, 0 ho-mem nao e livre porque certamente obedece a leis, mas a leispostas nao por ele e sim por outros que estao acima dele. 0unico modo para tornar 0homem livre e que ele atue segundoas leis e que essas leis sejam postas por ele mesmo. A transfe-

rencia total dos direitos naturais para 0 corpo politico consti-tuido pela totalidade dos contratantes deve servir a essa finali-dade, ou seja, a de dar a todos os membros desse corpo leisnas quais 0homem natural que se tomou cidadao reconheca alei que ele mesmo se teria imposto no estado de natureza, senesse estado tivesse podido exercer livremente a propria razao.No momento em que nasce 0 cidadao, cessa inteiramente 0

homem natural. Nao se compreende Rousseau se nao se en-tende que, ao contrario de todos os demais jusnaturalistas,

para os quais 0 Estado tem como finalidade proteger 0 indi-viduo, para Rousseau 0 corpo politico que nasce do contratosocial tern a finalidade de transforma-lo. 0 cidadao de Lockee pura e simplesmente 0homem natural protegido; 0cidadaode Rousseau e urn outro homem. "A passagem do estado denatureza para 0 estado civil - afirma ele - produz no ho-mem urna mudanca muito importante, substituindo em sua

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72 NORBERTO BOBBIO

conduta 0 instinto pela justica e emprestando as suas acoes amoralidade de que anteriormente eram privadas". 23

Embora tradicionalmente considerado como teorico doabsolutismo, Hobbes nao defende a tese da remincia total.

Para ingressar na sociedade civil, 0 homem - -segundc Hob-bes - renuncia a tudo 0 que torna indesejavel 0 estado de na-

tureza; mais precisamente, renuncia a igualdade de fato quetorna precaria a existencia ate mesmo dos mais fortes; ao di-reito a liberdade natural, ou seja, ao dire ito de agir seguindonao a razao mas as paixoes: ao direito de impor a razao por si,so; isto e, ao uso da forca individual; ao direito sobre todas ascoisas, isto e , a posse efetiva de todos os bens de que tem forcapara se apropriar. A finalidade em funcao do qual 0 homemconsidera iitil renunciar a todos esses bens e a salvaguarda dobern mais precioso, a vida, que no estado de natureza tornou-

se insegura por causa da ausencia de urn poder comum. En-tende-se que 0 unico direito ao qual 0 homem nao renuncia,ao instituir 0 estado civil, e 0 direito a vida. No momenta emque 0Estado nao e capaz de assegurar a vida de seus cidadaospor inepcia, ou em que ele mesmo a ameaca por excesso de

crueldade, 0 pacta e violado e 0 individuo retoma sua propria

liberdade de se defender como acreditar melhor.Quando Spinoza, depois de ter explicado as razoes pelas

quais os individuos resolveram transferir seu proprio direito

sobre tudo ao Estado, afirma que "a suma podestade" quedisso deriva "nao e submetida a nenhuma lei, mas todos de-vern obedecer-Ihe em tudo", e tambern que "se nao queremser inimigos do poder constituido e agir contra a razao quesugere defende-lo com todas as proprias Iorcas, sao obrigados

a executar absolutamente todas as ordens da suprema autori-dade, rnesmo no caso de que ela imponha absurdos", 24 ele

parece repetir 0 terna tipicamente hobbesiano da obedienciaabsoluta. Mas, apesar das semelhancas literais, a logica em

que se inspira 0raciocinio spinoziano e diversa da hobbesiana:os homens saem do estado de natureza, segundo Hobbes, porrazoes de seguranca (a busca da paz); segundo Spinoza, por

razoes de potencia (ja que 0 dire ito se estende tanto quanto a

(23) Ibid., L. III, cap. 8.

(24) Spinoza, Tractatus theologico-politicus, ed. cit., pp. 382-83.

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA 73

potencia: "quanto maior for 0mimero dos que se constituem

em unidade, tanto maior sera 0 direito que todos juntos ad-quirem")." 0 estado de natureza e urn estado de reciprocasimpotencias e, portanto, de inseguranca. Mas a potencia nao

e fim em si mesma; e, quando se torna fim em si mesma, 0

Estado se torna despotico, A verda deira finalidade ultima doEstado nao e a potencia, mas a liberdade. Finis republicae

libertas est. 26

Se, para Hobbes, 0 fim do Estado e tornar os homensseguros, para Spinoza esse fim e torna-los livres, ou seja, fazerde tal modo que cada homem possa explicitar ao maximo sua

propria razao, A primeira condicao para que 0 fim do Estadose realize e que 0 homem, ingressando no Estado, nao abdi-que do direito de raciocinar: "Ninguern pode obrigar nem ser

obrigado a transferir para outros (. .. ) sua propria faculdadede raciocinar livremente e de expressar seu proprio juizo sobrequalquer coisa" .i7 Tambem para Spinoza, portanto, a remin-

cia aos direitos naturais nao e total. Enquanto para Hobbes,que considera que a paz e 0 fim do Estado, 0 direito irrenun-ciavel e 0 direito a vida, para Spinoza, que considera a liber-

dade como 0 fim do Estado, 0 direito irrenunciavel e 0 direitode pensar com a propria cabeca,

Na concepcao de Locke, a transferencia dos direitos natu-

rais e parcialissima. 0 que falta ao estado de natureza paraser urn estado perfeito e, sobretudo, a presenca de urn juiz

imparcial, ou seja, de uma pessoa que possa julgar sobre a

razao e 0 erro sem ser parte envolvida. Ingressando no estadocivil, os individuos renunciam substancialmente a urn iinico

direito, ao dire ito de fazer justica por si mesmos, e conservamtodos os outros, in primis 0 direito de propriedade, que janasce perfeito no est ado de natureza, pois nao depende doreconhecimento de outros mas unicamente de urn ato pessoal

e natural, como e 0 caso do trabalho. Alias, a finalidade emfuncao da qual os individuos instituem 0 estado civil e princi-·palmente a tutela da propriedade (que, entre outras coisas, e agarantia da tutela de urn outro sumo bern que e a liberdade

(25) Spinoza, Tractatus politicus, cap. I, §15.

(26) Spinoza, Tractatus theologico-politicus, ed. cit., p. 482.(27) Ibid., p. 480.

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pessoaI). Se essa e a finalidade, disso resulta que nao somenteo direito it vida, como em Hobbes, nao apenas 0direito a liber-dade de opiniao, como em Spinoza, mas tambern e sobretudoo direito de propriedade e urn direito irrenunciavel: "Por po-der politico - diz Locke, precisamente no inicio do Segundo

tratado -, entendo 0 direito de fazer leis com penalidade demorte e, por conseguinte, com toda penalidade menor, para 0

fim de regulamentar e conservar a propriedade"," Pode-sedizer, em sintese, ainda que com certa simplificacao: enquan-to os individuos de Hobbes e de Spinoza renunciam a todos osdireitos, exceto um, os individuos de Locke renunciam a urns6 direito, ou seja, conservam todos menos urn."

(28) Locke, Two Treatises, Segundo Tratado, §3. Sobre 0significado de "pro-

priedade" em Locke, que ora designa a propriedade em sentido estrito, ora a soma de

todos os direitos naturais do individuo (como 0 proprio Locke diz expressamente,§123), detive-me mais amplamente em meu curso universitario sobre Locke e il diritto

naturale, Giappichelli, 1963, pp. 217-18.

(29) Porque hi! poueo citamos Burlamaqui a proposito de Rousseau, considero

de eerto interesse reeordar a sua conclusao de que, "visto que a liberdade civil (isto e ,a liberdade que 0homem ad quire apenas na sociedade civil) e bern mais importante

do que a liberdade natural, estamos no direito de concluir que 0 estado civil queproporciona ao homem uma tal liberda de e , de todos os estados do homem, 0 mais

racional e, por conseqiiencia, 0verdadeiro estado de natureza" (d.Principes du droit

de Lanature et des gens, Yverdon, 1768, vol. VI, p. SO).Essa conclusao e a inversao da

tese hobbesiana segundo a qual 0 estado civil e antitetico ao estado de natureza.

Aqui, ao contrario, 0 estado civil termina por se tornar 0 verdadeiro estado natural.

A posicao de Locke e interrnediaria entre as duas: 0 estado civil nao anula 0 estado

natural nem 0dissolve em si mesmo.

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Bo bb io , N or be rto e M ic he la ng elo B o ve ro ( 19 79 [1986])Sociedade e

Estado na Filosofia Politica Modema, S§o Pau lo : Bra si li en s e.

A sociedade civil

As divergencias com relacao as modalidades e ao eon-teudo do contrato social, e sobretudo essas ultimas, repercu-tern nas variacoes sobre 0 tema da sociedade civil. Essas va-

riacoes podem ser agrupadas em torno dos seguintes l?roble-~.---mas: a) se 0 poder .soberano e absoluto ou limitado; b) se eindivisivel ou dl~fsiv'el; c) 'se se pode resistir a ele ou nao, As

solucoes dadas aos tres problemas sao estreitamente ligadas:

quem pensa na contraposicao classica entre Hobbes e Locke

nao tardara a pereeber que, enquanto para Hobbes 0 poder eabsolute, indivisivel e irresistivel, para Lockev ao contrario,e limitado, dlvi~i~el e resisHv'eL-- .

~ ",.",- -.~ .. -, _""""_"--"" ---.~ . , -. -- ..... -.-.-'-

a) Se por poder absoluto se entende um poder sem limi-

tes, nenhum dos escritores de que estou me ocupando defen-

deu, na verdade, 0carater absoluto do poder. Poder absoluto,

nesse sentido, e sornente 0 de Deus. Ao contrario, a argumen-

tacao e outra se se entende por poder absoluto, como se deve

fazer, legibus solutus. 0 fato de que 0 soberano seja livre das

leis, significa que ele e livre das leis civis, ou seja, das leis queelc mesrno tern 0 poder de criar. Nesse sentido, declaram-seexplicitarnente em favor do poder absoluto tanto Hobbesquanto Spinoza. E tambem Rousseau: "Assim como a natu-

reza da a todo homem urn poder absoluto sobre todos os seusproprios membros, do mesmo modo 0pacto social da ao corpopolitico urn poder absoluto sobre todos os seus proprios mem-

bros; e e esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral,

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76 NORBERTO BOBBIO

toma ( ... ) 0 nome de soberania".' Tambern para Kant, 0 po-

der do soberano e , nessa acepcao do termo, absoluto. Quandoele afirma que "0soberano no Estado tern em face dos siiditos

apenas direitos e nenhum dever (coativo)" ,2 quer dizer que 0

soberano, nao importa 0 que faca, nao importa a lei que viole,

nao pode ser submetido a julgamento. Nao pode ser subme-

tido a julgamento precisamente porque nao e obrigado juridi-

camente a respeitar as leis civis. 0 fato de que 0 poder sobe-

rano esteja acima das leis civis nao quer dizer que seja urn

poder sem limites: quer dizer que os limites do seu poder sao

limites nao juridicos (de direito positivo), mas de fato, ou,

pelo menos, sao limites derivados daquele direito imperfeito,

ou seja, incoercivel, que e 0 direito natural. (Para quem con-

sidera que nao hft outro direito alem do direito positivo, namedida em que atribui ao direito 0 traco caracteristico dacoercibilidade, os limites derivados do direito natural sao,

propriamente falando, tambem eles limites de fato, ou, pelomenos, nao se diferenciam, com relacao ao poder de resisten-

cia dos suditos, dos limites de fato.)Ninguem melhor do que Spinoza esclareceu os termos da

questao, "Se por lei se entende 0 direito civil ( ... ), ou seja, se

essas palavras sao entendidas literalmente, nao se pode dizer

que 0 Estado seja submetido a leis ou que possa delinquir.Com efeito, as regras e os motivos de submissao e de obedien-cia que 0Estado deve conservar para sua propria garantia nao

sao de direito civil, mas de direito natural ( ... ); e 0 Estado eobrigado a isso apenas pela mesma razao por que 0 homem no

estado natural e obrigado ( ... ) a evitar se matar: dever esse

que nao implica submissao, mas denota a liberdade da natu-reza humana". 3 Desses limites naturais, alguns dependem dapropria natureza dos suditos que 0 Estado comanda e, en-

quanta extern os ao Estado, trazem

aluz uma impossibilidade

material: assim como ninguem pode fazer com que uma mesacoma grama, tambem 0 Estado nao pode obrigar urn homema voar. Outros, bern mais importantes, dependem da natureza

mesma do Estado, ou seja, poem em acao uma impossibili-

(1) Rousseau,Du contrat social, L. II, cap. 4.

(2) Kant, Metaphysik der Sitten, Rechts/ehre, §49 A.

(3) Spinoza, Tractatuspoliticus, cap. IV, §S.

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLlTICA MODERNA 77

dade racional (ou moran. 0 Estado, enquanto ente racional,nao pode deixar de seguir os ditames da razao, a nao ser quepretenda decretar sua propria perdicao. A teoria do Estado deSpinoza nao e tanto uma teoria do Estado absoluto quanto do

Estado-potencia: e urn Estado e tanto mais potente quantomais sua potencia for razoavel, ou seja, obedecer aos ditamesda razao, quanto mais os governantes nao abusarem do seupoder, jit que somente enquanto governarem nos limites da

razao poderao contar com 0 eonsenso dos siiditos. "Se 0 Es-

tado nao fosse submetido a nenhuma das leis ou regras gracas

as quais e 0 que e , nao seria uma realidade natural e sim umaquimera"," Para eonservar a propria autoridade, ou seja, paracontinuar a manter sua propria natureza, 0 Estado nao pode

realizar nenhuma acao que faca desaparecer 0 respeito dossuditos e provoque a revolta: "Quando 0 soberano mata e ex-polia os suditos, sequestra as mocas, etc., a sujeicao se trans-forma em indignacao e, por conseguinte, 0 estado civil se con-verte em estado de hostilidade". 5 A sancao pela violacao deuma lei natural ou da razao e, por sua vez, urn fato natural,

a dissolucao do Estado, da qual nasce urn novo direito quenao e mais 0 direito civil e sim 0 dire ito de guerra, 0 unicodireito que vigora no estado de natureza. Como vimos a res- ,

peito da irrenunciabilidade ao direito de raciocinar e julgar,urn outro limite do Estado deriva do fato de que ele deve re-gular, seguindo sua natureza, as acoes externas e nao as inter-

nas: uma das razoes adotadas por Spinoza e a liberdade de

pensamento ser incoercivel, ou seja, ser de tal ordem que 0

Estado, por mais que Iaca, nao pode impedir urn individuo depensar 0 que pensa (pode apenas impedi-lo de dizer 0 que

pensa); e, de qualquer modo, nao ha sancao de que disponhaque seja capaz de convencer urn filosofo a nao crer naquilo em

que ere (pode apenas transforrna-Io num hipocrita ou nummartir), "Nao fazem parte do direito civil - diz Spinoza -todas aquelas acoes as quais nao se possa ser induzido pelaesperanca de premios ou pelo temor de ameacas". 6

Alem desses limites que podem ser cham ados de necessa-

(4) Ibid., cap. IV t§4.(5) Ibid.

(6) Ibid .• cap. III. §8.

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78 NORBERTO BOBBIO

rios, na medida em que derivam da propria natureza do Es-tado ou de razoes objetivas, nao ha escritor que nao reconheca

limites que derivam de consideracoes de conveniencia ou de

oportunidade. Entre esses, os principais sao os que se referema esfera dos interesses privados. Diz Hobbes: "As leis nao fo-ram inventadas para reprimir a iniciativa individual, mas para

disciplina-la, do mesmo modo como a natureza dispos as mar-

gens dos rios nao para estancar 0 seu curso, mas para dirigi-

10".7 E Rousseau: "Todos os services que urn cidadao pode

prestar ao Estado sao por ele devidos tao logo 0Estado os re-

dame; mas 0 corpo soberano, por sua parte, nao pode gravar

os suditos com nenhuma cadeia que seja imitil j; comuni-dade"."

b) Embora os defensores da indivisibilidade do poder so-berano, como Hobbes e Rousseau, e os defensores da divisao

de poderes, como Locke, Montesquieu e Kant, sejam habi-

tualmente contrapostos como representantes de duas teoriasopostas, a contraposicao - se olhamos as coisas com a aten-cao que a complexidade da materia exige - nao e tao evidentecomo parece e como se supoe, A verda de e que a "divisao"

que os defensores da indivisibilidade condenam nada tern a

ver com a "divisao" que os adversaries defendem; e, vice-ver-

sa, a concentracao que estes combatem nao corresponde aunidade que os outros defendem. Quando Hobbes afirma que

o poder soberano deve ser indivisivel e condena como teoria

sediciosa a tese contraria, 0 que ele rechaca e a teo ria do go-

verno misto, ou seja, a teoria que afirma como governo 6timo

aquele em que 0 poder soberano esta distribuido entre orgaos

diversos em colaboracao entre si, representados cada urn portres diversos principios de qualquer regime (0 rnonarca, os

melhores, 0 povo). Quando Locke defende a teoria da divisao

dos poderes, 0 que ele acolhe nao e absolutamente a teoria do

governo misto, mas sim a teoria segundo a qual os tres pode-res atraves dos quais se explicita 0 poder soberano - 0 poder

legislativo, 0 poder executivo e 0 poder judiciario (mas, na

realidade, os poderes que Locke leva sobretudo em conta sao

(7) Hobbes, De cive ,XIII, 15.

(8) Rousseau, Du contrat social, L. II, cap. 4.

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLITICA MODERNA 79

apenas dois, 0 legislativo e 0 executivo) -, devern ser exerci-dos por organismos diversos. Do ponto de vista da unidadeque preocupa Hobbes, 0Estado que Locke tern em mente nao

e menos unitario do que 0Estado hobbesiano: e verdade, de-

certo, que 0 poder executivo e 0 poder legislativo sao atribui-dos a dois orgaos diversos, respectivarnente 0 rei e 0 parla-

mento, mas e igualmente verda de que 0 poder supremo e urn

so, 0poder legislativo, e que 0poder executivo deve permane-

cer subordinado ao primeiro: "De qualquer modo, desde que

o governo subsiste, 0poder supremo e 0 legislativo, pois 0 que

pode dar leis a outros deve necessariamente lhe ser superior":"e, por outro lado, "0poder executivo, quando nao e colocado

numa pessoa que tambem faca parte do legislative, e eviden-

temente subordinado e responsavel perante esse ultimo, epode ser mudado e transferido a bel-prazer" .10

Somente quando se leva em conta essa nao-correspon-

dencia entre os dois conceitos de divisao e, respectivamente,

de indivisibilidade do poder soberano, um dos quais se refere

it divisao dos orgaos (rei, camara dos lordes e camara dos co-muns), enquanto 0outro refere-se a divisao das funcoes (legis-lativa, executiva, judiciaria), e que se pode compreender 0

aparente paradoxo de 0 Contrato Social, no qual Rousseau

afirma ao mesmo tempo a tese da indivisibilidade da sober a-nia, como Hobbes, e a tese da divisao do poder legislativo e do

poder executivo, bern como a subordinacao do segundo ao pri-

meiro, como Locke." A indivisibilidade do poder soberano,

pela qual se entende que aquele ou aqueles que detem 0 poder

soberano nao podem dividi-lo em partes distintas e indepen-

dentes, e a divisao entre poder legislativo e poder executivo,

pel a qual se considera desejavel que as duas Iuncoes sejam

exercidas em modos e par orgaos diversos, nao sao absoluta-

mente incompativeis. A contradicao aparece ainda menos evi-

dente se se leva em conta que, dos dois males extremos que

todo filosofo politico encara com preocupacao, a anarquia e 0

(9) Locke, Two Treatises, Segundo Tratado, §150.(10) Ibid., §152.

(11) No que se refere a indivisibilidade da soberania, d. Du contrat social,L. II, cap. 2. Quanto a separacao entre poder legislativo e poder executivo e a subor-

dinacao do segundo aoprimeiro, cf . ibid. ,L. III, cap. 1.

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despotismo, a teoria hobbesiana da indivisibilidade visa a re-mediar 0primeiro, enquanto a teoria lockeana da divisao visaa evitar 0segundo. Como ja foi varias vezes observado e 0 queh a pouco dissemos confirma, 0paradoxo de Rousseau consisteno fato de que, com sua teoria do contrato social, ele imagi-nou uma formula com a qual visa salvar ao mesmo tempo aunidade do Estado (pelo que ele se professa admirador deHobbes) e a liberdade dos individuos (no que ele e certamenteurn seguidor de Locke).

A tese de que a separacao dos poderes e urn remedio con-tra 0 despotismo e ratificada por Kant, 0 qual distingue, comrelacao ao modo de governar, duas formas de Estado, arepu-blica e 0 despotismo: a republica e caracterizada pela sepa-

racao entre poder executivo e poder legislativo, como ele afir-rna a proposito do primeiro artigo definitivo para a paz perpe-tua, 0qual- com a finalidade de realizar as condicoes de umapaz estabelecida entre os Estados - exige que todo Estadotenha uma constituicao republicana. Mas tambem Kant, su-blinhando a importancia da separacao dos poderes, nao pre-tende absolutamente arneacar aquela unidade do poder sobe-rano que Hobbes desejava, Numa perfeita racionalizacao (taoperfeita que parece artificiosa) da teoria dos tres poderes,

Kant os considera ao mesmo tempo como coordenados, nosentido de que se completam urn ao outro, como subordina-dos, no sentido de que sao dependentes urn do outro, e comounidos, no sentido de que a unidade deles permite ao Estadoatingir sua finalidade precipua, que e fazer justica salvaguar-dando a Iiberdade.? Numa outra passagem, que pode parecernao perfeitamente conforme a precedente, Kant equipara ostres poderes as tres proposicoes de urn silogismo pratico, ondea premissa maior e a lei, a menor e 0 comando do executivo,enquanto a conclusao e a sentenca do juiz: nada mais unitario

do que urn raciocinio silogistico." Qualquer que seja 0 seuvalor, tal analogia e uma comprovacao de que a teoria da se-paracao dos poderes jarnais poe em questao a unidade do po-der soberano, como, ao contrario, poderia ocorrer na teoriado governo misto, que fora 0principal alvo de Hobbes.

(12) Kant, Metaphysik der Sitten, §48.(13) Ibid., §4S.

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLiTICA MODERNA 81

c) A predominancia dada a urn dos dois males extremos,anarquia ou despotismo, repercute tambem na solucao que osautores singulares dao ao problema da obediencia e, respecti-vamente, do contrario da obediencia, ou seia, a resistencia.Quem, como Hobbes, considera como mal extremo a anar-quia, urn mal que provem da conduta irrefreada dos indivi-duos, tende a se colocar do lade do principe, cujo poder consi-dera irresistivel, au seja, de tal natureza que, diante dele, 0

sudito tern unicamente 0dever de obedecer. Quem, ao contra-rio, como Locke, considera 0 despotismo como mal extremo,um mal que provem da conduta irrefreada do soberano, tendea se por do lade do povo, ao qual atribui em determinadoscasos 0 direito de resistir as ordens do soberano, ou seja, de

nao obedecer. A teoria dos dois males e expressameate invo-cada por Locke: "Se e a opressao au a desobediencia queconstitui a origem primeira da desordem - diz ele - e umaquestao cuja decisao deixo a imparcialidade da hist6ria" .14

Mas ele reconheceu que a hist6ria da razao aos que conside-ram como a causa mais frequente dos tumultos nao as rebe-lioes dos povos (os quais sao mais inclinados a suportar que apromover sedicoes), mas a prepotencia dos soberanos. Razaopela qual e preciso prevenir-se nao tanto contra as primeiras,

como0

fazem os defensores de uma ferrea obediencia, quantocontra as segundas, e estabelecer quais sao os casos em quedesaparece a obrigacao da obediencia. A mesma teoria dosdois males e invocada, mas com urn juizo de valor oposto, porSpinoza. Defensor como Hobbes da obediencia incondicional,ou seja, da obediencia as leis mesmo quando aqueles a quemsao dirigidas as consideram como iniquas, assim argumenta:"Se 0 homem razoavel deve par vezes fazer, par ordem doEstado, algo que reconhece como repugnante a razao, essemal e amplamente compensado pelo bern que retira do pr6-

prio estado civil: com efeito, e tambern uma lei da razao que,entre dois males, deve-seescolher 0menor" ,IS

Todavia, quando se passa das declaracoes de principiopara a analise dos casos concretos, a alternativa - tambemnesse caso, como no caso do problema dos limites do poder

(14) Locke, Two Treatises, Segundo Tratado, §230.(15) Spinoza, Tractatus politicus, cap. III, §6.

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8 2 NORBERTO BOBBIO

soberano - aparece rnenos rigida: a situacao e mais com-plexa. Urn intransigente teorico da obediencia como e Spi-noza, reconhece, como Locke, que "os abalos, as guerras e 0

desprezo ou violacao das leis nao sao imputaveis tanto it mal-dade dos siiditos quanto it rna constituicao do governo" .16

Antes de mais nada, e preciso considerar que a divergen-cia entre defensores da obediencia e defensores da resistenciarefere-se ao caso do tirano e nao ao do usurpador (e ao caso,

a esse assimilavel, da conquista): no caso do usurpador, Hob-

bes nao hesita em reconhecer 0desaparecimento da obrigacaode obedecer, ja que quem se apossa do poder sem ter titulos

para isso deve ser consideradocomo urn inimigo (urn inimigo

interno, it diferenca do conquistador, que e urn inimigo ex-

terno); e, diante do inimigo, nao ha outro direito alem do. di-reito de guerra (que vigora no estado de natureza). 17

No que se refere ao caso do mau governo (no qual se en-

quadra 0 do tirano), a diferenca nao e tanto entre quem ad-

mite e quem recusa 0 direito de resistencia, mas sim ao dife-

rente modo de estabelecer em que consiste urn mau governo,ou seja, 0 governo contra 0 qual a desobediencia se torna Ii-cita. Nessa ordem de ideias, reaparece 0 contraste acerca dapredorninancia dada a urn ou a outro dos males extremos. Se,

para Locke, e em geral para os que combatem 0 despotismo,mau governo e 0 que abusa do proprio poder e trata os seus

suditos nao como homens racionais, mas como escravos oucriancas (e 0 caso classico da tirania), para Hobbes e paraSpinoza mau governo e 0 que peca nao por excesso, mas por

defeito, e que, nao garantindo satisfatoriamente a segurancados pr6prios siidiros, nao curnpre sua propria tarefa funda-mental de fazer cessar do modo mais absoluto possivel 0 es-tado de natureza. Para Hobbes, "a obrigacao dos siiditos emface do soberano dura enquanto dura 0poder com 0 qual ele ecapaz de protege-los" .18

Spinoza, partindo do principio de que 0 dire ito e poder e

que, portanto, 0 direito do Estado de comandar se estende ate

(16) Ibid., cap. V, §2.

(17) Hobbes,Decive, VII, 3.

(18) Hobbes, Leviathan, cap. XXI.

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLiTICA MODERNA 83

o momento em que se estende seu poder, deplora 0 Estado

que, "nao tendo assegurado de modo adequado a concordia" ,

demonstra "nao ter assumido plenamente as redeas do gover-

no". Urn Estado desse tipo, na medida em que nao conseguiueliminar as causas das desordens, "nao difere em muito doestado de natureza, no qual cad a urn vive a seu talante e emcontinuo perigo de vida" .19 De resto, as duas form as de maugoverno tern urn carater essencial em comum: sao 0 reino domedo, eo reino do medo e 0 contrario da sociedade civil, quenasce para instaurar 0 reino da paz e da seguranca, Nao poracaso Locke considera 0 Estado despotico como 0 prolonga-mento do estado da natureza; e Spinoza afirma que "urn povo

livre se rege mais pela esperanca do que pelo medo, enquantourn povo subjugado, ao contrario, vive mais no temor do quena esperanca". 20 (A relacao entre despotismo e medo sera

celebrizada pela teoria do despotismo de Montesquieu.)o problema mais dificil para uma teoria racional (ou que

pretende ser racional) do Estado e 0 de conciliar dois bens aque ninguem esta disposto a renunciar e que sao (como todos

os bens ultimos) incompativeis: a obediencia e a liberdade.

Spinoza propoe uma solucao que sera acolhida tambem por

Kant: dever de obediencia absoluta com relacao as acoes, di-reito de liberdade com relacao aos pensamentos. Entrando noestado civil, cada urn renuncia ao direito de agir segundo seuproprio arbitrio, nao aquele de raciocinar e de ju/gar: "En-quanto ninguern pode agir contra 0 decreto das soberanas po-

destades, e licito a cada urn, sem lesar 0 direito, pensar e jul-

gar e, portanto, tambem falar contra 0 decreto por elas ema-nado, contanto que simplesmente fale ou ensine, e defendendo

o que diz baseando-se apenas na razao".21

Kant e muito firme em afirmar a obrigacao absoluta deobedecer a lei e em negar todo e qualquer direito de resisten-cia; e ele se expressa sobre isso com uma aspereza que lhe foi

freqiientemente criticada. Se uma lei publica, diz ele, e irre-preensivel, ou seja, conforme 0 direito, e tam bern irresistivel,

(19) Spinoza, Tractatus politic us, cap. V, §2.

(20) Ibid., cap. V. §6.(21) Spinoza, Tractatus theologico-politicus, cap. XX, ed. cit., p. 483.

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84 NORBERTO BOBBIO

jfl que a resistencia a ela teria Iugar segundo uma maximaque, universalizada, destruiria qualquer constituicao civil:"Contra 0 supremo legislador do Estado, nao pode haver ne-

nhuma oposicao legitima por parte do povo, ja que somente

gracas a submissao de todos a sua vontade universalmente Ie-gisladora e possivel urn Estado juridico; portanto, nao podeser emitido nenhum direito de insurreiciio (seditio), menosainda de rebeliiio (rebellio), e menos do que qualquer outro deatentados contra ele como individuo (como monarca) sob pre-texto de abuso do poder, em sua pessoa ou em sua vida Imo-

narchomachismus sub specie tyrannicidii)" .22 Mas a obedien-

cia nao exclui a critica: e, portanto, 0 que e seu pressuposto,a liberdade de opiniao e de expressao, No ensaio Was ist Auf-

kliirung (0 que e 0 iluminismo), de 1784, depois de ter afir-made que 0 iluminismo "nao precisa senao da liberdade, e damais inofensiva de todas as liberdades, ou seja, a de fazer uso .publico da propria razao em todos os campos", elogia 0 prin-cipe que erigiu como maxima de seuproprio governo 0 se-

guinte: "Raciocinem enquanto quiserem e sobre 0 que quise-rem, mas obedecam". 23

Alem dessa solucao, que representa a quintessencia dopensamento liberal, existem apenas outras duas solucoes: a

solucao locke an a da obediencia nao mais absoluta e sim rela-tiva, ou seja, condicionada ao respeito pelo soberano de limi-tes preestabelecidos ao seu poder supremo; e a solucao rous-seauniana, que reafirma 0 dever da obediencia absoluta, mas

ao mesmo tempo afirma que somente na obediencia absoluta,

quando se entende por obediencia a submissao a lei que cadaurn prescreveu para si mesmo, consiste a liberdade (que seratambem a solucao de Hegel, embora ele seia anti-rousseau-niano sob varies aspectos).

(22) Kant, Metaphysik der Sitten, §49 A.

(23) Kant, Scritti politici, cit., p. 143.

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o Estado segundo a razao

o fato de que todas as variacoes do modelo por nos con-sideradas (e que nao esgotam 0mimero das que poderiam serindicadas) sejam 0 reflexo de diferentes posicoes ideo16gicas etenham, como consequencia, relevantes implicacoes politicas,revelou-se com muita clareza e nao necessita de ulteriorescomentarios. Deve ser ainda esc1arecido que, entre a estruturade urn modelo e sua funcao ideologica, nao subsiste aqueleparalelismo perfeito que seriamos tentados a imaginar: 0mes-

mo modelo pode servir para apoiar teses politic as opostas, e amesma tese politica pode ser apresentada com modelos diver-sos. Trata-se, de resto, do bern conhecido problema da com-plexa relacao, de modo algum simples e simplificavel, entre aconstrucao de urna teoria e seu uso ideologico: relacao quedesencoraja ou deveria desencorajar os que buscam corres-pondencias univocas (dada tal teoria, tem-se determinadaideologia) .

Se se escolhe como criterio para distinguir as atitudespolitic as dos diversos autores a resposta que deram a velha esempre recorrente disputa sobre a melhor forma de governo,podem-se distinguir, grosso modo, tres posicoes, conforme apreferencia tenha sido dada ao governo monarquico (Hobbes),ao democratico (Spinoza, Rousseau) ou ao constitucional re-presentativo (Locke, Kant). A derivacao da construcao spino-ziana a partir da hobbesiana e evidente e nao e de modo al-gum atenuavel (como tentarn fazer os que consideram dever

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8 6 NORBERTO BOBBIO

evitar, para 0 autor que apreciam, a vergonha da reductio adHobbesium). Mas, quando ambos se empenham em dar uma

resposta motivada a pergunta sobre a melhor forma de go-

verno (Hobbes no cap. X do De cive, Spinoza nos capitulosVI-IX do Tratado politico), chegam a conclusoes opostas:para Hobbes, a melhor forma de governo e a monarquia, en-quanta para Spinoza e a democracia. E bastante conhecido 0

quanto influiu sobre Rousseau 0modelo hobbesiano; mas, do

modele escolhido como guia, Rousseau extrai nao as conse-quencias politicas de Hobbes, mas as de Spinoza: a definicaodada por Spinoza da democracia antecipa surpreendente-mente a formula de Rousseau: "[A democracia] define-secomo a uniao de todos os homens que tern coletivamente pleno

direito a tudo 0 que esta em seu poder".' Contudo, a constru-~ao rousseauniana nao e nem a de Hobbes nem a de Spinoza:o modo pelo qual ele figura a distincao entre poder legislativo

e poder executivo, como distincao entre a vontade que deli-

bera e dirige e a mao que atua, e de nitida derivacao lockeana.

Mas Rousseau e defensor da democracia direta, enquanto Lo-cke defende e racionaliza 0 regime da monarquia constitucio-

nal e representativa. Sobre a relacao Locke- Kant no que serefere a forma de governo, nao ha necessidade de gastar mui-

tas palavras: quando contrapoe a republica nao i t monarquia,mas ao despotismo, Kant tern em mente 0 ideal da monarquia

constitucional, e nao certamente 0 ideal spinoziano e menosainda 0 rousseauniano da democracia; alias, ele execra a de-mocracia como a pior forma de governo. Contudo, se exami-

narmos os elementos singulares da construcao, nao ha diividade que alguns deles, em minha opiniao os mais significativos- a teoria da obediencia absoluta acompanhada da liberdadede opiniao - aproximam-no de Spinoza. Kant e muito mais

estatista que Locke, apesar da divisao dos poderes, mas e aomesmo tempo menos democratico que Spinoza e, natural-

mente, que Rousseau, de quem, contudo, e mais proximo pelo

seu estatismo e de quem derivou a ideia do contrato originariocomo fundamento de legitimidade do poder e a propria for-

mula desse contrato, segundo 0 qual todos depoem sua liber-

(1) Spinoza, Tractatus theologico-politicus, cap. XVI, ed. cit., p. 382.

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dade externa para retoma-la na condicao de membro de urncorpo comum. 2

Nao e diversa a conclusao a que podemos chegar quando

examinamos nao a solucao dada ao problema da melhor for-ma de governo, mas a ideologia politic a expressa em cada au-tor: conservadora (Hobbes), liberal (Spinoza, Locke e Kant),revolucionaria (Rousseau). 0 significado ideologico de umateoria depende nao de sua estrutura, mas do valor primario aoqual ela serve: a ordem, a paz social, a seguranca, a liberdadeindividual estreitamente ligada a propriedade, a igualdade so-cial que se realiza nlo na liberdade individual mas na liber-dade coletiva, e assim par diante. A formula hobbesiana dopacto de uniao desempenha uma funcao conservadora em

Hobbes, radical-revolucionaria em Rousseau, enquanto aideologia liberal acolhe e utiliza para a mesma finalidade, res-pectivamente em Spinoza-Kant e em Locke, duas solucoesopostas com relacao ao problema da obrigacao politica (deverde obediencia ou direito de resistencia).

Todavia, para alem das variacoes estruturais, ate mesrnonos limites de urn unico modelo, e para alem das divergenciasideologic as, todas as filosofias politic as que se enquadram noambito do jusnaturalismo tern - com relacao as que as pre-

cedern e as que as sucedem - urna caracteristica distintivacomurn: a tentativa de construir uma teoria racional do Es-tado. Nas primeiras paginas, insistimos no ambicioso projetoda charnada escola do direito natural, a comecar por Hobbes,de elaborar uma etica, uma ciencia do direito, uma politica(ao que se acrescentara, no final, urna economia), ou, emsuma, uma filosofia pratica dernonstrativa, isto e, apoiada emprincipios evidentes e deduzida desses principios de modo 10 -

gicamente rigoroso. Esse proieto culmina na teoria do Estado,nao soporque 0Estado, e em geral 0direito publico, constitui a

parte final da teoria do direito e era ate entao a parte teorica-mente menos desenvolvida, mas tambern porque e aquela a queos proprios jusnaturalistas deram maier destaque, e que deixouatras de si maiores marcas, tanto que ° jusnaturalismo foi ge-ralmente considerado como uma corrente de filosofia politica.

(2) Kant, Metaphysik der Sitten, §47.

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A expressao "teoria racional do Estado" tern, antes demais nada, urn significado metodologico, sobre 0 qual, depoisdo que dissemos nas paginas anteriores, nao e 0 caso de insis-tiro Quando muito, sera necessario acrescentar que, precisa-mente na teoria do Estado, manifesta-se mais clara e maisconcretamente do que em qualquer outro terreno 0 propositopufendorfiano de separar a jurisprudencia da teologia. Cons-truir racionalmente uma teoriadoEstado significa prescindirtotalmente de qualquer argumento (e, portanto, de qualquersubsidio) de carater teologico, ao qual sempre recorrera adoutrina tradicional, na tentativa de explicar a origem da so-ciedade humana em suas varias formas; ou seia, em outraspalavras, significa busca explicar e justificar urn fato pura-

mente humano com 0Estado partindo do estudo da naturezahumana, das paixoes, dos instintos, dos apetites, dos interes-ses que fazem do homem urn ser sociavel/insociavel, ou, emsuma, partindo dos individuos - como dira Vico, em tom decondenacao, referindo-se a Pufendorf - "lancados nestemundo sem cuidado e ajuda divinos". 3 A teoria do Estadocomo remedium peccati, Hobbes - e, em suas pegadas, Spi-noza - contrapoe a teoria do Estado como remedio para urnfato humanissimo, as paixoes humanas, consideradas "nao

como vicios, mas como propriedades da natureza humana,pertinentes a ela do mesmo modo que a natureza da atmosferasao pertinentes 0 calor, 0 frio, a tempestade, 0 trovao e asse-melhados" .4

Com Locke, com os economistas, com Kant, os interessesassumiram 0 lugar das paixoes como mola da vida social: masa antitese interesse individual/interesse social, utilidade ime-diata/utilidade mediata, jamais eliminara inteiramente a ann-tese, da qual partiu a teoria racional do Estado, entre paixoes

(afetos) e razao. Alias, as duas antiteses procedem mescladasuma i t outra, mal distinguiveis uma da outra, de modo que 0

Estado aparece em cada oportunidade e ao mesmo tempocomo 0ente racional por excelencia e como 0 garante do inte-resse coletivo, do util mediato, que e 0 "verdadeiro" utH, pre-cisamente 0 util tal como e sugerido pela reta razao. A hipo-

(3) G. B.Vico,Lascienzanuovaprima,ed.cit.,§18.(4) Spinoza, Tractatuspoliticus, cap. I, §4.

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tese do estado de natureza e do conseqtiente contrato socialfaz desaparecer definitivamente a doutrina do nulla potestasnisi a Deo, da qual Kant dara uma justificacao puramenteracional: a maxima - diz ele - nao tern finalidade que a de

fazer compreender que a origem do poder e imperscrutavel(mas, se e assim, entao a doutrina da origem divina do poderpodera ser tranqtiilamente substituida pela doutrina que fun-da a legitimidade do poder unicamente na tradicao, como adefendida por Edmund Burke, contemporaneo de Kant, jaque a tradicao e tio imperscrutavel quanto a vontade deDeus). A construcao racional do Estado avanca pari passucom 0 processo de secularizacao da autoridade politica e, emgeral, da vida civil: nao pode ser dissociada, embora seja diff-

cil dizer se se trata de urn estimulo ou de urn reflexo (provavel-mente e ambas as coisas), daquela profunda transforrnacaodas relacoes entre Estado e Igreja, pela qual 0Estado se tornacada vez mais independente da Igreja, enquanto a Igreja (apartir do momento em que entra em colapso 0 universalismoreligioso e nascem as Igrejas nacionais) se torna cada vez maisdependente do Estado.

Por outro lado, quando se fala em teoria racional do Es-tado, a proposito do jusnaturalismo, e preciso saber captar -

alem do significado metodol6gico - tambem urn significadoteoricamente bern mais rico e historicamente bem mais rele-vante, que se refere A natureza e ao resultado da construcao eque revelara toda a sua importancia quando 0 modelo se foresgotando nas varias correntes antijusnaturalistas. Com urnpequeno mimero de palavras, pode-se expressar a ideia nosseguintes termos: a doutrina jusnaturalista do Estado nao eapenas uma teoria racional do Estado, mas tambem e umateoria do Estado racional. Isso quer dizer que ela desemboca

numa teoria da racionalidade do Estado, na medida em queconstroi 0Estado como ente de razao por excelencia, iinico noqual 0homem realiza plenamente sua propria natureza de serracional. Se e verdade que, para 0 homem enquanto criaturadivina, e xtr a e cc le siam nulla s alu s, e igualmente verdade que,para 0 homem enquanto ser natural e racional, nao ha salva-~aoextra rempublicam.

Com a sua costumeira e peremptoria lucidez, Hobbes ex-pressa esse conceito numa celebre passagem que pode ser as-

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sumida quase como emblema da elevacao do Estado a sede davida racional: "Fora do Estado, tem-se 0dominic das paixoes,a guerra, 0 medo. A pobreza, a incuria, 0 isolamento, a bar-barie, a ignorancia, a bestialidade. No Estado, tem-se 0 domi-nio da razao, a paz, a seguranca, a riqueza, a decencia, asociabilidade, 0 refinamento, a ciencia, a benevolencia". 5 0maior teorico do Estado racional e Spinoza: no homem, aspaixoes sao tao naturals quanta a razao; mas, no estado denatureza, as paixoes triunfam sobre a razao: contra as pai-xoes, a religiao pode POllCO ou nada, ja que ela vale "no mo-mento da morte, quando as paixoes ja foram vencidas peladoenca e 0 hornem esta debilitado ao extremo, ou DOS tem-plos, onde os homens nao exercem relacoes de interesse" ;6'so-mente a uniao de todos num poder comum, que refreie, com aesperanca de premios ou com 0 temor de castigos, os indivi-duos que tendem naturalmente a seguir mais a cega cupidezdo que a razao, pode permitir ao homem alcancar do melhormodo possivel a meta da propria conservacao que e a finali-dade precipua prescrita pela razao: na medida, de resto, emque 0Estado, e somente 0Estado, permite ao homem realizara suprema lei da razao, que e a lei da propria conservacao (da"verdadeira utilidade"), ele deve se comportar, se quer sobre-viver, racionalmente, de modo diverso do que ocorre com os

homens no estado de natureza; ou seia, 0homern deve se com-portar seguindo apenas os ditames da sa razao: 0 individuonao delinque se, no estado de natureza, nao segue a razao: 0

Estado, sim, porque somente 0 Estado racional consegue con-servar a potencia que e constitutiva da sua natureza; urn Es-tado nao racional e impotente; e urn Estado irnpotente nao emais urn Estado. 0 individuo pode encontrar refugio no Es-tado. Mas 0Estado? 0 estado ou e-potente (e, portanto, auto-nomo) ou nao e nada: mas, para ser potente e autonomo, deveseguir os ditames da razao, 0 Estado-potencia e tambem, ao

mesmo tempo, 0Estado-razao. Spinoza aprendeu bern a licaodo "agudissimo", do "sabio" Maquiavel, de quem e urn ad-mirador, e transformou-a nurn fragmento de uma das maiscoerentes (e impiedosas) concepcoes do homern jamais imagi-

(5) Hobbes, De cive, X, 1.

(6) Spinoza, Tractatus politic us , cap. I, §s.

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nada. As razoes do Estado sao, no final das contas, as razoesda razao: a racionalizacao do Estado se converte na estatiza-~ao da razao, e a teoria da razao de Estado se torna a outraface da teoria do Estado racional.

Para Locke, as leis naturais sao as proprias leis da razao.Mas, para observar as leis da razao, sao necessaries seres ra-cioanis, ou, melhor dizendo, sao necessarias condicoes taisque permitam a urn ser racional viver racionalmente, ou seja,seguir os ditames da razao, Essas condicoes nao existem noestado de natureza: existem somente na sociedade civil, aqual, portanto, configura-se tambern em Locke como 0 unicolocal em que os homens podem ter a esperanca de viver se-gundo as leis da razao, As leis civis, com efeito, nao sao - naodeveriam ser - nada mais do que as proprias leis naturaismunidas daquele tanto de poder coercitivo capaz de obrigartarnbem os recalcitrantes a respeita-Ias, Por conseguinte, se oshomens querem viver 0 mais possivel racionalmente, devemingressar naquela unica sociedade onde as leis naturais podemse transformar em verdadeiras leis, ou seja, em norm as deconduta que nao sao apenas formalmente validas, mas tam-bern eficazes de fato. Essa sociedade e 0 Estado. Para Kant,a saida do estado de natureza e 0 ingresso no estado civil naosao apenas consequencia de urn calculo utilitario, como e 0

caso certarnente em Hobbes, Spinoza e Locke, mas urn devermoral; nao sao urn imperativo hipotetico, nao sao mera regrade prudencia ("se queres a paz, entra no estado civil"), masurn imperativo categorico, urn coman do da razao pratica, umdever moral: "Do direito privado no estado natural, decorreagora 0 postulado do direito publico: tu deves, gracas a rela-~ao de coexistencia que se estabelece inevitavelrnente entre ti eos outros homens, sair do estado de natureza para entrar numestado juridico" ~7 Isso quer dizer que, pelo menos no tocantea vida de relacao, a s condicoes de existencia da liberdade ,~x-

terna, 0Estado tern urn valor intrinseco absoluto (dai 0 cara-ter absoluto do poder soberano e, conseqiienternente, da obe-diencia que lhe e devida); nao e urn expediente, urn remedio,cujo valor dependa do valor da finalidade, mas e urn ente n10-

(7) Kant, Metaphysik der Sitten, §42.

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ral (moral, observe-se, nao eticol), 0 individuo nao e livre (noque se refere it liberdade external se nao ingressa no reino dodireito; mas 0 reino do direito perfeito e aquele no qual 0 di-reito privado-natural e submetido ao direito publico-positivo,

ou, em suma, e a sociedade civil. Numa hist6ria ideal da hu-manidade,como aquela que vai da liberdade selvagem do es-tado de natureza it liberdade refreada da sociedade civil, ainstituicao do Estado e urn momento decisivo, a ponto deconstituir uma ideia reguladora para 0projeto daquela futurasociedade juridica universal para a qual ten de 0 homem emsua gradual aproximacao a uma forma de existencia cada vezrnais conforme a razao.o ate especifico atraves do qual se explicita a raciona-

lidade do Estado e a lei, entendida como norma geral e abs-

trata, produzida por uma vontade racional, tal como 0 e , pre-cisamente, a do Estado-razao, Enquanto geral e abstrata, a leise distingue do decreto do principe, atraves do qual se ex-pressa 0 arbitrio do soberano e se institui uma legislaeao deprivilegio, criadora de desigualdade. Enquanto produto deuma vontade racional, a lei se distingue dos costumes, doshabitos, dos usos herdados, das normas a que deu vida a meraforca da tradicao. 0 que caracteriza 0Estado e precisamenteo poder exclusivo de fazer leis: Hobbes e contrario a common

law e nao admite outro direito alem daquele que decorre davontade do soberano. 0 "governo civil" de Locke se funda noprimado do poder legislativo, 0 qual " e nao apenas 0 podersupremo da sociedade politica, mas permanece sagrado e imu-tavel nas maos em que a humanidade 0 colocou". s, Rousseauve na vontade geral 0 orgao de criaeao das leis, e nas leis -distintas dos decretos do poder executivo, enquanto aquelassao sempre voltadas para a generalidade dos cidadaos, semdiscriminacoes - a destruicao de todo privilegio e a garantiada igualdade civil.

Como foi varias vezes observado, urn dos aspectos doprocesso de racionalizacao do Estado, consider ado (basta pen-sar em Max Weber) como caracteristica fundamental da for-macae do Estado moderno, e antes de mais nada a reducao de

(8) Locke, Two Treatises, Segundo Tratado, §134.

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA pOLITICA MODERNA 93

toda forma de direito a direito estatal, com a conseqiiente eli-minacao de todos os ordenamentos juridicos inferiores ou su-periores ao Estado, tanto que se chega pouco a pouco a estardiante de apenas dois sujeitos de direito, os individuos, cujo

direito e 0 direito natural (que, de resto, e urn direito imper-feito), eo Estado cujo direito eo direito positivo (que e 0 unicodireito perfeito): em segundo lugar, e a reducao de toda possi-vel forma de direito estatal a direito legislative, do qual nas-cera aquela (suposta) positivizacao do direito natural que econstituida pelas grandes codificacoes, em especial pela napo-leonica, e que pretende, atraves da eliminacao da pluralidadedas fontes de direito, assegurar a certeza do direito contra 0

arbitrio, a igualdade (ainda que formal) contra 0 privilegio,

ou, em suma,0

Estado de direito contra toda forma de despo-tismo.Tomando como ponto de referencia as duas formas tipi-

cas de poder legitime descritas por Max Weber, 0 poder tradi-cional e 0 legal-racional (a terceira, 0 poder carismatico, euma forma excepcional e, por sua propria natureza, proviso-ria), nao se pode deixar de observar a contribuicao que a filo-.sofia politica do jusnaturalismo deu a critic a do poder tradi-cional e a elaboracao da teoria do poder legal-racional. A me-dida que 0 jusnaturalismo desemboca no leito da filosofia das

luzes, da qual se torna 0 aspecto juridico-politico, a antitesepaixao/razao e substituida (ou melhor, complementada) pelaantitese costume-lei, onde 0 primeiro termo representa 0 de-posito cada vez melhor documentado e nao ulteriormente am-pliavel de tudo 0 que 0 homem produziu na historia sem 0

subsidio da razao, 0 poder tradicional e caracterizado pelacrenca na sacralidade do chefe e, portanto, pela atribuicao aomesmo de urn poder arbitrario, nao regulado por normas ge-rais, que decide caso por caso (a justica dos kadi): por urn

ordenamento juridico composto em grande parte por normasconsuetudinarias, herdadas, emendadas e atualizadas pelosjuizes: por relacoes pessoais ou de c1ientela entre 0 principe eseus funcionarios: por uma concepcao paternalista do poderque, partindo da concepcao da familia como Estado em mi-niatura, chega a concepeao do Estado como familia ampliada.De todas as paginas anteriores, resultou de modo bastanteclaro que a filosofia politica do jusnaturalismo expressa uma

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94 NORBERTO BOBBIO

teoria do poder que esta nos antipodas da teoria do podertradicional e que contern todos os principais elementos da for-ma de poder que Weber chamou de legal-racional: Iaicizacaodo Estado e subordinacao do principe as leis naturais que sao

as leis da razao: primado da lei sobre0

costume e sobre asnorm as criadas em cada oportunidade pelos juizes; relacoesimpessoais, ou seja, atraves das leis, entre principe e funcio-

narios, de onde nasce 0 Estado com estrutura burocratica, eentre funcionarios e suditos, de onde nasce 0 Estado de di-reito; e, finalmente, concepcao antipaternalista do poder es-

tatal, que identifica Locke, adversario de Robert Filmer, com

Kant, 0 qual ve realizado 0 principio do iluminismo, definido

como a era na qual 0 homem finalmente se tornou adulto, no

Estado que tern como meta nao fazer os siiditos felizes, mas

torna-los livres.

Ao contrario do modelo aristotelico, que procede do cir-culo menor para 0 circulo maior por meio de uma pluralidadede graus intermediaries, 0 modelo jusnaturalista e - como

dissemos - dicotomico: ou 0 estado de natureza, ou a socie-dade civil. 0 que significa: ou tantos soberanos quantos sao osindividuos, ou urn unico soberano, feito de todos os individuosunidos em urn s6 eorpo.

o Estado nao e como uma familia ampliada, mas como

urn grande individuo, do qual sao partes indissociaveis os pe-quenos individuos que the dao vida: basta pensar na figuraposta no frontispicio do Leviatii, na qual se ve um homemgigantesco (com a coroa na cabeca e, nas duas maos, a espada

eo baculo, simbolo dos dois poderes), cujo corpo e composto

de varies homens pequenos. Rousseau expressa 0mesmo con-

eeito ao definir 0Estado como 0 "eu comum", imagem muitodiversa da de "pai eomum". Na base desse modelo, portanto,

esta uma concepcao individualista do Estado, por urn Iado, e,

por outro, uma concepcao estatista (que significa racionali-zada) da sociedade. Ou os individuos sem Estado, ou 0Estadocomposto apenas de individuos, Entre os individuos e 0 Es-tado, nao ha Iugar para entes Intermediaries. E tambem essa

e uma extrema simplificacao dos term os do problema, a qual

conduz inevitavelmente uma constituicao que quer ser racio-nal e, enquanto tal, sacrifica em nome da unidade as varias ediferentes instituicoes produzidas pela irracionalidade da his-

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SOCIEDADE E ESTADO NA FlLOSOFIA POLITICA MODERNA 9S

toria; mas e tambem, ao mesmo tempo, 0 reflexo do processode concentraeao do poder que marca 0 desenvolvimento doEstado moderno. Uma vez constituido 0 Estado, toda outraforma deassociacao, incluida a Igreja, para nao falar das cor-

poracoes ou dos partidos ou da propria familia, das socieda-des parciais, deixa de ter qualquer valor de ordenamento juri-dico autonomo, Dos partidos, Hobbes diz que devem ser con-denados, porque terminam por ser "um Estado no Estado": 9

o Estado ou e tmico e unitario ou nao e um Estado. Condena 0

grande numero de corporacoes, que "sao como varies Estadosmenores nas entranhas de urn maior, semelhantes a vermes nointestino de urn homem natural" .10

Com a arida linguagem do discurso racional, Spinoza for-mula com rigor 16gico a mesma ideia: "Dado que 0 direitosoberano e definido pela potencia comum da multidao asso-ciada, e 6hvio que a potencia e 0 direito do Estado diminuemem razao do motivo que ele mesmo oferece ao constituir-se deassociacoes"," Segundo Rousseau, "para se ter a verdadeiraexpressao da vontade geral, e necessario que nao existam noEstado sociedades parciais, e que cada cidadao raciocine ape-

;. b ,,12nas com a propria ca eea .

(9) Hobbes, De cive, XIII, 13.

(10) Hobbes, Leviathan, cap. XXIX.

(I I) Spinoza, Tractatus politicus, cap. III, §9.

(12) Rousseau, Du contrat social, L. II, cap. 3.

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o fim do jusnatura lismo

A ideia do Estado-razao chega ate Hegel, que define 0

Estado como "0acional em-si e para-si". Mas Hegel e tam-bern ° critico mais impiedoso do jusnaturalismo;' a razao deque ele fala quando, desde 0 inicio da Filosofia do direito,

anuncia querer compreender 0Estado como.uma coisa racio-nal em si nao tern nada·a ver com a razao dos jusnaturalistas,as quais se deixaram seduzir mais pela ideia de delinear 0

Estado tal como deveria ser do que pela tarefa de compreende-10 tal como e . E, com efeito, segundo Hegel, nao 0 compreen-

deram. A "sociedade civil", que eles representaram partindodo estado de natureza, nao e 0 Estado em sua realidade pro-funda: e apenas urn momento no desenvolvimento do espiritoobjetivo, que nao comeca no estado da natureza para terminarna sociedade civil, mas tern inicio na familia (Hegel retoma 0

modelo aristotelico) para chegar ao Estado, passando atraves

da sociedade civil; essa e 0momento que se situa entre a fami-lia e 0Estado, e representa, na categoria da eticidade, 0 mo-mento negativo, au seja, a fase do desenvolvimento historicoem que ocorre, por urn lado, a desagregacao da unidade fami-

liar, a comecar pelo "sistema dos carecimentos" , e, par outro,nao e ainda reconstituida, mesmo atraves das primeiras for-

(1) Desenvolvi esse tema no meu artigo "Hegel e ilgiusnaturalismo", in RivistadiFilosofia, 1966. pp. 379-407.

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLiTICA MODERNA 97

mas de organizacao social, como a administracao da justica(na qual se deteve Locke) e como a administracao publica (naqual se detiveram os te6ricos do Estado do bem-estar), a uni-dade substancial e nao apenas formal, organic a e nao apenasmecanica, etica e nao apenas juridica, do Estado. Para ser urnEstado propriamente dito, urn Estado real e nao imaginario,um Estado tal como e e nao como deveria ser, falta a socie-dade civil dos jusnaturalistas - segundo Hegel - 0 carateressencial da "totalidade organica". Os jusnaturalistas imagi-naram a sociedade civil como uma associacao voluntaria deindividuos, enquanto 0 Estado e a unidade organica de urnpovo. Colocaram como fundamento dessa associacao, confun-dindo-a erroneamente com 0 Estado, urn contrato, ou seja,

urn instinto de direito privado, que pode dar vida.a forrnas desociedade parcial no estado de natureza, mas certamente naoserve para explicar e justificar 0 salto da natureza a hist6ria,do momento inicial do direito abstrato, onde existem apenasindividuos em luta entre si pelo reciproco conhecimento, aomomenta final do Estado, que deve sua constituicao nao aoarbitrio meta-historico de individuos singulares, mas a for-macae hist6rica concreta do "espirito do povo". Se urn Estadofosse verdadeiramente nada mais do que uma associacao fun-dada com base num acordo entre individuos, guiados pela ra-zao calculadora (que, para Hegel, e intelecto e nao razao),todo individuo deveria se considerar livre para romper a asso-ciacao quando sua conveniencia desaparecesse e, portanto, dearruinar 0 Estado com sua propria acao; e, desse modo, naose explicaria jamais como urn Estado assim, amerce dos seuscidadaos, pudesse pretender, como de fato pretende, 0 sacri-ficio da vida desses mesmos cidadaos quando esta em jogo asua propria sobrevivencia. 2

Com Hegel, 0 modelo jusnaturalista chegou a sua con-

clusao. Mas a filosofia de Hegel e nao apenas uma antitese,mas tambem uma sintese. Tudo 0 que a filosofia politic a dojusnaturalismo criou nao e expulso do seu sistema, mas in-cluido e superado (0mesmo ocorre com 0conjunto dos concei-tos herdados atraves do modelo aristotelico). No que se refere

(2) Sobre esse ponto, remeto ao meu artigo "Diritto privato e diritto pubblico in

Hegel", in Rivista di Filosofia, outubro de 1977, pp. 3-29.

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98 NORBERTa BOBBIO

a concepcao do Estado como momento positivo do desenvol-vimento historico, como solucao permanente e necessaria dosconflitos que envolvern os homens na luta cotidiana pela pro-pria conservacao, como saida do homem do ventre da natu-

reza (para usar a celebre expressao kantiana) a fim de entrarnuma sociedade guiada pela razao - em suma, como aquelaesfera na qual a razao hurnana pode finalmente explicitar suapropria autoridade contra a prepotencia dos instintos -, afilosofia do direito de Hegel e nao uma negacao, mas urnasublimacao, Nao se pode ler a passagem em que Hegel fala doEstado como Deus terreno sem pensar no Deus mortal deHobbes. A critica que Hegel dirige aos jusnaturalistas nao e ade nao terem dado um juizo positivo sobre 0Estado, mas a denao terem sabido fundar tal juizo depois de te-lo dado; nao de

nao terern posto 0 Estado acima dos individuos, mas nao dete-lo posto 0 suficiente e, por conseguinte, de terem feito deleurn todo composto de partes e nao urna totalidade que cria elamesma, em seu proprio seio, as partes de que e cornposta; naode nao terem compreendido a funcao racional do Estado, mas·de se terem detido no meio do caminho, tomando 0 intelectoabstrato como se fosse a razao. No fundo, Hegel e urn inter-prete do mesmo processo historico, a formacao do Estado mo-derno, do qual os jusnaturalistas tentaram dar uma recons-

trucao racional, idealizando-o e, portanto, segundo Hegel,deformando-o. 0 Estado da Restauracao que ele tern diantede si, urn Estado que se recompos apos a dilaceracao da Revo-lucao Francesa, e a continuacao e a recomposicao daquelemesmo Estado que, no inicio da era moderna, impos sua pro-pria unidade a urn mundo dilacerado pelas guerras religiosas.

A antitese do modele jusnaturalista nao e a teoria do Es-tado hegeliano, mas a teoria da soeiedade que nasee no iniciodo mesmo seculo, quando abre caminho a ideia, a comecarpor Saint-Simon - que Engels exaltara como "0 espirito mais

universal de sua epoca'" -, de que a verdadeira revolucao doperiodo era nao urna revolucao politica como a RevolucaoFrancesa, mas uma revolucao economica, ou seja, aquela re-volucao que fez naseer a "sociedade industrial", e que, por

(3) F. Engels, Anti-Duhring , in Werke, Dietz Verlag, vol. XX, p. 23.

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SOCIEDADE E ESTADO NA FILOSOFIA POLiTICA MODERNA 99

conseguinte, a solucao dos problemas da vida associada deveser buscada nao no sistema politico, mas no sistema social.Com relacao a filosofia da historia que interpreta 0 progressohistorico como passagem da sociedade natural para 0Estado eve no Estado a culminacao, nao superavel, desse processo,Hegel pertence ao mesmo movimento de ideias dos escritoresprecedentes. Tambem 0 seu Estado surge como antitese e anti-doto (e, portanto, como solucao, como a unica solucao possi-vel) para os conflitos que nascem por causa dos interessesegoistas em luta entre si. Mas, precisamente na epoca de He-gel, abre caminho uma filosofia da historia invertida, que ve 0program a hist6rico no movimento contrario, num movimentoqueprocede do Estado para a sociedade sem Estado, ou seja,

que ve no Estado nao 0 grande mediador acima das partes,mas 0 instrumento de dominio de uma parte sobre a outra,como Rousseau ja 0havia visto. Mas Rousseau se iludira pen-sando encontrar uma nova solucao politica, e apenas politic aou seja, imaginando uma forma original de Estado, no qual aautoridade absoluta do todo fosse a garantia da liberdade detodos, nao 0 fim, mas a perpetuacao do estado de natureza.o bellum omnium contra omnes, que para Hobbes era a ima-gem de um estado originario ou de alguns momentos excep-cionais, nos quais a unidade do Estado se dissolve na anarquiada guerra civil, ou urn dado permanente, mas limit ado as re-lacoes entre Estados soberanos, torna-se para Marx a imagemdo estado permanente da sociedade capitalista, caracterizadapela concorrencia economica. Segundo essa nova filosofia dahistoria, nenhum Estado - e menos ainda 0 Estado da socie-dade burguesa - suprimiu 0 estado de natureza, ja que 0 Es-tado, em vez de ser 0 triunfo da razao na Terra, como acre-ditou t.oda a filosofia politica de Hobbes a Hegel, e 0 meioatraves do qual a c1asse economicamente dominante mantem

seu proprio dorninio. Tambem para Locke, urn Estado despo-tico nao era uma sociedade civil, mas sim a recaida no estadode natureza. Se todo Estado, pela sua propria essencia comoEstado, e urn Estado despotico, e uma ditadura de uma c1assesobre outra, ele e uma forma de convivencia na qual 0 estadode natureza, em vez de ser suprimido, e conservado e poten-ciado. Por conseguinte, para sair do estado de natureza, e

preciso nao instituir 0 Estado, mas sim destrui-lo. Desse

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100 NORBERTO BOBBIO

modo, 0modelo jusnaturalista e completamente invertido. In-vertido, ja que a grande dicotomia sociedade-Estado perm a-nece, mas 0 uso axiologico que dela fazem, respectivamente,

os te6ricos do Estado e os te6ricos do anti-Estado e oposto.

A questao de saber qual das duas filosofias da historia -a que vai de Hobbes a Hegel e v e no Estado 0 momento cul-

minante da vida coletiva, ou a que, comecando com Saint-

Simon, passando atraves do socialismo utopico e do socialismocientifico, expressando-se plenamente nas varias formas deanarquismo, preve e projeta como fim ultimo da hist6ria adestruicao do Estado - qual delas interpretou melhor 0 cursohistorico do ultimo seculo, essa e uma questao a que e dificildar uma resposta; e que, de qualquer modo, transcende 0

nosso tema.